história e cultura afro brasileira e africana

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  • 1. COLEO 9VOLUMEPERCEPESDADIFERENAN EGROS E B RANCOS NA E SCOLABRINCANDO EOUVINDO HISTRIAS Sandra Santos

2. APRESENTAOAcoleo Percepes da Diferena. Negros e brancos na escola destinada a professores da educao infantil e do ensino fundamental.Seu intuito discutir de maneira direta e com profundidade alguns temas queconstituem verdadeiros dilemas para professores diante das discriminaessofridas por crianas negras de diferentes idades em seu cotidiano nasescolas.Diferenciar uma caracterstica de todos os animais. Tambm umacaracterstica humana muito forte e muito importante entre as crianas,mesmo quando so bem pequenas, na idade em que freqentam crechese pr-escolas e comeam a conviver com outras observando que no sotodas iguais.Mas como lidar com o exerccio humano de diferenciar sem que ele setorne discriminatrio? O que fazer quando as crianas se do conta dadiferena entre a cor e a textura dos cabelos, os traos dos rostos, a corda pele? Como evitar que esse processo se transforme em algo negativo eexcludente? Como sugerir que as crianas brinquem com as diferenas nolugar de brigarem em funo delas?Os 10 volumes que compem a coleo Percepes da Diferena chamama ateno para momentos em que a diferenciao ocorre, quando se tornadiscriminatria, e sugerem formas para lidar com esses atos de modoa colaborar para que a auto-estima e o respeito entre crianas sejamconstrudos.Os autores discutem conceitos e questionam preconceitos. Fazem sugestesde como explorar as diferenas de maneira positiva, por meio de brincadeirase histrias, e de leituras que possam auxili-los a aprofundar a reexosobre os temas, caso desejem faz-lo.Para compor a coleo convidamos especialistas e educadores de diferentesreas. Cada volume reete o ponto de vista do autor ou da autora de modoa assegurar a diversidade de pensamentos e abordagens sobre os assuntostratados.Desejamos que a leitura seja prazerosa e instrutiva.Gislene Santos 3. COLEO PERCEPES DA DIFERENA.NEGROS E BRANCOS NA ESCOLA VOLUME 9BRINCANDO E OUVINDO HISTRIASParaMe Cabocla,v Marinita edona Linda rezadeiras, benzedeiras ehistoriadoras populares...Ax! 4. Presidente da RepblicaLuiz Incio Lula da SIlvaMinistro da EducaoFernando HaddadSecretrio-ExecutivoJos Henrique Paim FernandesSecretrio de Educao Continuada,Alfabetizao e DiversidadeAndr Luiz Figueiredo Lzaro COLEO PERCEPES DA DIFERENA. NEGROS E BRANCOS NA ESCOLA. Apoio: Ministrio da Educao - Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade (SECAD) Programa UNIAFRO. Realizao: NEINB - Ncleo de Apoio Pesquisas em Estudos Interdisciplinares sobre o Negro Brasileiro, da Universidade de So Paulo - USP. Coordenao da coleo: Gislene Aparecida dos Santos Projeto grco: Jorge Kawasaki Pinturas das capas: Zulmira Gomes Leite Ilustraes: Marcelo dSalete Editorao: Nove&Dez Criao e Arte Reviso: Lara Milani ISBN 978-85-296-0082-6 (Obra completa) ISBN 978-85-296-0091-8 (Volume 9) Impresso no Brasil 2007 5. SumrioUm al para todos .......................................................................... 11Educao e sociedade ..................................................................... 14Pedro Cem ..................................................................................... 17Tradio e famlia .......................................................................... 17Criando a tradio brasileira ........................................................... 23Trabalhando com as crianas .......................................................... 27Os brutos falavam... ....................................................................... 28O gavio e a raposa ........................................................................ 30Histrias de Quilombos .................................................................. 32Marinho ......................................................................................... 32Saci-Perer ..................................................................................... 39Eu conheci um saci, certa vez... ...................................................... 42So Benedito .................................................................................. 44Superpoderosas .............................................................................. 47Referncias bibliogrficas .............................................................. 53Stios interessantes ......................................................................... 54Outras referncias ........................................................................54Glossrio da coleo ................................................................... 55 6. PLANO DA OBRA A coleo Percepes da Diferena. Negros e brancos na escola compostapelos seguintes volumes: 1 - Percepes da diferena. Autora: Gislene Aparecida dos Santos Neste volume so discutidos aspectos tericos gerais sobre a forma comopercebemos o outro. Para alm de todas as diretrizes pedaggicas, lidar com asdiferenas implica uma predisposio interna para repensarmos nossos valorese possveis preconceitos. Implica o desejo de reetir sobre a especicidade dasrelaes entre brancos e negros e sobre as diculdades que podem marcar essaaproximao. Por isso importante saber como, ao longo da histria, construiu-sea ideologia de que ser diferente pode ser igual a ser inferior.2 - Maternagem. Quando o beb pelo colo. Autoras: Maria AparecidaMiranda e Marilza de Souza Martins Este volume discute o conceito de maternagem e mostra sua importncia paraa construo da identidade positiva dos bebs e das crianas negras. Esse processo,iniciado na famlia, continua na escola por meio da forma como professores eeducadores da educao infantil tratam as crianas negras, oferecendo-lhes carinhoe ateno. 3 - Moreninho, neguinho, pretinho. Autor: Luiz Silva - CutiEste volume mostra como os nomes so importantes e fundamentais noprocesso de construo e de apropriao da identidade de cada um. Discute comoas alcunhas e os xingamentos so tentativas de desconstruo/desqualicao dooutro, e apresenta as razes pelas quais os professores devem decorar os nomesde seus alunos. 4 - Cabelo bom. Cabelo ruim. Autora: Rosangela Malachias Muitas vezes, no cotidiano escolar, as crianas negras so discriminadasnegativamente por causa de seu cabelo. Chamamentos pejorativos como cabeafu, cabelo pixaim, carapinha so naturalmente proferidos pelos prprioseducadores, que tambm assimilaram esteretipos relativos beleza. Neste volumediscute-se a esttica negra, principalmente no que se refere ao cabelo e s formascomo os professores podem descobrir e assumir a diversidade tnico-cultural dascrianas brasileiras. 5 - Professora, no quero brincar com aquela negrinha! Autoras: RoseliFigueiredo Martins e Maria Letcia Puglisi MunhozEste volume trata das maneiras como os professores podem lidarcom o preconceito das crianas que se isolam e se afastam das outras porcausa da cor/raa. 6 - Por que riem da frica? Autora: Dilma Melo Silva Muitas vezes crianas bem pequenas j demonstram preconceito em relao 7. a tudo que associado frica: msica, literatura, cincia, indumentria, culinria,arte... culturas. Neste volume discute-se o que pode haver de preconceituoso emrir desses contedos. Apresentam-se ainda elementos que permitem uma novaabordagem do tema artes e africanidades em sala de aula. 7 - Tmidos ou indisciplinados? Autor: Lcio Oliveira Alguns professores estabelecem uma verdadeira dade no que diz respeito forma como enxergam seus alunos negros. Ora os consideram tmidos demais,ora indisciplinados demais. Neste volume discute-se o que h por trs da supostatimidez e da pretensa indisciplina das crianas negras. 8 - Professora, existem santos negros? Histrias de identidade religiosanegra. Autora: Antonia Aparecida Quinto Neste volume se discutem aspectos do universo religioso dos africanos dadispora mostrando a forma como a religio negra, transportada para a Amrica, foireconstituda de modo a estabelecer conexes entre a identidade negra de origeme a sociedade qual esse povo deveria se adaptar. So apresentadas as formascomo a populao negra incorporou os padres do catolicismo sua cultura ecomo, por meio deles, construiu estratgias de resistncia, de sobrevivncia e demanifestao de sua religiosidade. 9 - Brincando e ouvindo histrias. Autora: Sandra Santos Este volume apresenta sugestes de atividades, brincadeiras e histriasque podem ser narradas s crianas da educao infantil e tambm aspectosda Histria da dispora africana em territrio brasileiro, numa viso diferenteda abordagem realizada pelos livros didticos tradicionais. Mostra o quanto decontribuio africana existe em cada gesto da populao nacional (descendentesde quaisquer povos que habitam e colaboraram para a construo deste pasmultitnico), com exemplos de aes, pensamentos, formas de agir e de observaro mundo. Serve no s a educadores no ambiente escolar, mas tambm ao lazerdomstico, no auxlio de pais e familiares interessados em ampliar conhecimentose tornar mais natural as reaes das crianas que comeam a perceber a sociedadee seu papel dentro dela. 10 - Eles tm a cara preta. Vrios autores Este exemplar apresenta prticas de ensino que foram partilhadas comaproximadamente 300 professores, gestores e agentes escolares da rede municipalde educao infantil da cidade de So Paulo. Trata-se da Formao de Professoresintitulada Negras imagens. Educao, mdia e arte: alternativas implementaoda Lei 10.639/03, elaborada e coordenada por pesquisadoras do NEINB/USPsimultnea e complementarmente ao projeto Percepes da Diferena Negros ebrancos na escola. 8. A autora: Sandra Regina do Nascimento Santos doutora em Cincias da Comunicaopela ECA-USP; mestre em Integrao daAmrica Latina pelo PROLAM-USP, compesquisa realizada em Santiago, Chile. jornalista (Univeridade Metodista deSo Paulo) e historiadora (Faculdade deFilosofia, Letras e Cncias Humanas daUSP) . Foi coordenadora e docente docurso de Comunicao Social-Jornalismoda Universidade do Oeste Paulista(UNOESTE-Presidente Prudente)entre osanos de 2001 e 2004. Desde 1992 lecionae desenvolve projetos em escolas da RedePblica Estadual de So Paulo.Projeto grco: Jorge KawasakiDiretor de Arte e designer grco, iniciou a carreira em 1974, trabalhou emempresas como Editora Abril e Editora Globo. Criou e produziu vrios projetos comocolaborador na Young&Rubican, Salles, H2R MKT, Editora K.K. Shizen Hosoku Gakkai(Tquio, Japo), entre outras.Pinturas das capas: Zulmira Gomes LeiteTeloga, Artista Plastica, Acadmica da Academia de Letras, Cincias e Artes daAssociao dos Funcionrios Pblicos do Estado de So Paulo.Assina as Obras de Artes como Zul+Ilustraes internas: Marcelo dSalete ilustrador e desenhista / roteirista de histrias em quadrinhos. Ele mora em SoPaulo, capital, estudou comunicao visual, graduado em artes plsticas e atualmentemestrando em Histria da Arte. Seu tema de estudo arte afro-brasileira.Ilustrou os livros infantis Ai de t, Tiet de Rogrio Andrade Barbosa; Duas Casas, deClaudia Dragonetti; entre outros.Participou da Exposio Conseqncias do Injuve, Espanha, 2002; da Exposio deoriginais da revista Front no FIQ, MG, 2003; e da Exposio Ilustrando em Revista,Editora Abril, 2005. Foi nalista do Concurso Folha de Ilustrao 2006. 