Historia e Cultura Afro-brasileira e Africana Na Escola

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    Capa

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    Agncia Canadense para o Desenvolvimento Internacional (CIDA/ACDI)

    Permitida reproduo total ou parcial com meno expressa da fonte.

    1 Edio 5.000 exemplaresgere Cooperao em Advocacy

    SHIS QI 11 Bloco M Sala 104Lago Sul CEP 71625-205 Braslia DF

    Tel.: (61) 3248-4742http://www.agere.org.br

    Distribuio gratuitagere Cooperao em Advocacy

    Autoreslvaro Sebastio Teixeira Ribeiro, Ana Lucia Lopes, Anderson Ribeiro Oliva,

    Alexandre Ratts, Adriane Damascena, Brbara Oliveira Souza, Edileuza Penha deSouza, Gloria Moura, Igl Moura Paz Ribeiro, Luiz Carlos dos Santos, Vera Lcia

    Santana

    Organizadores dos textoslvaro Sebastio Teixeira Ribeiro, Brbara Oliveira Souza, Edileuza Penha de Souza,

    Igl Moura Paz Ribeiro

    Coordenao EditorialClia Medeiros, Iradj Roberto Eghrari

    Assistente de Coordenao:Dbora Lacerda

    Produo, diagramao,direo de arte e impresso

    Via Braslia Editora

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    Sumrio

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    PrefcioGlria Moura

    A gere Cooperao em Advocacy, com esta publicao, consolida uma posio

    de vanguarda na formao de professores, alunos e demais interessados, noprocesso educativo brasileiro, a partir da difuso, da interpretao e do estudo da Lei10.639/03 que "Altera a Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece asDiretrizes e Bases da Educao Nacional, obriga a incluir no currculo oficial da Redede Ensino a temtica "Histria e Cultura Afro-Brasileira e d outras providncias". Aaprofundada anlise feita pelo Conselho Nacional de Educao/Conselho Pleno,consubstanciada no Parecer CNE/CP 03/2004, informou a Resoluo n 1, de 17 de

    junho de 2004, do CNE, que "Institui Diretrizes Curriculares Nacionais para aEducao das Relaes tnico-Raciais e para o Ensino de Histria e Cultura Afro-

    Brasileira e Africana". No entanto sabe-se do desconhecimento dos professores emrelao aos contedos exigidos pela Lei. A partir dessa constatao foi organizadaesta publicao "Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana na Escola", tendo comobase o contedo do Curso de Formao de Professores Ensino Afro-Brasil.

    Esta publicao representa uma das possibilidades atravs da qual se pensar opas em que vivemos com sua formao histrica e sua marca africanaindelevelmente deixada em todas as instncias da vida nacional. Perseguir a meta deconhecer nossas origens e nossas razes buscar sedimentar nossa identidade aindainconclusa.

    Conhecer a frica de ontem e de hoje, a histria do Brasil contada na perspectivado negro, com exemplos na poltica, na economia, na sociedade em geral, uns dosobjetivos a se atingir. Pretende-se ainda reafirmar a constante presena da marcaafricana dos nossos ancestrais na literatura, na msica, na criatividade, na forma deviver e de pensar, de andar, de danar, de falar e de rir, de rezar e festejar a vida.

    Busca-se, tambm, colaborar para uma crescente valorizao da comunidadenegra, contribuindo para a elevao de sua auto-estima e propiciar aos professoresmecanismos para utilizao deste conhecimento, na perspectiva de mudana damentalidade preconceituosa.

    Conhecer e a aplicar a legislao tem a finalidade de fazer cumprir e garantir aplena eficcia do Art. 5 da Carta Magna "Todos so iguais perante a lei", na certezade que no h desiguais, mas diferentes. O respeito diferena deve ser um dossustentculos de uma sociedade democrtica, marcada pela cidadania, pela incluso,sonho de um pas justo.

    A escola uma das instituies responsveis pela instaurao desse processo. Elaforma geraes e poder contribuir para a mudana do quadro de injustias vigente. ainda de sua competncia respeitar matrizes culturais e construir identidades,visando dignidade da pessoa, respeitando as especificidades da herana cultural

    inclusa na infinita diversidade que constitui a riqueza humana.O professor consciente de seu papel revolucionrio ser o baluarte datransformao de seus alunos fazendo-os seres pensantes e responsveis por suasatitudes. Segundo o Prof. Paulo Freire preciso descolonizar as mentes, a fim de que

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    Prefcio

    o nosso jeito de ser e a nossa cultura possam ser valorizados.Importante o fato de uma entidade da sociedade civil, no necessariamente

    integrante do movimento negro como tal, engajar-se no esfro de revelar o Brasilmulticultural, intertnico, diverso e constitudo por um mosaico onde se destaca a

    influncia africana, mormente a de naes abaixo do Saara.A gere uma das instituies pioneiras na divulgao da Lei 10.639, pois realizadesde 2005 o Curso Ensino Afro-Brasil, que atingiu aproximadamente 7.000pessoas. Tratou-se de grande desafio superado com xito o que veio tornar possvelum acmulo de experincias, inclusive quanto metodologia desenvolvida porintermdio do ensino a distncia.

    importante ressaltar que h tempos o movimento negro vem realizandoesforos para incluir nos currculos escolares a temtica em questo. Ainda nos anos80, no Estado da Bahia, foi instituda lei com objetivo de incluir no currculo das

    escolas oficiais o ensino de Histria da frica e da cultura afro-brasileira, experinciaque teve pequena durao pela ausncia de professores qualificados.No mesmo sentido, o VIII Encontro de Negros do Norte e Nordeste com o tema "

    O Negro e a Educao", realizado em Recife em julho de 1988 concluiu. que"aeducao a base sobre a qual se estrutura a forma de pensar e agir de um povo eque o currculo escolar, nega a importncia da contribuio do elemento africano eseu papel histrico, econmico, poltico e cultural na formao da sociedadebrasileira".

    Atualmente a gere vem desenvolvendo importante trabalho de divulgao dosvalores afro-brasileiros, realizando pesquisas e oferecendo cursos. Esta publicao, uma das contribuies para suprir uma das lacunas do ensino brasileiro.

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    Apresentaes

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    O curso Formao em Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana - Ensino AfroBrasil surgiu a partir de um convnio entre a gere Cooperao em Advocacy e aSecretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade (SECAD) doMinistrio da Educao (MEC), no ano de 2005, com o objetivo de auxiliar na

    implementao da Lei 10.639/2003 com a formao de 5000 professores paramelhor compreenderem e aplicarem o contedo daquela nova lei. O grupobeneficiado com o projeto foi composto por professores do ensino fundamental emdio, preferencialmente os professores das disciplinas Histria, LiteraturaPortuguesa e Artes, porm sem o impedimento de participao de profissionais dasdemais disciplinas, visto que o ensino de Histria e Cultura Afro-brasileria e Africanaconstituem tema a ser tratado de maneira transversal no currculo escolar. Gratuitoe via internet, o curso permitiu que os participantes determinassem seus horrios deestudo.

    Uma segunda fase desta mesma iniciativa teve incio em maio de 2007continuando a parceria com a SECAD/MEC. Ela possibilitou a reciclagem e oaprimoramento de 3.000 professores formados na primeira etapa, buscando formarprofessores para atuar nas escolas na forma de multiplicadores do processo deaplicao da Lei 10.639/03 e influenciando a formulao do Plano PolticoPedaggico (PPP) de cada escola onde os participantes da segunda fase lecionassem.O PPP um instrumento que cada escola deve construir a partir de condiesespecficas e coletivas, como produto de um processo contnuo e participativo. Como curso os professores devem impactar no desenvolvimento do mesmo de modo a

    assegurar a aplicao da Lei 10.639/2003 nas escolas. A certificao foi de extensouniversitria com a carga horria de cada fase, emitido por meio da parceria entre agere e a Faculdade do Noroeste de Minas (FINOM).

    Para atender ao grande nmero de interessados, o curso Formao em Histria eCultura Afro-Brasileira e Africana comeou uma nova turma ainda em 2007, comtrmino em 2008, onde foram disponibilizadas mais 2.000 vagas com apoio daAgncia Nacional Canadense de Desenvolvimento Internacional (CIDA). A novidadefoi a produo da presente obra com os contedos disponibilizados no curso etambm alguns planos de aula desenvolvidos pelos prprios participantes.

    Ao final do curso os participantes so convidados a avaliar o mesmo. As mdiasj colhidas revela que 88% dos participantes consideraram que os conhecimentosadquiridos foram de muita utilidade para o desenvolvimento das atividadesprofissionais e 90% com relao ao valor pessoal, 97% classificaram os objetivoseducacionais do curso entre bom e muito bom e 86% indicariam o curso para outrapessoa. Por estes resultados apresentamos nossos agradecimentos equipe semprepresente da SECAD/MEC e da CIDA, a coordenao da Professora Glria Moura, aosautores dos textos, a empresa de tecnologia Faros que disponibilizou a plataformade ensino a distncia e aos tutores do curso, toda equipe da gere e especialmenteaos participantes do curso.

    Durante as trs turmas do curso depoimentos como o da professora ElenoideMaria de Oliveira Santos (Bahia). Eu trabalho pela rede pblica estadual e municipal.Na rede estadual j construmos o PPP e introduzimos at uma proposta sobre

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    Apresentaes

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    Formao em HIstria Cultural Afro-Brasileira e Africana

    africanidades, na rede municipal o PPP da escola est engavetado, a coordenadorasegurou o plano e no abre espao para a sua elaborao. J levantei uma propostasobre frica, estamos pensando em reunir num sbado pra ver o que que sai-nosenchem de fora para continuar buscando apoio para este trabalho, pois foram mais

    de 40.000 inscritos para 10.000 vagas disponibilizadas. Entendemos que todas etodos precisam saber quais so seus papis em escreverem a histria de nosso pas,e muitas vezes so necessrias ferramentas como o curso e o livro ora apresentadospara auxiliar no seu traado.

    gere Cooperao em Advocacy

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    Apresentaes

    com grande satisfao que a Agncia Canadense para o DesenvolvimentoInternacional - ACDI/CIDA apresenta esta publicao que rene o resultado dasatividades do Projeto Ensino Afro Brasil. O projeto tem por objetivo oferecer o Cursode Formao em Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana, oferecido, por meio de

    ensino distncia, a 5000 professores em todo o pas. A publicao deste livrocontribui para a implementao da lei 10.639/2003 que torna obrigatrio o ensinoda Histria da frica e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negrabrasileira e o negro na formao da sociedade nacional, resgatando a contribuiodo povo negro nas reas social, econmica e poltica pertinentes Histria do Brasil,nas escolas de ensino fundamental e mdio, pblicas e particulares, nos estados emunicpios.

