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ATENÇÃO: TEXTO PARA ESTUDO DO GRUPO DE PESQUISA, NÃO DEVENDO SER DIVULGADO NESTA FORMA INTELIGÊNCIA OPERÁRIA E ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO: A PROPÓSITO DO MODELO JAPONÊS DE PRODUÇÃO 1 Christophe Dejours 2 PREÂMBULO Este texto não tem por objetivo trazer conhecimentos novos (nem mesmo um ponto de vista novo) sobre as questões de Psicopatologia do Trabalho 3 levantadas no Japão pelo novo modelo de produção. A discussão aberta na França sobre os processos psíquicos mobilizados pelos trabalhadores (para enfrentarem as dificuldades ligadas à organização do trabalho) apóiam-se, como se sabe, na teoria psíquica do sujeito. Ora, esta teoria depende, até prova em contrário, do contexto sócio-histórico ocidental. A literatura japonesa em psicopatologia não nos leva a pensar que a teoria sobre a qual nos baseamos aqui tenha valor operacional no contexto daquele país. Por outro lado, por não dispor de nenhuma pesquisa pessoal de campo sobre o trabalho no Japão, só tenho conhecimento da situação real através de dados de segunda mão, quer dizer, de trabalhos sobre o Japão publicados por outros autores. Estes 1 In: Helena Hirata (org.), Sobre o “Modelo” Japonês. São Paulo, EDUSP, 1995 (publicado na França em 1993). Nota do Coordenador do Grupo de Pesquisa (NC). 2 Trata-se do autor mais destacado da abordagem em Psicologia que se denomina, a partir dos anos 90, Psicodinâmica do Trabalho”. Diversos de seus livros foram já publicados no Brasil, dentre os quais: A loucura do trabalho, São Paulo, Oboré, 1987 (publicado na França em 1980, no Brasil pela primeira vez em 1987, já com diversas reedições) e O fator humano, São Paulo, Ed. Fundação Getúlio Vargas, 1997 (publicado na França em 1995). NC. 3 A partir de 1993, na nova edição ampliada (Travail: usure mentale – Nouvelle édition augmentée: De la psychopathologie à la psychodynamique du travail. Paris, Bayard Eds. 1993. Obra ainda não publicada no Brasil) do livro Travail: Usure mentale: essai de psychopathologie du travail (publicado em 1987 sob o título A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho), em seu “Adendo Teórico” (traduzido e publicado em livro no Brasil em uma de coletânea de textos de Dejours – Christophe Dejours: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. Rio de janeiro/Brasília, Ed. Fiocruz/ Paralelo 15, 2004. Desde ali Dejours propõe uma nova denominação para a abordagem de seu grupo, a partir de então: Psicodinâmica do Trabalho (que incorporaria em seu interior os estudos acerca de Psicopatologia do Trabalho). NC.

Inteligência Operária E Organização do Trabalho _Dejours_

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Page 1: Inteligência Operária E Organização do Trabalho _Dejours_

ATENÇÃO: TEXTO PARA ESTUDO DO GRUPO DE PESQUISA, NÃO DEVENDO

SER DIVULGADO NESTA FORMA

INTELIGÊNCIA OPERÁRIA E ORGANIZAÇÃO DO

TRABALHO:

A PROPÓSITO DO MODELO JAPONÊS DE PRODUÇÃO1

Christophe Dejours2

PREÂMBULO

Este texto não tem por objetivo trazer conhecimentos novos (nem mesmo um

ponto de vista novo) sobre as questões de Psicopatologia do Trabalho3 levantadas no

Japão pelo novo modelo de produção. A discussão aberta na França sobre os processos

psíquicos mobilizados pelos trabalhadores (para enfrentarem as dificuldades ligadas à

organização do trabalho) apóiam-se, como se sabe, na teoria psíquica do sujeito. Ora,

esta teoria depende, até prova em contrário, do contexto sócio-histórico ocidental. A

literatura japonesa em psicopatologia não nos leva a pensar que a teoria sobre a qual

nos baseamos aqui tenha valor operacional no contexto daquele país.

Por outro lado, por não dispor de nenhuma pesquisa pessoal de campo sobre o

trabalho no Japão, só tenho conhecimento da situação real através de dados de segunda

mão, quer dizer, de trabalhos sobre o Japão publicados por outros autores. Estes

1In: Helena Hirata (org.), Sobre o “Modelo” Japonês. São Paulo, EDUSP, 1995 (publicado na França em 1993). Nota do Coordenador do Grupo de Pesquisa (NC). 2 Trata-se do autor mais destacado da abordagem em Psicologia que se denomina, a partir dos anos 90, “Psicodinâmica do Trabalho”. Diversos de seus livros foram já publicados no Brasil, dentre os quais: A

loucura do trabalho, São Paulo, Oboré, 1987 (publicado na França em 1980, no Brasil pela primeira vez em 1987, já com diversas reedições) e O fator humano, São Paulo, Ed. Fundação Getúlio Vargas, 1997 (publicado na França em 1995). NC. 3 A partir de 1993, na nova edição ampliada (Travail: usure mentale – Nouvelle édition augmentée: De

la psychopathologie à la psychodynamique du travail. Paris, Bayard Eds. 1993. Obra ainda não publicada no Brasil) do livro Travail: Usure mentale: essai de psychopathologie du travail (publicado em 1987 sob o título A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho), em seu “Adendo Teórico” (traduzido e publicado em livro no Brasil em uma de coletânea de textos de Dejours – Christophe Dejours: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. Rio de janeiro/Brasília, Ed. Fiocruz/ Paralelo 15, 2004. Desde ali Dejours propõe uma nova denominação para a abordagem de seu grupo, a partir de então: Psicodinâmica do Trabalho (que incorporaria em seu interior os estudos acerca de Psicopatologia do Trabalho). NC.

Page 2: Inteligência Operária E Organização do Trabalho _Dejours_

últimos, ademais, são mais pesquisadores de ciências sociais do que especialistas em

psicologia.

Portanto não é o caso de trazer aqui um julgamento sobre as práticas de trabalho

realizadas pelos japoneses, que, aliás, talvez não tenham muito o que fazer com as

meditações do psicopatologista do trabalho.

Em compensação, o sistema japonês de produção é alvo, na França, de acirradas

discussões, às vezes seguidas por ações, no campo da organização do trabalho e da

administração. Ora, tais ações já provocam efeitos concretos sobre a vida comum dos

trabalhadores, e é a propósito disso que o psicopatologista francês é interpelado muitas

vezes por engenheiros, organizadorcs do trabalho, conceptores, médicos e organizações

sindicais.

Para o pesquisador que, partindo da clínica do trabalho, esforça-se em analisar a

relação subjetiva com a tarefa, e que às vezes tem a impressão – talvez ilusória? – de

captar seus processos e suas dinâmicas, tão insólitas quanto fascinantes, certamente as

pesquisas sobre o funcionamento do sistema japonês registradas pelos pesquisadores

em ciências sociais têm o efeito de uma bomba.

A primeira impressão é de estar diante de um enigma: de que maneira a

subjetividade dos trabalhadores é solicitada na empresa japonesa?

A segunda impressão é mais uma reação de perplexidade não isenta de angústia:

haverá algum lugar, no funcionamento do sistema japonês de produção, para o jogo

desta subjetividade à qual o ocidental se apega tanto?

Sem temer a repetição, que vale como uma advertência ao leitor, não pretendo

elucidar aqui o enigma nem dissipar a perplexidade ansiosa que acabo de mencionar.

Trata-se sobretudo de levantar questões e talvez mesmo de aprofundá-las, no

intuito de encaminhá-las de volta aos pesquisadores e especialistas do modelo japonês

(e de suas aplicações no mundo), que tiveram a audácia ou a temeridade de questionar

este modelo quanto a suas implicações psicológicas, e mesmo quanto a seus efeitos

sobre a saúde mental dos trabalhadores.

Para justificar as questões que serão aqui enunciadas, começaria expondo o

estado da reflexão em Psicopatologia do Trabalho sobre a “inteligência criadora” no

trabalho: concepção da mobilização psíquica que difere consideravelmente das teorias

clássicas da motivação4.

4 A crítica à noção de motivação em Psicologia, está presente desde o começo na obra de Dejours, como pode-se encontrar em um texto publicado na França em 1982, contido em uma coletânea de textos de

Page 3: Inteligência Operária E Organização do Trabalho _Dejours_

INTRODUÇÃO

Todos os trabalhos reunidos neste volume deixam entender, em diferentes graus,

que o modelo japonês conhece um sucesso indubitável, pelo menos no Japão, em

matéria de produtividade e de qualidade. Diversas interpretações são propostas para dar

conta da formidável participação dos trabalhadores, dos esforços impressionantes, e

mesmo da dedicação, de que eles dão provas em favor da causa da empresa japonesa.

Para tanto, evocam-se as contrapartidas de que eles se beneficiam no novo modelo:

• estabilidade inigualável de emprego,

• perfil de carreira gratificante,

• taxa salarial elevada, e sobretudo adicionais de todo tipo.

Estas contrapartidas econômicas ou materiais seriam suficientes para se

compreender as condutas observadas entre os trabalhadores japoneses e para elucidar as

transações que se operam entre atores (ou entre sujeitos) no novo regime de produção?

Talvez, mas parece, de qualquer modo, que, procedendo-se a uma análise

decididamente limitada à dimensão material da troca (ou das transações), supõe-se que

a vivência subjetiva dos trabalhadores alinha-se docilmente com as normas econômicas

e as relações mercantis onde se enquadra. Este é um ponto de vista que pode ser

questionado, na medida em que estamos nos referindo a certas situações concretas

precisas, estudadas na França — em que sob essas mesmas referências econômicas

(emprego, carreira, salário e adicionais) os trabalhadores franceses não têm muito o que

invejar dos trabalhadores japoneses — situações concretas, portanto, em que as

condutas singulares e as práticas coletivas revelam-se bastante renitentes ao que

implicaria uma explicação fundamentada unicamente nas transações econômicas

evocadas (Dejours, 1989).

