EVOLUO SCIO POLTICO DAS ONGS NO BRASIL: MUDANAS NAS RELAES DO ESTADO COM O TERCEIRO SETOR

Luis Carlos de Abreu Mendes

1. PRIMEIRAS REFLEXES SOBRE O TEMA

No contexto das mudanas, contradies e crises peculiares ao trmino do segundo milnio cristo, algumas nominadas sociedade ps-capitalista, Estado ps-fordista, globalizao da economia, paradigma holstico, ps-modernidade, neoliberalismo outras aguardando titulaes, definies e conceituaes, processa-se uma crise que ser aqui examinada: a crise de identidade do Estado Brasileiro, as reformas da decorrentes e, em particular, a (re)construo da sociedade civil, a partir do reposicionamento de atores e papis ainda pouco visveis e pertencentes a um segmento difuso da sociedade brasileira, identificado genericamente como Terceiro Setor, do qual selecionou-se o conjunto das ONGs (Organizaes No-Governamentais).

Algumas questes bsicas orientaram o estudo dessas organizaes, na conformao histrica de suas relaes com o Estado brasileiro:

Como e quando surgiram? Que aes desenvolvem? Como processam o alcance e a legitimidade dos resultados dessas aes? Qual o volume de recursos humanos e financeiros mobilizados pelo segmento? Como se articulam e desenvolvem parcerias? Qual a importncia dessas parcerias na efetivao das polticas pblicas brasileiras? O que movimenta os atores e mobiliza as foras propulsoras e inibidoras prprias do

segmento a que pertencem? Como tem evoludo o Terceiro Setor na Amrica Latina e no Brasil? Quais as tendncias observadas em nvel mundial para o setor emergente?

No se tem a pretenso de responder exaustivamente a todas elas, mas trazer algumas reflexes preliminares sobre o tema, resultantes de pesquisa bibliogrfica e de uma pesquisa emprica junto a entidades representativas do Terceiro Setor. Foram selecionadas ONGs do subconjunto das associadas ABONG (Associao Brasileira de Organizaes No-Governamentais), entre as quais optou-se pelo estudo daquelas de formao "mais antiga" ou de "primeira gerao", tendo em comum, trajetrias, iderios, e posies especficas na sociedade, que as diferenciam de outros subconjuntos formados por ONGs que trabalham com questes ambientalistas ou com clientelas especficas (mulheres, negros, ndios, meninos de rua). Autodenominaram-se, historicamente, organizaes de educao popular e desenvolvimento.

Pretende-se, dessa forma ajudar no equacionamento de outras tantas questes e contribuir para uma aproximao ao universo das ONGs e do Terceiro Setor no Brasil, sobre os quais h poucas pesquisas acumuladas.

A relevncia e atualizao do tema confirmada pelo atual Governo Federal brasileiro, que tem reconhecido, em vrios momentos e de formas diversas, a importncia do Terceiro Setor, admitindo, como relevante a necessidade de desenvolver parcerias com organizaes e atores do segmento. Percebem, por exemplo, com alguma relutncia, que a Reforma do Estado passa pelo reconhecimento das aes polticas e sociais dessas organizaes, ainda que tenham dificuldades para caracteriz-las e distingu-las nos diferentes subconjuntos em que se apresentam:

O Ministrio da Administrao Federal e Reforma do Estado/MARE, em recente verso sobre as Organizaes Sociais, apresentadas como estratgia central do Plano Diretor do Aparelho do Estado, identifica essa importncia j na definio do escopo do projeto:

(...) a crescente absoro de atividades sociais pelo denominado terceiro setor (de servios no-lucrativos) tem sido uma marca recorrente em processos de reforma do Estado nas democracias contemporneas. Trata-se de um movimento que portador de um novo modelo de administrao pblica, baseado no estabelecimento de alianas estratgicas entre Estado e sociedade, quer para atenuar disfunes operacionais daquele, quer para maximizar os resultados da ao social em geral. Assim, o propsito central do Projeto de Organizaes Sociais proporcionar um marco institucional de transio de atividades estatais para o terceiro setor e, com isso, contribuir para o aprimoramento da gesto pblica estatal e no-estatal. [p.2]

(...) Chamaremos a esse processo de "publicizao". Atravs de um programa de publicizao, transfere-se para o setor pblico no-estatal, o denominado terceiro setor, a produo dos servios competitivos ou no-exclusivos do Estado, estabelecendo-se um sistema de parceria entre Estado e sociedade para seu financiamento e controle. [p.3]

O Conselho da Comunidade Solidria reconhece dificuldades na caracterizao do Terceiro Setor e refora a necessidade de conhecer melhor os atores e organizaes que dele fazem parte, identificando uma abrangncia maior para o segmento em expanso:

Na dcada de 80 foram as ONGs que, articulando recursos e experincias na base da sociedade, ganharam alguma visibilidade, enquanto novos espaos de participao cidad. Hoje percebemos que o conceito de Terceiro Setor bem mais abrangente. Inclui o amplo espectro das instituies filantrpicas dedicadas prestao de servios nas reas de sade, educao e bem estar social. Compreende tambm as organizaes voltadas para a defesa dos direitos de grupos especficos da populao, como mulheres, negros e povos indgenas, ou de proteo ao meio ambiente, promoo do esporte cultura e lazer. Engloba as experincias de trabalho voluntrio, pelas quais cidados exprimem sua solidariedade atravs da doao de tempo, trabalho e talento para causas sociais. Mais recentemente temos observado o fenmeno crescente da filantropia empresarial, pela qual as empresas concretizam sua

responsabilidade social e o seu compromisso com melhorias nas comunidades.

O mesmo documento enfatiza o desconhecimento, por parte do Governo Federal, das aes desenvolvidas por esses atores, tanto em termos de abrangncia e diversificao, como da eficincia dos mtodos e da eficcia dos resultados, face aos recursos humanos e financeiros mobilizados, em dimenses tambm desconhecidas, no Brasil. Aponta, ainda, a ttulo de exemplo [p.4], alguns dados internacionais que denunciam o potencial de mobilizao de recursos. Nos Estados Unidos:

o Volume anual de recursos mobilizados: 601 bilhes de dlares, dos quais 70 bilhes so doados por cidados.

o 94,2 milhes de adultos num total de 180 milhes de pessoas com mais de 18 anos doaram 4,2 horas de trabalho voluntrio semanal, o que eqivale a 15,2 bilhes de horas anuais.

o O valor anual deste trabalho voluntrio est estimado em 176 bilhes de dlares e eqivale ao emprego, em tempo integral, de 9 milhes de empregados.

o O percentual de gerao de emprego remunerado no Terceiro Setor tem sido muito superior ao dos setores governamental e privado.

A partir dessas e de outras consideraes, o Conselho da Comunidade Solidria prope trs grandes linhas de ao, apoiadas pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento, como condicionantes da melhoria no relacionamento entre o Estado e o Terceiro Setor:

1. mudana do marco legal regulatrio; 2. produo de conhecimentos e informaes sobre o terceiro setor; e 3. promoo do trabalho voluntrio.