    A ACDI/CIDA o rgo do governo canadense responsvel pelo apoio aodesenvolvimento internacional e tem por meta colaborar para reduzir a pobreza,

    promover maior eqidade e alcanar o desenvolvimento sustentvel.Para a ACDI/CIDA, o incentivo igualdade de gnero e etnia parte integral eessencial de sua misso. Assim, a ACDI/CIDA acolheu a proposta da gere que, emparceria com a Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade doMinistrio da Educao -SECAD/MEC, nos permitiu apoiar esta iniciativa quepromove igualdade tnico-racial e de gnero no Brasil.

    Anne Gaudet

    ConselheiraCooperao e Desenvolvimento

    Embaixada do Canad

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    Introduo

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    A valorizao da Educao das Relaes tnico-Raciais, da histria e cultura afro-brasileira e africana no espao escolar origina-se da luta e da resistncia do povonegro, como fruto da mobilizao em prol de uma sociedade mais justa e igualitria,cabendo destacar a luta anti-racista dos Movimentos Negros Organizados,

    consolidada aps a assinatura da Lei urea como um movimento pelo direito educao da comunidade negra.Neste contexto, podemos destacar a atuao do Jornal Quilombo1 que afirmava,

    em sua primeira edio, que era necessrio "lutar para que, enquanto no forgratuito o ensino em todos os graus, sejam admitidos estudantes negros, comopensionistas do Estado, em todos os estabelecimentos particulares e oficiais deensino secundrio e superior do Pas, inclusive nos estabelecimentos militares".

    A educao, portanto, constitui-se como uma forte reivindicao das organizaesnegras ao longo da histria de nosso pas. Esteve presente na Frente Negra Brasileira2,

    bem como nas aes e orientaes do Teatro Experimental do Negro (TEN)

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    , como aprimeira instituio a promover educao de jovens e adultos deste pas.O movimento em prol da educao no foi interrompido nem mesmo durante a

    ditadura militar, culminando no processo nacional constituinte, no mbito daConveno Nacional do Negro pela Constituinte, realizada em Braslia, em 1986.Posteriormente, outro importante marco desse movimento a realizao, em 1995,da Marcha Zumbi dos Palmares, contra o racismo, pela cidadania e a vida, que trazem sua pauta mais uma vez reivindicaes educacionais.

    Em todos esses marcos, que simbolizam o processo contnuo de luta pelaconstruo de uma educao promotora da eqidade, dos direitos e da pluralidadecultural, racial, tnica e social do pas, pautada, de distintos modos, a importnciade se abordar em sala elementos que abarquem a histria e cultura africana e afro-brasileira, bem como que se promovam novos paradigmas para as relaes tnico-raciais em nosso pas.

    Essas reivindicaes histricas sinalizam para a importncia de se ampliar o acesso educao em todos os nveis para a populao negra, bem como para a construode currculos escolares que dem conta da diversidade de nosso pas. Esse processoenvolve, fundamentalmente, a formao das professoras e professores para essasdimenses, a elaborao de materiais didticos que trabalhem de modo noestereotipado e preconceituoso a magnitude da cultura e histria afro-brasileiras eafricanas e, fundamentalmente, o compromisso de construir uma sociedade a partirde parmetros anti-racistas.

    Esses processos de luta dos movimentos negros tiveram reflexos tambm emlegislaes municipais, estaduais e nacionais. As Leis Orgnicas dos municpios deSalvador e Belo Horizonte, por exemplo, estabelecem proibies adoo de livro

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    Introduo

    1 Quilombo, com seu subttulo "Vida, problemas e aspiraes do negro", dirigido por Abdias Nascimento era ocombativo rgo da imprensa, fundado em 1949, preocupado em analisar as conseqncias do racismo sobre

    a populao negra. Edio fac-similar. Rio de Janeiro: Editora 34, 2003.2 Fundada em 16 de setembro de 1931, era dirigida por um Grande Conselho. Com os xitos alcanados, a FrenteNegra transformou-se em partido poltico em 1936 e foi fechada em 1937 pelo Estado Novo de Getulio Vargas.

    3 Idealizado, fundado (em 1944) e dirigido por Abdias Nascimento, o Teatro Experimental do Negro tinha comoobjetivo a valorizao do negro no teatro e a criao de uma nova dramaturgia.

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    Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana na Escola

    4 Educao e relaes raciais: refletindo sobre algumas estratgias de atuao. In Munanga, K. Superando o racismona escola Ministrio da Educao/Secretaria de Educao Continuada, alfabetizao e diversidade, 2005.

    didtico que dissemine qualquer forma de discriminao ou preconceito. Essamesma perspectiva est presente em outras leis municipais de outras regies, comoas da cidade do Rio de Janeiro e de Teresina.

    Para alm dessa dimenso, h outras legislaes estaduais que remetem ao dever

    do Estado de promover a adequao programtica de disciplinas como geografia,histria, estudos sociais, educao artstica, entre outras, para a valorizao daparticipao do negro na formao histrica da sociedade brasileira, como aConstituio do Estado do Bahia, de 1989 e a Lei 6.889, de 1991, do municpio dePorto Alegre.

    H, portanto, um processo bastante longo de mobilizaes sociais e de marcoslegais que antecede a entrada em vigor da Lei 10.639, de 2003, e das DiretrizesCurriculares para a Educao das Relaes tnico-Raciais e para o Ensino de Histriae Cultura Afro-Brasileira, de 2004.

    A Educao das Relaes tnico-Raciais, da histria e cultura afro-brasileira eafricana objetiva a insero, no espao escolar, das vrias experincias e linguagensde resistncia da populao negra. A temtica racial precisa ser tratada de modo aque se reduzam os esteretipos e a reproduo dos modelos que inferiorizam osestudantes que so identificados como negros e negras. A Lei 10.639/2003 um dosmarcos para a efetivao da educao anti-racista e a sua implementao passafundamentalmente pela capacitao continuada de professores e profissionais daeducao sobre essa temtica.

    Tratado sob diferentes abordagens, o Movimento Negro organizadohistoricamente ressaltou a necessidade de a sociedade brasileira encarar a existnciado racismo e da discriminao racial, e pr em xeque a controvertida democraciaracial. Em 2001, o Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada (IPEA) revelou que, dos53 milhes de pobres brasileiros, 70% so negros. Essa desastrosa desigualdadeeconmica produz efeitos em todos os segmentos da sociedade, obrigando ogoverno brasileiro a intensificar polticas pblicas para amenizar essa disparidade e,ao mesmo tempo, investir na correo das diferenas entre os grupos tnico-raciaisnos setores sociais, econmico, poltico e cultural.

    Na educao, a alarmante taxa de analfabetos na populao maior de 15 anosresulta em parte das discriminaes raciais e da veiculao de idias racistas naescola, e somente uma educao voltada para a pluralidade tnico-racial capaz dedesconstruir o racismo e seus derivados nos espaos escolares. A escola precisapromover relaes entre conhecimento escolar/realidade, social/diversidade e tico-cultural assumindo "que o processo educacional tambm formado por dimensescomo tica, as diferentes identidades, a diversidade, a sexualidade, a cultura, asrelaes raciais, entre outras4".

    Desde 2003, o Estado brasileiro tem possibilitado a intensificao de aesafirmativas no sentido de assegurar a efetivao dos direitos da populao afro-brasileira como direitos humanos. Dentre essas aes, a interdio do racismo naescola se concretiza com a implementao da Lei 10.6395 e das Diretrizes

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    Introduo

    Curriculares Nacionais para a Educao das Relaes tnico-Raciais e para o Ensinode Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana6.

    O desafio aprender e ensinar novas relaes de afetividade, sedimentalizar aesque como afirma a professora Gloria Moura7, possibilitem "desenvolver na escola,

    novos espaos pedaggicos que propiciem a valorizao das mltiplas identidadesque integram a identidade do povo brasileiro, por meio de um currculo que leve oaluno a conhecer suas origens e se reconhecer como brasileiro". A escola, comoespao da sociedade, deve promover o desenvolvimento da aprendizagem solidria,enriquecer os laos comunitrios e afirmar o respeito s diferenas individuais ecoletivas. A aquisio de saberes promove a abolio do racismo, do desrespeito sdiferenas e da discriminao racial.

    Conceber uma educao anti-racista , portanto, o nico caminho capaz deconstruir o sentimento de pertena, ao mesmo tempo em que descortina

    perspectivas de uma educao de qualidade, imprime escola valores e prticas dacosmoviso africana em que a tica, a emoo e a afetividade formam o trip quesustenta o equilbrio social e possibilita a edificao da cidadania.

    Existe hoje uma demanda na sociedade brasileira em relao ao conhecimento dahistria e cultura afro-brasileira e africana na educao bsica e superior. Com apublicao da Lei 10.639/2003 e das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educaodas Relaes tnico-raciais e para o Ensino de Histria e Cultura Afro-Brasileira eAfricana, essa demanda ganha propores ainda maiores. A incluso do estudo dahistria do negro no Brasil, suas lutas, sua resistncia e participao na formao daidentidade nacional em todos os aspectos, justifica-se pelo elevado percentual dapopulao afro-descendente e pela imensa importncia da identidade afro-brasileira.

    A implantao da Lei 10.639/2003 e das Diretrizes Curriculares implica algunscaminhos, dos quais cabe destacar: a elaborao de materiais didticos sobre essatemtica, a sensibilizao e a construo de propostas pedaggicas das escolas paraa consolidao de uma educao anti-racista (com redefinies dos planos polticospedaggicos e dos currculos escolares) e a formao e capacitao continuada deprofessores/as e demais profissionais da educao para essa abordagem.

    A presente publicao resultado de dois cursos voltados para a formaocontinuada de professores(as), na modalidade a distncia, com foco naimplementao da Lei 10.639/2003 e das Diretrizes Curriculares para a educao dasrelaes tnico-raciais e para o ensino da histria e cultura afro-brasileira e africana.Os cursos compuseram o Programa de Educao das Relaes tnico-Raciais -Aplicando a Lei 10.639/2003, e foram realizados entre 2004 e 2007.

    5 De 9 de janeiro de 2003 a Lei n 10639, incluir no currculo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temtica"Histria e Cultura Afro-Brasileira".

    6 "O Conselho Nacional de Educao, pela Resoluo CP/CNE n 1, de 17 de junho de 2004 (DOU n 118, 22/6/2004,Seo 1, p. 11), instituiu diretrizes curriculares nacionais para a educao das relaes tnico-raciais e para oensino de histria e cultura afro-brasileira e africana, a serem observadas pelas instituies, em todos os nveis

    e ensino, em especial, por instituies que desenvolvem programas de formao inicial e continuada deprofessores. A resoluo tem por base o Parecer CP/CNE n 3, de 10 de maro de 2004, homologado peloMinistro da Educao, em 19 de maio de 2004."

