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FORMAS SINCRÉTICAS DAS RELIGIÕES AFRO- BRASILEIRAS: o terecô de Codó' Mundicarmo Ferretti' RESUMO Apresentação e discussão de resultados de pesquisa sobre o Terecô - denominação da religião afro-brasileira tradicional do município de Codó (MA), bastante difundida na capital, em cidades do interior do Maranhão e também encontrada em terreiros de estados vizinhos. Assinala que, embora o Terecô seja menos empenhado na afirmação de identidade africana e seja muitas vezes confundido com a Umbanda ou com a Mina, possui traços especiais que apontam para uma origem africana que merecem ser examinados por especialistas. Palavras-chave: Terecô; Religião afro-brasileira; Sincretisrno; Maranhão ABSTRACT Presentation and quarrel ofresults ofresearch on the Terecô - denornination of the religion traditional afro-Brazilian of the city of Codó (Me), sufficiently spread out in the capital, cities of the interior ofthe Maranhão and also found in places offetichism of neighboring states. It designates that, even so the Terecô either less pledged in an affirmation of African identity and either many times confused with the Umbanda or the Mine, possess traces special that point with respect to an African origin that they deserve to be examined by specialists. Keywords: Terecô; Religion afro-Brazilian; Sincretismo; Maranhão. 1INTRODUÇÃO "nação" africana, contribuíram para a maior valorização do candomblé jeje-nagô e do culto aos orixás. Essa preferência explica, em parte, o de- sinteresse havido posteriormente Os estudos clássicos de reli- gião afro-brasileira, realizados nas capitais nordestinas, em terreiros de ** Professora doutora da Pós-Graduação em Políticas Públicas e do Mestrado em Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão. Cad. Pesq., São Luís, v. 14, n. 2, p.95-108, jul./dez. 2003 95

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FORMAS SINCRÉTICAS DAS RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS: o terecô de Codó'

Mundicarmo Ferretti'

RESUMO

Apresentação e discussão de resultados de pesquisa sobre o Terecô -denominação da religião afro-brasileira tradicional do município de Codó(MA), bastante difundida na capital, em cidades do interior do Maranhãoe também encontrada em terreiros de estados vizinhos. Assinala que,embora o Terecô seja menos empenhado na afirmação de identidadeafricana e seja muitas vezes confundido com a Umbanda ou com a Mina,possui traços especiais que apontam para uma origem africana quemerecem ser examinados por especialistas.

Palavras-chave: Terecô; Religião afro-brasileira; Sincretisrno; Maranhão

ABSTRACT

Presentation and quarrel ofresults ofresearch on the Terecô - denorninationof the religion traditional afro-Brazilian of the city of Codó (Me),sufficiently spread out in the capital, cities of the interior ofthe Maranhãoand also found in places offetichism of neighboring states. It designatesthat, even so the Terecô either less pledged in an affirmation of Africanidentity and either many times confused with the Umbanda or the Mine,possess traces special that point with respect to an African origin that theydeserve to be examined by specialists.

Keywords: Terecô; Religion afro-Brazilian; Sincretismo; Maranhão.

1INTRODUÇÃO "nação" africana, contribuíram paraa maior valorização do candombléjeje-nagô e do culto aos orixás. Essapreferência explica, em parte, o de-sinteresse havido posteriormente

Os estudos clássicos de reli-gião afro-brasileira, realizados nascapitais nordestinas, em terreiros de

** Professora doutora da Pós-Graduação em Políticas Públicas e do Mestrado em Ciências Sociais daUniversidade Federal do Maranhão.