Reforando a posio de interesse do Governo Federal sobre o tema, em recente reunio, foi apresentado ao Programa de Apoio Gesto Social, desenvolvido em cooperao tcnica com o Banco Interamericano de Desenvolvimento e a Casa Civil da Presidncia da Repblica, um documento que discute as relaes Estado/sociedade civil, o qual, alm de identificar alguns elementos da problemtica dessas relaes, questiona o marco terico usado para avali-las e sugere roteiros de temas para exposio e debates e outros para dar continuidade s investigaes sobre o assunto.

2. A CONSTRUO DO TERCEIRO SETOR (ONGs em particular) NA AMRICA LATINA E NO BRASIL

Os registros existentes do conta de que, na Amrica Latina, uma parte da sociedade civil comeou a se articular j no final da dcada de 50, sob a forma de organizaes poltico-sociais, criadas por iniciativa de grupos de profissionais e tcnicos caracterizados pela militncia social, ou de grupos pastorais da Igreja Catlica. Os grupos, predominantemente informais, desenvolviam trabalhos de formao e promoo de comunidades de base com setores marginalizados e tinham possibilidades de relacionamento com agncias de cooperao europia, de procedncia catlica, que financiavam suas atividades.

O termo ONG, que virou moda no Brasil, nos ltimos cinco ou seis anos, importado, tendo surgido, pela primeira vez, em documentos das Naes Unidas, no final da dcada de 40, referindo-se a um universo extremamente amplo e pouco definido de instituies. Em 1945, a Ata de Constituio das Naes Unidas j menciona o termo Organizaes No Governamentais, com as quais o Conselho Econmico e Social da ONU poderia estabelecer consultorias. Landim observa que como vrias outras "importaes" que fazem parte habitual da histria cultural e poltica em um contexto nacional como o brasileiro, adaptaram-se e se "retraduziram" em funo de relaes e dinmicas sociais locais.(...) As ONGs expressam uma conjugao sui-generis de dinmicas locais e internacionais.

O processo de relacionamento e "dependncia" mantido com as agncias financiadoras internacionais amplamente reconhecido (e por vezes questionado) pelos dirigentes das ONGs brasileiras e existem registros significativos da representatividade dessas relaes. Destacou-se alguns dados que fornecem a ordem de grandeza dos nmeros: (Landim)

o Entre 1960 e 1980 houve um crescimento de 68% na ajuda externa para o "Terceiro Mundo", atravs de agncias no governamentais de pases europeus, do Canad e dos Estados Unidos: passou-se de 2.8 bilhes de dlares para 4.7 bilhes de dlares.

o Uma das razes importantes no aumento, foi o crescimento dos subsdios governamentais para NGOs (Non-Governamental Organizations): quanto aos pases membros da OECD ( Organization for Economic Cooperation and Development), por exemplo, eles subiram de 778.2 milhes de dlares em 1973 para 1.5 bilhes, em 1980.

o Com respeito Comunidade Europia, se em 1976 dava s ONGs europias 4.8 milhes de dlares, em 1982 essa quantia vai a 22.7 milhes.

A grandeza dos nmeros que tornaram possvel a existncia das ONGs no mundo, em geral e, no Brasil em particular, faz refletir que o fenmeno nativo ONG tem como um dos condicionantes da sua multiplicao, lgicas que vieram do "Norte". Fernandes relacionou os pases que tm colaborado com as ONGs brasileiras, a partir das informaes fornecidas por dirigentes que participaram de uma reunio no Hotel Glria, em agosto de 1991 e responderam questo sobre relaes com Agncias de Cooperao Internacional. O quadro possibilita visualizar a grande concentrao de recursos provenientes da Europa, com destaque para a Alemanha e Holanda, com os quais mais da metade das ONGs nacionais se relacionam. Os Estados Unidos, segundo depoimentos obtidos na pesquisa de campo desenvolvida para este trabalho (abril a setembro de 1996), tm ampliado a colaborao com as ONGs latino-americanas, para alguns segmentos, com nfase em projetos de pesquisa e na rea ambiental, equilibrando, no geral, a retrao de recursos das agncias europias, nos ltimos anos.

Nmero de ONGs Brasileiras que Mantm Relaes com Agncias de Cooperao, por Pas de Origem das Agncias.

Pases das Agncias de Cooperao

N. de ONGs Brasileiras

Alemanha 57

Holanda 53

EUA 42

Inglaterra 31

Canad 28

Sua 20

Frana 17

Irlanda 14

Blgica 10

Itlia 10

Sucia 9

ustria 7

Dinamarca/Espanha 4

Portugal/Finlndia 3

Noruega 2

Luxemburgo/Esccia 1

Fonte: ONGs anos 90 (FERNANDES, R.C. e PIQUET CQRNEIRO, L.), Tabelas e Grficos, p.11/ N. de Questionrios = 95.

De qualquer modo, as ONGs (ou as organizaes que vieram a se tornar ONGs) comeam a existir, no Brasil, em anos do regime militar, confundem-se com oposio poltica e acompanham o padro da sociedade brasileira, em que a gestao de uma nova sociedade civil decorre da convivncia com o autoritarismo e a modernizao do Pas. As ONGs se estabeleceram e se consolidaram medida em que se legitimaram num amplo e diversificado campo de associaes civis, sobretudo a partir dos anos 70, crescendo em

progresso geomtrica, nas dcadas de 80 e 90. Landim fornece dados, no perodo que vai de 1961 a fevereiro de 1994, quanto s datas de fundao dessas organizaes:

ONGs segundo a data de fundao de fato e legal

Data de fund. De fato (%) Legal (%)

1961 1969 7.1 % 4.9 %

1970 1979 20.0 % 16.8 %

1980 1984 18.6 % 18.9 %

1985 1989 38.6 % 44.1 %

1990 1994 (fev.) 15.7 % 15.4 %

TOTAL 100.0 % 100.0 %

(base = 143 ONGs)

Fonte: ONGs: Um Perfil (LANDIM, Leilah), Introduo, p.XI.

Na condio de atuarem em contraponto ao autoritarismo do regime militar, evitavam qualquer relao com o Estado e, sem condies de parcerias com o empresariado, em relao ao qual reinava uma desconfiana recproca, as ONGs nasciam e subsistiam com aporte financeiro das agncias internacionais. Eventualmente apoiadas em situaes locais de mobilizaes voluntrias, no chegavam a explorar as potencialidades do mercado, nem como veculo de comunicao, at mesmo porque, quela poca, era inapropriado "fazer nome". Assim, os resultados de seus trabalhos (publicaes, audiovisuais, assessorias), no eram usados como um "produto" a ser veiculado por uma estratgia de marketing, mantendo-se o estigma da clandestinidade. Ainda que mobilizassem recursos considerveis, no se tem notcia de qualquer dirigente de ONG, no Brasil, que tenha ficado rico, o que lhes deu credibilidade crescente junto aos patrocinadores internacionais e explica, em parte, o volume e a forma como se deram os movimentos e surgiram as organizaes de assessoramento popular, que vieram a se transformar em ONGs, j no final da dcada de 80, com espao na mdia nacional e internacional, a partir da ECO 92.