9. Sandra Santos VOLUME 9BRINCANDO E OUVINDO HISTRIASCOLEO PERCEPES DA DIFERENA.NEGROS E BRANCOS NA ESCOLA Organizao Gislene Aparecida dos Santos1a edio So Paulo Ministrio da Educao2007 10. Brincando e ouvindo histrias10 Coleo Percepes da Diferena - Negros e brancos na escola 11. Brincando e ouvindo histriasUMAL PARA TODOS H muitos e muitos anos, em certo momento do sculo XVI, vivianuma comunidade africana localizada na parte ocidental abaixo dodeserto, poderia ser na regio que hoje se chama Moambique, Gui-n-Bissau, Congo, Angola... uma velhinha muito velha que contavahistrias. Ela costumava ir de cidade em cidade exercendo o seu ofcio deensinar e alegrar as pessoas, pois sabia cantar, rimar e at danava.Conhecia as histrias das famlias, dos grandes heris, dos reis e rai-nhas que comandavam seus povos com sabedoria, as lendas e os mitosdos tempos em que os bichos brutos falavam. Sabia tambm o tem-po certo de plantar e a melhor hora para uma boa colheita; o remdiocontra a febre, a dor de barriga e como ajudar as mulheres a colocaros filhos no mundo com sade e educ-los com sabedoria. Quandoalgum morria, l ia ela dizer suas rezas para que a alma encontrassecaminho fcil at os ancestrais.Coleo Percepes da Diferena - Negros e brancos na escola11 12. Brincando e ouvindo histrias Como ela, vrias outras mulheres e homens, por toda a frica,exerciam a funo de gri. O gri uma espcie de historiador, guardio das tradies. Nafrica tradicional, at nossos dias, so ainda encontradas trs cate-gorias de gris: os msicos, os embaixadores encarregados doscontatos entre cls de famlias importantes e os tradicionalistas,tambm chamados de historiadores, que so bons contadores de his-trias e grandes viajantes. Gri no s um amigo da boa conversa, da Histria e das histrias mitos, lendas. um personagem importante e respeitado nas socieda-des africanas, pois aquele que une as pessoas em torno de geraes,faz o passado e o presente se encontrarem e costura o futuro. Os griots so trovadores que renem tradies em todos os nveis erepresentam os textos convencionados diante de uma audincia apropriada,em certas ocasies casamentos, funerais, festas na residncia de umchefe etc. (Vansina, p. 166). Muitos usam tcnicas mnemnicas, comorimas e canes, poemas e narrativas crivadas de bordes que marcamo tempo e facilitam a lembrana. No Nordeste brasileiro, ainda hoje,encontram-se os repentistas e cantadores de emboladas e cocos quese manifestam em festas usando rimas acompanhadas de instrumentosde percusso ou corda. So alguns herdeiros daqueles gris. Esses historiadores populares, geralmente dotados de considervelinteligncia e memria, desempenhavam um papel de grande importnciana sociedade tradicional, pois possuam influncia sobre os nobres e oschefes, chegando a ser grandes intermedirios em transaes comerciais,alm de agentes culturais de peso. A ausncia da escrita tornava necessria a existncia dessespersonagens. As civilizaes africanas, no Saara e ao sul do deserto, eram em grande parte civilizaes da palavra falada, mesmo onde existia a escrita, como na frica12 Coleo Percepes da Diferena - Negros e brancos na escola 13. Brincando e ouvindo histrias ocidental a partir do sculo XVI, pois muito poucas pessoas sabiam escrever, ficando a escrita muitas vezes relegada a um plano secundrio em relao s preocupaes essenciais da sociedade. Seria um erro reduzir a civilizao da palavra falada simplesmente a uma negativa, ausncia do escrever, e perpetuar o desdm inato dos letrados pelos iletrados (...). Isso demonstraria uma total ignorncia da natureza dessas civilizaes orais. (Vansina, p. 157) Os gris eram muito respeitados no s pelos seus conhecimentos esua idade, mas porque representavam uma espcie de ponte entre o hojee o ontem; entre a ancestralidade e a contemporaneidade. E tambmeram preparadores do caminho entre o hoje e o amanh... Podemos, ento, imaginar aquela senhora, embaixo de uma gran-de rvore cercada de gente de todas as idades, crianas, jovens, an-cios. Entre os jovens, sempre algum mais talentoso demonstravainteresse e facilidade para aprender o ofcio era a hora de treinarum substituto, algum que pudesse pegar o fio da meada e continuarfalando, perpetuando fatos, agregando histrias novas, ampliandoconhecimentos, ensinando... O gri aprende para nunca esquecer e nunca esquece porque contar a sua vida, e tambm a vida da famlia, da cidade, da nao, que formada por muitas famlias. No Brasil sempre existiu a figura da velha contadora de histriasque aparece na literatura e citada por Maria Flora Guimares quandoinforma sobre os akpals nigerianos, uma casta especial que se deslocava de tribo em tribo recitando os seus als. A velha Totonha, de Jos Lins do Rego, que se deslocava de engenho a engenho, narrando com riqueza mmica e procurando dar o tom local s suas narrativas, sua mais autntica seguidora (Guimares, p. 86).Coleo Percepes da Diferena - Negros e brancos na escola13 14. Brincando e ouvindo histrias Tambm Gilberto Freyre, em Casa-grande & senzala, atesta a influn-cia africana dessa maneira de contar histrias quando informa sobre alguns indivduos [que] fazem prosso de contar histrias e andam de lugar em lugar recitando contos. H o akpal, fazedor de al ou conto; e h o arokin, que o narrador das crnicas do passado. O akpal uma instituio africana que oresceu no Brasil na pessoa de negras velhas que s faziam contar histrias s outras pretas, amas dos meninos brancos. Jos Lins do Rego, no seu Menino de engenho, fala das velhas estranhas que apareciam pelos bangs da Paraba: contavam histrias e iam embora. Viviam disso. Exatamente a funo e o gnero de vida do akpal (Freyre, p. 386).L est a anci, o sol est se pondo, e ela contou histrias o dia in-teiro... hora de recolher as crianas e pensar no prximo dia.EDUCAOE SOCIEDADE A imensa maioria dos povos africanos vivia em sociedades totais, se no totalitrias, onde tudo estava interligado, desde a confeco de utenslios at os ritos agrrios, passando pelo cerimonial do amor e da morte. No tocante a isso, a sociedade regida pelo animismo no menos integrada que a sociedade laica. E consider-la como tal desprezar uma parte importante da realidade. (Ki-Zerbo, p. 376) Na sociedade africana tradicional, portanto, viver aprender e, aomesmo tempo, ensinar. Ao contrrio das sociedades ocidentais, nose aprende apenas nas escolas, mas tambm fora delas. Na famlia, narua, na vizinhana, nos cultos religiosos, todos assumiam o papel deeducadores e exerciam a tarefa de socializar o jovem, de inseri-lo deforma conveniente na comunidade.14 Coleo Percepes da Diferena - Negros e brancos na escola 15. Brincando e ouvindo histrias A tradio africana no corta a vida em fatias e no compartimenta o aprendizado num determinado perodo da vida (a adolescncia seriada ocidental, traduzida no Brasil nos ciclos bsico fundamental e mdio , infantil, maternal, jardins...). Segundo Hampat B, a educao dispensada durante toda a vida. A prpria vida era a educao. Alm do prtico, cotidiano, fazia parte do aprendizado a relao do ser humano com as as foras que sustentam o mundo visvel e que podem ser colocadas a servio da vida (Hampat B, p. 208 e p. 188). Contar histrias, ensinar, no apenas falar, mas exercer uma funosagrada, pois essa ao permite a transmisso de conhecimentos quepropiciaro a continuidade do grupo.Coleo Percepes da Diferena - Negros e brancos na escola15 16. Brincando e ouvindo histrias A palavra transmitida pela cadeia deve veicular, depois da transmisso original, uma fora que a torna operante e sacramental (Idem, p. 192-193). Ento, cria-se um elo indissolvel entre mestre e aprendiz. Havia as escolas, claro, que serviam ao ensino dos grandes iniciadosno conhecimento esotrico (aquele saber especial, reservado somenteaos guardies do sagrado, como em todas as civilizaes), mas a edu-cao tradicional comeava no seio de cada famlia. Era o pai, a meou algum mais idoso que servia de mestre e educador e ministrava asprimeiras lies da vida, atravs da experincia e tambm de histrias,fbulas, lendas, mximas, adgios, provrbios etc. as missivas legadas posteridade pelos ancestrais, segundo Hampat B. Uma fbula nunca apenas diverso, mas tambm transmissodo conhecimento til manuteno da vida e das relaes necessriasem comunidade. Ao fazer uma caminhada pela mata, encontrar um formigueiro dar ao velho mestre a oportunidade de ministrar conhecimentos diversos, de acordo com a natureza dos ouvintes. Ou falar sobre o prprio animal, sobre as leis que governam sua vida e a classe de seres a que pertence, ou dar uma lio de moral s crianas, mostrando-lhes como a vida em comunidade depende da solidariedade e do esquecimento de si mesmo, ou ainda poder falar sobre conhecimentos mais elevados, se sentir que seus ouvintes podero compreend-lo. Assim, qualquer incidente da vida, qualquer acontecimento trivial pode sempre dar ocasio a mltiplos desenvolvimentos, pode induzir narrao de um mito, de uma histria ou de uma lenda. (Hampat B, p. 195) No incio do mundo, criavam-se histrias, lendas, para entender ouniverso, a relao dos seres com a divindade e a origem da vida. Ha-via tambm que lembrar os feitos hericos dos que contriburam paraa organizao e manuteno da comunidade (alguns receberam tantos16 Coleo Percepes da Diferena - Negros e brancos na escola 17. Brincando e ouvindo histriasadendos que se tornaram seres mticos). Depois houve a necessidade demanter a ordem, a obedincia e o respeito dos jovens, assimilar experi-ncias desastrosas, situaes limites como mortes, epidemias etc.Existe uma fora que rege a natureza e d unidade vida, uma forasagrada primordial, um aspecto do Deus criador que une natureza visvele invisvel. E isso pode ser entendido, elaborado atravs da fala, da trocade experincias para projetar um futuro com menos erros. PEDRO CEM Pedro Cem era um homem muito rico. Tudo o que tinha era con-tado s centenas: cem cavalos de raa, cem palacetes na cidade, cemfazendas, cem automveis... Mas Pedro Cem era pouco caridoso. Umdia uma velhinha bateu sua porta e pediu uma esmolinha-pelo-amor-de-deus. Pedro Cem mandou que seus capangas (cem) a colocassemna rua. Ela, ento, lhe rogou uma praga: Havers de passar fomealgum dia na vida. A partir daquele momento, os negcios de P.C.comearam a dar errado. Foi perdendo dinheiro, os empregados (todosos cem) foram embora aos poucos, foi roubado nos negcios. At que,um dia, P.C. se viu sem nenhum tosto. O nico jeito encontrado foisair pelo mundo a pedir esmolas. Aonde quer que fosse, de casa emcasa, de praa em praa, de cidade em cidade, entoava seu canto: Umaesmolinha para o Pedro Cem, que ontem tinha e hoje no tem... As histrias da av Marinita eram assim, no havia uma moralexplcita ditada no final, mas as crianas que ouviam percebiamos valores