É forçoso, portanto, ao que me parece, levar em consideração não somente as

dimensões econômicas, mas também as dimensões não-materiais do trabalho, isto é, as

dimensões psicológicas e simbólicas, e mesmo comunicacionais, no sentido

habermasiano do termo.

autores dessa abordagem: C. Dejours & E. Abdoucheli, “Desejo ou motivação? A interrogação psicanalítica do trabalho”, in C. Dejours, E. Abdoucheli & C. Jayet, Psicodinâmica do Trabalho:

Page 4: Inteligência Operária E Organização do Trabalho _Dejours_

No plano teórico, além do mais, inúmeros pesquisadores retomaram – sabemos o

quão tumultuadamente – a toda-poderosa razão econômica. Diante disso, certos autores,

ao contrário, passaram a privilegiar em suas teorizações as distâncias entre

determinações econômicas e condutas sociais, elaborando conceitos novos para

explicar não as regularidades, mas justamente as diferenças e heterogeneidades entre as

condutas adotadas pelos diversos atores [(conceito de práticas coletivas; Cottereau,

1980) (conceito de aprendizagem coletiva; Kergoat, 1984)].

Esta inflexão na ordem da teoria sugere, por outro lado, que se adote certa

prudência, em princípio, quando se trata de examinar o “modelo japonês”; justificando-

se uma desconfiança em relação a identificações apressadas: sem dúvida, pelo modo

com que às vezes se comenta na França o “modelo japonês”, a própria heterogeneidade

da situação no Japão e as diferenças entre grandes e pequenas empresas, entre

trabalhadores da matriz e de empresas subcontratadas, entre a situação das mulheres e

dos homens etc., são temas vistos de maneira um tanto sumária.

Para questionar a dimensão psicológica da relação com o trabalho no modelo

japonês, pode-se escolher, dentre diversos temas, um problema particular: o da

confiabilidade, ou da confiabilização dos sistemas homem-máquina, a partir do qual

mostrarei, em referência aos estudos empíricos realizados na França, como se pode

analisar o envolvimento das subjetividades no trabalho. Depois de propor um esboço

teórico da inteligência criadora investida no trabalho, formularei algumas perguntas

endereçadas aos pesquisadores que têm por objetivo o estudo de campo da dimensão

psicodinâmica da relação homem-trabalho no sistema japonês de produção.

COMPONENTES SUBJETIVOS DA CONFIABILIDADE

(O FATOR HUMANO)

Todos conhecem a quantidade impressionante de pesquisas realizadas sobre a

confiabilidade dos sistemas complexos e das tecnologias que apresentam riscos de

acidentes graves (para os trabalhadores, para o meio ambiente e para as populações

mais próximas). Essas pesquisas podem ser reunidas sob duas rubricas: estudos

referentes aos equipamentos técnicos e às instalações (segurança) – os estudos de

contribuição da escola dejouriana à análise da relação prazer, sofrimento e trabalho. São Paulo, Atlas, 1993. NC.

Page 5: Inteligência Operária E Organização do Trabalho _Dejours_

confiabilidade; e estudos referentes a qualidade do trabalho efetuado pelos operadores –

os estudos sobre o fator humano.

Nesta literatura, é comum considerar o fator humano a partir de uma perspectiva

pejorativa: falha humana, erro humano, inconsciência humana, negligência humana,

distração, inconsequência, incompetência etc. são termos e expressões que permeiam o

discurso dos especialistas.

De acordo com esta concepção do fator humano, a luta pela confiabilidade está

prioritariamente voltada para objetivos técnicos: melhoria dos circuitos de

retrocontrole, multiplicação dos dispositivos técnicos de segurança, substituição dos

homens, sempre que isto for viável, por automatismos supostamente mais confiáveis. O

pensamento subjacente a tal concepção da confiabilidade consiste portanto em tentar,

sempre que possível, desembaraçar-se dos homens, os causadores de problemas.

Diversos autores, há alguns anos, vêm criticando esta concepção da confiabilidade

(Reasomi, 1989; de Keyser, 1989; Llory, 1990). Na Psicopatologia do Trabalho, as

coisas tomaram o rumo oposto, em função dos dados empíricos coletados em estudos

de campo, que não corroboravam absolutamente a concepção pejorativa do fator

humano (Dejours, 1980). Mostrou-se, ao contrário, a propósito das indústrias químicas,

como, sob o efeito do medo, os operários engendravam artifícios, graças aos quais eles

preveniam certos incidentes e otimizavam o funcionamento do processo. Mais tarde, a

propósito dos operários de construção civil e de obras públicas, demonstrou-se que, em

matéria de segurança das pessoas no trabalho, tudo se passava da mesma forma que em

matéria de segurança das instalações: os próprios operários inventam, elaboram e

tramitem uns aos outros os procedimentos mediante os quais eles evitam certos

acidentes de trabalho, procedimentos estes que não lhes haviam sido ensinados nem

durante a sua formação nem pela supervisão. Trata-se dos “savoir-faire5 de prudência”

(Cru, 1983). Pouco depois, o mesmo autor mostrava como o controle dos riscos de

acidentes implica o coletivo e passa pelas práticas de linguagem específicas que não só

reflete um saber comum, como também contribuem para constituí-lo e para construí-lo

(Cru, 1984).

E em todos esses savoir-faire de prudência — exatamente da mesma forma que em

relação aos savoir-faire em geral e “artifícios de ofício” — que eu gostaria de

5 Em uma tradução literal: saber-fazer. NC.

Page 6: Inteligência Operária E Organização do Trabalho _Dejours_

encaminhar a discussão sobre a confiabilidade e a confiabilização dos trabalhadores,

levantada pelo funcionamento do sistema de produção japonês.

SAVOIR-FAIRE E INTELIGÊNCIA ARDILOSA

Parece difícil compreender os desempenhos japoneses sem supor que os recursos da

inteligência operária sejam particularmente bem utilizados pela organização do trabalho

e pela gerência. Para tentar interrogar o êxito do modelo japonês, não se pode deixar de

pensar no que a clínica do trabalho nos ensina sobre o investimento da inteligência na

tarefa. Os levantamentos que mais serviram de base de estudo referem-se ao trabalho de

ofício, tanto nas tarefas artesanais tradicionais quanto nos novos ofícios (inventores de

programas informáticos, mecânicos, operadores nas indústrias de processamento,

pilotos de caça, enfermeiros de reanimação etc.). Esses levantamentos nos levaram a

especificar os recursos psíquicos da inteligência prática, que convém distinguir dos

requisitos cognitivos, dos quais não trataremos neste trabalho.

INTELIGÊNCIA ARDILOSA

CARACTERÍSTICAS META PSICOLÓGICAS

1. A primeira característica desta inteligência pratica é, do ponto de vista psíquico,

estar fundamentalmente enraizada no corpo6. Muitos dos achados extraordinários e

muitos dos ajustes ordinários na organização do trabalho e na prevenção de acidentes

passam pela solicitação dos sentidos, alertados por uma situação ou por um evento que

rompe a rotina ou ocasiona desconforto (ou desagrado). Um ruído, uma vibração, um

cheiro, um sinal visual podem, assim, solicitar o sujeito, mas primeiro em seu corpo;

mas desde que exista previamente uma experiência, vivida pelo corpo inteiro, da

situação comum de trabalho. Portanto, são em primeira lugar essas mudanças (ou, ao

contrário, a repetição, quando esta se torna dolorosa) que alertam o corpo e suscitam a

curiosidade, totalmente tensa desde o início, em busca de uma explicação, e mesmo de

uma solução apaziguadora. Este envolvimento do corpo na tarefa, assim como a

6 Este, como outros negritos no corpo do texto, foram por nós introduzidos, para efeitos didáticos. NC.

Page 7: Inteligência Operária E Organização do Trabalho _Dejours_

primazia da percepção, coloca a inteligência prática, tanto em seu desencadear quanto

em sua intencionalidade, numa temporalidade atual que somente a Fenomenologia

permite captar e comentar (Merleau-Ponty, 1976; Schutz, 1987).

Esta dimensão corpórea da inteligência prática é importante ser considerada, na

medida em que ela implica um funcionamento que se distingue fundamentalmente do

raciocínio lógico. É a desestabilização do corpo total, em sua relação com a situação,

que desencadeia, inicia e acompanha o exercício desta inteligência prática. Por isso,

esta inteligência é fundamentalmente uma inteligência do corpo. Tal assertiva repousa

em uma discussão metapsicológica, da qual faremos apenas menção neste trabalho a

título de referência (Dejours, 1986; Rosenfield, 1989:79).

Independentemente de seu desencadear, o alvo intencional do ato de consciência,

que orienta em seguida a ação, confere à inteligência uma direção e objetivos que serão,

mais uma vez, conduzidos pelo corpo e pela percepção. Neste processo, que incita o

operário a agir sobre a organização de seu trabalho, os dados técnicos e científicos são

muitas vezes utilizados dentro de uma temporalidade inversa daquela de um raciocínio

científico ou experimental. A partir dos dados perceptivos, o operário esboça muito

rapidamente uma interpretação, um diagnóstico ou uma medida corretiva, e só interroga

a técnica depois da atitude tomada, para verificar, operacionalizar e universalizar a

tentativa que lhe foi sugerida pela intuição alimentada e dirigida por suas percepções.

Esta dimensão corporal da inteligência é que se mobiliza primeiro quando os

operadores se esforçam por corrigir o funcionamento de uma linha de produção, e

mesmo introduzir nela verdadeiras inovações. Envolvimento do corpo por conta de uma

inteligência prática, que acarreta êxitos, obtidos não sem uma ocasional insolência em

relação aos conhecimentos e ao raciocínio tecnocientíficos, que geralmente se

acreditam serem indissociáveis da ordem da máquina. Assim, pode-se observar que

diversos operadores ignoram a maior parte dos conhecimentos fundamentais de

informática e matemática, mas se mostram capazes de intervir com eficácia sobre a

programação, e até ou mesmo aperfeiçoam os programas. Os desempenhos desta

inteligência prática são menos limitados do que em geral acreditamos.

O exemplo a seguir foi tirado de um levantamento realizado em uma indústria de

petroquímica: os operadores que supervisionam as instalações na sala de controle, nas

fases de funcionamento em regime de ritmo normal, têm o hábito de jogar scrabble. Tal

prática insólita em um local de trabalho onde a vigilância deveria ser constante inquieta

os próprios operários e suscita uma espécie de culpa. Eles escondem esta prática

Page 8: Inteligência Operária E Organização do Trabalho _Dejours_

comum liberando rapidamente a mesa de jogo quando ouvem um chefe se aproximar da

sala de controle do processo.