A grande variedade de patrocinadores fez com que as ONGs latino-americanas, em geral, e as brasileiras, em particular, se acostumassem ao relacionamento com mltiplos parceiros internacionais, o que permanece at hoje, num clima de competitividade velada. Esse tipo de parceria acabou por definir formas e contedos de atuao das ONGs, que se traduziram no uso de um instrumento inovador, para a poca, o "projeto". Os financiamentos se faziam (e continuam) de dois modos: a) financiamento institucional, em que o recurso repassado entidade que o distribui de acordo com suas prioridades e convenincias; e, b) financiamento por projeto, que "amarra" previamente a utilizao dos recursos, em relao

a objetivos, metas e prazos, traduzindo um oramento que, de um lado, quantifica o valor dos meios necessrios para a obteno dos fins desejados e, de outro, permite uma prestao de contas confivel.

A adoo do "projeto" como instrumento de trabalho importante, na medida em que caracteriza uma forma de organizao a que se submeteram os ativistas latino-americanos, desde o incio das suas operaes, assimilando, em conseqncia, uma boa dose de lgica programtica. Fernandes destaca a peculiaridade e registra sua atualidade: as ONGs aprenderam a linguagem dos "projetos", e fazem dele seu principal instrumento de reproduo institucional. Absorveram portanto o vrus pragmtico que define as aes em termos de objetivos singulares e cronogramas controlveis. Resistem a este enquadramento, mas no podem fugir a ele, e tendem a fazer da necessidade virtude. O apelo [recente] ao "profissionalismo" um passo nesse sentido. A sintonia aberta para as novas palavras chaves dos anos noventa um indcio de que a cultura pragmtica ganha cidadania nos meios "onguistas". Hoje, a legislao trabalhista brasileira cria alguns problemas quanto contratao de pessoas para trabalhos por tempo determinado, sempre que se torna necessrio renov-lo porque o projeto foi ampliado para atender a uma outra clientela ou o seu prazo foi dilatado temporalmente. Neste momento o grupo constitudo para discutir o Marco Legal (Conselho da Comunidade Solidria) que regulamenta essa questo, entre outras, est propondo uma reviso da legislao com vistas a contemplar formas mais adequadas s peculiaridades do Terceiro Setor.

Fernandes acrescenta outras informaes histricas interessantes: O carter "no-governamental" das agncias financiadoras foi decisivo para as circunstncias. Os financiamentos, se feitos por governos estrangeiros, teriam de passar pelo governo brasileiro, mas agncias no-governamentais puderam se relacionar diretamente com os grupos civis, sem grandes exigncias de formalidades, desde que no fossem expressamente proibidos por lei. Ocorre, inclusive, que em situaes extraordinrias, agncias no-governamentais de atuao internacional estabeleam relacionamentos sigilosos, como, por exemplo, para a defesa dos direitos dos presos polticos em regimes ditatoriais. Esse tipo de relao que "driblava" o controle estatal, acabou por viabilizar os movimentos e as micro organizaes de apoio, tanto em termos financeiros, quanto conceitual e institucional. dessa relao que surgiram as ONGs. As agncias de cooperao internacional necessitavam de parceiros locais que fossem capazes de formular projetos, acompanhar a sua execuo e prestar contas. Necessitavam de contrapartes com personalidade jurdica, um mnimo de estrutura administrativa e uma afinidade de propsitos. No tinham como chegar direta e regularmente aos movimentos sociais , pois estes, justamente, careciam de estabilidade institucional. Junto com os recursos financeiros vieram "conceitos" e "valores" polticos e religiosos, palavras de ordem e toda a simbologia de um socialismo efervescente.

Guarino estabelece um paralelo entre a revoluo cubana e as prticas dos chamados grupos de educao popular, em toda a Amrica Latina, colocando o triunfo daquela revoluo como um reforo ao discurso e s aes dos setores sociais e polticos ditos "progressistas," que viam nas mudanas das estruturas desiguais a soluo aos problemas sociais latino-americanos. Para ele, muchas ONGDs [Organizaciones Non-Gobernamentales de Desarollo] nacen entonces con la ilusin de un cambio posible en

America Latina, una transformacin de la sociedad a partir de los sectores populares; nascen con un objetivo de tranformacin social: apoyar a los movimientos sociales en su esfuerzo de constituir sociedades mas productivas, democrticas y equitativas.

A partir de ento, as discusses sobre a conformao de um eventual setor voluntrio (ou remunerado), sem fins lucrativos ou de natureza filantrpica, evoluram a nvel internacional, mas continua sendo um tema de difcil caracterizao, dada a diversidade de organismos e a complexidade que envolve o reconhecimento por parte da sociedade, da legislao e das relaes com instituies consagradas pelo tempo e pela histria.

No Brasil, a compreenso do contexto em que se desenvolveu o segmento sem fins lucrativos, do qual as ONGs fazem parte, reporta a outros fatores histricos que inibiram ou favoreceram o amadurecimento da sociedade brasileira, onde se identificam especificidades da cultura poltica vivenciada atravs das variaes estabelecidas com o advento da modernidade e da cidadania nesse contexto. Mesmo reconhecendo a relevncia, esses fatores histricos no sero, aqui, objeto de registro e anlise. Sabe-se que o tema, mais do que nunca, est colocado na ordem do dia numa sociedade que convive com a democratizao institucional e poltica crescente e com a tambm crescente marginalidade de grandes contingentes da populao.

3. AS DISCUSSES SUBSTANTIVAS DO CONTEXTO DE ATUAO DAS ONGs

Pode-se levantar a hiptese de que "ONG" expresso que tende a criar, ou reforar, determinadas marcas no universo em crescimento e diversificao de entidades civis brasileiras, evocando o sentido da ao pautada por valores da cidadania, do associativismo e do individualismo modernos, da autonomia, da democracia. Questes envolvidas na idia de "sociedade civil".

Chega-se s discusses mais substantivas do contexto de atuao das ONGs:

Que Estado e que sociedade civil?

Que cidadania, com qual participao, em que democracia?

Que pblico, que privado e que autonomia?

Apesar da tentao de mergulhar fundo nessa discusso, examinando as diferentes leituras de um mesmo fenmeno, registra-se, desde j, a insuficincia de flego para debater a importncia adquirida por todos esses temas no equacionamento das crises mais modernas. De qualquer modo, delineia-se o macro-cenrio em que se desenvolvem as aes finalsticas dos atores pesquisados, contrapondo a viso prpria das ONGs interpretao de outros autores "de fora" do contexto analisado.

Para o Brasil, o Estado ponto de partida inevitvel, pelo seu carter historicamente patrimonialista e autoritrio, com forte presena na sociedade. Aqui, no foi a sociedade

que deu forma ao Estado, mas vice-versa, este se organizou na frente e saiu conformando grupos e espaos mais ou menos representativos do social e do poltico, do econmico e do comercial, do pblico e do privado.