    7 GOMES, Nilma Lino. O direito a diferena. In. Munanga, K. Superando o racismo na escola. Ministrio da Educao,SECAD, 2005.

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    Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana na Escola

    As iniciativas para a elaborao das duas etapas do curso Ensino Afro surgiram deprofessoras e professores comprometidos com essa questo, em dilogo com outrasorganizaes no-governamentais, como a gere, e governamentais, como aSecretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade - Secad, do

    Ministrio da Educao.A urgente necessidade de uma educao anti-racista implica na reformulao doscurrculos escolares, visando a corrigir os esteretipos sobre as representaes daHistria da frica e a luta do povo negro no Brasil. A formao continuada dosprofissionais da educao o principal instrumento de empoderamento evalorizao de professores e professoras, alm de possibilitar uma interveno quegaranta o respeito s diferenas e diversidade, ao mesmo tempo em que estabelecea criao de novos valores e paradigmas para a educao.

    Como parte desse movimento de promoo da eqidade tnico-racial na

    educao, essa publicao amplia o leque de acesso ao contedo dos cursosrealizados, com foco na formao em Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana enas estratgias de multiplicao dessa temtica na comunidade escolar. Apublicao, alm de reunir o contedo terico dos cursos, traz uma seleo de 60planos de aula que expressam, de modo diverso, uma dimenso prtica daimplementao de estratgias em dilogo com a Lei 10.639/2003.

    Reunir os contedos e resultados dos dois cursos na presente publicao representaos esforos de dar continuidade a essa corrente. A proposta desta publicao umainiciativa que visa a fortalecer, portanto, a implementao da Lei 10.639/2003, uma vezque se apresenta como mais um subsdio para a educao das relaes tnico-raciais eda histria e culturas afro-brasileiras e africanas nas escolas.

    Os Planos de aula representam uma multiplicidade de estratgias utilizadas porprofessoras e professores de diversas regies do pas, docentes nos mais variados nveis,no processo de implementao da Lei supracitada e das Diretrizes Curriculares para oEnsino da Histria e Cultura Afro-brasileiras e Africanas. Como afirma o professor CarlosRodrigues Brando8, "chegou o tempo de aprendermos, ou reaprendermos, retornando tradio de culturas ancestrais, a lio de antigos e de novos ensinamentos". Com essaspalavras reafirmamos que esta publicao tambm fruto das aes implementadas peloMovimento Negro, que como j dissemos acima sempre pautou uma educao inclusiva,pblica e de qualidade para todos e todas.

    Deste modo, queremos nos dirigir a professores e professoras, bem como a todaa comunidade acadmica e escolar, especialmente aos/s profissionais de educaocomprometidos/as com a construo de uma educao que compartilha a dialticado aprender e do ensinar em todos os nveis e para todos.

    Com a implantao da Lei 10.639/2003, as relaes tnico-raciais ganham uma outradimenso nas escolas, nos currculos e nos Planos Polticos Pedaggicos. Deste modo,sempre na perspectiva de contribuir com essa implementao que se faz urgente enecessria, e ainda, recorrendo e reconhecendo a valorizao dos ensinamentos do PovoNegro, esta publicao est organizada em quatro sees, de forma a integrar os textosdos dois cursos, que esto organizados por proximidade temtica.8 BRANDO, Carlos Rodrigues. Aprender o amor sobre um afeto que se aprende a viver. Campinas : Papirus, 2005

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    Introduo

    Na primeira seo, Cosmoviso africana e identidade negra no Brasil, soabordados aspectos relacionados filosofia de vida africana e complexidade doethos na identidade afro-brasileira. Na segunda seo, Espaos de resistncia:histria, bases legais e educao, esto os fundamentos legais da temtica e do

    Projeto Poltico Pedaggico PPP, bem como os fundamentos legais da questotnico-racial, a partir da Constituio Federal, da Lei 9394/96 LDB, da Lei10.639/03 e das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao das Relaestnico-raciais e para o Ensino de Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Nessaseo tambm sero abordados os aspectos gerais que permeiam a dinmica depautar o PPP em dilogo com a Lei e as Diretrizes.

    Na Terceira Seo A escola como espao de transformao, esto presentes reflexessobre os marcos que balizam a construo do PPP. O Marco Situacional, que pretendeapresentar a viso dos professores sobre questes como Quem somos? Em que

    sociedade vivemos? Que sociedade queremos? Que educao queremos?, entre outrospontos. Nessa seo, estaro presentes tambm o Marco Conceitual, que define osparmetros conceituais nos quais o PPP est assentado, e o Marco Operacional, queapresenta a operacionalizao do PPP, via currculo escolar. A partir desses marcos, serotrabalhadas, nos textos, abordagens referentes promoo da Educao das relaestnico-raciais socialmente construdas e em como essas relaes esto presentes nos livrosdidticos, nas interaes da comunidade escolar e na estrutura social como um todo.

    Na quarta e ltima seo, Caminhos para a eqidade na escola, trabalhamos naconstruo curricular da escola a partir da temtica das relaes tnico-raciais e da culturae histria afro-brasileira e africana. Nessa seo, esto presentes os planos de aulasconstrudos pelas(os) docentes cursistas, no curso anterior. Esses planos podero oferecerindicativos de temticas e prticas pedaggicas adequadas ao desenvolvimento doassunto. Tambm estar disponvel nessa seo toda a relao de livros, filmes, sites emsicas que a equipe apresenta como sugesto de material a ser usado em sala, eaqueles voltados para aprofundar os conhecimentos dos docentes sobre a temtica.

    No temos dvida de que a construo de um mundo melhor e mais justo passatambm pela escola. Deste modo tarefa de todos e todas tecer uma educao querepresente e reconhea as diferenas, a diversidade e a pluralidade tnico-racialcomo possibilidade concreta de construir um espao de combate ao racismo, aospreconceitos e de qualquer forma de discriminao. Buscamos abordar em cadaseo deste livro situaes do cotidiano de nossas escolas, a fim de que possamosaprimorar ainda mais a compreenso e a premissa, por parte dos/as gestores/as,professores/as, pessoal de apoio, grupos sociais e instituies educacionais, de queimplantar a Lei 10.639/2003 a responsabilidade de construir uma escola maishumana e mais fraterna. J passada a hora de toda e qualquer escola deste pasreconhecer a necessidade das aes afirmativas como cdigo de extenso do amore da sobrevivncia humana.

    Braslia, outono de 2008.Brbara Oliveira Souza

    Edileuza Penha de Souza

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    Seo ICosmoviso africana

    e identidade negra no Brasil

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    Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana na Escola

    A Cano dos PovosBrbara Oliveira Souza & Edileuza Penha de Souza

    A Cano dos Povos

    Quando uma mulher, de certo povo africano,sabe que est grvida, segue para a selva com outras mulheres

    e juntas rezam e meditam at que aparece a "cano da criana".

    Quando nasce a criana, a comunidade se juntae lhe cantam a sua cano.

    Logo, quando a criana comea sua educao,o povo se junta e lhe cantam sua cano.

    Quando se torna adulto, a gente se junta novamente e canta.Quando chega o momento do seu casamento a pessoa escuta a sua cano.

    Finalmente, quando sua alma est para ir-se deste mundo,a famlia e amigos aproximam-se e,

    igual como em seu nascimento,cantam a sua cano para acompanh-lo na "viagem".

    Neste povo h outra ocasio na qual os homens cantam a cano.

    Se em algum momento da vida a pessoa comete um crimeou um ato social aberrante, o levam at o centro do povoado

    e a gente da comunidade forma um crculo ao seu redor.

    Ento lhe cantam a sua cano.O povo reconhece que a correo para as condutas

    anti-sociais no o castigo; o amor e a lembrana de sua verdadeira identidade.

    Quando reconhecemos nossa prpria canoj no temos desejos nem necessidade de prejudicar ningum.

    Teus amigos conhecem a "tua cano"e a cantam quando a esqueces.

    Aqueles que te amam no podem ser enganados pelos erros que cometesou as escuras imagens que mostras aos demais.Eles recordam tua beleza quando te sentes feio;

    tua totalidade quando ests quebrado;tua inocncia quando te sentes culpadoe teu propsito quando ests confuso.

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    A Cano dos Povos

    Na histria de diferentes povos da humanidade, a msica representa o smbolode fortalecimento e coeso social, de forma que quando analisarmos o contedo daapresentao "Cano dos Povos" podemos pensar o quanto a msica significa paraos povos africanos. O que caracteriza o processo histrico desses povos o seu

    sentimento de pertena, princpios e valores que marca o ciclo filosfico darepresentao da vida e da morte como percurso contnuo.Esse processo histrico se caracteriza pela ancestralidade, e s por meio dela foi

    possvel reconstruir as origens, as etnias e a memria. Como afirma Juana Elbein(1988): "Essa memria, enraizada na multiplicidade da herana negro-africana,expande com fora total". A fora vital a dinmica civilizatria1 que possibilitou acontinuidade do povo negro na Dispora. Ao serem arrancados do continente me,milhares de africanos e africanas reconstruram sua territorialidade2, se apoderandodos valores e da circularidade3 herdada de seus ancestrais. Os elementos que

    compem o panorama da ancestralidade esto presentes nas comunidades deterreiro, nos territrios quilombolas, nas escolas de samba, nos folguetos, maracatus,no congo, na congada e nas incontveis manifestaes culturais afro-brasileiras.

    Assim toda a identidade negra est pautada na representao do territrio e daterritorialidade, do corpo e da corporalidade4, da comunidade e da comunalidade5

    negra e esses elementos utilizam-se da musicologia individual e coletiva de cadaindividuo. (Luz, 1999).

    Uma proposta plural de educao s ser possvel com a recriao de nossascanes ancestrais, pois essas renem elementos para a superao dos obstculosetnocntricos6 "impertinentes na participao e na interao entreeducador/educando, artista/comunidade" (Santos, 2002, p. 28). Msica e danaprecisam compor o currculo escolar como fonte de identidade, uma vez quesomente a identidade possibilita o desenvolvimento de nossos destinos. (Luz, 1995).

    preciso compreender que parte do distanciamento entre a escola e acomunidade est referendado na sociedade neocolonial/europocntrica (centrada naperspectiva europia) que no se permite escutar as canes de seus educadores eeducandos. Solidificada nas amarras do Estado burocrtico, a escola dissemina

    1Nos referimos, aqui, ao contnuo civilizatrio africano.2Territorialidade: A territorialidade se d atravs da fora vital, da energia concentrada em tal espao, sem fronteiras rgidas.A territorialidade pode ser concebida como os espaos de prticas culturais nas quais se criam mecanismos identitriosde representao a partir da memria coletiva, das suas singularidades culturais.