Os chefes, por sua vez, estão a par desta prática de jogo scrabble durante as horas

de trabalho, que desaprovam e tentam proibir, sem no entanto recorrer a sanções.

Em Psicopatologia do Trabalho, há um princípio fundamental de investigação e de

análise: toda conduta, mesmo que pareça aberrante ou absurda, tem sempre um sentido

e uma razão de ser. Sobretudo quando esta conduta possui uma certa estabilidade na

vida comum de trabalho..., até prova em contrário. A idéia que orienta a investigação

consiste portanto em procurar aquilo que, apesar da vivência subjetiva de culpa dos

operários, poderia iniciar e estabilizar a prática do jogo de scrabble na sala de controle.

As reuniões de trabalho com o coletivo, em que operadores e pesquisadores trocam

idéias, proporcionaram os seguintes resultados: quando o processo funciona com uma

certa estabilidade e quando ele é bem regulado, os operários se aborrecem. Tal situação

de inatividade os irrita, os aborrece, e, com o tempo, faz com que eles sejam dominados

pela angústia.

Ao jogarem scrabble, eles encontram, perto das mesas de controle, uma ocupação

que proporciona certo convívio, e então se acalmam. Mas ao fazerem isso, eles também

fazem muito mais do que parece. O jogo de scrabble exige ás vezes tempo e reflexão

entre as jogadas, o que permite a um ou a outro se levantar, voltar um momento para as

mesas de controle e proceder ao aperfeiçoamento de uma regulagem de vazão ou de

pressão. Depois ele retoma seu lugar na mesa de jogo. De vez em quando, portanto, um

jogador deixa a mesa e intervém no processo. De fato, durante todo o tempo do jogo

eles “escutam” o processo. Escutam o barulho, as vibrações, os alarmes periódicos, o

ronronar das instalações. Se então sobrevém, neste ruído de fundo do qual o corpo está

impregnado, um ruído anormal, uma vibração de frequência mais baixa..., o corpo

reage e o operário se levanta. Desse modo os operários auscultam, enquanto jogam, o

funcionamento das instalações.

Ora, tal auscultação é algo delicado. Só se torna possível no caso de operários muito

bem treinados, com uma grande experiência da sala de controle. Esta supervisão

auditiva não lhes foi ensinada. Não é objeto de nenhuma instrução de uso. Mas, no

dizer dos operários, ela é bastante eficaz. Todos dela participam, com um talento

variável, diga-se de passagem. Isto não se explica. É aprendido através do contato com

os operários mais antigos.

Page 9: Inteligência Operária E Organização do Trabalho _Dejours_

Foi assim que os operários elaboraram um “artifício’’, um “truque’’, afim de

controlar com eficácia o processo. Ora, o envolvimento do corpo nesta auscultação do

processo é penoso. Se o operário se põe a escutar ativamente, de forma reflexiva,

concentrando-se no ruído, ele não conseguirá mais ouvi-lo. Ou ele não ouve mais nada,

ou todos os ruídos se tornam suspeitos; ele acaba se perdendo e fica dominado pela

angústia. Não consegue mais se servir de suas percepções. O regime de produção em

ritmo normal exige, de certo modo, que o operário se descontraia, que ele se coloque

em estado de repouso relativo. Então conseguirá entrar em acordo física e

sensorialmente com o processo, podendo localizar sem hesitação as anomalias que se

apresentarem.

Neste contexto, compreende-se, afinal de contas, que a prática do scrabble é

“genial”! É ao scrabble que eles se dedicam, e não ao jogo do bisca, por exemplo,

muito mais freqüente entre os operários na França. De fato, fala-se muito durante o

jogo de bisca, e se faz muito barulho. No scrabble, ao contrário, se faz silêncio. Por

romper o tédio e acabar com a angústia, o jogo de scrabble refina o desempenho

sensorial. O jogo concilia a busca de conforto com a eficácia técnica.

A descoberta do jogo de scrabble como regulador do comportamento durante o

controle do processo, não provém de qualquer cálculo teórico ou estratégia racional.

Trata-se de uma descoberta empírica, cheia de engenhosidades, cuja legitimidade só é

demonstrada por uma eficiência prática.

Os pontos sobre os quais convém ainda insistir são, primeiro, o lugar que ocupa o

corpo inteiro numa tarefa que se descreve erradamente como estritamente intelectual, e

depois a preeminência temporal da prática sobre a consciência, e a elucidação da

(função do jogo de scrabble como) “artifício técnico’’. Daí o interesse em desmontar

sua lógica interna. Pois, depois de elucidado, o jogo de scrabble pode ser tolerado sem

reservas tanto pelos próprios operários, agora liberados de sua culpa, quanto pela

supervisão, tranquilizada em relação a essa prática insólita.

De modo mais geral, este manejo da inteligência desorienta o sábio e permanece

desconhecido por parte dos executivos e engenheiros. A menos, quem sabe, que se

trate de uma negação proposital? É fácil provar que os próprios engenheiros e

executivos utilizam amplamente este recurso. E isso vale também para os sábios, até

nos melhores laboratórios de pesquisa experimental, onde parte das descobertas passa

por manipulações e ajustes empíricos, os quais sabemos perfeitamente serem

provenientes mais de artifícios, “receitas culinárias” , do que de uma lógica racional

Page 10: Inteligência Operária E Organização do Trabalho _Dejours_

positiva (ver: A importância dos meios e métodos nos protocolos experimentais e

publicações científicas).

O envolvimento do corpo, ainda que este seja criador da própria inteligência

prática, não implica a ausência do pensamento. Mas seu uso desempenha um papel

importante na forma das modelizações práticas e representações metafóricas do

funcionamento técnico, que os operadores harmonizam naturalmente com o diapasão

do corpo humano. Um bom exemplo disso foi revelado no estudo a respeito do meio

encontrado pelos pedreiros para controlar os riscos ligados às manobras de transporte

dos blocos de pedra (Cru, 1984), Da mesma forma, isso poderia ser exemplificado no

caso de se dirigir um automóvel, cuja precisão é devida, em grande parte, ao

envolvimento do corpo na inteligência prática, e não à cálculos ou à aplicação rigorosa

das instruções de uso do veículo. Pode-se verificar que isso vale igualmente no caso de

se dirigir um caminhão ou pilotar um avião, mesmo sendo este ultimo tecnicamente

sofisticado.

2. A segunda característica da inteligência prática é sua capacidade de auferir

mais importância aos resultados da ação, do que ao caminho utilizado para atingir

os objetivos. O rumo do pensamento é um fato capital, mas ele zomba do rigor. Aqui

reina o “jogo rápido”, a malícia, a trapaça, a esperteza, a astúcia. A justificativa, a

explicação, a elucidação, a legitimação e a análise só intervém posteriormente ao

sucesso. A experiência precede o saber. Em outras palavras, o que domina o uso da

inteligência prática é a astúcia. Esta inteligência é fundamentalmente uma “inteligência

ardilosa”, que se oporá facilmente à “inteligência racional”. Detiènne e Vernant (1974)

divulgaram as fontes gregas desta inteligência: a métis, que eles opõem à themis. Esta

métis, que garante o êxito das provas práticas e na ação, é a mesma em que se baseia o

mister (“métier’’). A métis está no cerne da engenhosidade que constituiria de certo

modo a própria mola propulsora do mister, do ofício.

Fundamentalmente, esta engenhosidade é também vetorizada pelas economias do

esforço: obter o máximo e o melhor mediante o mínimo de dispêndio de energia. Há na

engenhosidade uma preocupação com a economia, economia esta entendida aqui

essencialmente em relação ao corpo e ao sofrimento. É neste sentido que a inteligência

e astúcia são, também nesse caso, indissociavelmente solidárias ao corpo.

Page 11: Inteligência Operária E Organização do Trabalho _Dejours_

3. A terceira característica psíquica da inteligência prática é estar em todas as

tarefas e atividades de trabalho. Ela não se manifesta apenas na esfera do trabalho

manual. Ela encontra-se também no centro da atividade intelectual, e mesmo do

trabalho teórico. Isso se depreende bem na atividade do pesquisador que, antes de

proceder à demonstração, estabelece as metas a alcançar, suas intuições, suas

inspirações, seus objetivos, enfim. A engenhosidade, os ardis da inteligência, a métis,

fazem-se notar na arte da demonstração, nas malícias, na elegância, ás vezes no estilo,

que se conjugam na parte retórica de todo discurso teórico e científico. Portanto , é

essencial não cometer o contra-senso comum segundo o qual a engenhosidade, a métis,

as astúcias da inteligência, os savoir-faire e a inteligência prática só se referem às

tarefas manuais, e não às tarefas intelectuais. Há em toda teoria uma parte de

manipulação do experimentador sobre sua mesa de trabalho. Sem a participação da

engenhosidade na pesquisa teórica, só se pode chegar a raciocínios, mas não a um

“pensamento”.

4. A quarta característica da inteligência ardilosa é evidentemente o seu poder

criador. A astúcia e a engenhosidade avaliam-se nas novas formas que elas fazem

surgir. Mais adiante, retornaremos a este ponto essencial, ou seja, de que a criação parte

sempre de um dado a priori sobre o qual elas se apóiam, para operar por meio da

trapaça, segundo um processo fundamental de “subversão” (Dejours, 1988).

5. A quinta característica da inteligência ardilosa é o fato de ela ser amplamente

distribuída entre os homens. Ela é ativa e se manifesta em todos os sujeitos, desde

que eles estejam em boas condições gerais, ou que, de qualquer modo, gozem de boa

saúde. O corpo alimenta e desencadeia a inteligência, ele coloca o sujeito em estado de

alerta. O estado do corpo é um componente do poder da inteligência. Um corpo por

demais fatigado, muito doente ou esgotado, enfraquece a inteligência ardilosa e a

criatividade. Se não for este o caso, logo que o corpo encontra uma solicitação, a

inteligência ardilosa investe na situação, de imediato.