que deveriam ser aproveitados ou rejeitados durante astrajetrias da vida que apenas comeava.TRADIOE FAMLIA Uma famlia um grupo de pessoas que se ajudam, que do as mos,que olham nos olhos. luz quando h escuro, um barquinho no meiodo oceano, salvao para quem se afoga.Coleo Percepes da Diferena - Negros e brancos na escola17 18. Brincando e ouvindo histrias Os africanos acreditavam que a famlia no somente quem se podever aqui hoje. Continuam sendo da famlia aqueles que no se vem mais,que no esto mais presentes, que j partiram para o mundo invisvel. por isso que os gris vo encadeando as histrias, emendando lendas,voltando no tempo, porque o que somos hoje comeou tempos atrs,foi construdo antes de termos nascido. Minha me e meu pai esto emmim; meus avs esto neles. Ento, se assim , eu tambm tenho umpouco dos meus avs, dos meus bisavs, e por a a perder de vista. Ento, meus ancestrais falam atravs de mim, de minhas aes eemoes, de minhas idias. Na maneira como trato as pessoas; no modode me alimentar; como conduzo minhas oraes intercmbio com aancestralidade. De certa forma, eles pavimentaram a trilha para que eupudesse percorrer o caminho da vida. Da mesma forma como farei paraos meus descendentes, e eles depois de mim, e assim para sempre. A tradio oral a grande escola da vida, e dela recupera e relaciona todos os aspectos. Pode parecer catica queles que no lhe descobriram o segredo e desconcertar a mentalidade cartesiana acostumada a separar tudo em categorias bem definidas. Dentro da tradio oral, na verdade, o espiritual e o material18 Coleo Percepes da Diferena - Negros e brancos na escola 19. Brincando e ouvindo histrias no esto dissociados. Ao passar do esotrico para o exotrico, a tradio oral consegue colocar-se ao alcance dos homens, falar-lhes de acordo com o entendimento humano, revelar-se de acordo com as aptides humanas. Ela ao mesmo tempo religio, conhecimento, cincia natural, iniciao arte, histria, divertimento e recreao, uma vez que todo pormenor sempre nos permite remontar Unidade primordial. (Hampat B, p. 183) Se atravs da fala que se transmite a tradio, ela sagrada, criadorae realizadora; tem o poder de conservar ou romper a harmonia entre oser humano e o mundo. Devemos tomar cuidado, pois se ela cria tambmdestri. Cria realidades, representa anseios e consolida preconceitos. na famlia que o jovem aprende a falar para o mundo e para simesmo, para os ancestrais e para seus descendentes. onde adquiresegurana, fora e auto-estima para enfrentar a vida e vencer como seusancestrais venceram pois se no fossem vitoriosos ele prprio noexistiria, nem sua famlia para contar histrias. A famlia o pai, a me,os irmos, a av ou a tia que cuida e d carinho e educao. Pode sertambm a vizinha, os amigos que ajudam em casos extremos. A famliaextensa se tornou mais ampla quando a criana escrava, que mal con-vivia com os pais, teve de confiar na tia fosse de quem fosse. E, emnossos dias, comum a existncia de famlias que no correspondemao modelo cunhado como normal pela sociedade ocidental: crianascriadas apenas pelos avs ou por parentes prximos; famlias cuja meou pai, por diversos motivos, est ausente; outras com filhos adotivose, recentemente, famlias formadas por casais do mesmo sexo. Hoje, aoiniciar convvio com crianas e jovens das mais variadas tradies, oestranhamento comum. Mas esse susto inicial no pode se transfor-mar em discriminao, deve servir de suporte para novos aprendizadosde convvio e tolerncia. No meio escolar onde os estranhamentos ocorrem com mais fre-qncia. Pois um ambiente de convvio onde passam grande parte dodia em confinamento crianas, jovens e adultos das mais variadasColeo Percepes da Diferena - Negros e brancos na escola19 20. Brincando e ouvindo histriastradies, crenas, opinies e culturas. Isso pode ser penoso para jo-vens e crianas que ainda no aprenderam a lidar com suas emoes econhecimentos. na escola que se refora a auto-estima ou se perde areferncia do que importante para si o aprendido em famlia. So freqentes as manifestaes discriminatrias, de preconceitosaprendidos em sociedade e na famlia. O docente, nessas ocasies, nodeve se omitir, mas demonstrar habilidade em conduzir as discussesa bom termo. Mas isso no possvel quando ele prprio no estconvicto de suas aes e crenas. Existem leis, no pas, que tentamcoibir os delitos de preconceito e as discriminaes tnicas, religiosasetc. Mas o bom convvio numa sociedade como a brasileira no podese apoiar/ser garantida apenas pelo medo e pela coero representadapela ameaa dos tribunais, que nem sempre so acessados por receioou desconhecimento. obrigao do educador promover aes de bomconvvio, apontar o erro ensinando, demonstrar que os direitos soiguais porque, apesar das diferenas aparentes e da trajetria histricaque os grupos negros e indgenas vivenciaram no pas, as culturas, osconhecimentos, as contribuies e as participaes so importantes namanuteno da sociedade. O racismo, na realidade, no se sustenta mais principalmente apsas descobertas genticas das ltimas dcadas. Porm, o estigma aos gru-pos que passaram pelo trabalho escravo (negros e indgenas) gera aindasintomas em certos grupos que, preconceituosos, discriminam pelacor da pele, crena religiosa, classe social, costumes etc., chegando aimpedir que certos grupos (notadamente os negros) conquistem espaosno trabalho, nas escolas, nos estabelecimentos comerciais. Foi confuso. No d para lembrar direito. Chegaram ao povoado eforam pegando e prendendo todos. No havia guerra declarada, masfoi assim. Chegaram e levaram. Quem resistiu caiu ali mesmo. Aquelavelhinha, ningum nunca mais viu. No souberam mais dela. Eles noqueriam os idosos, s os que podiam trabalhar.Quando os africanos foram escravizados, no puderam trazernada nas mos nem malas, nem coisas de valor , vieram apenas20 Coleo Percepes da Diferena - Negros e brancos na escola 21. Brincando e ouvindo histriascom idias e histrias que conheciam havia tempos. No podiamescrever. Ento, tudo que aprendiam, que inventavam, que conheciamcontavam, cantavam, falavam para os outros: uma lembrana, umaorao, uma receita, um remdio, uma histria. Assim as histriasforam chegando at o presente e iro at o futuro. Ningum podese esquecer do al. Tiveram de reinventar a famlia, pois muitos foram separados desua gente no caminho... As sociedades harmnicas, com suas dinmicas prprias, foramdesequilibradas com o advento da escravido moderna, que, ao findaro perodo medieval, arrancou da frica braos e cabeas, coraes ealmas, transpondo-os, foradamente, ao Novo Mundo, que foi, inteiro,construdo sob a bandeira da desumanizao de homens e mulheres esobre os escombros de civilizaes e sabedorias mais antigas e promis-soras que a europia. Os africanos vindos Amrica, incluindo o Brasil, entre os sculosXVI e XIX, trouxeram a tradio da palavra falada. Situao poten-cializada pela proibio no incio e pela dificuldade de acesso aps a Abolio e at nossos dias aos bancos escolares. Aos es-cravos e posteriormente aos descendentes destes era proibida aobteno de ensino formal. No escrevendo nem lendo, a oralidadefoi mais aguada, aprimorada.Se na frica, mesmo com o conhecimento da escrita, a palavra fa-lada era privilegiada, nas sociedades escravistas o costume de dialogarfavoreceu sobremaneira a convivncia e a sobrevivncia mental/psico-lgica dos negros aqui chegados. A quem era negada a possibilidadede conhecimento atravs das letras, muito foi til uma prtica que noprevia, necessariamente, a utilizao do cdigo escrito para se manifestare transmitir idias, manter tradies e conhecimentos da vida. Quem sobreviveu travessia do Oceano Atlntico percebeu que asobrevivncia fsica dependia da sobrevivncia moral.Coleo Percepes da Diferena - Negros e brancos na escola21 22. Brincando e ouvindo histriasJovens, eles eram muito jovens alguns, aprendizes de gri. Trataramde juntar os conhecimentos aprendidos com os ancestrais aos apreendi-dos na nova terra. A av havia ficado na terra dos ancestrais. Tradiesnovas surgiram da traduo possvel do novo territrio. Hostil, mas queprecisava ser entendido e conquistado, mais do que dominado. As prticas chegadas s senzalas nos sinistros tumbeiros (naviosque faziam a travessia da frica para o Brasil) foram reorganizadas medida que iam penetrando na cincia da nova terra, da mata dife-rente, das plantas recm-descobertas para as antigas e para as novasdoenas. Costumes novos que se espalharam pelos quilombos, pelascasas-grandes, pelas cidades e povoados recm-construdos. Lendas e mitos nascem juntamente com a ocupao da terra; nascemda criao de laos afetivos entre as pessoas, a natureza e o sobrenaturalque os ajudam a sobreviver e a se pensar enquanto seres humanos. Aquia busca pela liberdade forjou as histrias. As lendas tambm corrobo-raram o pertencimento ao espao, de braos dados com os heris queforam surgindo medida que a terra foi sendo ocupada. A origem das tradies pode ser um testemunho ocular, um boato ouuma nova criao baseada em diferentes textos orais existentes, com-binados e adaptados para criar uma nova mensagem. Tudo que uma sociedade considera importante para o perfeito funcionamento de suas instituies, para uma correta compreenso dos vrios status sociais e seus respectivos papis, para os direitos e obrigaes de cada um, tudo cuidadosamente transmitido. Numa sociedade oral isso feito pela tradio, enquanto numa sociedade que adota a escrita somente as memrias menos importantes so deixadas tradio. (Vansina, p. 159) A tradio sempre idealiza, cria esteretipos populares. Assim, todahistria tende a tornar-se paradigmtica e, conseqentemente, mtica,seja seu contedo verdadeiro ou no. Mas o que a verdade?22 Coleo Percepes da Diferena - Negros e brancos na escola 23. Brincando e ouvindo histrias Observando o dia-a-dia, lendo jornais e assistindo TV, os discursosconstrudos, verifica-se que a palavra constri verdades dependentes doponto de vista e dos interesses de quem a pronuncia. Pedro Malasartes, saci-perer e Marinho se juntam aos histricosChico Rei e Zumbi dos Palmares para formar o panteo dos heris(afro)brasileiros. Alguns, com vida formal, foram idealizados e torna-ram-se figuras quase mticas; outros, inventados segundo as necessi-dades mentais/morais da sociedade ao longo dos sculos, se tornaramquase verdadeiros. Assim se preserva a sabedoria dos ancestrais, venerada no que poderamos chamar elocues-chave, isto , a tradio oral. (...) Uma tradio uma mensagem transmitida de uma gerao para a seguinte. Um comportamento, uma forma de ver a vida que justifique, que denuncie o pertencimento (Vansina, p. 159). CRIANDO A TRADIO BRASILEIRA Toda famlia tem um gri uma av ou av, uma tia que conhecehistrias, a me que mantm o jeitinho de cozinhar aquela comidaespecial que s ela faz, o pai que ouviu histrias do av e continuacontando aos netos... O mais velho tem a chave para destrancar lembranas e perpetuarinformaes: suas histrias, casos, canes cantadas nos seres noturnos,nos finais de semana, em dias de festa. Os historiadores e socilogosadeptos da