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pelos terreiros em que a cultura afri-cana foi mais sincretizada e em que,além das entidades j ej e-nagô(voduns e orixás), são cultuadoscaboclos e entidades africanas deoutras "nações". Assim, os estudossobre a religião afro-brasileira doMaranhão, em sua maioria, foramrealizados em São Luís (capital),onde se desenvolveu o Tambor deMina, em terreiros fundados porafricanos (Casa das Minas e Casade Nagô) ou que afirmam uma iden-tidade africana (Casa Fanti-Ashanti), terreiros esses mais em-penhados na preservação de tradi-ções culturais trazidas da Áfricapara o Brasil por escravos. A partirde 1984, direcionando nossa aten-ção para as entidades caboclas doTambor de Mina em um daquelesterreiros de São Luís e, retomandooutros estudos realizados na capi-tal e no interior, que às vezes pas-saram quase despercebidos (o daMissão Folclórica, em 1938, e o deOctávio da Costa Eduardo, entre1943 e 1944), compreendemos anecessidade de se lançar um novoolhar sobre os denominados cultossincréticos e de se pesquisar a reli-gião afro-brasileira tradicional de

outras cidades maranhenses.Pretendemos apresentar aqui

alguns resultados de nossa pesqui-sa sobre o Terecô, denominação dareligião afro-brasileira tradicionaldo município de Codó (MA), bas-tante difundida na capital, no inte-rior do Maranhão e também encon-trada em terreiros de Estados vizi-nhos'. Embora menos empenhadona afirmação de uma identidadeafricana e muitas vezes confundi-do com a Umbanda ou com a Mina,o Terecô possui traços que apontampara uma origem africana que me-recem ser examinados por especia-listas.

2 TERECÔ, A LINHA DECODÓ

Terecô é a denominação dadaà religião afro-brasileira tradicionalde Codó - uma das principais cida-de maranhenses, localizada na zonado cerrado, na bacia do rioItapecuru, a mais de 300km, em li-nha reta, da capital. Além de muitodifundido em outras cidades do in-terior e na capital maranhense, oTerecô é também encontrado emoutros Estados, integrado ao Tam-

'Esses aspectos mostram que o Resultados dessa pesquisa foram publicados em capítulos de dois livros daeditora Palias - Faces da tradição afro-brasileira (CAROSO & BACELAR, 1999) e Encantaria brasileira,o livro dos mestres, caboclos e encantados (PRANDI, 2001) - e, mais recentemente, em um livro publicadopela editora Siciliano - Encantaria de 'Barba Soeira': Codó, capital da magia negra? (FERREITI, 2001).

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bor de Mina ou à Umbanda-. É tam-bém conhecido por "Encantaria deBarba Soeira" (ou Soêra), por Tam-bor da Mata, ou simplesmente Mata(possivelmente em alusão à sua ori-gem rural).

Embora se saiba que o Terecôse originou de práticas religiosas deescravos das fazendas de algodãode Codó e de suas redondezas, suamatriz africana é ainda pouco co-nhecida. Apesar de exibir elemen-tos jeje e alguns nagô, sua identi-dade é mais afirmada em relação àcultura banto (angola, cambinda) esua língua ritual é, principalmente,o português.

No Terecô, como no Tamborde Mina, as entidades espirituaissão organizadas em famílias, sen-do a maior e mais importante a dacontrovertida entidade espiritualLégua Boji Boá da Trindade, apre-sentado em Codó como "príncipeguerreiro" ou preto velho angolanoe, em São Luís, como filho adotivode Dom Pedro Angassu, oriundo deTrinidad, ou como um caboclo "daMata". Légua Boji é também apre-

sentado em terreiros da capitalmaranhense como vodumcambinda (na Casa das Minas-Jeje)ou como um misto de Légba (cor-respondente daomeano de Exu) e dovodum Poliboj i, idéia defendida porPai Jorge Itaci (OLIVEIRA, 1989,p.37)3.

Embora no Terecô sejamcultuados voduns africanos jeje-nagô (como A verequete, Sobô,Ewá) , muito conhecidos no Tam-bor de Mina da capital, os transesocorrem principalmente com"voduns da Mata" ou caboclos co-mandados pela entidade Légua BojiBoá da Trindade. Mas fala-se queas entidades espirituais da Mata sãochefiadas por Maria Barbara ouBarba Soeira, entidade associada aSanta Bárbara e, às vezes, com elaconfundida, que se acredita ter sidoa primeira 'pajeleira (curadeira),razão porque o Terecô é tambémconhecido por "Barba Soêra". Ébom lembrar que, não obstante sero Terecô um culto afro-brasileiro,nele as práticas curativas são muitodesenvolvidas (FERRETTI, M.,