É isso que confere à inteligência ardilosa um caráter “pulsional”. E é também o

que faz com que a maioria das pessoas sadias experimentem uma verdadeira

“necessidade” de exercer a sua inteligência. Há uma espécie de espontaneidade, de

intencionalidade irresistível na inteligência ardilosa. A contrapartida desta propriedade

é que a subutilização desse potencial de criatividade é uma das principais fontes de

Page 12: Inteligência Operária E Organização do Trabalho _Dejours_

sofrimento, de desestabilização da economia psicossomática, e mesmo de

descompensação e doença.

Em suma, a inteligência prática, portanto, é uma inteligência do corpo, sua mola

propulsora é a astúcia, ela está no cerne do oficio, ela está em ação em todas as

atividades de trabalho, inclusive teóricas, ela é fundamentalmente subversiva e

criativa, ela está amplamente difundida entre os homens, ela é pulsional, e sua

subutilização é patogênica. Ela possui outras características psicológicas,

sobretudo a de se alimentar no pólo feminino da bissexualidade, mas este ponto não

será desenvolvido aqui, já que não se trata de um aspecto indispensável à nossa

discussão sobre a confiabilidade.

O SOFRIMENTO E SUAS RELAÇÕES

COM A MOBILIZAÇÃO DA INTELIGÊNCIA CRIADORA

Após este esboço dos recursos da inteligência prática com suas características

psíquicas gerais (metapsicológicas e, em particular, psicoeconômicas), devemos

examinar como, de maneira concreta, ela toma forma e se expressa na situação.

Significa que devemos abordar suas características em nível psicodinâmico.

As formas concretas de que se reveste a inteligência dependem do contexto e de

seus dois componentes: o contexto sincrônico, ou seja, a organização do trabalho e as

relações sociais de trabalho no momento presente, de um lado; o contexto diacrônico,

ou seja, a história do sujeito e a maneira pela qual o contexto sincrônico (situação atual

de trabalho) têm lugar em relação ao passado do sujeito. Pois não há sujeito sem

história singular, e, quando diante de uma situação, o sujeito a experimenta, a

interpreta, reage a ela e eventualmente procura transformá-la, em função do sentido que

tal situação adquire na própria evolução de sua biografia.

Já assinalamos, no inicio deste texto, que na mobilização da inteligência criadora o

sofrimento do sujeito intervém de maneira determinante. Sofrimento este que

justamente responde de maneira inevitável ao distanciamento experimentado pelo

sujeito entre contexto sincrônico e contexto diacrônico, entre situação real de trabalho e

expectativa ou esperança que o sujeito construiu por causa do passado e com as quais

ele aborda esta situação real de trabalho.

Page 13: Inteligência Operária E Organização do Trabalho _Dejours_

A análise da articulação entre organização da personalidade e organização do

trabalho não pode excluir uma referência privilegiada à clínica psicanalítica. De fato; é

no campo desta experiência clínica que se pode compreender melhor a amplitude das

implicações do passado do sujeito sobre sua conduta atual.

ONTOGÉNESE DO SOFRIMENTO E DINÂMICA

DA INTELIGENCIA ARDILOSA

A Psicanálise nos ensina que os traços mais estáveis da personalidade enraízam-se

na infância e nas experiências precoces. Segundo tal teoria, a organização mental não se

origina no nascimento, mas se constrói por etapas. Cada uma delas é marcada pelas

relações entre a criança e seus pais. Assim se cristalizam as formas que delineiam os

traços principais da personalidade. Não sem obstáculos, não sem incidentes. Até que se

estabilize, com suas forças e suas fragilidades, o eu adulto.

Angústia dos pais e sofrimento da criança: os obstáculos com que se defronta o

desenvolvimento psicoafetivo da criança ocuparão mais tarde um lugar central na

relação psíquica do adulto com o trabalho.

Quando muito pequena, a criança parece ser tão sensível à angústia de seus pais,

que esta logo se torna algo também seu. A criança então luta contra o sofrimento de

seus pais como se se tratasse de seu próprio sofrimento. O sofrimento que nasce nela é

vivido na primeira pessoa. Ela não está à altura de reconhecer que ele se origina na

angústia de seus pais. Para metabolizar seu sofrimento, seria preciso que a criança

falasse com seus pais sobre o que a faz sofrer. Mas o que a faz sofrer é precisamente o

que faz também sofrer seus pais. De modo que, se se aventurar neste terreno, corre o

risco de desencadear a angústia dos pais e de agravar sua própria angústia. A criança

aprende a contornar este terreno movediço, mas, dentro dela, cristaliza-se então uma

zona de fragilidade psíquica. Aí se situa a fonte inesgotável do sofrimento singular de

cada sujeito.

A epistemofilia: mais tarde, logo que atinge a idade de falar, a criança se preocupa em

compreender o que se passa nesta “terra incógnita” (zona de fragilidade psíquica),

onde, cada vez que a criança penetra (voluntária OU desgraçadamente), viverá a

Page 14: Inteligência Operária E Organização do Trabalho _Dejours_

experiência dolorosa da angústia, da solidão, do abandono, e mesmo da rejeição por

seus pais. O que preocupa tanto seus pais, que nesta zona ela não pode mais se sentir

amadas por eles? Assim, a angústia, o sofrimento e as preocupações fundamentais de

seus pais tornam-se um enigma que a criança carregará consigo durante toda a sua vida

adulta, Este enigma vai originar uma curiosidade jamais satisfeita, um desejo de saber e

um desejo de compreender, periodicamente reativados pelas conjunturas materiais e

morais cuja forma faz lembrar as preocupações dos pais. A esta curiosidade dá-se em

psicanálise o nome de epistemofilia. A criança construirá desse modo, passo a passo

com o seu desenvolvimento cognitivo, uma série de teorias infantis que se sucederão

sem contudo se substituirem uma a outra. A criança de outrora continuará, assim, a

ocupar certas posições no espaço psíquico do futuro adulto.

O jogo: bem cedo, a criança procura encenar seu desejo de compreender e suas teorias

explicativas. Para tanto, utiliza o jogo (Winnicott, 1975): um convite, dirigido aos pais,

para que representem num teatro intermediário, imaginário e humorístico (logo, menos

ameaçador do que o terreno movediço inicial), seu sofrimento transformado em peça

teatral. Inesgotável, insaciável, a atividade lúdica é uma forma importante de

experimentação das teorias infantis.

O teatro do trabalho: o trabalho é a oportunidade de transpor mais uma vez o cenário

original do sofrimento na realidade social para um teatro menos generosamente aberto,

porém, que o anterior, ao livre sabor da imaginação. Desta feita, os parceiros do cenário

não são mais os pais nem seus substitutos diretos. São os outros trabalhadores, os

outros adultos. E o objetivo não é mais o simples prazer de um jogo, mas a ação no

campo da produção, das relações sociais, e mesmo da política.

A passagem do teatro psíquico para o teatro do trabalho (nível dinâmico)

corresponde ao que em psicanálise se designa pelas expressões técnicas mudança de

objeto (da pulsão) e mudança de finalidade (da pulsão) (nível econômico): destinações

pulsionais específicas da sublimação, cujas etapas de construção acabam de ser

esquematicamente descritas em termos ontogenéticos.

A ressonância simbólica: essas transposições entre o teatro psíquico, O teatro do jogo

e o teatro do trabalho não ocorrem de maneira natural. Para que a última transposição

seja possível, é preciso que exista, entre o teatro do trabalho (ou seja, as condições

Page 15: Inteligência Operária E Organização do Trabalho _Dejours_

concretas do trabalho) e o teatro psíquico herdado da infância, analogias de estrutura ou

de forma. Analogias estas que não implicam nem identidade nem equivalência absoluta.

Entre teatro da infância e teatro do trabalho interpõem-se inevitavelmente

dessemelhanças ou distanciamentos que criam uma ambigüidade, um equívoco: o teatro

do trabalho vale como suporte, como oportunidade de representar de novo um cenário,

próximo do cenário inicial do sofrimento. Mas a ambiguidade é precisamente o que

solicita a imaginação e a criatividade. E também o meio de conjurar a repetição exata e

estéril das questões existenciais. Este equívoco, esta ambigüidade estão muito

precisamente no cerne da simbolização (Laplanche,1980) A esta ambigüidade fecunda

damos o nome de “ressonância simbólica” (Dejours, 1988).

Ressonância simbólica e história singular: quando a ressonância simbólica existe

entre o teatro do trabalho e o teatro do sofrimento psíquico, o sujeito aborda a situação

concreta sem ter de deixar sua história, seu passado e sua memória “no vestiário”. Ao

contrário, ele reveste a situação de trabalho de um poder de envolvimento que implica a

reatualização, por meio do trabalho, de sua curiosidade e de sua epistemofilia. O

trabalho lhe oferece, de certa forma, uma oportunidade suplementar de prosseguir seu

questionamento interior e de traçar sua história. Por meio do trabalho, o sujeito

envolve-se nas relações sociais, para onde ele transfere as questões herdadas de seu

passado e de sua história afetiva. A ressonância simbólica surge portanto como

condição necessária para a articulação bem-sucedida da diacronia singular com a

sincronia coletiva. Este ponto é essencial, pois, face à produtividade e à qualidade do

trabalho, a ressonância simbólica permite que o trabalho se beneficie do extraordinário

poder que lhe é conferido pela mobilização dos processos psíquicos que partem do

inconsciente e se atualizam em inteligência ardilosa. A ressonância simbólica é, de

certa forma, uma condição para a reconciliação do inconsciente com os objetivos da

produção.

Condições da ressonância simbólica: será possível precisar as condições concretas

para o estabelecimento da ressonância simbólica? O investimento sublimatório e a

ressonância simbólica atuam dentro de um espaço limitado com bastante precisão pelas

responsabilidades em matéria de concepção (em oposição às atividades de

execução).Ora, pode-se demonstrar que, numa situação real, a defasagem que cada

operador deve gerar necessariamente entre organização prescrita do trabalho e

Page 16: Inteligência Operária E Organização do Trabalho _Dejours_

organização real requer sempre uma atividade de concepção. É esta atividade de

concepção que toma o lugar da atividade de experimentação antes ocupado na criança

pelo jogo. Ou, dizendo de outra forma: a atividade de jogo na criança torna-se atividade

da inteligência ardilosa no adulto.