Histria Oral realizam seus trabalhos de reconstituiodo passado e do pertencimento social atravs das histrias contadas.Assim, determinam parentescos e origens perdidas. Ao estudarem,por exemplo, comunidades quilombolas, tentam chegar por meiodas narrativas ao primeiro negro fugido que chegou ao local e setornou av da comunidade. Uma me distante que recebeu terras comoherana e ali espalhou sua descendncia.Coleo Percepes da Diferena - Negros e brancos na escola23 24. Brincando e ouvindo histrias24 Coleo Percepes da Diferena - Negros e brancos na escola 25. Brincando e ouvindo histrias As sociedades humanas (...) tm mitos de fundao, mitos comunitrios, mitos de antepassados comuns, mitos que lhes explicam a sua situao no mundo. (...) o ingrediente mitolgico to necessrio como o integrante material. (...) os mitos sustentam a comunidade, a identidade comum que um elo indispensvel s sociedades humanas. Fazem parte de um conjunto em que cada momento do processo capital para a produo do todo. (Morin, p. 28)Na minha famlia, uma das avs dona Marinita , me da minha me,era quem sobressaa ao contar coisas do tempo de sua me, dona Eleu-tria mais conhecida como Me Cabocla. Segundo dona Linda, minhame, at os netos a chamavam assim e tambm toda a vizinhana de S.Lus de Quitunde, municpio do interior de Alagoas. Parteira, benzedeira,rezadeira das boas guardi das tradies orais daquela gente. Hoje quem diz al sou eu... Vesti o manto de gri da famlia. Sou descendente de nordestinos pela minha me. A famlia do meupai originria do Vale do Paraba. Duas regies com enormes manan-ciais de contos e lendas, sem falar na Histria propriamente dita. O Nordeste a regio aonde chegaram os primeiros escravizadosafricanos para construir o pas. Foi l que, primeiro, entraram em con-tato com as culturas do indgena, tambm escravizado, e do europeu, oescravizador. Foi l que se ouviu falar primeiro das nossas assombraesmais famosas... l a terra de Zumbi e do quilombo de Palmares. Gilberto Freyre afirma que os antigos medos europeus empalideceramdiante dos novos medos nascidos do contato com as populaes indge-nas, encontradas no novo territrio descoberto, e com os grupos negrosque entraram no Brasil atravs do trfico de escravos africanos: E o menino brasileiro dos tempos coloniais viu-se rodeado de maiores e mais terrveis mal-assombrados que todos os outros meninos do mundo. Nas praias, oColeo Percepes da Diferena - Negros e brancos na escola25 26. Brincando e ouvindo histrias homem-marinho terrvel devorador de dedos, nariz e piroca de gente. No mato, o saci-perer, o caipora, o homem de ps s avessas, o boitat. Por toda a parte, a cabra-cabriola, a mula-sem-cabea, o tutu-maramb, o negro do surro, o tutu-gambeta, o xibamba, o mo-de- cabelo. Nos riachos e lagoas, a me-dgua. beira dos rios, o sapo-cururu. De noite, as almas penadas. Nunca faltavam: vinham lambuzar de mingau das almas o rosto dos meninos. Por isso menino nenhum devia deixar de lavar o rosto ou tomar banho logo de manh cedo. Outro grande perigo: andar o menino na rua fora de horas. Fantasmas vestidos de branco, que aumentavam de tamanho os cresce-mngua , eram muito capazes de aparecer aos atrevidos (Freyre, p. 383). Esses foram os medos que assombraram Freyre em sua infnciapernambucana e a todas as crianas nascidas no Brasil nos sculospr-luz eltrica transcorridos aps o incio do sculo XVI (1500,vinda dos primeiros portugueses; 1549, chegada dos primeiros es-cravizados africanos Bahia). As amas-de-leite, as pretas velhas, que trabalhavam nas casas-grandes, se encarregavam de contar as histrias africanas, principalmente de bichos bichos confraternizando com pessoas, falando com gente, casando-se, banqueteando-se, que se juntaram s histrias portuguesas, de Trancoso [Gonalo Fernandes Trancoso recolheu e registrou contos populares. o equivalente portugus aos irmos Grimm e a Perrault], contadas aos netinhos pelos avs coloniais quase todas histrias de madrastas, prncipes, gigantes, princesas, pequenos polegares, mouras-encantadas, mouras-tortas (Freyre, p. 386). Bem verdade que nem toda histria que circulava era favorvelao negro muitas delas cobertas de preconceito , mas as que de-monstravam esperteza animavam as senzalas e os quilombos, quando26 Coleo Percepes da Diferena - Negros e brancos na escola 27. Brincando e ouvindo histriaso mais fraco conseguia, a poder de inteligncia, dar a volta por cimae enganar os poderosos. Ao longo dos sculos essas histrias foram se espalhando e se adap-tando aos gostos do pas que se formava. Anonimamente, minha famlia e todas as outras, a sua tambm participava desse processo. Muitas histrias se fortaleceram ou foram criadas em torno do rioSo Francisco (contadas pelos barqueiros) e da rota dos tropeiros quetransitavam entre o Rio de Janeiro e Minas Gerais, passando peloVale do Paraba no tempo do ouro (sculo XVIII) e das plantaesde caf (sculo XIX). O contato com outras religies e culturas tambm ensejou contos.Fatos histricos criaram lendas e mitos que muitas vezes, at por issomesmo, foram esquecidos pelos livros de histria oficial. Chegaram atns pela fala das nossas avs a ancestralidade (afro)brasileira. TRABALHANDOCOM AS CRIANAS Fazer crianas e jovens (de qualquer idade) se sentarem em cr-culo importante para que se conheam e se inter-relacionem demaneira mais direta e natural. Todos podero ver todos os rostos eas expresses. A energia do grupo ficar concentrada num ponto deinteresse comum: aquele que fala pode ser o professor ou qualquerum dos coleguinhas. As histrias podem ser contadas usando recursos visuais cartazes,bonecos articulados (alguns podem ser feitos pelos prprios alunoscom a ajuda do professor). Quaisquer canes populares podem serutilizadas, como as cantigas de roda tradicionais. O importante que as crianas interajam entre si, cantando, batendo palmas. A ex-presso corporal ajuda para que a auto-estima seja trabalhada e asinibies sejam desfeitas. Todos esto no mesmo nvel de participao por isso o crculo Coleo Percepes da Diferena - Negros e brancos na escola27 28. Brincando e ouvindo histriasimportante, pois nele no h hierarquias , os da frente e os de trs;os mais aplicados e os do fundo da sala; os preferidos do professore os preteridos por ele... A todos deve ser dada a oportunidade de manifestao, se assim odesejarem. O incentivo deve ser feito, mas sem insistncias que colo-quem a criana em situao constrangedora. O gri fazia assim... Ser que existe um gri na sua casa? Pergunte para as crianas se elas conhecem histrias. Sempreh alguma que sabe. O homem-do-surro, popularmente conhecido como homem-do-saco, ainda muito respeitado e temido pelas crianas mesmo nascidades maiores. uma daquelas histrias que servem para disciplinaras crianas e garantir que no se afastem dos adultos responsveis porelas, nem saiam de casa fora de hora e sem permisso dos mais velhos.Essa quem contava era meu pai seu Paulo. OS BRUTOS FALAVAM... No tempo dos inocentes, quando os bichos brutos falavam, tambmcasavam as famlias que grande fortuna logravam. Morava um casal de bichos no reino de uma pedra: capito Mocda Cunha e dona Pre de Lacerda.Dona Pre de Lacerda tinha uma sobrinha em casa. Ela s via terraonde a sobrinha pisava. (...) Dona Pre respondeu como rainha: Capito, procure um moo pa-28 Coleo Percepes da Diferena - Negros e brancos na escola 29. Brincando e ouvindo histriasra casar nossa sobrinha. Capito lhe respondeu: Isto mesmo o quedesejo, mas aqui neste reino, este moo que no vejo. (...) Dona Ratinha de Fava era moa, tinha estado e namorava um Caititude olhinhos arregalados. Namorava este Caititu e j era em demasia,com vontade de casar, mas seus tios no queriam... (Dona Linda, lem-brando as palavras de dona Marinita.) Era, provavelmente naquele reino onde moravam os bichos que, umdia, receberam um convite para uma festa no cu. Muito conhecida emvrias verses, essa fbula explica como o sapo ficou inchado e chato em uma das verses e porque a tartaruga tem o casco remendado.Foi porque se esconderam na viola do urubu cantador dos bons que foianimar a festa no cu e foram arremessados do alto quando a trapaafoi descoberta. Somente os animais alados podiam ir festa...Coleo Percepes da Diferena - Negros e brancos na escola29 30. Brincando e ouvindo histrias O gavio e a raposa dessa lavra. A esperteza do macacodemonstra que os bichos no eram to brutos, tinham certa finezade raciocnio...O gavio e a raposa Eram tempos difceis naqueles campos. Havia seca e raramente seencontrava algo para comer. O gavio estava com muita fome e saiu procura de algo para colocar no estmago. Sobrevoava j havia tantotempo que comeou a se sentir desanimado, at que avistou um queijoenorme e se apressou para peg-lo. Levantou vo, mas o queijo, muitopesado, escapou de suas garras e caiu exatamente onde estava a rapo-sa, que tambm havia dias no comia nada. A raposa agradeceu aoscus, pois havia recebido, como ddiva, aquele enorme queijo... E jia com-lo quando o gavio o reclamou: Caiu do cu coisa nenhu-ma! Escapou das minhas garras, pois muito pesado. Armou-se umadiscusso, a raposa agarrada ao queijo, com medo de que o gavio opegasse e sasse voando; o gavio olhando de bem perto, esperandouma distrao para poder roub-lo. meu! No, meu! E assimdurante um tempo. At que se lembraram de um sbio macaco quemorava no fundo da mata. O macaco era um juiz muito procurado portodos quando havia contendas simples e graves. Mas como levar o queijo at l? Nenhum dos dois confiava no ou-tro. A raposa tinha medo de que o gavio pudesse levantar vo com oqueijo e props: Eu o carrego na boca, pois no posso voar, e voc, sequiser, pode montar nas minhas costas e ficar me vigiando para que euno possa correr. O gavio aceitou a proposta, e assim foram florestaadentro uma imagem estranha, da qual o macaco se admirou quandochegaram a sua residncia para que mediasse a contenda. Explicaes feitas, o juiz pediu que o escrivo guaxinim lhe buscasseuma faca, pois o pagamento pelos seus servios seriam dois pedaosde queijo, um para ele e outro para o escrivo. Meio contrariados, ga-vio e raposa aceitaram pagar a taxa. As duas enormes fatias foramimediatamente comidas pelo macaco e pelo guaxinim.30 Coleo Percepes da Diferena - Negros e brancos na escola 31. Brincando e ouvindo histrias Assim, de barriga cheia, o juiz decidiu resolver a contenda de umavez por todas e pediu ao escrivo que fosse buscar a balana da jus-tia. Quando o guaxinim voltou com uma balana de dois pratos e acolocou em cima da mesa, o macaco pegou a faca e cortou o queijorestante em dois pedaos e colocou cada um em um prato da balana.Disse: Quero que a raposa e o gavio recebam pedaos do mesmotamanho e piscou para o escrivo sem que os outros dois vissem. Sque um pedao ficou bem maior que o outro. Claro que os dois conten-dores reclamaram... O juiz disse que ia resolver e pediu que o escrivotirasse um pedao do maior para acert-lo com o menor e... o comeu.Mas o pedao que antes era maior ficou bem menor do que aquele que,antes, estava