21smael Pordeus encontrou em Centros de Umbanda de Fortaleza várias entidades espirituais da família deLégua Boji (pORDEUS IR., 1993) e Luiz Assunção, em Comunicação Oral feita na XXI Reunião da ABA,informou que a palavra Terecô é utilizada no Piauí e interior do Nordeste em terreiros de Umbanda e Jurema(Catimbó).3Como nos falou a antropóloga e lingüista Veda Castro, o nome de Légua Boji deve ser fon e, se for, ele é oLégba da porteira. Essa hipótese é também afirmada pelo lingüista beninense Hyppolyte Brice Sogbosi,para quem Légua Boji pode ser "Legba Gboji", que significa naquela língua "no portão de Légba".

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1999, p.38; PRANDI, 2001, p.54;154)4.

Geralmente no Terecô os paise mães-de-santo também sãocuradores, embora existam na re-gião "raizeiros", preparadores de"mezinhas", que são ali mais conhe-cidos por "cientistas" (doutores domato) do que por terecozeiros,umbandistas ou macumbeiros (ter-mo mais usado pej orati vamentepara designar toda religião de ori-gem africana). Em Codó, tanto nopassado como na atualidade, algunsterecozeiros ficaram também famo-sos realizando "trabalhos de magia"por solicitação de clientes ávidos devingança, de políticos ou de outraspessoas dispostas a pagar por eleselevadas somas, o que às vezes lhevaleu a fama de "terra do feitiço".Afirma-se que nesses "trabalhos" enas práticas terapêuticas osterecozeiros associam à sabedoriaherdada de velhos africanos conhe-cimentos indígenas, práticas docatimbó, da feitiçaria européia e quetambém se apoiam no Tambor deMina, na Umbanda e na Quimbanda(que se encontram em expansão em

Codó). Contudo, feitiçaria foi e con-tinua sendo uma categoria de acu-sação e nunca de autodefinição

Em 1944 os terecozeiros dopovoado de Santo Antônio não pra-ticavam a "magia curativa", comoos curadores de terreiros da árearural de São Luís, e nem a "magianegra", de que eram freqüentementeacusados (EDUARDO, 1948,p.66). De acordo com o depoimen-to de terecozeiros codoenses ouvi-dos em São Luís por Pai Euclides,ainda criança (antes de 1950?), ha-via em Codó grande separação en-tre Terecô e feitiçaria, mas esta erapraticada na região por pessoas afa-madas, que faziam qualquer "mal-dade" atendendo à solicitação dequem pagasse o preço por elas esti-pulado (FERRETTI, M., 2001,p.163)5. Nos últimos anos, muitosterreiros de Codó têm introduzidono Terecô tradicional (na "MataPura" ou na "Mata Virgem") ele-mentos da U mbanda e daQuimbanda, passando a cultuar Exue Pombajira, e do Candomblé. Essamudança tem sido apontada pelosmais tradicionalistas como respon-

4 Em São Luís a palavra Soeira é sobrenome. Na lista telefônica de 2001, encontramos 4 linhas em nome deSoeira, \02 em nome de Soeiro e 2 em nome de Soero.S Pai Euclides assistindo, quando criança, a festas no terreiro de Maximiana (em São Luís), em companhiade sua tia e mãe de criação, que era daquela casa, ouviu de terecozeiros codoenses, que participavam dafesta como visita (Eusébio Jânsen e outros), que Terecô não tinha nada com feitiçaria., mas que em Codóexistiam feiticeiros, como o velho conhecido por Deus Quiser, que fazia trabalho pago e que matava àdistância., usando poderes mágicos.

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sável pela associação do Terecô (re-ligião) à magia negra.