INTELIGÊNCIA ARDILOSA, SOFRIMENTO CRIATIVO

E DIREITO À CONTRIBUIÇÃO

Graças a este percurso através da inteligência prática e do sofrimento no

trabalho, pode-se compreender facilmente por que a mobilização psíquica dos sujeitos

face à organização do trabalho adquire tamanho poder. É de maneira espontânea que os

sujeitos “dão forma” ao trabalho: de um lado, sob o efeito da “pulsão” que se desdobra

em inteligência ardilosa, e de outro, sob o efeito do sofrimento em busca de sentido.

Desnecessário invocar aqui um talento excepcional. O que tem de ser explicado é por

que a inteligência ardilosa, vez por outra, não se desdobra. O que é preciso elucidar são

justamente os entraves à mobilização psíquica espontânea dos sujeitos. Apesar das

situações intersubjetivas e materiais de trabalho às vezes temíveis, o clínico de fato só

pode ficar um tanto perplexo diante da teimosia dos trabalhadores em cumprir

corretamente sua tarefa e ao mesmo tempo lutar contra os malefícios organizacionais

em relação à qualidade do trabalho. Daí se pode deduzir que os operadores como regra

não desejam de forma alguma estar na posição de meros executantes. Mesmo quando

não almejam assumir as responsabilidades de dirigentes (que são apenas uma das

formas, entre outras, de expressão do sofrimento criativo), eles não pretendem

permanecer como executantes. O que buscam é cumprir o melhor possível e alcançar

com o máximo de precisão possível os objetivos fixados pela organização, desde que

sejam razoáveis (isto é, nem desproporcionais nem paradoxais).

A experiência clínica nos ensina que, fundamentalmente, o sujeito, em sua

relação com o trabalho, espera que a organização do trabalho lhe ofereça uma

possibilidade de contribuição. E não, como se diz com tanta freqüência, que ela lhe

ofereça unicamente uma retribuição, nem que fosse em pagamento por seu sofrimento e

pelo “sem-sentido” de sua situação subjetiva. Por trás desta expectativa de poder

fornecer uma contribuição singular no campo do trabalho, há sem dúvida uma busca de

identidade. O que mobiliza o sujeito em sua relação com a tarefa não é apenas a

Page 17: Inteligência Operária E Organização do Trabalho _Dejours_

compulsividade, ou a força da pulsão, mas sim o propósito subjetivo fundamental de

obter, em troca de seu envolvimento e de sua contribuição, um benefício em termos de

sentido pala si mesmo. Por trás da mobilização subjetiva, está a busca de identidade.

Compreende-se agora que a mola propulsora da confiabilidade seja antes de tudo

esta criatividade que se nutre do sofrimento e tenta convertê-lo em prazer pelo trabalho.

A concepção taylorista do homem está equivocada. É uma utopia altamente poderosa,

mas que desconhece tudo o que a clínica em Psicopatologia do Trabalho nos ensina

sobre o homem concreto. O aforismo taylorista da vadiagem operária é uma inverdade

clínica que prevalece até hoje na interpretação que se faz do “fator humano”, como

fator fundamental de faltas e de deserção voluntária.

No entanto, não seria o caso de se negar a existência do descompromisso, da

desmobilização, da negligência. Mas sua interpretação será radicalmente diferente á luz

da análise em psicopatologia do trabalho. Argumentaremos mais adiante o ponto de

vista segundo o qual a “vadiagem” no sentido de preguiça não tem nada de natural. O

natural é a espontaneidade, é muito mais a mobilização da inteligência prática.

Vadiagem, preguiça, falta e desinvestimento são antes de tudo o resultado de um

processo de desorganização ligado aos efeitos deletérios da utopia taylorista quando

esta se concretiza nas relações sociais de trabalho.

Esta articulação processual é fundamental para mostrar, conforme anunciamos no

inicio deste capitulo, que as gratificações e retribuições materiais ou econômicas não

são suficientes para explicar a mobilização operária (quando ela existe, como em certas

grandes empresas japonesas). Mesmo em presença de condições econômicas

favoráveis, pode-se observar uma desmobilização operária diante dos objetivos de

trabalho. Veremos mais tarde em que condições.

Antes, porém, é preciso desde já formular uma hipótese segundo a qual, no

modelo japonês, a inteligência prática parece ser reconhecida, respeitada, utilizada e

gratificada de maneira original em relação a diversas situações da indústria francesa.

Convém ainda ressaltar que, no nosso meio empresarial, também se encontram

situações em que o envolvimento da inteligência prática é corretamente reconhecido.

Para maior proveito não só da produção, mas também da saúde dos trabalhadores em

questão (Dejours, 1980).

CONDIÇÕES DE MOBILIZAÇÃO DA INTELIGÊNCIA CRIATIVA

Page 18: Inteligência Operária E Organização do Trabalho _Dejours_

A mobilização útil e eficaz da inteligência criativa requer certas condições.

1. É preciso primeiro urna organização do trabalho prescrita

Pois é a partir desta armação de base que pode ser iniciado o processo de

subversão engendrado pela inteligência ardilosa. Não há astúcia possível, se não houver

regra do jogo desde o inicio. Aliás, por isso os operários, embora critiquem, ás vezes

vigorosamente, a organização do trabalho prescrita, têm um discurso que pode parecer

contraditório. Em hipótese alguma eles gostariam de fato que desaparecesse a

organização prescrita. Como pudemos demonstrar a partir de um levantamento numa

indústria de processamento, apesar de suas inflexibilidades, apesar de suas notórias

imperfeições, apesar de suas inadequações, a organização prescrita do trabalho nunca é

considerada inútil pelos operários. E, se for o caso muitas vezes de trapaceá-la e de

subvertê-la, não se trata jamais de adotar uma posição delinquente, anti-autoritária. Este

ponto é fundamental: a obediência é muito mais amplamente aceita pelos operários do

que se acredita normalmente: a crítica, e mesmo a irritação, não implicam a recusa

sistemática em obedecer. E esta obediência, que é inseparável da subversão de

identidade, mostra-se ás vezes tão surpreendente, que passa indevidamente por

alienação.

Este ponto deverá ser levado em conta na avaliação do modelo japonês, em que a

docilidade dos operários talvez derive não só da alienação, mas também de uma

verdadeira habilidade da gerência para manejar a parte de obediência necessária á luta

pela identidade.

2. A segunda condição refere-se á transparência.

De fato, a inteligência ardilosa que opera por subversão e por trapaça coloca os

sujeitos numa situação equivoca. A astúcia, como se sabe, exige certa discrição, às

vezes mesmo o segredo. É claro. Mas trapacear com a organização prescrita do trabalho

implica assumir riscos. Por exemplo, na indústria nuclear, transgredir as instruções e as

medidas regulamentares é indispensável para poder cumprir direito a tarefa. Pois, se se

quiser respeitar todas as obrigações regulamentares e legais, fica-se condenado a não

poder trabalhar de modo algum. Os próprios regulamentos são amiúde contraditórios

uns com os outros, e inúmeras circunstâncias materiais comuns tornam impossível a sua

estrita observância diante de uma situação real. O respeito obstinado implica a paralisia.

Page 19: Inteligência Operária E Organização do Trabalho _Dejours_

Mas ao “fraudarem”, o operário ou a equipe, ou mesmo o chefe de obras, o chefe de

equipe ou o contramestre colocam-se em posição delicada. Se sobrevier posteriormente

um acidente envolvendo a segurança nuclear, a responsabilidade e o erro do agente

serão invocados inevitavelmente. Para poder assumir a “fraude” contra a

regulamentação, é preciso uma certa transparência, através da qual os colegas e os

superiores diretos são convidados ou obrigados…, a saber, e a compartilhar os riscos. E

em caso de dificuldade ou de se ocorrer um risco importante, a solidariedade coletiva é

convocada diretamente, ou após discussão polêmica seguida de arbitragem.

Ao estudar esta situação em uma central nuclear, foi possível mostrar como o não-

reconhecimento das imperfeições da organização do trabalho pela diretoria e pela

hierarquia leva os operários a pôr em ação uma estratégia coletiva de defesa ad hoc:

estes últimos, obrigados a continuar enganando para poderem executar o seu trabalho,

adotam a tática do segredo generalizado. Cada um opera e decide sozinho. Então

surgem as incompreensões, os mal-entendidos entre os próprios operários, que, não

podendo confessar em que consiste sua própria fraude, também não conseguem mais

compreender o que fazem seus companheiros de equipe mais próximos. Daí nascem

conflitos que por vezes podem alcançar dímensões dramáticas. Compreende-se isso

facilmente quando se sabe que em seu próprio trabalho os operários expõem-se a riscos

graves para a sua saúde. Se eles não captarem o sentido do comportamento de um

colega e se tiverem dúvidas quanto a qualidade e á segurança das operações executadas

sucessivamente at´r o ponto do trabalho que terão de assumir, então o medo pode

transformar os mal-entendidos em conflitos, ininteligíveis porquanto o segredo não

pode ser revelado.

Muito embora as condições econômicas concedidas a esses trabalhadores

privilegiados sejam gratificantes e comparáveis ao que se observa nas grandes empresas

japonesas, a confiabilidade humana fica gravemente ameaçada, com incidências sobre

os desempenhos, em termos de produtividade, de qualidade e de segurança.

3.Terceira condição: o reconhecimento

a) O julgamento de “utilidade” trata-se do reconhecimento, por parte da direção,

não só da qualidade do trabalho executado, não só da engenhosidade que foi preciso ser

empregada para realizar as tarefas (mesmo as mais comuns), mas às vezes também dos

méritos do trabalhador quanto aos riscos que ele correu para atingir os objetivos das

condições difíceis de seu trabalho.

Page 20: Inteligência Operária E Organização do Trabalho _Dejours_

Um exemplo talvez possa ser dado aqui: para ilustrar meu propósito, eis um

exemplo extraído de certa pesquisa recente acerca da manutenção de um reator nuclear.

A organização prescrita de uma tarefa de manutenção de caldeiras está contida numa

ficha que serve de check-list e pormenoriza todas as operações elementares a serem

executadas e as condições de segurança a serem respeitadas. Certo dia, o chefe de

operações e os operários profissionais foram chamados à ordem, pois em vez de

respeitarem a instrução segundo a qual somente um deles deveria penetrar no recinto

do gerador de vapor, três deles se revezavam para executar o trabalho prescrito. Ao se

sucederem, eles levam mais tempo do que um só operário. Transgressão das instruções,

multiplicação dos operários submetidos aos riscos de irradiação, diminuição do ritmo

de trabalho, ou seja, três faltas ao mesmo tempo, ligadas a um comportamento de

desprezo por parte dos operários em relação á segurança.