    3Circularidade: A circularidade diz respeito ao carter do pensamento cclico, mtico, muitas vezes relacionado ssociedades tradicionais em que os tempos passado, presente e futuro se processam em crculo: elementos dopassado podem voltar no presente, especialmente atravs da memria.

    4Corporalidade: Corporalidade o viver cotidiano de cada pessoa, indivduo e coletividade. Est relacionada existncia, ao trabalho, ao lazer, sexualidade, enfim, linguagem corporal que expressamos nessas atividades.

    5Comunalidade: representada nos valores da comunidade, a comunalidade expresso ldico-esttica,estabelecendo "a referncia compreenso da arkh que funda, estrutura, revitaliza, atualiza e expande aenergia mtico-sagrada da comunalidade africano-brasileira"(Luz, 2000c, p. 47).

    6O eurocentrismo tido como uma viso de mundo que tende a colocar a Europa (assim como sua cultura, seu

    povo, suas lnguas) como o elemento fundamental na constituio da sociedade moderna, sendonecessariamente a protagonista da histria do homem. Acredita-se que grande parte da historiografia produzidano sculo XIX at meados do sculo XX assuma um contexto eurocntrico, mesmo aquela praticada fora daEuropa. Manifesta-se como uma espcie de doutrina, corrente no meio acadmico em determinados perodosda histria, que enxerga as culturas no-europias de forma extica e as encara de modo xenfobo.

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    Referncias

    LUZ, Marco Aurlio, (1995). Agad: dinmica da civilizao africano-brasileira. Salvador: Centro editorial e didtico da UFBA.

    LUZ, C.P. Narcimria, (1996). Pawd; dinmica e extenso... In Luz, C.P.Narcimria. Pluralidade Cultural e Educao. Salvador: SECNEB.

    ________ (1997). O patrimnio civilizatrio africano no Brasil: Pwd -Dinmica e Extenso do conceito de Educao Pluricultural. In: Joel Rufino(org) Negro Brasileiro Negro -. Rio de Janeiro: Revista IPHAN, n.25 p.99-209.

    ________ (2000).Abebe: a criao de novos valores na Educao. Salvador:SECNEB.

    Ministrio da Educao/Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizaoe Diversidade. Orientaes e Aes para a Educao das Relaes tnico-Raciais. Braslia: SECAD, 2006.

    SANTOS, Inaicyra Falco dos, (2002). Corpo e ancestralidade: uma propostapluricultural de dana-arte-educao. Salvador: EDUFBA,

    SANTOS, Juana Elbein dos, (1988). Os nag e a morte: pde, ss e o

    culto gun na Bahia. Petrpolis: Vozes.SODR, Muniz, (2002). O terreiro e a cidade - A forma social negro

    brasileira. Salvador: Secretaria da cultura e Turismo/ IMAGO.

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    Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana na Escola

    Reflexes sobre o tema O que esta apresentao nos remete? Ser que podemos pensar nossa ancestralidade atravs dela? Podemos nos

    deixar ir ao encontro da nossa histria e dos vrios povos que a compe? possvel que esse encontro com nossa ancestralidade e com nossas razes nos

    possibilite uma prtica transformadora?

    esteretipos e ideologias equivocadas e destri o referencial e viso de mundo de"outros sistemas simblicos civilizatrios, que tambm expressam formas prprias emtorno do ato de educar" (Luz, 1997, p. 202).

    Encontrar nossas canes nos possibilita transformar e criar permanentemente a

    relao com o outro que est na nossa sala de aula, na escola, na comunidade; bemcomo com o outro que traz uma cultura, um olhar diferente. Essas relaes nospermitem encontrar nossa prpria cano. Bem, sobre isto que vamos refletir nestelivro. A proposta colocada aqui aprender com o que nos diferencia e com o quenos constri, buscar nossas referncias, nossa ancestralidade, a nossa cano.

    A busca pela nossa cano, pelos elementos que nos localizam no mundo fundamental para o fortalecimento de nossa identidade. Para muitos povosafricanos, a msica ocupa o lugar da oralidade, da transmisso e perpetuao dosconhecimentos na vida.

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    A Cano dos Povos

    ________ (1997). Corporalidade e Liturgia Negra. In. Joel Rufino (org)Negro Brasileiro Negro -. Rio de Janeiro : Revista IPHAN, n. 25. p. 29-33.

    ________ (1988). A verdade seduzida. 2 ed. Rio de Janeiro: Francisco

    Alves.SOUZA, Edileuza Penha de. Identidade Capixaba. Prefeitura de Vitria

    Secretaria de Cultura: Vitria, 2001.

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    Africanidades - Cosmoviso Africana,Histria da frica

    Edileuza Penha de Souza e Brbara Oliveira Souza

    "A histria da frica necessria compreenso da histria universal,da qual muitas passagens permanecero enigmas obscuros,enquanto o horizonte do continente africano no tiver sido iluminado".

    Joseph Ki-Zerbo

    Quando ns, educadores e educadoras em diferentes postos e modalidades,privilegiamos os valores africanos, reafirmamos a humanidade da memriacivilizatria do continente-me. Em outras palavras, reconhecemos a necessidade demudar o caminho percorrido de represso e violncia, que nos legou to somenteimagens distorcidas, equivocadas e limitadas de mundo negro. A comprovaocientfica de que a frica o bero da humanidade nos impe o desafio de pens-lacomo local de origem histrica e scio-poltico-cultural de todos os povos.

    A resistncia negra, fundamentou-se, em grande parte, na compreenso demundo e nos valores ancestrais, e na crena de mudanas e continuidade dacosmoviso africana. Essa cosmoviso est sedimentada na viso mpar de mundo,na qual o reconhecimento da pessoa humana passa pelas histrias e d continuidade herana herdada dos deuses e dos humanos: "Um importante elemento queencontramos na maioria das populaes africanas a no separao entre naturezae poltica, poder e religio, ou seja, no h uma estratificao entre estas camadasimportantes da vida da sociedade. Tudo visto de acordo com o princpio daintegrao, segundo o qual os vrios elementos se comunicam e complementam"(Oliveira, 2003, p.37).

    Essa riqueza cultural que atravessou o Oceano Atlntico possibilitou a criao denovos valores do continuum africano, e nesse sentido, afirma Azoilda Loretto daTrindade (2002), "Para o povo negro, resistir foi algo alm da complexidade daexistncia. Resistir e sobreviver esteve diretamente ligado preservao da memria,da recriao de valores circulares e do respeito e venerao pelo plano cosmo queabriga nossos ancestrais".

    O ensino de histria e cultura africana e afro-brasileira alimenta a educaopluricultural e possibilita, por meio de atividades ldicas e estticas, conhecer assingularidades africanas num contexto da histria geral da humanidade; remete ainterpretaes que esto intimamente ligadas a uma dimenso histrica que ultrapassaa extenso territorial - 30.343.551 km, o que corresponde a 22% da superfcie slidada Terra -, (WEDDERBURN, 2005). Na proposta de curso sobre a histria da frica, oprofessor Henrique Cunha Jr. apresenta dezessete itens como obrigatrios para comporo contedo programtico: 1. Justificativa poltico-cultural do estudo da Histria e

    Geografia africana no Brasil; 2. Questes conceituais da abordagem das africanidades eafrodescendncia brasileiras; 3. Fontes documentais da Histria africana; 4. Metodologiada Histria africana; 5. Oralidade e Histria na frica; 6. frica como bero da

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    Africanidades - Cosmoviso Africana, Histria da frica

    humanidade e das civilizaes; 7. Geografia fsica e populacional e econmica da fricaem trs perodos histricos; 8. As civilizaes da frica do Rio Nilo: Egito, Nbia eEtipia; 9. As civilizaes da frica do Rio Niger: Gana, Mali e Songai; 10. Reinos e povosda frica Ocidental entre os Sculos XIV e XVIII; 11. As civilizaes do Rio do Gongo:

    Sculos XV a XVIII; 12. As civilizaes do Rio Zambeze, Grande Zimbbue e ImprioMonomopata; 13. As cidades - Estados do Oceano ndico: Povos Suarili entre os sculosVI e XVI; 14. As civilizaes do Norte Africano; 15. As invases coloniais europias e asreaes africanas; 16. O subdesenvolvimento africano pela explorao europia e 17. Aslutas de independncia na frica.

    Aprofundar esse e outros contedos sobre a histria e a cultura africana apenas umpasso no sentido de conhecer importante parte da histria, e nessa perspectiva que oshistoriadores Cheik Anta Diop e Joseph Ki-Zerbo destacam outros aspectos naabordagem acerca do continente africano. Os saberes e as tcnicas utilizadas

    historicamente pelos vrios povos africanos so bastante significativos. Os sistemas deescrita, conhecimentos de astronomia, matemtica (ossos petrificados encontradosentre o Congo e Uganda sugerem que h mais de 20 mil anos os africanos j pensavamnumericamente), agricultura (no Brasil, os africanos aplicaram seus conhecimentos emtcnicas de irrigao, rotao de plantios, adubagem com esterco e restos de cozinha eplantao de variadas culturas numa mesma gleba de terra), metalurgia (a partir dosculo XV, no reino do Benim, os africanos utilizavam o lato - liga de cobre e zinco -na produo, j dominavam o ferro desde 600 anos a.C), arquitetura (senhores dosopapo, tcnica conhecida como pau-a-pique, a arquitetura africana rica em estilos etcnicas: tetos abobadados, arabescos, colunas talhadas e muitos outros), medicina ("Namedicina, praticavam desde a cesariana at a autpsia, passando por vrios outros tiposde cirurgia, para no mencionar a vacina contra varola e outras doenas" (Nascimento,2006: 38). Portanto, uma caracterstica marcante da experincia africana o seudesenvolvimento tecnolgico, cultural e humano, que deve compor, por sua vez, ocontedo e a abordagem dos currculos, dos livros didticos e na sala de aula sobre africa.

    A aproximao de professores e professoras comprometidos/as com o ensino dahistria da frica conduz ao rompimento com esteretipos, preconceitos ediscriminaes que historicamente foram construdas em relao frica e aos povosafricanos, ensejando-lhes avanar seus conhecimentos e prticas educativas com umanova postura ante seu objeto de estudo. Como afirma o professor Carlos Moore:

    "Os estudos sobre a histria da frica, especificamente no Brasil, devero serconduzidos na conjuno de trs fatores essenciais: uma alta sensibilidadeemptica para com a experincia histrica dos povos africanos; uma constante

    preocupao pela atualizao e renovao do conhecimento baseado nasnovas descobertas cientficas; e uma interdisciplinaridade capaz de entrecruzaros dados mais variados dos diferentes horizontes do conhecimento atual para

    se chegar a concluses que sejam rigorosamente compatveis com a verdade".(2005, p. 161).