Tudo indica que o Terecô seorganizou primeiro em povoadosnegros de Codó e de municípiosvizinhos, mas só se tomou maisconhecido depois que se desenvol-veu na cidade de Codó. SegundoCosta Eduardo, em tomo de 1944,no povoado de Santo Antônio dosPretos, o Terecô era mais conheci-do por Pajé ou por Brinquedo deSanta Bárbara, e, às vezes, era tam-bém denominado Budum (vodum)e Nagô, o que nos sugere a existên-cia de um sincretismo afro-católi-co-ameríndio maior do que o quejá fora constatado no Tambor deMina.

Além de possuir alguma rela-ção com as culturas jeje e nagô(como é indicado em dois dos no-mes pelos quais era conhecido nopovoado de Santo Antônio), oTerecô tem sido também associadoà cultura banto. Como já mencio-namos, a entidade espiritual LéguaBoji Boá da Trindade nos foi apre-sentada como um preto velho an-golano, em Codó, por DonaAntoninha (a mãe-de-santo maisantiga de Codó, falecida em 1997,que foi nossa principal informante)

e é conhecido em São Luís, na Casadas Minas-Jeje como um vodumcambinda. Segundo Dona Deni,atual chefe daquela casa, até maisou menos 1954, eram freqüentes asvindas de pessoas de um terreirocambinda de Cangumbá (povoadonegro codoense ainda não visitadopor nós) para as festas de São Se-bastião realizadas na Casa das Mi-nas, e elas eram acompanhadas porvoduns da Mata como: Légua Boji,Rei Camundá e outros. A "linha deCodó" é também associada, em ter-reiros da capital, à "nação" Caxias,reverenciada na Casa de Nagô, quepara uns líderes religiosos remete aCaxeu (na África) e para outros aomunicípio maranhense de mesmonome (Caxias), de onde Codó foidesmembrado, cujo nome pode tersido também derivado de Caxeu-.

Durante algum tempo acredi-tamos que a palavra Terecô pode-ria ter se originado da imitação dosom dos tambores da Mata ("terecô,terecô, terecô"), em virtude de nãohavermos encontrado nem em Codóe nem em São Luís uma definiçãoetimológica para ela. Mais recente-mente, a antropóloga e lingüistabaiana Yeda Pessoa de Castro, co-mentando em conversa um dos nos-

6 Uma das seis hipóteses apontadas para a origem da palavra Codó aponta para Kodoc, no Sudão, de ondeteriam vindo alguns escravos para lá (FERRE1TI, M. 200 I, p. 97).

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sos trabalhos, levantou a hipótesede que a palavra seria de origembanto e que teria o mesmo signifi-cado que Candomblé - louvar, ce-lebrar pelos tambores (CASTRO,2002, p. 139).

Em relação à denominaçãoPajé, dada também em Santo An-tônio ao Terecô, gostaríamos delembrar que, além da cidade deCodó ter surgido em área que foimuito habitada por índios e da pa-lavra pajé ser de origem tupi, a de-nominação "pajé" foi utilizada emnotícias publicadas na imprensamaranhense e de outros Estados, noúltimo quartel do Século XIX, paradesignar a religião de negros (afro?)no Maranhão". De qualquer modo,o emprego daquela palavra paradesignar Terecô pode sugerir a exis-tência nele de maior sincretismocom a cultura indígena do que a queocorreu no Tambor de Mina jeje ounagô.

A memória dos codoenses re-gistra uma fase inicial do Terecô emque os negros das fazendas de al-godão do município de Codó reali-zavam seus rituais religiosos na"mata do coco" (babaçu), longe davista dos senhores, e uma fase, após

a abolição da escravatura, quandoos negros da cidade realizavam seusrituais às margens da Lagoa doPajeleiro (hoje desaparecida), àsescondidas da polícia, com quementravam freqüentemente em con-flito. Tudo indica que os primeirossalões de Terecô da cidade de Codósurgiram muito depois dos primei-ros terreiros de Mina da capital eque não havia ali terreiros muitoafamados até 1954, pois, além deEduardo (1948, p.47) não ter feitoreferência a eles, nenhum pai-de-santo de Codó foi lembrado pelolíder espírita Waldemiro Reis emsua obra sobre o espiritismo noMaranhão, onde são citados nomi-nalmente vários pais-de-santo ecuradores de São Luís e de outrascidades maranhenses (REIS, 1954,p.99)8. Contudo, analisando-se osrelatórios da Missão Folclórica, cri-ada por Mário de Andrade, que per-correu o Norte e Nordeste, no finalda década de 30 do século XX,pode-se verificar que, nesse perío-do, a "linha de Codó" já marcavasua presença em terreiros de Minade São Luís (Maximiana) e deBelém (Sátiro), e que já surgira noPará com o nome Babassuê