Durante a pesquisa, no esforço de procurar entre os operadores uma legitimidade ou

razões eventuais para a desobediência, soubemos que, após os anos todos em que

trabalhavam juntos nesta operação de manutenção, eles se deram conta de que sempre

“recebiam doses” de radiatividade, quaisquer que fossem as precauções tomadas de

cada vez. Foi assim que, sem comunicar a seus superiores, eles resolveram repartir

entre si o tempo de trabalho, de modo que cada num recebesse um terço da dose de

irradiação total, e que cada um testemunhasse assim sua solidariedade para com os

demais membros da equipe.

Então, onde a inconsequência? Ou a estupidez? Ou o gosto absurdo pela

desobediência? Ou a inconsciência? O verdadeiro problema que se coloca aqui

certamente não é o de saber se esses operários são imaturos ou psicopatas. A questão

seria, isto sim, tentar compreender por que os operários agiram em segredo, sem o

conhecimento da hierarquia e dos responsáveis pela segurança. A pesquisa é clara neste

ponto: em matéria de riscos de irradiações nucleares, as medidas regulamentares são tão

estritas, que é impossível colocá-las em discussão sem desencadear uma avalanche de

aborrecimentos que de modo algum proporcionariam resultados concretos para os

operadores. Em tais condições, a mudança nos dispositivos da organização do trabalho

não pode ser objeto de discussão nem de negociação. Esta mudança ocorrerá assim

mesmo, mas em segredo. A pesquisa, por si mesma, traz á tona novamente o debate

entre operadores e engenheiros, o que permite, após discussão, tornar oficial e ratificar

o modo operacional elaborado pelos operários.

Page 21: Inteligência Operária E Organização do Trabalho _Dejours_

Este reconhecimento, como se vê, é antes de tudo simbólico. Reconhecimento

da legitimidade da escolha, reconhecimento do mérito do sujeito e reconhecimento da

qualidade final do trabalho. Não se trata aqui de um reconhecimento material ou de

uma indenização em fonna de prêmio, ainda que estes últimos possam vir a acentuar ou

a reforçar os primeiros. Esta busca pelo reconhecimento é fundamental. Sem ela, a

sangria subjetiva é considerável no registro da busca da identidade. Sem dúvida, é por

isso que os operários não são rebeldes a certas formas de controle de sua produção. Até

pelo contrário, eles muitas vezes o solicitam. Se surgem contradições em sua posição, é

porque esse controle funciona unicamente em proveito da sanção. Mas mesmo a sanção

não é sistematicamente rejeitada pelos operários, que a admitem perfeitamente, para

eles mesmos, quando cometem um erro ou uma negligência, ou para os demais, se for o

caso. Ocorre que, sem o julgamento sobre a qualidade e as negligências, é todo o

processo de legitimação da identidade da inteligência criativa que é posto em dúvida.

É preciso considerar igualmente que o “controle de qualidade” corresponde

também, até certo ponto, a uma expectativa do sujeito na busca de sua identidade, e que

ele nem sempre é recebido como uma medida repressiva face à autonomia, nem como

uma medida humilhante no registro da identidade. É preciso talvez levar isso em conta

na análise do sistema japonês de produção.o sistema japonês de produção.

Este reconhecimento, passa , portanto, por um primeiro tipo de julgamento, que

designaremos pela expressão “julgamento de utilidade” (julgamento sobre a utilidade

social ou produtiva da conduta do operador).

b) O julgamento de “beleza”: há outro tipo de julgamento, que em geral pode ser

feito de forma bastante coerente, a saber, o julgamento dos pares. Seu envolvimento

psicológico, ao que parece, é incontornável. As pesquisas mostram bem como, para

executar uma mesma tarefa ou alcançar um mesmo objetivo, existem certamente várias

maneiras de proceder. Para fazer passar uma tubulação ao longo de uma parede não-

retilínea, pode-se optar por fazer “joelhos” ou arredondar o tubo para costeá-lo rente à

parede. Os modos de operação não são sempre iguais. Ocorre que a escolha entre as

diversas possibilidades não depende somente dos dados materiais e da geometria do

terreno. Certo caldeireiro prefere as curvas, um outro não tem o menor prazer em fazê-

las e gosta de formar “joelhos”, pois assim faz melhor seu trabalho. Entre caldeireiros

que se conhecem bem, o exame minucioso de uma canalização muitas vezes permite

saber quem foi seu autor.

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Mas além da identificação do autor, o caldeireiro tem condições de apreciar o

trabalho bem feito. Ele reconhece a qualidade das soldas, o rigor das linhas, a harmonia

do conjunto, os ardis e as descobertas que se revelam ao longo do canteiro de obras que

está examinando. Somente os colegas, os pares, os companheiros de trabalho, é que

podem assinalar e comentar essas particularidades, além de saborear os resultados bem-

sucedidos. E eles também são capazes de fazer críticas ou reservas sobre um trabalho

ao estilo 6-4-2, ou realizado por um operário inexperiente.

O julgamento de que se trata aqui não é apenas um julgamento de utilidade ou de

eficácia. É também um julgamento que sobretudo analisa, em conjunto, a elegância, o

rigor e a engenhosidade. Um verdadeiro “julgamento de beleza”.

O julgamento de beleza pode ser expresso tanto a propósito da qualidade de uma

canalização quanto de um cimento armado, de uma pedra talhada, de uma

demonstração de equação matemática... sobre a qual os parceiros dirão que é ‘elegante”

ou “pesada”. O exercício deste julgamento é importante por dois motivos: primeiro, por

ser o meio pelo qual se obtém o reconhecimento daqueles que podem exercer o

julgamento mais severo, mais exigente e mais bem motivado. Tal julgamento tem um

valor crucial, pois é por meio dele, e somente por meio dele, que o operador pode ser

reconhecido como par. Par é aquele de quem se reconhece o fato de possuir as mesmas

competências essenciais que as dos outros trabalhadores naquele oficio. Este

reconhecimento é capital no registro da identidade do sujeito, na medida em que ele se

situa num contexto social e coletivo: o da comunidade dos que pertencem a um grupo.

O termo que importa aqui é o pertencer. O pertencer realiza, de certa forma, a

socialização da identidade. Para o psicopatologista do trabalho, as expressões

“identidade coletiva” ou “identidade profissional” são barbarismos. A identidade é

fundamentalmente algo através do qual o sujeito considerado não é idêntico

precisamente a nenhum outro. Por outro lado, o pertencer é algo através do qual o

sujeito compartilha traços comuns, semelhantes aos dos demais membros de uma

comunidade. Não se estaria tratando aqui, portanto, de identidade. Existe até mesmo

um antagonismo entre “identidade coletiva” e “pertencer a uma comunidade”. A

identidade coletiva, para o psicopatologista, caracteriza na verdade situações subjetivas

em que a singularidade e a identidade se apagam em favor dos traços comuns. Logo, a

identidade coletiva refere-se mais à psicologia das massas e, como se sabe, passa pela

idealizaçao e o poder do imaginário (Freud; Enriquez, 1983). A comunidade dos que

pertencem a um grupo funciona no sentido inverso de uma multidão, na medida em que

Page 23: Inteligência Operária E Organização do Trabalho _Dejours_

ela cultiva as identidades e as singularidades, que ela as respeita e as reconhece, e

mesmo as protege entre seus pares.

Desse modo, entificações como sujeito coletivo e identidade coletiva só se

aplicariam rigorosamente quando a abrasão das diferenças entre os pares justificasse a

entificação do grupo, como é o caso, às vezes, dos grupos militares ou paramilitares, ou

das seitas, das multidões ou das formações totalitárias (Dejours, 1983).

Fora da questão do reconhecimento por seus pares, o julgamento de beleza pode

também sancionar as diferenças irredutíveis, mas compatíveis com o pertencer. Trata-se

então de um julgamento sobre a originalidade, que só pode ser reconhecida, afinal de

contas, por aqueles que possuem competência na matéria, ou seja, mais uma vez aqui,

pelos próprios pares. A originalidade reconhecida está de certo modo encadeada ao

processo de reconhecimento da identidade.

OBSERVAÇÕES

• O processo de reconhecimento da identidade, como se verá, supõe o exame do

fazer do operário ou do operador, e não visa somente a personalidade. Em outras

palavras, os benefícios para o registro da identidade, isto é, do ser, só são obtidos como

efeitos secundários, e passam por um processo que se desenvolve inteiramente no

registro do ter.

• Fundamentalmente, é a busca da identidade, ou seja, o beneficio no registro do

ser, que mobiliza a habilidade, a engenhosidade, a inteligência e a criatividade. Se,

portanto, a inteligência ardilosa se beneficia de uma espontaneidade quase “pulsional”,

na realidade ocorre que ela é vetorizada de forma precisa, a fim de alcançar o

reconhecimento, ao aceitar passar pelo fazer, e mesmo pela ação. Uma vez que a busca

da identidade está consubstanciada no sofrimento, na busca de sentido e no alívio da

angústia existencial, não é de surpreender a “espontaneidade” desta mobilização da

inteligência criativa em todo sujeito em luta pela preservação de sua saúde mental. É

esta exigência, subjetivamente incontornável, que está na raiz do que mencionamos no

início deste capítulo: a reivindicação operária de um direito de dar sua contribuição

para a concepção da organização do trabalho. O processo psíquico que leva ao

reconhecimento da identidade é, em essência, uma busca de amor. Com a ressalva de

Page 24: Inteligência Operária E Organização do Trabalho _Dejours_

que ela acontece no registro da ação, e não da sexualidade; nas relações sociais, e não

nas relações eróticas. A mudança de objeto da pulsão, assim como sua dessexualização,

permitem reconhecer que se trata naturalmente de uma sublimação. De tal modo que,

finalmente, o próprio exercício da sublimação só convoca processos psíquicos

individuais, passando pela interpelação de uma comunidade socialmente construída a

partir das práticas do trabalho (Hirata e Kergoat7). Daí podemos concluir que a

mobilização da inteligência criativa, que caracteriza a sublimação, é essencialmente

uma relação intersubjetiva, cujo julgamento de beleza é uma das formas cardinais e

obrigatórias.