    Indiscutivelmente, a importncia dos estudos sobre histria da frica passa pelamatriz civilizatria que os povos africanos e seus descendentes desempenharam na

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    Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana na Escola

    formao das Amricas. Assinala elementos da cosmoviso e do processo coletivoem que envolve a socializao, a pessoa, o tempo, a palavra, a fora vital, o universo,a famlia, a sociedade, a produo, a reproduo, o poder, a ancestralidade, aespiritualidade, a comunidade, a escola, o cosmo, a terra, a gua, o ar, o fogo, a vida

    e a morte.

    Referncias

    Livros

    CUNHA Jr.,Henrique. Africanidades, Afrodescendncia e Educao. In: RevistaEducao em Debate - Ano 23, v.2, n.42. Fortaleza, 2001

    LARKIN, Elisa. Introduo histria da frica. In: Educao-Africanidades-Brasil.Braslia: Ministrio da Educao - Universidade de Braslia, 2006.

    OLIVEIRA, Eduardo. Cosmoviso africana no Brasil: elementos para uma filosofiaafrodescendente. Fortaleza: Ibeca, 2003.

    TRINDADE, Azoilda Loretto da. Debates: multiculturalismo e educao.Disponvel em: . Acesso em: 20 mar. 2007, s 11h15).

    WEDDERBURN, Carlos Moore. Novas bases para o Ensino da histria da fricano Brasil. In: Educao anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal 10.639/03.Braslia: MEC/Secad, 2005.

    Stios da Internet

    Salto para o Futuro / TV Escolawww.tvebrasil.com.br/salto

    Textos

    APPIAH, Kwame. Na Casa do Meu Pai. A frica na Filosofia da Cultura. Rio deJaneiro: Contraponto, 1997.

    CUNHA Jr.,Henrique. Semana de Cultura Negra na Escola. In: Revista Educaoem Debate II - n.14, julho de 2002

    ________. Africanidades Brasileiras e Afrodescendncias. Mimeo. Teresina,1996.

    DIOP, Cheik. Nations Ngres et Culture. Prsence Africaine. Paris, 1955.

    Reflexes sobre o tema Qual a importncia do estudo da histria e da cultura africana para a

    humanidade? Que mudanas e avanos o currculo de sua escola pode apresentar com a

    introduo dos estudos da histria e cultura africana?

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    Africanidades - Cosmoviso Africana, Histria da frica

    FRANCISCO, Dalmir.Ancestralidade e Poltica de Seduo. In: SANTOS, J. E.(org.) Democracia e diversidade humana. Salvador: SECNEB, 1992

    KI-ZERBO, Joseph. Histria da frica Negra. Lisboa: Biblioteca Universitria,

    14.LUZ, C.P. Narcimria. Pawd: Dinmica e Extenso... In: Luz, C.P. Narcimria.Pluralidade Cultural e Educao. Salvador, SECNEB, 1996

    ______Odara - os contos de Mestre Didi. In: Revista da Faeba. Educao eLiteratura. Salvador: UNEB - Departamento de educao, Campos I, ano 7, n.9,

    jan-jun/1998___________________. Descolonizao e educao: Uma proposta poltica ...

    In: Sementes - caderno de pesquisa. Salvador: UNEB - Departamento deeducao, Campos I, Vol. 1, n1/2, 2000 pp. 8-12

    _________________. Abebe - A criano de novos valores na Educao.Salvador: SECNEB, 2000

    LUZ, Marco A. O. Agad: dinmica da civilizao africano-brasileira. Salvador:Centro editorial e didtico da UFBa, 1995

    ______________ Da porteira para dentro, da porteira para fora... In. SANTOS,J. E. (org.) Democracia e diversidade humana. Salvador: SECNEB, 1992 (57 a 74)

    NASCIMENTO, Eliza Larkir. Introduo Histria da frica. In: Educao,Africanidades, Brasil. Braslia: Secad/UnB, 2006.

    OLIVER, R.A Experincia Africana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.SANTOS, Lea A. F. Ancestralidade e Educao. In: Sementes - caderno de

    pesquisa. Salvador, UNEB - Departamento de educao, Campus I, v.1/2, 2000SODR, Muniz.A verdade seduzida. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988

    2a ed.

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    Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana na Escola

    O Ensino da Histria da frica em debate(Uma introduo aos estudos africanos)

    Anderson Ribeiro Oliva

    H alguns dias encontrei um professor, colega de trabalho, que retornara de suaprimeira visita a uma cidade africana. Ele estivera em Luanda, capital de Angola.Perguntei sobre referncias da cidade que ainda carrego frescas em minha memriae de alguns hbitos, comuns a certos grupos de pessoas que habitavamdeterminados bairros, e que tinha me familiarizado. Seu depoimento foi um mistode inquietao e descontentamento.

    Problemas para apanhar e despachar as bagagens noAeroporto Internacional 4 defevereiro, o trnsito catico, o sistema de coleta de lixo urbano extremamente falho ouainda os intermitentes horrios de funcionamento de algumas casas de comrcio ou

    rgos pblicos, marcaram seus olhares sobre Angola com os indcios do desprestgio eda incompreenso. Apesar disso o tamanho da cidade o havia impressionado. J de suaestadia em Johannesburg, na frica do Sul, em que pernoitou na volta, sobraramelogios e espantos. Mesmo j tendo escutado depoimentos e visto imagens sobre acidade ele ficou admirado com seu traado urbanstico, com o moderno aeroporto ecom o hotel de luxo em que ficou. "Nem parecia estar na frica", finalizava o colega.

    Vista de umavio da companhiaangola TAAG na pista do

    Aeroporto Internacional4 de Fevereiro, emLuanda.

    Exageros em parte dessa postura, podemos perceber que ela encontra elos com asnarrativas de viagem de centenas de brasileiros, americanos ou europeus que viajam ouviajaram para a frica. Discordo, em parte, de quase todos eles e de seus argumentos.

    Parece plausvel que, em rpidas passagens por determinadas ruas de vriascidades africanas, alguns ocidentais, se impressionem pelo lixo acumulado nassarjetas ou pelo trnsito catico, eles esto l. O mesmo serve para aqueles que sedeparam com as estatsticas e os nmeros de perdas humanas nas guerras, dasvtimas de malria e dos contaminados pela Aids, eles tambm esto l.

    Porm, essas realidades no revelam e nem sintetizam o que a frica, nem seuscentros urbanos. Eles so, evidentemente, muito mais do que isso. Os graves problemas

    FotoAnderson

    Oliva.

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    O Ensino da Histria da frica em debate

    existem, e vo continuar existindo nos prximos anos, mas h, nos passados e presentesafricanos, muito mais do que fome, guerra, doena e sujeira. Alm disso, certo afirmarque as realidades descritas pelo colega muito pouco de distingam de alguns bairros edados estatsticos que encontramos em nossas cidades. Sujeira e violncia nunca foram

    exclusividades, muito menos identificadores das cidades africanas, apesar de parecerque elas, pelos olhares ocidentais muito limitados, deveriam se resumir a estas imagens.Por que ento reduzir o outro a isso, enquanto olhamos para os mesmos problemasinternos e achamos que so realidades passageiras ou de menor importncia naconstruo de uma identidade positiva sobre ns mesmos?

    Refletindo acerca de to profundo desconhecimento ou sobre essa cargaimaginria negativa cheguei a uma concluso, um tanto bvia, no esforo de tentarexplicar o porqu de existir, em nossas falas cotidianas, to poucas expectativas ouimpresses positivas sobre o continente negro: a frica e suas mltiplas experincias

    histricas no nos foram apresentadas durante nossas trajetrias de vida e formaesescolares, a no ser por meio de informaes que estavam recheadas de equvocose simplificaes. Quantos de ns estudamos a frica quando transitvamos pelosbancos das escolas? Quantos tiveram a disciplina Histria, Literatura, Arte ouGeografia da frica nos cursos de Graduao? Quantos livros ou textos lemos sobrea questo? Tirando as leituras que associam a frica e os africanos escravido, asbreves incurses pelos programas do National Geographic ou Discovery Channel, ouainda as imagens chocantes de um mundo africano em agonia, da Aids que sealastra, da fome que esmaga, dos grupos tnicos que se enfrentam com grandeviolncia ou dos safris e animais exticos, o que sabemos sobre a frica?

    Para comear a mudar esse quadro de imagens temos que, inicialmente, reconhecera relevncia de estudar a frica, independente de qualquer outra motivao. No assim que fazemos com a Mesopotmia, a Grcia, a Roma, com suas civilizaes elegados ou ainda a Reforma Religiosa, os Estados Nacionais Europeus, RevoluesLiberais ou as contribuies da Europa Moderna em nossa formao, como nas artes,nas formas de pensamento ou na literatura. Muitos iro reagir minha afirmao,dizendo que o estudo dos citados assuntos muito explica nossas realidades ou algunsmomentos de nossa Histria ou caractersticas atuais. Nada a discordar. Agora, e africa, no nos explica? No somos (brasileiros) frutos do encontro ou desencontro dediversos grupos tnicos amerndios, europeus e africanos?

    A Histria da frica e a Histria do Brasil esto mais prximas do que alguns1

    gostariam. Se nos desdobramos para pesquisar e ensinar tantos contedos, em umesforo de, algumas vezes, apenas noticiar o passado ou caractersticas de algumasescolas de pensamento ou de padres artsticos, por que no dedicarmos um espaoefetivo para a frica em nossos programas ou projetos. Os africanos no foramcriados por autognese nos navios negreiros e nem se limitam em frica simplistae difundida diviso de bantos e sudaneses ou de culturas negro-africanashomogneas. Devemos conhecer a frica no apenas para dar notcias aos alunos,

    1Na realidade no estamos fazendo referncia a nenhuma instituio ou grupo de pessoas especfico, mas sim aoimaginrio coletivo brasileiro, que com poucas excees, no assume a sua africanidade.

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    Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana na Escola

    mas internaliz-la neles. Por isso devemos saber responder com boa argumentaos perguntas acima apresentadas. Porm, chega de defesas ou apologias de umaHistria, e nos concentremos nas "coisas srias".

    O presente texto se prope realizar uma dupla tarefa: entregar aos nossos leitores

    uma reflexo sobre a forma como a frica tem sido tratada nas salas de aula brasileiras,a partir da anlise dos contedos destinados Histria da frica em alguns manuaisutilizados em nossas escolas. Conjuntamente a essa tarefa, que talvez se transforme emum manual de releitura dos livros didticos pelos professores e alunos, tambmapontaremos como poderia ser a forma correta de abordagem de algumas temticasvisitadas, alm de indicaremos referncias bibliogrficas aos docentes. Esperamos queessa indicao das referncias bibliogrficas permita o complemento de leituras e umaaproximao mais densa e substancial por parte dos interessados no assunto.