7 Ver: Uma religião de que não gosta o governo. A Província de São Paulo, 10/11/1876.8 Fala-se atualmente em Codó que o salão de Terecô mais antigo da cidade foi aberto por Eusébio Jânsen,bem antes da abertura do salão de Maria Piauí, que se afirma ter chegado a Codó em 1936.

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(ALVARENGA, 1948, p.19; 1950,p.25)9.

Algumas entidades do Terecô,como Légua Boji e encantados desua família (Coli Maneiro, LauroBoji), são muito temidas e apresen-tadas como tendo "uma banda bran-ca e outra preta" ("metade de Deuse metade do diabo"). Afirma-se, emCodó, que elas podem castigar al-guém (incorporando e fazendo apessoa subir no topo de árvore, sejogar em espinheiro ou em poça delama etc.), que são vingativas e quepodem até tirar a vida de quem asdesrespeita ou desobedece. Mascomo elas não matam por dinheiro,nem para satisfazer o desejo de vin-gança de ninguém, e não se mistu-ram com Exu e Pombajira, não per-tencem à "linha negra". Emboramuito temidas, as entidades doTerecô são depositárias de grandeconfiança e encaradas como defen-soras pelos terecozeirosw.

O conhecido pai-de-santo Bitado Barão, apresentado em 1994 pelaTV Bandeirantes como grande es-pecialista em "magia negra" e quedeclarou naquela reportagem que

recebe e atende muitos pedidos devingança (até de morte), afirmou,naquela oportunidade, que só acei-tava aqueles pedidos depois que"entra na casa' do homem' (Exu) evê que ele garante" (TV-BAND, 1994). É preciso atentar queaquele pai-de-santo, além de seapresentar a outros pesquisadorescomo sucessor do velho Deus Qui-ser, Campos (1996,p.34), mais co-nhecido ali como um feiticeiro do-tado de poderes especiais do quecomo terecozeiro, quando afirmouaos j omalistas da TV-Bandeirantesque realizava aqueles trabalhos in-vocando Exu, falou em uma enti-dade classificada em Codó como"linha negra" (da Quimbanda) e nãoque os realizava invocando a forçado "povo de Légua" ou de outrasentidades do Terecô.

3 TERECÔ E TAMBOR DEMINA

Embora o Terecô mais tradi-cional de Codó se apresente demodo bem distinto do Tambor deMina, tanto em Codó como em São

9 Segundo Bastide, o nome Babassuê é uma aglutinação de Barba Soeira, entidade espiritual que chefiava aencantaria em terreiro de Belém pesquisado pela Missão Folclórica (BASTIDE, 1971, p.303). Em Codó,como já mencionamos mais de uma vez, o Terecô é também denominado Encantaria de Barba Soe ira(FERRETTI, M. 1997; 2001).\O Relatos do "tempo do cativeiro" recolhidos no interior do Maranhão pelo historiador Mathias Assunçãoindicam que Légua Boji era invocado pelos negros e tinha fama de enganar o senhor para proteger osescravos de severos castigos (ASSUNÇÃO, 1988, p.117).

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Luís, pode ocorrer cruzamento en-tre eles e passagem ou mudança deum para outro durante um toque:"para descansar os médiuns", "ho-menagear uma entidade que veioda Mina" (no Terecô), ou para re-servar maior "espaço" para os ca-boclos (na Mina). O "cruzamento"das duas linhas, que já existia emSão Luís, em 1938 (quando foi fei-to pela Missão Folclórica de SãoPaulo um registro da música doterreiro de Maximiana), parece terse tornado mais conhecido emCodó com a mãe-de-santopiauiense denominada Maria Piauí,que migrou para lá 2 anos antesdaquela pesquisa, Assad (1979,p.20) e que buscou reforço na Minada capital, no terreiro do Cutim(hoje desaparecido), classificadocomo cambinda e como nagô-de-rivado.

Entre as características doTerecô antigo e tradicional de Codó(do povoado de Santo Antônio dosPretos e de Mãe Antoninha) quemarcam sua diferença do Tamborde Minajeje e nagô da capital, po-dem ser citadas:

1) ausência de terreiros organiza-dos no estilo de conventos (onderesidem os pais-de-santo e váriasvodunsis), muito comuns no Benin(África) e na Mina da capitalmaranhense;

2) grande atividade em gongásdomésticos dos terecozeiros chefes(pais-de-santo) e reduzido númerode festas e rituais públicos nos bar-racões;3) existência de "poste central" nosbarracões antigos (do povoado deSanto Antônio e da sede do muni-cípio), ausência de quarto de segre-do (pej i) ou guarda de pedras deassentamento das entidades espiri-tuais em caixas de madeira ("co-fres"?);4) abertura do toque com"Louvariê" e chamada dos encan-tados "com joelho em terra" e comas mãos (e até a cabeça) encosta-das no chão, de onde acredita-se vira sua força;5) uso de um único tambor (o 'tam-bor da mata' - de uma só membra-na, como os da Mina-Jeje, mas to-cado com a mão), de maracás (ca-baças cheias de sementes, mas semmalha de contas, como as da Mina)e, às vezes, também de pífaro e demarirnba (berirnbau), e ausência de"ferro" (gã ou agogô) nos toques;6) presença de homens entre osmédiuns de incorporação maior doque a verificada na Mina e uso nosrituais, por eles, de batas rodadas;7) uso freqüente de cabeça cobertaentre os participantes dos toques ede ingestão de bebida alcoólica pe-los encantados;8) dança corrida, cheia de rodadas;9) toque realizado até o final da fes-ta (sem suspensão) e saída de mé-diuns incorporados para a rua, àsvezes acompanhados de tocadorese seus instrwnentos musicais (a se-melhança do que observamos em

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1993 no Benin, no festival de eu 1-II

tura do vodurn Ouidah 92) .

Comparando algumas caracte-rísticas das entidades do Terecô deCodó com a de voduns da Mina Jeje,pode-se verificar que, embora se façareferência na Casa das Minas à fúriade certos voduns, como Queviossô,e a severos castigos aplicados poreles às vodunsis, Ferretti, S. (1996,p.123), nenhuma entidade alicultuada é apresentada como tendouma "banda branca e outra preta",ou tendo "uma parte de Deus e ou-tra do diabo" (como Légua Boji esua família são, às vezes, represen-tados em Codó e em São Luís, forada Casa das Minas-Jeje).

A comparação entre Mina-Jejee Terecô, no que diz respeito ao usode "magia curativa", mostra que,embora a Mina-Jeje e o Terecôusem banhos de ervas para afastarmales espirituais e para proteger osdevotos, geralmente, na Mina-Jejese prepara e distribui seus banhosno terreiro, em dias de obrigação devodum, enquanto no Terecô elespodem ser preparados e distribuí-dos, com maior freqüência, em

gongás domésticos, para maior nú-mero de pessoas (inclusive para cli-entes, sem ligação direta com o cul-to). Na Mina-Jeje, o curandeirismoé mantido sob rigoroso controle,pois afirma-se que, quando se trans-forma em atividade comercial, levaà preparação de remédios "sem for-ça espiritual", que está concentra-da no terreiro, onde estão assenta-das as entidades espirituais. Fala-se também que o curandeirismopode se transformar em ação "abo-minável" quando associado ao cul-to de entidades malévolas, capazesde atender a pedidos inaceitáveispelos voduns e de fazerem mal.Como diz Dona Deni, não se podepedir ao vodum o mal para umapessoa, pois só Evo-vodum/Jesussabe se ela o merece ...