pequeno. Ento ele repetiu o procedimento anterior e,desta vez, quem comeu o pedao excedente foi o escrivo. Novamente,os pedaos ficaram diferentes, e o acerto continuou... Os dois contendores j passavam da desconfiana ao desespero, masestavam com medo de reclamar de um juiz to conceituado. At quea raposa no agentou mais e explodiu: Assim no vai sobrar nadapara ns!!! Os senhores esto comendo todo o meu queijo!. O gavioreclamou: O queijo meu e no seu!!!. O juiz: Acalmem-se, senho-res, ns j vamos resolver tudo. E continuou fazendo o acerto atque no sobrou nada do queijo. O escrivo, ento, limpou calmamentea balana e foi guard-la. O gavio e a raposa no conseguiam falar de tanta surpresa. Ogavio falou baixinho: E o nosso queijo?. E a raposa: , e onosso queijo?. Agora o queijo no era meu, era nosso. O juizse levantou e disse com pompa e circunstncia: Quem tem coisa depouco valor pessoalmente resolve a questo. Agora no h motivopara brigas. Vo em paz.Coleo Percepes da Diferena - Negros e brancos na escola31 32. Brincando e ouvindo histriasHISTRIAS DEQUILOMBOSMarinho H muitos e muitos anos, foi retirado das guas do rio Ribeiraum ser diferente, mgico, do povo dos negros dgua. Seu nome eraMarinho. De baixa estatura, ele no era ruim, mas muito nervoso.Os pescadores o retiraram alguns dizem que ele veio grudado narede de pesca e foi arrastado para fora e criaram-no ali mesmono povoado. Hoje, vrios quilombolas do Vale do Ribeira (sul doestado de So Paulo) se dizem descendentes dos negros dgua. Exis-te mesmo uma famlia Marinho que habita principalmente aquelasparagens (segundo crena local). Essa uma lenda muito interessante, pois aparece de vrias formas.O personagem assume diferentes imagens, dependendo do grupo quea conta. Nos quilombos do Vale do rio Ribeira, o Marinho o Negrodgua; na beira do rio So Francisco, designado como Caboclodgua, Moleque dgua... Ao que tudo indica, o Homem Marinho, como diz o nome, era ummonstro habitante da gua salgada vivia no mar. Nasceu no Nordeste,como afirma Freyre (ver citao acima), que viveu uma infncia prximaao mar e cercada de riachos em Recife. Com a migrao e a busca de novos horizontes matos, serras ecampos para explorao em busca de ouro, pedras preciosas, criaode gado e caa de marrus e gente aquilombada , os colonizadoreslevaram consigo as histrias e as lendas. Adaptaram os causos aosabor da regio, mergulharam as assombraes nas guas que iamencontrando pelo caminho. Assim, na beira do rio So Francisco (em toda sua extenso, de Ala-goas a Minas Gerais) vamos encontrar o Caboclo dgua. Ilza Portodiscorre sobre essa entidade a partir de pesquisas bibliogrficas e en-trevistas com ribeirinhos. So vrias as descries:32 Coleo Percepes da Diferena - Negros e brancos na escola 33. Brincando e ouvindo histrias Caboclo dgua, Negro dgua ou Moleque dgua vive, conforme crendice popular, nas profundezas do S. Francisco e s aparece nas noites escuras para fazer diabruras e maldades (Edilberto Trigueiro, O folclore do S. Francisco, apud Porto, p. 128). De todas as entidades mticas do rio So Francisco, a mais popular delas, sem dvida, o Caboclo dgua, baixo, bela musculatura e pele bronzeada. O Caboclo dgua bem-humorado, mas s vezes faz das suas, provocando prejuzos e at mortes. Bem tratado, presenteado de vez em quando com fumo para mascar, o Caboclo se torna benfazejo, ajuda nas pescarias, evita que o rio entre nos roados etc. Maltratado ou com indiferena, torna-se perigoso. (Wilson Lins, O mdio S. Francisco, apud Porto, p. 136)No cancioneiro popular tambm o encontramos, citado por LuizGonzaga, cantor e compositor dos costumes da regio Nordeste, que, naletra de Amanh eu vou, conta a histria de Rosabela, linda donzelae do Caboclo dgua [que a] levou para o fundo da lagoa: Era uma certa vez Um lago mal-assombrado noite sempre se ouvia a carimbanda Cantando assim: Amanh eu vou, amanh eu vou Amanh eu vou, amanh eu vou Amanh eu vou, amanh eu vou Amanh eu vou, amanh eu vou A carimbanda, ave da noite Cantava triste l na taboa Amanh eu vou, amanh eu vou E Rosabela, linda donzela Ouviu seu canto e foi pra lagoa E Rosabela, linda donzela Ouviu seu canto e foi pra lagoa A taboa laou a donzelaColeo Percepes da Diferena - Negros e brancos na escola33 34. Brincando e ouvindo histrias Caboclo dgua ela levou A carimbanda vive cantando Mas Rosabela nunca mais voltou Amanh eu vou, amanh eu vou Amanh eu vou, amanh eu vou Amanh eu vou, amanh eu vou Amanh eu vou, amanh eu vou.Seguindo o curso das nascentes, desembocando em afluentes, a lendachegou ao Sudeste no se sabe como nem quando. Talvez nos navios que,nos sculos XVI e XVII, atracavam no porto de Iguape para abastecerde escravos as minas de ouro ou as plantaes de arroz da regio de Xi-ririca (atual Eldorado); talvez atravs do trfico interno de escravos quese estabeleceu, entre os sculos XVIII e XIX aps a decadncia dasusinas de acar nordestinas os negros tiveram de ser transferidos parao Sudeste das minas ou do caf. Os bandeirantes em suas idas e vindas,atravs da nica via expressa da poca os rios, como o paulista Tiet, tambm aprenderam e contaram muito, reproduziram e aumentaraminmeros pontos aos contos que ouviram. No sculo XX o Marinho saiu das guas do rio Ribeira de Iguapee passou a habitar o mundo mortal. Dizem que por causa de umaquilombola me ancestral da famlia Marinho que vive hoje noquilombo Pedro Cubas: s vezes a gente da terra captura gente da gua, com redes, tarrafas, laos e cordas. Tambm comum o Negro dgua levar as mulheres da terra para o seu mundo. H casos de homens e de uma mulher da gua que foram capturados pela gente da terra. Quando isso ocorre, s vezes juntam-se comunidade: casam, constituem famlia e se tornam, com o passar das geraes, parentes de todos (RTC/RCQ Pedro Cubas de Cima). Essa histria se repete em vrios outros bairros negros quilom-bos da mesma regio.34 Coleo Percepes da Diferena - Negros e brancos na escola 35. Brincando e ouvindo histrias Quando ele pego fica nervoso, tenta fugir, se agita muito. Mas com o tempo as pessoas amansam ele com comida de sal, cozida, garrafas de cachaa. Ele se acostuma... Quem que no se acostuma com o melhor? Ser bem tratado? Ele acaba gostando e ficando. Entra para a famlia. (Depoimento ouvido pela autora de uma quilombola do Vale do Ribeira, no ano de 2005) A origem correta do Marinho ningum sabe, mas este mito trazem si significados internos s comunidades seno j teria sidoesquecido. Ele confere identidade, demonstra o pertencimento doindivduo sociedade e vice-versa. As mitologias so narrativas (...), contam a origem do mundo, a origem do homem, seu estatuto e seu destino na natureza, suas relaes com os deuses e com os espritos. Mas os mitos no falam somente da cosmognese nem somente da passagem da natureza cultura, mas tambm de tudo o que diz respeito identidade, ao passado, ao futuro, ao possvel, ao impossvel, e de tudo o que suscita a interrogao, a curiosidade, a necessidade, a aspirao. Transformam a histria de uma comunidade, cidade, povo; tornam-na lendria e, geralmente, tendem a duplicar tudo o que acontece no mundo real e no mundo imaginrio para lig-los e projet-los no mundo mitolgico. (Morin 2, p. 175) um conjunto simblico, imaginrio e eventualmente real. Quemno pertence ao meio talvez demore a entender, mas o significadode passar do mundo mtico para o real a trajetria do Marinho,um ser encantado, talvez impossibilitado de maiores esperanas eassumir a vida real e as venturas e desventuras de ser simplesmentenormal, um mortal, exprime a prpria trajetria do escravizadoque, ao deixar o cativeiro, assume uma vida em que ele prpriopode decidir o seu destino. Antes de o Marinho sair das guas do rio, ou antes de os escravi-Coleo Percepes da Diferena - Negros e brancos na escola35 36. Brincando e ouvindo histriaszados fugirem das senzalas, o que havia de importante no mundo?No Brasil? No Novo Mundo? Numa trajetria inversa, do real para o quase mtico, temos nafigura de Zumbi e da terra de Palmares. Entre os atuais estados deAlagoas e Pernambuco, na Serra da Barriga, floresceu entre os anosde 1630 e 1695 um quilombo cercado de palmeiras. Palmares erauma verdadeira nao, possua vrias pequenas cidades com seusrespectivos lderes, organizadas sob um governo central formadopor um conselho cujo lder, em 1695, era Zumbi. Era uma comunidade prspera onde se praticava a agricultura cole-tiva (milho, mandioca, feijo, batata-doce, cana-de-acar e banana).Conheciam a metalurgia, fabricavam utenslios para a agricultura e aguerra, trabalhavam a madeira e a cermica. Usavam a palmeira pindoba smbolo da regio e origem do nome do quilombo na fabricao deleo para iluminao e cozimento, bebida para as festas, cobertura paraas casas, tecelagem de cestos e cordas, entre outras utilidades. Palmares realizava comrcio com vilas e engenhos da regio, masse tornou indesejado quando grande quantidade de escravos comeoua fugir das fazendas para serem livres em suas terras. De 20 mil a 30mil pessoas moravam no quilombo que chegou ao auge durante o do-mnio holands, entre 1630 e 1654. Aps esse perodo, os portugue-ses que retomaram o controle dos engenhos da regio resolveramacabar com Palmares.Foram enviadas vrias expedies. A ltima, comandada por Do-mingos Jorge Velho, bandeirante paulista, conseguiu destruir Palmares,e a partir de ento as histrias se sobrepem Histria: Zumbi teriafugido com um grupo de amigos e organizado uma resistncia guer-rilheira durante muito tempo; ou teria sido morto durante a batalha,no dia 20 de novembro; ou, ainda, para no ser pego com vida, teriasaltado de um despenhadeiro para a morte certa, que ningum nuncaconfirmou. No acharam o corpo. O certo que:(...) at hoje, os moradores de Unio dos36 Coleo Percepes da Diferena - Negros e brancos na escola 37. Brincando e ouvindo histrias Palmares ouvem (atravs da acstica do passado mtico), nas noites silenciosas, a dana dos negros que a partir de 1630 ocuparam a Serra da Barriga. E, atualmente, ainda cantam, naquela regio, o Auto dos Quilombos: Folga negro Branco no vem c Se vier pau h de levar... Folga negro Branco no vem c Se vier O diabo h de levar (Moura, 1989). Os que no fugiam tentavam reconstruir a vida da maneira que po-diam. So vrias as histrias de ex-escravizados que conseguiram abrirseus caminhos entre as leis organizadas pelos donos do poder. ChicoRei e Chica da Silva, ambos da regio das Minas Gerais, so exemplos.Permaneceram nas senzalas e, de l, retomaram a vida e conquistaramdireitos que s eram permitidos aos bem-nascidos. Ambos so do s-culo XVIII, perodo ureo da minerao no Brasil. Ele, de Vila Rica,atual Ouro Preto. Ela, de Diamantina, que, naquele tempo, se chamavaArraial do Tijuco. Rei na frica, Francisco recebeu este nome depois de batizado noBrasil. importante que crianas e jovens saibam que a frica um con-tinente, e no um pas como muitos ainda hoje pensam possua vriasnaes organizadas, com sistemas prprios de governo, hierarquias, reis,rainhas, prncipes e princesas, cavaleiros e sacerdotes, camadas sociaisvariadas. A