    A frica ensinada no BrasilAo levar em considerao que a freqncia ao ensino obrigatria2 no Brasil, noque chamamos de Ensino Fundamental - com durao de nove anos podemossupor que o material didtico produzido e utilizado nas escolas seja um instrumentode grande importncia para a construo do conhecimento e na elaborao dereferncias sobre a Histria da frica e dos africanos. Talvez esse poder seja menordo que o da mdia ou das imagens daquele continente que chegam pela Internet,cinema ou TV e cercam nossos estudantes. Mas, mesmo assim, o estudo da histriaafricana nas salas de aula brasileiras, no deixa de ser uma possibilidade demudanas nos olhares lanados sobre os africanos e suas histrias.

    A partir desse contexto, apresentaremos a seguir anlise realizada sobre a formacomo alguns dos manuais escolares de Histria utilizados nas escolas brasileirasabordaram a Histria da frica e representaram, por meio de imagens e textosescritos, os africanos. Com relao ao tratamento concedido a Histria do continentelimitaremos o esforo analtico aos trechos que se referem ao perodo anterior aosculo XIX, j que, sobre esse recorte da histria africana ainda maior o silncio.Esperamos que seja uma boa contribuio inicial para to importante debate.

    Os africanos dentro dos manuais escolares de HistriaSilncio, desconhecimento e poucas experincias positivas. Poderamos assim

    definir o entendimento e a abordagem da histria africana nas colees de livrosdidticos brasileiros. Apenas um nmero muito pequeno de manuais possuicaptulos especficos sobre a temtica. Nas outras obras, a frica aparece apenascomo um figurante que passa despercebido em cena, sendo mencionada como umapndice misterioso e pouco interessante de outros assuntos. Tornou-se evidentetambm que, quando o silncio foi quebrado, a bibliografia limitada e odistanciamento do tema por parte dos autores, criaram obstculos significativos parauma leitura mais atenta e um tratamento mais pontual sobre a questo.

    2 Nos anos noventa esta obrigatoriedade foi sendo aos poucos efetivada em nmeros reais. Os ndices de alunosmatriculados no Ensino Fundamental correspondem grande parte da populao em idade escolar no pas.

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    O Ensino da Histria da frica em debate

    Antes de maiores reflexes sobre nosso objeto3, que se registre um elogio. Dentrode um total de mais de trinta colees de Histria destinadas para o EnsinoFundamental apenas oito, dedicam o espao exclusivo de um captulo para tratar ahistria do continente africano anterior ao sculo XIX, e outras duas, reservam

    tpicos extensos para tratar temtica. Nas outras, quase sempre, a frica apareceem bvias passagens da Histria do Brasil, da Amrica ou da Europa, ligadas escravido, expanso ultramarina, ao domnio colonial no sculo XIX, ao processode independncia e s graves crises sociais, tnicas, econmicas e polticas em quemergulhou grande parte dos pases africanos formados no sculo XX.

    Nos textos em enfoque, por razes que talvez espelhem a pequena intimidadecom a bibliografia especializada em Histria da frica e as circunstncias especficasda elaborao de um livro didtico, as imprecises e equvocos acabam porpredominar. Isso no exclui algumas boas reflexes realizadas pelos autores ou ainda

    abordagens adequadas dos contedos apresentados. No entanto, os livros, quasesempre, so marcados mais pelos desacertos do que pelos acertos. Faamos umbreve balano desses pontos, lembrando que eles no so comuns a todos os livros,mas sim fruto de um panorama geral desses manuais. Como estratgia deapresentao dividimos os aspectos analisados em tpicos, nos quais associamos asvises dos autores acerca de determinados contedos ou temticas.

    Poucas palavras para muitas HistriasUm primeiro problema a destacar pode ser identificado com uma simples passada de

    olhos pelos ndices dos manuais. Se elogiamos a disposio dos autores em conceder frica um captulo especfico, inversamente sintomtico o espao reservado a taltarefa. Existe clara tendncia entre os volumes analisados com exceo de dois livros de dedicar um nmero significativamente menor de pginas ao tratar a frica,concentrando suas abordagens em uma verso eurocntrica da Histria.

    Por exemplo, enquanto os captulos que tratam de temas como Europa Medieval,Absolutismo Monrquico, Reforma Religiosa e Renascimento Cultural ocupam emmdia de 15 a 20 pginas e vasta bibliografia, Histria da frica, na maioria doscasos, reserva-se algo entre 10 a 15 pginas (ver grfico 1), e com uma literatura deapoio restrita. Por falta de conhecimento ou de interesse percebe-se um grandedesequilbrio ao se abordar a histria da Europa e da frica.

    claro que no estamos tomando como referncia exclusiva o valor quantitativoda questo, mas tambm qualitativo. Parece-nos bvio que, tratar a histria africana abordando um perodo equivalente a pelo menos mil anos e englobando ocomplexo e diverso quadro das sociedades e civilizaes do continente em dez ouquinze pginas algo que s se torna possvel com extremas simplificaes egeneralizaes.

    3 Pesquisa apresentada na tese de doutorado defendida em 2007 junto programa de Ps-Graduao em Histria da

    Universidade de Braslia (UnB) Lies sobre a frica: dilogos entre as representaes dos africanos noimaginrio Ocidental e o ensino da Histria da frica no Mundo Atlntico (1990-2005). Na tese tenciono fazera anlise acima citada em manuais didticos de Histria produzidos a partir de 1990 utilizados nas escolasbrasileiras e portuguesas. Ver tambm meu artigo intitulado A frica nos bancos escolares: Representaes eimprecises na literatura didtica, presente na bibliografia.

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    Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana na Escola

    Frisamos que a expectativa sobre a abordagem escolar da histria da frica nose encerra na ilusria idia de que todas as sociedades africanas tenham que sermencionadas ou abordadas. Parece evidente tambm que qualquer assunto tratadoem sala de aula ou em um livro didtico escolhido a partir de alguns critrios eleitospelos autores, editoras, Estado currculos estudantes e professores. Assim comoa forma de abordar o tema nunca vai deixar de ser uma leitura parcial, um recorteum tanto arbitrrio das experincias enfocadas. Mas o que no justificvel, pelomenos em nosso entendimento, o pequeno espao concedido ao estudo dahistria da frica.

    A frica s dos grandes "Reinos" e "Imprios"?Outro elemento comum aparece quando os autores apresentam as sociedades

    africanas que sero estudadas. Eles, quase sempre, utilizam uma difundida idiaentre os historiadores pertencentes chamada corrente da "Superioridade Africana"4

    de que seria fundamental estudar as grandes civilizaes encontradas na frica.Porm, esse grupo de pesquisadores e intelectuais, no perodo prximo anterior eposterior s independncias, utilizou padres ou modelos europeus para afirmarao mundo e aos prprios africanos que a Histria do continente negro possuaelementos sofisticados e formas de organizao avanadas e que deveriam serestudadas.

    Grfico 1. Nmero de pginas dedicadas temticaEscala por nmeros de livros

    4 O historiador guineense Carlos Lopes organizou uma classificao para a historiografia africana na qual ela pode

    ser pensada em trs correntes: a corrente da Inferioridade Africana; a corrente da Superioridade Africana; e osnovos estudos africanos. Com relao corrente da Superioridade Africana uma de suas principais caractersticasera supervalorizar o continente, utilizando categorias europias no estudo de antigas civilizaes africanas,buscando igualar os feitos histricos africanos aos europeus. Ver LOPES, Carlos. A Pirmide Invertida:historiografia africana feita por africanos.

    Fonte: levantamento efetuado pelo autor.

    Entre 10 e 20 pginas

    (10%)

    Mais de 20 pginas

    (20%)

    Entre 10 e 15 pginas

    (30%)

    Menos de 10 pginas(40%)

    1 Livro

    2 Livros

    3 Livros

    4 Livros

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    Neste sentido encontrar os grandes "imprios" e "reinos", as grandes construese as esplendorosas obras de arte, se tornou, portanto, quase que uma obsesso5 .Porm, j faz algum tempo que as novas historiografias africanas vm alertando parao fato de que a frica uma regio de grande autonomia, de imensa capacidade

    criativa e de fecunda participao na histria da humanidade, e de que no seriapreciso eleger sempre referncias europias para sua afirmao. Porm, os autoresdos manuais parecem desconhecer essa crtica, pois justamente esse o critrioadotado em oito6 dos dez livros para selecionar o que ser estudado sobre a Histriada frica. Por isso a presena quase certa dos reinos de Gana, do Kongo, daEtipia, do Zimbabue e dos imprios do Mali e Songhai.

    A princpio no temos nada contra a citao ou estudo dessas formaespolticas, elas devem ser abordadas. At por que, de fato, permitem a intimizao,por parte de estudantes e professores, de uma frica diversa, rica e fascinante. O que

    incomoda sua supervalorizao ou enfoque exclusivo, e no a sua presena quasesempre obrigatria. Tal nfase ocorre em detrimento outros contextos histricostambm importantes, o que causa uma leitura distorcida de certas sociedadesafricanas.

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    O Ensino da Histria da frica em debate

    Parece tambm que a nfase na abordagem da frica Ocidental, encontrada emboa parte dos manuais, se confunde com a perspectiva de que a existncia dos"grandes reinos e imprios" ocorreu em maior nmero naquela regio. Dessa formao "resto" da frica, no recebe a mesma ateno, parecendo que suas sociedadesseriam menos interessantes.

    Grfico 2. Tema central dos cpitulos e tpicos

    5 Sobre a questo ver os trabalhos de Philip Curtin Tendncias recentes das pesquisas histricas africanas econtribuio histria em geral e Manuel Difuila Historiografia da Histria de frica.

    6

    Para informaes e pesquisas mais completas acerca dessas formaes polticas ver os seguintes estudos:BIRMINGHAM, David, A frica Central at 1870; COSTA E SILVA, Alberto, A Enxada e a lana. A frica antes dosportugueses; KI-ZERBO, Joseph, Histria da frica Negra; M' BOKOLO, Elikia, frica Negra Histria e Civilizaes,at ao Sculo XVIII; NIANE, D. T. (org), Histria Geral da frica, vol. IV: frica entre os sculos XII e XVI; OLIVER,Roland, A Experincia Africana e FAGE, J. D. e OLIVER, Roland. Breve Histria da frica.

    Fonte: levantamento efetuado pelo autor.