4 CODÓ, TERRA DOFEITIÇO OU CAPITAL DAMAGIA NEGRA?!...

Como falamos anteriormente,apesar de Codó ser uma das"Mecas" da religião afro-brasileira,parece que o Terecô só ganhoumaior projeção depois de 1950.

II Em São Luis, relatos a respeito do já extinto Terreiro do Egito falam de tambores que tocavam dia e noitesem parar. Observações também da festa de São Sebastião na Casa das Minas-Jeje registram uma saída dosvoduns para Casa de Nagô. Nessa festa são cantadas algumas doutrinas em língua africana e em portuguêscom palavras africanas, para relembrar a visita recebida no passado dos cambinda de Codó, onde se fala em:Camundá, Boço Vandereji, Boço Jara, Boço Memeia, Boço Fama, Fina Jóia e em outras entidades(FERRETTI,S. 1996; FERRETTI,M. 1993; 1997; 2001).

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Fala-se, no entanto, que, antes daabertura dos primeiros terreiros deTerecô, existiram ali afamados "fei-ticeiros" - pessoas possuidoras depoderes mágicos especiais, queaceitavam dinheiro para fazer tra-balhos de vingança -, e que Codópossuiu também, no passado, con-ceituados "raizeiros" - grandes co-nhecedores das propriedades tera-pêuticas da flora da região que alisão também chamados "cientistas".

Embora em 1944/1945 Eduar-do (1948, p.66) tenha encontrado,no povoado de Santo Antônio dosPretos (município de Codó), umatotal separação entre Terecô (ouEncantaria de Barba Soeira), "ma-gia curativa" e "magia negra" (fei-tiçaria), há muito que esses camposse aproximaram, na prática, de al-guns terecozeiros. Hoje, além de-les serem também muito procura-dos como curadores, pelo menosum, o conhecido Bita do Barão, seapresenta como continuador dosantigos "feiticeiros" de Codó e de-clara já ter realizado, com Exu,muitos trabalhos de vingança(FERRETTI, M., 2001, p.91).

Apesar de, mesmo depois daInquisição, o termo feitiçaria tersido usado para designar toda equalquer prática religiosa afastadada ortodoxia católica e de pratica-mente todas as denominações reli-

giosas afro-brasileiras já terem sidoalguma vez acusadas de feitiçaria,no Maranhão essa acusação recaiumais sobre o Terecô de Codó do quesobre o Tambor de Mina da capi-tal. É possível que a repressão poli-cial tenha sido maior em relação aoprimeiro e que tenha contribuídopara aguçar o preconceito contraele, mas existe no Terecô pelo me-nos um fator que pode ter facilita-do aquela fama. No Terecô deCodó, a entidade espiritual que che-fia a "linha da mata" - Légua BojiBoá da Trindade - é apresentada pormuitos como tendo "uma bandabranca e outra preta", um lado parao bem e outro para o mal. Essa ca-racterística, associada a seu carátervingativo, brincalhão e irreverentee ao seu gosto por bebida alcoóli-ca, tem levado à sua identificaçãocom Légba, entidade africana que,como Exu, foi encarada, no passa-do, por missionários católicos,como o demônio e que continuasendo vista na Casa das Minas-Jejecomo demoníaca. Embora a análi-se do nome daquela entidade reali-zada recentemente poretnolinguístas reforce aquela inter-pretação, a identificação de LéguaBoji Boá com Légba não é aceitana Casa das Minas Geje), onde eleé conhecido como um "vodumcambinda", da mata. Em Codó, a

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identificação de Légua Boj i comExu também não era aceita porDona Antoninha, a terecozeira maisantiga e tradicionalista que tivemosoportunidade de conhecer, e nempor sua sucessora que, encerrandoessa questão, nos esclareceu quenão há participação de Légua Bojie nem de encantados de sua famíliaem rituais da "linha negra", reali-zados para Exu por algunsterecozeiros e umbandistas deCodó. Segundo ela, o povo de Lé-gua Boji bebe muito, é pesado evingativo, mas não se confundecom Exu e nem com entidades da"linha negra" recebidas naQuimbanda.

A identificação do Terecô com"magia negra" (feitiçaria) ou coma "linha negra" da religião afro-bra-sileira (linha de Exu, confundidocom o demônio) é geralmente ne-gada pelos terecozeiros de Codó,embora exista ali alguns que decla-rem realizar trabalhos tanto para obem como para o mal. "Magia ne-gra" e feitiçaria foi e continua sen-do, na religião afro-brasileira, umacategoria de acusação e, em Codó,se procura manter o Terecô, LéguaBoji e os "vodunsos" velhos delaafastados.

A apresentação de Codó como"terra do feitiço" ou "capital damagia negra", negando o seu cará-

ter religioso, afastou pesquisadorese tem levado muitos terecozeiros ase desviarem da tradição de Codó ea adotarem outra denominação re-ligiosa afro-brasileira. Hoje, muitosdos que se filiaram a federações deUmbanda estão se apresentandocomo umbandistas e referindo-se aoTerecô como algo primitivo, inferi-or à Mina, à Umbanda, ao Candom-blé e a outra denominação religiosaafro-brasileira mais conhecida e ob-jeto de menor preconceito. Por essarazão, consideramos necessária eurgente a realização de pesquisas ea publicação de obras sobre Terecôe sobre a "linha da Mata" do Tam-bor de Mina por parte de cientistassociais e de sacerdotes que o conhe-cem mais de perto.

5 CONCLUSÃO

Como não existe denominaçãoreligiosa afro-brsileira nãosincrética, parece-nos preferível fa-lar de Terecô como uma das "for-mas mais sincréticas" da religiãoafro-brasileira ou como maissincrético do que o Tambor deMina. Além do Terecô ser bastanteconhecido pela integração realiza-da de elementos de origens diver-sas, pesquisa realizada em 1944 porEduardo (1948, p.47) mostra a exis-tência de alto índice de sincretismo

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na religião de origem africana dopovoado de Santo Antônio dos Pre-tos, hoje considerada a mais antigae tradicionalista da região. Mas,apesar de Bastide (1971, p.397),apoiando-se nas descrições deOctávio da Costa Eduardo, ter en-carado a religião daquele povoadocomo tradição daomeana quase es-quecida, sincrética, empobrecidapela perda de memória e pelo iso-lamento das populações rurais, al-guns indícios encontrados nos da-dos coletados por nós sobre oTerecô de Codó nos levam a enca-rar o Terecô como "outra religiãoafro- brasileira".

A classificação do Tambor daMata (Terecô), em São Luís, comocambinda e a existência no Terecôde Codó de um cântico de aberturaem "língua enrolada", desconheci-do nos terreiros jeje e nagô da capi-tal, nos levam a suspeitar de que elese originou de outra tradição religi-osa africana, possivelmente banto,e a nos afastar da hipótese de queele teria a mesma origem da Mina-Jeje ou que tivesse se originadodela. Contudo, consideramos que oselementos da Mina-Jeje encontra-dos ali por aquele pesquisador

paulista não devem ser descartados.Relatos sobre a Casa das Minasantes de 1954 (quando faleceu suaúltima mãe-de-santo de grandeprestígio), mostram que a Casa játeve muitas vodunsis de Codó eque, no passado, era muito visitadapor membros de um terreirocambinda de um povoado de Codó(Cangumbá?).

Embora Codó não tenha terrei-ros tão antigos como os de São Luís,é possível que o Terecô tenha sur-gido antes da Mina, com a realiza-ção de rituais na "mata do coco" porescravos de fazendas de algodão domunicípio. Como Légua Boji apa-rece em memória do "tempo do ca-tiveiro", recolhidas fora da capitalmaranhense por Mathias Assunção(1988), pode se pensar que ele eraconhecido ali bem antes da aboli-ção da escravidão.

A pesquisa sobre o Terecô deCodó tem que avançar em váriasdireções para que se possa ter umavisão mais profunda sobre ele. Mas,como os antigos terecozeiros já fa-leceram e atualmente muitos estãose apresentando como umbandistas,a cada dia esse trabalho está se tor-nando mais dificil.

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