Mais recentemente, a estatizao exacerbada no regime militar de 64 se deu em contraponto a Marx, negando e expurgando o socialismo e o comunismo. Do outro lado se posicionaram as ONGs que, segundo Caccia Bava, tinham como seu principal motivo de existncia, o "empowerment" dos setores sociais excludos ou discriminados: auxiliar na sua organizao, sistematizar suas reivindicaes, estabelecer os contatos que permitiam aos movimentos conquistar o apoio de outros setores da sociedade e o espao pblico para suas demandas. Um trabalho que fazia na linha de enfrentamento com o Estado autoritrio e que gerou uma cultura de compreenso do Estado como um adversrio permanente a ser desafiado.

H uma variedade de leituras e interpretaes que permite destacar subconjuntos da sociedade civil, de acordo com o foco do estudo. Alguns conceitos foram introduzidos recentemente, trazendo novos elementos para a discusso das dinmicas sociais contemporneas. Scherer-Warren, por exemplo, introduz um conceito que admite a sociedade civil parte de um terceiro setor, em contraste com o Estado e o Mercado, e refere-se genericamente a uma esfera de ao, a entidades no-governamentais (independentes da burocracia estatal) e sem fins lucrativos (independentes dos interesses do mercado). A prpria noo de ONG propende a ser compreendida como parte deste setor.

Essa tendncia reforada por Alan Wolfe, que considera o terceiro setor como a prpria sociedade civil, qual denomina de setor social, noo que apresentou no 1 Encontro Internacional de ONGs e o Sistema de Agncias das Naes Unidas, realizado no Rio de Janeiro, em 1991, e que vai de encontro s idias de vrios dirigentes de ONGs brasileiras.

A partir dessa perspectiva de insero no contexto scio-poltico, as ONGs latino-americanas em geral e as brasileiras, em particular, elegeram, nos anos 70, como palavras de ordem, direitos humanos e educao popular (explicadas pela conjuntura da poca). A dcada de 90 traz novidades significativas, que so apontadas por dirigentes de ONGs: mudaram as palavras de ordem para ecologia (47%), democratizao (43%), sociedade civil (34%), internacionalizao (28%), desenvolvimento (24%) e diversidade cultural (20%). No espao de debates a aberto, os temas trabalhados pelo segmento pesquisado para este trabalho, apesar de diversificado, confere uma certa hierarquia a alguns deles: cidadania, participao, autonomia, cooperao internacional, excluso, neoliberalismo, globalizao, fronteiras entre o pblico e o privado, poder local, descentralizao alm de outros menos freqentes na literatura especializada.

Todos esses termos esto intimamente relacionados, desenvolvendo-se de forma construtiva ou perversa, com atores que esto presentes simultaneamente em vrios deles ou fortemente dependentes. Uma das possibilidades de relacion-los entre si, tomar, como ponto de partida, a referncia indicada por Fernandes que prope, ao invs do pensamento dicotmico dividido entre interesses particulares e pblicos, a recuperao da trade, como terceira possibilidade, colocada como uma entre as quatro combinaes resultantes da conjuno entre o "pblico" e o "privado":

AGENTES FINS SETOR

privados para privados = mercado

pblicos para pblicos = Estado

privados para pblicos = terceiro setor

pblicos para privados = (corrupo)

O conceito implica na expanso da idia corrente sobre a esfera pblica, entendendo que a vida pblica no feita apenas de atos de governo, mas tambm de manifestaes da sociedade civil, quer sejam por iniciativas institucionais privadas, quer sejam por aes individuais ou coletivas de cidadania, o que inevitavelmente conduz a uma nova forma de conceber a ao do Estado no tratamento do pblico e do privado. Parafraseando Hirschman, a separao entre pblico e privado, enquanto trao caracterstico e problema, at mesmo desgraa, da sociedade moderna apenas uma dentre vrias divises semelhantes. Nesse sentido, a questo reporta, no caso brasileiro, relao de conivncia e cooptao entre o privado e o pblico, ou seja, decises privadas que resultam em vantagens pblicas e vice versa.

Diante das leituras e interpretaes tericas, que no so alheias aos dirigentes das ONGs brasileiras e, principalmente, face ao contexto nacional, esses dirigentes parecem entender que est aberto e legitimado o espao para suas reivindicaes e intervenes, alm de garantida uma leitura e interpretao prprias dos fatos. Resultam da posturas e palavras e ordem que so reforadas por outros estudiosos do tema, ao darem tratamento aos termos que alimentam o segmento.

Maciel, por exemplo, afirma que a cidadania plena s pode ser resultado de um processo de conquista, que pressupe um grau cada vez maior de organizao e conscientizao da sociedade civil. Em suma, o que se coloca como meta a cidadania conquistada numa superao histrica da "cidadania regulada". Da mesma opinio Demo, ao relacionar participao e democracia, confundindo-se como meio e fim de um mesmo processo: infindvel, em constante vir a ser, sempre se fazendo. Assim, participao em essncia autopromoo e existe enquanto conquista processual. No existe participao suficiente, nem acabada. Participao que se imagina completa, nisto mesmo comea a regredir.

Ainda sobre a categoria cidadania, que ocupa posio de destaque entre os representantes de ONGs, juntamente com participao e democracia, entre as palavras de ordem mais atuais, Franco arrisca uma (re)definio conceitual, concebendo a cidadania, a partir da leitura que faz das sociedades de profunda excluso social nas periferias do mundo:

Ela no se ope idia clssica de cidadania como defesa de direitos individuais e coletivos.

Ela no dispensa a luta coletiva para "arrancar" do Estado mais direitos para este ou aquele setor, camada, categoria ou classe social.

Ela assume o combate pela conquista de direitos, inclusive pelos direitos de ter direitos e de construir novos direitos.

Mas ela no se centra na idia de que existe um grupo social "chave" na sociedade, cuja realizao dos supostos interesses histricos particulares garantiria ao final a conquista de direitos para todos. Nem a idia de que a conquista da cidadania possa ser obtida a partir da luta por interesses imediatos, travada por cada grupo social per se.(...)

Quer dizer, s haver emancipao dos excludos com a participao dos includos nessa emancipao. (...)

No se trata de auto-emancipao mas de comum-emancipao.(...)

A auto-emancipao, numa sociedade de excluso, funo da comum-emancipao.