    Outras Temticas - 20%

    Reinos e ImpriosAfricanos - 80%

    2 Livros

    8 Livros

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    Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana na Escola

    O vinho feito de palmeira era muito apreciado, emborafizesse muito mal sade quando bebidoexageradamente. O guerreiro bbado era fcil de ser

    derrotado, o sbio bbado no passava de tolo.8

    Apesar desses aspectos, um ponto positivo pode ser destacado do esforo dostextos em descrever a concentrao dos grandes reinos e imprios africanos nafrica Ocidental. Ao abordarem, por exemplo, a relevncia da metalurgia, odomnio da grande agricultura e o circuito comercial que envolvia as atividadeseconmicas entre as sociedades africanas dali com as de outras regies, elespermitem a aproximao imaginria dos alunos com parte da cultura material

    desses povos. Outro acerto comumente encontrado refere-se ao destaqueconcedido ao perfil comercial de algumas sociedades na rea9. A presena decaravaneiros rabes e africanos envolvidos nos negcios , muitas vezes,corretamente apresentada. Ao mesmo tempo, a referncia alguns importantescentros urbanos do perodo como Tombuctu, Gao ou Djenn, com seus grupos decomerciantes ou artesos, permite aos estudantes perceberem a ativa participaodos africanos nas atividades mercantis/intelectuais/culturais desenvolvidas naquelaparte do continente.

    Os comerciantes habitavam uma cidade prxima enegociavam com os rabes do Norte da frica, comprandotecidos, sal e cobre.10

    J outro reino africano citado com freqncia o da Etipia. A nfase dasinformaes concentra-se na idia de que ele foi um grande reino cristo cravadoem meio s sociedades islamizadas. Sua sobrevivncia teria sido possvel, segundoalguns autores, devido " aliana entre os governantes locais e os poderosos lderes

    religiosos". Sendo assim, "em troca da construo de enormes igrejas de pedra eda doao de terras, os lderes religiosos apoiavam as guerras contra os islamitas"11.Parece um tanto limitante encerrar toda a importncia ou histria da Etipia emum dado: ela ser crist. E suas outras faces e caractersticas?

    Que fique claro que no negamos a importncia das abordagens dessas regiesou formaes polticas africanas. Elas de fato possibilitam a construo de novos

    8SCHMIDT, Mario. Nova Histria Crtica, 6 srie, p. 181.9 O comrcio foi uma caracterstica econmica comum a vrias regies na frica, no ficando limitada a citada rea

    da frica Ocidental. Tanto na frica Central, com um comrcio intra-africano at o sculo XV, como na parte

    Oriental do continente com grande influncia e participao do mundo rabe as atividades mercantis foramcomuns.

    10 SCHMIDT, Mario. Nova Histria Crtica, 6 srie, p, 178.11 DREGUER, Ricardo e Toledo, Eliete. Histria: cotidiano e mentalidades, 7, p. 58.

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    referenciais imagticas e conceituais sobre a frica. Porm, a idia transmitida poresse enfoque parece reforar a perspectiva de que os "pequenos" grupos nopossuem relevncia alguma. Ou ainda diante da impossibilidade de atentar para asdiversas sociedades que se espalham pelo continente, a seleo ocorreu

    espelhando-se na Histria da Europa: o estudo das grandes civilizaes ou reinos.No ignoramos a existncia na frica de organizaes polticas ou sociais, comsemelhanas s europias ou americanas, mas preciso que se demonstre eenfatize suas singularidades e especificidades. Porm, esse importante debatesobre o sentido ou significado das categorias como "reino" ou "imprio" para estassociedades africanas no ocorre. Esses conceitos so empregados e apresentadoscomo se possussem o mesmo valor explicativo utilizado na compreenso dasrealidades europias.

    muito provvel que tal descaso confunda as referncias adotadas ou

    construdas pelos alunos sobre a histria africana. A utilizao de modelos oucategorias europeus de fato uma ao comum e pouco didtica por parte dosautores.

    Em contra partida, como aspecto extremamente adequado, destacamos astentativas realizadas por alguns livros de informar aos alunos a maneira como aHistria da frica Ocidental foi reconstruda a partir do uso das fontes escritasrabes e europias e das fontes orais africanas.

    No caso da histr

    ia dos imprios africanos dos sculos XI a

    X

    V, os historiadores encontram histrias orais transmitidasde gerao em gerao at os dias de hoje.12

    A escravido na frica e o trfico de africanos escravizados

    A "escravido" em debateAo analisar os efeitos da escravido e do trfico negreiro nas populaes africanas os

    livros didticos, com raras excees, revelam um grande descompasso com as novaspesquisas historiogrficas acerca da temtica. Sobre as referncias dos diferentes usos,sentidos e concepes da escravido na frica e na Amrica e das motivaeseconmicas que alimentaram o trfico negreiro, algumas posturas incomodam.

    Primeiro, poucos autores fazem aluso explicativa escravido tradicionalafricana - aquela existente antes da chegada dos europeus ou rabes -, como se aescravido fosse uma inveno estrangeira naquele continente. Sabendo dasprofundas diferenas entre a escravido praticada pelos africanos, e aquela utilizadasob influncia dos rabes ou europeus, seria fundamental um comentrio sobre o

    tema. Em alguns textos isso ocorre parcialmente.

    12 Idem, ibidem, p. 63.

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    Porm, em outros, as narrativas esto recobertas de imprecises e equvocos,como, por exemplo, quando o assunto tratado envolve a abordagem da escravidoe do trfico praticado pelas sociedades islmicas, marcados por um intenso fluxo egrande quantidade de indivduos escravizados.

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    Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana na Escola

    Outra forma de escravizao consistia em uma prtica antigaentre os afr

    icanos: os vencedores de uma guerra tinham odireito de levar parte dos derrotados para trabalhar em suaterra. Contudo, o escravo levava uma vida parecida com a

    dos trabalhadores livres: trabalhava lado a lado com eles,mantinha suas tradies e muitas vezes alcanava a liberdadeao lutar junto com os guerreiros da tr

    ibo.13

    Grfico 3. Abordagens sobre a escravido na frica

    13

    DREGUER, Ricardo e Toledo, Eliete. Histria: cotidiano e mentalidades, 7, p. 59.14 SCHMIDT, Mario. Nova Histria Crtica, 6 srie, p. 180.15 Sobre o assunto ver os seguintes trabalhos presentes na bibliografia: MANNING, Patrick, Escravido e mudana

    Social na frica; THORNTON, John,A frica e os africanos na Formao do Mundo Atlntico; e COSTA e SILVA,Alberto da,A manilha e o Libambo.

    evidente que existem outras faces, no to amistosas, da escravido praticadana regio e que so ignoradas ou omitidas pelos autores. Trabalhos de historiadoresreconhecidos na temtica como John Thornton e Paul Lovejoy revelaram h um bomtempo a existncia de castigos, castraes, comercializao e sacrifcios envolvendo

    os usos da escravido na frica, principalmente nas sociedades islamizadas e notrfico saariano. Ao mesmo tempo quase nada dito sobre as carcatersticas eespecificidades da chamada escravido domstica ou de linhagem e parentesco,concentrando as informaes acerca da escravido atlntica, ou seja, aquela queenvolveu o trfico e o uso de africanos escravizados nas Amricas15.

    A escrav

    ido no era novidade na frica. Desde o sculo XIos rabes adquiriam escravos africanos. Mas os rabestinham poucos escravos e geralmente os filhos dos escravosj eram quase livres.14

    Fonte: levantamento efetuado pelo autor.

    6

    7

    9

    Livros que abordam a

    escravido rabe (60%)

    Livros que abordam aescravido tradicional

    africana (70%)

    Livros que abordam aescravido atlntica (90%)

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    O Ensino da Histria da frica em debate

    Segundo, ao tentar situar o aluno perante as relaes das prticas materiais comas mentalidades de certo perodo, algumas anlises se revestem de um perigosoanacronismo. Ao afirmarem que mesmo sendo apoiada pela Igreja, governos,comerciantes, polticos, fazendeiros e pela mentalidade da poca, a escravido foi de

    alguma forma injusta em sua prpria essncia, os livros - que adotam tal posturaexplicativa - perdem os limites temporais e os critrios do relativismo, fazendo comque o aluno visualize uma histria na qual, todos devem ter como valores ereferncias de vida os padres ocidentais atuais16.

    Alm das necessidades econmicas, ex

    istia a mentalidade dapoca. A escrav

    ido no era escandalosa como hoje. Atmesmo os padres tiveram escrav

    os. J pensou se algumdisser que temos de aceitar as injustias sociais de hojeporque no futuro algum vai falar que no nosso tempo 'asinjustias eram normais?17

    Ao exigir da Igreja Catlica do perodo uma postura contrria a quehistoricamente manteve o autor desconsiderou as perspectivas teolgicas etemporais do catolicismo. A idia de que a Igreja foi omissa ou permissiva no condizcom as prticas e posturas do Vaticano poca, so reflexes que encontram ecoapenas a partir dos olhares contemporneos18. No podemos esquecer que oselementos que embasaram as bulas papais, que autorizavam os reis portugueses aescravizar eternamente os muulmanos, os pagos e os africanos negros, foramretirados de um imaginrio maior, no qual o negro e os infiis eram tipificados comoinferiores aos homens da cristandade europia19. No estamos justificando a posturade nenhuma instituio e nem negando a dramaticidade dos eventos envolvendo otrfico de pessoas pelo Atlntico. O nico incmodo a iniciativa de julgar e emitir

    juzos de valor sobre fatos e contextos que se constituem em sua essncia temporale definidora com bases diversas das vivenciadas por estudantes e professores.

    De forma parecida, quase no existem menes aos africanos traficantes ou asformas de escravizao usadas na frica. Para boa parte dos autores, somente oscomerciantes portugueses, espanhis, ingleses e brasileiros fizeram parte das redesde lucro oriundas de tal atividade. A participao de africanos no comrcio dehomens , apesar das positivas excees, ignorada, a no ser pela perspectiva de quemuitos escravos foram obtidos a partir dos conflitos entre grupos rivais docontinente. Soma-se a esse quadro o uso pouco adequado de imagens que ilustram

    16 Parece bvio que pensar a escravido a partir dos valores e concepes de mundo influenciadas pelas ideologias eposturas humanitrias que marcaram a segunda metade do ltimo sculo, exige a rejeio e o combate da suaexistncia nos dias de hoje, ou mesmo no passado. Porm, isso uma viso do presente. O conjunto de idias,valores e interesses daquela poca eram outros e no eram homogneos. Mesmo que a violncia fosse marcacerta desse processo, ele era justificado para os homens do perodo, inclusive alguns africanos.

    17 SCHMIDT, Mario. Nova Histria Crtica, 6 srie, p. 213.18 Alertamos que, no estamos desconsiderando os esforos de alguns missionrios, religiosos ou telogos contrrios escravido. Apenas evidenciamos o debate poltico, diplomtico e religioso de esferas hierrquicas maioresacerca da questo ou que se tornaram caractersticas gerais da Igreja.

    19 Acerca da questo, ver o trabalho de Carlos Lopes. A Pirmide Invertida - historiografia africana feita por africanos.

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    os africanos e escravos no Brasil em condio de submisso e de punio. Nelas reproduzido o esteretipo do africano passivo e sofredor.