idia de que tribos desorganizadas habitavam a regio recorrente e contribui para o desrespeito e o preconceito dispensados sua histria e de seus descendentes. necessrio que se informe queno era s na Europa que havia pompa e circunstncia. Chico foi preso com toda a famlia real, que morreu durante a traves-sia, com exceo de seu filho, que o acompanhou na lida da minerao.Coleo Percepes da Diferena - Negros e brancos na escola37 38. Brincando e ouvindo histriasCom muito trabalho, conseguiu juntar dinheiro e comprar a liberdadedo filho, que, tambm trabalhando e economizando, conseguiu libertarChico em pouco tempo. Assim, os dois se uniram com o propsito deresgatar as pessoas de sua antiga comunidade africana e outras que tra-balhavam na regio. Conseguiram, assim, a libertao de grande nmerode escravos de Vila Rica, os quais passaram a reunir-se numa espciede colnia. Com recursos prprios, compraram a riqussima mina daEncardideira, ou do Palcio Velho, e continuaram a aumentar a cortecomprando e libertando outros cativos. O Rei do Povo fundou uma ir-mandade e construiu uma igreja em homenagem a Santa Ifignia, santanegra, chamada de mrtir ou virgem da Etipia. Vrias irmandades foramorganizadas no Brasil em homenagem santa, nas quais era costumea existncia de uma caixa social destinada ao resgate e assistncia dosescravos associados. Todos os anos, no dia 6 de janeiro, o rei e os prncipes, vestidos em trajes opulentos e com suas insgnias, eram conduzidos em procisso solene Igreja do Rosrio, onde assistiam a missa cantada. Depois percorriam as ruas de Vila Rica e, ao som de instrumentos africanos, executavam danas caractersticas com grande acompanhamento do povo. A imagem de Santa Ifignia ficava num lugar denominado Alto da Cruz. As negras, que compunham a guarda de honra da rainha, costumavam empoar os cabelos com ouro em p da mina do Palcio Velho. Ao regressar a procisso igreja, lavavam a cabea na pia do templo, deixando ali ficar depositado o ouro. Era seu donativo caixa da confraria. (Moura, Dicionrio, verbete Chico Rei) Chico Rei lembrando como o primeiro heri abolicionista, masClvis Moura lembra que no existem comprovaes documentais dasua real existncia. O contrrio ocorre com Chica da Silva, ex-escravaque foi, realmente, mulher do contratador de diamantes Joo Fernandesde Oliveira, que a comprou e libertou do cativeiro, juntamente com seusdois lhos. Com o dalgo, Chica teve outros 12 lhos, os quais mandouestudar na Europa. Dominou a regio do Tijuco, trajava-se com luxo, era38 Coleo Percepes da Diferena - Negros e brancos na escola 39. Brincando e ouvindo histriasacompanhada por numerosos empregados, homens e mulheres, vestidoscom muito apuro e cobertos de jias e brilhantes. Na igreja, o melhorlugar lhe era reservado. Quaisquer favores que pretendessem do contra-tador, era a ela que pediam. Ele no lhe recusava nada, nem o caprichode viajar de navio sem sair do Arraial do Tijuco. Mandou-lhe construirde presente uma caravela e um mar articial. Quando ele voltou para aEuropa, intimado pelo rei de Portugal, ela permaneceu no Brasil, rica eainda muito respeitada. As pessoas a chamavam de Chica-que-manda. Quem no fugiu nem nasceu virado para a lua (a maioria) tevede encarar a sina na senzala, agentou na casa-grande para que outrospudessem ganhar o mundo, a liberdade! Acobertou a fuga do irmo,do filho; aguardou ladinamente a Abolio; acostumou-se a caminharna senda dos patres; cozinhou, lavou, passou; aprendeu a falar, adisfarar a reza africana com a orao crioula, a baixar a cabea como ouvido atento; trabalhou com a lei e fumou o cachimbo da paz comgrupos abolicionistas; festejou a Lei urea em praa pblica; lutoupara estudar, para fazer concursos pblicos, para ir s universidadese para se manter l. Trabalho de equilbrio. Talvez mais prximo dosaci-perer. E por falar nele...SACI-PERER Existem vrias histrias de saci. Hoje ele est em vrias publicaesimpressas, na internet, na televiso, nas bocas de todas as cores... Dizemque quem conta uma histria de saci est tambm criando um sacizinhonovo. No monoplio de ningum, e todo brasileiro tem uma sua co-nhecida que guarda para contar em ocasies especiais. Saci no tem idade nem poca, mas ganhou notoriedade no Vale doParaba, interior paulista, perto da Rota dos Tropeiros que abasteciamas Minas Gerais no tempo do garimpo (sculo XVIII) e as fazendas dovale na poca das plantaes de caf (sculo XIX), local de encontro demuitas culturas, onde a convivncia entre indgenas, europeus e africa-nos foi muito intensa, e a mistura delas tambm. Cidades como Bananale So Lus do Paraitinga (esta autodenominada Terra do Saci) atraemturistas com a manuteno e a propagao dessas crenas.Coleo Percepes da Diferena - Negros e brancos na escola39 40. Brincando e ouvindo histrias Dizem que as amas-de-leite assustavam as crianas com a histriade um pequeno ente das florestas, preto retinto, que fumava cachimbo,pulava numa perninha s e fazia muitas pequenas travessuras, mais tra-quinagens que maldades, para se divertir com os incautos. A palavra,segundo alguns estudiosos, de origem indgena, mas a imagem umnegrinho de uma perna s remete frica... L no continente de nossos ancestrais mais precisamente na Nigria,perto da fronteira com o antigo Daom se ouve a histria de um orixano, com as mesmas caractersticas do nosso perer. Seu nome Aroni,e ele serve a um senhor chamado Ossaim, responsvel pelas florestas eguardio das ervas necessrias ao ritual dos orixs do candombl cadaum deles tem seu rito ligado a uma folha diferente. Aroni encarregado de assustar quem entra nas matas sem per-misso, assim permite que seu mestre trabalhe em paz na organizaodas plantas. Tambm fuma cachimbo e perneta, mas possui outraspeculiaridades: tem um olho grande, mas v com o menor; s ouvecom a orelha pequena; e o motivo de possuir apenas uma perna liga-seao fato de que representa a rvore de todas as folhas, que se sustentaapenas com um tronco. Mas voltemos ao nosso saci, que , com certeza, primo distantedo Aroni... Essa histria eu ouvi h muito tempo. Hoje faz parte do meu reper-trio aquele que uso com meus alunos de vrias idades: Havia, numa fazenda brasileira, nos tempos da escravido, umjovem negro forte e destemido. Ele cultivava a arte da capoeira. Sabialutar muito bem e, um dia, conseguiu fugir para um quilombo. Elepassou a ajudar todos os irmos e amigos da senzala que sofriaminjustias. Quando o feitor ia maltratar algum, ele ajudava o queia apanhar a fugir para o mato e encontrar um lugar que o abri-gasse. Ningum, por mais que fizesse, conseguia prend-lo. Um dia,resolveram fazer uma armadilha e pegar o negrinho encrenqueiro.Atraram-no, atiraram, mas no o mataram. Como castigo, cortaramuma de suas pernas e o deixaram na entrada da mata para morrer40 Coleo Percepes da Diferena - Negros e brancos na escola 41. Brincando e ouvindo histriasaos poucos e servir de exemplo para todos aqueles que pensassemque poderiam lutar para conseguir a liberdade. Quando voltaram, no dia seguinte, para conferir o estrago, sesurpreenderam porque no havia mais corpo nenhum. Tinha desapa-recido misteriosamente, sem deixar vestgios. Nessa mesma poca, comearam a acontecer coisas estranhas.Os mais velhos contam: quando algum entrava na mata para ten-tar encontrar e destruir um quilombo acabava se perdendo, ficavadesorientado com os assobios que ouvia misteriosamente, se perdiados colegas, vagava dias pela mata. O mesmo acontecia com quemqueria destruir a natureza... Muitos, na boquinha da noite, chegaram a ver um negro de umaperna s, na entrada da mata, vestido de vermelho e chapu da mesmacor, rindo muito quando assustava algum ou salvava um habitante dafloresta, fumando seu cachimbo, sumindo na escurido que anoitecia. Um lutador, heri do povo, assassinado, mas no morre realmente,retorna da ptria dos ancestrais para continuar auxiliando a luta pelaliberdade. Com o tempo vai caindo no gosto popular e se torna umacriana-fantasma, arteira, que aparece num p-de-vento, suja as roupaslimpas ainda no varal, faz o leite azedar e a pipoca queimar, assusta oscavaleiros pedindo fumo para o cachimbo e espanta os cavalos tranan-do-lhes as crinas. Depois, vira piada e motivo de riso ao ser identificadocom aquele menininho negro retinto que estuda na sala do canto e sesenta na ltima cadeira da fileira do lado direito... Inmeras crianas e jovens ainda sofrem com a brincadeira e asinsinuaes em vrios pontos do pas. Est na hora de reorganizar estahistria. Reapropriarmo-nos dela de maneira mais positiva, aproveitandoa data de 31 de outubro, o Dia do Saci, instaurado por lei desde 2005no estado e no municpio de So Paulo. O saci, hoje, pode ser visto como o jovem negro e portador denecessidades especiais que luta por sua insero social em escolasColeo Percepes da Diferena - Negros e brancos na escola41 42. Brincando e ouvindo histriase estabelecimentos pblicos. Direito que a lei lhe assegura, mas quea sociedade lhe nega. Sua diferena no o impede de trabalhar, deacreditar e de ir em frente.Eu conheci um saci, certa vez... Estava indo para o Vale do Paraba visitar uma tia que mora na cida-de de Taubat a tia Thereza. Trabalhei o dia inteiro e acabei pegan-do o ltimo nibus que saiu da rodoviria. Estava at meio cochilandoquando, de repente, o nibus deu uma freada brusca e todos que esta-vam sem o cinto de segurana (quase todo mundo) foram deslocadospara frente e bateram a testa no banco (por isso muito importanteno se esquecer nunca de usar o cinto de segurana, no carro ou nonibus de viagem, e no nibus comum de segurar muito bem). Feliz-mente ningum se machucou, mas o susto foi grande. O motorista nosoube dizer o que aconteceu, mas quando eu olhei pela janela, vi umnegrinho pequenininho, do tamanho de uma criana de 5 anos, pulandopara o acostamento e sumindo na beira da Dutra. Ele olhou para mime os seus olhinhos brilhavam quando se virou para a luz. Ele tinha umatouquinha... Isso mesmo, era vermelha. Como havia trabalhado o diainteiro e j estava um pouco tarde, pensei que estava imaginando coisaspor causa do sono. Voltei a dormir. Dessa vez, coloquei o cinto. No dia seguinte, estava voltando do Memorial do Mazzaropi ficanuma fazenda que foi do prprio quando ouvi um assobio. Vinha deum taquaral prximo, uma verdadeira floresta de bambus, coisa rarade ver em So Paulo. Fui me aproximando e espiei para ver o quehavia do outro lado. Vi um monte de gomos de taquara furadinhos euma verdadeira festa de sacis! Estavam comemorando porque aca-baram de nascer sacizinhos novos. Gente! Mas era uma coisa de louco: tinha saci grande e saci peque-no; saci menino e saci menina; saci vov e saci vov alguns usavamculos. Havia os de pele bem escura e outros com a pele mais clarinha;havia os de olhos puxadinhos, redondinhos; uns magros e outros gordi-nhos, bem rechonchudinhos. Uns tinham cabelo curto, outros estavamde dreadlocks; havia os de cabea rapada e outros tipos de penteado.42 Coleo Percepes da Diferena - Negros e brancos na escola 43. Brincando e ouvindo histriasOs