O próprio julgamento de beleza merece ser objeto de análise. Não basta saber que

ele supõe necessariamente a existência dos parceiros. E preciso ainda elucidar os

critérios utilizados pelos parceiros para outorgar esse reconhecimento. Como veremos

mais adiante, tal reconhecimento é essencialmente um reconhecimento do respeito às

regras comuns relativas ao trabalho. Esse julgamento de beleza exige, portanto,

condições específicas de visibilidade, uma visibilidade que entra em competição com a

discrição, e mesmo com o segredo que implica o próprio exercício da inteligência

ardilosa. Esse julgamento de beleza só é formulado sobre uma tarefa concluída. Pode

ainda ser emitido a respeito do Operário exercendo sua função, sobre a limpeza de seu

canteiro de obras, sobre a conservação dos seus instrumentos, sobre a economia de seus

gestos, sobre a precisão de seus movimentos, sobre a prudência de sua conduta, sobre a

tranquilidade de suas atitudes. Mas também – e trata-se de um ponto de importância

capital – sobre o respeito que ele demonstra para com os demais operários, sobre a

atenção que ele dá à segurança dos colegas, sobre a ajuda que ele presta aos

companheiros de equipe. Em outras palavras, o julgamento de beleza implica também a

qualidade das relações no aspecto coletivo do trabalho (Cru, 1988). Ora, esta dimensão

é fundamental para construir as relações de confiança, que tornam válida a inteligência

ardilosa. Como é exercido este julgamento dos pares no modelo japonês de produção?

Disso sabemos muito pouco, e pelas pesquisas que chegaram às nossas mãos, nada nos

permite desvendar indícios desse funcionamento. Haveria somente Julgamentos de

utilidade? Quais seriam então as consequências psicológicas de uma supressão dos

julgamentos de beleza no registro da busca da identidade e do prazer pelo trabalho?

7 O autor faz referência a um texto originalmente apresentado em 1987, no Seminário Interdisciplinar de Psicopatologia do Trabalho, posteriormente publicado no Brasil em livro de Helena Hirata: Nova divisão

sexual do trabalho? São Paulo, Boitempo, 2002. NC.

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COMPONENTES SUBJETIVOS DA COOPERAÇÃO

Depois de termos examinado sucessivamente as características metapsicológicas da

inteligência criativa e o contexto diacrônico de sua emergência (genealogia do

sofrimento singular); as condições de articulação entre organização do trabalho atual e

sofrimento proveniente do passado (através da noção de ressonância simbólica); o

contexto sincrônico de legitimação da inteligência ardilosa (os dois julgamentos, de

utilidade e de beleza); o reconhecimento da identidade e o direito de contribuir, resta-

nos agora examinar um último ponto: a articulação e coordenação sociais das

inteligências ardilosas, isto é, as condições da cooperação, último mecanismo de

segurança da mobilização subjetiva, sem o que se observaria a sua perda.

A cooperação supõe condições subjetivas precisas. Já vimos sua prefiguração a

propósito das condições de exercício do julgamento de beleza pelos parceiros e dos

julgamentos de utilidade pelos superiores hierárquicos. É preciso, como já dissemos,

uma certa visibilidade, e mesmo uma certa ostentação. Sem julgamento de beleza, não

pode haver cooperação, pois faltaria então um elo essencial, o da confiança. As

pesquisas que mencionamos demonstram sem ambiguidade que a cooperação não pode

ser decretada, não pode ser prescrita. Ela só pode funcionar passando pela vontade dos

sujeitos de coordenar conscientemente as mobilizações individuais. Na ausência das

condições de visibilidade — e vimos o quanto elas são difíceis de reunir e de estabilizar

(pois a visibilidade exige reciprocidade, até mesmo e sobretudo quando se trata de

cooperação vertical) —, não há mais qualquer possibilidade de reconhecimento. O

segredo reinante nas práticas individuais de trabalho, não podendo levar a julgamentos

circunstanciais, transforma-se quase que imediatamente em desconfiança, ou seja, em

avaliações imaginárias e pejorativas.

Na pesquisa citada, tendo-se instalado a desconfiança nas relações comuns de

trabalho, não havia mais cooperação possível. Da análise da visibilidade, dirigimo-nos

então ao estudo das condições de emergência e estabilidade da cooperação. A

visibilidade está em estreita relação de dependência com a confiança. A questão que se

coloca, portanto, é compreender em que consiste a confiança.

Por analogia, ou antinomia com a desconfiança, e sabemos quão importante é o

lugar que esta última ocupa em semiologia psiquiátrica, poder-se-ia pensar que a

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confiança também diz respeito basicamente á análise psicopatológica. Foi preciso

mudar de idéia, após uma série de pesquisas vãs e decepcionantes.

Ainda que certas formas de confiança pareçam emergir do inefável, como no caso

da confiança cega da paixão amorosa, verifica-se que ela não pode se reduzir ao amor

nem à transferência. A confiança não se inspira de maneira erótica: ela passa

fundamentalmente pelos acordos normativos entre os sujeitos (Pharo, 1989). As regras

comuns estão na base da confiança. São uma condição sine qua non de todas as

transações, tanto na linguagem quanto no trabalho.

Em outras palavras, a confiança é um conceito que se refere à ética, e não à

psicologia. E é principalmente a partir da atitude do sujeito em relação às regras de

trabalho que são formulados os julgamentos de beleza de que falamos há pouco.

MOBILIZAÇÃO SUBJETIVA, ÉTICA E COOPERAÇÃO

Como já vimos antes, o reajuste da organização do trabalho prescrito leva quase

sempre o operador a se colocar em uma situação de ilegalidade, e mesmo a assumir

riscos. Cada local de trabalho exige, portanto, que se tomem decisões e que se façam

opções entre diferentes maneiras de proceder, e também diferentes maneiras de

“fraudar”. Se por um lado as decisões tomadas pelos operadores são sempre motivadas

tecnicamente, nem sempre se justificam do ponto de vista das medidas regulamentares.

A propósito de tais decisões, nascem muitas vezes conflitos entre os operadores ou

entre a base e a cúpula. A questão fundamental aqui são os critérios de arbitragenm

entre as diversas opções possíveis. Os argumentos são unicamente técnicos, mesmo que

estes últimos sejam levados em conta nos critérios de escolha. Há também argumentos

de experiência, de intuição, e argumentos que implicam subjetividade,

intersubjetividade e ética.

Isto significa que em questões como essa não raro são requisitados os

envolvimentos pessoais e se acham implicados os temperamentos, as personalidades, os

caráteres e as opiniões. A propósito justamente dessas decisões gira a questão da

cooperação entre operadores — cooperação horizontal - e da cooperação com a

supervisão — cooperação vertical —, pois muitas vezes convém obter consenso e ter

cobertura do chefe. Ou então convém poder recorrer, sem reticências, à decisão do

chefe quando o consenso não for possível.

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Assim, o risco psíquico circula entre todos os atores do terreno da ação, de trás para

frente, de cima para baixo, e vice versa. E este risco faz parte integrante, quer se queira

quer não, da carga do trabalho. O que se pode dizer aqui a respeito dos riscos ligados à

segurança não implica uma diferença fundamental em relação ao risco representado

pelo desperdício de dinheiro, vivenciado pelos trabalhadores, da indústria japonesa de

série.

CONVÍVIO, ESPAÇO DE PALAVRA E CONFIANÇA

Vimos há pouco como a estratégia defensiva do segredo favorece mal-entendidos, e

mesmo conflitos abertos entre os trabalhadores. Desconfiança e ausência de visibilidade

levam não só a um ambiente de trabalho desastroso, como também desorganizam

progressivamente todas as relações de convívio comum. Os trabalhadores deixam de

promover festas, comemorações e confraternizações. Não comem mais juntos, não se

falam mais, não se cumprimentam mais, e logo começam a discutir.

Neste contexto, o desligamento e a desmobilização tornam-se a regra geral. Cada

um por si, desenvolvimento do individualismo, nada de cooperação. Neste estágio, não

é mais possível compreender os comportamentos opostos de uns e outros.

A pesquisa de Psicopatologia do Trabalho, preocupada com a necessidade de um

grupo de operários que procura superar um sofrimento que se tornou insuportável,

permite reconstituir um espaço para a palavra. É durante estas reuniões de trabalho

coletivas, com a participação dos operários e seus chefes imediatos, que se enuncia toda

uma série de problemas concretos desconhecidos, relacionados com as dificuldades da

organização do trabalho, com os riscos psíquicos e com as questões éticas que essa

organização implica. Uma vez reconstituído, este espaço de palavra modifica sensivel-

mente as condutas individuais e as relações nos ambientes de trabalho, tanto na cantina

quanto no vestiário. Uma vez restabelecida a palavra no trabalho, é também a palavra

comum que surge de volta nas diversas circunstancias da vida prática na fábrica. Então

se aprende que é justamente fora dos lugares codificados institucionalmente, ou seja,

nos locais de convívio comum (refeições, festas), que muitas vezes se discutem as

questões mais importantes da organização do trabalho, e que se formam de novo as

bases da cooperação.

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A polêmica pode, nessas condições, substituir o conflito, ao passo que as

arbitragens, as escolhas e as decisões passam a ser geradas coletivamente, o que alivia

consideravelmente o constrangimento psíquico individual. Existindo o espaço de

palavra, a diversidade, a personalização, a singularização dos modos operacionais e das

habilidades individuais podem ser ali debatidos, legitimados e reconhecidos. Este

reconhecimento individual está na base do “pertencer” e da construção do coletivo do

trabalho. Se o espaço desta discussão for ameaçado, a solidariedade pode vir socorrê-lo.

Essencialmente mobilizada pela adversidade, ela se alterna com a confiança,

indissociável da iniciativa e da criatividade. Confiança e solidariedade são os dois

elementos respectivamente ofensivo e defensivo do coletivo, e mesmo da comunidade

de pertencimento. Tomando em consideração a heterogeneidade essencial entre o ético

e o psíquico, somos levados a afirmar que: os componentes éticos de que acabamos de

falar formariam as condições necessárias (mas não suficientes) para que se possam

estabelecer as relações intersubjetivas (desta feita tomadas em seu sentido

psicodinâmico).