O conceito pressupe a participao e a solidariedade como elementos de construo de uma sociedade menos flagelada pelo que Fiori chama de dissenso perdido. Fiori retoma em seu livro, a importncia do Estado, critica o neoliberalismo, outra palavra de ordem da atualidade, e sugere, para superar a crise social brasileira, o desenho de uma estratgia que supe o realinhamento dos velhos compromissos entre o Estado, os capitais privados e os trabalhadores. Prope, nesse sentido, uma reforma de maior profundidade do que a dos anos 30:

(...) reforma que, alis, j se iniciou com a redemocratizao das instituies polticas e sindicais, mas que ainda enfrentar muitas dificuldades, sobretudo porque, diferentemente do pensamento neoliberal, este Estado deveria ser forte sem ser extenso e autoritrio como foi o Estado desenvolvimentista.(...) um Estado (...) compatvel com o avano da cidadania social e poltica das populaes at hoje marginalizadas. O autor segue didaticamente analisando "as lies que vm do mundo" e conclui: j no se trata de optar entre Estado ou no-Estado, ou mesmo entre Estado mximo ou mnimo, e sim de como redesenhar um Estado forte num contexto econmico internacional que o fragiliza. E so duas apenas as certezas de que dispomos:

a. apesar das transformaes materiais e ideolgicas, ainda no apareceu nenhum substituto adequado e eficiente para ocupar o lugar do Estado nacional e responder ao desafio legal;

b. em sentido estrito, no h uma mudana nas funes fundamentais do Estado nacional que segue responsvel pela moeda, pelos contratos e pela ordem, tanto quanto pela proteo social e pelo crescimento do investimento e do emprego. O que efetivamente est em questo, portanto, no so as macrofunes do Estado,

mas seus novos objetivos e instrumentos. Ou seja: suas estratgias para o cumprimento das velhas funes dentro das novas condies econmicas e polticas internacionais.

Esse o contexto de dvidas, mais que de certezas, de desencontros histricos e referenciais divergentes, de conformaes ambguas e relaes contraditrias, no qual atuam as ONGs, sejam elas pequenas, mdias ou grandes, procurando intervir e mudar o status quo. Muitos questionam sua legitimidade como agente e representante da sociedade civil, uma vez que no podem falar ou agir em nome de terceiros, fazem-no somente em nome prprio (Fernandes). Essa posio lhes d, por um lado, uma relativa independncia do complexo jogo poltico implicado nos sistemas representativos, para legitimar as suas decises, mas, por outro, impe restries institucionais, legais e de legitimao.

4. AS MUDANAS CONTEMPORNEAS

A pesquisa emprica apontou uma convergncia importante entre as organizaes pesquisadas: o final da dcada de 80, incio dos anos 90, marca um processo de reflexes e reformulaes comum a todas elas, decorrentes de mudanas conjunturais e estruturais no contexto nacional e internacional.

Embora tenham sido identificadas, em cada uma das ONGs investigadas, peculiaridades na conduo das mudanas que destacam formas e expectativas institucionais diferenciadas, sero aqui apresentados os elementos comuns que marcam as tendncias para o conjunto:

As mudanas e ajustes refletem, na forma e ritmo, a viso dos dirigentes de cada uma das ONGs pesquisadas, em relao ao contexto social em que atuam e ao futuro do segmento de que fazem parte. Reflete, ainda, as culturas organizacionais desenvolvidas em cada uma das ONGs, fortemente influenciadas pelo estilo pessoal dos respectivos dirigentes. Mais importante, mostram a diversidade de opes e caminhos alternativos encontrados pelas organizaes, face s mudanas processadas no ambiente comum em que atuam e face aos recursos institucionais de cada uma delas.

Misso institucional, objetivos e estratgias tm sido revistos, como prtica regular, quando da elaborao e negociao dos planos e programas institucionais com as Agncias de Cooperao Internacional ou quando da negociao com novos patrocinadores nacionais governamentais ou empresariais. H uma clara tendncia de trabalhar segundo planos estratgicos cada vez mais longos. Neste sentido, o IBASE se destaca ao aprovar um Plano Estratgico para o perodo 1997-2001; o ISER e a FASE, considerada "av" das ONG brasileiras, tradicionalmente trabalham com Planos Trienais, enquanto o CEDAC programa para dois anos, com expectativa para trs anos.

Uma questo apontada por todas elas a dificuldade crescente de assegurar "recursos institucionais" (basicamente usados para manuteno e, sobre os quais a organizao tem liberdade na alocao), com a tendncia de financiamentos vinculados a projetos ("amarrados" quanto finalidade, temporalidade e resultados). Essa nova postura coincide com mudanas processadas nas agncias

internacionais que passaram a cobrar resultados de mais curto prazo e estudos de custo/ benefcio relativos s aes desenvolvidas pelas ONGs brasileiras.

A dcada de 90 tambm assinala maior visibilidade para as organizaes que "viraram" ONGs, o que significa dizer que abandonaram progressivamente a condio de assessorias informais de apoio a movimentos populares, passando a organizaes profissionais estruturadas. Com isso, provocam cobranas da sociedade civil, que levanta questes relativas eficcia de suas aes, frente ao crescimento da violncia urbana e da excluso social.

Por outro lado, as negociaes com agncias de cooperao internacional passam por revises no apenas de forma e controle de resultados, mas tambm de contedos, na medida em que se admite uma discusso que ganha novos contornos, ao examinar as interfaces possveis entre parceiros, nas quais as ONGs brasileiras assumem um papel de assessoramento nas discusses das polticas e prioridades locais, e de prestadoras de servios na implementao e finalizao dos projetos definidos e negociados, a partir das condies gerais e competncias especficas de cada uma delas.

As negociaes com organismos governamentais brasileiros passam por outras dificuldades. H uma tendncia de ampliao do dilogo com instituies estatais e pblicas no-estatais, condicionada, porm, por uma questo que se considera central a lgica de atuao e percepo de contexto e de futuro das ONGs diferente da lgica governamental e empresarial o que provoca desdobramentos significativos. Em primeiro lugar, as ONGs pesquisadas reagem fortemente idia de se transformarem em organizaes "para-estatais", assumindo funes e responsabilidades que atribuem de forma inalienvel ao Estado. Em segundo lugar, reclamam da inexistncia de polticas pblicas governamentais norteadoras das aes sociais mais amplas. Querem ainda ser reconhecidas como atores polticos e parceiros na formulao das polticas sociais, valendo-se das experincias acumuladas junto s populaes mais carentes, ao longo dos anos. O Governo Federal brasileiro no considera legtimas as reivindicaes e prefere, notadamente na rea econmica, tratar as ONGs como entidades que trazem "prejuzos" ao Tesouro Nacional, em razo dos privilgios conquistados com isenes de impostos e outros. A cooperao com a rea governamental se d mais facilmente com as instncias municipais e estaduais, com as quais tm conseguido desenvolver trabalhos em parcerias com os chamados "governos progressistas". O Governo Federal, alm das dificuldades j mencionadas, representa, pelo gigantismo, uma "ameaa" identidade e autonomia das ONGs.

A polmica a respeito da identidade e autonomia deve continuar, somada a outras discusses legitimidade e representatividade que so salutares porque aumentam a visibilidade das ONGs enquanto atores polticos que so por natureza e, enquanto modelos alternativos de participao.