    Nos manuais em que a frica no recebe uma abordagem especfica um dos maioresequvocos encontrados de se referir sua histria apenas a partir do trfico de

    escravos. como se o continente no tivesse uma trajetria histrica anterior escravido atlntica. Alguns autores dos manuais analisados aqui chamam a atenopara a influncia dessa referncia na elaborao do imaginrio cheio de esteretiposcompartilhado pela grande maioria de nossos alunos e professores acerca dos africanos.

    Em geral, quando no Brasil e na Amrica falamos em frica,todos se lembram logo da escrav

    ido e explorao impostasaos africanos pelos europeus. como se a histria da fricaestivesse sempre presa histria dos povos dominadores.20

    Entre diversidades e simplificaesUma das principais estratgias para desconstruir alguns dos esteretipos que

    simplificam ou inferiorizam os africanos aos olhares ocidentais revelar aos alunosque abaixo do Saara no existiram apenas dois grandes grupos humanos: os bantose os sudaneses. Ao longo da Histria da frica, inclusive nos dias atuais, podemosencontrar centenas de grupos tnicos e diversas formas de organizao poltica-social-cultural-econmicas no continente. Essa profunda diversidade uma das facesmais vivas e caractersticas da frica

    No comeo dos captulos quase todos os autores alertam, de forma bastantepontual, para essa diversidade cultural que teria caracterizado os povos africanos,assim como para o fato de que a grande civilizao egpcia ser, antes de qualqueroutra "coisa", africana. Esses argumentos serviriam para desconstruir as idiasequivocadas transmitidas pelo ensino da Histria e preservada no imaginrio comumde uma frica homognea e simplista.

    A frica um imenso continente, ocupado por muitos povosque apresentam uma grande diversidade cultural. Taldiversidade resulta dos diferentes processos histr

    icos v

    ividos

    pelos habitantes de cada regio na frica.21

    Uma frica ocupada por tribos?Com relao maneira de denominar ou identificar as sociedades africanas o uso

    de alguns termos ou conceitos demonstram muitas vezes o despreparo dos autores.Por exemplo, o conceito de tribo, utilizado por seis dos dez manuais (ver grfico 4),parece ser por demais impreciso para se referir as sociedades do continente. Existe

    j, h algum tempo, um intenso debate acerca das marcas ou interdies dautilizao dessa categoria.

    20 MACEDO, Jos Rivair e OLIVEIRA, Mariley W. Brasil: uma histria em construo, p.195.21 DREGUER, Ricardo e TOLEDO, Eliete. Histria: cotidiano e mentalidadesHistria: cotidiano e mentalidades, 7, p.56.

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    Diante do grande suporte que as pesquisas antropolgicas e histricas j deramsobre o assunto, acredito que insistir nessa forma de se referir s sociedades da fricano encontra mais justificativa22. Porm, a referncia s sociedades africanas comotribais freqente. Parece existir uma continuidade de idias com os mitos ou teorias

    que defendiam a suposta inferioridade dos povos africanos, j que tribo aparece,nestes casos, com o significado oposto ao de civilizao. A utilizao da categoriatribo tambm recorrente para designar as sociedades dominadas pelos imprios.Ser que existe nesta relao alguma inteno de inferiorizar os pequenos grupos?Em nenhum livro encontramos algum tipo de aparte explicativo sobre o significado,trajetria e ajustes que devem cercar a aplicao desse conceito.

    Grfico 4. Associao das sociedades africanas aos conceitos deTribal/Primitivo/Selvagem

    Fonte: levantamento efetuado pelo autor.

    O uso de alguns outros termos ou conceitos como de nao ou de pas tambm sorecorrentes, e tambm esto encobertos de impreciso. Fica evidente que os autoresencontram dificuldades em tratar os grupos tnicos africanos, e confundem ainda maisos alunos ao usarem termos ou definies que se ajustam mais especificamente a outroscontextos histricos do que ao africano, pelo menos at o incio do sculo XX. No queno possam ser aplicados no entendimento da frica, mas, se utilizados, devem sercontextualizados. Neste caso o uso de termos comogrupo tnico, sociedades oupovosparece ser mais didtica e conceitualmente mais acertado.

    As cosmologias africanas esquecidasOutra falha encontrada em alguns textos a pequena ateno dedicada s

    concepes cosmolgicas23 das sociedades africanas. Em poucos momentos os livros

    22 Ver os seguintes trabalhos, SOUTHALL, Aidan, The illusion of the tribe, pp. 38-51; DAVIDSON, Basil, The search forAfrica, pp.141-145; e de TRAJANO FILHO, Wilson, Uma experincia singular de crioulizao, pp. 6-8.

    23 Ao nos referirmos em frica ao que no Ocidente entendemos por religio utilizaremos o termo Cosmologia. Naverdade o termo procura condensar a idia de uma estrutura de pensamento que articula as relaes entre asesferas do fsico e do metafsico de forma muito mais intimista e complexa do que no caso ocidental. As relaescom as foras invisveis, com os antepassados, com as normas de funcionamento das sociedades e do cosmos,se confundem nessa dinmica perspectiva relacional.

    6

    9

    Sem referncias - 4(40%)

    Tribais ou primitivos

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    atentam para uma abordagem explicativa da relao entre as diferentes percepese definies daquilo que os ocidentais chamam de Religio para as elaboraesafricanas sobre a questo. A literatura existente sobre o pensamento tradicionalreligioso africano oferece um rico subsdio para este debate, em minha opinio,

    fundamental para relativizar o universo africano e demonstrar como suas estruturasde explicao das relaes sociais e da vida so diferentes das ocidentais 27.Devido polmica que normalmente envolve o assunto nas salas de aula ele

    deveria ter presena obrigatria nos textos didticos. Porm, o tema recebe apenasuns poucos pargrafos de ateno, em apenas alguns poucos livros.

    (...) uma parte importante dos africanos acreditava num nicoDeus: eles se tornaram muulmanos (...) Muitos povosafricanos desenvolviam o culto aos antepassados. Os parentes

    mor

    tos eram adorados como deuses por seus familiares, queacreditavam que os espritos podiam ajudar ou perturbar ocotidiano dos v

    ivos. Por isso, era comum jogar-se um poucode bebida na terra para que o esprito do parente mortopudesse beber e se alegrar.28

    Assim, apesar da forte presso dos imperadores, nobres egrandes mercadores a favor da adeso ao islamismo, amaioria da populao do imprio continuava mantendosuas prticas religiosas, como a adorao aos deuses danatureza.29

    Sobre essas passagens fica uma inquietante dvida: que parte importante dosafricanos era monotesta? E esse o nico elemento que possibilitou a converso aoislamismo? Acreditamos que estas idias estejam erradas. Mais do que isso o que sepercebe a extrema simplificao e superficialidade ao se tratar das cosmologiasafricanas. Em certos trechos se empresta a todo universo africano algumas prticas,que se ocorriam em certas regies do continente possuam significados singulares ecomplexos, em outros, as complexas estruturas do pensamento africano ficamresumidas a esteretipos. No podemos ignorar o fato de que o fenmeno religiosoem frica no tem as mesmas bases do que o Ocidental. Por isso, para os povos daregio seria mais adequado usar o termo cosmologia e no religio. Alm disso, difcil aceitar que as complexas estruturas dos pensamentos cosmolgicos africanossejam resumidas pela idia deles serem "adoradores de deuses da natureza".

    Os africanos islamizados e o isl africanizado.No tpico responsvel pela abordagem das mltiplas relaes, presenas e

    apropriaes do islamismo com as sociedades africanas percebemos um movimento

    24 Acerca da questo das cosmologias africanas,ver a obra de APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai.25 Ver SCHMIDT, Mario. Nova Histria Crtica, 6 srie, pp. 182-183.26 DREGUER, Ricardo e TOLEDO, Eliete. Histria: cotidiano e mentalidades, 7, p. 61.

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    O Ensino da Histria da frica em debate

    explicativo comum entre os livros e impreciso historicamente. Poderamos falar emuma espcie de etnocentrismo rabe, a nortear essas anlises. As aes histricasocorridas na frica do Norte, Ocidental e Oriental se tornam exclusividades dosgrupos rabes muulmanos que percorrem a regio, restando aos africanos uma

    postura passiva perante o outro.As influncias do islamismo e a prpria islamizao de algumas sociedadesafricanas so mencionadas, porm alguns aspectos so negligenciados ou citados deforma um tanto confusa. Um desses pontos a idia de que a converso aoislamismo atingiu a todos os membros das sociedades em contato com osmercadores rabes ou dos estados islmicos em expanso de forma quaseinstantnea. As estratgias de converso das elites comerciais ou governamentais ea posterior e gradual converso da populao so fenmenos apenas parcialmentemencionados.

    Apesar de manterem diversas prticas tradicionais,converteram-se ao islamismo, absorvendo muitos aspectosda cultura islmica(...) A adoo dos mesmos elementosutilizados por seus parceiros comerciais possibilitava maiorcontrole sobre as relaes comerciais, evitando-seprejuzos.27

    Outro descuido no mencionar a apropriao e influncias dos africanos sobreo islamismo praticado na frica. Seria correto afirmar que o Isl foi muitas vezesafricanizado. Na arquitetura, nas formas teocrticas, nas interpretaes alcornicas,na convivncia com as concepes cosmolgicas locais, existiu uma participaoativa das sociedades da regio sobre o Isl. Porm, a idia mais repetida, inclusivenas imagens, a da islamizao dos africanos.

    Outros pontos positivos e elogiosNo uso das imagens, alguns autores parecem se sair um pouco melhor, apesar de

    algumas citaes e fontes estarem imprecisas ou ausentes. A apresentao demapas, que fogem das representaes cartogrficas tradicionais dos manuais, e deimagens de mesquitas em Mopti e Djenee e da cidade de Tombuctu e do GrandeZimbbue, assim como de esculturas feitas pelos africanos so importantesinstrumentos na apresentao das formas arquitetnicas, das religiosidades, artes efilosofias africanas.

    Alguns autores, em vlida iniciativa, chamam a ateno dos alunos para asrepresentaes elaboradas pelos africanos sobre os europeus, como algumasimagens feitas por uma sociedade do Golfo da Guin em seus contatos com osportugueses nos sculos XV e XVI, revelando a postura mercantil e blica doseuropeus no continente africano. Alertar para as representaes feitas dos europeus

    pelos diversos grupos africanos um exerccio fecundo para que os alunos passem a

    27 DREGUER, Ricardo e TOLEDO, Eliete. Histria: cotidiano e mentalidades, 7, p. 62 e 63.

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    Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana na Escola

    reconhecer a participao ativa e a autonomia das sociedades africanas perante asrelaes estabelecidas com outras sociedades.

    Normalmente o que encontram