Assim, a produção, mesmo em uma tecnologia tão rigorosa quanto a nuclear,

revela-se inteiramente permeada de costumes não técnicos, mas éticos e psíquicos. De

modo que a transformação do sofrimento em iniciativa e em mobilização criativa

depende essencialmente do uso da palavra e de um espaço de discussão em que

opiniões e perplexidades se tornem públicas.

Convém considerar este espaço como um espaço público, mesmo que se trate de um

espaço público interno da empresa.

Em suma, seria possível afirmar que a transformação do sofrimento em criatividade

implica a manutenção de um espaço público na fábrica. Em compensação, cada vez que

o espaço público apresentar uma tendência a se fechar, a criatividade ficará ameaçada.

Isto sugere que os círculos de controle de qualidade no Japão talvez não funcionem

somente como um lugar de transferência de conhecimentos e de informações, mas sim

como regulador ético das relações comuns de trabalho do dia-a-dia.

ESPAÇO PÚBLICO E RECURSOS HUMANOS

O olhar da Psicopatologia do Trabalho em direção à confiabilidade humana nas

organizações leva, pois, a conferir finalmente um lugar fundamental ao espaço público.

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Uma vez que este é constituído ou reconstituído, ficamos perplexos com a emergência

de condutas totalmente contraditórias com o individualismo e a negligência

denunciados com tanta freqüência nas organizações: envolvimento apaixonado, senso

de responsabilidade, mobilização da criatividade voltam a se manifestar no ambiente de

trabalho.

A construção do espaço publico, por sua vez, envolve não somente a

responsabilidade da base e as qualidades individuais dos operários. Ela também exige

um tipo específico de administração: a administração participativa, que insiste

sobretudo no papel da chefia intermediária. O modelo de administração sugerido em

relação ao sofrimento seria, digamos, que os próprios administradores se envolvam, por

sua vez, no espaço público. Quer dizer, que eles não só assumam o risco de tolerar a

construção de um espaço público na empresa, mas também que resolvam envolver-se

neste espaço, com os operadores da base. E isso não só na qualidade de dirigentes, mas

com sua própria pessoa. Talvez o modelo japonês — mas isso está sujeito a verificação

— tenha integrado em parte esta dimensão da interação.

O princípio da universalidade do sentido dos comportamentos e das condutas

adotadas pelos trabalhadores também vale para os gerentes e para a hierarquia superior,

tanto quanto para os operários. A participação dos dirigentes no espaço público interno

de negociação da organização real do trabalho permite, de fato, que venham à tona as

estratégias defensivas dos quadros dirigentes contra o seu sofrimento. Assim, graças à

pesquisa citada a propósito da usina nuclear, pôde-se descobrir e analisar a ideologia

defensiva dos quadros executivos, o que se reveste de considerável importância para a

reciprocidade do sentido e a manutenção do espaço público (Dejours, 1989).

Agora estamos em condições de concluir que o processo que permite converter o

sofrimento em criatividade implica duas articulações fundamentais: a ressonância

simbólica, de um lado, e o espaço público, de outro.

Em função de todos os elementos que foram levados sucessivamente em

consideração, não podemos nos satisfazer unicamente com a explicação econômica

quando se trata de analisar a confiabilização dos operários no modelo japonês. O que

merece ser analisado é precisamente o modo pelo qual, através do controle da

produção, dos círculos de qualidade, da transparência, do kanban etc., o modelo

japonês trabalha a dimensão ética, simbólica e subjetiva que estrutura as relações de

trabalho, para obter a mobilização da inteligência criativa. A confiabilidade humana –

e esta seria a nossa conclusão – é fundamentalmente uma relação intersubjetiva, que

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implica obrigações de reciprocidade. A confiabilidade humana é basicamente uma

relação intersubjetiva, o que a administração francesa desconhece quase que totalmente.

Mas ela também é — e este ponto nos parece crucial no contexto da administração

no Ocidente — o resultado de uma articulação coletiva construída a partir da base,

segundo os princípios éticos que fundamentam as relações de confiança, sem as quais

não pode haver cooperação. Em outras palavras, ao contrário do que está implícito tanto

nas teorias clássicas da motivação quanto na literatura sobre o fator humano, a

confiabilidade humana se conjuga no singular e no plural.

É vão glosar sobre o erro humano. Como propõe Llory (1990), é preciso passar de

uma abordagem da problemática do “erro humano” para a de que “o erro é humano”.

Todo mundo comete erros, várias vezes por dia. Os atos falhos são mesmo a prova de

um funcionamento psíquico criativo (em oposição ao funcionamento operatório

descrito pelos psicossomáticos8). E é fundamentalmente graças à cooperação que os

erros são corrigidos com tanta freqüência ou que suas conseqüências são controladas,

cada membro da equipe sendo capaz de intervir sobre o trabalho de seus colegas.

ALGUMAS INTERROGAÇÕES Á CONTRA CORRENTE,

OU A VOLTA À PERPLEXIDADE ANSIOSA

Não se trata aqui de formular uma avaliação qualquer, mas de propor alguns

questionamentos suscitados pelos trabalhos sociológicos sobre o modelo japonês.

No exercício da inteligência ardilosa, o equilíbrio incessante entre visibilidade e

segredo, entre singular e coletivo, entre legalidade e trapaça, revela-se crucial. No

modelo de funcionamento japonês, parece que se insiste maciçamente na visibilidade,

na transparência, ao ponto de o segredo individual, e sobretudo coletivo, poder ser

banido, o kanban, os círculos de qualidade, às vezes provocam o temor de que a

transparência não seja somente uma regra (ou um princípio) — logo, que ela possa ser

transgredida, caso necessário —, mas que seja coercitiva.

Pode-se temer que a transparência se desvie imperceptivelmente de seu curso, em

direção à vigilância generalizada e à desapropriação, em nome da razão cívica ou da

razão da empresa.

8 O autor faz referência àqueles que desenvolvem uma abordagem fundada na Psicossomática. NC.

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Desse modo, o que no início do próprio exercício da inteligência ardilosa é movido

pela busca da identidade correria o risco de se desencaminhar no sentido de uma

autonomia reduzida e de um controle hierarquizado – o que significaria evidentemente

uma reabertura trágica em direção à alienação.

Isso pode provocar certa inquietação, quando se pensa no impacto das práticas

japonesas sobre o espaço privado. Não só a autonomia das relações sociais de trabalho

parece reduzida, como também a vida extraprofissional, por sua vez, estritamente

controlada pela utilização do tempo a serviço da empresa: férias mais raras, mobilidade

dos trabalhadores pelo país, longa jornada de trabalho (uma vez que se contabiliza o

tempo consagrado aos círculos de controle de qualidade), e assim por diante... levam a

uma redução drástica e a uma sujeição impressionante, para o operário francês, da vida

familiar, da vida conjugal, da vida com as crianças etc. Sem uma enfeudação rigorosa

das mulheres, dificilmente se compreenderia o funcionamento do sistema no Japão.

Qual será então o preço pago indiretamente pela família, para assegurar a eficácia

daquele que trabalha? Já se sabe na França como as coerções organizacionais, e as

estratégias defensivas que elas desencadeiam, causam impacto negativo sobre a saúde

mental e física das crianças. Como será isso no Japão? Já se verificou que a saúde das

famílias não sofre as conseqüências desta relação com a organização do trabalho?

De saída, é toda a liberdade do espaço privado que seria posta em questão, enquanto

globalmente a obediência, a qual, como vimos antes, é às vezes benéfica para o registro

da identidade, se desvirtuaria, transformando-se em submissão, quando então

novamente o processo de conquista da identidade seria neutralizado. Ademais, pode-se

interrogar acerca das consequências de um alinhamento tão radical do espaço privado

na organização do trabalho, ou seja, de um sistema que não estaria em condições de

equilibrar o investimento humano no trabalho pelo exercício da liberdade privada.

As conseqüências poderiam se captalizar pelo desgaste não controlado dos corpos e

dos recursos pulsionais, capaz de desencadear doenças somáticas e psíquicas. Elas

também poderiam acarretar, por fim, uma inversão dos desempenhos, e neste caso

desgaste e esgotamento levariam finalmente a um declínio da qualidade e da

produtividade. Este não parece ser o caso atualmente do Japão. Há, portanto,

provavelmente um meio de regulação. Mas não sabemos qual.

Assim mesmo, pode-se ficar perplexo diante da maneira pela qual os operários

japoneses se empenham na empresa. Sobretudo diante da aceitação da seleção

psicológica e social no momento da contratação. Em termos econômicos, sabe-se que a

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aceitação desta seleção se relaciona com as vantagens materiais derivadas do fato de se

pertencer à empresa, e de serem com isso eliminados os riscos inerentes à condição de

excluídos das grandes empresas.

Mas o psicopatologista não pode ficar nisso, pois as investigações realizadas neste

campo na França sugerem que a solidariedade de uns diante da discriminação ou

exclusão de outros não é somente passiva. Muitas vezes ela se desdobra, sobretudo

quando oficializada e consciente, em um movimento psíquico que vai muito mais

longe. As pessoas não se regozijam apenas por terem pessoalmente escapado da

adversidade, muitas vezes se regozijam com a infelicidade dos outros (Legendre, 1976),

e isso tanto mais acentuadamente quanto mais se reduzir a distância entre privilegiados

e excluídos, como se o gozo do poder compensasse a erosão das vantagens materiais.

Esta mobilização em favor da discriminação é psicológica e politicamente proble-

mática. A obediência que se converte em submissão dá margem a uma colaboração que

reintroduz a iniqüidade intencional e representa uma ameaça indireta, o que foi

analisado anteriormente a propósito da ética e da construção das regras. Ameaça que

corre o risco de afetar tanto os atos da vida cívica comum quanto os que se desenrolam

no espaço da empresa.

São estas as interrogações que se podem formular sobre a perenidade do modelo

japonês que, embora manipule com bastante precisão e eficácia os recursos subjetivos

da identidade para solicitar a inteligência criativa do trabalho, ao mesmo tempo suscita

algumas questões espinhosas para o psicopatologista.

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