H uma tendncia de prestao de servios especializados e diretos, apesar de muita resistncia e relutncia por parte das ONGs do subconjunto pesquisado de educao e desenvolvimento ou, segundo uma terminologia mais recente, de "democratizao plena" que tendem a discusses e atuaes mais genricas. Essa questo depende principalmente de solues quanto ao repasse de verbas pblicas para questes sociais, a fundo perdido, o que depende da vontade

poltica de rever questes legais que hoje dificultam ou at inviabilizam parcerias Governo/ONGs. Nesse sentido, recorda-se a iniciativa governamental, j mencionada, via Conselho da Comunidade Solidria, j mencionada, que prope a reviso do Marco Legal regulatrio das relaes governo/sociedade civil, com destaque para as organizaes representativas do Terceiro Setor, no qual esto inseridas as ONGs.

As negociaes com o mundo empresarial brasileiro ainda vista com muitas reservas, por ambas as partes e dependem, sob o ponto de vista dos representantes das ONGs pesquisadas, de encontrarem valores e objetivos comuns que possibilitem um equilbrio de foras uma negociao do tipo "ganha-ganha".

Assinala-se, ainda, uma crise cambial-financeira, comum s ONGs investigadas, provocada pela paridade da moeda brasileira com o dlar, quando do advento do Plano Real, em 1994. Essa crise provocou reflexes fundamentais relativas s dimenses institucionais e organizacionais, revertendo tendncias de crescimento na dcada de 80 e encaminhando solues para estruturas de menor porte e maior flexibilidade.

Por fim, ganharam fora, e tendem a continuar, as propostas de grandes campanhas, a exemplo da Campanha Contra a Fome e a Misria e pela Vida, liderada pelo socilogo Herbert de Sousa (o Betinho), recm falecido e, que segundo Leilah Landim, no Brasil o nico onguista que tem nome prprio e espao garantido na mdia.

5. MAIS REFLEXES SOBRE O TEMA

Estudiosos e polticos tm opinado sobre a formao, dinmica e eficcia do Terceiro Setor, em geral, o que certamente ajuda a compreender o fenmeno, ao trazerem o assunto para a pauta das discusses contemporneas, atestando, assim, a atualidade e vitalidade do tema. claro (e felizmente), que no h unanimidade quanto ao papel e importncia do setor emergente, at pela dificuldade em caracteriz-lo e dimension-lo. Algumas posies sero aqui destacadas como elementos de reflexo:

Tarso Genro, h uma ano atrs (junho de 1996) examinando a questo do surgimento do Terceiro Setor, procurou explicar e legitimar as iniciativas das organizaes e movimentos representativos do segmento, a partir da crise do Estado brasileiro:

A crise do Estado estimulou o surgimento de novas formas de organizao pblica, por meio das quais as demandas no aceitas ou no respondidas pelos governos, estruturam-se num imenso circuito de representao pblica que transcende os partidos democrticos e de esquerda e criam formas autnomas de poder e influncia ao lado dos velhos sindicatos acuados pelo desemprego "estrutural", pela nova horizontalidade do processo produtivo e pela reorganizao das classes e fraes de classe, num mundo cada vez mais integrado e interdependente.

O surgimento de novas formas de dominao e excluso tambm produziram, espontaneamente ou no, novas formas de autonomia e de

"incluso" alternativa ao lado ou contra o Estado com a enunciao de um novo espao pblico no-dependente do Estado uma esfera pblica no-estatal auto-organizada ou simplesmente organizada paralelamente ao Estado, mas que se obriga reiteradamente a remeter ao Estado, para interferir na vida pblica ou sustentar seus interesses diretos.

Neder, em duas ocasies, ressalta a importncia das ONGs na reconstruo da sociedade civil brasileira e at reconhece o potencial do setor como agente de "incluso social e poltico", mas o questiona sob a tica das solues econmicas:

A partir de 1988 multiplicam as referncias na produo acadmica, mdia impressa e eletrnica, sobre um conjunto de aes conduzidas por organizaes no-governamentais (ONGs) enquanto indcios concretos de um processo de reconstruo da sociedade civil no Brasil. O surgimento destas entidades parte de uma democracia recm-conquistada no pas, sem eficcia, porm, para instaurar mecanismos que impeam o aumento da pobreza e da violncia. Esta (aparente) disjuntiva entre democracia poltica e crise social provocaria o fracasso na reduo da pobreza e, logo, na superao da excluso social. (Neder)

Identificar no terceiro setor um potencial de incluso social e poltica no quadro da cidadania parece correto como tendncia internacional. Interpretao totalmente diversa e equivocada tomar as entidades da sociedade civil como responsveis pela incluso econmica do excludo. Essa tarefa para o sistema poltico, junto com agncias governamentais e empresariado. (Neder )

Costa-Filho, em relatrio de 1995 para o PNUD (Programa das naes Unidas para o Desenvolvimento) retoma a questo da excluso social e prope uma reflexo sobre as possibilidades de uma nova lgica de promoo do desenvolvimento social que reconhea e valorize as novas formas organizacionais e de atuao social emergentes (leia-se Terceiro Setor):

En el presente documento, esta bsqueda de "polticas de nueva generacin" sale de su cauce convencional y senderea por una rea ya de mucho trnsito, pero no por los lados donde se puede promover el progreso social masivo.

Se trata de explorar qu papel pueden tener en la promocin del desarrollo social los entes y las relaciones sociales que ni son "gobierno" ni son "iniciativa privada con fines lucrativos". De inicio se sostiene que estos entes y relaciones deben ser comprendidos en un nuevo contexto histrico; que son esenciales para la integracin social y, que el binomio Gobierno-Empresa Privada expresa mal la malla de la sociedad contempornea. Si situa, asimismo, el papel del empleo en la exclusin social. A continuacin, se examina la composicin de aquel intersticio social y se plantea que hay condiciones para ensayarse all una nueva lgica de promocin del desarrollo. (...)

Una conviccin horada las (...) partes: la de que saltos de cantidad, de dinmica y de calidad en el desarrollo social sern tanto ms difciles cuanto estos entes y relaciones permanezcan al margen de los principales procesos de decisiones pblicas.

Kurz(Kurz), socilogo e ensasta alemo, chama ateno para outros aspectos importantes ao examinar as condies de o fenmeno vir a ser um novo paradigma de reproduo social:

No limiar do sculo 21, o sistema hbrido composto pelo Estado e mercado parece conduzir s raias do absurdo. De fato, se este sistema no mais eficaz de integrar socialmente milhes de pessoas em todo o mundo, ele est condenado a deixar de ser a forma predominante de sociedade. (...) Nos ltimos 10 ou 20 anos, o mundo viu crescer a importncia de um espao social difuso entre o Estado e o mercado. No me refiro aqui "economia informal", que muitas vezes no passa de um mercado ilegal e brutalizado. Ao contrrio, o terceiro setor composto da unio de inmeros agrupamentos voluntrios, destinados a conter a misria social e barrar a destruio ecolgica. No campo prtico eles avanam no terreno abandonado pelo mercado e pelo Estado em virtude da baixa rentabilidade ou da falta de recursos financeiros. A questo decisiva saber se o terceiro setor tem condies de ser um novo paradigma de reproduo social. (...) Se no houver mais nenhum surto de crescimento econmico, como muitos ainda esperam, o terceiro setor precisar formular sua prpria perspectiva de desenvolvimento para o sculo 21, em vez de ser um mero sintoma passageiro da crise.