sacis mames amamentavam os recm-nascidos, os sacis papais es-tavam bem atentos para no deixar nenhum enxerido bisbilhotar atravsdo bambuzal. Eu fui saindo, p ante p j eram horas! , quando meperguntaram aonde eu ia. Voltei-me, j querendo correr, e vi na minhafrente um saci sorridente. Como no me ocorreu nada o que dizer: Boa tarde! Me espantei com a diversidade... Ele me falou que antigamente s havia sacis de um jeito nico: meioindgenas, mais puxados para o negro, pois nasciam no meio da mata,perto das comunidades quilombolas e tupiniquins. Mas, com o tempo pas-sando, cada vez mais foi chegando gente do mundo todo, trazendo suasculturas e crenas, medos e preocupaes, alegrias e frustraes, cinciase carncias, suas assombraes que abraaram fantasmas de outros ,gente que foi misturando felicidades e sucedendo o de costume... Afinal, por que o espanto!? Isso aqui Brasil!!! T bom. T bom demais. No quer ficar para o resto da festana? Vai terdana depois do concurso de assobios. Hoje no tem mais cavaleirospara acender nosso pito, e os cavalos para tranar so muito raros.Ningum consegue queimar pipoca de microondas, e as crianas noacreditam mais na gente. Principalmente depois dessa coisa de HarryPotter. Ningum mais quer saber de duende nacional... Posso ajudar de alguma forma? Pode. Todos os anos, a partir de hoje, lembre a todos que os ta-quarais esto maduros e estalando sob o sol quente, bem pertinho doareal... assim que nascemos, uma vez por ano. Desculpando-me por no poder ficar para a moda de viola, quecomearia quando a lua surgisse, sa rapidinho deixando o meu ami-guinho sorrindo e dando um tchauzinho. Era 31 de outubro.Coleo Percepes da Diferena - Negros e brancos na escola43 44. Brincando e ouvindo histrias Algumas histrias nasceram como a do saci o heri do cativeiroque continua, apesar da morte fsica, auxiliando seu povo mas foramvisivelmente marcadas pelas culturas encontradas na terra nova. o casoda lenda do Negrinho do Pastoreio (sul do pas), bastante marcada pelocatolicismo religio adotada por grande parte dos afro-descendentes aquiinstalados desde o perodo colonial. Essa no vou contar, pois a histriado jovem escravizado, alhado de Nossa Senhora, sucientemente co-nhecida. Mas me lembro agora de outro personagem de quem minha avsempre se lembrava. A Me de Jesus tambm era sua madrinha.SO BENEDITO So Benedito era cozinheiro. Todos os dias ele pegava comida na des-pensa, escondido dos patres/outros frades, e levava para a senzala... Dona Marinita costumava dizer levava para os pretos, numaaluso ao perodo de escravido brasileira. Sabe-se, porm, que SoBenedito no viveu no Brasil e, segundo Clvis Moura em seu Dicio-nrio, provavelmente nem tenha existido, pois no h registros de suavida, residncia e canonizao. Bem, vamos histria: O pessoal j estava ficando desconfiado... Ele escondia comida nasmangas do hbito, que eram bastante largas para isso. Um dia, um dosfrades o abordou e perguntou: Benedito, o que voc tem a nas mangas? Elas parecem tocheinhas... So flores para enfeitar o altar de Nossa Senhora. Ento deixa eu ver! Ele abriu as mangas e sacudiu... Ento caram muitas flores, de todosos tipos e cores. Esse foi o primeiro milagre de So Benedito. A religiosidade original africana era proibida. Com isso, os proprie-44 Coleo Percepes da Diferena - Negros e brancos na escola 45. Brincando e ouvindo histriastrios evitavam o reconhecimento dos grupos tnico-culturais entre sie, assim, a manifestao de solidariedade o que poderia causar umincio de rebelio em massa. Mas os batuques festivos eram tolerados, apesar da averso causadae da possvel represlia senhorial ou policial. Depois de uma semana detrabalhos exaustivos, uma vlvula de escape era necessria e tambmfuncionava como medida de segurana. Dessa forma, os negros escravizados passaram a disfarar suasmanifestaes religiosas com os batuques festivos, organizados emroda de canto e dana, ou organizaram ritos em torno de santos cat-licos que mais se identificassem com seus interesses e necessidades,marcados pela cor ou proximidade de crena.Coleo Percepes da Diferena - Negros e brancos na escola45 46. Brincando e ouvindo histrias So Benedito era um deles, possua pele escura como Santa Ifigniae Nossa Senhora Aparecida at hoje denominada padroeira do Brasil.Irmandades religiosas (ver outro volume desta coleo) foram organi-zadas em nome desses santos. Todavia, a santa de maior devoo dos negros, padroeira de inmerasirmandades que surgiram a partir do sculo XVII, foi Nossa Senhorado Rosrio, que era branca. Em Ouro Preto, qualquer circunstante in-forma o motivo: Ela madrinha de So Benedito, aquele santo pretinho que estsegurando uma abobrinha. Abobrinha? porque ele era cozinheiro. Ah! J ouvi falar... (Depoimento colhido em visita a Ouro Pre-toMG, em agosto de 2005) Uma interessante aproximao entre crenas, cultos e imagens podeser observada no culto a So Cosme e So Damio, que disfarava oculto a Ibeji, os irmos gmeos que representavam a fecundidade.Ibeji so orixs protetores das crianas. Sosincretizados com So Cosme e So Damio, porqueso gmeos. Todos os anos h uma festa a eles dedicadapara pagamento de promessas. Sua comida o amal, ocaruru-de-baba e bombons, alm da galinha de xinxim,farofa de dend, arroz branco, vatap, banana frita,rolete de cana, feijo-preto, feijo-fradinho, aca,abar, acaraj, bolo, doce, acrescentando-se ainda asurpresa ao final. Alm das crianas, protegem todasas mulheres que esto para parir. Quase nunca semanifestam nos candombls. Ibeji representado poruma pena metlica. O seu dia predileto o domingo.(Moura, Dicionrio, verbete Ibeji)46 Coleo Percepes da Diferena - Negros e brancos na escola 47. Brincando e ouvindo histrias At hoje possvel observar, em bairros da cidade de So Paulo e deoutras pelo Brasil afora periferia ou classe mdia , a devoo pelodia 26 de setembro. Festinhas em casas de famlia ou sales alugadosou, ainda, distribuio de doces para as crianas nas ruas e esquinas. Se perguntar em sala de aula, provavelmente no haver criana queno j tenha participado de uma dessas reunies. interessante notarque, de to arraigado, o costume no apresenta mais questionamentos seera costume de negros ou escravizados. Muitas escolinhas fazem essasfestinhas para suas crianas sem cogitarem a sua origem no Brasil e seudesenvolvimento entre as comunidades oprimidas. Parece uma prticasupra-religiosa: quem tem criana no a probe de participar dessa ma-nifestao. Como o dia dos mortos, no Mxico (2 de novembro), oumesmo o dia das bruxas, nos EUA (31 de outubro). SUPERPODEROSAS A palavra fora. Falar transmite energia e torna o ouvinte poderoso,ou infortunado, dependendo do teor das frases. O gri quando conta uma histria proporciona conana ao jovem, dizele que nada impossvel quando se acredita e d exemplos de vitria. Todos possuem, em si, uma fora que conduz a vida. Essa energiaest distribuda entre todos na natureza, pessoas, animais, plantas, coi-sas, em quantidades que podem ser potencializadas e at aumentadasem cada um. Isso determina as habilidades dos seres: alguns so maisinteligentes, outros, mais fortes fisicamente. Em alguns a inteligncia rpida, instantnea so os chamados espertos, como o macaco ,noutros ainda a inteligncia se manifesta de maneira mais analtica,precisa de tempo para calcular a melhor forma de agir em determinadascircunstncias como o elefante. A fora, muitas vezes, como a dotigre, veloz e destruidora se no canalizada para o benefcio da comu-nidade, ou como a do boi, paciente e cooperativo. O papel do educador, em sala de aula, observar cada um dos alu-Coleo Percepes da Diferena - Negros e brancos na escola47 48. Brincando e ouvindo histriasnos, detectar suas habilidades e trabalhar para que se tornem teis paraa comunidade escolar e produtivos para a sociedade, estimulando-os aserem felizes consigo mesmos e em seu ambiente familiar. Os gris sabem observar isso, suas palavras so sbias na valorizaode cada um desses aspectos e da sua utilidade social. As mulheres contam histrias e os homens tambm. Os homens lutamna guerra e as mulheres tambm. Ambos educam, tm responsabilidadessociais e buscam a felicidade. comum nos contos e lendas e mesmo na Histria oficial encontrarmulheres em posies subalternas e, muitas vezes, do lado antagnicoao bem. So bruxas, malvadas, feias, deselegantes, ou submissas,boazinhas e doces at o limite da pacincia de quem ouve a histria.So meras figuras decorativas para a ao do homem um prncipe,um cavaleiro, um guerreiro... Muitas dessas mulheres so tambm negras, como a moura-torta,histria contada por toda a Pennsula Ibrica que chegou at ns comos portugueses. Aqui no Brasil, a mula-sem-cabea um exemplo. Uma mulher quenamorava um padre recebeu um castigo: se transformou num monstroque meia-noite das quintas-feiras de lua cheia corre uivando pelascercanias, assustando incautos e soltando fogo pelas ventas. Nuncaentendi: se ela no tem cabea, como pode ter ventas (nariz)? Minhaav nunca explicou, nem minha me, que at hoje ri da situao: nestaidade eu ainda me preocupo com isso...Se palavra cria realidades, ento assim se determinam a imagem demulher e suas aes, permitidas e no permitidas, na sociedade. Em homenagem s avs e s tias, que muitas vezes seguraram abarra da famlia nesse caminho de mais de 500 anos, vou terminar estevolume contando a histria de duas guerreiras, talvez parentes daquelasenhorinha do incio desta trajetria: Aqualtune (av quase esquecidade Zumbi dos Palmares) e Rainha Jinga (soberana de Angola).48 Coleo Percepes da Diferena - Negros e brancos na escola 49. Brincando e ouvindo histrias Aqualtune, rainha dos Palmares, quase s lembrada por seu no-me ter batizado uma das cidadelas da nao palmarina. Pesquisandomais, observa-se que essas unidades recebiam o nome de seus chefes,guerreiros que as defendiam. Ento, ela era uma lder quilombola im-portante, no? Isso mesmo. Aqualtune era uma princesa africana, filha do rei do Congo. No finaldo sculo XVI sua nao foi invadida pelos jagas (grupo de mercenriosa soldo de traficantes de escravos que lhes compravam as mercadorias).Ela foi para a frente de batalha, comandando 10 mil homens e mulherespara defender seu povo, sua cultura e seu futuro.Derrotada e presa, foi levada para um mercado de escravos e, de l,foi embarcada em um tumbeiro que fez a travessia at o Brasil. Chegouao Recife em 1597, mesmo ano em que um grupo de 40 negros fugidosse embrenhou no mato e chegou Serra da Barriga, formando o primeironcleo do que seria o quilombo de Palmares. A princesa, forte e bonita,foi vendida como reprodutora e seguiu, j grvida, para uma fazenda naregio de Porto Calvo. L, ela ouviu histrias sobre o reduto de africa-nos livres e resolveu se arriscar, mesmo de barriga (como diria donaMarinita), e comandou uma fuga que alcanou o quilombo.Ajudou a erguer, no local, o que seria um imprio em meio selva.Recebeu uma aldeia para comandar no apenas porque tinha ascendn-cia nobre, mas porque conhecia a arte da guerra e da estratgia. Foi econtinuou sendo uma grande lder. Deu luz filhos guerreiros, GangaZumba e Gana Zona, e uma de suas filhas, Sabina, foi me de Zumbi,ltimo lder do reduto palmarino. A av de Zumbi desapareceu dos registros histricos em 21 de se-tembro de 1677, quando sua cidadela foi atacada. quela altura j estavaidosa, mas no se sabe a data de sua morte. Informa Clvis Moura: No dia 21 de setembro de 1677 partiu Ferno Carrilho da vila de Porto Calvo para combater Palmares (...). A primeira investida foi sobre a cerca de Aqualtune, me do rei Ganga Zumba, distante trinta lguas do pontoColeo Percepes da Diferena - Negros e brancos na escola49 50. Brincando e ouvindo histrias inicial da marcha. Imediatamente atacaram a cerca, tendo morrido muitos negros e surpreendido 9 ou 10, no encontrando, porm, a me do rei que conseguiu evadir-se (MOURA, op. cit., p. 120).Vizinha do reino do pai de Aqualtune vivia Nzinga Mbandi Ngola, filhado rei de Matamba e Angola. Nasceu em 1581, quando seus conterrneosj estavam sendo levados como prisioneiros pelos portugueses. Essa guerreira passou para a Histria como a Rainha Jinga. Subiu aotrono em 1622, quando o trfico de seres humanos j era um negciorentvel o suficiente para que Portugal no quisesse se desfazer dele. Jinga declarou que bastava de escravido para seu povo e chegou aexigir que os seus fossem repatriados. claro que, para os que viviamdo trfico, isso era um absurdo. A rainha, de incio, tentou negociar atravs da diplomacia: en-viou mensageiros e foi ela mesma conversar com os prepostos dorei de Portugal que haviam se instalado em Luanda (hoje capital deAngola). Chegou mesmo a, num gesto de boa vontade, se converterao catolicismo e deixar-se batizar com o nome de Ana Sousa, so-brenome do seu padrinho Joo Correia de Sousa, governador deLuanda. Mas nada disso adiantou... J aos 40 anos, declarou guerra aos opressores e no se limitou a darordens a distncia, como rainha. Foi para a frente de batalha. Grandeestrategista, seu poderio foi aumentando gradativamente, medida queo povo percebia que, em seu territrio, obteria proteo e possibilidadesde lutar pela manuteno da liberdade. Jinga conhecia seu territrio, lutava noite usando tticas de guerri-lha; seu exrcito era numeroso e disposto a conquistar a independncia.Comandou pessoalmente seu exrcito at a idade de 62 anos e faleceu, joctogenria, no sem antes garantir a continuidade da dinastia casandosua irm, a princesa Brbara, com um de seus generais. Nzinga Mbandi Ngola nunca foi capturada e fez inmeras alianas50 Coleo Percepes da Diferena - Negros e brancos na escola 51. Brincando e ouvindo histriaspara favorecer a luta (com o rei do Congo, com os holandeses e at comchefes jagas que acabaram abandonando-a em favor dos portugueses,que lhes ofereceram mais vantagens).Durante muito tempo acreditou-se que era apenas uma figura mtica,porm vrios relatos e documentos da poca inclusive o de um adi-do militar holands que conviveu com suas tropas do conta de suavalentia e generosidade: nunca feriu um portugus depois de rendido etratava seus soldados de igual para igual. O povo a adorava e, alguns,chegavam a beijar o cho quando ela passava. Vestia-se com peles deanimais, ia frente dos exrcitos, manejava bem o arco e a flecha etrazia pendurado cintura o smbolo de seu poder, o machado.Alm disso tudo, cartas, textos diplomticos, anncios organizadosno museu de Luanda atestam sua existncia histrica. Aprendera aler e a escrever com missionrios italianos por quem foi educada desdepequena. Contam os historiadores populares da regio que possvel,ainda, ver uma pegada sua nas altas montanhas da Matamba...Coleo Percepes da Diferena - Negros e brancos na escola51 52. Brincando e ouvindo histrias A luta do povo negro contra a escravido e a desarticulao de suacultura, ao contrrio do que muitos acreditam e alguns livros didticosainda informam, foi constante e bastante articulada. Aconteceu dos doislados do Atlntico. Os quilombos deste lado so contemporneos aosacampamentos de guerra do lado africano. A luta de Jinga contempornea luta da famlia de Aqualtune,que recebeu tambm o reforo da guerreira Dandara quando estaentrou para o cl ao casar-se com Zumbi. Exmia capoeirista e estra-tegista de primeira, deu trs bisnetos a Aqualtune e tombou lutandodias antes do 20 de novembro.52 Coleo Percepes da Diferena - Negros e brancos na escola 53. Brincando e ouvindo histriasReferncias bibliogrcasCASHMORE, Ellis; BANTON, Michael et al. Dicionrio de relaestnicas e raciais. Trad. D. Kleve. So Paulo: Summus/Selo Negro, 2000. FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. Rio de Janeiro:Record, 2002.GUIMARES, Maria Flora. O conto popular. In: BRANDO,Helena Nagamine. Gneros do discurso na escola: mito, conto, cordel.Discurso poltico, divulgao cientfica. So Paulo: Cortez, 2000. (Co-leo Aprender e Ensinar com Textos, v. 5)HAMPAT B, A. A tradio viva. In: KI-ZERBO, J. Histriageral da frica: metodologia e pr-histria da frica. So Paulo:tica; Paris: Unesco, 1982.KI-ZERBO, J. 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Brincando e ouvindo histrias GLOSSRIO DA COLEO Auto-aceitao: ato ou efeito de aceitar a si mesmo; acolhimento. Dis-posio de experimentar, acolher e assumir responsabilidades pelos pr-prios pensamentos, sentimentos e aes. Auto-estima: sentimento amoroso que uma pessoa capaz de nutrirpor si mesma. Reconhecimento e valorizao das prprias qualidades, po-tencialidades e atributos fsicos e respeito s prprias imperfeies e limi-taes. Ax: palavra de origem iorub que signica fora vital. Trata-se da for-a-ser que estrutura o universo. Em lngua bantu: ntu. Casa-grande: habitao senhorial, geralmente o centro de uma pro-priedade rural (engenho de acar, fazenda de caf ou gado) em que habi-tavam o senhor proprietrio, seus familiares e agregados. Discriminao positiva: termo usado atualmente com a finalidadede reparar erros que foram secularmente cometidos e endossados pelasociedade. Exemplos: bancos diferenciados para idosos no transportecoletivo; cota mnima para mulheres nas representaes de partidospolticos; cota mnima para indgenas e afro-descendentes nas insti-tuies de ensino superior. Discriminao racial: ato de discriminar uma pessoa tendo como basesua raa/cor da pele, com a inteno de preteri-la, ofend-la, exclu-la ouinferioriz-la. Pode ser um ato explcito, dirigido diretamente pessoa-al-vo, ou um ato camuado. Discriminar: separar com base em categorias. Por exemplo, ao criara categoria cor, discrimina-se o azul do amarelo, do roxo, do preto, docor-de-rosa. Ao criar a categoria som: discrimina-se o som alto do bai-xo, do agudo, do grave. A discriminao deixa de ser somente um atode separao que visa organizar algo dentro de categorias inventadaspelos humanos quando apoiada em valores por meio dos quais soestabelecidas hierarquias. Esteretipo: clich, rtulo, modelo rgido e annimo, com baseno qual so produzidos, de maneira automtica, imagens ou compor-tamentos. Chavo repetido sem ser questionado. Parte de uma ge-neralizao apressada: toma-se como verdade universal algo que foiobservado em um s indivduo.Coleo Percepes da Diferena - Negros e brancos na escola55 56. Brincando e ouvindo histriasEstigma: refere-se a algum atributo ou qualidade de natureza deprecia-tiva que se apresentam como verdadeiros, mas que de fato foram forjadosnas relaes sociais, geralmente num contexto de disputa ou competio.Por isso, o estigma, quer individualmente ou socialmente, pode ser usado,por exemplo, como instrumento para justicar a excluso de uma pessoaou grupo da participao efetiva na sociedade. Flexibilidade: qualidade de exvel, elasticidade; capacidade dos indi-vduos de enfrentarem as mudanas sem apegos inadequados ao passado esem diculdades para lidar com o que novo.Identidade: produto dos papis sociais que o sujeito assume emsuas relaes sociais; sentimento que uma pessoa tem de possuir con-tinuidade, como distinguvel de todas as outras. Os termos identida-de e subjetividade so, s vezes, utilizados de forma intercambivel.Existe, na verdade, uma considervel sobreposio entre os dois. Sub-jetividade sugere a compreenso que temos sobre o nosso eu. O termoenvolve os pensamentos e as emoes conscientes e inconscientes queconstituem nossas concepes sobre quem somos. (...) As posiesque assumimos e com as quais nos identicamos constituem nossasidentidades (Kathryn Woodward).Identicao: processo psicolgico pelo qual um indivduo assimilaum aspecto, uma propriedade, um atributo do outro, e se transforma, totalou parcialmente, segundo o modelo dessa pessoa. A personalidade consti-tui-se e diferencia-se por uma srie de identicaes. Personalidade: organizao constituda por todas as caractersti-cas cognitivas, afetivas e fsicas de um indivduo; o elemento estvelda conduta de uma pessoa; sua maneira habitual de ser, aquilo que adistingue de outra. Preconceito: um juzo preestabelecido, baseado em mera crenaou opinio que formamos sem conhecer devidamente a realidade sobrea qual nos manifestamos. Portanto, pr-conceito signica conceito pr-vio, formulado sem o cuidado de permitir que os fatos sejam investigadose possam contrariar nossos julgamentos ou opinies (Renato Queiroz).O preconceito entendido, em geral, como uma atitude hostil em rela-o a um grupo de indivduos considerados inferiores sob determinadosaspectos morais, cognitivos, estticos em relao ao grupo ao qual opreconceituoso pertence ou almeja pertencer (Jos Leon Crochik).56 Coleo Percepes da Diferena - Negros e brancos na escola 57. Brincando e ouvindo histrias Preconceito racial: concepo sem exame crtico, formada a priori,transmitida culturalmente de gerao em gerao. Caracteriza-se por idiasassumidas com propriedade, sem reexo sobre sua racionalidade e sobrea conseqncia de aderir ou no a elas. Psique: a alma, o esprito, a mente.Psiquismo: conjunto de fenmenos ou de processos mentais conscien-tes ou inconscientes de um indivduo ou de um grupo de indivduos.Racismo: explicao criada, no sculo XIX, para justicar a ao pol-tica de discriminao, segregao, excluso e eliminao baseada na idiade que existem raas humanas com caractersticas determinadas e imu-tveis, atribudas a todos os indivduos pertencentes a este grupo e trans-mitidas hereditariamente. A cada raa biolgica corresponderiam tambmtraos de cultura, valores, cincias, de modo que as raas mais evoludasdeveriam dominar e comandar as menos evoludas, para o bem da prpriahumanidade. O racismo uma ideologia ou forma de dominao que ex-plica e justica que essas supostas raas superiores dominem ou eliminemas consideradas inferiores. Senzala: espao, na casa-grande ou sobrado senhorial, reservado aoabrigo dos escravos. Geralmente de uma s porta e sem janelas para evitarfugas. Lugar insalubre onde se prendiam homens e mulheres de todas asidades. Na origem (Angola), signicava residncia familiar.Subjetividade: dimenso do ser humano que est para alm dele, nose restringindo a uma essncia interna. constituda pelos nveis individu-al e social; histrica, construda e se desenvolve nos processos das rela-es sociais dentro das cult