Uma opinio certamente importante, no somente pelo valor acadmico, mas pela importncia poltica de reconhecimento da questo, a da sociloga Ruth Cardoso, atual Primeira Dama do Pas. Reconhece e questiona o alcance do fenmeno:

A avaliao pessimista da atuao dos grupos populares pode ser desmentida pelos dados, que mostram tanto a expanso da literatura produzida por eles, quanto o grande aumento de ONGs que os assessoram, a extenso e vitalidade da rede que os une e, principalmente, a ampliao dos rgos colegiados com participao popular nas administraes municipais. (...) Os movimentos sociais so fruto deste mundo contemporneo e pensam a poltica com temporalidades diferentes e com um pragmatismo distinto daquele que move, por exemplo, os partidos. (...) Essas dificuldades tm criado impasses polticos, mas tambm tm obrigado tanto os partidos quanto a administrao pblica a redefinir critrios e a reconhec-los como interlocutores. Se no estivermos preocupados em medir o impacto imediato dos movimentos, como querem seus crticos, poderemos reconhecer que contribuem para a renovao da cultura poltica, colocando em circulao significados novos para signos j conhecidos. Mas, qual o alcance deste processo?

novamente Fernandes que, em alguma medida, aponta caminhos e delimita o espao de atuao das ONGs, em particular:

Seria tolo imaginar as ONGs como soluo substitutiva para qualquer uma das redes institucionais com as quais se comunicam no faro as vezes da universidade, dos partidos, dos sindicatos e associaes, dos clubes recreativos, das igrejas. No so uma alternativa para as grandes estruturas tradicionais. Seu interesse est, justamente, no fato de que parecem introduzir uma pequena novidade no quadro das muitas instituies cujo sentido est na prestao de servios sem fins lucrativos.

As reflexes e questionamentos no param por a. H os que tentam mediaes e articulaes, como o caso de Augusto de Franco, e encontram dificuldades que apontam idiossincrasias e fragilidades interorganizacionais e intrasetoriais, induzindo a novos elementos analticos:

O que so as ONGs? "Pequenos castelos" ou organizaes democrticas? Entidades centralizadas por indivduos (ou "dinastias") ou estruturadas de modo descentralizado? Instituies privadas que perseguem (dissimuladamente) objetivos privados ou instncias originalmente privadas mas que trabalham em prol de objetivos pblicos? Organizaes que competem entre si (sobretudo pelo acesso a fontes externas de recursos financeiros) ou grupos de cidados cuja atuao, impulsionada pela solidariedade, se exerce atravs da colaborao e da parceria?(Franco)

A mdia sensacionalista tambm se faz presente e parece, por vezes, embarcar nas questes mais desfavorveis ao segmento, levantando dvidas que certamente no refletem anlises de maior profundidade, nem examinam as questes substantivas do contexto onde se desenvolve o fenmeno. Somente para citar um exemplo:

Voc j tem a sua prpria ONG? No tem uma organizao sem fins lucrativos, mas com personalidade jurdica prpria? Nem sequer uma consultoria privada? No?! Ento voc no est com nada. Hoje um profissional que no disponha de um desses engenhos legais do ltimo quarto de sculo um desorientado, um pobre coitado, uma pessoa sem imaginao, sem sentido de oportunidade, sem viso estratgica, sem noo dos tempos e das pocas. (...) No se iluda, colega. No seja tolo. O grande negcio dos anos 90 so as ONGs".

A pesquisa emprica associada a essas reflexes apresentadas por outros estudiosos do tema, possibilitaram novas (ou antigas?) reflexes que, se no elucidam a maioria das dvidas, talvez apontem caminhos para melhor equacionamento das questes levantadas:

Em primeiro lugar, evidencia-se um grande desconhecimento da dinmica vivenciada pelo segmento em formao, tanto em relao ao passado, quanto ao presente. A ignorncia se d por parte dos governos, nas trs instncias, pelo empresariado e, tambm, pelos dirigentes das prprias organizaes que fazem parte

do Terceiro Setor. Nesse sentido, j se mencionou iniciativas governamentais para reduzir a distncia entre as respectivas prticas e expectativas, no tratamento das questes de interesse pblico, atravs de consultas a organizaes do Terceiro Setor, via Conselho da Comunidade Solidria e outras, que podero ajudar a qualificar melhor os aspectos difusos e dispersos do segmento. A reao dos atores consultados tem demonstrado o interesse e importncia dada iniciativa.

A desinformao permite, ainda, que qualquer um, atravs de informes parciais e muitas vezes tendenciosos, declare qualquer coisa ou quaisquer nmeros sobre recursos financeiros e humanos disponibilizados para o setor, sem a menor censura de especialistas (se que existem), ou sem qualquer referncia comparativa a dinmicas vivenciadas por pases que tm histrias e problemas econmico-poltico-sociais assemelhados.

Sabe-se, por outro lado, que h riscos em toda avaliao, que precisam ser considerados. Por exemplo, lembra-nos Rodrigues, que no podemos nos deixar embalar pelo chamado "mito da pura virtude" de que normalmente se reveste esse setor; apesar da pureza dos fins, a natureza humana propensa ao erro e no se tem como fugir a essa realidade. Mais adiante, no mesmo artigo, a autora chama a ateno, provavelmente dos dirigentes do prprio setor, para os riscos da reproduo de uma estrutura burocratizada e hierrquica, com todos os vcios de uma estrutura pblica. Destaca, por fim, elementos que tm afirmado uma identidade a essas organizaes ou, pelo menos, reconhecido como presente na maioria delas: a flexibilidade de ao, a estratgia participativa e a constante interao com a populao alvo.

Chama ateno o fato de que, com honrosas excees, boa parte dos comentrios feitos, sejam eles analticos ou meramente informativos, reproduzem vises parciais, s vezes, essencialmente econmicas, desconsiderando aspectos antropolgicos e sociolgicos essenciais ao tratamento da questo, e vice-versa, ou, ainda, essencialmente polticas, no sentido de "bandeiras partidrias", ficando, muitas vezes no discurso ideolgico, sem indicar mecanismos e instrumentos de viabilizao.

H um esforo considervel de atualizao e profissionalizao dos grupos atuantes nas ONGs, sobretudo na dcada de 90, numa tentativa de adaptao ao novo quadro de visibilidade e cobranas internas e externas, mas provvel que anos de lutas locais e antigoverno tenham deixado marcas que dificultam relaes mais producentes com as atuais instituies governamentais, alm de induzir a posturas, antes progressistas, hoje, talvez, pouco pragmticas, mesmo que apoiadas em propsitos ticos e bem intencionados. A recproca tambm verdadeira: os governantes tm dificuldade de perceber o potencial realizador do Terceiro Setor, ainda que os mais sensveis reconheam a riqueza de valores. Alguns s conseguem v-los como atores polticos, na contramo da histria, confundido-os com estruturas sindicais e partidrias obsoletas.

Essa uma amostra das reflexes que tm sido feitas sobre o tema organizaes sem fins lucrativos, organizaes no-governamentais, terceiro setor, associando-o direta ou indiretamente, a outras temticas atuais e polmicas: tamanho e capacidade do Estado, democracia, participao e complementariedade, fronteiras entre o Estado e a sociedade, entre o pblico e o privado, cidadania ativa e sociedade civil, governabilidade e

governana, descentralizao, parcerias e cooptao, modelos de desenvolvimento. Tudo isso compreendido no espao-tempo de um final de sculo que tambm de milnio, no qual se discute, questiona e confunde conceitos e prticas de modernidade, modernizao e modernismo.

Referncia Bibilogrfica

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ANEXO 1: A PESQUISA EMPRICA Foram mantidos contatos com o meio acadmico e representantes do Terceiro Setor,

em So Paulo, Rio de Janeiro e Braslia., para delimitao do foco e da abrangncia da pesquisa:

a) Em So Paulo (perodo de 29/01 a 02/02 de 1996):

# RICARDO TOLEDO NEDER,

professor e pesquisador da EAESP/FGV;

# LUIZ CARLOS MEREGE,

coordenador do Ncleo de Estudos do Terceiro Setor da EAESP/FGV;

# MARIA DO CARMO BRANDT DE CARVALHO,

professora e pesquisadora do IEE/PUC;

# SILVIO CACCIA BAVA,

Presidente da ABONG;

# PEDRO JACOBI,

Vice-Presidente do CEDEC;

# MARIA ESTELA REIS,

pesquisadora da FUNDAP;

# HEITOR JOS PEREIRA,

consultor autnomo, autor da Tese de Doutorado " Os Novos modelos de Gesto: anlise e algumas prticas em empresas brasileiras", 1995;

b) No Rio de Janeiro (perodo de 05 a 09 de fevereiro de 1996):

# LEILAH LANDIM,

pesquisadora do ISER;

# SUSANA FEICHAS,

professora e pesquisadora da EBAP/FGV;

# MARIA IRONY BEZERRA CARDOSO,

dirigente do CEDAC;

# SANDRA MAYRINK VEIGA,

assessora de comunicao da FASE NACIONAL;

c) Em Braslia (perodo de 19 a 23 de fevereiro de 1996):

# SILVIO SANTANA,

dirigente da Fundao ESQUEL;

# LUIZA MNICA ASSIS,

mestranda da UnB, pesquisando sobre ONGs;

# CARLOS MANUEL PEDROSO NEVES CRISTO,

um dos diretores da Secretaria da Reforma do Estado/MARE.

A pesquisa emprica, propriamente dita, se desenvolveu no Estado do Rio de Janeiro, tendo sido selecionadas 3 (trs) ONGs:

FASE Federao de rgos para Assistncia Social e Educacional; CEDAC Centro de Ao Comunitria; e, IBASE Instituto Brasileiro de Anlises Sociais e Econmicas;

Selecionar organizaes apenas do Rio de Janeiro pode parecer uma limitao emprica significativa quanto pesquisa de campo, j que as ONGs esto distribudas por todo o Brasil. Certamente uma limitao, dada, antes de mais nada, pelas condies de trabalho individual. Mas h uma justificativa para a escolha, que no original, pois foi usada por Landim para explicar os limites espaciais de sua pesquisa emprica para a Tese de Doutorado, tambm restrita ao Rio de Janeiro: Por motivos a serem pensados, o Rio uma espcie de "capital" do movimento de articulao entre essas entidades embora, por exemplo, So Paulo as tenha em nmero um pouco maior. No entanto, as entidades de So Paulo no apresentam iniciativas to intensas no sentido de articulaes que no sejam temticas, isto , que levem criao de estruturas interinstitucionais. No Rio situa-se a ABONG, no Rio se deu a ECO 92, aconteceu o encontro PNUD, etc. mais fcil chegar ao Brasil, nesse caso, via Rio de Janeiro.

A FASE foi quase uma unanimidade: a "vov" das ONGs, fundada em 1961, com atuao a nvel nacional, 14 ncleos locais distribudos em 9 Estados, apontada, ainda, como a maior do Brasil, dela saiu o primeiro Presidente da ABONG, grande credibilidade no meio. Entrevistadas 13 pessoas, na FASE Sede Nacional, entre tcnicos, pessoal administrativo e dirigentes. Quadro Geral de Funcionrios da FASE Nacional: pessoas.

perodo da pesquisa: abril, maio e junho de 1996.

O IBASE, 15 anos de existncia, tornou-se familiar ao pblico, em vrias regies do Pas, por conta da repercusso da Ao da Cidadania contra a Misria e pela Vida, tendo como Diretor Geral Herbert de Souza, o BETINHO, figura emblemtica, nico que exceo que confirma a regra cria "nome prprio", nos ltimos anos, Presidente de Honra da ABONG, destaque entre as Escolas de Samba do Rio de Janeiro em 95 e presena constante nos principais veculos de comunicao. Entrevistadas 15 (quinze) pessoas: 13 no IBASE Ncleos, 1 dirigente do IEC (ONG criada em 1995 e vinculada ao IBASE/Ncleo) e 1 dirigente da AlterCom Servios S/C ltda (empresa de propriedade do IBASE (90%) e do IEC (10%), criada em novembro de 1995 e efetivamente implantada em janeiro de 1996). Quadro Geral de Funcionrios das 3 organizaes:

PERODO DA PESQUISA: julho, agosto e setembro de 1996.

O CEDAC, uma ONG "tamanho mdio", com um passado de atuao nacional e, hoje, com aes mais localizadas no Estado do Rio de Janeiro, citada tambm quase por unanimidade, acreditada entre os pares e estudiosos, pelos trabalhos comunitrios desenvolvidos nos seus 17 anos de existncia. Entrevistadas 7 pessoas. Quadro Geral de Funcionrios: 17.

PERODO DA PESQUISA: julho e agosto de 1996.

Foram ainda entrevistados:

Na ABONG (So Paulo): Silvio Caccia Bava Presidente

No ISER (Rio de Janeiro): Rubem Csar Fernandes e Leilah landim Diretor Executivo e pesquisadora da Instituio, respectivamente.

Glossrio de Siglas

ABONG Associao Brasileira de Organizaes No-Governamentais CEDAC Centro de Ao Comunitria CEDEC Centro de Estudos Culturais EAESP Escola de Administrao de Empresas de So Paulo

EBAP Escola Brasileira de Administrao Pblica FASE Federao de rgos para Assistncia Social e Educacional FGV Fundao Getulio Vargas FUNDAP Fundao de Desenvolvimento Administrativo do Estado de So Paulo IBASE Instituto Brasileiro de Anlises Sociais e Econmicas ISER Instituto de Estudos da Religio MARE Ministrio da Administrao Federal e Reforma do Estado NGOs Non-Governamental Organizations OECD Organization for Economic Cooperation and Development ONGDs Organizaciones Non-Governamentales de Desarollo ONGs Organizaes No-Governamentais PNUD Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento