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ARISTIDES PEDROSO DE ALBUQUERQUE NETO | AUGUSTO CARLOS DE MENEZES BEBER | BRENDA CATOI | BRUNA HENRIQUE HÜBNER | CARLA LUANA DA SILVA | CAROLINE MÜLLER BITENCOURT | CYNTHIA JURUENA | DENISE BITTENCOURT FRIEDRICH | EDUARDA SIMONETTI PASE | IANAIÊ SIMONELLI DA SILVA | JANRIÊ RECK | JAYME WEINGARTNER NETO | JOÃO BATISTA MARQUES TOVO | JONATHAN AUGUSTUS KELLERMANN KAERCHER | JULIANA MACHADO FRAGA | LEONEL PIRES OHLWEILER | LUIZ EGON RICHTER | LUIZ FELIPE NUNES | MÁRCIA SILVEIRA MOREIRA | MAURO BORBA | NEWTON BRASIL DE LEÃO | PAULO JOSÉ DHIEL | RAMÔNIA SCHMIDT | RICARDO HERMANY | ROGÉRIO GESTA LEAL | SÉRGIO LUIZ GRASSI BECK ORGANIZADORES: DES. ROGÉRIO GESTA LEAL | PROFA. DRA. CAROLINE MÜLLER BITENCOURT TEMAS DA JURISDIÇÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL: POLÊMICOS MATÉRIA DE CORRUPÇÃO E IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA – ESTUDO DE CASOS VOLUME II

MATÉRIA DE CORRUPÇÃO E IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA – …

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ARISTIDES PEDROSO DE ALBUQUERQUE NETO | AUGUSTO CARLOS DE MENEZES BEBER |BRENDA CATOI | BRUNA HENRIQUE HÜBNER | CARLA LUANA DA SILVA | CAROLINEMÜLLER BITENCOURT | CYNTHIA JURUENA | DENISE BITTENCOURT FRIEDRICH |EDUARDA SIMONETTI PASE | IANAIÊ SIMONELLI DA SILVA | JANRIÊ RECK | JAYMEWEINGARTNER NETO | JOÃO BATISTA MARQUES TOVO | JONATHAN AUGUSTUSKELLERMANN KAERCHER | JULIANA MACHADO FRAGA | LEONEL PIRES OHLWEILER |LUIZ EGON RICHTER | LUIZ FELIPE NUNES | MÁRCIA SILVEIRA MOREIRA | MAURO BORBA| NEWTON BRASIL DE LEÃO | PAULO JOSÉ DHIEL | RAMÔNIA SCHMIDT | RICARDOHERMANY | ROGÉRIO GESTA LEAL | SÉRGIO LUIZ GRASSI BECK

ORGANIZADORES:DES. ROGÉRIO GESTA LEAL | PROFA. DRA. CAROLINE MÜLLER BITENCOURT

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VOL.

II

TEMASDA JURISDIÇÃO DOTRIBUNAL DE JUSTIÇADO RIO GRANDE DO SUL:

POLÊMICOS

MATÉRIA DE CORRUPÇÃO EIMPROBIDADE ADMINISTRATIVA –ESTUDO DE CASOS

VOLUME II

Porto AlegreTribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

2016

OrganizadoresDes. Rogério Gesta Leal

Profa. Dra. Caroline Müller Bitencourt

TEMAS POLÊMICOS DA JURISDIÇÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO

GRANDE DO SUL: MATÉRIA DE CORRUPÇÃO E

IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA – ESTUDO DE CASOS

VOLUME II

EXPEDIENTE

Organizadores

Des. Rogério Gesta Leal

Profa. Dra. Caroline Müller Bitencourt

Capa

Marcelo Oliveira Ames

Projeto Gráfico, Diagramação, Impressão e Acabamento

Departamento de Artes Gráfi cas do TJRS

ISBN 978-85-89676-16-8 (impresso)

ISBN 978-85-89676-15-1 (e-book)

Tiragem

2.000 exemplares

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

ADMINISTRAÇÃO 2016-2017

Des. LUIZ FELIPE SILVEIRA DIFINI – Presidente

Des. CARLOS EDUARDO ZIETLOW DURO– 1º Vice-Presidente

Desa. MARIA ISABEL DE AZEVEDO SOUZA – 2ª Vice-Presidente

Des. PAULO ROBERTO LESSA FRANZ – 3º Vice-Presidente

Desa. IRIS HELENA MEDEIROS NOGUEIRA – Corregedora-Geral da Justiça

SUMÁRIO

MENSAGEM INSTITUCIONAL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE

DO SUL ...............................................................................................................................7

MENSAGEM INSTITUCIONAL DA UNISC ........................................................... 9

APRESENTAÇÃO DO CENTRO DE ESTUDOS ................................................... 11

APRESENTAÇÃO DO DES. ROGÉRIO GESTA LEAL E PROFA. DRA.

CAROLINE MÜLLER BITENCOURT ................................................................... 13

1 O desvio de rendas públicas para proveito de Prefeito Municipal e sua criminalização

na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul – Aristides

Pedroso de Albuquerque Neto...................................................................................... 17

2 Locação de imóvel com fraude à licitação e responsabilidade criminal do Prefeito

Municipal – Newton Brasil de Leão ........................................................................... 31

3 Desvio de verba pública em diárias para vereadores como crime contra a Administração

Pública: um estudo de caso – Rogério Gesta Leal ....................................................... 51

4 A contratação ilícita de servidor público (cunhada do Prefeito) como fato caracterizador

de improbidade administrativa: um estudo de caso – Sérgio Luiz Grassi Beck .............. 65

5 Breves refl exões acerca da “perícia diversa” a partir de um estudo de caso: o que é,

qual sua possibilidade e limites – João Batista Marques Tovo ...................................... 83

6 O dever de boa Administração Pública e as despesas no fi nal do mandato: perspectivas

hermenêuticas da improbidade fi scal – Leonel Pires Ohlweiler .................................... 99

7 Controle penal da corrupção – dispensa ou inexigibilidade de licitação, com apropriação

ou desvio de rendas públicas – estudo de caso – Mauro Borba .................................. 127

8 Tráfi co de drogas e meios ocultos de investigação: apontamentos iniciais – Jayme

Weingartner Neto ................................................................................................... 159

9 A possibilidade de controle de constitucionalidade por parte do Tribunal de Contas:

um estudo da Súmula n. 347 do STF e a posição do Tribunal de Justiça do Rio Grande

do Sul – Caroline Müller Bitencourt e Janriê Rodrigues Reck ........................................ 175

10 Condições e possibilidades de cumulação das sanções parlamentares em face das

estabelecidas pela Lei de Improbidade Administrativa e o seu tratamento na jurisprudência

do Poder Judiciário Brasileiro – Eduarda Simonetti Pase ............................................ 197

11 Um estudo de caso da Ação Popular n. 70056129380 contra o município de Viamão: o

controle social da tarifa dos transportes públicos – Augusto Carlos de Menezes Beber ...... 229

12 Uma análise da Súmula Vinculante n. 13 na Administração Pública a partir da

jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul: limites e

possibilidades de sua aplicabilidade para a nomeação de cargo político – Cynthia

Gruendling Juruena e Ricardo Hermany .................................................................... 247

13 Antigovernabilidade e corrupção na esfera municipal: a jurisprudência do Tribunal

de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul envolvendo casos de repasse indevido de

remuneração de assessores parlamentares – Luiz Felipe Nunes e Ianaiê Simonelli da Silva ... 269

14 É possível a utilização do rito processual da ação civil pública para aplicar a lei de

improbidade administrativa? Um estudo da postura do Tribunal de Justiça do Estado

do Rio Grande do Sul comparado ao Superior Tribunal de Justiça – Juliana Machado

Fraga e Paulo José Dhiel ...........................................................................................291

15 Os atos culposos de improbidade administrativa à luz do direito fundamental à Boa

Administração Pública – Luiz Egon Richter e Augusto Carlos de Menezes Beber .............309

16 O silêncio da jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

frente aos princípios consagrados no art. 11 da Lei de Improbidade Administrativa –

Denise Bittencourt Friedrich e Márcia Silveira Moreira ..................................................329

17 A aplicação da responsabilidade penal da pessoa jurídica pelo Tribunal de Justiça do

Estado do Rio Grande do Sul – Brenda Catoi e Bruna Henrique Hübner ......................345

18 A Lei Anticorrupção e a criação do cadastro de empresas punidas: a imagem

empresarial frente à moral pública – Rogério Gesta Leal e Ramônia Schmidt ...............361

19 Um estudo de caso da Ação Popular n. 70032484198 contra a Câmara Municipal

de Vereadores de Pelotas: o controle social em face da prática do nepotismo – Jonathan

Augustos Kellermann Kaercher e Carla Luana da Silva ................................................381

MENSAGEM INSTITUCIONAL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

DO RIO GRANDE DO SUL

Inicialmente, na qualidade de Presidente do Tribunal de Justiça do Rio

Grande do Sul, parabenizo a todos os organizadores e pesquisadores dos trabalhos

apresentados na presente obra, a qual se mostra alinhada ao momento político-

-jurídico em que nos encontramos como sociedade civil.

O tema corrupção e improbidade administrativa constitui árduo e

delicado assunto, não apenas na seara acadêmica, mas especialmente no âmbito

jurisprudencial. Exatamente por essa razão tem-se por relevante o trabalho

desenvolvido pelos pesquisadores, visto que não só amplia o conhecimento dos

demais operadores do direito acerca da matéria, como expõe ao cidadão e ao

administrador o entendimento e o alcance do conjunto normativo referente à

Administração Pública.

Nessa perspectiva, não se pode olvidar que a divulgação do estudo de

precedentes de nossa Corte Estadual de Justiça prestigia o trabalho de todos nós

magistrados, na busca do pleno exercício de nossa função institucional que nada

mais é a de prestar uma jurisdição efetiva e colaborativa à manutenção do Estado

Democrático de Direito.

Nossa Lei Maior menciona dentre os princípios basilares da Administração

Pública a probidade, e a jurisprudência tem importante, senão imprescindível,

papel à sua perfectibilização; quer como meio de reprimenda aos atos ímprobos,

quer como balizadora à atividade do administrador.

Por tudo isso, honra-me, como representante do Poder Judiciário gaúcho,

compartilhar do desenvolvimento e apresentação do presente livro, desejando

sucesso a todos que colaboraram neste trabalho que certamente será útil aos

operadores do direito.

Des. Luiz Felipe Silveira Difi ni,

Presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.

MENSAGEM INSTITUCIONAL DA UNISC – VICE-REITOR

A Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, em vista de sua missão

e com a aspiração de responder de forma criativa e dinâmica às transformações

do contexto social e cultivando valores como a ética, a cidadania, o humanismo,

a democracia, a criticidade, a solidariedade e a cooperação, incentiva, desde sua

origem, o desenvolvimento da pesquisa, objetivando produzir, sistematizar e

socializar conhecimentos que conduzam ao desenvolvimento de uma sociedade

sustentável e justa.

E, nesse contexto, a UNISC desenvolve um conjunto de linhas de pesquisa,

agregando pesquisadores em torno de temas comuns, bem como estabelecendo

cooperações de caráter científi co, cultural e profi ssional com outras instituições.

Em especial, o Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado

destaca-se pela intensa produção por seus diversos grupos de pesquisa, resultado

de qualifi cado estudo e forte interação com instituições nacionais e internacionais.

Na área de concentração em Direitos Sociais e Políticas Públicas do

Mestrado e Doutorado em Direito da UNISC, destacamos o grupo de estudos que

vem pesquisando o tema Patologias Corruptivas no Estado, Administração Pública

e Sociedade, estudo que vem sendo desenvolvido por docentes e discentes do

mencionado programa de pós-graduação e em parceria com outros pesquisadores,

tema cuja atualidade e oportunidade dispensa maiores explicações.

Temos a satisfação de apresentar à comunidade acadêmica e jurídica um

dos frutos dessa pesquisa, resultante da parceria com o Centro de Estudos do Poder

Judiciário, que é o segundo volume do livro Temas Polêmicos da Jurisdição do

Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: matéria de corrupção e improbidade

administrativa – estudo de casos.

Com a certeza de que esta publicação aproxima ainda mais as duas Instituições

e permite que se colham resultados concretos no avanço do conhecimento, temos

a convicção de que sua leitura trará luzes sobre a complexidade dos temas tratados

nesta obra.

Professor Eltor Breunig,

Vice-Reitor da UNISC.

APRESENTAÇÃO DO CENTRO DE ESTUDOS

Com renovada alegria, apresentamos agora o segundo volume desta

publicação atual e importante sobre temas polêmicos da jurisdição, resultante

da junção de esforços entre a Universidade de Santa Cruz do Sul e o Centro de

Estudos do TJRS.

O sucesso do primeiro volume confi rma a importância da refl exão acerca

da temática da corrupção e da improbidade administrativa, questões atuais e de

grande repercussão nas mais diversas áreas do conhecimento.

O estudo acerca do tema da corrupção é imperativo no momento político

e social que atravessamos, sendo o fortalecimento das instituições, por meio da

ampliação do conhecimento e da transparência, uma boa parte do grande caminho

a ser percorrido no árduo combate à corrupção tão almejado por toda a sociedade.

Esta obra apresenta de forma crítica a visão do Poder Judiciário sobre esse

fenômeno polêmico e enraizado na sociedade moderna, revelando a necessidade

de meditar não apenas a respeito das soluções a adotar no aspecto punitivo,

mas também na busca de práticas que se revelem preventivas no âmbito da

Administração Pública.

Enquanto a corrupção rompe com os padrões morais e éticos, tornando a

cada dia mais distante a concretização dos direitos mais básicos dos cidadãos, a

atuação do Poder Judiciário visa a recompor o equilíbrio social perdido. Dentro

desse contexto, a refl exão crítica das decisões, como a abordagem constante no

presente trabalho, possibilita a busca por uma melhor prestação jurisdicional,

ampliando o conhecimento e abrindo caminhos para novas teses e entendimentos.

Além de dar prestígio à atividade jurisdicional, este trabalho expõe de

forma clara o alcance prático das normas legais acerca da matéria, dando vida às

teses conhecidas pelos operadores do direito e cuja concretização é ansiada pelos

administrados e administradores públicos comprometidos com a missão que lhes

foi confi ada.

Tratando de tema bastante delicado e atual, esta publicação traz uma

pequena amostra dos grandes desafi os enfrentados diariamente pelo Poder

Judiciário na busca pelo efetivo Estado Democrático de Direito, sendo a divulgação

deste trabalho uma grande satisfação por sua qualidade e importância.

Desembargador Ney Wiedemann Neto

Coordenador-Geral do Centro de Estudos do TJRS

APRESENTAÇÃO DO DES. ROGÉRIO GESTA LEAL

E DA PROFA. DRA. CAROLINE MÜLLER BITENCOURT

O presente livro Temas Polêmicos da Jurisdição do Tribunal de Justiça do Rio

Grande do Sul: matéria de corrupção e improbidade administrativa – estudo de casos,

volume II, é fruto de intensos estudos e debates promovidos pelo grupo de estudos

Patologias Corruptivas no Estado, Administração Pública e Sociedade, coordenado

pelo Professor Doutor Rogério Gesta Leal, desenvolvendo suas atividades junto ao

Mestrado e Doutorado em Direito, com área de concentração em Direitos Sociais

e Políticas Públicas na Universidade de Santa Cruz do Sul.

O segundo volume dessa parceria entre Universidade de Santa Cruz do Sul

e o Centro de Estudos do Poder Judiciário permitiu ampliar as refl exões sobre

a temática da corrupção, continuando a analisar criticamente a jurisprudência

em matéria de improbidade administrativa e corrupção. A temática selecionada

tem sido palco de intensos debates nas mais diversas áreas do conhecimento,

perfazendo temas como o dever de boa administração pública, a ética pública, a

cidadania e o controle da administração pública. Há muito se sabe que a temática

da corrupção necessita por sua complexidade e constante mutabilidade um olhar

mais interdisciplinar por parte dos juristas.

Optou-se nesse segundo volume da obra pela divisão do livro em quatro

momentos, sendo que as contribuições foram orquestradas conforme a linha de

enfrentamento: a) controle social e parlamentar da corrupção; b) improbidade

administrativa; c) governança e governabilidade; e d) controle penal e administrativo

na Lei Anticorrupção.

Assim como no primeiro volume, optou-se por uma orientação metodológica

para redação dos referidos artigos, sendo de fundamental importância para situar o leitor.

A identifi cação da metodologia utilizada permitirá percorrer de forma

mais segura os caminhos selecionados enquanto objeto de pesquisa, isto, pois,

não há como lançar-se na tarefa hercúlea de buscar um signifi cado uníssono na

jurisprudência acerca dos conceitos-chaves nos quais se debruçará essa pesquisa.

Quiçá se ventila a possibilidade de tirar resposta derradeira de como os tribunais

decidem sobre essa matéria, pois qualquer conclusão poderia mostrar-se arbitrária.

Levanta-se tal questão porque não é segredo que os tribunais decidem

sem que haja fi delidade aos pactos semânticos fi rmados por meio de conceitos,

permitindo que muitas vezes um mesmo termo, como, por exemplo, moralidade,

assuma uma gama de signifi cações. Também é sabido que nem todas as decisões

dos nossos tribunais encontram-se disponíveis para pesquisa em seus sistemas

virtuais; logo, a única conclusão possível será obtida a partir da extração de dados

estatísticos das jurisprudências disponíveis, podendo ainda existir uma série de

decisões em contrário aos resultados obtidos, capazes, inclusive, de alterá-los (não

disponibilizadas para pesquisa).

Enfi m, sabe-se que a única “segurança” acerca dos dados coletados e

analisados está situada no campo da metodologia de pesquisa a qual o trabalho

adere, signifi cando dizer que o leitor/pesquisador, ao utilizar tal metodologia para

investigar o tema que se propõe, obterá os mesmos resultados. Logo, de acordo

com a metodologia utilizada, a única conclusão possível é: utilizando-se da

metodologia X podemos dizer que o tribunal Y pensa assim sobre a matéria Z em

contratação pública. Por tal motivo, especialmente os artigos da segunda sessão,

ao início, farão uma breve descrição dos seus passos para obter os resultados das

pesquisas e julgados.

Como já foi anunciada na introdução do texto, a metodologia de abordagem

é a do caso concreto, sendo que, nos primeiros tópicos desse artigo, desforços serão

direcionados para reconstruir algumas categorias que nos permitiram formar um

pacto semântico capaz de guiar-nos na pesquisa jurisprudencial.

A rigor, o acordo semântico aqui fi rmado sobre a corrupção mostrou-se

muito mais abrangente do que a categoria penal encontrada na legislação, em sua

modalidade passiva e ativa, na medida em que a corrupção, enquanto um fenômeno

multifacetado, não pode estar desconectada das suas observações, segundo o

direito administrativo e mesmo o direito civilista da responsabilidade civil. Sendo

assim, o conceito abrangente entende que o critério de defi nição da corrupção se

dá não apenas na intenção do agente administrativo causador do dano, mas, sim,

pensando-se na consequência fi nal que resulta prejuízo ao interesse público; logo,

agregam-se ao conceito de corrupção atos de imoralidade, improbidade, mesmo

em modalidades ditas como culposas.

Importa ainda referir que, ao se propor realizar um estudo de caso, tanto

os operadores do direito quanto os gestores judiciais devem estar dispostos a

enfrentá-lo em três momentos que são distintos, mas que ao mesmo tempo são

complementares entre si: descritivo, analítico e prospectivo. No primeiro momento,

o descritivo, os esforços voltam-se aos elementos de identifi cação, qualifi cação e

contextualização do caso, em que, a fi m de destacá-lo de seu contexto, irá elucidar-

-se o máximo de informações fáticas acerca dele; diagnosticar e aprofundar para

uma melhor análise os elementos quantitativos e qualitativos; permear com

elementos que o ligam ao conjunto da realidade social, a partir da identifi cação

dos agentes envolvidos, os meios e os resultados que se relacionam.

No segundo momento, o analítico, buscar-se-á a “demarcação dos

fatores, variáveis, agentes que participam deste caso, bem como suas implicações

múltiplas (econômicas, políticas, ideológicas, culturais, religiosas, etc.), além do

enquadramento normativo matriz”. Sendo assim, acontecerá um aprofundamento

dos atores (pessoas) envolvidos e seus respectivos contextos para um estudo de

gestão, da análise da infraestrutura física, orçamentária, logística, de informação

e equipamentos, das rotinas e procedimentos usados; a abordagem acerca de

que medida os meios existentes no caso são aptos aos fi ns que estão postos em

termos de gestão e mesmo de confl ito interpessoal; e, por fi m, o levantamento de

forma sistêmica e também crítica de todos os elementos dogmático-positivos (aqui

se entenda tudo que compõe a esfera do ordenamento, desde seus princípios até

mesmo a jurisprudência) dos temas/problemas propostos.

Para então, no último momento, o prospectivo, “em que se vai defi nir quais

os cenários de enfrentamento do caso que estão presentes na espécie, possibilidades

de ação (jurídica, política, social, cultural, etc.), e tarefas a realizar – individuais

ou coletivas”, por meio do enfrentamento dos cenários fáticos e normativos (em

todas as suas espécies), considerando-se todos os seus efeitos jurídicos, sociais,

econômicos, políticos, culturais e outros; o levantamento das possibilidades

de enfrentamento para realocar as perspectivas dos envolvidos fomentando as

possibilidades de escolha; e, por fi m, o acompanhamento por intermédio de tarefas

preordenadas a fi m de orientar a ação concreta.

Nossa limitação espacial refere-se à jurisprudência brasileira, sendo que, em um

primeiro momento, optou-se pela seleção dos julgados junto ao Tribunal de Justiça

do Rio Grande do Sul, sendo o período da pesquisa anunciado nos referidos artigos.

Em momento em que a sociedade brasileira clama por uma administração

mais ética e por gestões voltadas a combater e controlar o fenômeno corruptivo

que tanto usurpa e inviabiliza a concretização de direitos fundamentais, esta obra

pretende trazer uma refl exão crítica de casos enfrentados cotidianamente em

nossos tribunais, a fi m de avançarmos no enfrentamento da corrupção, em suas

formas preventivas e repressivas. Parece-nos que sempre a refl exão crítica deve ser

o primeiro passo. Pensar para avançar, eis nosso propósito.

Professor Doutor Rogério Gesta Leal

Professora Doutora Caroline Müller Bitencourt

Organizadores

O DESVIO DE RENDAS PÚBLICAS PARA PROVEITO DE

PREFEITO MUNICIPAL E SUA CRIMINALIZAÇÃO NA

JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO

DO RIO GRANDE DO SUL

Aristides Pedroso de Albuquerque Neto

Ação Penal – Procedimento Ordinário n. 70059891887 (N. CNJ: 0181751-

22.2014.8.21.7000) – 4ª Câmara Criminal – Comarca de Feliz

Ementa: PROCESSO-CRIME. PREFEITO E VICE-PREFEITO. ART. 1º,

INCISO I, DECRETO-LEI N. 201/67.

Desvio de rendas públicas em proveito próprio. Solicitação, autorização

e recebimento de diárias para participação de viagens estritamente de lazer,

desprovidas de caráter ofi cial ou interesse público. Ação penal julgada

parcialmente procedente. Unânime.

Partes: Ministério Público, autor – Mauricio Kunrath e Jose Paulo Bohn, denunciados.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos.

Acordam os Magistrados integrantes da Quarta Câmara Criminal do

Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, julgar parcialmente procedente a

ação penal para condenar o denunciado Maurício Kunrath por incurso no art. 1º,

inc. I, do Decreto-Lei n. 201/67 (cinco vezes), e art. 1º, inc. I, do Decreto-Lei n. 201/67

c/c art. 29, caput, do Código Penal (uma vez), na forma do art. 71 do Código Penal,

18

Aristides Pedroso de Albuquerque Neto

à pena de 03 anos de reclusão; e o denunciado José Paulo Bohn por incurso no

art. 1º, inc. I, do Decreto-Lei n. 201/67, c/c art. 29, caput, do Código Penal (uma vez),

à pena de 02 anos de reclusão, ambos em regime inicial aberto; substituídas as penas

privativas de liberdade de cada um deles por prestação de serviços à comunidade

pelo prazo da pena aplicada e prestação pecuniária no valor de três salários mínimos

para Maurício Kunrath e um salário mínimo para José Paulo Bohn. Determinar,

ainda, após o trânsito em julgado, a perda do cargo e a inabilitação pelo prazo de

05 anos para o exercício de cargo ou função pública, eletivo ou de nomeação, para

ambos, nos termos do disposto no § 2º do art. 1º do Decreto-Lei n. 201/67.

Participaram do julgamento, além do signatário (Presidente), os eminentes

Senhores DES. JULIO CESAR FINGER E DR. MAURO BORBA.

Porto Alegre, 21 de julho de 2016.

Des. Aristides Pedroso de Albuquerque Neto, Presidente e Relator.

RELATÓRIO

Des. Aristides Pedroso de Albuquerque Neto (Relator) – O Ministério Público

denunciou MAURÍCIO KUNRATH, por incurso nas sanções do art. 1º, inc. I, do

Decreto-Lei n. 201/67 (cinco vezes), e art. 1º, inc. I, do Decreto-Lei n. 201/67, c/c

art. 29, caput, do Código Penal (uma vez), tudo na forma do art. 69, caput, do Código

Penal, e JOSÉ PAULO BOHN incorreu nas sanções do art. 1º, inc. I, do Decreto-Lei

n. 201/67, c/c art. 29, caput, do Código Penal (uma vez), pela prática dos seguintes

fatos delituosos:

1. Em 17 de março de 2009, no Município de Alto Feliz/RS, o denunciado

MAURÍCIO KUNRATH, no exercício do cargo de Prefeito Municipal e na condição

de ordenador de despesas, desviou rendas públicas em proveito próprio, ao solicitar,

autorizar e receber do Município o valor de R$ 178,36 (cento e setenta e oito reais e

trinta e seis centavos), a título de diárias, para participar de viagem estritamente de

lazer, acompanhando a Associação Alegria de Viver/Grupo de Terceira Idade em

excursão realizada sem qualquer caráter ofi cial ou interesse público.

Na oportunidade, o Prefeito denunciado, a pretexto de participar de evento social

promovido pela entidade em Balneário Curumim, Capão da Canoa, nos dias

11, 12 e 13 de março de 2009, sob a justifi cativa de que o acompanhamento das

entidades locais em eventos fazia parte das funções administrativas e políticas dos

gestores públicos, solicitou, autorizou e recebeu diárias do Município de Alto Feliz,

no valor total de R$ 178,36 (fl s. 161/161 v).

19

O desvio de rendas públicas para proveito de Prefeito Municipal e sua criminalização na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

2. Em 05 de março de 2010, no Município de Alto Feliz/RS, o

denunciado MAURÍCIO KUNRATH, no exercício do cargo de Prefeito

Municipal e na condição de ordenador de despesas, desviou rendas

públicas em proveito próprio, ao solicitar, autorizar e receber do Município o valor

de R$ 268,24 (duzentos e sessenta e oito reais e vinte e quatro centavos), a título

de diárias, para participar de viagem estritamente de lazer, acompanhando a

Associação Alegria de Viver/Grupo de Terceira Idade em excursão realizada sem

qualquer caráter ofi cial ou interesse público.

Na oportunidade, o Prefeito denunciado, a pretexto de participar de evento social

promovido pela entidade em Balneário Curumim, Capão da Canoa, nos dias 08 e

09 de fevereiro de 2010, sob a justifi cativa de que o acompanhamento das entidades

locais em eventos fazia parte das funções administrativas e políticas dos gestores

públicos, solicitou, autorizou e recebeu diárias do Município de Alto Feliz, no valor

total de R$ 268,24 (fl s. 160/160v).

3. Em 22 de março de 2011, no Município de Alto Feliz/RS, os denunciados

MAURÍCIO KUNRATH, no exercício do cargo de Prefeito Municipal e na

condição de ordenador de despesas, e JOSÉ PAULO BOHN, Vice-Prefeito

Municipal, em conjugação de esforços e comunhão de vontades, desviaram

rendas públicas em proveito próprio, ao solicitarem, autorizarem e receberem do

Município, cada um, o valor de R$ 531,00 (quinhentos e trinta e um reais), a título

de diárias, para participarem de viagem estritamente de lazer, acompanhando a

Associação Alegria de Viver/Grupo de Terceira Idade em excursão realizada sem

qualquer caráter ofi cial ou interesse público.

Na oportunidade, os denunciados, a pretexto de participarem de evento social

promovido pela entidade em Arroio do Sal, nos dias 22, 23 e 24 de março de 2011,

sob a justifi cativa de que o acompanhamento das entidades locais em eventos fazia

parte das funções administrativas e políticas dos gestores públicos, solicitaram,

autorizaram e receberam diárias do Município de Alto Feliz, no valor total de

R$ 531,00 cada um (fl s. 155v/156 e 158/158v).

4. Em 24 de fevereiro de 2012, no Município de Alto Feliz/RS, o denunciado

MAURÍCIO KUNRATH, no exercício do cargo de Prefeito Municipal e na

condição de ordenador de despesas, desviou rendas públicas em proveito próprio, ao

solicitar, autorizar e receber do Município o valor de R$ 3.004,80 (três mil e quatro

reais e oitenta centavos), a título de diárias, para participar de viagem estritamente

de lazer, acompanhando o Clube de Mães Rainha do Lar em excursão realizada

sem qualquer caráter ofi cial ou interesse público.

20

Aristides Pedroso de Albuquerque Neto

Na oportunidade, o Prefeito denunciado, a pretexto de participar de evento social

promovido pela entidade em Gravatal, Santa Catarina, nos dias 02, 03 e 04 de

março de 2012, sob a justifi cativa de que o acompanhamento das entidades locais

em eventos fazia parte das funções administrativas e políticas dos gestores públicos,

solicitou, autorizou e recebeu diárias do Município de Alto Feliz, no valor total de

R$ 3.004,80 (fl s. 137/137v).

5. Em 08 de março de 2012, no Município de Alto Feliz/RS, o denunciado

MAURÍCIO KUNRATH, no exercício do cargo de Prefeito Municipal e na condição

de ordenador de despesas, desviou rendas públicas em proveito próprio, ao solicitar,

autorizar e receber do Município o valor de R$ 471,90 (quatrocentos e setenta e um

reais e noventa centavos), a título de diárias, para participar de viagem estritamente

de lazer, acompanhando a Associação Alegria de Viver/Grupo de Terceira Idade em

excursão realizada sem qualquer caráter ofi cial ou interesse público.

Na oportunidade, o Prefeito denunciado, a pretexto de participar de evento social

promovido pela entidade em Balneário Curumim, Capão da Canoa, nos dias

09, 10 e 11 de março de 2012 sob a justifi cativa de que o acompanhamento das

entidades locais em eventos fazia parte das funções administrativas e políticas dos

gestores públicos, solicitou, autorizou e recebeu março de 2012, sob a justifi cativa

de que o acompanhamento das entidades locais em eventos fazia parte das funções

administrativas e políticas dos gestores públicos, solicitou, autorizou e recebeu

diárias do Município de Alto Feliz, no valor total de R$471,90(fl s.131/132).

6. Em 27 de fevereiro de 2013, no Município de Alto Feliz/RS, o denunciado

MAURÍCIO KUNRATH, no exercício do cargo de Prefeito Municipal e na

condição de ordenador de despesas, desviou rendas públicas em proveito próprio,

ao solicitar, autorizar e receber do Município o valor de R$ 201,90 (duzentos e um

reais e noventa centavos), a título de diárias, para participar de viagem estritamente

de lazer, acompanhando a Associação Alegria de Viver/Grupo de Terceira Idade

em excursão realizada sem qualquer caráter ofi cial ou interesse público.

Na oportunidade, o Prefeito denunciado, a pretexto de participar de evento social

promovido pela entidade em Balneário Curumim, Capão da Canoa, no dia 23

de fevereiro de 2013, sob a justifi cativa de que o acompanhamento das entidades

locais em eventos fazia parte das funções administrativas e políticas dos gestores

públicos, solicitou, autorizou e recebeu diárias do Município de Alto Feliz, no valor

total de R$ 201,90 (fl s.151-v).

Desta forma, houve lesão ao erário público, pois em todas estas ocasiões os eventos

promovidos pelas respectivas entidades privadas tinham caráter exclusivamente de

21

O desvio de rendas públicas para proveito de Prefeito Municipal e sua criminalização na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

lazer e turismo, destinados à confraternização de integrantes de grupos de mães e

idosos, sem nenhuma relação com os cargos públicos exercidos pelos denunciados e

sem nenhuma fi nalidade pertinente ao interesse público.

Mesmo sabendo disso, o Prefeito e Vice-Prefeito denunciados solicitaram,

autorizaram e receberam diárias para acompanharem os eventos.

Por fi m, consigna-se que em razão de tais fatos a Promotoria de Justiça de

Feliz ingressou com ação civil pública por ato de improbidade administrativa

contra os denunciados (fl s. 34/49), a qual tramita naquela Comarca, sob o

n° 146/1.13.0000505-9.

Devidamente notifi cados (fl . 219), os denunciados MAURÍCIO KUNRATH

e JOSÉ PAULO BOHN apresentaram resposta escrita (fl s. 236/252).

Após manifestação do Ministério Público (fl s. 260/265v), a denúncia

foi recebida, à unanimidade, por esta Quarta Câmara Criminal, em 16.10.2014

(fl s. 272/276v).

Apresentada defesa prévia (fl s. 284/285), as testemunhas arroladas pela

acusação e pela defesa foram inquiridas (fl s. 326/330, 330v/334, 334v/338,

338v/342, 342v/344v).

Os réus foram interrogados (fl s. 345/350).

No prazo do art. 10 da Lei n. 8.038/90 o Ministério Público requereu a

juntada da sentença de parcial procedência, proferida nos autos da ação civil

pública de responsabilidade pela prática de ato de improbidade administrativa,

cumulada com reparação do dano causado ao erário, movida contra os acusados

sobre os mesmos fatos narrados no presente feito (fl s. 384/388v).

A defesa nada requereu (fl . 393).

No prazo do art. 11 da Lei n. 8.038/90 o Ministério Público ofereceu alegações

escritas. Refere que os réus admitiram o recebimento de diárias, justifi cando que

acompanhavam o grupo da Terceira Idade e o Clube de Mães, como representantes

do Município. Enfatiza a ausência de fi nalidade pública dos eventos, sempre

realizados por entidades privadas em prol de seus membros. Afi rma que ambos

os acusados usufruíram diárias custeadas pelo erário para participar de eventos

estritamente de lazer, sem qualquer caráter ofi cial ou interesse público. Assevera

que as condutas dos acusados subsumem-se ao tipo penal descrito no art. 1º,

inc. I, do Decreto-Lei n. 201/67, na medida em que, valendo-se dos respectivos

cargos que ocupavam, benefi ciavam-se indevidamente com diárias de viagens

realizadas com nítido desvio de fi nalidade. Por fi m, requer seja julgada procedente

22

Aristides Pedroso de Albuquerque Neto

a ação penal, condenando-se os réus Maurício Kunrath e José Paulo Bohn, nos

termos da denúncia (fl s. 395/409v).

A defesa dos acusados Maurício Kunrath e José Paulo Bohn sustenta, em

síntese, que o pagamento de diárias é algo habitual no serviço público, havendo

regramento específi co em cada esfera da Administração. Refere que os réus foram

convidados pela sociedade civil organizada a acompanhar parte da população

municipal em atividades. Ressalta que o Município de Alto Feliz, um dos menores

do Estado, emancipado em 1992, possui como característica a ação direta dos

membros políticos nas atividades de entidades associativas. Alega inexistência de

dolo, má-fé, prejuízo erário ou mesmo vantagem indevida dos réus em relação

aos fatos a eles imputados. Afi rma não haver prova de dano ao erário. Relata

que, inobstante as perguntas tendenciosas e até mesmo irônicas do Magistrado,

as testemunhas foram uníssonas em demonstrar a importância da presença dos

gestores nos eventos. Alega que os réus incorreram em erro de tipo e requer a

absolvição de Maurício Kunrath e José Paulo Bohn, nos termos do art. 386,

incs. III ou VII, do Código de Processo Penal. Subsidiariamente, a fi xação da pena

no mínimo legal, tendo em conta que ambos os acusados são primários.

É o relatório.

VOTOS

Des. Aristides Pedroso de Albuquerque Neto (Relator) – De acordo

com a inicial, os denunciados MAURÍCIO KUNRATH e JOSÉ PAULO

BOHN, respectivamente Prefeito e Vice-Prefeito do Município de Alto Feliz, nos

quadriênios de 2009/2012 e 2013/2016, em conjunção de esforços e comunhão

de vontades, teriam desviado rendas públicas em proveito próprio ao solicitarem,

autorizarem e receberem do Município diárias para participarem de viagens com

fi ns de turismo e lazer, com dinheiro público.

A materialidade está demonstrada pelos documentos de fl s. 139/140v,

145/145v, 160v, 164v/165, 167/167v, 170/170v e demais elementos coligidos ao feito.

A autoria é certa.

Interrogado, José Paulo Bohn confi rma que recebeu diárias no valor de

R$ 531,00 para dar incentivo à Associação Alegria de Viver/Grupo da Terceira

Idade, com o transporte, local, psicólogo, assistente social. Disse que, como

Secretário da Fazenda na época, ordenava o pagamento de diárias (fl s. 345/346v).

Maurício Kunrath relata que participava das atividades de lazer das

entidades, e que a Prefeitura, além de convidada, fazia contribuições a esses

23

O desvio de rendas públicas para proveito de Prefeito Municipal e sua criminalização na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

grupos. Disse que, antes de participar dos eventos, consultou a assessoria jurídica

do município, tendo sido informado através de parecer jurídico que não havia

problema. Em relação às notas fi scais suspeitas de fraude, alega que não poderia

ser responsabilizado, por tratar de um erro do Hotel Galo. Refere que em Curumim

dormiu na casa de suas fi lhas e de sua ex-esposa (fl s. 347/350).

Os denunciados afi rmam que eram convidados a participar dos eventos e

que havia um parecer jurídico amparando suas condutas. Não é o que se depreende

dos autos. Os relatos das testemunhas são uníssonos no sentido de que não havia

fi nalidade pública nos eventos realizados por entidades privadas em prol de seus

associados. O referido parecer jurídico sequer foi anexado aos autos.

Não há dúvida de que ao Administrador Público é conferido o poder

discricionário para concessão de diárias. Isso não signifi ca, contudo, que o ato

administrativo não precisa ser motivado.

O pagamento de diárias, como previsto na Lei Municipal n. 759/2009, é

devido às autoridades que estiverem no desempenho de suas funções. É o que se

depreende do art. 1º, que estabelece: Ao Prefeito e ao Vice-Prefeito Municipal, quando

se ausentarem do Município, a serviço, além do transporte, receberão diárias para cobrir as

despesas de alimentação, pousada e locomoção urbana (fl . 180). Logicamente, não está

contemplada na lei a hipótese de pagamento de diárias para participar de excursões

privadas, desprovidas de qualquer interesse público.

De acordo com a denúncia, o Prefeito Municipal participou de seis viagens

e o Vice-Prefeito, de uma, conforme notas de empenho, a seguir discriminadas, que

comprovam o recebimento de diárias pela participação em eventos de lazer.

1º fato - nota de empenho n. 000895/09, emitida em 11.03.2009, no valor

de R$ 178,36, referente à despesa efetuada com diária para Prefeito Municipal,

Sr. Maurício Kunrath, por motivo de deslocamento a cidade de Curumim para

acompanhar o grupo da Terceira Idade. Consta assinatura do denunciado Mauricio

como ordenador de despesa (fl s.170 e verso). E duas notas fi scais do Restaurante

Estrela Mar no valor de R$ 42,00 e R$ 45,00, respectivamente (fl . 171).

2º fato - nota de empenho n. 000921/10, emitida em 01.03.2010, no valor

de R$ 268,24, referente à despesa efetuada com diária para Prefeito Municipal,

Sr. Maurício Kunrath, por motivo de deslocamento a cidade de Capão da Canoa,

Praia de Curumim, para acompanhar o grupo da Terceira Idade. Consta assinatura

do denunciado Mauricio como ordenador de despesa (fl s. 169 e verso). E duas

notas fi scais do Hotel Brisa Mar, no valor de R$ 20,00 cada uma (fl . 168) e uma

nota fi scal da churrascaria Dimmer, no valor de R$ 23,00 (fl . 168v).

24

Aristides Pedroso de Albuquerque Neto

3º fato - nota de empenho n. 001042/11, emitida em 18.03.2011, no valor de

R$ 531,00, referente à despesa efetuada com diária para Sr. Vice-Prefeito Municipal

acompanhar o grupo da Terceira Idade. Consta assinatura do denunciado Maurício

como ordenador de despesa (fl s. 167 e verso). E duas notas fi scais do Hotel Brisa

Mar, no valor de R$ 20,00 cada uma (fl . 168) e uma nota fi scal da churrascaria

Dimmer, no valor de R$ 23,00 (fl . 168v).

4º fato - nota de empenho n. 000624/12, emitida em 23.02.2012, no valor

de R$ 3.004,80, referente à despesa com diária para o Sr. Prefeito Municipal, em

viagem a cidade de Gravatal para acompanhar o Clube de Mães Rainha do Lar em

excursão. Consta assinatura do denunciado Mauricio como ordenador de despesa,

determinando o pagamento, e do Vice Prefeito José Paulo Bohn, como conferido

(fl s. 145 e verso). E duas notas fi scais do Castelo Palace Hotel Ltda. no valor de

R$ 92,00 e R$ 427,00, respectivamente (fl . 146).

5º fato - nota de empenho n. 000902/12, emitida em 06.03.2012, no

valor de R$ 471,90, referente à despesa com diária para o Prefeito Municipal em

deslocamento a Curumim para acompanhar a Terceira Idade. Consta assinatura

do denunciado Mauricio como ordenador de despesa, determinando o pagamento,

e a do Vice Prefeito José Paulo Bohn, como conferido (fl s. 139/140). E três notas

fi scais do Hotel Galo, com almoço e jantar, no valor total de R$ 36,50, cada uma

(fl s. 141/143).

6º fato - nota de empenho n. 000533/13, emitida em 25.02.2013, no valor de

R$ 201,90, referente à despesa efetuada com pagamento de diária para Sr. Prefeito

Municipal em deslocamento a Curumim para acompanhar o grupo Terceira Idade

em excursão. Consta assinatura do denunciado Mauricio como ordenador de

despesa (fl . 160v). E nota fi scal do Hotel Galo no valor de R$ 130,00 (fl . 161).

Na espécie, as diárias recebidas pelos denunciados, por conta de viagens

realizadas para acompanhar grupos da Terceira Idade e Clube de Mães, são

desprovidas de qualquer interesse público, em fl agrante violação ao princípio da

fi nalidade pública.

Nesse sentido, aliás, a jurisprudência:

APELAÇÃO CÍVEL. INTEMPESTIVIDADE. DESERÇÃO.

PRELIMINARES REJEITADAS. EMBARGOS À EXECUÇÃO. TÍTULO

EXECUTIVO EXTRAJUDICIAL. EX-PREFEITO DO MUNICÍPIO

DE ITAPUCA. VIAGEM INTERNACIONAL. DÉBITO APONTADO

PELO TRIBUNAL DE CONTAS. 1. Não se apresenta intempestiva a

25

O desvio de rendas públicas para proveito de Prefeito Municipal e sua criminalização na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

apelação  interposta no prazo legal. 2. Quanto à alegada deserção, mostra-se

inócua diante do preparo comprovado nos autos, conforme determinação judicial,

pois o apelante não havia obtido sucesso na extração, via Internet, da respectiva

guia para pagamento por ocasião da interposição do recurso, fato que não pode

ser imputado à parte. 3. O apelante pretende a nulidade do título extrajudicial

que originou a execução movida pelo Município de Itapuca em relação ao débito

apontado pelo Tribunal de Contas no período em que exerceu o cargo de Prefeito

Municipal (2005/2008), alegando que se trata de diárias e despesas decorrentes de

viagem à Argentina e Chile com a fi nalidade de angariar conhecimento agrícola.

Entretanto, do cotejo dos autos, tem-se que a viagem foi realizada com nítido

cunho turístico, e não político, a caracterizar efetivo desvio de fi nalidade e, via de

consequência, não teria legitimidade o autor para receber as diárias que se pretende

o ressarcimento, pois estas não são devidas quanto se evidencia apenas o interesse

particular preponderante. A autorização para a glosa encontra eco inclusive nos

princípios norteadores da Administração Pública de impessoalidade e moralidade,

insculpidos no art. 37, da Carta Magna. APELAÇÃO IMPROVIDA (Apelação

Cível Nº 70062359179, Quarta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator:

Francesco Conti, Julgado em 28/01/2015).

Além disso, há relatos de que o denunciado Maurício Kunrath fi cou em sua

casa em Balneário Curumim – Capão da Canoa, nos encontros realizados naquele

local, embora tenha recebido diárias para pernoitar no hotel com o grupo. Nesse

sentido, os depoimentos de Armindo Schneider, Maria Conselha Schaefer, Maria

Bruch e Elaine Reaber Mertins.

Roque Lenger, ex-vereador, conta que, na época, havia uma CPI com relação

às diárias do Prefeito Municipal. Constataram que o Prefeito participou de viagens

realizadas por Clube de Mães, em carro ofi cial. Disse que as viagens realizadas pela

Associação Alegria de Viver/Grupo de Terceira Idade e pelo Clube de Mães são de

lazer, e que essas entidades não pertencem à Administração Pública (fl s. 326/ 330).

Armindo Schneider, tesoureiro da Associação Alegria de Viver/Grupo da

Terceira Idade, refere que a associação é um grupo de lazer, e que recebia verbas

da Prefeitura. Disse que, em algumas ocasiões, o Prefeito e o Vice-Prefeito, e suas

respectivas esposas, participaram das confraternizações, uma delas realizada na

residência de Maurício Kunrath, em Curumim (fl s. 330v/334).

A testemunha Maria Conselha Schaefer, integrante do Clube de Mães

Rainhas do Lar e tesoureira da Associação Alegria de Viver/Grupo da Terceira

26

Aristides Pedroso de Albuquerque Neto

Idade, afi rma que tanto o clube quanto a associação são entidades de lazer. Disse

que o Prefeito, nos anos de 2012 e 2013, visitou as entidades, não fi cando em

hotel, mas em sua residência em Curumim. Refere que os convites para o Prefeito,

o Vice-Prefeito e os Vereadores eram feitos pela própria diretoria das associações

(fl s. 334v/338).

Maria Bruch, integrante do Grupo da Terceira Idade, não sabe se a prefeitura

disponibiliza alguma verba para a entidade. Afi rma que a associação é um grupo

de lazer e que, no ano de 2012 ou 2013, o Prefeito e sua esposa participaram das

confraternizações, mas não pernoitaram no hotel, pois tinham uma casa no local

(fl s. 338v/342).

A testemunha Elaine Raaber Mertins, integrante do Clube de Mães Rainha

do Lar, disse que não recebeu nenhum valor de dinheiro da Prefeitura de Alto

Feliz. Conta que em 2012 o Prefeito participou de viagem a Gravatal, fi cando

hospedado junto com o grupo no hotel. Quando foram para Curumim, refere que

esteve na casa do Prefeito, que fi ca próxima ao hotel onde o grupo fi cou hospedado

(fl s. 342v/344v).

Como consabido, nos processos envolvendo Prefeitos Municipais, a

representação muitas vezes é efetuada por opositores, o que, por si só, não retira a

credibilidade dos testemunhos, se harmônicos e coerentes com os demais elementos

existentes nos autos. É o que ocorre.

A prova, como reconstituída, revela que os réus desviaram rendas públicas

em proveito próprio, ao solicitar, autorizar e receber diárias do Município para

participar de viagens estritamente de lazer.

O fato de o pagamento de diárias ser algo habitual no serviço público não

autoriza o recebimento de verba pública em atividades desprovidas de qualquer

interesse público, como no caso. Nem mesmo o fato de a conduta ter sido realizada

por outros gestores isenta os réus de responsabilidade criminal.

Também não há falar em falsa percepção da realidade, ou em erro de tipo,

como pretende a defesa, porquanto, como administradores públicos, os réus tinham

plena consciência de que as atividades praticadas eram recreativas e de lazer, sem

caráter ofi cial e, portanto, sem qualquer interesse público.

Além disso, embora se reconheça a independência das esferas cível e

criminal, os réus foram responsabilizados, em sentença – confi rmada pela Quarta

Câmara Cível desta Corte, decisão ainda não transitada em julgado – proferida

nos autos da ação civil pública, pela prática de ato de improbidade administrativa,

ocasião em que assim consignou a douta Magistrada:

27

O desvio de rendas públicas para proveito de Prefeito Municipal e sua criminalização na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

Como ocupantes que eram dos mais altos postos do Executivo de Alto Feliz, os réus

tinham a obrigação de saber que o recebimento de diárias para o acompanhamento

de integrantes do clube de mães e do grupo de terceira idade em viagens de recreação,

lazer e turismo, era imoral e ilegal.

Assim, não há falar em culpa, ignorância, mero erro, inabilidade ou irregularidade

na conduta dos réus.

Ao contrário.

Reconhece-se aqui que se houveram eles com um grau de culpabilidade capaz de

revelar desvio ético e desonestidade na condução da res publica, o que caracteriza

inquestionável dolo, ainda mais que, segundo a lição do eminente Desembargador

Armínio José Abreu Lima da Rosa, quando do julgamento da Apelação Cível

n. 70048988497, julgada em 20/06/2012, “Os atos de improbidade previstos no

art. 11, Lei nº 8.429/92 reclamam a presença de dolo, bastando aquele genérico,

consistente na vontade de realizar o fato descrito na norma incriminadora, é

dizer, conduta contrária aos deveres de honestidade e legalidade, e aos princípios

da moralidade administrativa e da impessoalidade, desnecessário perquirir a

existência de enriquecimento ilícito do administrador público ou prejuízo ao

Erário, estando a lesão à Administração Pública in re ipsa”.

E, como bem referido pelo Desembargador Eduardo Uhlein, ao julgar o

recurso de apelação:

No caso, a margem de discricionariedade conferida pela lei diz apenas com o

poder de decidir sobre a conveniência e oportunidade na concessão de diárias

dentro da situação prevista na lei (Lei Municipal n° 759/2009): viagens a

serviço. A concessão de diárias, pois, deve necessariamente está fundamentada

no superior interesse do serviço público, o que não se verifi cou na hipótese

descrita na inicial (...) Deu-se, então, de forma dolosa, através de desvio de

fi nalidade, o enriquecimento ilícito dos apelantes, que se utilizaram de seus

mandatos para impor prejuízo ao erário, percebendo diárias para realização de

atividades recreativas e de lazer em período de veraneio, de forma indevida, assim

preenchendo as hipóteses típicas dos arts. 9º e 11 da Lei Federal nº 8.429/92.

A distância temporal entre os seis delitos cometidos pelo Prefeito deve ser

relativizada, havendo que prevalecer o fato de terem sido praticados na mesma

gestão. Assim, tratando-se de crimes da mesma espécie, executados de forma

28

Aristides Pedroso de Albuquerque Neto

semelhante, atendidos os demais requisitos do art. 71 do Código Penal, deve ser

reconhecida a continuidade delitiva para todos os fatos, inclusive aquele em que o

Vice-Prefeito, José Paulo Bohn, aderiu a sua conduta.

Nessas condições, comprovadas materialidade e autoria, impositiva a

condenação de Maurício Kunrath por incurso nas sanções do art. 1º, inc. I, do

Decreto-Lei n. 201/67 (cinco vezes), e art. 1º, inc. I, do Decreto-Lei n. 201/67

c/c art. 29, caput, do Código Penal (uma vez), na forma do art. 71 do Código

Penal; e José Paulo Bohn por incurso nas sanções do art. 1º, inc. I, do Decreto-Lei

n. 201/67, c/c art. 29, caput, do Código Penal (uma vez).

Passo à fi xação das penas.

MAURÍCIO KUNRATH não registra antecedentes negativos; agiu com

dolo intenso, como administrador do Município deveria zelar pela coisa pública

e não se locupletar as custas do erário. Favoráveis os demais operadores do art. 59

do Código Penal, vai estabelecida a pena-base em 02 anos e 02 meses de reclusão,

para cada um dos seis delitos. Diminuída de 02 meses pela confi ssão espontânea

(ainda que não tenha admitido o dolo).

Reconhecida a continuidade delitiva, vai aumentada a pena de um dos crimes

(02 anos de reclusão), já que idênticas, de 1/2, tendo em conta a reiteração de condutas

delitivas, seis vezes, defi nitiva a pena em 03 anos de reclusão, em regime inicial aberto.

Acerca do critério para exasperação da pena quando praticados crimes em

continuidade delitiva, a orientação do Superior Tribunal de Justiça, a exemplo do

julgado cuja ementa segue transcrita:

AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. 1. DOSIMETRIA.

CONTINUIDADE DELITIVA. FRAÇÃO DE AUMENTO. CRITÉRIO

OBJETIVO. QUANTIDADE DE DELITOS. 2. AGRAVO REGIMENTAL

IMPROVIDO.

1. Na exasperação da pena pela continuidade delitiva predomina o critério objetivo,

segundo o qual a fração de aumento varia de acordo com a quantidade de crimes

praticados em continuidade.

2. Agravo regimental a que se nega provimento (AgRg no HC 249.012/SP,

Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, QUINTA TURMA, julgado

em 02/04/2013, DJe 09/04/2013).

JOSÉ PAULO BOHN não registra antecedentes negativos; agiu com dolo

intenso, como Vice-Prefeito do Município deveria zelar pela coisa pública e não se

29

O desvio de rendas públicas para proveito de Prefeito Municipal e sua criminalização na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

locupletar as custas do erário. Favoráveis os demais operadores do art. 59 do Código

Penal, vai estabelecida a pena-base em 02 anos e 02 meses de reclusão, diminuída

de 02 meses pela atenuante da confi ssão espontânea (embora não tenha admitido o

dolo); defi nitiva a pena em 02 anos de reclusão, em regime inicial aberto.

Presentes os requisitos do art. 44 do Código Penal, vai substituída a pena

privativa de liberdade, de cada um dos réus, por duas penas restritivas de direitos,

consistentes em prestação de serviços à comunidade pelo prazo da pena aplicada,

em local a ser defi nido pelo juízo da execução, e prestação pecuniária, no valor

de um salário mínimo para JOSÉ PAULO BOHN e três salários mínimos para

MAURÍCIO KUNRATH, em favor de entidade pública ou privada com destinação

social a ser defi nida também no juízo da execução.

As condutas como praticadas, tanto pelo Prefeito, quanto pelo Vice-Prefeito,

demonstram que nenhum deles tem condições de permanecer no cargo. Dele se

utilizaram para atividades desprovidas de qualquer interesse público, pois desviaram

rendas públicas, em proveito próprio, ao solicitar, autorizar e receber diárias do

Município para participar de viagens de lazer. Como agentes públicos, fi zeram

conduta oposta àquela desejada, de atendimento ao interesse da comunidade,

bem ao contrário, usurparam de sua condição para gozo pessoal, ofendendo aos

princípios da moralidade administrativa e impessoalidade, constitucionalmente

previstos. O Prefeito utilizando-se do cargo viajou seis vezes as custas do erário,

para acompanhar grupos de Terceira Idade e Clube de Mães, em excursões

realizadas sem qualquer fi nalidade pública. O mesmo para o Vice-Prefeito, ainda

que o tenha feito uma única vez. Agiram ambos com culpabilidade elevada.

Nessas condições, determina-se, ainda, após o trânsito em julgado, a perda

do cargo e a inabilitação pelo prazo de 05 anos para o exercício de cargo ou função

pública, eletivo ou de nomeação, para ambos os denunciados, sem prejuízo da

reparação civil do dano causado ao patrimônio público ou particular, nos termos

do disposto no § 2º do art. 1º do Decreto-Lei n. 201/671.

Julgo parcialmente procedente a ação penal para condenar o denunciado

Maurício Kunrath por incurso no art. 1º, inc. I, do Decreto-Lei n. 201/67 (cinco

vezes), e art. 1º, inc. I, do Decreto-Lei n. 201/67 c/c art. 29, caput, do Código Penal

(uma vez), na forma do art. 71 do Código Penal, à pena de 03 anos de reclusão;

1 – § 2º A condenação defi nitiva em qualquer dos crimes defi nidos neste artigo, acarreta a perda de cargo e a

inabilitação, pelo prazo de cinco anos, para o exercício de cargo ou função pública, eletivo ou de nomeação, sem

prejuízo da reparação civil do dano causado ao patrimônio público ou particular.

30

Aristides Pedroso de Albuquerque Neto

e o denunciado José Paulo Bohn por incurso no art. 1º, inc. I, do Decreto-Lei

n. 201/67, c/c art. 29, caput, do Código Penal (uma vez), à pena de 02 anos de

reclusão, ambos em regime inicial aberto; substituídas as penas privativas de

liberdade de cada um deles por prestação de serviços à comunidade pelo prazo

da pena aplicada e prestação pecuniária no valor de três salários mínimos para

Maurício Kunrath e um salário mínimo para José Paulo Bohn. Determino, ainda,

após o trânsito em julgado, a perda do cargo e a inabilitação pelo prazo de 05 anos

para o exercício de cargo ou função pública, eletivo ou de nomeação, para ambos,

nos termos do disposto no § 2º do art. 1º do Decreto-Lei n. 201/67.

Custas em proporção.

Após o trânsito em julgado, inclua-se o nome dos réus no rol dos culpados.

A Secretaria providenciará os registros e comunicações.

Des. Julio Cesar Finger (Revisor) – De acordo com o(a) Relator(a).

Dr. Mauro Borba – De acordo com o(a) Relator(a).

Des. Aristides Pedroso de Albuquerque Neto – Presidente - Acao Penal -

Procedimento Ordinario nº 70059891887, Comarca de Feliz: “À UNANIMIDADE,

JULGARAM PARCIALMENTE PROCEDENTE A AÇÃO PENAL PARA

CONDENAR O DENUNCIADO MAURÍCIO KUNRATH POR INCURSO

NO ART. 1º, INCISO I, DO DECRETO-LEI Nº 201/67 (CINCO VEZES), E

ART. 1º, INCISO I, DO DECRETO-LEI Nº 201/67 C/C ART. 29, CAPUT,

DO CÓDIGO PENAL (UMA VEZ), NA FORMA DO ART. 71 DO CÓDIGO

PENAL, À PENA DE 03 ANOS DE RECLUSÃO; E O DENUNCIADO JOSÉ

PAULO BOHN POR INCURSO NO ART. 1º, INCISO I, DO DECRETO-LEI

Nº 201/67, C/C ART. 29, CAPUT, DO CÓDIGO PENAL (UMA VEZ), À PENA

DE 02 ANOS DE RECLUSÃO, AMBOS EM REGIME INICIAL ABERTO;

SUBSTITUÍDAS AS PENAS PRIVATIVAS DE LIBERDADE DE CADA UM

DELES POR PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS À COMUNIDADE PELO PRAZO

DA PENA APLICADA E PRESTAÇÃO PECUNIÁRIA NO VALOR DE TRÊS

SALÁRIOS MÍNIMOS PARA MAURÍCIO KUNRATH E UM SALÁRIO

MÍNIMO PARA JOSÉ PAULO BOHN. DETERMINARAM, AINDA, APÓS

O TRÂNSITO EM JULGADO, A PERDA DO CARGO E A INABILITAÇÃO

PELO PRAZO DE 05 ANOS PARA O EXERCÍCIO DE CARGO OU FUNÇÃO

PÚBLICA, ELETIVO OU DE NOMEAÇÃO, PARA AMBOS, NOS TERMOS

DO DISPOSTO NO § 2º DO ART. 1º DO DECRETO-LEI Nº 201/67, NOS

TERMOS DOS VOTOS PROFERIDOS EM SESSÃO.”

LOCAÇÃO DE IMÓVEL COM FRAUDE À LICITAÇÃO E

RESPONSABILIDADE CRIMINAL DO PREFEITO MUNICIPAL

Newton Brasil de Leão

Ação Penal – Procedimento Ordinário n. 70043300532 (N. CNJ: 0262847-

64.2011.8.21.7000) – 4ª Câmara Criminal – Comarca de Sapucaia do Sul

Ementa: AÇÃO PENAL. CRIME DE RESPONSABILIDADE.

PREFEITO MUNICIPAL, COORDENADORA DA VIGILÂNCIA

SANITÁRIA DO MUNICÍPIO E SEU ESPOSO. LOCAÇÃO DE IMÓVEL

PELO MUNICÍPIO, MEDIANTE DISPENSA DE LICITAÇÃO. IMÓVEL

QUE, EMBORA REGISTRADO EM NOME DE TERCEIRO, PERTENCE,

NA VERDADE, AO CASAL DE CO-RÉUS. VEDAÇÃO LEGAL DE

CONTRATAÇÃO COM O PODER PÚBLICO, FACE AO EXERCÍCIO DE

CARGO, PELA CO-RÉ, NA VIGILÂNCIA SANITÁRIA DO MUNICÍPIO.

PROCESSO DE DISPENSA DE LICITAÇÃO NITIDAMENTE FORJADO,

LEVADO A EFEITO, DE FORMA DUVIDOSA, APÓS A ESCOLHA DO

IMÓVEL. AUTOS QUE DEMONSTRAM A UTILIZAÇÃO DE VERBAS

PÚBLICAS EM DESCONFORMIDADE COM A ORIENTAÇÃO LEGAL

(INDEVIDAMENTE), EM BENEFÍCIO DOS CO-RÉUS. AGENTES

QUE, SOB O MANTO DE ATENDIMENTO AO INTERESSE PÚBLICO,

AGIRAM, EM VERDADE, VISANDO SATISFAZER INTERESSE

PESSOAL. INTERESSE PÚBLICO QUE PODERIA SER ATENDIDO

MEDIANTE A LOCAÇÃO DE QUALQUER OUTRO IMÓVEL NA

REGIÃO CENTRAL, NÃO PERTENCENTE À SERVIDORA PÚBLICA.

DECRETO-LEI N. 201/67 QUE SE APLICA A QUEM NÃO É PREFEITO

Newton Brasil de Leão

32

MUNICIPAL, MAS QUE PRATICA CRIME DESCRITO NA LEI

MENCIONADA, EM CONCURSO COM ESTE. MATERIALIDADE E

AUTORIA COMPROVADAS. CONDENAÇÕES IMPOSITIVAS. CRIME

ÚNICO. UMA SÓ CONDUTA PRATICADA. NÃO CONFIGURADO

O CRIME CONTINUADO. AÇÃO JULGADA PARCIALMENTE

PROCEDENTE.

Partes: Ministério Público, autor – Vilmar Ballin, Maria Salete Mariani dos

Santos e Milton Pinheiro dos Santos, denunciados.

ACÓRDÃO

Acordam, os Desembargadores integrantes da Quarta Câmara Criminal do

Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, à unanimidade, em julgar

parcialmente procedente a denúncia, nos termos do voto.

Custas na forma da lei.

Participaram do julgamento, além do signatário, os eminentes Senhores

DES. ARISTIDES PEDROSO DE ALBUQUERQUE NETO (PRESIDENTE)

E DES. IVAN LEOMAR BRUXEL.

Porto Alegre, 06 de agosto de 2015.

Des. Newton Brasil de Leão, Relator.

RELATÓRIO

1. Trata-se de ação penal, proposta pelo Ministério Público contra

VILMAR BALLIN, Prefeito Municipal de Sapucaia do Sul/RS, MARIA

SALETE MARIANI DOS SANTOS, Coordenadora da Vigilância Sanitária

do mesmo Município, e seu marido, MILTON PINHEIRO DOS SANTOS,

pela prática, em tese, do ilícito do arti. 1º, inc. II, do Decreto-Lei n. 201/67,

combinado com o art. 29, caput, do Código Penal, na forma do art. 71, do mesmo

diploma legal, por fatos ocorridos entre abril de 2010 e 1º.06.2011, em Sapucaia

do Sul/RS, oportunidades em que os denunciados, em comunhão de esforços

e vontades, utilizavam-se indevidamente de rendas públicas, em proveito dos

dois últimos, ao manterem contrato de locação, junto à Prefeitura, de imóvel

pertencente a estes, mesmo sabendo que MARIA SALETE está impedida de

contratar com o Município.

Conforme a vestibular, “...o denunciado VILMAR BALLIN instaurou o Processo

de Dispensa de Licitação nº 4.314/2010, mediante o fundamento de que o imóvel localizado

Locação de imóvel com fraude à licitação e responsabilidade criminal do Prefeito Municipal

33

na Rua Lauretino Juliano, nº 24, em Sapucaia do Sul/RS, seria o ideal para a instalação

da Coordenadoria da Vigilância Sanitária do Município, hipótese de dispensa com base no

artigo 24, inciso X, da Lei de Licitações.

Assim, em 1º de abril daquele ano, fi rmou o Contrato de Locação n.º 46/2010 com

os proprietários do imóvel, MARIA SALETE MARIANI DOS SANTOS e seu marido

MILTON PINHEIRO DOS SANTOS, pelo valor mensal de R$ 7.000,00 (sete mil reais),

com prazo de vigência de 60 meses, fazendo, no entanto, constar no contrato o nome do

antigo proprietário – Roni Luiz Ribeiro, Dr. Roberto Mariani, que teria intermediado a

contratação com a prefeitura no processo de dispensa, é sobrinho de MARIA SALETE

(fl s. 197/199).

Aliás, todo procedimento de dispensa foi realizado como se o proprietário do imóvel

fosse Roni Luiz Ribeiro, o qual teria constituído Roberto Mariani como seu procurador para

o fi m especial de administrar o imóvel (fl s. 140/140v).

Isso tudo para mascarar a locação pelo Município de um imóvel pertencente, na

realidade, a MARIA SALETE MARIANI DOS SANTOS e seu marido MILTON

PINHEIRO DOS SANTOS, a quem foram cedidos e transferidos os direitos hereditários

sobre o imóvel por Roni, em 05 de novembro de 1999 (fl s. 10/13). Inclusive já em 2.000,

o próprio MILTON protocolou na Prefeitura Municipal de Sapucaia do Sul pedido de

aprovação de projeto arquitetônico para construir no imóvel, bem como solicitou alinhamento

para edifi cação (fl s. 160/171).

Ocorre que MARIA SALETE é servidora do Município, Coordenadora da Vigilância

Sanitária, razão pela qual não poderia contratar com o Poder Público, por força do disposto

no artigo 9º, inciso III, da Lei Federal n.º 8.666/93.

Portanto, houve utilização indevida de rendas públicas, para pagamento de alugueis

de imóvel pertencente à MARIA SALETE, destinado à instalação de órgão de Vigilância

Sanitária do Município, que é por ela coordenado.

Chama atenção, ainda, o fato de que o procurador do ex-proprietário Roni Luiz

Ribeiro, Dr. Roberto Mariani, que teria intermediado a contratação com a Prefeitura no

processo de dispensa, é sobrinho de MARIA SALETE (fl s. 197/199).

Roberto Mariani recebe direto em sua conta os valores dos aluguéis, conforme

comprovantes de pagamento e recibos das fl s.(...)”.

Apresentadas respostas pelas defesas (fl s. 318/323 e 332/341), e manifestação

sobre as respostas pelo Ministério Público (fl s. 348/357), esta Câmara, forma

unânime, recebeu a denúncia (fl s. 376/380).

Foram apresentadas defesas preliminares (fl s. 388/390 e 392/396).

Newton Brasil de Leão

34

Ouvidas as testemunhas e interrogados os réus (fl s. 727/737), foi aberto o

prazo previsto no art. 10, da Lei Federal n. 8.038/1990 (fl . 777), tendo o Ministério

Público requerido a atualização dos antecedentes dos acusados (fl . 780).

Aberto o prazo do art. 11, da Lei n. 8.038/1990 (fl . 929), foram apresentadas

alegações escritas pelo Ministério Público (fl s. 931/945) e pelas defesas de VILMAR

BALLIN (fl s. 949/961) e de MILTON e MARIA SALETE DOS SANTOS (fl s. 966/

971).

O Ministério Público, tendo como demonstradas materialidade e autoria

dos delitos, requer a condenação dos réus, nos termos da denúncia.

A defesa de VILMAR BALLIN aduz que não houve ilegalidade no contrato

locatício, mas que, diante de documento constante dos presentes autos, o qual

poderia tisnar a contratação, determinou o desfazimento do contrato. Alega,

ainda, que à Administração Pública afi gurava-se legal a formalização da locação,

a qual foi imediatamente desfeita após a ciência acerca da propriedade do imóvel.

Seguindo, refere ausência de prova da autoria; impossibilidade de comunhão

de esforços entre VILMAR e MILTON, eis inimigos políticos; e, atipicidade da

conduta, face ao manifesto interesse público e à inocorrência de uso em proveito

próprio ou alheio. Pugna pela improcedência da ação.

A defesa de MILTON e MARIA, por sua vez, sustenta ausência de ilicitude

na locação de imóvel que visa o atendimento do interesse público. Menciona,

ainda, que os demandados não eram proprietários do imóvel locado pela

Prefeitura; impossibilidade de prévio ajuste entre as partes, eis adversários políticos

os envolvidos; atendimento de interesse público na locação; inexistência de

alternativas (outros imóveis) às necessidades da locação; ausência da participação

dos co-réus no ato da licitação e da contratação; que a vedação do art. 9º, inc. III, da

Lei das Licitações, não prevê a hipótese de locação, restringindo-se à participação

na execução da obra ou serviço e ao fornecimento de bens a eles necessários.

Alega, também, que não houve danos ao erário, face ao valor contratado para a

locação, abaixo dos índices de mercado. Por fi m, alega ausência de ardil. Pedem

seja julgada improcedente a ação penal.

É o relatório.

VOTOS

Des. Newton Brasil de Leão (Relator) – 2. Os acusados foram denunciados

como incursos nas sanções do art. 1º, inc. II, do Decreto-Lei n. 201/67, combina do

com o art. 29, caput, na forma do art. 71, ambos do Código Penal.

Locação de imóvel com fraude à licitação e responsabilidade criminal do Prefeito Municipal

35

Conforme descrito na peça pórtica, VILMAR BALLIN, Prefeito Municipal

de Sapucaia do Sul, teria utilizado rendas públicas de forma indevida, em favor

de MARIA SALETE, então Coordenadora da Vigilância Sanitária do município,

e de seu esposo, MILTON PINHEIRO, à época Procurador Jurídico da Câmara

de Vereadores, ao formalizar, com pessoa legalmente impedida de contratar com

o Poder Público, contrato de locação de imóvel, com dispensa de licitação, para a

instalação da Coordenadoria de Vigilância Sanitária do município.

Analisados os autos e o contexto fático, verifi co conluio entre os denunciados,

fi m de, com aparência de legalidade, fi rmar o Município pacto locatício de imóvel

com pessoa impedida de com ele contratar, situação esta que tipifi cou a conduta

de utilizar, o Prefeito Municipal, rendas públicas, indevidamente, em proveito

alheio.

3. Esclareço, de início, que, muito embora fi gure no contrato de locação que

originou a presente denúncia (fl s. 148/155), como parte locadora, a pessoa de Roni

Luiz Ribeiro, o qual representado por Roberto Mariani, fato é que, em verdade,

o imóvel locado pela Prefeitura Municipal de Sapucaia do Sul pertence aos co-

-denunciados MARIA SALETE e MILTON.

Isso se constata por meio de documentos trazidos aos autos, bem como

através de declarações testemunhais, conforme abaixo passo a analisar.

Às fl s. 184/185, verifi co que o imóvel em questão pertencia aos genitores

de Roni Luiz Ribeiro, tendo este o recebido por sucessão (legítima), conforme

anotação de n. R-2/31.534 na matrícula. No documento constato, ainda, que o pai

de Roni faleceu no ano de 1994, e sua mãe no ano de 1997.

No ano de 1999, portanto após o falecimento dos genitores de Roni, este

formalizou ‘Escritura Pública de Cessão de Direitos Hereditários’ (fl s. 15/18),

pela qual cedeu e transferiu os direitos sobre o imóvel em tela ao co-réu MILTON

(cessionário), já estando este casado, pelo regime da comunhão parcial de bens,

com a co-ré MARIA SALETE.

Referida cessão não foi registrada na matrícula do imóvel.

Após, no ano de 2004, Roni, omitindo a cessão de direitos hereditários

fi rmada em favor dos co-réus MILTON e MARIA SALETE, protocolou, na

comarca de Sapucaia do Sul, petição de Arrolamento com Pedido de Adjudicação

(processo que recebeu o n. 035/1.04.0001902-2), postulando a adjudicação do

imóvel ora em apreço em seu favor (fl s. 138/140). E conforme anotação contida

na matrícula do imóvel (n. R-2/31.534, às fl s. 184/185), o Juízo de Sapucaia do

Sul expediu formal de partilha em 07 de julho de 2005, e termo de retifi cação em

Newton Brasil de Leão

36

24 de setembro de 2009, conferindo a Roni a propriedade do bem, tendo este levado

o título a registro somente no ano de 2010.

No dia 1º de março de 2010, Roni outorgou procuração a Roberto Mariani,

para o fi m especial de administrar o imóvel em questão, com poderes expressos,

dentre outros, para alugá-lo (fl s. 143/143v).

Logo após, em 1º de abril de 2010, foi fi rmado o contrato de locação com o

município de Sapucaia do Sul (fl s. 148/155).

Às fl s. 808/809, verifi co que Roni, em setembro de 2013, formalizou novo

‘Termo de Cessão e Transferência de Direitos Contratuais’, este em favor de Maria

Cristina Mariani dos Santos e José Augusto Mariani dos Santos, ambos fi lhos dos

co-réus MILTON e MARIA SALETE.

O histórico acima descrito demonstra que, após o falecimento dos pais

de Roni, este cedeu seus direitos hereditários aos co-réus MILTON e MARIA

SALETE, conferindo-lhes os direitos sobre o imóvel em tela. A escritura pública de

cessão, todavia, não restou averbada na matrícula do imóvel, com o que evitada a

publicidade da negociação, bem como a informação acerca dos então reais titulares

do domínio sobre o bem.

No meu sentir, houve nítida intenção das partes envolvidas em omitir tais

informações de terceiros, tanto assim que, quando da nova cessão, esta em favor

dos fi lhos dos co-réus MILTON e MARIA SALETE, a anotação registral foi de

imediato procedida – o termo de cessão fi rmado em setembro de 2013, e levado a

registro em 10 de setembro de 2013 –, conforme se vislumbra às fl s. 808/809.

Além disso, há ainda outras circunstâncias que confi rmam a propriedade

dos co-réus MILTON e MARIA SALETE sobre o imóvel em questão.

Depois da formalização da escritura pública de cessão de direitos hereditários

fi rmada por Roni Luiz em favor dos co-réus MILTON e MARIA SALETE, estes

últimos buscaram a regularização administrativa do imóvel em questão junto a

Prefeitura Municipal de Sapucaia do Sul, mediante requerimentos fi rmados por

MILTON, conforme observo às fl s. 163/170 (Aprovação de Projeto), 171/172

(Certidão Descritiva), e 173/174 (Alinhamento para Edifi cação). Especifi camente

às fl s. 166 e 168, MILTON fi rma documentos como sendo, forma expressa,

proprietário do imóvel.

Há testemunhas que também apontam os co-réus como sendo os

proprietários/possuidores do imóvel, dentre as quais destaco Marco Antônio da

Rosa, Marcelo Andrade Machado e Roberto Mariani. O primeiro, respondendo

questão formulada pelo Ministério Público, confi rmou que o bem pertence ao casal

Locação de imóvel com fraude à licitação e responsabilidade criminal do Prefeito Municipal

37

de co-réus (fl . 420). O segundo, ex-Prefeito do município de Sapucaia do Sul, disse

saber que MILTON tinha a posse do imóvel, sendo tal fato de conhecimento geral

na cidade (fl . 554v). O terceiro, administrador do imóvel, mencionou, referindo-se

a MILTON e ao bem, que: “eu sabia que ele tinha comprado, mas não sei a que título

teria sido” (fl . 557).

Não bastasse, o procurador de Roni Luiz Ribeiro, Roberto Mariani, declarou

que recebia os valores relativos à locação do imóvel, na qualidade de administrador,

repassando-os, porém, não ao outorgante Roni, mas ao co-réu MILTON (fl s. 557/

557v). Roberto Mariani, aliás, é sobrinho da co-ré MARIA SALETE.

Os próprios co-réus isso admitem.

MARIA SALETE, quando questionada perante o Juízo, declarou que

ela e seu esposo detinham a posse do imóvel, sendo eles que recebiam os valores

auferidos com a locação (fl . 734).

MILTON, por sua vez, quando questionado acerca de quem recebia os

locativos do imóvel, asseverou ser ele, mediante repasse efetuado por Roberto

Mariani, administrador do bem (fl . 729/729v). Indagado se Roni se recebia algum

valor referente à locação, respondeu que não.

Ainda das palavras de MILTON, extraio o seguinte trecho, quando se refere

ao imóvel (fl . 727v): “que nós tínhamos, nós temos a posse, nós somos proprietários, temos

a posse locado por uns serviços públicos do Município que é da vigilância em saúde, mais

farmácia municipal”.

Diante de todo o contexto, não restam dúvidas de que os co-réus MARIA

SALETE e MILTON são, desde a formalização da cessão de direitos hereditários,

os reais e efetivos proprietários do imóvel em questão, exercendo sobre ele os

direitos de disposição, procederam em edifi cação no terreno; uso, decidiram

locar o bem, ocupando-o com o fi m a que se destina; e gozo, colheram os frutos

decorrentes da opção locatícia.

O falta de registro do imóvel em seus nomes não tem o condão de modifi car

a situação fática que efetivamente se verifi ca, exercendo ditos co-réus, claramente,

o domínio sobre o imóvel, tendo cedido, a título de locação, a posse.

A escritura pública de cessão de direitos hereditários já denotava o intento

das partes de transferir a propriedade do imóvel aos elencados co-réus, o que se

confi rmou quando da formalização de nova cessão em favor dos fi lhos destes,

tendo somente este último ato sido levado a averbação.

Tenho, portanto, assim como dito pela acusação, que a ausência de registro

da primeira cessão, procedida em favor dos co-réus MARIA SALETE e MILTON,

Newton Brasil de Leão

38

constituiu ardil que objetivava sonegar a informação quanto aos reais proprietários

do imóvel.

E se efetivos proprietários do imóvel MARIA SALETE e MILTON, e

exercendo aquela a função pública de Coordenadora da Vigilância Sanitária do

Município, era ela impedida de contratar com o poder público, conforme orientação

do inc. III, do art. 9º, da Lei n. 8.666/93.

4. Constatada a real propriedade do imóvel, mister analisar os procedimentos

de sua oferta ao Município, de dispensa de licitação e da efetivação da locação.

De acordo com as palavras de MARIA SALETE, no ano de 2008 foi

solicitado o aluguel de um imóvel para a vigilância sanitária do Município, pedido

que restou renovado no ano de 2009, e que culminou na locação do imóvel em

questão, somente no ano de 2010.

No dia 1º de março de 2010, Roni outorgou procuração a Roberto Mariani,

para o fi m especial de administrar o imóvel em questão, com poderes expressos,

dentre outros, para alugá-lo (fl s. 143/143v).

No dia 22 de março de 2010, Roberto Mariani, sobrinho de MARIA SALETE

e procurador de Roni - em nome de quem o bem estava registrado -, ofertou à locação

para a Prefeitura, conforme está no documento da fl . 145, o imóvel em apreço.

Roberto Mariani, destaco, era sabedor de que o imóvel pertencia a MARIA

SALETE e MILTON, tanto assim que, indagado, nestes termos se manifestou

(fl s. 556v/557):

“Ministério Público: Quem tinha a posse desse imóvel?

Testemunha: O Dr. Milton.

Ministério Público: Desde quando?

Testemunha: Eu tenho ele como sendo de 2009, 2010.

Ministério Público: E o senhor tem conhecimento a que título ele tinha a posse

desse imóvel?

Testemunha: Eu sabia que ele tinha comprado, ...”.

Se sabedor Roberto Mariani acerca dos efetivos proprietários do imóvel

(e mesmo que sob sua ótica fossem “apenas” possuidores), é certo que a locação

foi levada a efeito mediante a anuência destes, os co-réus MARIA SALETE e

MILTON.

A transferência da posse – essência da relação locatícia – em favor da

Prefeitura, somente poderia ocorrer mediante a aceitação e concordância de seus

Locação de imóvel com fraude à licitação e responsabilidade criminal do Prefeito Municipal

39

possuidores, os quais o próprio ofertante sabia quem eram, e que não declinaram

do intento, mesmo sabedores de que a contratação se daria com a Municipalidade.

A situação, contudo, não se restringe à mera aceitação (quanto à locação) e

omissão (quanto à qualidade de efetivos proprietários) dos co-réus, pois, analisado

o procedimento de dispensa de licitação, percebe-se, claramente, que referido

expediente foi forjado, fi m de conferir ar de legalidade à contratação, eis levada a

efeito com pessoa legalmente impedida de assim proceder.

A solicitação de locação de imóvel é datada de 19 de março de 2010,

conforme documento da fl . 121.

Conforme declaração do, à época, Secretário de Saúde do Município de

Sapucaia do Sul, José Eloir Winck (fl s. 562v/567), diligenciou ele na busca de imóveis

para a instalação da Coordenadoria da Vigilância Sanitária, tendo Roberto Mariani

lhe ofertado o imóvel em tela. Considerando-o adequado ao propósito, protocolou o

requerimento de locação, o qual datado de 19 de março de 2010 (fl . 121).

No dia 25 de março de 2010, a Prefeitura Municipal de Sapucaia do Sul deu

início ao procedimento de dispensa de licitação de n. 4314/2010 (fl . 120), com base

no requerimento acima referido.

O parecer da Procuradoria Geral do Município de Sapucaia do Sul, que

analisou o requerimento de locação mediante dispensa de licitação, aprovando-o, é

datado de 31 de março de 2010 (fl . 147).

O contrato de locação foi assinado no dia seguinte, 1º de abril de 2010

(fl s. 148/155).

Chama a atenção, dentro do processo de dispensa de licitação, que as análises

de situação cadastral dos CPFs de Roberto Mariani e de Roni Luiz Ribeiro, bem

como a certidão negativa de débitos federais (esta emitida apenas em nome de

Roberto Mariani), têm data posterior a do parecer de aprovação da locação, e,

inclusive, a da assinatura do contrato. Conforme está nas fl s. 144A, 144B e 146,

estas análises datam de 06 de maio de 2010!

Não há no processo de dispensa de licitação, outrossim, qualquer documento

que ateste a regularidade fi scal (municipal, estadual e federal) de Roni Luiz Ribeiro,

em nome de quem estava registrado o imóvel, mesmo que à época já não fosse seu

efetivo proprietário, tendo, por aquela razão, fi gurado como contratante no pacto

locatício.

Chama a atenção, ainda, o fato dos editais relativos à contratação e dispensa

de licitação terem sido publicados, tão-somente, no fi nal do mês de julho de 2010,

ou seja, após fi rmado o contrato locatício.

Newton Brasil de Leão

40

De outra banda, a duração do processo de dispensa de licitação foi de apenas

07 dias, culminando, nesse exíguo prazo, na contratação com o Município.

E não há no processo licitatório (e também nos autos), como percebo,

qualquer documento que informe e/ou ateste não haver outro imóvel, de

características similares ao que restou eleito pela administração pública, na região

em que situado este, ao que sua escolha, diante de todo o contexto fático, foi, ao

que tudo indica, previamente acertada e programada.

Tais “curiosos” detalhes, acima apontados, somados à situação da real

propriedade do imóvel, denotam articulação e ajuste entre as partes denunciadas –

e, quiçá, até mesmo junto a outras –, visando dar ares de legalidade a um

procedimento de dispensa de licitação, o qual objetivava contratação do Município

com pessoa impedida de assim proceder.

5. Da prova carreada aos autos verifi co, igualmente, o ajuste entre as partes,

visando alcançar o intento de contratar a municipalidade com pessoa impedida de

assim proceder.

Como já analisado, MARIA SALETE e MILTON eram não só os

possuidores do imóvel, bem como seus reais proprietários, sobre ele exercendo os

direitos inerentes à propriedade.

E mediante os serviços de Roberto Mariani – sobrinho de MARIA

SALETE e proprietário de imobiliária –, ofertaram o imóvel para locação à

Prefeitura de Sapucaia do Sul, sendo que referida co-ré, anteriormente, havia

solicitado ao Município que locasse imóvel para instalar a Coordenadoria por ela

administradada, e para a qual o imóvel ora em questão acabou sendo alugado/

destinado.

Como a contratação não poderia ser levada a efeito em nome dos reais

proprietários, dado o impedimento legal da co-ré MARIA SALETE de contratar

com o Município, foi o nome de Roni Luiz Ribeiro que fi gurou como locador no

contrato de locação, mesmo que, àquela altura, o imóvel não mais lhe pertencesse,

de fato.

Ocorre que diante da omissão de registro na matrícula do imóvel acerca da

cessão de direitos hereditários em favor dos co-réus MARIA SALETE e MILTON,

isso fez-se possível, uma vez que seguiu Roni constando na matrícula do imóvel

como sendo seu proprietário, embora de fato já não o fosse.

E como comprovado, os valores mensais do aluguel jamais foram repassados

a Roni, mas, sim, ao casal de co-réus, conforme por eles (e por Roberto Mariani)

confi rmado.

Locação de imóvel com fraude à licitação e responsabilidade criminal do Prefeito Municipal

41

Valeram-se os co-réus MARIA SALETE e MILTON, portanto, do nome de

Roni Luiz Ribeiro, para conferir suposta legalidade à relação locatícia, bem como

dos serviços de Roberto Mariani, sobrinho daquela, o qual, possuindo procuração

para agir em nome de Roni Luiz, conferia segurança aos primeiros quanto à relação

entabulada com o Município, bem como quanto ao recebimento dos locatícios.

6. No que diz com a conduta do Prefeito Municipal de Sapucaia do Sul,

VILMAR BALLIN, foi tipifi cadora do delito denunciado, conforme abaixo passo

a fundamentar.

A relação do Prefeito com a co-ré MARIA SALETE era de nítida confi ança,

tanto que ele, após sugestão do Secretário de Saúde, José Eloir Winck, a manteve

no cargo de Coordenadora da Vigilância Sanitária do Município.

E não se trata de cargo de menor importância.

Ao contrário, afi gura-se função de notória relevância na comunidade, que

desenvolve metodologias e políticas públicas destinadas a prevenção, diminuição

ou eliminação de riscos e/ou danos à saúde, estando diretamente ligada à

Secretaria da Saúde do Município.

A manutenção do cargo de MARIA SALETE na Prefeitura demonstra, de

outra banda, que a alegada inimizade entre o Prefeito e seu esposo, o também

denunciado MILTON, caso efetivamente houvesse, não seria óbice à prática do

delito.

Na verdade, é inviável crer que o Prefeito Municipal mantivesse em seu

quadro de servidores, e em cargo de tamanha importância e destaque, pessoa que

não fosse de seu conhecimento e confi ança, e tampouco que fosse assim proceder

com pessoa de íntima ligação com adversário político seu, dado o risco a que

passaria a estar exposta a gestão deste cargo.

Aliás, visando afastar de vez tal argumento, destaco que nem mesmo

VILMAR BALLIN referiu qualquer forma de inimizade com o co-réu MILTON,

tendo, quando questionado a respeito, apenas mencionado se tratar de adversário

político (fl . 732v).

Superada a aludida (e inverossímil) alegação de inimizade entre as partes –

o que, sob a ótica da defesa, poderia afastar a possibilidade de ajuste para a prática

delituosa –, vou adiante.

7. A posse exercida pelos co-réus MARIA SALETE e MILTON sobre o

imóvel locado pela Prefeitura era de conhecimento notório.

Neste sentido, pronunciaram-se as testemunhas Marco Antônio da Rosa

(fl . 420), Roberto Mariani (fl s. 556v/557) e Marcelo Andrade Machado (fl . 553v).

Newton Brasil de Leão

42

Marco Antônio da Rosa foi assim questionado:

“Ministério Público: E pelo que o senhor confi rma, então, esse imóvel é do casal

denunciado?

Testemunha: Sim”.

Roberto Mariani, por sua vez, assim se manifestou quanto ao ponto:

“Ministério Público: Quem tinha a posse desse imóvel?

Testemunha: O Dr. Milton.

Ministério Público: Desde quando?

Testemunha: eu tenho ele como sendo de 2009, 2010.

Ministério Público: E o senhor tem conhecimento a que título ele tinha a posse

desse imóvel?

Testemunha: Eu sabia que ele tinha comprado, mas não sei a que título teria sido.

Ministério Público: Comprado de quem?

Testemunha: Do seu Roni”.

Marcelo Andrade Machado, ex-Prefeito, declarou:

“Juíza Instrutora:O senhor conhece o imóvel?

Testemunha: Conheço o imóvel.

Juíza Instrutora: Sabe dizer a quem pertencia aquele imóvel?

Testemunha: A propriedade não. Eu sabia que tinha a posse do Milton, ...”.

E como bem referido pela acusação – cujo argumento refl ete meu

entendimento –, “...o imóvel em questão – seja pela dimensão ou pela localização – possui

destaque na comunidade local, isto é, em outras palavras, as pessoas que convivem no

município de Sapucaia do Sul ... tem conhecimento de quem são os proprietários (ainda que

de fato) de um imóvel com essas características peculiares...”.

Tal situação era seguramente de conhecimento também do Prefeito

Municipal, pois, engajado na comunidade de Sapucaia do Sul há tantos anos (lá

reside desde 1975, já tendo inclusive exercido mandatos como Vereador na cidade),

difícil aceitar não fosse conhecedor deste “detalhe” acerca do diferenciado imóvel,

situado na região central da cidade.

Não se mostra verídica, data venia, a assertiva de que o Prefeito, morador de

longa data no Município e pessoa de grande atuação política (e, por consequência,

Locação de imóvel com fraude à licitação e responsabilidade criminal do Prefeito Municipal

43

social), não tinha conhecimento acerca dos reais possuidores/proprietários de fato

do destacado imóvel, escolhido para abrigar importante coordenadoria de sua gestão.

Reforça tal entendimento, o fato dos reais proprietários serem indivíduos

com notória atuação pública no município (MARIA SALETE coordenadora da

vigilância sanitária desde gestão anterior, e MILTON Procurador-Geral e, também,

da Câmara Municipal), assim como o Prefeito.

De qualquer forma, este argumento defensivo perde força quando, mesmo

após ter tido ciência acerca da ilegalidade do contrato fi rmado em sua gestão, o

Prefeito não determinou, de imediato, seu rescindir, mantendo-o ainda vigente.

Ora, se diante das evidências que indiscutivelmente lhe foram expostas não

tomou imediata medida visando dar término ao ilegal contratar, é porque já tinha

conhecimento da situação, ou porque com ela compactuou.

Para bem ilustrar, destaco que à fl . 178, encontra-se ofício enviado pela

Procuradoria de Prefeitos do Ministério Público, em data de 12.01.2011, ao

Sr. VILMAR BALLIN, não só noticiando os fatos e a denúncia, bem como lhe

conferindo prazo para esclarecimentos extrajudiciais.

Ou seja, se já não soubesse antes – o que na verdade tenho como impossível,

diante de todos os fatos –, no momento em que recebeu a notifi cação o Prefeito

teve plena ciência quanto à situação de ilegalidade da contratação.

Após, no dia 29.07.2011, o Prefeito foi notifi cado para apresentar resposta

escrita no presente processo-crime (fl . 327 e verso), e, inobstante isso, mais uma

vez manteve vigorando o contrato de locação, cuja ilegalidade já lhe havia sido

informada/demonstrada/questionada.

O pacto locatício, contudo, mesmo diante da denunciada ilegalidade,

somente restou rescindido pelo município no dia 02.12.2013 (fl . 831), portanto

quase 03 anos depois da “primeira cientifi cação” do Prefeito à respeito dos fatos.

Assim, não se há cogitar do acolhimento da tese de falta de conhecimento

por parte do Prefeito VILMAR BALLIN, acerca da iliegalidade da contratação.

8. Diante de tudo o que retro exposto e analisado, tenho como comprovada

a prática denunciada, tendo os acusados, em ajuste de vontades e comunhão de

esforços, mediante omissão de fatos reais e com fulcro em processo de dispensa de

licitação nitidamente forjado, procedido na contratação do município com pessoa

legalmente impedida de assim proceder, por força da orientação contida no inc. III,

do art. 9º, da Lei n. 8.666/93.

As condutas dos denunciados caracterizaram utilização indevida de rendas

públicas em proveito alheio, na medida em que o Prefeito Municipal, ao autorizar

Newton Brasil de Leão

44

processo de dispensa de licitação (nitidamente forjado), e assinar pacto locatício

de imóvel para o Município, ciente de que pertencente este a pessoa impedida de

contratar com o Poder Público, procedeu destinação de verbas em desconformidade

com a orientação legal, assim benefi ciando, forma indevida, os co-réus MARIA

SALETE e MILTON PINHEIRO.

Estes, por sua vez, inobstante a real condição de proprietários do

imóvel ofertado à Prefeitura, levaram a efeito a contratação mesmo cientes da

impossibilidade, eis MARIA SALETE, na condição de Coordenadora da Vigilância

Sanitária do Município, não poderia com o Poder Público contratar.

Para tanto, utilizaram-se do nome de Roni Luiz Ribeiro – sucessor

dos antigos proprietários e que anteriormente lhes havia cedido os direitos

sucessórios sobre dito bem, todavia omitindo o registro de tal cessão na

matrícula do imóvel –, como sendo o locador, assim visando conferir ares de

legalidade a pactuação.

Roni, porém, fez-se representado por Roberto Mariani, o qual, na qualidade

de proprietário de imobiliária na cidade de Sapucaia do Sul, daquele recebeu

poderes para administrar e locar o imóvel, assim conferindo segurança aos co-réus

MARIA SALETE e MILTON não só quanto ao sigilo de toda a operação, bem

como quanto ao recebimento, por estes, dos valores do aluguel, os quais sempre

destinados por Roberto Mariani a eles, e não a Roni.

9. As defesas argumentam, ainda, atípicas as condutas, sob a alegação de

que a contratação visava o atendimento de interesse público.

Aludida tese, contudo, não vinga.

In casu, tenho que os agentes, sob o manto de atendimento ao interesse

público, agiram, em verdade, visando satisfazer interesse pessoal, ou seja, dos co-

-réus MARIA SALETE e MILTON.

Entendo assim, não só por todo o nebuloso enredo que envolveu a

contratação, bem como porque o interesse público poderia ser atendido mediante

a locação de qualquer outro imóvel localizado na região central da cidade, que não

o pertencente à servidora do Município.

Não se pode aceitar que, sob o argumento de atendimento ao interesse

público, o Prefeito Municipal deixe de observar ditames legais outros, especialmente

referentes à livre concorrência para a contratação com o Município, assim

privilegiando pessoas que sequer poderiam proceder à contratação.

A conduta dos denunciados, portanto, é típica, devendo eles responder pela

infração penal cometida.

Locação de imóvel com fraude à licitação e responsabilidade criminal do Prefeito Municipal

45

Sobre as características dos crimes de responsabilidade, Paulo Mascarenhas

(1990, p. 70), com sabedoria ímpar, assim se expressou:

“Os crimes defi nidos neste artigo dispensam a valoração do resultado para a

tipifi cação do delito, não importando se o dano causado ao erário ou ao patrimônio

públicos foi de maior ou menor monta. (...). Se ... o elemento motivador foi o

interesse pessoal do agente – o prefeito ou seu substituto – ou de terceiro a quem

queria benefi ciar, trata-se, inequivocamente, de crime de responsabilidade, punível

na forma e modo previsto neste Decreto-Lei.”

10. A defesa de MILTON e MARIA SALETE aduz, ainda, que a vedação do

art. 9º, inc. III, da Lei das Licitações, não prevê a hipótese de locação, restringindo-

-se à participação na execução da obra ou serviço e ao fornecimento de bens a eles

necessários.

Sem razão.

Assim prevê o mencionado artigo e inciso:

“Art. 9o: Não poderá participar, direta ou indiretamente, da licitação ou da

execução de obra ou serviço e do fornecimento de bens a eles necessários:

(...)

III - servidor ou dirigente de órgão ou entidade contratante ou responsável pela

licitação”.

E os serviços estão assim defi nidos por dita lei, em seu artigo 6º, inciso II:

“Art. 6o: Para os fi ns desta Lei, c onsidera-se:

(...);

II - Serviço - toda atividade destinada a obter determinada utilidade de interesse

para a Administração, tais como: demolição, conserto, instalação, montagem,

operação, conservação, reparação, adaptação, manutenção, transporte, locação de

bens, publicidade, seguro ou trabalhos técnico-profi ssionais;”.

Como se vislumbra, port anto, a locação é considerada serviço, para os fi ns

da Lei n. 8.666/93.

11. Os danos ao erário, no presente caso, decorrem da utilização

indevida de rendas públicas, as quais eram destinadas ao pagamento de aluguel

de imóvel.

Newton Brasil de Leão

46

Como visto, a locação foi levada a efeito com pessoa impedida de contratar

com o Poder Público, daí restando demonstrada a destinação dos valores em

desconfi rmidade com previsão legal.

Diante disso, em comprovadas a materialidade e a autoria do ilícito, bem

como todo o ardil utilizado para a realização da irregular locação, corolário lógico

a condenação dos infratores.

12. Razão não assiste aos réus MILTON e MARIA SALETE, ainda,

quando sustentam ausência da participação no ato da licitação e da contratação.

Quanto ao ato da contratação, já restou demonstrado todo o ardil por eles

perpetrado, fi m de atingir o objetivo de locarem imóvel seu à municipalidade,

mesmo cientes de que assim não poderiam proceder.

Quanto à licitação, em conjunto com o Prefeito Municipal, articularam

um processo para sua dispensa, o qual nitidamente forjado ante as singularidades

elencadas acima.

E, mesmo não se tratando os co-réus de Prefeitos do Município, a eles

igualmente aplicável o Decreto n. 201/67, conforme entendimento jurisprudencial.

Neste sentido, ilustro com a decisão abaixo:

“Apelação Criminal. Preliminares. Inquérito policial. Dispensável. Ministério Público

preside as investigações. Possibilidade. Aplicação do Decreto-Lei n. 201/67 a quem

não é prefeito. Instauração de ação penal após a extinção do mandato de prefeito.

Defesa do patrimônio público. Quebra de sigilo bancário pelo Ministério Público.

Possibilidade. Juntada de certidão criminal aos autos. Ausência de comunicação

ao réu. Ofensa ao princípio do contraditório. Inocorrência. Ausência de prejuízo.

Forjar processo licitatório para desviar verba pública. Crime de responsabilidade

de prefeito. Confi guração. Prova. Existência. Condenação mantida.O inquérito

policial é peça meramente informativa que pode ser dispensada pelo Ministério

Público quando possuir informações sufi cientes para a propositura da ação penal.

A jurisprudência é pacífi ca no sentido de autorizar a punição, nos termos

do Decreto-Lei n. 201/67, de quem, mesmo não sendo prefeito, pratica

crime descrito na lei mencionada, em concurso com prefeito municipal.

(...). Restando comprovado nos autos, por meio de documentos e provas

testemunhais, que o réu, em conluio com o prefeito municipal e demais co-réus,

forjaram processo de licitação e desviaram renda pública, deve ser mantida a

condenação pelo crime previsto no art. 1º, inc, I, § 1º, do Decreto-Lei n. 201/67”.

(TJ-RO - APR: 10100320010013817 RO 101.003.2001.001381-7, Relator:

Locação de imóvel com fraude à licitação e responsabilidade criminal do Prefeito Municipal

47

Desembargador Cássio Rodolfo Sbarzi Guedes, Data de Julgamento:

23/03/2006, 1ª Vara Criminal).

13. Para o fi xar das penas, passo à análise dos comemorativos do art. 59, do

Código Penal.

Ré MARIA SALETE:

A culpabilidade é acentuada, tendo em vista a considerável reprovabilidade

do comportamento praticado, eis ciente da impossibilidade de contratar com

o Município, omitiu sua real condição de proprietária do imóvel ofertado, e

posteriormente locado, a Prefeitura Municipal. A ré não apresenta antecedentes

(fl . 909). Sua conduta social e personalidade não a desfavorecem. O motivo, ao que

tudo indica, era o lucro fi nanceiro. As circunstâncias a desfavorecem, uma vez que,

mesmo ciente da impossibilidade de contratar com o Poder Público, levou adiante

a irregular contratação. A consequência do delito foi a irregular e ilegal destinação

de verbas públicas. E, por fi m, não há falar, in casu, em comportamento da vítima.

Sopesadas tais circunstâncias, a pena-base é estabelecida em 02 anos e

10 meses de reclusão.

Entendo não confi gurada a hipótese de crime continuado, mas sim de crime

único, porquanto somente uma conduta delituosa foi perpetrada. Inobstante tenham

os pagamentos pelo aluguel sido efetuados em diversas oportunidades, fato é que

houve apenas uma contratação, daí incidindo na espécie o comando do art. 71,

do Código Penal.

Ausentes alteradoras outras, resta defi nitizada neste patamar.

O regime de cumprimento vai estabelecido no aberto.

Preenchidos os requisitos do art. 44, do Código Penal, vai a sanção carcerária

substituída por duas restritivas de direitos (§ 2º, do art. 44, do Código Penal),

consistentes em prestação de serviços à comunidade, por igual prazo, e prestação

pecuniária, estabelecida em 10 salários mínimos (face à situação econômica da ré).

Réu MILTON:

A culpabilidade é acentuada, tendo em vista a considerável reprovabilidade

do comportamento praticado, eis ciente da impossibilidade de contratar com o

Município, tendo em vista o cargo exercido por sua esposa, omitiu a real condição

de proprietário do imóvel ofertado, e posteriormente locado, à Prefeitura Municipal.

O réu apresenta antecedente (processo n. 035/2.03.0000014-9, fl . 910). Sua conduta

social e personalidade não o desfavorecem. O motivo, ao que tudo indica, era o

lucro fi nanceiro. As circunstâncias o desfavorecem, uma vez que, mesmo ciente

Newton Brasil de Leão

48

da impossibilidade de contratar com o Poder Público em decorrência do cargo

exercido por sua esposa, levou adiante a irregular contratação. Além disso, em

exercendo a atividade de advogado, tendo inclusive laborado como Procurador do

Município e da Câmara Municipal, tinha plena ciência da vedação da contratação.

A consequência do delito foi a irregular e ilegal destinação de verbas públicas.

E, por fi m, não há falar, in casu, em comportamento da vítima.

Sopesadas tais circunstâncias, a pena-base é estabelecida em 03 anos e

04 meses de reclusão.

Entendo não confi gurada a hipótese de crime continuado, mas sim de crime

único, porquanto somente uma conduta delituosa perpetrada. Inobstante tenham

os pagamentos pelo aluguel sido efetuados em diversas oportunidades, fato é que

houve apenas uma contratação, daí incidindo na espécie o comando do art. 71, do

Código Penal.

Ausentes alteradoras outras, resta defi nitizada neste patamar.

O regime de cumprimento vai estabelecido no aberto.

Preenchidos os requisitos do art. 44, do Código Penal, é a sanção carcerária

substituída por duas restritivas de direitos (§ 2º, do art. 44, do Código Penal),

consistentes em prestação de serviços à comunidade, por igual prazo, e prestação

pecuniária, estabelecida em 10 salários mínimos (face à situação econômica do réu).

Réu VILMAR:

A culpabilidade é igualmente acentuada, tendo em vista a considerável

reprovabilidade do comportamento praticado, eis ciente da impossibilidade de

contratação do Município com os co-réus, face ao cargo exercido por MARIA

SALETE, autorizou processo de dispensa de licitação nitidamente forjado, tudo

visando dar ares de regularidade à contratação levada a efeito. O réu não apresenta

antecedentes (fl s. 908/908v). A conduta social e personalidade não o desfavorecem.

O motivo, ao que tudo indica, foi o favorecimento de terceiros, in casu dos co-réus.

As circunstâncias o desfavorecem, uma vez que mesmo ciente da real propriedade

sobre o imóvel ofertado à Prefeitura, e da impossibilidade de contratação diante

desta, autorizou processo de dispensa de licitação, e, após, fi rmou contrato com

pessoa impedida de pactuar com o Poder Público. A consequência do delito foi

a irregular e ilegal destinação de verbas públicas, e favorecimento de terceiros em

detrimento à livre concorrência. E, por fi m, não há falar, in casu, em comportamento

da vítima.

Sopesadas tais circunstâncias, a pena-base é estabelecida em 03 anos e

02 meses de reclusão.

Locação de imóvel com fraude à licitação e responsabilidade criminal do Prefeito Municipal

49

Entendo não confi gurada a hipótese de crime continuado, mas sim de crime

único, porquanto somente uma conduta delituosa perpetrada. Inobstante tenham

os pagamentos pelo aluguel sido efetuados em diversas oportunidades, fato é que

houve apenas uma contratação, daí incidindo na espécie o comando do art. 71, do

Código Penal.

Ausentes alteradoras outras, resta defi nitizada neste patamar.

O regime de cumprimento vai estabelecido no aberto.

Preenchidos os requisitos do art. 44, do Código Penal, é a sanção carcerária

substituída por duas restritivas de direitos (§ 2º, do art. 44, do Código Penal),

consistentes em prestação de serviços à comunidade, por igual prazo, e prestação

pecuniária, estabelecida em 10 salários mínimos (face à situação econômica do

réu).

E como ponderado pela acusação, em ausente pleito de perda do cargo

e/ou de inabilitação, pelo prazo de cinco anos, para o exercício de cargo ou função

pública, eletivo ou de nomeação, inaplicável à espécie o comando do art. 1º, § 2º,

do Decreto-Lei n. 201/67.

14. Ante ao exposto, julgo parcialmente procedente a denúncia, para

condenar MARIA SALETE MARIANI DOS SANTOS, MILTON PINHEIRO

DOS SANTOS e VILMAR BALLIN, como incursos nas sanções do art. 1º,

inc. II, do Decreto-Lei n. 201/67, combinado com o art. 29, caput, do Código Penal,

às penas, respectivas, de 02 anos e 10 meses de reclusão, 03 anos e 04 meses de

reclusão, e de 03 anos e 02 meses de reclusão, a serem cumpridas no regime aberto,

sendo todas substituídas por penas restritivas de direitos, nos termos do voto.

Des. Ivan Leomar Bruxel (Revisor) – De acordo com o(a) Relator(a).

Des. Aristides Pedroso de Albuquerque Neto (Presidente) – Acompanho

o eminente Relator.

Des. Aristides Pedroso de Albuquerque Neto – Presidente - Acao

Penal - Procedimento Ordinario nº 70043300532, Comarca de Sapucaia do

Sul: “JULGARAM PARCIALMENTE PROCEDENTE A DENÚNCIA.

UNÂNIME.”

DESVIO DE VERBA PÚBLICA EM DIÁRIAS

PARA VEREADORES COMO CRIME CONTRA A

ADMINISTRAÇÃO PÚBL ICA: UM ESTUDO DE CASO

Rogério Gesta Leal

I – NOTAS INTRODUTÓRIAS

Pretendo neste artigo tratar do tema do desvio de verba pública em

diárias para Vereadores como forma de crime contra a Administração Pública,

estabelecendo o contexto em que isto se enquadra no sistema normativo brasileiro,

em especial a partir da ideia de moralidade pública e responsabilidade dos agentes

públicos. Ao fi nal vou apresentar um estudo de caso que julguei no Tribunal de

Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.1

II – OS CRIMES CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NO

BRASIL: CONTEXTOS NORMATIVOS

Os crimes contra a Administração Pública no Brasil devem ser compreendidos

a partir de sua necessária integração com todo o sistema normativo nacional,

constitucional e infraconstitucional e, em especial, com os demais referenciais jurídicos

que pautam a Administração Pública contemporânea em geral (princípios e regras).

1 – O caso é a Apelação Criminal n. 70056085798, julgado pela Quarta Câmara Criminal, do

Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, em 7 de novembro de 2013, com os Eminentes

Desembargadores Gaspar Marques Batista e Newton Brasil de Leão.

52

Rogério Gesta Leal

Já tive oportunidade de dizer que os princípios fundamentais

constitucionais brasileiros são vinculantes à Administração Pública, fazendo com

que todas as ações estatais (criação e desenvolvimento de políticas públicas, atos

administrativos, legislativos e jurisdicionais) estejam previamente determinadas

por alguns contornos, limites e direções estatuídos por tais princípios, operando

sempre e de forma continuada como fi ltro prévio do exame da constitucionalidade

e legalidade dos seus atos a partir do cotejo com os fundamentos e objetivos do

Estado Democrático de Direito brasileiro normatizado.2

Assim é que, quando a Administração, pela via dos seus agentes públicos

(servidores públicos ou agentes políticos), estiver promovendo seus atos ofi ciais,

cumprindo com suas atribuições normativas e políticas, ou o faz respeitando e

perseguindo os ditames constitucionais insertos nos Princípios Fundamentais, ou

corre o risco de cometer inconstitucionalidades por omissão ou ação.

De outro lado, cumpre reconhecer que enquanto os princípios explícitos

da Administração Pública encontram-se bem identifi cados no sistema jurídico

nacional, têm a doutrina e a jurisprudência pátrias reconhecido a existência

dos chamados princípios implícitos da Administração, demandando esforço

hermenêutico e desvelador diferenciado, uma vez que não contam, salvo melhor

juízo, com a plasticidade direta e posta pela norma cogente, a despeito de já

constarem do sistema jurídico como um todo.3

Neste particular, chamo a atenção, a título exemplifi cativo, para três

clássicos e importantes princípios da Administração Pública, dois implícitos e um

explícito, que entendo como constitutivos do Estado Administrador Democrático

de Direito4, em face da ordem constitucional vigente, a saber: (a) os dois implícitos,

a supremacia do interesse público e a indisponibilidade do interesse público;

(b) o explícito, a moralidade administrativa.

2 – Aqui entendidas como atinentes à supremacia do interesse público da maior parte quantitativa da

população e sua indisponibilidade. Tratei deste tema em meu livro LEAL, Rogério Gesta. Estado,

Administração Pública e Sociedade: novos paradigmas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.

3 – Vale aqui a advertência de GRAU, Eros. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação do Direito. São Paulo:

Malheiros, 2002, p. 130: “... esses princípios se existem, já estão positivados; se não for assim, deles não se trata.

A sua positivação, todavia, não se dá mediante seu resgate no universo do direito natural, como tantos supõem; ela

não é constituída, essa ‘positivação’, mas simplesmente reconhecida no instante do seu descobrimento (do princípio)

no interior do direito pressuposto da sociedade a que corresponde”.

4 – Entendido aqui como aqueles que estabelecem os pressupostos que a Administração Pública deve

observar na execução de suas políticas e pautas gerenciais cotidianas.

53

Desvio de verba pública em diárias para Vereadores como crime contra a Administração Pública: um estudo de caso

Tratando como primeiro o da supremacia do interesse público, tem-se que

ele é inerente a qualquer Sociedade contemporânea, a despeito de não constar

expressamente no texto constitucional brasileiro5, haja vista que diz respeito, de

um lado, a uma circunstância que não pode ser negada no âmbito das relações de

poder e políticas contemporâneas, marcadas que estão por interesses e projetos

muito mais corporativos do que sociais; de outro lado, à formatação de práticas de

poder geralmente corporativas e unilaterais, exatamente para reproduzir o modelo

de crescimento econômico hegemônico.

Assim, tenho como interesses públicos os que dizem respeito, de um

lado, ao plexo normativo de prerrogativas sociais atinentes a toda comunidade –

principalmente os constitucionais; de outro lado, os apresentados cotidianamente

pelas demandas de natureza política, econômica, cultural, etc. da Sociedade como

um todo.6

Por óbvio, não se está aqui a defender a tese de que há uma contraditória

relação entre interesse público e privado, pois eles, em verdade, se inter-relacionam

constantemente, sendo por vezes causa e efeito recíprocos. Todavia, revela-

-se inafastável a percepção de que também operam com lógicas diferenciadas,

mantendo certo tensionamento em suas coexistências que precisa ser identifi cado e

solvido em cada situação concreta que se apresentar. Essa tarefa, de qualquer sorte,

deve estar coordenada pelo Estado, eis que é espaço de gestão de todos os interesses

que interagem no contexto do mundo da vida.

E ainda se tem o princípio da indisponibilidade do interesse público7. Sobre ele,

a doutrina administrativista brasileira tem, em regra, unifi cado sua interpretação,

sustentando que, em face da natureza do interesse, demarcada pelos contornos de

sua supremacia e objeto que alcança, dizem respeito não à vontade/propriedade

do administrador ou do Estado, mas, ao contrário, pertence originariamente a

outrem, o detentor da soberania material: a Sociedade. E, assim, não possuindo

a Administração a titularidade do bem público (aqui entendido como o

interesse público), cabe-lhe, tão somente, a condição de gestora, por delegação

5 – Trata-se, aqui, de um Princípio Implícito ao ordenamento jurídico, tão importante quanto os

explícitos, consoante ensinamento de GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988.

São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991.

6 – Estou falando, por exemplo, do conjunto de direitos insertos nos arts. 5º, 6º, 7º, 144, 150, 170, 182,

191, 194, 196, 203, 205 da Constituição de 1988.

7 – A indisponibilidade, aqui, diz respeito exatamente à noção ou ideia contrária de bens ou interesses

disponíveis, ou seja, aqueles sujeitos à livre alienação ou à transação pelos seus titulares.

54

Rogério Gesta Leal

de competências, de tal patrimônio8. Esta gestão, por sua vez, também está

condicionada por objetivos e fi ns pré-ordenados, ao menos em termos gerais9.

O denominado interesse particular pode ser considerado como disponível

porque informado, tão somente, pela vontade humana livre, limitada pelos termos

vedatórios da norma jurídica (veja-se que a disponibilidade impera no campo do

direito privado, visto que está subordinada a voluntas do dominus), tendo como

critério diferenciador do interesse público, dentre outros, o fato de que se revela

como indisponível porque informado pela ideia de fi m. Se no direito privado

prevalece a vontade, no direito administrativo tem-se a fi nalidade como elemento

informador das possibilidades da ação ou omissão estatal.

A atividade administrativa obedece, cogentemente, a uma fi nalidade, à qual o

agente é obrigado a adscrever-se, quaisquer que sejam as suas inclinações pessoais;

e essa fi nalidade domina e governa a atividade administrativa, imediatamente,

a ponto de assinalar-se, em vulgar, a boa administração pela impessoalidade, ou

seja, pela ausência de subjetividade. À relação jurídica que se estrutura ao infl uxo

de uma fi nalidade cogente dá-se o nome de relação de administração. Esta domina

e paralisa a de direito subjetivo.10

Diante do ponderado, resta claro que o administrador não tem a proprietas do

bem/interesse público; não tem o direito de operar com o interesse público de tal

maneira que dele disponha a seu talante, em função das normas que o restringem,

explicitando-se, cotidianamente, como intangível e indisponível.

Indisponível, no sentido que lhe dá Calmon de Passos11, é todo o direito em

relação ao qual o titular não é livre de manifestar a sua vontade. Tais são os bens da

8 – Nesse sentido FIGUEIREDO, Lucia Valle. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros,

1999, p. 63. Da mesma forma e direção: ALESSI, Renato. Instituciones de Derecho Administrativo.

Buenos Aires: Casa Editorial, 1990; BIELSA, Rafael. Derecho Administrativo. Buenos Aires: La

Ley, 1975; BONNARD, Roger. Précis de Droit Administratif. Paris: LGDJ, 2001; CAVALCANTI,

Themístocles Brandão. Tratado de Direito Administrativo. São Paulo: Freitas Bastos, 1986.

9 – Os já referidos princípios constitucionais e direitos e garantias fundamentais.

10 – LIMA, Ruy Cirne. Princípios de Direito Administrativo. Porto Alegre: Globo, 1984, p. 51. O autor

usa a interessante expressão paralisação do direito subjetivo, que prefi ro não usar, evitando assim qualquer

associação negativa à capacidade e obrigação do gestor público exercer, com responsabilidade e

vinculatividade ao ordenamento jurídico, sua discricionariedade ofi ciosa.

11 – CALMON DE PASSOS, J. J. Comentários ao Código de Processo Civil. Volume III. Rio de Janeiro:

Forense, 2001, p. 406-408.

55

Desvio de verba pública em diárias para Vereadores como crime contra a Administração Pública: um estudo de caso

Fazenda Pública, uma vez que estão fora da disposição de seus titulares. Por conseguinte, os

representantes das pessoas jurídicas de Direito Público Interno, para a satisfação dos objetivos

de interesse coletivo, não detêm a disponibilidade dos direitos daquelas pessoas jurídicas.

Neste particular, importa reforçar a ideia de que o interesse público é confi ado

ao Estado, não aos seus órgãos, muito menos aos seus agentes, destacando-se as

pessoas administrativas como verdadeiros instrumentos do Poder Público, o que

não signifi ca total paralisia no processo de planejamento, instituição e execução

de políticas públicas, mas que tais não podem estar atreladas a idiossincrasias

intersubjetivas e objetivos pessoais desses agentes.12

Para que haja a disponibilidade do interesse público, há que se observar

todo um plexo de medidas e procedimentos refl exivos e aferidores das

motivações e fundamentos apresentados para tanto, mediante, necessariamente, o

pronunciamento e autorização, por exemplo, do legislativo, tudo fi cando a mercê

da sindicabilidade jurisdicional.

Os Poderes da Administração, nessa perspectiva, apresentam-se como

instrumentais servientes do dever de bem cumprir a fi nalidade a que estão,

indissoluvelmente, atrelados. Logo, quem desempenha o munus público, tem, na

realidade, deveres-poderes, em que a tônica reside, como quer Mello13 e Alessi14,

no dever.

Por fi m, como que pairando sobre todo e qualquer ato da Administração

Pública, de forma até instigante, tem-se o complexo princípio da moralidade

administrativa que, por sua vez, constitui pressuposto da validade de todo o

12 – Assim, não se pode imaginar que a Administração Pública possa proceder a transações

administrativas, ou mesmo judiciais, envolvendo o patrimônio público, sem qualquer autorização para

tanto. Neste sentido se pronunciou o já extinto Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul: Recurso:

APC – Número: 189022809 – Data: 06-06-1989 – Órgão: Primeira Câmara Cível – Relator: Osvaldo

Stefanello – Origem: Rio Pardo – E M E N T A – Possessória contra Município. Bens de uso comum do povo.

Acordo. Não é válido acordo feito em audiência, reconhecendo, o Município, a legitimidade da posse dos autores em

ação proposta contra a pessoa jurídica de direito público, fazendo doação de benfeitorias construídas, com dinheiro

público, sobre a área objeto da lide. Apelação. Legitimidade do Município. Tem legitimidade o Município para

interpor o recurso de apelação, objetivando seja declarado nulo o acordo de cujas condições decorre lesividade ao

patrimônio público municipal, ante a indisponibilidade dos bens de domínio público ou de uso comum do povo.

Provimento do apelo do Município. Decisão: dado provimento. Unânime. Escolhi de propósito decisão tão

antiga para evidenciar que o tema não escapou do Poder Judiciário já há bastante tempo.

13 – MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 1997,

p. 57.

14 – ALESSI, Renato. Principi di Diritto Amministrativo. Milano: Giuffrè, 1990, p. 82.

56

Rogério Gesta Leal

comportamento do agente público e suas instituições, compreendendo os princípios

da lealdade e da boa-fé.15

A moralidade administrativa está inserida na Constituição Federal como

princípio fundamental a ser obedecido pela Administração Pública (órgãos

e agentes), sendo diversos e variados os desdobramentos por atingir, de modo

nuclear, o aspecto axiológico das ações concretas desenvolvidas pelos agentes

públicos.

A despeito de tamanha signifi cação, não se pode afi rmar que exista, hoje,

nas teorias que se ocupam do Estado Administrador, uma especial e defi nitiva

conceituação para a confi guração jurídica da moralidade administrativa. O que se

tem, como certo, é que ela constitui, isto sim, pressuposto da validade de todo ato

da Administração Pública.

A doutrina especializada atribui a Maurice Hauriou16 a sistematização de

tal conceito, fato ocorrido nas primeiras décadas do século XX. Segundo o referido

doutrinador, não se busca impor, na prática da atividade administrativa, uma

moral comum, mas sim, uma moral jurídica, entendida como o conjunto de regras

de conduta tiradas da disciplina interior da Administração.

Tem-se, portanto, na escola administrativa francesa, a base da construção

da moralidade administrativa moderna, como princípio que se compõe, de um

lado, pela afi rmação de que a legalidade dos atos jurídicos administrativos é

fi scalizada pelo recurso baseado na violação da lei; de outro, de que é preciso aferir

também a conformidade desses atos aos princípios basilares da boa administração,

determinante necessária de qualquer decisão administrativa, atentando-se para os

riscos do chamado desvio de poder, cuja zona de policiamento é a da moralidade

administrativa17.

Assim é que, a partir do princípio da moralidade administrativa, a satisfação

dos requisitos legais do ato não é sufi ciente, impondo-se ir adiante, no intento de

investigar se, realmente, há interesse público nele, ou outro tipo de interesse, desse

divorciado; ou seja, os poderes administrativos concedidos à autoridade pública

não são ilimitados, mas deverão estar sempre em consonância com os princípios

15 – Conforme quer BONNARD, Roger. Précis de Droit Administratif. Paris: LGDJ, 2001, p. 82 e ss.

16 – HAURIOU, Maurice. Precis Élémentaire de Droit Administratif. Paris: Dalloz, 1976. Para o autor,

esta moralidade diz respeito a ações que têm como resultados elementos satisfatórios ao interesse da

comunidade, fi m primordial da Administração Pública.

17 – Nesse sentido ver também BRANDÃO, Antônio José. Moralidade Administrativa. In Revista de

Direito Administrativo, n. 25. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 457-471.

57

Desvio de verba pública em diárias para Vereadores como crime contra a Administração Pública: um estudo de caso

que lhe são impostos pelo ordenamento jurídico, implícitos ou explícitos, todos

aqui considerados horizontalmente.18

Em outras palavras, é indispensável à caracterização da moralidade de

um ato administrativo a análise dos seus motivos e objetos, o que possibilita

afi rmar se houve ou não a efetivação do dever de boa administração inerente ao

Administrador/Interesse Público19.

De se ver que o âmbito de subjetividade que a moral contém implica não se

tratar apenas de saber se é ou não legal determinado ato de gestão pública, mas se

ele está ou não em consonância com os anseios de justiça, objetivos e fi nalidades

da República que informam a organização social dos administrados, previamente

insertos no Texto Constitucional. A fi nalidade do controle da moralidade, assim,

é, fundamentalmente, assegurar que os atos da Administração Pública estejam

sempre de acordo com esses vetores axiológicos administrativos.

Observa-se, dessa forma, que o conceito de moralidade é determinante de

regras de conduta, ou seja, traça linhas de comportamento para o administrador,

fazendo com que este, ao realizar seus atos, observe, além dos elementos constitutivos

próprios de cada um, a efi cácia dos mesmos no plano dos compromissos e

vinculações político-jurídicas já existentes.20

O elemento moral, então, a partir da Constituição Brasileira de 1988,

passa a integrar o ato administrativo por força de preceito da mais alta categoria.

A consequência gerada é de relevância, porque a moralidade passou a ser um

requisito constitucional de sua validade, evidenciando-se como um dos elementos

integrantes da formação e validade do ato administrativo, o que não mais

permite a conduta jurisprudencial a abandonar a sua análise, pelo que, agindo de

conformidade com o princípio constitucional referido, põe um freio na conduta da

Administração e/ou seus agentes que, por vezes, apresenta evolver desordenado,

irregular, impróprio, desajustado com o ordenamento jurídico.

18 – O desvio de fi nalidade, por sua vez, se efetiva quando a prática do ato estiver fundamentada em

motivos ou tiver fi ns diversos dos objetivados pela lei ou pelo interesse público, conforme ensinamento

de DIEZ, Manoel Maria. El acto administrativo. Buenos Aires: Depalma, 1995, p. 273.

19 – Evidencia-se, pois, viciada a moralidade administrativa quando houver a prática de um ato fundado

em motivo inexistente, insufi ciente, incompatível, etc.; do mesmo modo, caracteriza-se a imoralidade

administrativa quando o ato visar ao objeto impossível, desconforme e inefi ciente ao permissivo legal

e ao interesse público. Neste sentido o texto de MAIRAL, Héctor. Control Judicial de la Administración Pública. V. I. Buenos Aires: Depalma, 1990, p. 134.

20 – Como quer FRAGOLA, Umberto. Degli atti amministrativi. Milano: Giuffrè, 1992, p. 187.

58

Rogério Gesta Leal

A jurisprudência nacional já vem a bastante tempo insistindo em assim

compreender esse princípio, entendendo, por exemplo, em sede de Ação Popular,

que basta existir ato administrativo que contraria normas específi cas que regem

a sua prática ou que se desviam dos princípios que norteiam a Administração

Pública, para os fi ns de ensejar sua interposição, afi gurando-se como dispensável

a demonstração de prejuízo material aos cofres públicos no caso concreto, já

que o disposto no inc. LXXIII do art. 5º da Constituição Federal abarca não só

o patrimônio material do Poder Público, como também o patrimônio moral, o

cultural e o histórico21.

Em outra situação curiosa do legislativo brasileiro, a jurisprudência

histórica pátria entendeu que, uma vez sendo a remuneração do Prefeito, do Vice-

-Prefeito e dos Vereadores fi xada pela Câmara Municipal em cada legislatura para

a subsequente, nos termos do que dispõe a Carta Política, em seu art. 29, V, em

ocorrendo a fi xação pelos edis de sua própria remuneração para viger na própria

legislatura, praticam ato inconstitucional lesivo não só ao patrimônio material do

Poder Público, como à moralidade administrativa.22

Em face desses elementos confi gurativos todos da Administração Pública

contemporânea, relevando sua importância à democracia social e institucional

no País, é que se tem criado ao longo do tempo instrumentos de controle e

responsabilização tanto do Poder Público como dos Agentes Políticos que o

gerenciam. Estou falando, exemplifi cativamente, das ferramentas da Ação Popular,

da Ação Civil Pública, da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental,

21 – Conforme decisão RE 170.768 – DJ: 13-08-99. p. 00016, Ement. vol. 01958-03, p. 00445. Julgamento

em 26-03-99, Primeira Turma, Relator: Ministro Ilmar Galvão. Origem: São Paulo.

22 – RE 206.889/MG. DJ: 13-06-97, p. 26718, Ement. vol. 01873-11, p. 02257. Julgamento em 25-03-97,

Segunda Turma, Relator: Ministro Ilmar Galvão. Assim também a seguinte decisão envolvendo o

Tribunal de Contas da União: EMENTA: Tribunal de Contas. Nomeação de seus membros em Estado recém-

-criado. Natureza do ato administrativo. Parâmetros a serem observados. Ação Popular desconstitutiva do ato.

Tribunal de Contas do Estado de Tocantins. Provimento dos cargos de conselheiros. A nomeação dos membros do

Tribunal de Contas do Estado recém-criado não é ato discricionário, mas vinculado a determinados critérios, não só

estabelecidos pelo art. 235, III, das disposições gerais, mas também, naquilo que couber, pelo art. 73, par. 1, da CF.

NOTORIO SABER - Incisos III, art. 235 e III, par. 1, art.73, CF. Necessidade de um mínimo de pertinência entre

as qualidades intelectuais dos nomeados e o ofi cio a desempenhar. Precedente histórico: parecer de Barbalho e a decisão

do Senado. Ação Popular. A não observância dos requisitos que vinculam a nomeação enseja a qualquer do povo

sujeita-la a correção judicial, com a fi nalidade de desconstituir o ato lesivo a moralidade administrativa. Recurso

extraordinário conhecido e provido para julgar procedente a ação. In RE 167.137/TO. DJ: 25-11-94, p. 32312,

Ement. vol. 01768-04, p. 00840. Julgamento em 18-10-94, Ministro Paulo Brossard, Segunda Turma.

59

Desvio de verba pública em diárias para Vereadores como crime contra a Administração Pública: um estudo de caso

a previsão de responsabilidade civil e criminal em face de atos de improbidade

administrativa deste Decreto-Lei n. 201/67, todas formas de densifi cação material

protetiva daqueles princípios debatidos e da Boa Administração em geral.

É este cenário de fundo que se faz muito presente na contextualização dos

chamados crimes dos Prefeitos e Vereadores, lembrando quais os bens jurídicos

mediatos e imediatos que estão em jogo, e ele tem de ser trazido à colação sempre,

dando-se conformidade teleológica às atribuições de sentido – interpretativas – à

aplicação da norma.

Feitas tais considerações, quero agora tratar mais pontualmente do caso

concreto julgado.

III – O CASO CONCRETO

O Ministério Público, na Comarca de Montenegro, em data de 3 de janeiro

de 2011, ofereceu denúncia contra Raul Fernando Feiten e Elói Inácio Stein como

incursos nas sanções do art. 31223, caput, e art. 30424, ambos do Código Penal, na

forma do art. 6925, do mesmo diploma legal; e o denunciado José Luis Oliveira de

Souza, nas sanções do art. 312, caput, e art. 29926, caput, ambos do Código Penal,

também na forma do art. 69, do mesmo diploma legal, pela prática dos seguintes

fatos delituosos:

1º FATO (Peculato):

Entre os dias 05 e 10 de dezembro de 2005, no Município de Maratá/R, os

denunciados RAUL FERNANDO FEITEN e ELÓI INÁCIO STEIN, em

23 – Art. 312 - Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou

particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio. Pena - reclusão, de

dois a doze anos, e multa.

24 – Art. 304 - Fazer uso de qualquer dos papéis falsifi cados ou alterados, a que se referem os arts. 297 a 302. Pena -

a cominada à falsifi cação ou à alteração.

25 – Art. 69 - Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos

ou não, aplicam-se cumulativamente as penas privativas de liberdade em que haja incorrido. No caso de aplicação

cumulativa de penas de reclusão e de detenção, executa-se primeiro aquela.

26 – Art. 299 - Omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou

fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fi m de prejudicar direito, criar obrigação ou

alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante. Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa, se o documento é

público, e reclusão de um a três anos, e multa, se o documento é particular.

60

Rogério Gesta Leal

acordo de vontades e em conjunção de esforços, na condição de Vereadores de

Maratá, desviaram em proveito próprio, a importância de R$ 1.560,24 (mil,

quinhentos e sessenta reais e vinte e quatro centavos) cada um, referente a duas

diárias com pernoite, fora do Estado, que os dois receberam do erário municipal,

em razão do cargo que exerciam (conforme notas de empenho n.º 003157/2005

e 003158/2005 e Recibos de Transferência de Valores entre Contas Banrisul

n.º 201128/031587 e 201328/032427, de fl s.), para que frequentassem, no

Balneário Camboriú/SC, Hotel Geranium, dias 07, 08, 09 e 10 de dezembro de

2005, o curso “A Responsabilidade Política, Cível e Penal dos Administradores

Públicos e seus Agentes”, sem a necessária contrapartida ou justifi cativa, já que

não participaram do seminário, eis que não constam os nomes e nem as assinaturas

dos denunciados na lista de presença do evento.

2º FATO (Peculato):

Nas mesmas circunstâncias de tempo, possivelmente, em Lages/SC, sede do DAP,

o denunciado JOSÉ LUÍS OLIVEIRA DE SOUZA, em conluio com os demais,

na condição de Diretor-responsável pelo Desenvolvimento em Administração

Pública e também pelo evento “A Responsabilidade Política, Cível e Penal dos

Administradores Públicos e seus Agentes” desviou em proveito de RAUL e ELÓI

a importância de R$ 1.560,24, para cada, pagos pelo erário municipal de Maratá,

sem a necessária contrapartida, pois não participaram de qualquer atividade que

determinou o pagamento antecipado das diárias.

3º FATO (FALSIDADE IDEOLÓGICA):

No dia 10 de dezembro de 2005, o denunciado JOSÉ LUÍS, com a fi nalidade de

alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante e, assim facilitar a prestação

de contas de diárias recebidas de forma antecipada pelos vereadores RAUL e

ELÓI, inseriu declaração falsa nos certifi cados de frequência referentes ao evento

“A Responsabilidade Política, Cível e Penal dos Administradores Públicos e seus

Agentes”, ao atestar que os referidos vereadores participaram do curso, quando, na

verdade, sequer compareceram.

4º FATO (Uso de documento falso):

Em data não esclarecida, provavelmente no curso do mês de dezembro de 2005,

na Câmara Municipal dos Vereadores de Maratá, os denunciados RAUL e ELÓI

fi zeram uso de documento falso, ao apresentarem para prestação de contas de

duas diárias com pernoite os certifi cados de frequência que atestavam falsamente

a participação no evento “A Responsabilidade Política, Cível e Penal dos

Administradores Públicos e seus Agentes”, no qual sequer compareceram.

61

Desvio de verba pública em diárias para Vereadores como crime contra a Administração Pública: um estudo de caso

A denúncia foi recebida em 18 de julho de 2011, e o processo teve regular

processamento, com sentença de 1º Grau em 26-04-13, julgando parcialmente

procedente a denúncia para:

a) condenar os réus RAUL FERNANDO FEITEN e ELÓI INÁCIO

STEIN pelo crime de peculato (FATO 1 – art. 312 do Código Penal), imputando-lhes

a pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de reclusão, a ser cumprida inicialmente em

regime aberto, como pena de multa fi xada em 10 (dez) dias-multa, à razão unitária

de 1/30 (um trigésimo) do salário mínimo vigente ao tempo do fato.

b) absolver o réu JOSÉ LUIS OLIVEIRA DE SOUZA da acusação

formulada no 2° fato delituoso; e absolver os réus RAUL FERNANDO FEITEN

e ELÓI INÁCIO STEIN da acusação formulada no 4° fato delituoso, com base no

art. 386, inc. III, do Código de Processo Penal.

Inconformadas, as defesas dos réus condenados apelaram e em suas razões

aduziram, em síntese, que houve ausência de fundamentação na sentença apelada

ao fi xar a pena em 2 anos e 8 meses para o crime de peculato, contrariando o disposto

no art. 93, inc. IX, da Constituição Federal. Sustentou que no crime de peculato o

elemento subjetivo do tipo é o dolo, que não se encontrou no caso em tela.

Fizeram ainda referência a fragilidade probatória constante nos autos,

impondo a absolvição dos acusados. Por fi m, pediram a redução da pena para o

mínimo legal, sob o argumento de que os fatos narrados na denúncia ocorreram

em dezembro de 2005, sendo esta recebida em 18 de julho de 2011, transcorrendo

um lapso temporal de 5 anos e 7 meses, confi gurando a prescrição punitiva, com

base no art. 109, inc. V, do Código Penal.

Nas contrarrazões, o Ministério Público de 1º Grau postulou o desprovimento

do recurso, e assim o fez também o seu representante no 2º Grau.

O deslinde do caso resta fácil a partir dos elementos coligidos na primeira

parte deste trabalho.

Ao analisar os autos do feito é possível verificar que eles dão conta

da imputação do delito de peculato contra Raul Fernando Feiten e Elói

Inácio Stein, em conjunção de esforços, na condição de Vereadores do

Município de Maratá, pelo fato de terem desviado em proveito próprio,

entre os dias 5 a 10 de setembro, a importância de R$1.560,24 cada um,

quantia esta destinada para o pagamento de duas diárias para frequentarem

o curso “A Responsabilidade Política, Cível e Penal dos Administradores

Públicos e seus Agentes”, em Balneário Camboriú/SC, conforme Resolução

de Mesa da Câmara de Vereadores n. 10/2005, notas de empenho

62

Rogério Gesta Leal

n. 003157/2005 e 003158/2005, recibos de transferência para as contas dos acusados,

certifi cados de frequência do curso (fl s. 220 e 230), e listas de presenças do curso.

No âmbito da Promotoria de Justiça, o acusado Elói Inácio Stein disse

que participou do evento realizado em Balneário Camboriú, tendo apresentado

os documentos de comprovação. Informou que não participou integralmente da

programação do evento, assistindo apenas parte das palestras, e que não assinou a lista

de presença, pois não sabia da sua existência. Disse que chegava tarde nas palestras.

O acusado Raul Fernando Feiten disse na Promotoria que participou de

quase todas as palestras. Recordou que assinou um caderno que seria a lista de

presenças. Apresentada a lista, não localizou a sua assinatura. Afi rmou que fi cou

hospedado no mesmo hotel onde foi realizado o evento.

O problema é que o Diretor Jurídico da empresa DAP – Desenvolvimento

em Administração Pública, organizadora do evento, Sr. José Luís Oliveira de

Souza, prestou esclarecimento escrito referindo que:

No controle que me foi passado pelo encarregado das inscrições e certifi cados,

Sr. Edemar, não consta que a Câmara de Vereadores de Maratá/RS, tivesse enviado

algum participante. (...) os nominados vereadores compareceram ao mesmo evento

com o mesmo tema, realizado em Porto Alegre/RS, nos dias 28 a 30/08/2006,

cumprindo carga horária de 75%, ainda que com relutância dos mesmos.

Judicialmente, os acusados negaram os fatos para os quais foram

denunciados. O réu Raul disse que fez o curso, pegou o certifi cado e foi embora.

Não sabe porque está sendo acusado. Afi rmou que não foi apresentada a lista de

presença. Disse que o curso era das 8h até às 13h.

O réu Elói, por sua vez, mencionou que voltaram com certifi cado e recibo

de inscrição, não soube explicar o porquê estava sendo acusado. Disse que o curso

foi realizado em Camboriú, em uma sala comercial. O horário do curso era de

manhã e tarde. Não assinou a lista porque nunca foi apresentada. Não fez compras

e não fez passeio pela cidade.

Veja-se que há nítidas contradições entre os depoimentos dos réus, quanto

ao local que foi realizado o evento, porquanto o acusado Elói sequer soube afi rmar

onde efetivamente ocorreu o evento, se foi em um apartamento ou sala comercial.

Já Raul disse que o evento foi realizado num hotel, cujo nome não recordava.

Além disso, outra evidência do cometimento do delito de peculato está na

versão de Raul quanto à assinatura na fi cha de presenças. Na fase investigatória,

63

Desvio de verba pública em diárias para Vereadores como crime contra a Administração Pública: um estudo de caso

disse que assinou tal documento, porém, quando apresentadas as listas de presenças

fornecidas pela organização do evento, não encontrou sua assinatura. Já na fase

judicial, ratifi cou suas declarações anteriormente prestadas, alterando a versão

quanto à assinatura no referido documento.

Assim, restou amplamente demonstrada a autoria e o dolo dos acusados,

porquanto aproveitaram das facilidades dos cargos públicos que ocupavam para obter

vantagem pessoal, desviando dos cofres públicos o montante de R$ 1.560,24 (mil,

quinhentos e sessenta reais e vinte e quatro centavos) cada um.

Sobre o tema, ensina Cezar Roberto Bitencourt: O crime de peculato, na

precisa descrição do caput do art. 312 – peculato próprio –, consiste no apossamento ou

desvio (destinação diversa), por parte de funcionário público, de coisa móvel (dinheiro, valor

ou qualquer outro bem móvel), pública ou particular, de que tem a posse em razão do cargo,

em proveito próprio ou alheio.27

Em termos de dosimetria da pena, ao analisar as condutas dos réus com

base no art. 59, a julgadora nada acrescentou quanto à culpabilidade, antecedentes,

personalidade dos agentes, os motivos, as consequências e o comportamento da

vítima, considerando desfavorável tão somente as circunstâncias do crime, sob o

fundamento de que os acusados, no intuito de simular a participação no curso, dirigiram-se

até o Balneário Camboriú, praticando turismo às custas ao erário. Por tal razão, fi xou a

pena-base em 2 (dois) anos e 8 (oito) meses, restando defi nitiva neste patamar, em

face da ausência de outras moduladoras.

Tenho que se mostrou adequado o aumento da pena com base nas

circunstâncias do crime, em face das pessoas envolvidas (agentes políticos eleitos),

relatada pela prolatora da sentença, isto porque, além do benefício obtido pelos

réus com o dinheiro público, restaram violadas drasticamente a moralidade e a

ética públicas, protegidas pelo tipo penal de forma indireta. E Nélson Hungria é

lapidar no ponto ao lembrar que: no peculato a posse ou detenção resulta da confi ança

imposta pela lei como indispensável ao cargo público exercido pelo agente... A confi ança, deve

merecê-la o agente, não por sua qualidade genérica de funcionário público, mas porque titular

do cargo que o torna competente, na ocasião, para o recebimento e consequente posse.28

Por todos esses elementos, os recursos dos réus foram julgados improcedentes

pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.

27 – BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte especial: dos crimes contra a

administração pública e dos crimes praticados por prefeitos. Vol. 5. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 45.

28 – HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Vol. IX. Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 340.

64

Rogério Gesta Leal

IV - BIBLIOGRAFIA

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MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São

Paulo: Malheiros, 1997.

A CONTRATAÇÃO ILÍCITA DE SERVIDOR PÚBLICO

(CUNHADA DO PREFEITO) COMO FATO CARACTERIZADOR

DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA: UM ESTUDO DE CASO

Sérgio Luiz Grassi Beck

Apelação Cível n. 70065500431 (N. CNJ: 0235421-38.2015.8.21.7000) –

1ª Câmara Cível – Comarca de Três de Maio

Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO PÚBLICO NÃO

ESPECIFICADO. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. CONTRATAÇÃO

TEMPORÁRIA DA CUNHADA DO PREFEITO NO OITAVO MÊS DE

GRAVIDEZ. CARACTERIZAÇÃO DO ATO ÍMPROBO. AUSÊNCIA DE

NOTIFICAÇÃO PRÉVIA. NULIDADE RELATIVA.

1. Ausente a comprovação de efetivo prejuízo e verifi cada a existência

dos pressupostos de admissibilidade da ação de improbidade administrativa, não

se justifi ca a anulação dos atos processuais em fase recursal, de acordo com o

assegurado pelo princípio constitucional da efetividade do processo. Precedente

do e. STJ.

2. Caracterizada a conduta dolosa e ímproba do Prefeito ao contratar a

cunhada, por prazo indeterminado para o cargo de Auxiliar de Dentista, em seu

último mês de gestação, concedendo-lhe, passados quinze dias, licença maternidade.

3. Mantida a condenação posta na sentença, por estar de acordo com a

razoabilidade.

À UNANIMIDADE, PRELIMINAR AFASTADA. NO MÉRITO, POR

MAIORIA, NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO.

66

Sérgio Luiz Grassi Beck

Partes: Rudi Joao Massuda Cornelius, apelante – Ministerio Publico,

apelado.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos.

Acordam os Desembargadores integrantes da Primeira Câmara Cível do

Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em afastar a preliminar; no mérito,

por maioria, negar provimento ao recurso, vencido o vogal que proveu.

Custas na forma da lei.

Participaram do julgamento, além do signatário, os eminentes Senhores

DES. IRINEU MARIANI (PRESIDENTE E REVISOR) E DES. CARLOS

ROBERTO LOFEGO CANÍBAL.

Porto Alegre, 09 de março de 2016.

Des. Sérgio Luiz Grassi Beck, Relator.

RELATÓRIO

Des. Sérgio Luiz Grassi Beck (Relator) – Trata-se de recurso de apelação

interposto por JUDY JOÃO MASSUDA CORNELIUS em face da sentença

fl . 374-381 que, nos autos da ação civil pública ajuizada pelo MINISTÉRIO

PÚBLICO, julgou parcialmente procedentes os pedidos iniciais.

Em suas razões recursais, o apelante faz breve síntese dos fatos. Em

inconformidade com a sentença, sustenta que a mesma afronta a administração

pública e infringe o art. 11 da Lei n. 8.429. Alega a inexistência de dolo,

porquanto cumpriu a Legislação Trabalhista. Defende injusta a pena aplicada,

visto que o apelante possui baixa renda. Afi rma que a nomeação da cunhada para

cargo público não gerou prejuízo à municipalidade, assim como não benefi ciou

fi nanceiramente o nomeador. Invoca a aplicabilidade do art. 392, §§ 1º, 2º,3º e

4º I, II da CLT e art. 7º, I, da Magna Carta. Ao fi nal, pugna pelo provimento do

recurso (fl s. 385-389).

Oferecidas contrarrazões (fl s. 393-402), subiram os autos para este Tribunal

de Justiça.

Neste grau de jurisdição, o Ministério Público apresenta parecer opinando

pelo conhecimento e desprovimento do recurso de apelação.

Vieram os autos conclusos para julgamento.

É o relatório.

A contratação ilícita de servidor público (cunhada do Prefeito) como fato caracterizador de improbidade administrativa: um estudo de caso

67

VOTOS

Des. Sérgio Luiz Grassi Beck (Relator) – Presentes os pressupostos de

admissibilidade, conheço do recurso.

Eminentes colegas. De plano, mister afastar a questão de nulidade da

sentença por ausência de notifi cação prévia suscitada apenas em memoriais.

Com efeito, determina o art. 17, § 7º, da Lei n. 8.429/92 a necessidade de

notifi cação prévia do réu para manifestação.

Contudo, entendo que a sua ausência somente importará em invalidade

processual quando comprovado o efetivo prejuízo, o que não ocorreu na

hipótese.

Como se vê do contido nos autos, a ampla defesa e o contraditório

foram assegurados ao réu que apresentou contestação na ação de improbidade

administrativa, inclusive o presente recurso e, em momento algum declinou

qualquer fundamento no sentido de que a inicial não deveria ser recebida.

Destarte, estando a presente ação revestida dos devidos pressupostos

de admissibilidade, assim como devidamente caracterizada a tipifi cação, não

se justifi ca a anulação dos atos processuais em fase recursal, de acordo com o

assegurado pelo princípio constitucional da efetividade do processo.

Esse também é o entendimento do e. Superior Tribunal de Justiça, sic:

ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO

REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL.

AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA.

ALEGADA VIOLAÇÃO AO ART. 535, I E II, DO CPC. VÍCIOS

INEXISTENTES. ALEGADA ILEGITIMIDADE ATIVA DO

MINISTÉRIO PÚBLICO. SÚMULA 329/STJ. ILEGITIMIDADE

PASSIVA DO SÓCIO-COTISTA. SÚMULA 7/STJ. ALEGADO

CERCEAMENTO DE DEFESA. SÚMULA 7/STJ. NOTIFICAÇÃO

PARA APRESENTAÇÃO DE DEFESA PRÉVIA (ART. 17, §7º, DA

LEI 8.429/92). NULIDADE RELATIVA. NÃO COMPROVAÇÃO

DO PREJUÍZO. JULGAMENTO EXTRA PETITA. INEXISTÊNCIA.

INDEVIDA DISPENSA DE LICITAÇÃO. REALIZAÇÃO DE

SUBCONTRATAÇÕES, PELAS EMPRESAS CONTRATADAS.

ACÓRDÃO IMPUGNADO QUE, À LUZ DAS PROVAS DOS

AUTOS, CONCLUIU PELA EXISTÊNCIA DE ATO ÍMPROBO.

SÚMULA 7/STJ. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO. I. Não

68

Sérgio Luiz Grassi Beck

há falar, na hipótese, em violação ao art. 535 do CPC, porquanto a

prestação jurisdicional foi dada na medida da pretensão deduzida, de

vez que os votos condutores do acórdão recorrido e do acórdão dos

Embargos Declaratórios apreciaram fundamentadamente, de modo

coerente e completo, as questões necessárias à solução da controvérsia,

dando-lhes, contudo, solução jurídica diversa da pretendida, não havendo

falar em negativa de prestação jurisdicional. II. No que tange à alegada

ilegitimidade ativa do Ministério Público, esta Corte fi rmou entendimento

no sentido de que o Ministério Público possui legitimidade ad causam

para propor ação civil pública, objetivando o ressarcimento de danos

ao Erário, mormente em se tratando de danos decorrentes de atos de

improbidade administrativa - como na hipótese -, atuando não somente

na defesa de interesses patrimoniais - como alegam os agravantes -, mas

na defesa da legalidade, da moralidade administrativa e do patrimônio

público. É o que se extrai da Súmula 329/STJ: “o Ministério Público

tem legitimidade para propor ação civil pública em defesa do patrimônio

público”. III. Ademais, esta Corte já se manifestou no sentido de que,

“conferir à Fazenda Pública, por meio de suas procuradorias judiciais, a

exclusividade na defesa do patrimônio público, é interpretação restritiva

que vai de encontro à ampliação do campo de atuação conferido pela

Constituição ao Ministério Público, bem como leva a uma proteção

defi ciente do bem jurídico tutelado” (STJ, REsp 1.119.377/SP, Rel.

Ministro HUMBERTO MARTINS, PRIMEIRA SEÇÃO, DJe de

04/09/2009). No mesmo sentido: STJ, REsp 1.289.609/DF, Rel.

Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA SEÇÃO, DJe de

02/02/2015; STJ, AgRg no REsp 1.481.536/RJ, Rel. Ministro MAURO

CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, DJe de 19/12/2014.

IV. No que tange à alegada ilegitimidade passiva do sócio-cotista da

empresa Itel Informática Ltda., observa-se que o principal fundamento

do acórdão impugnado, para a sua inclusão no polo passivo da demanda,

e, também, para a sua condenação nas sanções da Lei 8.429/92 - ao

contrário do que sustentam os agravantes -, não foi apenas sua qualidade

de sócio, mas também o fato de ter participado do ato ímprobo. Portanto,

considerando a fundamentação adotada na origem, não há como afastar

a incidência da Súmula 7/STJ, no ponto. Precedentes do STJ. V. Quanto

ao alegado cerceamento de defesa, concluiu o acórdão impugnado que

A contratação ilícita de servidor público (cunhada do Prefeito) como fato caracterizador de improbidade administrativa: um estudo de caso

69

“os documentos juntados eram hábeis e sufi cientes para o deslinde da

questão”, tendo sido “devidamente oportunizada a defesa às partes e

respeitado o regular processamento do feito”. Nesse contexto, acolher

a pretensão recursal - no sentido de que houve prejuízo aos recorrentes,

decorrente do indeferimento de provas testemunhais e periciais - exige

o revolvimento do acervo probatório, providência vedada, na via do

Recurso Especial, a teor da Súmula 7 desta Corte. VI. Segundo a

jurisprudência desta Corte, “eventual descumprimento da fase

preliminar da Lei de Improbidade Administrativa, que estabelece

a notifi cação do acusado para apresentação de defesa prévia, não

confi gura nulidade absoluta, mas nulidade relativa que depende da

oportuna e efetiva comprovação de prejuízos” (STJ, AgRg no REsp

1.499.116/SP, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES,

SEGUNDA TURMA, DJe de 17/09/2015). No caso, não tendo sido

comprovado efetivo prejuízo para a defesa, não há falar em nulidade.

VII. O STJ fi rmou entendimento no sentido de que “não há violação

dos arts. 128 e 460 do CPC e o julgamento extra petita quando o órgão

julgador interpreta de forma ampla o pedido formulado na exordial,

decorrente de interpretação lógico-sistemática da petição inicial” (STJ,

AgRg no REsp 1.366.327/PE, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS,

SEGUNDA TURMA, DJe de 11/05/2015). No mesmo sentido:

STJ, AgRg no REsp 1.324.787/SP, Rel. Ministro OG FERNANDES,

SEGUNDA TURMA, DJe de 09/04/2015. VIII. Não há como analisar

as teses defensivas, relativas aos arts. 182, 186 e 927 do Código Civil e

arts. 10 e 11 da Lei 8.429/92, nas quais se sustentam a legalidade das

subcontratações, a ausência de culpa da empresa recorrente ou de seu

sócio, bem como a ausência de prejuízo ao Erário, já que os serviços

teriam sido prestados, porquanto o Tribunal de origem, com fundamento

no acervo fático-probatório dos autos, concluiu pela ilegalidade das

subcontratações, bem como pela existência de lesão ao patrimônio

público, aptos a ensejarem a condenação dos recorrentes por ato de

improbidade administrativa, situação que impede a sua revisão, pelo

Superior Tribunal de Justiça, em razão do óbice previsto na Súmula 7/STJ.

IX. Agravo Regimental improvido. (AgRg no AREsp 484.423/MS, Rel.

Ministra ASSUSETE MAGALHÃES, SEGUNDA TURMA, julgado em

01/12/2015, DJe 14/12/2015) (grifei)

70

Sérgio Luiz Grassi Beck

Feitas essas considerações, passo ao exame do mérito do recurso.

Versa a presente demanda acerca da prática de ato ímprobo pelo ex-prefeito

de RUDY JOÃO MASSUDA CORNÉLIUS, que contratou de forma emergencial

sua cunhada grávida de oito meses, para exercer o cargo de Auxiliar de Dentista,

concedendo-lhe licença maternidade quinze dias após a sua contratação.

Com efeito, a Lei de Improbidade Administrativa, Lei n. 8.429, de 1992,

divide os atos de improbidade administrativa em três espécies, a saber: os que

importam enriquecimento ilícito (art. 9º); os que causam prejuízo ao erário

(art. 10); e aqueles que atentam contra os princípios da Administração (art. 11).

No caso em comento, o Ministério Público imputa ao réu a prática de ato

ímprobo, tipifi cado no art. 11, caput e inc. I, da Lei n. 8.429/92, face a manifesta

violação dos princípios da administração pública.

Registro que a Lei de Improbidade Administrativa tem como bem jurídico

tutelado a moralidade administrativa, razão por que o dolo do agente público

caracteriza-se pela violação dos deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade

e lealdade.

Nesse sentido a lição de Sérgio Cavalieri Filho, para quem “A ideia de culpa

está visceralmente ligada à responsabilidade, por isso que, de regra, ninguém pode

merecer censura ou juízo de reprovação sem que tenha faltado com o dever de

cautela em seu agir1.”

Ainda, no mesmo sentido, assinala Maria Sylvia Zanella Di Pietro2:

O enquadramento na Lei de Improbidade exige culpa ou dolo por

parte do sujeito ativo. Mesmo quando algum ato ilegal seja praticado, é

preciso verifi car se houve culpa ou dolo, se houve um mínimo de má-fé

que revele realmente a presença de um comportamento desonesto.

A quantidade de leis, decretos, medidas provisórias, regulamentos,

portarias torna praticamente impossível a aplicação do velho princípio

de que todos conhecem a lei. Além disso, algumas normas admitem

diferentes interpretações e são aplicadas por servidores públicos estranhos

à área jurídica. Por isso mesmo, a aplicação da Lei de Improbidade exige

1 – CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 6. ed. São Paulo: Malheiros,

2005. P. 39.

2 – DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2005.

pp. 727-8.

A contratação ilícita de servidor público (cunhada do Prefeito) como fato caracterizador de improbidade administrativa: um estudo de caso

71

bom-senso, pesquisa da intenção do agente, sob pena de encarregar-

-se inutilmente o Judiciário com questões irrelevantes, que podem ser

adequadamente resolvidas na própria esfera administrativa. A própria

severidade das sanções previstas na Constituição está a demonstrar que

o objetivo foi o de punir infrações que tenham um mínimo de gravidade,

por apresentarem consequências danosas para o patrimônio público (em

sentido amplo), ou propiciarem benefícios indevidos para o agente ou

para terceiros. A aplicação das medidas previstas na lei exige observância

do princípio da razoabilidade, sob o aspecto de proporcionalidade entre

meios e fi ns.

Assim, não há como admitir a imputação de ato de improbidade

administrativa na ausência de elemento subjetivo. Nesse sentido apontam a

doutrina e a jurisprudência, especialmente a do e. Superior Tribunal de Justiça:

ADMINISTRATIVO. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA.

SUPOSTA NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL.

INOCORRÊNCIA. INICIAL FUNDADA NA MERA ILEGALIDADE

DO ATO IMPUGNADO. NECESSIDADE DE DEMONSTRAÇÃO

DO ELEMENTO SUBJETIVO DA CONDUTA. JURISPRUDÊNCIA

PACIFICADA DO STJ. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA

PROVIMENTO. (AgRg no Ag 1339336/MG, Rel. Ministro TEORI

ALBINO ZAVASCKI, PRIMEIRA TURMA, julgado em 03.03.2011,

DJe 16.03.2011)

AGRAVOS REGIMENTAIS EM RECURSO ESPECIAL. DIREITO

ADMINISTRATIVO. IMPROBIDADE. ELEMENTO SUBJETIVO

NÃO DEVIDAMENTE DEMONSTRADO. INEXISTÊNCIA

DE DOLO APTO A CARACTERIZAR A IMPROBIDADE

ADMINISTRATIVA. 1. O juízo acerca da ilegalidade do ato tido

como ímprobo, sem a devida demonstração do elemento subjetivo dos

agentes públicos, não é sufi ciente para a condenação por improbidade

administrativa (precedentes idênticos). 2. ‘É razoável presumir vício

de conduta do agente público que pratica um ato contrário ao que foi

recomendado pelos órgãos técnicos, por pareceres jurídicos ou pelo

Tribunal de Contas. Mas não é razoável que se reconheça ou presuma

72

Sérgio Luiz Grassi Beck

esse vício justamente na conduta oposta: de ter agido segundo aquelas

manifestações, ou de não ter promovido a revisão de atos praticados

como nelas recomendado, ainda mais se não há dúvida quanto à lisura

dos pareceres ou à idoneidade de quem os prolatou. Nesses casos,

não tendo havido conduta movida por imprudência, imperícia ou

negligência, não há culpa e muito menos improbidade. A ilegitimidade

do ato, se houver, estará sujeita a sanção de outra natureza,

estranha ao âmbito da ação de improbidade.’ (REsp nº 827.445/SP,

Relator Ministro Luiz Fux, Relator p/ acórdão Ministro Teori Albino

Zavascki, Primeira Turma, in DJe 08.03.2010). 3. ‘A jurisprudência

desta Corte já se manifestou no sentido de que se faz necessária a

comprovação dos elementos subjetivos para que se repute uma

conduta como ímproba (dolo, nos casos dos artigos 11 e 9º e, ao

menos, culpa, nos casos do artigo 10), afastando-se a possibilidade de

punição com base tão somente na atuação do mau administrador ou

em supostas contrariedades aos ditames legais referentes à licitação,

visto que nosso ordenamento jurídico não admite a responsabilização

objetiva dos agentes públicos.’ (REsp nº 997.564/SP, Relator Ministro

Benedito Gonçalves, Primeira Turma, in DJe 25.03.2010). 4. Agravos

regimentais providos. (AgRg no REsp 1065588/SP, Rel. Ministro

HAMILTON CARVALHIDO, PRIMEIRA TURMA, julgado em

08.02.2011, DJe 21.02.2011)

A corroborar, a Ministra Denise Arruda, relatora do Resp n. 805.080/SP,

Primeira Turma, julgado em 23/06/2009, DJe 06/08/2009, assim referiu:

[...] a confi guração de qualquer ato de improbidade administrativa exige

a presença do elemento subjetivo da conduta do agente público, pois não

é admitida a responsabilidade objetiva em face do atual sistema jurídico

brasileiro, principalmente considerando a gravidade das sanções contidas

na Lei de Improbidade Administrativa. Portanto, é indispensável a

presença de conduta dolosa ou culposa do agente público ao praticar

o ato de improbidade administrativa (...) Por outro lado, é importante

ressaltar que a forma culposa somente é admitida no ato de improbidade

administrativa relacionado à lesão ao erário (art. 10 da LIA), não sendo

aplicável aos demais tipos (arts. 9º e 11 da LIA).

A contratação ilícita de servidor público (cunhada do Prefeito) como fato caracterizador de improbidade administrativa: um estudo de caso

73

Com efeito, para caracterização de ato ímprobo é imprescindível a presença

do elemento subjetivo do agente público – conduta dolosa ou culposa, não sendo

sufi ciente uma conduta irregular para justifi car a aplicação das graves sanções

previstas pela Lei nº 8.429/92.

Assim, analisando o conjunto probatório dos autos, tenho que tanto a prova

documental quanto a testemunhal foram capazes de dar certeza da intenção do

Prefeito de benefi ciar sua cunhada através da sua contratação temporária, por

prazo indeterminado para o cargo de Auxiliar de Dentista, em seu último mês

de gestação, concedendo-lhe passados quinze dias licença maternidade pelo prazo

legal de 120 dias.

Outrossim, como bem apanhado no parecer ministerial “a contratada vinha

ocupando cargos em comissão durante todo o mandato do demandado, os quais naturalmente

se extinguiram em 31.12.2004, sendo a contratação temporária, objeto da presente, uma

possibilidade de manutenção do vínculo laboral com o Município durante a próxima

administração, vez que estaria gozando de licença-maternidade”.

Destarte, tenho que a nomeação da cunhada no oitavo mês de gestação à

cargo público temporário, no apagar das luzes do seu mandato como Prefeito, não

só benefi ciou pessoa de suas relações pessoais, como atentou contra os princípios

que regem a administração pública, mais especifi camente a moralidade, a legalidade

e a impessoalidade.

Oportuno lembrar que na administração posterior, o Prefeito, Sr. João

Edécio Graeff, entendeu pela nulidade da contratação, rescindindo o contrato com

a servidora.

Pelas razões acima, entendo proporcional o valor fi xado ao apelante, multa

civil de 03 vezes o valor do salário bruto do Prefeito Municipal de Independência

à época do fato, uma vez que embora alegue viver de recursos de uma pequena

serraria, não demonstra nos autos a sua renda através de pro-labore, ou orçamento

doméstico, por exemplo.

Logo, entendo que não cabe a redução da multa civil fi xada, estando

de acordo com o disposto no inc. III do art. 12 da Lei de Improbidade

Administrativa.

Por sua vez, a suspensão dos direitos políticos por 03 anos, decorre da

deslealdade que o apelante teve para com a Administração Pública, restando

também, a meu ver, proporcional o prazo de inelegibilidade fi xado pelo juízo a quo.

Assim, mantenho o dispositivo sentencial, por estar consoante com o que

estabelece o inc. III do art. 12 da Lei de Improbidade Administrativa.

74

Sérgio Luiz Grassi Beck

Desta feita, diante das circunstâncias apresentadas nos autos, entendo que a

manutenção da sentença do juízo a quo é a medida que se impõe.

Por fi m, dou por prequestionados os dispositivos legais invocados pelas

partes, com a fi nalidade de evitar eventual oposição de embargos de declaração

tão somente com esse propósito, salientando que o juiz não está obrigado a se

manifestar acerca de todos os artigos de lei articulados na demanda, bastando que

a decisão proferida esteja devida e coerentemente fundamentada.

Ante o exposto, rejeito a preliminar e nego provimento ao recurso.

É o voto.

Des. Irineu Mariani (Presidente e Revisor) – Sem embargo da qualidade

do trabalho desenvolvido no processo pelos ilustres advogados, inclusive que

elaboraram o memorial, estou acompanhando o eminente relator.

1. Preliminar de nulidade do processo. É o que o réu sustenta, considerando

o descumprimento do art. 17, § 7º, da Lei n. 8.429/92, conforme demonstra o

eminente relator, não há demonstração de prejuízo à defesa do réu, e nesse sentido

orientação jurisprudencial.

Ademais, o prejuízo que autoriza a anulação é a de natureza processual,

não, eventualmente, o acontecido em relação à imagem social do réu.

Ainda, o retrocesso não traz ao réu vantagem alguma, nem mesmo quanto

à prescrição, uma vez que a notifi cação para fi ns de defesa-prévia é interruptiva.

Nesse sentido, inclusive quanto à ausência de nulidade, já deliberou esta

Câmara na Ap 70 005 559 778, da qual fui relator, em cuja ementa, no quanto

interessa, consta: “1. Se a inicial da ação civil pública por improbidade administrativa

não estava ajustada aos §§ 7º, 8º e 9º do art. 17 da Lei 8.429/92, no sentido de requerer a

notifi cação dos réus para fi ns de defesa-prévia, impunha-se ao juiz conceder a oportunidade

prevista no art. 284 do CPC. Ainda, a notifi cação para a fase preliminar, com posterior

citação para fi ns de contestação em caso de a inicial ser recebida, em primeiro lugar não exclui

o preceito do art. 219, § 1º, do CPC, pelo qual a interrupção da prescrição retroage à data do

ajuizamento; em segundo, desimporta que tipo de ato judicial dá ciência ao réu, se citação

ou notifi cação, até porque a citação não é a único ato interruptivo do fl uxo prescricional.

Há vários outros, conforme o art. 172 do CC/1916, vigente à época, dentre eles qualquer

ato judicial que constitua em mora o devedor (inc. IV), que no CC/2002 está no inc. V do

art. 202. Entenda-se devedor como parte processual, e não apenas como aquele obrigado a

alguma dívida pecuniária já constituída. Nas circunstâncias, é imperativo que o ato judicial

que determina a notifi cação seja hábil para descontinuar prescrição, com retroatividade

à data do ajuizamento. É a única maneira de o sistema legal não armar uma cilada ao

A contratação ilícita de servidor público (cunhada do Prefeito) como fato caracterizador de improbidade administrativa: um estudo de caso

75

autor, por um lado instituindo uma fase preliminar que pode demorar diversos meses, e, por

outro, incluindo o tempo consumido para a sua solução no cômputo do prazo prescricional,

na prática reduzindo substancialmente o período de cinco anos previsto no art. 23, I, da

Lei 8.429/92. Por fi m, a eventual supressão da fase preliminar, tal como acontece na área

criminal nos processos contra funcionários públicos, gera nulidade apenas relativa, já que a

Lei não prevê consequência mais severa, não podendo o juiz, por conseguinte, pronunciá-la

de ofício, ainda mais, a fi m de acolher a prescrição, desconsiderar o próprio ajuizamento,

violando o art. 219, § 1º, do CPC.”

2. Mérito (questão de fundo). A verdade é que o réu contratou ou

recontratou a cunhada quando ela estava no 8º mês de gestação – portanto,

situação já visível –, e decorridos 15 dias, conceder-lhe auxílio-maternidade.

Se havia, subjacentemente, alguma outra motivação, deveria ter instaurado

procedimento administrativo.

Assim, por mais que se esforce o réu no sentido de buscar justifi cativas, não

há dúvida quanto às intenções e objetivos ímprobos do ato.

3. Valor da multa. Igualmente estou de acordo com o relator, uma vez

que o art. 12, III, da Lei n. 8.429/92, prevê multa de até cem vezes o valor da

remuneração, e no caso foi fi xada em apenas três vezes.

4. Suspensão dos direitos políticos. Sempre votei no sentido da suspensão

dos direitos políticos quando a improbidade, como no caso, é cometida no exercício

de mandato popular. Sem dúvida, trata-se de medida necessária e pertinente, de

sorte que não viola o princípio da sufi ciência, ainda mais quando estabelecida pelo

prazo mínimo.

4. Dispositivo. Com essas considerações, e mais uma vez rogando vênia os

ilustres patronos, também desprovejo.

Des. Carlos Roberto Lofego Caníbal – Acompanho o ilustre Relator

quanto à preliminar de nulidade.

Preliminar de nulidade por ausência de notifi cação, nos termos do art. 17, §7º,

da Lei nº 8.429/92. O § 7º do art. 17 da Lei de Improbidade Administrativa, com

a redação que lhe deu a Medida Provisória nº 2.225-45/2001, prevê, de fato, que

estando a inicial em devida forma, o juiz mandará autuá-la e ordenará a notifi cação do

requerido, para oferecer manifestação por escrito, que poderá ser instruída com documentos

e justifi cações, dentro do prazo de quinze dias. Apresentada a defesa escrita, o juiz, em

decisão fundamentada, rejeitará a ação, se convencido da inexistência do ato de improbidade,

da improcedência da ação ou da inadequação da via eleita (§8º) ou receberá a inicial da

ação de improbidade, citando o réu para contestar (§9º).

76

Sérgio Luiz Grassi Beck

Este, pois, eminentes Colegas, o rito diferenciado da ação de improbidade

administrativa, que assim o é por imposição de lei.

No caso em apreço, o magistrado abreviou o rito previsto em lei e, sem

prévia notifi cação do réu para fi ns de apresentar defesa escrita, recebeu a inicial da

ação de improbidade, determinando sua citação.

No entanto, ao que se depreende dos autos, o demandado somente veio

insurgir-se quanto à ausência de notifi cação para defesa escrita nos memoriais

apresentados a esta Corte na antevéspera desta sessão de Julgamento. Denota-

-se que o réu contestou a lide, não apresentou memoriais, recorreu da sentença

de procedência, e absolutamente nada referiu acerca do abreviamento do rito

processual levado a efeito pelo magistrado a quo.

Diante disto, rogando a máxima vênia ao ilustre advogado que apresenta

os memoriais e alega a nulidade por descumprimento da regra disposta no § 7º

do art. 17 da Lei n. 8.429/92, o qual, ao que se denota, acabou assumindo o

processo tão apenas agora, pois a parte ré era patrocinada por outra causídico, o

qual, inclusive, recorreu da sentença de procedência, reitero, sem alegar a nulidade,

estou rejeitando a preliminar, em razão da preclusão.

É que doutrina e jurisprudência são uníssonas, sobretudo no STJ, no sentido

de que se trata de uma nulidade relativa, e não absoluta, de modo que deveria ter

sido arguida na primeira oportunidade em que veio o réu aos autos, ou seja, na

contestação, cabendo-lhe, ainda, demonstrar efetivo prejuízo, o que em nenhum

momento fora levado a efeito, como já se disse, mas tão apenas na antevéspera

desta sessão de julgamento, em memoriais.

Nessa linha, cito alguns dos precedentes a que me referi, desta Corte, e do

Superior Tribunal de Justiça:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO PÚBLICO. IMPROBIDADE

ADMINISTRATIVA. AUSÊNCIA DE NOTIFICAÇÃO PARA

MANIFESTAÇÃO PRÉVIA. NULIDADE. INOCORRÊNCIA. NÃO

DEMONSTRAÇÃO DE PREJUÍZO. Segundo estabelece o art. 17,

§§ 7º, 8º e 9º, da Lei de Improbidade Administrativa, o Julgador deve

oportunizar a manifestação prévia dos demandados, sendo que somente

após análise desta é que poderá receber a inicial e determinar a citação.

Cuida-se de permitir aos réus que declinem razões para que sequer se dê

início ao processo. Na hipótese, evidenciado que o Município e a Câmara

de Vereadores foram notifi cados para apresentar manifestação prévia,

A contratação ilícita de servidor público (cunhada do Prefeito) como fato caracterizador de improbidade administrativa: um estudo de caso

77

ao passo que os agravantes tiveram o direito tolhido, o que ensejaria

a desconstituição da decisão que recebeu a inicial para que lhes fosse

oportunizada a referida manifestação prévia. No entanto, não tendo sido

demonstrado pelos agravantes a ocorrência de prejuízo (é dizer, não tendo

declinado qualquer fundamento para que a inicial não fosse recebida), a

decisão deve ser mantida. Trata-se de aplicação da regra pas de nullité sans

grief, de modo que somente se cogita de invalidade processual quando

demonstrado prejuízo. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça e

do Supremo Tribunal Federal. Gratuidade judiciária para fi ns recursais

indeferida. NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO. UNÂNIME.

(Agravo de Instrumento Nº 70060678422, Segunda Câmara Cível,

Tribunal de Justiça do RS, Relator: Laura Louzada Jaccottet, Julgado em

25/03/2015)

AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA.

FATOS ANTERIORES E POSTERIOR À LEI 8.429/92. 1. Questões

processuais gerais. 1.1 ¿ Legitimidade do Ministério Público. O Ministério

Público tem legitimidade para ajuizar ação civil pública tendo por objeto

qualquer das modalidades de improbidade administrativa (Lei 8.429/92,

art. 17). Ainda, diz a Súm. 329 do STJ: ¿O Ministério Público tem

legitimidade para propor ação civil pública em defesa do patrimônio

público.¿ 1.2 ¿ Nulidade do processo. Notifi cação para defesa-prévia.

Se, quando do advento do § 7º do art. 17 da Lei 8.429/92, acrescido

pela MP 2.225, de 4-9-01, já havia decorrido o momento processual para

sua aplicação imediata, não há falar em nulidade do processo. Ademais,

assim como no processo-crime, trata-se de nulidade relativa. 2. Fatos

anteriores à Lei 8.429/92. 2.1 ¿ Responsabilidade e penas civis. Não se

aplica a Lei 8.429/92 a fatos anteriores, face aos princípios do tempus

regit actum e da irretroatividade das leis repressivas, salvo para benefi ciar

o acusado. Exegese do art. 5º, XL, da CF. Todavia, aplica-se a legislação

anterior da responsabilidade civil comum. 2.2 ¿ Prescrição. No que tange

ao ressarcimento de prejuízos, já previsto na legislação anterior, mas com

prescrição vintenária, aplica-se a prescrição qüinqüenária do art. 23, I,

da Lei 8.429/92, salvo se o prazo residual pela legislação anterior não se

exaurir antes. Adota-se, aí, a solução que mais favorecer aquele a favor

de quem fl uir a prescrição. Signifi ca isso dizer que, iniciado o prazo sob a

78

Sérgio Luiz Grassi Beck

égide de lei anterior, (a) aplica-se o prazo da lei velha se o tempo que faltava

para se exaurir terminar antes do prazo da lei nova, contado da sua entrada

em vigor; e (b) aplica-se o prazo da lei nova, contado da sua entrada em

vigor, se o tempo que faltava para se exaurir pela lei velha terminar depois.

2.3 ¿ Início do prazo prescricional. O prazo prescricional que teve início

normal sob a égide da lei anterior, ainda que passe a reger-se, quanto à

duração, pela lei posterior, não se interrompe por causa só prevista nesta.

Não incide, em tais circunstâncias, a postergação prevista no art. 23, I, da Lei

8.429/92. 3. Fato posterior à Lei 8.429/92. 3.1 ¿ Prescrição intercorrente.

Só resta caracterizada quando, por mais de cinco anos, o processo fi ca

paralisado por inércia da parte interessada. Ainda, o inc. LXXVIII

do art. 5º da CF, acrescido pela EC 45/04, não vai além de um ideal a ser

atingido, pois não defi ne o que signifi ca, em termos concretos, a expressão

¿razoável duração do processo¿, e, se atentarmos para o sentido da

expressão ¿meios que garantam a celeridade de sua tramitação¿, conclui-se

que são os disponíveis na legislação processual. 3.2 ¿ Questões processuais

específi cas. 3.2 1 ¿ Suspensão do processo por motivo da reclamação

nº 2.138-6 no STF. Além de não servir como precedente de caráter geral,

pois objetiva resolver questão específi ca, não c suspensão prevista no

art. 265, IV, a, do CPC, ocorre por conveniência, e não por condição de

validade do processo, haja vista que dura no máximo um ano (§ 5º), quer

dizer, o suspenso não se transforma em processo-refém. 3.2.2 ¿ Aplicação da

Lei 8.942/92. O agente público, referido no art. 1º da Lei 8.942/92, é gênero

do qual o agente político é espécie, haja vista que menciona os de qualquer

dos Poderes, abrangendo, pois, os próprios integrantes. Não por acaso o

art. 12 estabelece a perda da função pública, sem fazer qualquer distinção,

abrangendo, portanto, o mandato eletivo, e perda dos direitos políticos.

3.3 ¿ Improbidade administrativa. Fazer o Município pagar uma empresa

pela construção de obra pública (construção de rede elétrica), na realidade

já construída e paga pela concessionária de energia a outra empresa,

caracteriza improbidade administrativa na forma de prejuízo ao erário (Lei

8.429/92, art. 10). Descabimento da tese de que, para compensar, foram

realizadas outras obras. 4. Dispositivo. Preliminares gerais e específi cas

rejeitadas e, no mérito, providas as 2ª e 4ª apelações, e em parte as 1ª, 3ª e

5ª. (Apelação Cível Nº 70024302044, Primeira Câmara Cível, Tribunal de

Justiça do RS, Relator: Irineu Mariani, Julgado em 08/10/2008)

A contratação ilícita de servidor público (cunhada do Prefeito) como fato caracterizador de improbidade administrativa: um estudo de caso

79

DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO

ESPECIAL. AÇÃO CIVIL DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA.

NOTIFICAÇÃO PARA APRESENTAÇÃO DE DEFESA PRÉVIA

(ART. 17, § 7º, DA LEI 8.429/92). DESCUMPRIMENTO DA FASE

PRELIMINAR. NULIDADE RELATIVA. PRECEDENTES DO STJ.

AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO.

1. É pacífi co o entendimento desta Corte Superior no sentido de que

o eventual descumprimento da fase preliminar da Lei de Improbidade

Administrativa, que estabelece a notifi cação do acusado para apresentação

de defesa prévia, não confi gura nulidade absoluta, mas nulidade relativa

que depende da oportuna e efetiva comprovação de prejuízos.

2. Nesse sentido, os seguintes precedentes desta Corte Superior: EREsp

1008632/RS, 1ª Seção, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, DJe de

9.3.2015 ; AgRg no REsp 1.194.009/SP, 1ª Turma, Rel. Min. Arnaldo

Esteves Lima, DJe de 30.5.2012; AgRg no AREsp 91.516/DF, 1ª Turma,

Rel. Min. Benedito Gonçalves, DJe de 17.4.2012; REsp 1.233.629/SP,

2ª Turma, Rel. Min. Herman Benjamin, DJe de 14.9.2011.

3. Agravo regimental não provido. (AgRg no REsp 1499116 / SP

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL

2014/0307104-2, Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma,

Julgado em 03/09/2015, publicado em 17/09/2015

IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. AGRAVO REGIMENTAL.

FALTA DE NOTIFICAÇÃO PRÉVIA. RECEBIMENTO DA

PETIÇÃO INICIAL. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO. POSSIBILIDADE.

INDISPONIBILIDADE E SEQUESTRO DE BENS. AGRAVO NÃO

PROVIDO.

1. A jurisprudência do STJ está fi rmada no sentido de que a ausência

de notifi cação prévia somente acarreta nulidade processual se houver

comprovação de efetivo prejuízo, de acordo com a parêmia pas de nullité

sans grief.

2. O acórdão recorrido está em sintonia com o atual entendimento do

STJ, razão pela qual não merece prosperar a irresignação. Incide, in casu,

o princípio estabelecido na Súmula 83/STJ.

80

Sérgio Luiz Grassi Beck

3. Agravo Regimental não provido. (AgRg no REsp 1336055 / GO

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL2012/

0155931-4 , relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado

em 10/06/2014, publicado em 14/08/2014)

Não destoa disto a doutrina de Waldo Fazzio Junior:3

“Em caso de inobservância, pelo juiz, da providência de notifi cação, haverá

nulidade relativa que deverá ser alegada pela parte, na primeira oportunidade em

que falar nos autos, sob pena de preclusão (art. 245 do CPC)”

Tratando-se, portanto, a ausência de notifi cação prévia ao recebimento da

inicial, em descumprimento ao disposto no art. 17, § 7º, da Lei n. 8.429/92, uma

nulidade relativa, e não tendo o réu a arguido e demonstrado efetivo prejuízo na

primeira oportunidade em que falou nos autos, vindo a fazê-lo tão apenas em

memoriais apresentados a esta Corte, poucos dias antes da sessão de julgamento,

estou rejeitando a preliminar, respeitada vênia ao ilustre procurador.

Mérito. Quanto ao mérito, com a devida vênia ao douto Relator, estou

reformando a senteça para julgar improcedentes os pedidos.

É que ao que se depreende dos autos, a servidora Janice, embora cunhada

(irmã de sua companheira) do ex-Prefeito, já vinha exercendo cargo em comissão

junto à Prefeitura quando da gravidez, de modo que, ainda que houvesse violação

à Sumula Vinculante n. 13, o fato é que, em razão do disposto no art. 7º, XVIII, da

Constituição Federal, cumulado com art. 39, § 3º, também da Constituição, não

poderia ser dispensada.

Eis a norma constitucional:

Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem

à melhoria de sua condição social:

(omissis)

XVIII - licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração

de cento e vinte dias;

3 – IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA, 2ª EDIÇÃO, SÃO PAULO: EDITORA ATLAS, 2014,

p. 453.

A contratação ilícita de servidor público (cunhada do Prefeito) como fato caracterizador de improbidade administrativa: um estudo de caso

81

Art. 39. (omissis)

§ 3º Aplica-se aos servidores ocupantes de cargo público o disposto no art. 7º, IV,

VII, VIII, IX, XII, XIII, XV, XVI, XVII, XVIII, XIX, XX, XXII e XXX,

podendo a lei estabelecer requisitos diferenciados de admissão quando a natureza

do cargo o exigir. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

Denota-se dos autos que a Sra. Janice vinha ocupando diversos cargos junto

ao Município desde o ano de 2001, ininterruptamente, tendo engravidado em

2014, quando então fora contratada emergencialmente pelo réu.

Aliás, importa destacar que a contatação fora embasada em lei municipal

que a autorizou – Lei n. 1573/2004.

Portanto, ainda que possa ter havido violação à Súmula Vinculante n. 13,

em razão da contratação da Sra. Janice durante sua gestão, o fato é que a sua

exoneração, quando do término do mandato do Prefeito, violaria frontalmente o

disposto no art. 7º, XVIII combinado com art. 39, § 3º, da Constituição Federal,

negando à referida senhora seu direito constitucional à licença maternidade –

direito este que se estende aos ocupantes de cargos em comissão.

Nesse sentido:

AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO.

CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. CARGO EM

COMISSÃO. SERVIDORA GESTANTE. EXONERAÇÃO.

DIREITO À INDENIZAÇÃO. 1. As servidoras públicas e empregadas

gestantes, inclusive as contratadas a título precário, independentemente

do regime jurídico de trabalho, têm direito à licença-maternidade de

cento e vinte dias e à estabilidade provisória desde a confi rmação da

gravidez até cinco meses após o parto. Precedentes: RE n. 579.989-

AgR, Primeira Turma, Relator o Ministro Ricardo Lewandowski, Dje

de 29.03.2011, RE n. 600.057-AgR, Segunda Turma, Relator o Ministro

Eros Grau, Dje de 23.10.2009 e RMS n. 24.263, Segunda Turma, Relator

o Ministro Carlos Velloso, DJ de 9.5.03. 2. Agravo regimental a que se

nega provimento. (STF. 1ª Turma. AI-AgR 804574. Relator Ministro

Luiz Fux. Julgado em 30/08/11).

A meu sentir, portanto, irrazoável entender que se trate de ato ímprobo

quando, ao contratar emergencialmente a Sra Janice, de modo a mantê-la vinculada

82

Sérgio Luiz Grassi Beck

ao Município, o demandado cumpriu com norma constitucional que garante

direito a toda e qualquer mulher, ainda que ocupante de cargo em comissão, à

licença maternidade.

Com tais considerações, portanto, e insistindo, ainda, na existência de

lei autorizadora à contratação, estou votando por prover o recurso para julgar

improcedentes os pedidos.

ISSO POSTO, rejeito a preliminar e, no mérito, dou provimento ao apelo,

nos termos supra.

É o voto.

Des. Irineu Mariani – Presidente - Apelação Cível n. 70065500431, Comarca

de Três de Maio: “À UNANIMIDADE, AFASTARAM A PRELIMINAR; NO

MÉRITO, POR MAIORIA, NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO,

VENCIDO O VOGAL QUE PROVEU.”

Julgador(a) de 1º Grau: EDUARDO GIOVELLI

BREVES REFLEXÕES ACERCA DA “PERÍCIA DIVERSA”

A PARTIR DE UM ESTUDO DE CASO: o que é, qual sua

possibilidade e limites

João Batista Marques Tovo1

INTRODUÇÃO

Em recente caso levado à mesa de julgamento, do qual participava como

vogal, deparei-me com essa denominação dada a uma avaliação pericial realizada

quanto a óbito decorrente de suposto erro médico. Não houvera exame necropsial,

e era imputado agir omissivo ao profi ssional atendente, absolvido no 1º Grau.

Debatia-se a possibilidade de ele resultar condenado pela Câmara. Percebendo a

gravidade da questão, decidi buscar melhor compreensão sobre o tema e acabei

por tomar vista dos autos. O resultante da refl exão, no que tem de genérico2, devido

à relevância que o tema me parece ter, vai aqui oferecido à superior refl exão dos

colegas. Não tenho outro intuito, senão o de contribuir para a análise crítica de

quem se interesse por ele. Ela não dispensa alguma revisão doutrinária de conceitos,

de cuja maçante leitura peço desde logo escusas ao colega leitor que me agraciar com sua

atenção, se dela me fi zer merecedor. Em um primeiro momento, tecerei considerações

acerca da admissibilidade e peculiaridades desse meio de prova, depois, sobre a

1 – Desembargador da Terceira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.

2 – Por pudor e em respeito às pessoas cujos nomes estão envolvidos no processo, preferi não dar a

público minha fundamentação sobre as questões fáticas nem o resultado do decisum. Para quem sabe

pesquisar, será fácil encontrar o acórdão por inteiro, se até lá for publicado.

84

João Batista Marques Tovo

realidade da prática médica atual e suas difi culdades e como contextualizar um

suposto erro médico, para, ao fi nal, indicar os limites da avaliação pericial e a

inevitabilidade de uma avaliação judicial independente, cuidadosa e concreta sobre

a responsabilidade penal do imputado.

1 A PERÍCIA DIVERSA E AS OUTRAS PERÍCIAS

Então, o que é uma “perícia diversa”?

Bem, não é um exame pericial em sentido estrito, ainda que deva ser vista

sob essa ótica. Mas, seguramente, é admissível como meio de prova, tanto por

aplicação do princípio da liberdade dos meios de prova quanto pela referência

feita a outras perícias no código de processo. Aliás, recebe esse nome justo para

diferenciar do exame de corpo de delito, em cujo capítulo são referidas. Em suas

fi nalidades, conteúdo e limites é que reside alguma difi culdade, como se verá, mas

nada que a torne ilegítima. Ela ser incomum é outro problema, tanto para o perito que

se disponha – o que é raro – a realizá-la, por falta de disciplina específi ca, quanto para o

juiz a que se dirige, devido à confusão conceitual com o exame pericial propriamente

dito, apesar do cuidado em sua nominação, e do que pode vir a derivar dessa mistura.

Veja-se a diferença.

O exame pericial, como o primeiro elemento lexical da expressão está a

indicar, pressupõe contato sensível (direto) do experto com o objeto examinando,

o que garante precisa determinação dos fatos observados, os quais serão depois

entretecidos com o conhecimento técnico-científi co específi co na costura lógica de

um resultado conclusivo, quando possível, sobre a existência e certifi cação de fatos

relevantes para a justa valoração de uma causa. O contato direto, inspecional, é

conforme o princípio da imediação dos meios de prova, que dota de segurança e

confi abilidade as deduzidas assertivas periciais, a cognição judicial deles já sendo

mediada pelo raciocínio lógico do perito. De modo que o exame pericial, em regra,

se compõe de uma inspeção pericial seguida de uma avaliação pericial.

A inspeção pericial visa a preservar e comunicar ao juiz do processo, ainda em

perspectiva ou já em andamento, o conhecimento (cognição pericial) sobre dados

da realidade, transitórios ou não, úteis à formação de juízos fundados no exercício

da jurisdição. A fi nalidade última, em regra, é documentar os fatos observados que

recebam destaque. Quando transitórios, soma-se a fi nalidade tornar perene esse

conhecimento haurido. O perito funciona como longa manus do juiz natural, em

caráter substitutivo. Antiga lição de doutrina nos diz que ele cumpre papel similar

85

Breves reflexões acerca da “perícia diversa” a partir de um estudo de caso: o que é, qual sua possibilidade e limites

ao da testemunha, diferindo em que esta é chamada a depor e ele a testemunhar.3

Fácil perceber, há também aqui uma mediação da cognição judicial, que se torna

indireta, informada pela cognição pericial.

A mediação sempre é um problema.4

Para assegurar a precisão do visum et repertum, tão indispensável às questões

fáticas que sobejam na seara criminal, formaram-se corpos técnicos, integrados por

profi ssionais previamente selecionados, preparados e doutrinados, que atuam com

independência em relação aos órgãos da persecutio criminis, evitando previsíveis

ingerências, ainda que não de todo. Aliás, entre parênteses e quase num cochicho,

digo que nunca entendi porque tal corpo técnico, abrigado antes no departamento

policial, hoje relativamente independente, segue vinculado ao braço administrativo

do Estado, quando deveria integrar a estrutura do Poder Judiciário, a quem presta

seus relevantes serviços em última análise, com produção de prova antecipada,

defi nitiva e irrepetível. Não estaria aí algo a ser corrigido de lege ferenda? Por que

nunca cogitamos, ou será que já tivemos essa oportunidade e a desprezamos?

Retorno ao fi o condutor.

Pela mesma razão, o juiz tem muito cuidado ao nomear peritos não ofi ciais,

quando for indispensável, para funcionarem como seus auxiliares. Mas, ainda que

chamados a testemunhar, os relatos do perito sobre a inspeção são invariavelmente

mais precisos e confi áveis do que os da testemunha natural devido ao distanciamento,

à observação focada e ao emprego de meios auxiliares. Achados da perícia quase

não são contestados. Ademais, para evitar falhas involuntárias, valendo-se das

facilidades proporcionadas pela modernidade, eles têm o hábito de fazerem

registros fotográfi cos e audiovisuais, à semelhança do art. 165 do CPP. Em mais

um cochicho, digo que seria adequado substituir o registro descritivo escritural pelo

3 – Há diferença entre testemunhar, que é fazer contato sensível com um fato observado ou experienciado,

e depor, que é declarar a respeito desse testemunho. É demasiado comum a confusão conceitual.

A correção semântica é muito útil para o que estamos a dizer, como se verá adiante.

4 – O conhecimento indireto de um fato não dispensa uma avaliação da sua fonte ou do destinatário,

o que imprime o subjetivismo e a falibilidade humana. Leonel de Moura Brizola disse certa feita a

jornalista que o importante não era a verdade, mas a versão. No processo de reconstrução histórica,

dispomos apenas de versões, próprias e alheias, e de alguns dados objetivos que nos auxiliam na análise

crítica do conjunto da prova. Mais de uma mediação subjetiva transmite tanta insegurança que, segundo

antiga lição doutoral, o testemunho de auditu deve ser desprezado, se não for possível confi rmar o seu

conteúdo com a fonte.

86

João Batista Marques Tovo

fotográfi co e audiovisual, pois tem a signifi cativa vantagem da imediação5 para a

cognição judicial.

Estendendo um pouco esse entre parênteses, não compreendo por que a polícia

judiciária ainda não adotou o modelo bem sucedido de registros audiovisuais da

prova oral produzida em juízo, que afasta a mediação do registro tomado a termo

para a cognição do 2º Grau. Aumentaria a confi abilidade dos achados investigativos.

Indo mais além, em alguns Estados Americanos, não sei se todos, tais registros são

feitos para ações de policiamento ostensivo, o que tem a indiscutível vantagem

de evitar alegações tão frequentes de arbitrariedade e abuso, além de estimular boas

práticas policiais. Os sistemas de persecução penal e judiciário teriam muito proveito,

afastando falsas querelas e promovendo uma atuação policial cidadã, com melhor

seleção de seus quadros e exclusão de indesejáveis personalidades arbitrárias.

Retomo, uma vez mais, o tema objeto da dissertação.

Ainda que convenha a inspeção pericial ser direta, a lei processual prevê a

realização do exame de corpo de delito indireto (art. 158, CPP), ou seja, sem contato

sensível com o corpo de delito, abrindo possibilidades, tais como a em comento.

Nessa hipótese, reza a doutrina, o perito deve buscar informes em fontes indiretas.

Avaliar o dano patrimonial causado por furto de veículo automotor não recuperado,

por exemplo, só é possível de modo indireto. Se não convém impor tantas amarras

à prova da materialidade nas infrações que deixam vestígios materiais – esta a razão

da previsão legal, considerado o contexto de sua inclusão, como exceção a uma prova

tarifada6 –, tampouco convém deixar essa nau sem amarras, pois incontida e levada

pelas marés a embarcação se põe ao largo, abandona porto seguro.

Então, é possível o exame indireto, apesar da impropriedade terminológica.

Bem, mas o exame pericial indireto não é propriamente inspecional, ao menos

não do objeto examinando. Com ele, introduz-se uma outra mediação, agora na

cognição pericial, que se comunica à cognição judicial, reduzindo a confi abilidade das

assertivas fáticas que servem de pressuposto ao raciocínio indiciário dedutivo. Em

sendo incomum, ainda gera risco de maior confi abilidade, por falsa indução, qual

seja, de considerar certifi cados, de modo acrítico, todos os pressupostos fáticos da

avaliação pericial. Em casos tais, o escrutínio dos pressupostos fáticos da conclusão

pericial é tão importante quanto o da expertise aplicada e da própria lógica

empregada, sobretudo quando a conclusão seja incriminadora. Logo, devem ser

5 – Quando menos quanto ao que foi assim registrado.

6 – Ela própria, já excepcional no sistema introduzido pelo código de processo.

87

Breves reflexões acerca da “perícia diversa” a partir de um estudo de caso: o que é, qual sua possibilidade e limites

aplicados aqui os princípios que governam a apreciação judicial sobre a avaliação

pericial.

Adiante se verá quais são.

A segunda fase do labor técnico em comento é a avaliação pericial, momento

em que o perito arrola os pressupostos fáticos por ele certifi cados mediante a

inspeção e os entretece com o seu conhecimento técnico-científi co, mediante lógica

irrepreensível, retirando conclusões assertivas ou dubitativas sobre questões que lhe

são propostas, a depender da fi nalidade da perícia. A avaliação pericial não está

para a avaliação judicial assim como a inspeção pericial para a judicial, apesar da

semelhança, pois ela não é substitutiva nem dispensa análise crítica pelo juiz, o

qual não pode se resumir a um singelo “homologador” de laudos. Fosse de modo diverso,

haveria delegação de jurisdição, o que a Constituição Federal não permite. Ainda que

seja trabalhoso, é inescapável desincumbir-se desse mister.

O perito não julga nem pode julgar a causa.

Apesar de o juiz não deter o conhecimento específi co do perito, por isso que

busca o seu auxílio, cabe-lhe escrutinar o laudo, verifi car a atualidade e precisão

do conhecimento técnico-científi co invocado, as premissas lógicas e o encadear

lógico do raciocínio dedutivo, para só então admitir as assertivas feitas como

certifi cadas, delas tirando proveito ou não. O juiz é o peritus peritorum, o maestro

dessa orquestração que é a reconstrução histórica de um fato. Assim como o

maestro não precisa ser um virtuose em cada instrumento que compõe a orquestra

para afi rmar que a execução não é correta, tampouco o juiz necessita ser um

experto para desqualifi car conclusões periciais. Se bem que isso já não pode ser

feito arbitrariamente, deve ser fundamentado o quantum satis, sob pena de substituir

o arbítrio pericial pelo judicial.

É mais difícil, mas indispensável.

Aliás, assim deve ser em relação a todo e qualquer meio de prova, pois

não há hierarquia entre eles, como enunciado na exposição de motivos do vetusto código

de processo. Nenhum deles tem valor apriorístico, a avaliação sendo sempre em

concreto. Erro extremamente comum no foro criminal é o dos operadores jurídicos

tomarem como verdade insofi smável todas as afi rmações dos peritos, como se ele

não estivesse sujeito a erros, ainda que isso seja incomum. Ora, se para o juiz

da causa o que vale é a autoridade do argumento, não o argumento de autoridade,

por que haveria de ser diferente para o perito? Em verdade, essa postura muitas

vezes constitui apenas um atalho lógico, dispensando esforço. Essa falha lógica já foi

responsável por erros judiciários, sabemos todos, e deve ser evitada.

88

João Batista Marques Tovo

Mas, aprioristicamente, pode-se ter como mais confi ável ou menos confi ável,

esta ou aquela fonte de informação, o que é mesmo indispensável para a própria

avaliação a fazer sobre determinado meio de prova, em concreto, o que não é

defi nitivo. E, nesse contexto, pode ser dito que o exame pericial indireto é menos

confi ável do que o direto, sobretudo nas premissas fáticas tidas pelo perito como

certifi cadas de modo indireto. Ou seja, deve-se tomar mais cuidado na análise desse

meio de prova, como antes referido, evitar a confusão entre eles e comunicá-lo de uma

segurança e confi abilidade quanto a elas (premissas fáticas) de que não dispõe, em

razão da mediação da cognição pericial, que se faz de modo indireto. E há, ainda,

outros cuidados a tomar, como se verá adiante.

Repetindo, os presupostos fáticos considerados pelo raciocínio dedutivo

pericial, quando derivados, hauridos de modo indireto, devem ser escrutinados com

zelo, para verifi car a sua certifi cação, pois a força da conclusão no raciocínio

dedutivo depende do vigor das premissas consideradas. A quem não seja um experto

na avaliação da prova – este indiscutivelmente é o juiz, não o perito7 – sucede inúmeras

vezes tomar o falso ou o dubitativo por certo, contaminando todo o raciocínio, o que

pode passar despercebido. Calha lembrar, o perito que aceita fazer uma perícia diversa é

chamado a depor – não a testemunhar como o outro – e para confi rmar uma hipótese

investigativa ou já acusatória. Seu desafi o não é revelar o desconhecido, mas

confi rmar ou não o que já é suspeitado. A diferença é signifi cativa, o risco também.

Mas não vejo impropriedade em ele depor sobre o conhecimento técnico-

científi co e, indagado, opinar sobre questões controversas. Pelo princípio da

liberdade dos meios de prova, são admissíveis tanto a simples inspeção quanto a

simples avaliação, desde que esta seja pericial. A situação é um tanto curiosa e causa

certa perplexidade, pois esse perito funciona como uma testemunha qualifi cada, e

o código de processo impõe ao juiz evitar que testemunhas manifestem apreciações

pessoais8. Aqui ocorre justo o oposto. Ainda assim, não vejo maior difi culdade na

admissibilidade, embora reconheça certa confusão com a indelegável avaliação

judicial. As pecularidades dessa função recomendam impor claros limites ao que se

possa considerar esteja certifi cado pela apreciação do perito.

De fato, há profi ssões – tais como a do médico – cujo conhecimento técnico-

-científi co é tão específi co e complexo que o julgador tem séria difi culdade em

7 – Sim, quem tem o saber específi co e a experiência acumulada de avaliar a prova e dela tirar uma certeza fundada quanto a existência de determinado fato é o juiz, não o perito, ainda que ofi cial.8 – Mas, já disse, ele não é de fato testemunha em sentido estrito, senão a respeito do seu saber específi co.

89

Breves reflexões acerca da “perícia diversa” a partir de um estudo de caso: o que é, qual sua possibilidade e limites

avaliar a correção e adequação da conduta profi ssional adotada, assim como

estabelecer relação de causa e efeito entre esta e o resultado danoso. Em casos tais,

é mais do que possível, recomendável, ele busque aconselhamento de um experto

para suprir falhas cognitivas. Mas deve tomar muito cuidado quando tal perícia

diversa venha pronta, requisitada por órgão da persecução, de modo a preparar

a ação penal em perspectiva, sobretudo quando ele não tenha providenciado antes na

realização do exame necropsial. No exame que é requisitado pelo órgão da persecução,

não resta dúvida, o perito vem em auxílio deste, não do juízo ainda em perspectiva.

A avaliação judicial deve ser ainda mais rigorosa, portanto.

Hei de enumerar os limites probatórios da perícia diversa adiante.

2 A MEDICINA E O PAPEL DO JULGADOR

Agora, julgo adequado fazer uma digressão.

É sabido que, tirante intervenções plásticas, a obrigação do médico é de

meios, não de fi ns. E que a medicina não é uma ciência pronta e acabada, tal

como se apresenta ao imaginário popular, ainda tem muito de experimental, não

oferece solução para tudo. É voz corrente entre os próprios médicos, aliás, que a

nobre ciência avançou muito no tratamento das patologias agudas e pouco nas

crônicas, em relação às quais serve mais de paliativo, com redução de sintomas

incômodos, estabilização do quadro e retardamento do curso da doença, às vezes

inexorável. Avaliar a conduta adotada sob a ótica da frustração com o insucesso da

intervenção, em relação a tais patologias, é ignorar tais limitações, crer na fi cção da

onipotência médica, que tantas vezes atrapalha os próprios praticantes dessa tão

indispensável profi ssão.

Além dos limites da própria ciência, que também é arte, o médico é limitado

em sua iniciativa pela soberana vontade do doente, quando capaz, e de seus

familiares, que precisam acatar seu diagnóstico e prescrição, além de aderir ao

tratamento, que ele não pode impor, se bem que deva acionar mecanismos de proteção

ao doente quando perceber sua relativa incapacidade.9 O compromisso não vai

além. Tampouco se pode olvidar, hoje muito voltada a mecanismos de diagnóstico

não clínicos e a intervenções custosas, nunca ao alcance dos menos favorecidos,

9 – Veja-se o Código de Ética Médico, Resolução CFM n. 1.931/09: “É vedado ao médico: Art. 31. Desrespeitar

o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou

terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte”.

90

João Batista Marques Tovo

a conduta médica é pressionada por uma superestrutura em que está inserida,

devendo buscar alternativas dentro dela, quando houver. O Sistema Único de Saúde

é uma superestrutura à parte, que atende de modo defi citário por burocracias e

políticas de economia.

Sabidamente, o médico do SUS é inibido em sua prática por essa

superestrutura.

Quando o paciente se apresenta à consulta com suas queixas, o médico

atendente, seja qual for, é posto ante um enigma a exigir decifração, cabe-lhe fazer

a diagnose, desvendar a patologia, se existente, informá-la ao paciente, com o seu

prognóstico, recomendar o tratamento, se possível, planejá-lo de comum acordo

com ele e acompanhar sua execução até a cura, quando lhe caiba fazê-lo. Essa

relação é contratual e sinalagmática. Ainda que gratuita, depende da adesão do

paciente, que deve confi ar e seguir todas as recomendações e prescrições, além

de proporcionar meios e empreender esforços nesse andamento. Se este não lhe

deposita confi ança ou não atende às prescrições, o médico pode romper o contrato10,

mas não pode abandoná-lo à própria sorte, ministrando cuidados paliativos se a

moléstia for incurável.11

O paciente que consulta pelo SUS, menos favorecido, não proporciona tais

meios, espera que o sistema o faça, o que tampouco ocorre inúmeras vezes. E o médico

fi ca na difícil situação de não poder romper com a inércia, tampouco com o contrato

ou o atendimento público a que se obrigou. A omissão do sistema não é uma

omissão do médico. Quando mais jovens e idealistas, os médicos que atendem pelo

SUS irresignam-se com a inércia estatal e lutam briosamente por um andamento

célere e efi caz, obtendo alguns sucessos, mas vão acumulando mais frustrações do

que estes, até que a máquina burocrática, que sempre emperra intervenções de alto custo,

os domestica. Alguns o abandonam. Relatos dessas experiências são comuns no

meio médico. E nem sequer o órgão de classe consegue modifi car esse status quo.

Os médicos que fi cam no sistema se conformam com a baixa resolutividade

em muitos casos, pois ela se faz alta em muitos outros. O SUS não é tão frustrante

assim. Há inúmeros relatos de atendimentos bem-sucedidos. O que emperra

a máquina estatal são os altos custos da medicina atual, havendo seletividade e

foco nas patologias de doentes não terminais ou de curso inexoravelmente letal.

A assistência dada é como um cobertor curto, fi cam de fora, devemos supor, pessoas

10 – Art. 36, § 1º, da mesma resolução.

11 – Idem, art. 36, § 2º.

91

Breves reflexões acerca da “perícia diversa” a partir de um estudo de caso: o que é, qual sua possibilidade e limites

e moléstias que os detentores do poder decisório reputam o retorno não compensar

os custos. Se não há como alterar a realidade econômica, o que torna compreensível

essas escolhas, sob certa ótica, o fato é que o médico está no balcão do sistema, seu

foco é o paciente, não os custos, e não consegue sequer explicar a opção.

Quando nos pusermos a julgar médicos do SUS pelas condutas adotadas,

devemos ter tudo isso em mente, e levar em conta que a omissão do sistema não

é do médico, a omissão do paciente, frustrado com as idas e vindas por diversos

balcões, tampouco é dele. A máquina burocrática que oprime o médico atendente

e desqualifi ca o trato dado à saúde da pessoas menos favorecidas é a responsável

inúmeras vezes pela inércia e omissão verifi cada, por mais que o médico se tenha

acomodado com semelhante estado de coisas e já não se disponha a enfrentar o

sistema. Puni-lo por ter se conformado com a baixa resolutividade em alguns

casos, pois cumpre sua missão, dotado de alta resolutividade em outros, é sobrepor

a essa superestrutura opressiva ainda outra, transmitindo-lhe responsabilidades

que não tem.

Talvez muito em razão disso, os Conselhos de Medicina, Federal e Regionais,

têm se ocupado de estudar e controlar um fenômeno atualmente crescente, o da

medicina defensiva, que consiste em o médico prescrever um teste diagnóstico ou

tratamento terapêutico que não são a melhor opção para o paciente e sua patologia,

mas têm a vantagem de protegê-lo contra este em previsível confl ito subsequente,

em razão da prevista frustração em suas expectativas de cura. O tema tem sido

objeto de debates de bioética e jurídicos, havendo recomendações e resoluções dos

Conselhos de Medicina, além de livros publicados sobre o tema. Esse fenômeno

imbrinca em outra realidade da medicina moderna, da qual iremos tratar adiante,

provocando o encarecimento da medicina, com todos os seus refl exos nocivos,

inclusive um efeito rebote.

Seguramente também em resposta a essa medicina defensiva, que tanto

encarece seus custos, o SUS burocratiza e emperra o andamento do ciclo completo

de atendimento, o curso do diagnóstico-terapêutica tornando-se impropriamente

lento, inibida a ação do médico. Se esse maior controle sobre prescrições e

encaminhamentos é necessário por um lado, ele é nefasto por outro. A frustração

da clientela é inevitável. O preço cobrado é a litigiosidade de um paciente que já

consulta desconfi ado e descrente da resolutividade do atendimento ministrado, o que

difi culta a tão indispensável confi ança na relação médico-paciente, e o resultante

é uma retroalimentação da própria medicina defensiva pretendida evitar, moto

contínuo em espiral perversa de desatendimento, dirigida toda essa frustração ao

92

João Batista Marques Tovo

médico-assistente, cuja personalidade é a única visível como representante desse

sistema.

Se o paciente que consulta pelo SUS não escolhe o médico, tampouco a este

é dado escolher o paciente, ou renunciar o atendimento, como lhe garante o código de

ética em circunstâncias diversas, pois não é possível encaminhá-lo ao atendimento

de outro profi ssional, assegurando-se da continuidade dos cuidados, como

exigido para fazê-lo, logo deve perseverar em que pese a quase inevitável quebra de

confi ança. Não bastasse tudo isso, o sistema ainda é extremamente concentrador

dos investimentos em centros de referência. De modo que uma é a situação de um

médico do SUS atuando em Porto Alegre, outra a daquele atuando no Interior.

E, ao julgá-lo por um atendimento prestado do qual se reclama, sobretudo quando se

lhe impute ter sido omisso, esse cenário deve estar bem presente e contextualizado.

Pretender que o médico do SUS de pequena cidade interiorana dê atendimento

similar ao desses centros de referência em que se acotovelam pacientes por força

do que a mídia apelidou de “ambulancioterapia”, tão praticada por pequenas

prefeituras, apesar de todo o custo emocional que o deslocamento representa para

o doente e seus familiares, sobretudo quando há diagnóstico clínico de patologia

letal em longo curso, submetê-lo a uma bateria de exames invasivos e intervenções

paliativas e não curativas, é desumano, tanto para o paciente quanto para o médico,

se exigido que ele assim proceda. Não é a toa que outro dos grandes males da medicina

atual é a, assim chamada, requisição de vários exames e testagens, para depois não

ser acusado de não ter providenciado diagnóstico oportuno.

Nesse difícil ambiente, o médico exerce sua profi ssão.

Exige-se-lhe que atenda todas as nossas expectativas.

Nada disso está a ser dito em favor ou para justifi car erros médicos, quase tão

frequentes quanto os erros judiciários, sabemos todos por experiência própria. Quem

não tem uma história para contar, mesmo em famílias de médicos? A razão de ser

dos erros médicos e judiciários é a mesma, a dependência de um diagnóstico clínico

(juízo), que não se despega do subjetivismo e da tão imperfeita natureza humana,

se bem que erros judiciários, em regra, podem ser desfeitos e erros médicos, com demasiada

frequência, não. Talvez seja em razão disso que a corporação desenvolveu verdadeira

obsessão para com o erro e sua evitação. A prática médica é disciplinada por um

corpo de normas, objeto de rígida doutrinação desde os bancos escolares, o órgão

de classe tendo o cuidado de repreender e inabilitar profi ssionais que as infringem.

Apesar de tanto esforço, o erro segue sendo uma constante, os mais

consequentes nem tanto. Seguramente em razão disso e para evitar os erros de

93

Breves reflexões acerca da “perícia diversa” a partir de um estudo de caso: o que é, qual sua possibilidade e limites

diagnóstico clínico, foram desenvolvidos instrumentos auxiliares. E em tal medida

que se edifi cou toda uma economia de indústria e comércio em torno deles, com todos

os problemas disso decorrentes. O que alimenta essa economia é a falsa ideia de que

o diagnóstico laboratorial ou de imagem afasta todo o subjetivismo do diagnóstico

clínico, quando os mais informados sabem do oculto subjetivismo do operador, sem paralelo

com o preparo do médico e das igualmente ocultas falhas dos aparelhos e insumos. Na seara

cível, os juízes têm uma boa ideia dos falsos-positivos e falsos-negativos de exames,

e o próprio fabricante aponta margens de erro em seus manuais. Mas, em se tratando do

interesse de toda uma economia, isso não vem a público.

Como substituto da onipotência médica no imaginário popular, mas ainda não

de todo, temos hoje a fi cção da precisão absoluta dos exames, dotados de uma aura

de perfeição tecnológica. E, o que é ainda pior, os próprios médicos não arriscam

diagnosticar sem exames e, quando a hipótese clínica não se confi rma, duvidam

de si, nem sempre com razão. Atualmente, a primeira visita a um médico é sempre

inconclusiva, é seguida por uma bateria de exames, nem sempre necessários, e uma

segunda visita muitas vezes ainda inconclusiva, sucedida por um encaminhamento

a especialista diverso e nova visita, por vezes ainda inconclusiva, e assim por diante.

Não carece dizer do custo econômico que isso representa. Para a medicina, o custo

é o de um corpo de médicos quase burocratas, desaprendida a nobre e antiga arte

diagnóstica.

Mas, nem todos têm acesso a essas trilhas, não em tempo hábil.

Se acertar um diagnóstico já era difícil antes, imagine-se agora, com toda

essa parafernália de instrumentos auxiliares, excessiva especialização dos médicos

e descrédito deles próprios em seus juízos. O tema é motivo de longos debates na

academia, assim como para os sistemas que suportam economicamente o tratamento

médico. Essa febre por testagens e a insegurança no arbitrar um diagnóstico clínico

afastam pronta intervenção e desqualifi cam a medicina. Ainda, o médico transmite

sua insegurança ao paciente, quando deveria ser o oposto, frustra suas expectativas e

reduz a disposição de aderir aos procedimentos prescritos. Mas nem tudo é tão

nefasto, pois as testagens proporcionaram ao praticante médico um mecanismo

muito útil à confi rmação de suas hipóteses clínicas.

Mas quem disse que um diagnóstico é sempre possível?

Para um mal transitório, que tenha passado antes de as testagens

possibilitarem o acertamento diagnóstico, consultem-se três médicos, e cada um

deles terá uma opinião diversa. Estou falando por experiência própria. A falta de

diagnóstico preciso e o erro médico são uma constante nessa prática profi ssional,

94

João Batista Marques Tovo

até porque o juízo sobre a patologia depende de uma anamnese, portanto, dos

imprecisos relatos do doente e seus familiares. Todo bom praticante coleciona um

histórico de erros, por ele próprio identifi cados, o mais das vezes com oportuna

correção, com os quais ele aprendeu – pois essa prática também depende de experiência –

e cresceu em humildade. Se algum médico disser que não tem lembrança de seus

erros, estará ocultando ou não é capaz de aprender e, portanto, é muito provável erre de

novo e sempre.

Vale a pena ler o livro de Henry Marsh: “Sem Causar Mal”.

Guardadas as proporções, não é muito diferente com o bom juiz. Se ele

tem consciência crítica, saberá reconhecer seus erros retroativamente e crescer em

experiência e na tão indispensável humildade. O que nós não temos é um corpo de

doutrina judicial, ao menos similar ao dos médicos ou que mereça esse nome, nem tanta

obsessão com a evitação do erro. Quiçá usando como paradigma, possamos aprender,

ao menos com o erro de tentar substituir o subjetivismo do diagnóstico (juízo) por

uma prática mecanicista, de aparência objetiva. Nas duas profi ssões, únicas em que

o praticante recebe o epíteto de doutor ainda que não o seja, o que se tem a Humanidade

como limite – por isso que erramos –, mas também como única salvação. A jurisdição

mecanicista, robotizada ou estandardizada é tão nociva quanto semelhante à

medicina.

3 OS LIMITES DA PERÍCIA DIVERSA

Como disse antes, a medicina é uma ciência incompleta, ainda muito

experimental, o que hoje se tem como boa prática, amanhã pode ser o inverso, como

ocorreu muitas vezes. Outrossim, a adjetivação da conduta como expressão de boa

ou má prática é um juízo de valor sobre a ética médica, que compete exclusivamente

ao órgão de classe, não ao juiz do processo nem ao perito. E, deve-se recordar, há

signifi cativa margem de transição entre uma e outra, derivada das circunstâncias em

que feita a escolha do praticante. Mas esse juízo ético não é pressuposto da decisão

judicial, que dele não depende, nem a condiciona, ainda que possa ser considerado.

A pesquisa de jurisprudência revela, em regra, uma reprovação ética pela classe e

tem peso considerável na avaliação judicial, o mesmo não ocorre com a aprovação.

Apesar de inúmeros pontos de contato, os juízos ético-profi ssional e jurídico-

-penal não têm os mesmos pressupostos nem podem ser confundidos. O primeiro

cabe, modo exclusivo, ao órgão de classe; o segundo, ao julgador da causa penal.

Tanto um quanto outro não são nem podem ser da alçada do perito chamado a

95

Breves reflexões acerca da “perícia diversa” a partir de um estudo de caso: o que é, qual sua possibilidade e limites

depor. Ao médico chamado a fazer uma perícia diversa versando um cogitado erro

médico, sobretudo na esfera criminal, não cabe julgar o seu colega de profi ssão, nos

aspectos ético ou jurídico. Esse é um claro limite à avaliação pericial, que deve ser

observado. Aliás, o Conselho Federal de Medicina manifestou-se expressamente

nesse sentido no Processo-Consulta CFM n. 7.401-A/98, PC/CFM n. 19/99.

Veja-se ementa que resume o entendimento:

EMENTA: Somente o Poder Judiciário (magistratura) e os Conselhos Regionais

de Medicina têm competência para, fi rmando o convencimento, julgar – aquele

a existência de culpa, estes o delito ético que envolve também a ação ou omissão

culposas. Sendo assim, “exorbita competência” o médico legista emitir parecer,

ainda que por indícios, da existência ou não, de negligência, imperícia ou

imprudência praticadas por médico, pois isto é um julgamento, missão privativa

de juiz ou dos Conselhos Regionais de Medicina.

O parecer se encaixa como uma luva no tema em comento, pois a consulta foi feita por perito médico-legista do Distrito Federal, em razão de reiterados pedidos feitos ao IML por autoridades policiais, Ministério Público e Judiciário, solicitando aos médicos legistas dissessem afi rmativamente ou não se houve negligência, imperícia ou imprudência em atos praticados por médicos, em serviço público ou privado. E a pergunta feita pelo consulente era a seguinte: “É de competência dos peritos médicos-legistas se pronunciarem afi rmativamente ou não sobre negligência, imperícia e imprudência praticados por médicos no exercício da profi ssão? Em caso negativo, a quem cabe?”. O parecer pode ser cogente para o perito, mas não é para o juízo. Todavia, vem ao encontro de tudo o que estou a aqui afi rmar.

A consulta feita suscita uma indagação. Afi nal, porque aquelas autoridades do Distrito Federal estavam tanto a insistir em que houvesse manifestação conclusiva sobre um tema jurídico? No que diz respeito aos órgãos da persecução, evidentemente que para dar substrato a uma causa penal em perspectiva. Mas, no caso dos juízes, se é que a informação procede, pois o juiz poderia apenas estar requisitando o que lhe fora pedido pelas partes, não se compreende. Por certo, o perito médico-legista não é um experto em temas jurídicos, a menos que tenha dúplice formação superior, mas isto tampouco o torna experto no tema, pois difi cilmente há de exercer as duas profi ssões. E é inconcebível que um juiz chame alguém para aconselhá-lo juridicamente. Afi nal, iura novit curia e da mihi factum, dabo tibi jus.

96

João Batista Marques Tovo

Ao perito que funcionar em tal perícia diversa cabe, apenas e tão somente, considerando os pressupostos fáticos certifi cados – não deve se pôr a fazer cogitações hipotéticas – nos autos e aqueles que obtiver por iniciativa própria, comunicando seus achados devidamente, dizer [1] em que medida a suposta prática relatada guardou conformidade ou se distanciou do padrão estabelecido, que deve ser explicitado quantum satis, com sua fonte, para que o juiz verifi que a sua cogência e a extensão da violação; [2] se a discrepância era justifi cável pelas circunstâncias ou foi justifi cada por seu autor, não se ela deve ser havida como justifi cada; e [3] a existência de relação de causalidade entre tal conduta e o resultado danoso. Nada além, pois é apenas disso que o juiz precisa. E tudo o que for dito além deve ser desprezado.

Aliás, se o perito se exceder em sua manifestação, todo o produto de seu trabalho acaba sendo contaminado pelas assertivas indevidas, devendo ser objeto de análise crítica ainda mais cuidadosa. A objetividade da manifestação de qualquer perito é o que dá segurança ao juiz quanto à consistência de suas conclusões, tanto assertivas quanto dubitativas. Depois, caberá ao juiz indagar ao imputado as razões da apontada discrepância, se há alguma justifi cativa para a excentricidade no caso concreto e sobre a relação de causalidade apontada. E, mais tarde, com base nesse conjunto de informes, contrastado com a restante prova dos autos, decidir a respeito da imputação fática feita na inicial, aferindo a responsabilidade penal do increpado. O juiz não pode ser um homologador de laudos, sobretudo estes.

Por derradeiro, anoto que a falha de conduta pode ser um fazer (intervenção) ou um não fazer (omissão), mas o que importa estabelecer é se ela foi consciente, era evitável e foi consequente, não se o paciente foi bem-atendido ou não, se o praticante foi bem -sucedido no diagnóstico ou na conduta escolhida, se houve a cura ou o mal foi evitado, se o paciente e seus familiares fi caram satisfeitos ou manifestam desconformidade e se a conduta adotada deve receber a qualifi cação de má-prática. Assim, porque não se trata de aprovar nem reprovar o médico ou sua conduta, mas de verifi car se ele cumpriu com seus deveres e se, os descumprindo, deu causa ao resultado danoso. E não é justo exigir dele uma conduta ideal ou que não estava a seu alcance no caso específi co, posto que se lhe exige “usar todos os meios disponíveis de diagnóstico e tratamento, cientifi camente reconhecidos e a seu alcance” (art. 32 do Código de Ética).

Esses, a meu juízo, os limites de tal perícia diversa.E a refl exão, aqui se conclui.

97

Breves reflexões acerca da “perícia diversa” a partir de um estudo de caso: o que é, qual sua possibilidade e limites

CONCLUSÃO

Resumindo, a perícia diversa feita por médico-legista, com a fi nalidade de auxiliar o juízo na avaliação de imputado erro médico, é um meio de prova admissível. O resultado conclusivo não pode ser um juízo ético-profi ssional nem jurídico-penal, devendo ser limitado à verifi cação de discrepância entre conduta realizada e conduta--padrão, a partir de pressupostos fáticos bem certifi cados, com indicação da regra profi ssional desatendida. Também deve ser indicado se a conduta era justifi cável, contextualizando-a, e a relação de causa e efeito entre ela e o resultado danoso. O juiz não está vinculado às conclusões do perito e deve ter muito cuidado com o conteúdo do laudo, devido a essas suas peculiaridades. Por derradeiro, a falha de conduta, se comprovada, deve ser contextualizada pelo juiz para aferir se o dano resultante é atribuível a título de culpa subjetiva ou não, sempre recordando que a medicina é uma ciência incompleta e não serve de panaceia para todos os males.

O DEVER DE BOA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E AS DESPESAS

NO FINAL DO MANDATO: PERSPECTIVAS HERMENÊUTICAS

DA IMPROBIDADE FISCAL

Leonel Pires Ohlweiler

Desembargador do TJRS. Pós-Doutor em Direito pela UFSC. Mestre e Doutor em Direito.

Professor da Graduação e do Mestrado em Direito do Unilasalle.

INTRODUÇÃO

A constitucionalização da Administração Pública, tema tantas vezes

debatido no âmbito do Direito Administrativo, produz intensos efeitos sobre o

exercício das competências de gestão dos orçamentos públicos. A materialização

da democracia substancial impôs a construção de indicações mais profundas para

o controle fi scal, o que a Lei Complementar n. 101/2000 concretizou em diversos

dispositivos, dentre eles o art. 42 ao tratar do tema das obrigações de despesas em

fi nal de mandato.

O objeto da presente pesquisa restringe-se aos delineamentos hermenêuticos

da chamada improbidade fi scal, importante instrumento para o resgate material do

ethos constitucional de boa administração pública. A metodologia utilizada foi a

pesquisa bibliográfi ca e jurisprudencial.

Na primeira parte haverá a análise do estado da arte na jurisprudência,

focando-se no Superior Tribunal de Justiça e no Tribunal de Justiça do Estado

do Rio Grande do Sul, indicando-se as principais decisões e capazes de elucidar

as referências necessárias para materializar o citado dispositivo da Lei de

Responsabilidade Fiscal. Partindo-se da linha de entendimento tradicional do STJ

100

Leonel Pires Ohlweiler

sobre o elemento subjetivo do ato de improbidade administrativa, com especial

atenção para o art. 11 da Lei n. 8.429/92, destacam-se os argumentos utilizados

para elencar os elementos de confi guração da improbidade fi scal.

Após, a partir do profícuo diálogo com a concepção hermenêutica de

Ronald Dworkin, será debatida a leitura moral da Lei Complementar n. 101/2000,

especifi cando a necessária compreensão da unidade hermenêutica representada

pela boa administração pública e suas indicações de prudência e probidade fi scais.

Não basta, portanto, agregar o material jurisprudencial e doutrinário sobre o tema,

mas é preciso construir uma dada concepção para a leitura desse material. Adota-

-se o entendimento segundo o qual o texto normativo do art. 42 materializa em

diversos aspectos a ideia de responsividade e, de modo mais específi co, as virtudes

de prudência e probidade.

Estabelecidas tais pré-compreensões, a última parte deste breve estudo

destina-se ao exame das indicações da tipicidade da improbidade administrativa

fi scal, em especial pela violação de princípios da Administração Pública, na

linha das decisões destacadas do STJ e do TJRS. A fi nalidade é contribuir de

algum modo para a melhor decisão sobre o tema, laborando com a necessária

circularidade hermenêutica entre as dimensões objetiva e subjetiva, de modo a

compreender a descrição da conduta ímproba em seus aspectos normativos e o

requisito relacionado com a subjetividade da ação praticada e capaz de ensejar a

aplicação da Lei n. 8.429/92.

1 A RESPONSABILIDADE NA GESTÃO FISCAL EM FINAL DE

MANDATO: O DEBATE JURISPRUDENCIAL

O art. 42 da Lei Complementar n. 101 sempre foi objeto de debates em

virtude da vedação estabelecida com relação às obrigações de despesas nos

dois últimos quadrimestres do mandato de agentes políticos. A necessidade

da análise do texto normativo também adquire relevância pelas disposições

contidas no art. 73 ao prever a possibilidade de a infração aos dispositivos desta

Lei Complementar ser punida segundo a Lei n. 8.429/92, Lei de Improbidade

Administrativa. No âmbito do Superior Tribunal de Justiça realizou-se pesquisa

constatando a escassez de decisões sobre o tema, destacando-se apenas três casos

julgados. No REsp n. 706.744-MG, Rela. Mina. Eliana Calmon, 2ª Turma,

julgamento ocorrido em 07-02-06, muito embora sem o enfrentamento direto do

tema da improbidade administrativa por violação do citado art. 42, o julgamento

101

O dever de boa Administração Pública e as despesas no final do mandato: perspectivas hermenêuticas da improbidade fiscal

é digno de nota por algumas questões interessantes. Trata-se de acórdão do TJMG

julgando ação de cobrança proposta contra o Município de São João Batista

do Glória, sendo a própria Administração Pública recorrente, cujo objetivo era

alterar a decisão e a respectiva sentença de 1º Grau que condenou o Município ao

pagamento de crédito referente à venda de produtos hospitalares. A tese veiculada

consistiu na circunstância comprovada de tal obrigação ter sido contraída pelo

gestor público anterior em desacordo com o art. 42 da Lei de Responsabilidade

Fiscal, ocasionando, portanto, a nulidade dos atos administrativos praticados.

O STJ estabeleceu algumas questões importantes: (a) com relação ao

propósito da Lei de Responsabilidade Fiscal, referiu que regras de fi nanças públicas

destinam-se a impor responsabilidade na gestão fi scal dos entes públicos, cujo escopo

é reprimir a irresponsabilidade dos governantes; (b) foram introduzidos dispositivos

endereçados a ele, destacando-se a imputação de responsabilidade ao gestor passado

pelos restos a pagar, cuja normatividade inclusive lhe imputa a prática de crimes e

atos de improbidade administrativa; (c) o regramento do art. 42 não determina a

nulidade das despesas contraídas no contexto do período suspeito; (d) o princípio

da legalidade impõe à Administração Pública a observância das regras de direito

fi nanceiro no controle de suas despesas e de seu orçamento; e (e) muito embora a

despesa contraída seja irregular, o ato praticado pela Administração Pública é capaz

de gerar direito público subjetivo de crédito a um terceiro, devendo-se considerar a

vedação do enriquecimento ilícito em relação a terceiro de boa-fé.

A questão foi novamente debatida, agora de forma específi ca sobre o art. 42

da LRF, no AgRg no Agravo de Instrumento n. 1.282.854-SP, Rel. Min. Mauro

Campbell Marques, 2ª Turma, julgado em 15-03-11, em virtude de decisão

monocrática que negou provimento ao recurso especial interposto, sustentando-se

a inexistência de dolo do agente público. O caso tratava de condenação por ato de

improbidade administrativa mantida pelo TJSP em relação a determinados agentes

políticos, com base em relatório de fi scalização das contas do Município, relativo

ao exercício 2004, elaborado pela fi scalização e adotado pelo TCE, indicando o

desastre da gestão no fi nal do exercício do mandato do Prefeito Municipal. Há

referências de o recorrente ampliar em 75,4% a indisponibilidade fi nanceira

apurada em 31 de abril de 2004, período no qual estava impedido de comprometer

receitas em montante superior as que pudessem ser liquidadas no curso do exercício

seguinte ou sem que houvesse disponibilidade de caixa para pagamento.

O STJ fi rmou parâmetros sobre a aplicação do art. 42 da Lei de

Responsabilidade Fiscal, em especial sobre os problemas relacionados com o

102

Leonel Pires Ohlweiler

elemento subjetivo: (a) destacou-se a relevância da atuação do TCE, pois no caso

julgado ocorreram sucessivos alertas e, mesmo assim, o agente público ampliou o

percentual de indisponibilidade no período suspeito e (b) com relação ao dolo, a

improbidade administrativa por violação do citado dispositivo exige o dolo, mas

admite-se a caracterização de dolo eventual, manifesto na vontade livre e consciente

de contrair despesas em nome do Município nos dois últimos quadrimestres de

seu mandato que não podiam ser cumpridas integralmente dentro dele e havia

parcelas a serem pagas no exercício seguinte, sem sufi ciente disposição de caixa

para este efeito, atentando contra princípios da Administração Pública, em especial

legalidade e moralidade administrativa.

O tema da improbidade administrativa em exame voltou à discussão somente

com o julgamento do REsp n. 1.252.341-SP, Rela. Mina. Eliana Calmon, 2ª Turma,

j. 05-09-13, no qual se debateu sobre acórdão do TJSP que julgou procedente ação

de improbidade administrativa de Prefeito Municipal, muito embora a aprovação

das contas pela Câmara Municipal de Vereadores. O fato determinante foi similar

ao já referido, qual seja, o ato de improbidade administrativa consistiu na violação

do art. 42 da Lei Complementar n. 101/2000, consistente na assunção de obrigações

nos últimos dois quadrimestres do exercício 2000, sem que houvesse, ao fi nal do

seu mandato, disponibilidade fi nanceira para saldá-las.

Relativamente ao elemento subjetivo, o STJ decidiu pela confi guração, na

linha da jurisprudência da Corte, no sentido de exigir-se o dolo, ainda que genérico,

para os casos dos arts. 9º e 11 e a culpa, para a hipótese do art. 10, todos da Lei

n. 8.429/92. O caso submetido ao exame revelou, segundo os Ministros, no

mínimo, a presença de culpa na gestão dos recursos públicos, argumentando-se com

base nas conclusões da própria sentença de 1º Grau imputando ao agente público

ter agido de má-fé. Destacou-se a circunstância fática de o réu ter conhecimento

de os cofres públicos não dispuserem de numerário sufi ciente para fazer frente às

despesas realizadas, demonstrando seu descaso com a gestão do bem público e

deveres de conduta do administrador público, pois inclusive deixou um “rombo”

no orçamento de mais de um milhão de reais.

As decisões referidas, portanto, indicam a importância do tema do equilíbrio

na gestão das contas públicas, em especial no fi nal do mandato, preocupação

também presente em julgados do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do

Sul, muito embora não existam em números quantitativamente signifi cativos. Tal

aspecto é exatamente o elemento determinante da pesquisa aqui realizada, como

no julgamento da Ação Civil Pública n. 70007000557, Rel. Des. Carlos Eduado

103

O dever de boa Administração Pública e as despesas no final do mandato: perspectivas hermenêuticas da improbidade fiscal

Zietlow Duro, 22ª Câmara Cível, j. 28-04-05, ocasião na qual se enfrentou a situação

de determinado Município com valor de disponibilidade de caixa bem inferior à

dívida total empenhada, sem a devida cobertura disponível no caixa do Município.

Houve destaque para a peculiaridade do caso concreto, pois a Lei de Responsabilidade

Fiscal entrou em vigor quando já estava em vigência o exercício fi nanceiro relativo ao

ano 2000 da municipalidade, existindo autorização legislativa prévia.

No entanto, alguns elementos foram assentados sobre a aplicação do art. 42

em análise: (a) o dispositivo direciona-se para evitar que o administrador, em fi nal

de mandato, efetue gastos comprometendo a administração futura, prejudicando

a própria coletividade; (b) a normatividade do art. 42 não pode importar na

interrupção dos serviços públicos continuados, inerentes à própria máquina

administrativa para possibilitar o seu funcionamento e (c) despesas administrativas

para funcionamento da administração como combustível, água, energia elétrica,

telefonia, material de expediente, dentre outros, não podem ser computados para

os fi ns do art. 42.

Posteriormente, questão similar da superveniência da Lei de Responsabilidade

Fiscal em pleno exercício da execução orçamentária foi novamente julgada por

meio da Apelação Cível n. 70013319512, Des. Carlos Eduardo Zietlow Duro,

j. 15-12-05. Além dos argumentos acima aludidos reafi rmando o entendimento

de não ser crível incluir na expressão “restos a pagar” as despesas administrativas

imprescindíveis para o funcionamento da máquina administrativa, mencionou-se

a existência de despesas relativas aos restos a pagar não vencidas e, desta forma,

somente poderiam ser pagas no exercício seguinte, existindo saldo disponível e

afastando a ocorrência de qualquer ato de improbidade administrativa.

Na Apelação Cível n. 70039928122, Rel. Des. Luiz Felipe Silveira Difi ni,

1ª Câmara Cível. j. 06-04-11, ainda na linha das questões trazidas para o Poder

Judiciário logo após a edição da Lei de Responsabilidade Fiscal, a discussão

envolveu o próprio papel do TCE de constatar as irregularidades nas contas

públicas, não havendo surpresa, pois houve a incidência dos dispositivos cuja

aplicação já era possível, mesmo no curso da execução orçamentária. No entanto,

prevaleceu o entendimento de não ser possível exigir do administrador a adaptação

da execução do orçamento já aprovado à regra superveniente e a mera existência

de restos a pagar não implica, por si só, a confi guração de ato de improbidade

administrativa.

Para o fi m específi co desta pesquisa, destaca-se a decisão proferida por ocasião

do julgamento da Apelação Cível n. 70046660098, Rel. Des. Jorge Maraschin dos

104

Leonel Pires Ohlweiler

Santos, j. 15-02-12, na qual o exame da prática de ato de improbidade administrativa

por violação do art. 42 exigiu a análise da circunstância de o agente público realizar

empenhos retroativos de despesas contraídas pela Municipalidade. Debateu-se

sobre a existência ou não de violação dos princípios da Administração Pública

e o fato de a conduta gerar despesas sem as respectivas dotações orçamentárias.

Ao fi nal, o TJRS concluiu pela ausência de ato de improbidade administrativa,

pois o próprio TCE concluiu pela veracidade das despesas, referindo não terem

sido criadas para maquiar a contabilidade pública. Muito embora não seja o

procedimento recomendável, inexistiu ato de improbidade administrativa, mas

manobra necessária, útil e normativamente possível a partir dos arts. 58 e 63 da Lei

n. 4.320/64. Por ocasião do julgamento prevaleceu a tese de admitir a possibilidade

no caso concreto do registro contábil extemporâneo, sem que tal conduta viole o

art. 42 da Lei de Responsabilidade Fiscal.

Julgamento recente sobre o tema, Apelação Cível n. 700651375645, Rela.

Desa. Maria Isabel de Azevedo Souza, 22ª Câmara Cível, j. 30-07-15, enfrentou

de modo direto os requisitos necessários para caracterizar ato de improbidade

administrativa por violação do art. 42, cujo acórdão foi assim ementado:

IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. PREFEITO. DESPESAS.

FALTA DE DISPONIBILIDADE DE CAIXA. DOIS ÚLTIMOS

QUADRIMESTRES DO MANDATO. RESTOS A PAGAR. LEI DE

RESPONSABILIDADE FISCAL. 1. Não há nulidade pela inversão da

ordem de oitiva das testemunhas sem a prova do prejuízo para as partes.

Princípio “pas de nullité sans grief ”. 2. O regime da repercussão geral

previsto no artigo 543-B do CPC não induz ao sobrestamento do recurso

de apelação. 3. O julgamento da ação de improbidade administrativa

não se subordina ao prévio julgamento do processo criminal que versa

sobre os mesmo fatos, em razão da independência entre as esferas. 4. Nos

dois últimos quadrimestres do seu mandato, é vedado ao titular de Poder

assumir nova despesa que não possa ser cumprida dentro do exercício

por indisponibilidade de caixa. Art. 42 da LRF. 5. O art. 42 da LRF não

tem por escopo proibir despesas ilegais por desvio de fi nalidade, mas sim

a assunção de despesas, nos últimos oito meses do mandato, ausente

disponibilidade de caixa para seu pagamento até o fi nal do exercício. Nos

dois últimos quadrimestres do mandato, se não há disponibilidade de

caixa, é vedado ao agente público assumir despesa, ainda que presente

105

O dever de boa Administração Pública e as despesas no final do mandato: perspectivas hermenêuticas da improbidade fiscal

a fi nalidade pública. Todavia, na interpretação desta norma, devem

ser levadas em conta as situações extraordinárias decorrentes de fatos

imprevisíveis ou previsíveis mas de consequências incalculáveis. Assim,

a indisponibilidade de caixa não impede a assunção de dívidas para

atender à situação excepcional em razão de emergência ou calamidade ou

necessidade premente ou para garantir o funcionamento das atividades

essenciais da máquina administrativa. 6. A infração ao art. 42 da LRF

constitui ato de improbidade administrativa. Art. 73 da LC 101/2000.

A fi nalidade pública das contratações não exclui, por si só, o dolo genérico

do Prefeito de violar o referido dispositivo legal. 7. O Prefeito candidato

à reeleição que, nos últimos oito meses do seu mandato, em violação ao

art. 42 da LRF, celebra contrato, sem que haja disponibilidade de caixa,

para veicular em rádio programa para divulgar as realizações de sua

gestão incorre nas sanções do art. 12, inciso II, da Lei de Improbidade

Administrativa. A infração ao referido dispositivo legal aliada à ausência

de fi nalidade pública da despesa, já que destinada à promoção da sua

gestão, confi gura ato de improbidade administrativa tipifi cada no art. 10

da Lei nº 8.429/1992 pela malversação de recursos públicos, cujo

total deverá ser ressarcido ao erário. 8. Confi gura ato de improbidade

administrativa, previsto no art. 11 da Lei nº 8.429/1992, a assunção

livre e consciente pelo Prefeito de novas despesas, nos últimos oito

meses do seu mandato sem disponibilidade de caixa, ausente situação

excepcional decorrente de situação de urgência ou calamidade pública

ou necessidade premente para garantir o funcionamento das atividades

essenciais da máquina administr pública das contratações não exclui, por

si só, o dolo genérico do Prefeito de violar o art. 42 da LRF, porquanto

o aludido dispositivo legal não se destina a vedar despesas destituídas

de interesse público em desvio de fi nalidade, mas despesas legais sem

disponibilidade de caixa nos últimos oito meses do mandato. A exclusão

do dolo depende da prova de que a despesa era inadiável ante situação

excepcional em razão de urgência, calamidade ou necessidade premente

ou para garantir o funcionamento das atividades essenciais da máquina

administrativa. Hipótese em que parte das despesas não apresenta sequer

indícios de situação excepcional de modo a excluir a culpabilidade do

agente público. A alegação do então Prefeito de já havia sido reeleito, ao

tempo da assunção de algumas dessas despesas, não é hábil o bastante

106

Leonel Pires Ohlweiler

para excluir sua conduta dolosa em violar o art. 42 da LRF. Ao contrário,

tal só reafi rma sua intenção de descumprir a proibição legal. 9. Ante

a gravidade da conduta, representada pelo dano ao erário e quebra do

dever de lealdade aos princípios que norteiam o agir do agente público

pelo comprometimento de caixa que transcende o exercício transitório

do mandato, e a intensidade do elemento subjetivo do agente, afi gura-

-se adequada a condenação do agente político em todas as sanções do

art. 12, inciso II, da LIA. Agravo retido desprovido. Recurso de apelação

provido em parte. (Apelação Cível Nº 700651375645, Vigésima Segunda

RS, Relator: Maria Isabel de Azevedo Souza, Julgado em 20/08/2015)

No caso acima referido, examinou-se a situação de prefeito municipal que

contraiu nos dois últimos quadrimestres do seu mandato dezessete obrigações,

cujas despesas não poderiam ser pagas no referido exercício fi nanceiro e

inscreveu parcelas em restos a pagar sem contrapartida de caixa, em violação

ao art. 42 da Lei de Responsabilidade Fiscal. O TJRS manteve a condenação

por ato de improbidade administrativa, adotando o seguinte entendimento:

(a) a caracterização do quadro de crise fi nanceira não é sufi ciente para

excluir a responsabilidade, pois mais razão haveria para o agente público não

assumir obrigações no período vedado pelo art. 42; (b) houve comprovação

da concordância do réu com a realização de novas despesas sem que houvesse

disponibilidade de caixa nos últimos oito meses; (c) para a condenação por ato

de improbidade administrativa não basta a assunção consciente de novas dívidas

nos dois últimos quadrimestres do mandato sem sufi ciente disponibilidades

de caixa, sendo imperioso examinar o elemento subjetivo; (d) a proibição de

novas despesas por indisponibilidade de caixa não impede a assunção de dívidas

para atender as necessidades públicas decorrentes de situação excepcional

em razão de urgência ou calamidade ou necessidade premente para garantir

o funcionamento das atividades essenciais da máquina administrativa; (e) em

termos probatórios impõe-se examinar o objeto e a justifi cativa de cada um dos

contratos celebrados no período proibido, a fi m de verifi car se eles se destinavam

a prover necessidade pública urgente; (f) a fi nalidade pública da despesa das

contratações não exclui, por si só, o dolo genérico do agente público em violar o

art. 42 da Lei de Responsabilidade Fiscal e (g) no caso houve prática de ato de

improbidade administrativa em virtude de as despesas não se relacionarem com

situação excepcional capaz de afastar a proibição legal do dispositivo.

107

O dever de boa Administração Pública e as despesas no final do mandato: perspectivas hermenêuticas da improbidade fiscal

Por fi m destaca-se decisão do 2º Grupo de Câmaras Cíveis, Embargos

Infringentes n. 70062555792, Rel. Des. Eduardo Delgado, j. 10-06-16, no qual o

dispositivo em exame foi objeto de debates, cujo acórdão foi assim ementado:

EMBARGOS INFRINGENTES. AÇÃO CIVIL PÚBLICA.

IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. PREFEITO DE BOM

PRINCÍPIO. INCIDÊNCIA DA LEI 8.429/92 AOS AGENTES

POLÍTICOS. JURISPRUDÊNCIA DO STF, STJ E TJRS.

COMPROVADA A ASSUNÇÃO DE DESPESAS NOS DOIS ÚLTIMOS

QUADRIMESTRES DO EXERCÍCIO E A IMPOSSIBILIDADE DE

CUMPRIMENTO NO MANDATO - ART. 42 DA LC 101/00. NÃO

OBSTANTE O DISSENSO NA INTERPRETAÇÃO DO ART. 42

DA L. C. Nº 101/2000 - LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL.

EVIDENCIADA A REITERAÇÃO DA CONDUTA APESAR DOS

ALERTAS DO TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO - TCE. DOLO

CONFIGURADO. ART. 11, I C/C ART. 12, III, DA LEI FEDERAL

Nº 8.429/92. I - Esta Corte pacifi cou a posição no sentido da incidência

da Lei nº 8.429/92 aos agentes políticos, com base na jurisprudência do

STF e STJ. II - Incontroversa a reiteração voluntária da conduta ilícita

de comprometimento de despesas nos dois últimos quadrimestres do

mandato, em ofensa à regra do art. 42 da L. C. 101/2000, a confi gurar o

atentado voluntário ao princípio da legalidade, constante do art. 11, I, da

Lei 8.429/92. Embargos infringentes acolhidos. (Embargos Infringentes

Nº 70062555792, Segundo Grupo de Câmaras Cíveis, Tribunal de Justiça

do RS, Relator: Eduardo Delgado, Julgado em 10/06/2016).

A decisão foi de condenação do agente público por ato de improbidade

administrativa previsto no art. 11, inc. I, da Lei n. 8.429/92, adotando-se o

entendimento de a comprovação do dolo genérico ser sufi ciente, caracterizando-se

pela consciência de assumir compromissos fi nanceiros em nome do Município nos

dois últimos quadrimestres do mandato, mesmo que sem disponibilidade fi nanceira

para o cumprimento no período ou na administração seguinte. Destacou-se na

decisão a circunstância de o agente público não ter adotado medidas sufi cientes

para atender à notifi cação do TCE em relação ao período anterior, já possuir

condenação na esfera penal pela prática do crime previsto no art. 359-C do Código

Penal, bem como a ciência inequívoca em relação à ilegalidade perpetrada,

108

Leonel Pires Ohlweiler

considerando a ausência de qualquer comprovação de circunstância excepcional

ou emergencial, para o empenho de gastos ou novas obrigações.

2 A COMPREENSÃO DA LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL

A PARTIR DA LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL: PRUDÊNCIA E

PROBIDADE COMO VIRTUDES FISCAIS

O conjunto das indicações jurisprudenciais construídas a partir das

decisões acima referidas do STJ e do TJRS comprovam a íntima relação do tema

da gestão de verbas públicas com o conteúdo da moralidade administrativa.

A Lei Complementar n. 101/2000 e especifi camente o texto do art. 42 não foram

erigidos no vácuo, mas no contexto constitucional representado pelo art. 165,

§ 9º, II, CF, quando refere caber à lei complementar estabelecer normas de gestão

fi nanceira e patrimonial da administração direta e indireta, bem como pelo art. 70

do texto constitucional ao especifi car importantes referências principiológicas

para o controle dos orçamentos públicos, como a legalidade, legitimidade e

economicidade. Sobre a questão refere Ricardo Lobo Torres1:

O controle da legitimidade é o que se exerce sobre a legalidade e a

economicidade da execução fi nanceira e orçamentária. As fi nanças

públicas no estado Social de Direito, que, ao contrário do Estado Guarda-

-Noturno ou do Estado Liberal do século passado, tem a sua dimensão

intervencionista e assistencialista, não se abre apenas para a tomada de

contas ou para o exame formal da legalidade, senão que exige também o

controle de gestão, a análise de resultados e a apreciação da justiça custo/

benefício, a ver se o cidadão realmente obtém a contrapartida do seu

sacrifício econômico. O aspecto da legitimidade, por conseguinte, engloba

os princípios constitucionais orçamentários e fi nanceiros, derivados

da ideia de segurança jurídica ou de justiça, que simultaneamente são

princípios informativos de controle.

(...)

O controle da legitimidade, que é da própria moralidade, só agora se

positivou na Constituição, mas, já era reclamado há muito pelos juristas

1 – O Orçamento na Constituição. Rio de Janeiro: Renovar, 1995, p. 285-286.

109

O dever de boa Administração Pública e as despesas no final do mandato: perspectivas hermenêuticas da improbidade fiscal

brasileiros. Indubitável que a novidade constitucional do controle do

aspecto da legitimidade signifi ca a abertura para a política. Entenda-se: não

para a política partidária nem para a atividade política ou discricionária,

mas para a política fi scal, fi nanceira e econômica.

Tal referência é crucial para bem dimensionar a relevância do art. 73 da Lei

de Responsabilidade Fiscal, ainda que preceitos relacionados com a moralidade da

gestão de verbas públicas sejam de caráter abstrato. No entendimento de Ronald

Dworkin, ao defender a leitura moral da Constituição Americana, “a leitura moral

propõe que todos nós – juízes, advogados e cidadãos – interpretemos e apliquemos

esses dispositivos abstratos considerando que eles fazem referência a princípios

morais de decência e justiça.”2 Assim, o tema da improbidade administrativa em

debate relaciona-se exatamente com a necessidade de ultrapassar a concepção de

controle formal para a dimensão de legitimidade, substancial, cujo espaço normativo

propõe a discussão sobre de que modo a Administração Pública deve gerir as verbas

públicas. Qual a melhor concepção deste princípio abstrato de moralidade em

relação aos orçamentos públicos? Trata-se de assunto proposto pela leitura moral

da Constituição Federal e da própria Lei Complementar n. 101/2000. Concorda-se

com Ronald Dworkin quando responde aos críticos da leitura moral referindo que

na prática cotidiana do Direito os intérpretes e aplicadores laboram com exigências

morais em suas decisões, mas apenas não as explicitam3. Ora, também estão na

gênese das práticas orçamentárias determinadas concepções, fi nalidades a serem

realizadas, objetivos a serem alcançados, cujo substrato interpretativo é orientado

por concepções de moralidade política dos agentes públicos responsáveis pela sua

elaboração e execução. A questão aqui retratada, com refl exos diretos no art. 42

da LRF, reside em explicitar e debater a melhor concepção para orientar o controle

dos orçamentos públicos.

A citada transformação do controle meramente formal, antes da

Constituição Federal de 1988, para o exame de legitimidade substancial,

está conectada diretamente com a própria ideia de democracia, por exemplo,

explicitada nos arts. 1º e 3º da Constituição Federal. Não há como desvincular

a compreensão da gestão fi scal das questões típicas do Estado Democrático de

2 – Cf. DWORKIN, Ronald. O Direito da Liberdade. A Leitura Moral da Constituição Norte-Americana. São

Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 2.

3 – Cf. DWORKIN, Ronald. O Direito da Liberdade. A Leitura Moral da Constituição Norte-Americana, p. 04.

110

Leonel Pires Ohlweiler

Direito. As características desse modelo de Estado foram muito bem explicitadas

por J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira4: ‘‘a) Constitucionalidade: vinculação

do Estado Democrático de Direito a uma Constituição como instrumento básico

de garantia jurídica; b) Organização Democrática da Sociedade; c) Sistema de

direitos fundamentais individuais e coletivos, seja como Estado de distância,

porque os direitos fundamentais asseguram ao homem autonomia perante os

poderes públicos, seja como um Estado antropologicamente amigo, pois respeita

a dignidade da pessoa humana e empenha-se na defesa e garantia da liberdade,

da justiça e da solidariedade; d) Justiça Social com mecanismos corretivos

das desigualdades; e) Igualdade não apenas como possibilidade formal, mas,

também, como articulação de uma sociedade justa; f) Divisão de Poderes ou

Funções; g) Legalidade que aparece como medida do direito, isto é, através de

um meio de ordenação racional, vinculativamente prescritivo, de regras, formas

e procedimentos que excluem o arbítrio e a prepotência; h) Segurança e Certezas

Jurídicas.”

Com efeito, para Ronald Dworkin, “quando compreendemos melhor a

democracia, vemos que a leitura moral de uma constituição política não só não

é antidemocrática como também, pelo contrário, é praticamente indispensável

para a democracia.”5 É nessa esteira que o art. 42 da Lei de Responsabilidade

Fiscal conecta-se com os princípios do Estado Democrático de Direito e a

moralidade administrativa do art. 37, caput, da CF, como relevante indicação

normativa para permitir a plena realização de tais propósitos por meio do dever

de boa administração pública. No entendimento de Juarez Freitas, relaciona-se

com a administração pública efi ciente, efi caz, “proporcional, cumpridora de seus

deveres, com transparência, motivação, imparcialidade e respeito à moralidade,

à participação social e à plena responsabilidade por suas condutas omissivas e

comissivas...”6. Relativamente à gestão fi scal, é crível dizer que ao dever de boa

administração pública materializa a concepção de legitimidade democrática do

art. 70 da Constituição Federal, impondo ao agente público o dever de integridade

e coerência com relação à unidade dos princípios constitucionais.

4 – CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital. Fundamentos da Constituição. Coimbra: Coimbra,

1991, p. 83.

5 – O Direito da Liberdade. A Leitura Moral da Constituição Norte-Americana, p. 10.

6 – Discricionariedade Administrativa e o Direito Fundamental à Boa Administração Pública. São Paulo:

Malheiros, 2007, p. 20.

111

O dever de boa Administração Pública e as despesas no final do mandato: perspectivas hermenêuticas da improbidade fiscal

É imprescindível, assim, na fi nalidade de melhor compreender a moralidade

fi scal presente na Constituição Federal e legislação infraconstitucional, não perder

de vista a historicidade da Lei Complementar n. 101/2000 como tentativa de

ultrapassar a compreensão meramente formal de democracia e o senso comum

de então, qual seja, “o orçamento serviu, durante mais de um século, muito mais

aos interesses dos políticos e do aparelho do Estado do que aos da sociedade.”7

Urge vislumbrar o art. 42 já referido com a consciência histórica de o atual marco

normativo culminar com a institucionalização do equilíbrio das contas públicas e

da responsividade fi scal como referências fundamentais para materializar o novo

ethos em matéria de gestão do Erário.

Como refere Diogo de Figueiredo Moreira Neto, da responsabilidade, como

elemento tradicional ligado à legalidade, o Estado Democrático de Direito renova-

-se com a responsividade8:

No Estado Democrático de Direito se inova o princípio da responsividade,

introduzindo um novo dever substantivo, em razão do qual o

administrador público também fi ca obrigado a prestar contas à sociedade

pela legitimidade de seus atos. A responsividade consiste, portanto, em

apertada síntese, na obrigação de o administrador público responder

pela violação da legitimidade, ou seja, pela postergação ou deformação

administrativa da vontade geral, que foi regularmente expressa,

explícita ou implicitamente, na ordem jurídica. Da compreensão e do

desenvolvimento desse conceito, pois assim é que se deve entender a

responsabilidade fi scal como tratada na Lei que leva essa designação,

muito dependerá o êxito de sua aplicação.

7 – Cf. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Considerações sobre a Lei de Responsabilidade Fiscal.

Finanças Públicas Democráticas. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 85. Vale também a referência de Emerson

Garcia e Rogério Pacheco Alves sobre o processo de amadurecimento para a edição de uma lei com

a fi nalidade de assegurar uma gestão responsável do dinheiro público. Muito embora seja evidente tal

conduta dos administradores, refere as resistências à Lei de Responsabilidade Fiscal voltada para coibir

o despautério, a insensatez e a má-fé na administração do patrimônio público: “Com tais objetivos, foi

editada a Lei Complementar n. 101/2000, também denominada de Lei de Responsabilidade Fiscal,

que é parte integrante de um conjunto de medidas que compõem o denominado Plano de Estabilização

Fiscal (PEF), tendo estabelecido mecanismos de gestão dos recursos públicos, visando conter o defi cit e

estabilizar a dívida pública, possibilitando a manutenção do equilíbrio que deve existir entre despesas e

receitas públicas.” (Improbidade Administrativa. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 528-529.)

8 – Considerações sobre a Lei de Responsabilidade Fiscal. Finanças Públicas Democráticas, p. 60.

112

Leonel Pires Ohlweiler

O texto infraconstitucional do art. 42 da Lei Complementar n. 101/2000,

portanto, materializa a ideia de responsividade em certo modo, ainda que não se

reconheça o caráter de princípio, mas como dever público de gestão administrativa,

pois o agente público em fi nal de mandato não se pode valer de tal circunstância

para, desconsiderando as referências do equilíbrio fi scal, assumir obrigações novas

a serem pagas pelo sucessor na Administração Pública, sem a devida cobertura

orçamentária, com sufi ciente disponibilidade de caixa. A outra dimensão da

moralidade aplicada aos orçamentos públicos refere-se à prudência fi scal, exigindo-

-se do administrador não apenas o comprometimento com a boa administração

pública:

Mas no Estado Democrático de Direito vai-se mais adiante nesse mesmo

caminho e se defi ne, ainda com maior precisão e vigor, um princípio

de prudência fi scal, que vem a ser um standard comportamental a ser

observado pelo administrador fi nanceiro diante de riscos na administração

dos dinheiros públicos, um conceito que é mais apropriado à extrema

delicadeza ética exigida para o manejo dos recursos compulsoriamente

entregues pela sociedade à administração Estado...

(...)

Demanda-se, portanto, nesse contexto neodemocrático, que o

administrador de recursos públicos opere com especial moderação e

extremo cuidado, passando a considerar e a evitar riscos, que até poderiam

ser assumidos se fora uma gestão de interesses privados por gestores

privados, mas que não podem ser ignorados ou negligenciados quando se

trate de gestores públicos, de interesses públicos, dai o moderno conceito

de gestão sem riscos.9

As indicações acima mencionadas justifi cam-se ainda pela compreensão

dos julgados do STJ sobre a matéria, como no REsp n. 706.744-MG, no qual se

destacou a materialização de uma espécie de moralidade fi scal com a referência

de a Lei Complementar n. 101/2000, dentre outros propósitos, vocacionar-se para

reprimir a irresponsabilidade dos governantes, no caso, em especial daqueles em

fi nal de mandato. Tal desiderato, por exemplo, encontra-se no próprio art. 1º do

9 – Cf. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Considerações sobre a Lei de Responsabilidade Fiscal.

Finanças Públicas Democráticas, p. 62-63.

113

O dever de boa Administração Pública e as despesas no final do mandato: perspectivas hermenêuticas da improbidade fiscal

diploma legal ao explicitar a responsabilidade na gestão fi scal como referência para

interpretação dos diversos dispositivos, destacando-se o § 1º ao disciplinar que a

responsabilidade na gestão fi scal pressupõe a ação planejada e transparente, em

que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas

públicas, mediante o cumprimento de metas de resultados entre receitas e despesas

e a obediência a limites e condições referentes à inscrição de restos a pagar.

Não se pode olvidar a menção contida no acórdão do julgamento da Ação

Civil Pública n. 70007000557 sobre a restrição do art. 42 e a fi nalidade de evitar

gastos por parte do administrador em fi nal de mandato, com o comprometimento

da administração futura e prejudicando, em última análise, a própria coletividade.

3 REQUISITOS NORMATIVOS PARA A APLICAÇÃO DO

ART. 42 DA LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL COMO ATO DE

IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA

A combinação desse dispositivo com o art. 73 do mesmo diploma legal,

como já aludido, traz relevantes consequências em termos de gestão do orçamento

público, proporcionando o debate sobre a denominada improbidade fi scal.

O texto normativo refere que as infrações dos dispositivos da Lei Complementar

n. 101/2000 serão punidas também segundo a Lei n. 8.429/92. Dentre os casos

julgados pelo STJ e TJRS, destacam-se o AgRg no Agravo de Instrumento

n. 1.282.854-SP, STJ, a Apelação Cível n. 70065137564 e os Embargos Infringentes

n. 70062555792, ambos do TJRS, pois nos três julgamentos houve a condenação

por ato de improbidade administrativa previsto no art. 11 da Lei n. 8.429/92.

Tais referências jurisprudências mostram-se úteis para delimitar o ato de

improbidade administrativa do art. 42 da LRF, destacando-se, de plano, sua íntima

relação com o dever de boa gestão fi scal e accountability, pois a má gestão pública

revela-se no interior das práticas ímprobas, como alude Fábio Medina Osório10:

Talvez não pareça novidade situar a improbidade como espécie de má

gestão pública, porque tal constatação resultaria situada no senso comum,

até mesmo num olhar empírico. Entretanto, a difi culdade reside em situar

corretamente a improbidade no campo axiológico da má gestão pública,

10 – Teoria da Improbidade Administrativa. Má Gestão Pública. Corrupção. Inefi ciência. 3ª ed. São Paulo: RT,

2013, p. 37 e 47.

114

Leonel Pires Ohlweiler

ou seja, como uma categoria ético-normativa apta a designar precisamente

fenômenos situáveis no âmbito da má gestão pública. Realmente, a

novidade consiste em posicionar a improbidade no universo rico e

complexo da má gestão pública, deixando claro que se trata de conceitos

próximos, porém distintos, na medida em que nem toda má gestão pública

será expressão da improbidade, ainda que o inverso seja verdadeiro.

Com efeito, improbidade administrativa e má gestão fi scal situam-se na

órbita da recepção realizada do vetusto princípio da moralidade administrativa,

mencionando-se a fi gura de Maurice Hauriou e sua concepção sobre desvio de

fi nalidade e boa administração pública11. Com a contextualização para este estudo,

o administrador público, mesmo quando exerce sua competência de gestão fi scal

observando as prescrições formais, mas utiliza tal prerrogativa por outros motivos

diversos daqueles presentes na regra de competência, pratica desvio de poder e,

por consequência, má gestão pública. Aqui reside aspecto relevante: os agentes

públicos, no processo de administração dos orçamentos, devem ter a capacidade

funcional de bem compreender o todo representado pela ideia de responsabilidade

fi scal e adotarem o melhor em termos de gestão pública. Não há liberdade neste

ponto. O art. 42, dessa forma, em termos de boa administração, exige do agente

público a necessidade de compreender os objetivos, as fi nalidades, os móveis de

sua função no processo de administração das obrigações de despesas em fi nal de

mandato, cuja atuação desviante, circunstância sempre apurada a partir do caso e

das ideias de integridade e coerência da Lei de Responsabilidade Fiscal, importará

na prática de improbidade administrativa.

Em termos de tipifi cação jurídica, e restrita aos termos dos debates sobre

a aplicação do art. 11 da Lei n. 8.429/92, pode-se defender a incidência conjunta

dos arts. 73 e 42 da LRF quando o agente público, de forma livre e consciente,

nos dois últimos quadrimestres do seu mandato, contraiu obrigação de despesa

que não possa ser cumprida integralmente dentro dele, ou que tenha parcelas a

serem pagas no exercício seguinte, sabendo ou devendo saber sobre a inexistência

de sufi ciente disponibilidade de caixa, violando assim princípios da Administração

Pública e, de modo específi co, a prudência e probidade fi scais, sem causar dano ao

erário ou haver enriquecimento ilícito, cuja conduta também é incompatível com

a proporcionalidade.

11 – Précis de Droit Administratif et de Droit Public. 12ª ed. Paris: Dalloz, 2002, p. 442-443.

115

O dever de boa Administração Pública e as despesas no final do mandato: perspectivas hermenêuticas da improbidade fiscal

Como aduz Diogo de Figueiredo Moreira Neto12:

O que se pretende na Lei Complementar é por um paradeiro ao

lamentável hábito do mau administrador público de legar dívidas ao seu

sucessor, acumulando obrigações a serem satisfeitas no exercício seguinte

ao término de seu mandato. A prudência e o bom senso impedem a

realização de despesas de capital cujo valor ultrapasse a possibilidade de

liquidação no exercício, inibindo a gestão eleitoreira, que é a praticada às

pressas, para impressionar, no fi nal dos mandatos.

Denota-se a impossibilidade hermenêutica de laborar com tal questão com

as restritas possibilidades metodológicas da subsunção, exigindo-se por parte do

intérprete/aplicador desenvolver determinada concepção para construir decisões

jurídicas constitucionalmente adequadas sobre a improbidade fi scal do art. 42.

Os seguintes aspectos podem ser destacados: (a) a improbidade administrativa

fi scal é um conceito interpretativo; (b) laborar com a integridade e coerência da Lei

de Responsabilidade Fiscal; (c) individualizar hermeneuticamente a tipicidade do

texto do art. 42 dado a partir do caso; (d) compreender a melhor justifi cativa da

probidade fi scal como unidade de princípios do caso; (e) dialogar com as concepções

rivais de probidade fi scal; e (f) a melhor concepção de probidade fi scal será

aquela capaz de realizar o conjunto coerente de princípios da boa Administração

Pública. É claro que o bloco de indicações não é estanque e não ocorre de modo

isolado e abstrato, mas integra o inexorável processo de aplicação, marcado pela

circularidade hermenêutica.

Na linha do jusfi lósofo Ronald Dworkin, laborar com a improbidade fi scal

como conceito interpretativo parte do pressuposto segundo o qual não é possível

responder ao questionamento sobre o que é improbidade administrativa no campo

da mera descrição fática ou fi ncado em algum fundamento externo, como refere

Sthephen Guest relativamente ao conceito de Direito13. Trata-se de uma atitude

(interpretativa) voltada às práticas que conformam o próprio Direito Administrativo,

e não há como divorciar da compreensão o seu caráter deontológico, cujo conteúdo

contém o princípio de os agentes públicos serem responsáveis pela gestão fi scal da

Administração Pública a partir de indicações do ethos constitucional.

12 – Considerações sobre a Lei de Responsabilidade Fiscal. Finanças Públicas Democráticas, p. 231.

13 – GUEST, Sthephen. Ronald Dworkin. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010, p. 16.

116

Leonel Pires Ohlweiler

O caráter interpretativo aludido, portanto, evidencia a necessidade de abrir

a compreensão do fenômeno da improbidade administrativa para outros âmbitos,

como o das práticas jurídicas construídas intersubjetivamente pela comunidade

política, conforme sustenta em outro contexto Lenio Luiz Streck14. Como

consequência para melhor dimensionar a improbidade administrativa fi scal, não

se pode perder de vista – o olhar hermenêutico – a necessidade de materializar tal

conceito com o conjunto de objetivos e princípios que lhe conferem sentido, mas

não um sentido abstrato, obtido por meio de conceitos semânticos, e sim propósito

construído e projetado na história institucional15 da comunidade política a que

pertence, marcado pela pergunta prática: de que modo o gestor público deve gerir

as obrigações de pagamentos em fi nal de mandato?

O point16 da improbidade administrativa fi scal é imprescindível para a

aplicação da regra do art. 42 da Lei de Responsabilidade Fiscal, pois o tema em

debate não se reduz tão somente a um conjunto de regras jurídicas qualifi cadas por

textos normativos tout court. Mesmo quando se discutem os inúmeros problemas de

aplicação da Lei n. 8.429/92 e, no caso, combinando-a com os arts. 73 e 42 da LRF,

não se pode cair no que Dworkin denomina de aguilhão semântico. Como conceito

interpretativo, a improbidade administrativa não se resume a textos normativos,

surgindo assim todo o debate realizado na obra do autor acima aludido sobre o

point das práticas jurídicas. Determinada concepção de improbidade administrativa

fi scal não inclui somente as regras da Lei Complementar n. 101/2000, mas o

conjunto de princípios que melhor justifi cam hermeneuticamente tais regras.

É preciso, desta forma, compreender não apenas os materiais jurídicos sobre o

tema, mas construir determinada teoria de como ler esse material. Os princípios

da Administração Pública, vislumbrados como unidade hermenêutica de boa

administração pública, atuam como justifi cação normativa da regra do art. 42,

pois assumem um caráter deontológico, ou seja, introduzem o mundo prático do

Direito Administrativo, conforme expressão utilizada por Lenio Luiz Streck17.

14 – STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. 4ª ed. São

Paulo: Saraiva, 2012, p. 544.

15 – No entendimento de Lenio Luiz Streck, Verdade e Consenso. Constituição, Hermenêutica e Teorias

Discursivas, p. 202, aplicar princípios e resolver casos possui relação direta com a reconstrução da

história institucional do caso, elemento indispensável para não haver decisões arbitrárias.

16 – A questão do propósito na interpretação, a partir da obra de Ronald Dworkin, ver MACEDO JÚNIOR,

Ronaldo Porto. Do Xadrez à Cortesia. Dworkin e a Teoria do Direito Contemporânea. São Paulo: Saraiva, 2013.

17 – Trata-se da concepção construída em Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias

117

O dever de boa Administração Pública e as despesas no final do mandato: perspectivas hermenêuticas da improbidade fiscal

Adotar a atitude interpretativa com relação à improbidade do dispositivo

supra signifi ca concretizar a virtude de integridade, ou seja, a melhor compreensão

da Lei de Responsabilidade Fiscal realiza-se segundo o conjunto único e coerente

de princípios, como sustenta Ronald Dworkin18. Aliás, a integridade assim é

considerada por Dworkin a partir de alguns ideais políticos compartilhados

pela teoria política do Estado Democrático de Direito em matéria de gestão

administrativa, como o de estrutura política e administrativa imparcial, justa

distribuição de recursos e processo equitativo de aplicar regras e regulamentos

que os estabelecem19. Os agentes públicos, portanto, devem, ao aplicar os deveres

jurídicos de gestão das obrigações de despesas em fi nal de mandato, vê-los e

cumpri-los como sendo coerentes com os princípios de boa administração pública,

sob pena de olvidar o referido no item anterior sobre a leitura moral da Lei de

Responsabilidade Fiscal.

No que tange às indicações de tipicidade, para fi ns de aplicar devidamente

o art. 42, impõe-se individualizar hermeneuticamente aquilo que será capaz de

tornar determinadas condutas do agente público no exercício da competência

administrativa orçamentária como relevante para os fi ns da Lei n. 8.429/92,

considerando a combinação com o art. 73 da Lei Complementar n. 101/2000.

Sob a perspectiva hermenêutica, a tipicidade da improbidade administrativa fi scal

diz respeito às referências capazes de materializar os indícios formais de conduta,

Discursivas, p. 65, na qual o autor sustenta que não é mais possível laborar com as teses positivistas de

separação entre Direito e Moral, pois os princípios jurídicos possuem esta importante função de inserir

no Direito o mundo prático. Não há, portanto, como separar a compreensão daquela antecipação de

sentido que vem do mundo prático dado pelos princípios jurídicos. Mas, com isto, não se pode dizer

que o Direito está atrelado à moral, eis que ela não exerce um papel de correção do Direito (p. 153),

pois, como aduz o autor, trata-se antes de uma “relação de cooriginariedade”, na medida em que os

princípios institucionalizam a moral no Direito (p. 226).

18 – O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 202. Segundo Sthephen Guest, uma

interpretação adequada do Direito, segundo Dworkin, encontra-se na ideia de integridade, pois por

meio desta ideia deve-se personifi car o Direito, tratá-lo como possuindo sua própria integridade, de

modo que ele assuma um caráter moral (Ronald Dworkin, p. 19). Aplicando tal entendimento ao caso, a

improbidade administrativa do art. 42 da LRF não pode divorciar-se da integridade e coerência com as

quais a LRF deve ser compreendida, ou seja, fazendo parte de um retrato integral, o comprometimento

dos agentes públicos e intérpretes com as virtudes constitucionalmente institucionalizadas de boa

administração.

19 – O Império do Direito, p. 203.

118

Leonel Pires Ohlweiler

daquilo que foi delimitado como a esfera20 do ímprobo em matéria de gestão dos

restos a pagar. A expressão utilizada “indícios formais” remete para os trabalhos

desenvolvidos pela fi losofi a hermenêutica de um dos maiores fi lósofos do século

XX, Martin Heidegger, especialmente na obra Ser e Tempo, e pode contribuir para

melhor vislumbrar o processo de descrição fenomenológica, como aduz Ernildo

Stein21.

A linguagem do art. 42 constitui-se como aproximação, como o acontecer

signifi cado como ímprobo, desde que materializado na integridade dos dois diplomas

legais acima citados, cujo labor hermenêutico é a atividade de descrição desses

indícios formais de conduta, anúncios22 de uma das condições de possibilidade

de ver (hermeneuticamente) a concretude da improbidade administrativa fi scal.

Tal atitude interpretativa também permite não cair na tentação de objetifi car tais

indicações do texto normativo por meio de conceitos semânticos.

Sob a perspectiva de indicações da materialidade do ato de improbidade

administrativa destacam-se: (a) contrair obrigação de despesa nos dois últimos

quadrimestres do seu mandato e (b) que não possa ser cumprida dentro dele, ou que

tenha parcelas a serem pagas no exercício seguinte. Sob a perspectiva doutrinária,

vale citar a referência de Emerson Garcia e Rogério Pacheco Alves23:

Para a correta exegese desse dispositivo, é necessário identifi car o exato

momento em que se considera contraída a obrigação de despesa. De

acordo com o art. 58 da Lei nº 4.320/1964, “o empenho de despesa é o

ato emanado de autoridade competente que cria para o Estado obrigação

de pagamento pendente ou não de condição.” Constata-se, assim, que,

para os fi ns do art. 42 da LRF, somente se pode falar em obrigação após

o empenho.

(...)

A execução de despesa pública pressupõe seja realizado o seu empenho,

que consiste na reserva de recursos previstos em determinada dotação

20 – Sobre a teoria da tipicidade na esfera penal e capaz de infl uenciar as refl exões sobre a improbidade

administrativa, ver COELHO, Walter. Teoria Geral do Crime. Volume I. Porto Alegre: Sérgio Fabris

Editor, 1991, p. 32-33.

21 – Pensar é Pensar a Diferença. Filosofi a e Conhecimento Empírico. Ijuí: Unijuí, 2002, p. 156.

22 – Cf. HEBECHE, Luiz. Heidegger e os Indícios Formais. In: O Escândalo de Cristo. Ensaio sobre

Heidegger e São Paulo. Ijuí: Unijuí, 2005, p. 318.

23 – Improbidade Administrativa, p. 549-550.

119

O dever de boa Administração Pública e as despesas no final do mandato: perspectivas hermenêuticas da improbidade fiscal

orçamentária em montante sufi ciente ao seu pagamento. Ato contínuo,

é emitida a nota de empenho – documento que materializa o empenho e

cuja emissão pode ser dispensada em alguns casos.

No intuito de completar as referências de materialidade, o texto do art. 42

alude à necessidade de uma importante indicação, impondo ao intérprete a análise

da ilegitimidade da conduta do agente público por intermédio da constatação da

ausência de sufi ciente disponibilidade de caixa, cujo propósito da normatividade

reside na imposição de limites na utilização das obrigações de despesas e, como já

aludido, serão limitadas “às disponibilidades de caixa, evitando-se a transferência

de despesa de um exercício para outro sem a correspondente fonte de receita.”24

Agora, sob a perspectiva das indicações de âmbito subjetivo, e restrito

aos casos colacionados do STJ e do TJRS referentes ao ato de improbidade

administrativa do art. 11 da Lei n. 8.429/92, o elemento doloso na conduta

do agente público é necessário. No entanto, considerando a impossibilidade

do ingresso direto na subjetividade do agente público, ressalvada a hipótese de

confi ssão, o dolo manifesta-se por meio de indícios formais de conduta capazes

de permitir a construção hermenêutica de um propósito. Confi gura-se quando o

agente público, de forma livre e consciente, nos dois últimos quadrimestres do seu

mandato, contrai obrigação de despesa que não possa ser cumprida integralmente

dentro dele, ou que tenha parcelas a serem pagas no exercício seguinte, sabendo ou

devendo saber sobre a inexistência de sufi ciente disponibilidade de caixa.

O conjunto de decisões judiciais citadas no primeiro item deste estudo é

importante para dimensionar a integridade e coerência do art. 42 da LRF com

a prática jurisprudencial, pois no AgRg no AI n. 1.282.854-SP, é fácil constatar

a presença da violação do sentido de boa administração, especifi camente com

relação à prudência e probidade fi scal, referindo-se a comprovação do desastre da

gestão no fi nal do exercício do mandato do Prefeito Municipal, considerando a

indicação de o agente público aumentar em 75,4% a indisponibilidade fi nanceira,

conforme já mencionado. No intuito de dialogar com as concepções rivais do

citado dispositivo, destaca-se a tese veiculada pela defesa do Prefeito Municipal

no sentido de que a receita pública do Município foi incrementada em 23,6% em

relação ao exercício anterior e as despesas de caráter continuado contribuíram para

o aumento da indisponibilidade de caixa.

24 – Cf. GARCIA, Emerson e ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade Administrativa, p. 552.

120

Leonel Pires Ohlweiler

No entanto, muito embora não tenha ocorrido discussão mais aprofundada

sobre circunstâncias capazes de excluir a tipicidade da improbidade administrativa

fi scal no julgado, o STJ adotou a melhor concepção, ou seja, aquela capaz de

melhor realizar o point da boa administração pública, de, na esteira de Ronald

Dworkin, conferir a melhor luz ao tipo da improbidade administrativa do

art. 42 quando integrado à totalidade dos princípios da prudência e probidade

fi scal. Ao justifi car a decisão proferida, o Min. Mauro Campbell Marques valeu-

-se do conteúdo fático fi xado pelo TJSP no sentido de que, mesmo expurgando

do cálculo das verbas de caráter continuado, ainda assim comprovou-se uma

variação de 39% na indisponibilidade de caixa, realizando-se despesas com

comprometimento do equilíbrio fi scal do Município. O malferimento da

probidade, portanto, consistiu na conduta dolosa, livre e consciente, de contrair

despesas em nome da Administração Pública no período considerado suspeito,

sem sufi ciente disposição de caixa.

O julgamento da Apelação Cível n. 700651375645 pelo TJRS igualmente

foi capaz de contribuir como prática jurisprudencial para a melhor aplicação da

improbidade administrativa fi scal, com base no art. 11 da Lei n. 8.429/92. O réu

argumentou no sentido de não haver improbidade administrativa porque a mera

inscrição de restos a pagar sem a correspondente disponibilidade de caixa, por

si só, não caracteriza improbidade administrativa, pois agiu com boa-fé e com a

fi nalidade de atender o interesse público. Ademais, mencionou-se a presença de

grave crise econômica, agravando a situação fi scal do Município e, por fi m, as

despesas realizadas referem-se a serviços necessários para o bom andamento da

máquina administrativa.

No entanto, a melhor concepção, na linha da teoria hermenêutica aqui

adotada, foi a preponderante na decisão judicial, pois capaz de relacionar

hermeneuticamente os fatos com a integridade e coerência da jurisprudência

do STJ e dos princípios da boa administração fi scal da Lei Complementar

n. 101/2000. A questão da crise fi nanceira, conforme consta no acórdão, pelo

contrário, reafi rma a necessidade de olhar com extremo cuidado se o agente

público agiu para dar efetividade à prudência fi scal, ao necessário cuidado

com a assunção de despesas públicas. Aqui há relevante aspecto em termos

probatórios. O período mencionado no art. 42 caracteriza-se como suspeito, mas

o que tal indicação signifi ca? É obvio não ter a potencialidade de impor imediata

condenação por ato de improbidade administrativa, mas um ônus maior de

121

O dever de boa Administração Pública e as despesas no final do mandato: perspectivas hermenêuticas da improbidade fiscal

argumentação e justifi cação para o agente público, consistente na explicitação

das razões fáticas pelas quais realizou cada uma das despesas, mas, repita-se, se

realmente essa for a linha de argumentação para excluir a tipicidade e houver

disponibilidade de tais dados, considerando que por vezes em virtude da omissão

do próprio Poder Executivo de fornecer dados para as Cortes de Contas, a

apuração de indisponibilidade refere-se aos empenhos e respectivos valores de

modo geral.

A relevância do precedente também passa pelo debate argumentativo

realizado sobre a não aceitação de cada uma das justifi cativas apresentadas

para a assunção das despesas e o exame das circunstâncias em tese e, no caso

concreto, de exclusão da tipicidade, de modo específi co em relação à indicação

subjetiva da conduta do agente público. Houve o seguinte argumento, capaz de

manter integridade e coerência com a prática doutrinária e jurisprudencial da

improbidade administrativa fi scal do art. 42:

Daí que, na interpretação desta regra, devem ser levadas em conta

situações extraordinárias decorrentes de fatos imprevisíveis ou

previsíveis mas de consequências incalculáveis que precisam de pronta

resposta pela Administração Pública. Assim, a proibição de novas

despesas por indisponibilidade de caixa não impede a assunção de

dívidas para atender às necessidades públicas decorrentes de (a) situação

excepcional em razão de urgência ou calamidade ou (b) necessidade

premente para garantir o funcionamento das atividades essenciais da

máquina administrativa.

A decisão proferida nos EI n. 70062555792 seguiu a linha do entendimento

até aqui exposto, destacando a necessidade de confi gurar o dolo, ainda que

genérico, para permitir a condenação por ato de improbidade administrativa

fi scal, considerando a existência de notifi cação do próprio TCE relativamente

ao período anterior, inexistindo comprovação de circunstâncias excepcionais ou

emergenciais capazes de justifi carem o empenho de gastos ou novas obrigações,

materializando-se no julgado a aplicação do art. 11, caput, por violação do dever

de legalidade e do inc. I, da Lei n. 8.429/92, cuja conduta do agente público

foi de praticar ato visando a fi m proibido em lei ou diverso daquele previsto na

regra de competência. É relevante atentar para a concepção de boa administração

122

Leonel Pires Ohlweiler

fi scal utilizada para caracterizar a indicação de desvio de fi nalidade, pois, como

aludido, o contributo de Maurice Hauriou25 é útil ainda hoje para compreender o

alcance de dispositivos como o do art. 42 da LRF.

Importante ainda mencionar as indicações contidas no julgado sobre as

dimensões objetiva e subjetiva da tipicidade da improbidade administrativa fi scal,

marcada pela ideia de o conjunto global das despesas assumidas, dentro do marco

temporal previsto no citado dispositivo, orientar a compreensão da conduta do

agente público. Ademais, a comprovação por exame técnico realizado pelo TCE

de que a despesa pública contraída não possa ser cumprida integralmente nos dois

últimos quadrimestres do mandato ou com parcelas a serem pagas no exercício

seguinte, sem haver sufi ciente disponibilidade de caixa. Sobre o elemento subjetivo

prevaleceu o argumento da comprovação de vontade livre e consciente dirigida

ao resultado ilícito de contrair obrigação de despesa, nas condições mencionadas,

sempre a partir do aludido sobre a impossibilidade de ingressar na esfera de

subjetividade do agente público, salvo as raras hipóteses de confi ssão, construindo-

-se a melhor concepção de dolo, ainda que eventual, com os indícios formais de

conduta capazes de permitir a construção hermenêutica de um propósito, qual

seja, violação dos princípios do ethos constitucional de boa administração pública,

no caso, prudência e probidade fi scais.

CONCLUSÃO

O art. 42 da Lei Complementar n. 101/2000, desde sua edição, provocou

debates, especialmente em virtude da possibilidade de o descumprimento ensejar

a prática de ato de improbidade administrativa fi scal, por força da combinação

do art. 73 com a Lei n. 8.429/92. Pesquisa realizada na jurisprudência do

Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande

do Sul permite a conclusão de não haver quantitativamente um grande número

25 – É claro que atualmente surgiram novos temas circundando a questão da boa administração, como a

governança, ultrapassando-se a compreensão inicial vinculada aos problemas econômicos e aspectos de

operacionalização para destacar a necessidade de prevalência do bem comum sobre interesses pessoais

nos processos de gestão e decisões públicas, assumindo relevância o exercício das competências

administrativas por meio da accountability, isto é, “o termo accountability pode ser aceito como o conjunto

de mecanismos e procedimento que levam os decisores governamentais a prestar contas dos resultados

de suas ações, garantindo-se maior transparência e exposição pública de políticas públicas.” (MATIAS-

-PEREIRA, José. Governança no Setor Público. São Paulo: Atlas S. A., 2010, p. 25 e 110.)

123

O dever de boa Administração Pública e as despesas no final do mandato: perspectivas hermenêuticas da improbidade fiscal

de julgados. Fundamentalmente nas decisões examinadas, os Tribunais de Contas

desempenham papel crucial para o devido controle sobre a gestão das obrigações

de despesas e os problemas de insufi ciência de caixa, além do Ministério Público

na propositura das ações civis públicas.

Para a melhor aplicação do dispositivo inicialmente referido, urge

vislumbrar que a Lei de Responsabilidade Fiscal não foi erigida no vácuo, mas

no contexto da relevância constitucional do art. 169, § 9º, II, e art. 70, ambos

da Constituição Federal, institucionalizando o controle de legitimidade dos

orçamentos públicos.

Corolário, a gestão das obrigações de despesa em fi nal de mandato não se

encontra na esfera de disponibilidade dos agentes públicos, mas deve orientar-se

pela indicação hermenêutica da moralidade administrativa, com suas devidas

materializações no horizonte de sentido da responsabilidade fi scal.

A discussão aqui proposta, portanto, em última análise voltou-se para o

debate sobre qual a melhor concepção de moralidade em relação aos orçamentos

públicos? Surge como indicativo o dever de boa administração pública,

compreendido como a Administração Pública agindo na gestão das obrigações

de pagamento e das disponibilidades de caixa em fi nal de mandato com base na

transparência, motivação, imparcialidade e plena responsabilidade.

A unidade hermenêutica do art. 42 da LRF importa para o agente público a

necessidade de exercer as competências administrativas fundado na responsividade,

conforme indicado no art. 1º, § 1º, do diploma legal, destacando-se os deveres de

prudência e probidade fi scais. As decisões examinadas ao longo deste breve estudo

comprovam que, em virtude de quadros de crises econômicas e fi scais, redobra-se

a relevância de o administrador público agir conforme o ethos constitucional na

administração dos recursos públicos, operando com especial moderação e extremo

cuidado, evitando os riscos de assumir obrigações especialmente no período fi nal

de mandato. Trata-se não apenas de obrigação relacionada com o modo como o

agente público deve comportar-se na sua atividade funcional, mas de como deve

tratar os interesses da própria coletividade.

Violar o art. 42 importa desconsiderar as referências de ação pública

planejada e transparente.

A improbidade administrativa fi scal, confi gurada a partir do art. 11 da Lei

n. 8.429/92, situa-se no campo da má gestão pública e caracteriza-se como conceito

interpretativo, exigindo por parte do intérprete a devida justifi cação, cuja decisão

constitucionalmente legítima será aquela capaz de integrar-se na rede complexa

124

Leonel Pires Ohlweiler

dos princípios da probidade e prudência fi scal, salvaguardando a integridade e a

coerência das práticas jurídicas doutrinárias e jurisprudenciais.

Por meio do exame das indicações tipifi cadoras da improbidade

administrativa fi scal, conclui-se pela necessidade de comprovar que o agente

público, de forma livre e consciente, nos dois últimos quadrimestres do seu

mandato, contraiu obrigação de despesa que não possa ser cumprida integralmente

dentro dele, ou tenha parcelas a serem pagas no exercício seguinte, sabendo ou

devendo saber sobre a inexistência de sufi ciente disponibilidade de caixa, violando

os princípios da Administração Pública e, de modo específi co, a prudência e

probidade fi scais, sem causar dano ao erário ou haver enriquecimento ilícito, bem

como olvidando de forma grave deveres do cargo público ou os fi ns visados pela

gestão pública fi scal.

REFERÊNCIAS

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125

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TORRES, Ricardo Lobo. O Orçamento na Constituição. Rio de Janeiro:

Renovar, 1995.

CONTROLE PENAL DA CORRUPÇÃO – DISPENSA OU

INEXIGIBILIDADE DE LICITAÇÃO, COM APROPRIAÇÃO

OU DESVIO DE RENDAS PÚBLICAS – ESTUDO DE CASO

Mauro Borba1

INTRODUÇÃO

A corrupção é hoje um tema central para todos os que se preocupam com os

destinos das democracias ocidentais. A história recente brasileira, principalmente

depois da Constituição de 1988, mostra que a redemocratização do País tornou

visíveis fatos que antes não chegavam ao conhecimento da população, mas não

impediu que o fenômeno se repetisse. Os escândalos do governo Collor, passando

pelos governos Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma

Rousseff e Temer evidenciam que a corrupção não é um acontecimento marginal

na vida pública (AVRITZER, 2012).

Casos de corrupção que envolvem políticos e pessoas públicas no nível federal

e nas grandes cidades são os que têm a atenção da mídia e que estão na lembrança

popular; mas há uma corrupção cotidiana, quase silenciosa, mas não menos

deletéria, porque revela sua naturalização como forma de governar/administrar, que

é a corrupção que acontece nas pequenas (e médias) cidades do interior.

O presente trabalho objetiva tratar desse tema, a partir de um caso concreto

decidido pela 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande

do Sul. Para tanto analisará a corrupção como fenômeno multifacetário, global e

local, seguindo a exposição do caso judicial e sua solução.

1 – Juiz em Porto Alegre, Doutor (UFRGS) e Mestre em Direito (UFSC/UNISC).

128

Mauro Borba

A CORRUPÇÃO COMO FENÔMENO MULTIFACETÁRIO E GLOBAL

O que vemos e lemos na mídia sobre corrupção é, quase sempre, enganoso.

Não porque as notícias envolvem desproporcionalmente este ou aquele partido, mas

porque narrativas jornalísticas simplifi cam a realidade de uma maneira extrema,

bem mais danosa do que se costuma imaginar. Há um recorte linear da realidade,

como se todos os personagens fossem “planos”, com um único atributo: ser ou não

ser corrupto, participar ou não de atos corruptos. A narrativa jornalística não deixa

espaço para a complexidade. No jornal não tem espaço para a corrupção como ela

é: um fenômeno multifacetado (BARROS FILHO e PRAÇA, 2014).

A corrupção em termos de delimitação conceitual afi gura-se como um

fenômeno de múltiplos fundamentos e nexos causais, tratada por diversos campos

do conhecimento (fi losofi a, ciência política, economia, sociologia, antropologia,

ciências jurídicas, etc.), não sendo de fácil compreensão e defi nição.

Não há na tradição do pensamento político ocidental consenso sobre o que

vem a ser a corrupção, não se podendo falar de uma Teoria Política da Corrupção

madura e já constituída, existindo tão somente diferentes abordagens do tema,

a partir de determinados marcos teóricos e fi losófi cos específi cos (BIGNOTTO,

2011, p. 31).

Há quem sustente a corrupção como indutora do crescimento econômico

e importante mecanismo de distribuição de renda (Delfi m Neto, citado por

MONTORO FILHO, 2012).

Renato Janine Ribeiro (2000) observa que:

(...) não há corrupção sem uma cultura de corrupção, pois tal fenômeno

demanda o endosso, mesmo que tácito, do seu entorno, com níveis de

aceitação social e institucional. E mais, esta cultura cresce nos costumes

que a reproduzem, os quais, por sua vez, têm natureza política destacada.

(RIBEIRO, 2000, p. 167)

Lembra ainda Janine (2000) que:

(...) os costumes funcionam como cimento da obediência, como linguagem

comum pela qual nos entendemos, pela qual constituímos nossa coisa

pública, no caso republicano, ou nossa contrafação da república, quando

a corrupção se generaliza. (Idem)

129

Controle penal da corrupção – dispensa ou inexigibilidade de licitação, com apropriação ou desvio de rendas públicas – estudo de caso

A corrupção não pode ser atribuída a uma época ou a um sistema econômico

ou político. Em qualquer momento histórico e em qualquer situação, ela pode

manifestar-se e invariavelmente o faz com sérias consequências para a sociedade

em geral e, também, para o indivíduo em particular.

Um estudo feito pela Federação das Indústrias de São Paulo – FIESP (2010)

indica que o custo da corrupção no Brasil fi ca entre R$ 41,5 e R$ 69,1 bilhões por

ano, montante que representa entre 1,38 a 2,3% do Produto Interno Bruto (PIB).

O dinheiro desviado poderia construir moradias para mais de 2,9 milhões de famílias,

levar saneamento básico a mais de 23,3 milhões de domicílios, passar de 34,5 milhões

para 51 milhões o número de estudantes matriculados na rede pública do ensino

fundamental, aumentar a quantidade de leitos para internação nos hospitais públicos,

entre outros investimentos de estrutura e qualidade de vida da sociedade brasileira.

No Brasil, os casos de corrupção remontam ao período colonial e vão se

apagando da memória ao longo do tempo. Os mais recentes tomam o lugar dos mais

antigos, numa sucessão que parece interminável. “Nunca se roubou tanto nesse País”

é uma frase de senso comum ouvida e repetida em diversos momentos da história.

Nas últimas décadas, dois fatores contribuíram para ampliar essa impressão:

a multiplicação das fontes de informação e o controle mais rigoroso da máquina

pública. Casos que, em outros tempos, difi cilmente viriam à tona, ganharam

projeção. Assim, torna-se quase impossível comparar o grau de corrupção em

diferentes momentos no País, mas alguns mais recentes tornaram-se emblemáticos

por força dos personagens e valores envolvidos, como o caso Capemi2, o caso

Banestado3 e a famosa operação Sanguessuga4.

2 – Escândalo de corrupção de 1983, no qual a Capemi, seguradora de vida e previdência, decidiu

se aventurar na Amazônia e desmatar área que seria inundada para a construção da usina Tucuruí

no Pará. Entrou em concorrência pública com um capital de Cr$ 50 milhões de cruzeiros, apesar do

edital exigir um capital mínimo de Cr$ 500 milhões. Contraiu empréstimos no exterior, não cumpriu

acordos com credores e ainda assim conseguiu que a dívida fosse salva pelo Banco Nacional de Crédito

Cooperativo – BNCC, subordinado ao Ministério da Agricultura, havendo fortes suspeitas de desvio de

recursos públicos, até hoje não comprovados.

3 – O caso ganhou notoriedade por envolver a soma aproximada de R$ 150 bilhões e tendo como um dos

envolvidos o então presidente do Banco Central, Gustavo Franco. Tal caso teve origem a partir de uma

portaria de Franco, permitindo que cinco agências bancárias em Foz do Iguaçu, no Paraná, recebessem

depósitos sem identifi cação do depositante, o que permitia a estrangeiros e residentes fora do País

transformar real em dólar. As agências eram dos bancos Real, Banestado, Bemge e Banco do Brasil.

4 – Revelou o esquema da venda irregular de ambulâncias, realizada em, pelo menos, onze Estados brasileiros.

130

Mauro Borba

Casos de corrupção sucedem-se atualizando aquele senso comum. Da

grande mídia à chamada opinião pública, passando por importantes tradições

intelectuais, vigora o entendimento de que o alto nível de corrupção endêmica no

Brasil, que goza de impunidade praticamente absoluta, é irremediável; herança

de nossa formação como colônia escravocrata de um Portugal em que sempre

vigoraram privilégios da burocracia estatal.

(...) Advindos desde além-mar, os colonizadores foram se instalando

como “amigos” e “familiares” amistosos, efeito que terminou por

produzir confusões entre a esfera pública e a privada, entre a ideia de

família e de Estado. (OLIVEIRA JÚNIOR, 2015, p. 80)

O que pode levar um político não colonizador a legislar contra seu próprio

país, fomentando o endividamento público e o défi cit externo? Que interesses estão

por trás de decisões que destroem a indústria, a agricultura e a pesca, exterminam

empregos e obrigam a importação de bens, cuja manufatura ou construção devia

ser estimulada no próprio país? Que interesses motivam o estrangulamento da

economia, quando o que deveria prevalecer é o seu revigoramento? Que interesses

regem as decisões de políticos – empregados – que determinam o desemprego de

seus concidadãos?

As respostas a essas perguntas deságuam nos procedimentos antiéticos e nas

práticas incompetentes e negligentes que abrem as portas à corrupção em todos

os continentes. Até há bem pouco tempo, o suborno pago por empresas de alguns

países europeus a governos estrangeiros era contabilizado como despesa dedutível

para fi ns tributários.

Deve-se ter presente também que o fenômeno não é exclusivamente

brasileiro. A corrupção ocorre com maior ou menor frequência ou reconhecimento

na grande maioria dos países.

Na culta Itália, com toda a sua experiência milenar, o notório Silvio Berlusconi

é sabidamente tão ou mais corrupto que as nossas maiores expressões nessa área. Na

Espanha, o próprio genro do rei está envolvido em falcatruas; no Japão pululam os

políticos corruptos bilionários e um ou outro só sente vergonha disso quando tudo

vem a público, o que o leva ao suicídio. Na Holanda, a própria família real, a Casa

Orange, esteve envolvida em negociatas com a Boeing, só para citar alguns.

Os atos de corrupção são partes constitutivas do desrespeito generalizado

que há na sociedade com o bem público, que perpassam os agentes privados e

131

Controle penal da corrupção – dispensa ou inexigibilidade de licitação, com apropriação ou desvio de rendas públicas – estudo de caso

públicos e vão desde pequenos atos de desobediência até desvios de vultosas somas

de recursos públicos.

É, pois, um fenômeno generalizado. Mas por outro lado, não se pode dizer

que toda a sociedade é corrupta, ou mesmo que a maioria das pessoas é corrupta;

na verdade é certo que a maioria dos cidadãos e cidadãs não é corrupta. Só por

isso, já se tem presente que a corrupção é um fenômeno de difícil combate, o que,

no entanto, não deve ser motivo para que se refreie esse mister.

A CORRUPÇÃO COMO FENÔMENO LOCAL. A PRÁTICA QUE A

NATURALIZA

A corrupção, já se disse, é um fenômeno mundial e atemporal.

É pressuposto de bom funcionamento da sociedade e, por conseguinte, da

democracia, a existência de altos índices de confi ança nas suas instituições; confi ança

essa que representa um valor cívico, ético e moral que aumenta consideravelmente

a qualidade democrática das relações impessoais, interinstitucionais e políticas

em geral. A corrupção tem um efeito deletério sobre essa necessária confi ança,

deslegitimando o Estado e por efeito enfraquecendo a democracia.

Ela atinge diretamente o indivíduo e por consequência os Direitos Humanos

Fundamentais, quando recursos, por exemplo, da saúde e/ou educação, são

desviados para outros fi ns.

Em que pese à profusão de situações corruptivas no País em geral, apesar de

os eventos que envolvem políticos e pessoas públicas no nível federal e nas grandes

cidades serem os que mais tempo ocupam na mídia e, por isso, os que estão mais

presentes na memória popular, é a corrupção cotidiana das pequenas (e médias)

cidades, que é a mais reveladora de um fenômeno ainda mais perverso para a

democracia como um todo e para o indivíduo no particular: a sua naturalização

como forma de governar/administrar (PINTO, 2011).

Segundo dados do Ipea, os Municípios pequenos e médios, com menos de

450 mil habitantes, que representam 92% dos Municípios brasileiros, desviam para

a corrupção cerca de 10% das verbas federais5.

5 – Segundo levantamento feito por Cláudio Ferraz, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada –

Ipea e Frederico Fenan, da Universidade da Califórnia em Los Angeles – UCLA, Estados Unidos,

o Brasil deixa de gerar R$ 1,5 bilhão por ano por causa da corrupção. O trabalho de Ferraz e Fenan,

que tem como objetivo avaliar os efeitos eleitorais da corrupção – e deu origem a dois estudos –,

132

Mauro Borba

Corroboram esses dados notícias que dão conta da generalização dos atos

de corrupção dos Municípios. Dados de 2008 mostram que, nos últimos cinco

anos, pelo menos R$ 70,3 milhões destinados a ações relacionadas a atividades

específi cas da área da saúde, defi nidas na lei e nos contratos com os Municípios,

perderam-se em gastos como os citados acima6.

Em reportagem da série “Sangria na Saúde”, os jornais Correio Brasiliense

e o Estado de Minas apresentaram desvios na aplicação da verba para a saúde

dos brasileiros. Nos 1.341 relatórios produzidos nos últimos cinco anos pela

Controladoria-Geral da União – CGU, são citados 1.105 episódios em que

prefeitos lançaram mão de recursos públicos para pagar despesas de outra

natureza7.

No Estado do Maranhão, segundo informações coletadas na Procuradoria-

-Geral de Justiça, no início do ano 2008, 53% dos prefeitos estavam sendo

baseou-se numa amostra de 493 Municípios com menos de 450 mil habitantes abordados pelo Programa

de Fiscalização a partir de sorteios públicos, lançado em 2003 pela Controladoria-Geral da União –

CGU. O programa consiste em sorteios periódicos, aproximadamente a cada dois meses, de cerca de

60 Municípios, que então recebem uma fi scalização especial. O trabalho nota que as transferências

federais para os Municípios são cerca de R$ 35 bilhões por ano, mas por questões estatísticas não é

possível determinar o valor total desviado. O resultado indica, porém, que uma fração relevante vai

para o bolso dos corruptos. A pesquisa de Ferraz e Fenan integra uma nova tendência de abordagem

econômica do problema da corrupção. É uma área relativamente nova, mesmo no cenário internacional.

“Os economistas estão tentando entender não só as causas da corrupção, mas as consequências, como a redução do

crescimento e do investimento privados”, explica Ferraz. Outro especialista no tema é o economista André

Carraro, da Universidade Federal de Pelotas – RS. Em um trabalho com colegas, ele usou um modelo de

equilíbrio geral para investigar a corrupção e chegou a um valor de 11,36% do PIB em 1998. O objetivo

da pesquisa eram avaliações de impacto sobre o crescimento – disponível em www.ipea.gov.br e citado

por PINTO, ob. cit. 2011, 171).

6 – Os gastos a que a notícia se refere são os seguintes: marmitas, adega, televisão, pousada, tai chi

chuan, cartão de natal, folder, cachê de banda, pensão alimentícia, persianas, abadá, colchões, portas,

salário do secretário de saúde, aluguel, bar, ioga, consultoria, gasolina, celular, acupuntura, óculos,

curso de relaxamento, cortina, taxa de licenciamento, CD player, balões coloridos, salão de beleza, tarifa

de cheque especial, ar-condicionado, videocassete, enfeite natalino, colchões, suco de frutas, ração,

notebook, funerária, conta de luz, camisetas, verduras, fechadura, xerox, gratifi cação para secretária, pão

de queijo, internet, ventilador, tratamento de piscina, presentes, chocolate e multa de carro (CORREIO

BRAZILIENSE, 28-08-2008).

7 – CORREIO BRASILIENSE, 28-08-2008, exemplifi ca gastos como cobrir buracos no orçamento e

pagar ações diferentes de conveniadas.

133

Controle penal da corrupção – dispensa ou inexigibilidade de licitação, com apropriação ou desvio de rendas públicas – estudo de caso

processados8. Os atos de corrupção vão desde má administração por simples falta

de competência até a profi ssionalização em desvio de verbas.

A corrupção que acontece no âmbito do poder municipal, principalmente

nas pequenas cidades, é particularmente importante, porque é ali que a corrupção

encontra sua forma mais deletéria, a sua naturalização; porque ali a população,

principalmente nas cidades mais pobres, não dispõe de canais de reconhecimento

e defesa de seus interesses, o que permite que a corrupção se estenda como uma

malha, que atue como uma força viva que conta com uma certa complacência da

população.

Segundo ARANTES9 em pesquisa feita sobre o Ministério Público de São

Paulo, há uma convivência mais ou menos pacífi ca entre a população e a corrupção

dos agentes políticos:

“... a prática de corrupção por funcionários públicos é coisa antiga. Dela

se diz até institucionalizada, o que pareceria um contrassenso não o fato

de a expressão indicar que, de fato, as práticas de concussão, peculato,

extorsão etc., realizadas por funcionários públicos da prefeitura há tanto

tempo, já foram incorporadas pela sociedade à sua folha de ‘custos de

transação econômica e política’...”

Embora reconhecendo que há uma relação assimétrica entre os funcionários

e a população e que esta é, de certa forma, refém, Arantes conclui seu raciocínio:

“... mesmo a idéia de refém poderia ser esticada até o ponto em que,

para os particulares, em alguns casos, pode ser mais vantajoso conviver

com a corrupção na esfera pública do que exigir o cumprimento

estrito da legalidade e aí estaríamos falando em um sistema de

solidariedade”.

O enfrentamento dessa situação passa, necessariamente, por uma maior

conscientização da sociedade, seja em relação à adoção de padrões éticos no âmbito

da Administração Pública, seja em relação aos mecanismos de caráter normativo

existentes para combate.

8 – Jornal O ESTADO DO MARANHÃO, 13-06-2008.

9 – Rogério Arantes, Ministério Público e Corrupção Política em São Paulo, in SADEK, Maria Tereza (Org.).

“Justiça e Cidadania no Brasil”, São Paulo: Editora Sumaré, 2000, p. 68-69.

134

Mauro Borba

Dados os limites e objetivos deste trabalho, o foco, a seguir, restringir-se-á

a análise de estudo de caso com base em julgamento da 4ª Câmara Criminal do

Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em que, de passagem, será visto um dos

marcos normativos penais de controle da corrupção no âmbito dos julgados deste

Tribunal.

SÍNTESE DO CASO CONCRETO

O caso judicial10 em concreto, que vai servir de análise para este trabalho,

diz respeito aos fatos ocorridos entre 2009 e 2011 no Município de Travesseiros,

interior do Rio Grande do Sul, onde o prefeito municipal e a secretária de saúde

foram denunciados como incursos nas sanções do art. 89, caput, da Lei n. 8.666/93

(dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei), e do art.

1º, inc. I, do Decreto-Lei n. 201/67 (apropriar-se de bens ou rendas públicas,

ou desviá-los em proveito próprio ou alheio); porque dispensaram licitação

fora das hipóteses previstas em lei, ao adquirirem medicamentos diretamente das

farmácias “J. S. B.” e “G. D. e Cia Ltda.”, de forma fracionada, totalizando, ao fi nal

do triênio 2009/2011, um montante de R$ 519.998,10 (quinhentos e dezenove mil

novecentos e noventa e oito reais com dez centavos). Também foram denunciados

como incursos nos mesmos dispositivos legais, art. 89, parágrafo único, da Lei

n. 8.666/93 (na mesma pena incorre aquele que, tendo comprovadamente

concorrido para consumação da ilegalidade, benefi ciou-se da dispensa ou

inexigibilidade ilegal, para celebrar contrato com o Poder Público) e art. 1º, inc. I,

do Decreto-Lei n. 201/67 (apropriar-se de bens ou rendas públicas, ou desviá-los

em proveito próprio ou alheio), tudo na forma dos arts. 29, caput, e 69, caput, ambos

do Código Penal, os proprietários das farmácias benefi ciadas.

Segundo a denúncia, as farmácias, valendo-se dos descontos concedidos aos

munícipes, venderam a sua medicação por valor muito maior do que os preços praticados no

mercado, de forma que o Município de Travesseiro pagou um valor altíssimo pela medicação

adquirida sem licitação junto às farmácias locais, as quais são de propriedade de familiares

do atual e do ex-administrador do Município de Travesseiro.

O Município de Travesseiro, com base na Lei Municipal n. 321/99, foi autorizado

a subsidiar medicamentos à população com descontos iniciais, na ordem de 20 a 30%, que

10 – Processo n. 70047723259, competência originária, 4ª Câmara Criminal, TJRS, julgado em

02-07-2016.

135

Controle penal da corrupção – dispensa ou inexigibilidade de licitação, com apropriação ou desvio de rendas públicas – estudo de caso

poderiam ser adquiridos em qualquer farmácia existente nos Municípios de Nova Bréscia e

Marques de Souza ou em qualquer outra localidade, neste caso com 5% de desconto.

No ano 2002, foi editada a Lei Municipal n. 545/02, estabelecendo desconto de 100%

na medicação adquirida nas farmácias estabelecidas no próprio Município de Travesseiro

para as pessoas com idade superior a 65 anos (medicação de uso contínuo). Tal Lei manteve

os descontos de 20 a 30% para os demais medicamentos.

Nessa época, a única farmácia estabelecida no Município era a “Janete S Both”, de

propriedade da denunciada J. S. B., que é casada com o sobrinho do então Prefeito, G. R. H.,

correligionário do atual Administrador, o denunciado R. R., o qual, aliás, foi Secretário da

Saúde daquela gestão.

No ano 2009, sob a gestão do atual Prefeito, R. R., a Lei Municipal foi novamente

alterada (fl s. 31/31 do Inquérito Policial), passando a conceder descontos ainda maiores, na

ordem de 40, 50 e 100%, na aquisição de medicamentos juntos às farmácias estabelecidas

no Município. A este tempo, além da farmácia da sobrinha do ex-Prefeito (parceiro político

de R. R.), estabeleceu-se no Município a farmácia “G. D. e Cia Ltda.”, de propriedade do

denunciado G. D., sobrinho do Prefeito R.

As únicas duas farmácias estabelecidas no Município eram de familiares próximos

do antigo e do atual Administradores e foram diretamente benefi ciadas pela compra direta,

fracionada e superfaturada de medicamentos.

Valendo-se do desconto fornecido aos munícipes, as farmácias praticavam o máximo

preço previsto na tabela da ANVISA, sendo que o Município de Travesseiro arcava com o

altíssimo custo dos medicamentos, benefi ciando os empresários familiares dos Administradores.

A aquisição dos medicamentos dava-se da seguinte forma: os munícipes, quando

não encontravam a sua disposição remédios da farmácia básica, o que era comum, até de

forma deliberada, dirigiam-se às duas únicas farmácias existentes no Município e faziam um

levantamento do preço do remédio com base na receita médica.

De posse do orçamento, o munícipe retornava ao Posto de Saúde, onde era feita a

análise da quantidade do desconto devido ao cidadão travesseirense, o qual variava, de acordo

com a legislação municipal, entre 40 e 100%, dependendo do caso. No Posto de Saúde, era

expedida a autorização para aquisição do remédio.

O paciente voltava à farmácia e comprava a medicação. Na farmácia, a pessoa

assinava uma planilha de controle, a qual, no fi nal de semana, era encaminhada à Prefeitura.

Quem analisava e aprovava a planilha para ser encaminhada à tesouraria para empenho

e pagamento era a Secretária de Saúde, a denunciada E. C. W. R. O pagamento à farmácia

era feito por meio de depósito na conta-corrente da empresa, precedido de empenho fi rmado pelo

denunciado R. O recurso utilizado para o pagamento era verba arrecadada pelo Município.

136

Mauro Borba

Da análise dos documentos juntados às fl s. 111/232 do Inquérito Policial,

comprovou-se que as farmácias do Município de Travesseiro praticavam o máximo preço

ao consumidor, de maneira que a medicação adquirida de forma direta e fracionada junto

a esses estabelecimentos custou mais cara do que se a mesma medicação fosse adquirida,

por exemplo, no Município de Arroio do Meio. Os descontos aos munícipes eram fi ctícios.

O Município pagou, durante o triênio 2009/2011, valores altíssimos pela medicação adquirida

sem licitação junto às farmácias de propriedade de familiares dos gestores municipais.

DISPENSA E OU INEXIGIBILIDADE DE LICITAÇÃO.

CONDIÇÕES E POSSIBILIDADES

A Licitação, procedimento obrigatório, em regra geral, para as contratações

feitas pelo Poder Público, tem por objetivo assegurar que estas selecionarão

sempre a melhor proposta com as melhores e mais vantajosas condições para a

Administração, salvaguardando, também, o direito à concorrência igualitária entre

os participantes do certame, a publicização dos atos, assegurando a transparência

e probidade do mesmo, etc.

A obrigatoriedade de licitação é, inclusive, mandamento da Magna Carta,

contido no inc. XXI do art. 37, in verbis:

“Art. 37 - A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da

União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios

de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e efi ciência e, também, ao

seguinte:

XXI - Ressalvados os casos especifi cados na legislação, as obras, serviços, compras

e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure

igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam

obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta nos termos

da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualifi cação técnica e econômica

indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.”

O procedimento licitatório, em atendimento ao preceito constitucional, foi

regulamentado por meio da Lei n. 8.666/93, a qual fi xa os critérios norteadores

dos certames.

DI PIETRO (2002) explica que a licitação é o procedimento administrativo

pelo qual o ente político possibilita a todos os interessados, uma vez sujeitados

137

Controle penal da corrupção – dispensa ou inexigibilidade de licitação, com apropriação ou desvio de rendas públicas – estudo de caso

às condições estabelecidas no instrumento convocatório, a possibilidade de

formularem propostas, dentre as quais selecionará e aceitará a mais conveniente

com a celebração do contrato.

PRINCÍPIOS NORTEADORES

Face ao interesse público em jogo, além de bens e direitos de

titularidade alheia, incidem os princípios que regem a Administração Pública:

constitucionalidade, legalidade e transparência. Devem os administradores agirem

de modo a possibilitarem a maior aplicação possível dos princípios norteadores

da Administração Pública que se encontram no caput do art. 37 da Constituição

Federal, ou seja, legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e efi ciência.

Quando se trata de licitações, há uma relação estreita e complementar dos

mencionados princípios.

No aspecto do princípio da legalidade, deve-se explicitar que ao

administrador é vedada a prevalência da sua vontade subjetiva, vez que é dever

cumprir os ditames legais, obedecendo as regras impostas no procedimento e tudo

mais que a lei determinar. “...O princípio da legalidade é talvez o princípio basilar de

toda a atividade administrativa. Signifi ca que o administrador não pode fazer prevalecer

sua vontade pessoal; sua atuação tem que se cingir ao que a lei impõe. Essa limitação do

administrador é que, em última instância, garante os indivíduos contra abusos de conduta e

desvios objetivos” (FILHO, 2008).

Por seu turno, a moralidade exige do administrador uma postura condizente

com os preceitos éticos, observando a honestidade e boa-fé ao lidar com o interesse

público.

A impessoalidade e a igualdade são princípios que indicam que a

Administração Pública não deve dispensar tratamento diferenciado aos

administrados que estejam em igualdade de condições, ou seja, em mesma situação

jurídica.

O princípio da publicidade preceitua a obrigatoriedade de ampla

divulgação que deve girar em torno das licitações. Não obstante seja requisito

indispensável à validade da licitação, também possibilita, inelutavelmente,

melhores condições de contratação para a Administração Pública, já que

há um maior alcance de interessados, gerando, por conseguinte, melhor

competitividade e possibilidade de mais particulares concorrerem do certame

licitatório, se for o caso.

138

Mauro Borba

DISPENSA X INEXIGIBILIDADE

Existem, entretanto, determinadas hipóteses em que, legitimamente,

tais contratos são celebrados diretamente com a Administração Pública, sem

a realização da licitação. Há duas situações distintas em que tal se verifi ca: a

inexigibilidade de licitação ou sua dispensa.

Nos casos em que a lei autoriza a não realização da licitação, diz ser ela

dispensável. A licitação dispensável tem previsão no art. 24 da Lei n. 8.666/93.

Já no que se refere às hipóteses de inexigibilidade, a licitação é inviável, ou seja,

impossível de ser realizada, tendo em vista fatores que impedem a competitividade.

“A diferença básica entre as duas hipóteses está no fato de que, na dispensa, há possibilidade de

competição que justifi que a licitação; de modo que a lei faculta a dispensa, que fi ca inserida na

competência discricionária da Administração. Nos casos de inexigibilidade, não há possibilidade

de competição, porque só existe um objeto ou uma pessoa que atenda às necessidades da

Administração; a licitação é, portanto, inviável”. (DI PIETRO, 2002, p. 310, 320-321).

A dispensa de licitação caracteriza-se pela circunstância de que, em tese,

poderia o procedimento ser realizado, mas que, pela particularidade do caso, decidiu

o legislador não torná-lo obrigatório. Diversamente ocorre na inexigibilidade,

porque aqui sequer é viável a realização do certame.

Vale destacar que a ausência de licitação não isenta da observação de

formalidades prévias, como a consequente celebração do contrato, mas ao

contrário disto devem ser respeitadas, como se licitação tivesse havido. Ausência

de licitação não signifi ca desnecessidade de observar formalidades prévias (tais

como verifi cação da necessidade e conveniência da contratação, disponibilidade,

recursos, etc.). Devem ser observados os princípios fundamentais da atividade

administrativa, buscando selecionar a melhor contratação possível, segundo os

princípios da licitação” (JUSTEN FILHO, 2000).

No tocante à inexigibilidade, a Lei n. 8.666/93 estabelece hipóteses nas

quais, se confi guradas, impõe-se a obrigatoriedade de contratação direta da

Administração Pública com o particular, haja vista a realização do procedimento

licitatório ser materialmente impossível. Com efeito, o art. 25 do referido diploma

legal faz exemplifi cações de hipóteses de inexigibilidade:

“Art. 25. É inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, em especial:

I - para aquisição de materiais, equipamentos, ou gêneros que só possam ser

fornecidos por produtor, empresa ou representante comercial exclusivo, vedada a

preferência de marca, devendo a comprovação de exclusividade ser feita através de

139

Controle penal da corrupção – dispensa ou inexigibilidade de licitação, com apropriação ou desvio de rendas públicas – estudo de caso

atestado fornecido pelo órgão de registro do comércio do local em que se realizaria

a licitação ou a obra ou o serviço, pelo Sindicato, Federação ou Confederação

Patronal, ou, ainda, pelas entidades equivalentes;

II - para a contratação de serviços técnicos enumerados no art. 13 desta Lei, de

natureza singular, com profi ssionais ou empresas de notória especialização, vedada

a inexigibilidade para serviços de publicidade e divulgação;

III - para contratação de profi ssional de qualquer setor artístico, diretamente ou

através de empresário exclusivo, desde que consagrado pela crítica especializada ou

pela opinião pública.”

Estabelecidas tais premissas, impende o retorno ao caso concreto para

encaminhar sua solução.

A SOLUÇÃO DO CASO EM APREÇO

Conforme referido, o Ministério Público atribuiu ao Prefeito do Município

de Travesseiro, à Secretária Municipal de Saúde e a dois empresários do ramo

farmacêutico, ligados ao Partido Progressista – PP, no período de 2009 a 2011, a

conduta de desviar verbas públicas do Município, aproveitando-se de um suposto

desconto em prol dos travesseirenses sobre medicamentos comercializados pelas

duas farmácias privadas da cidade, dispensando licitação indevidamente.

A denúncia foi recebida integralmente pela 4ª Câmara Criminal do Tribunal

de Justiça do Rio Grande do Sul, em competência originária11, em acórdão que

data de 23-09-13 (fl s. 982/990).

11 – Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

Art. 24. Às Câmaras Criminais Separadas compete:

(...)

Parágrafo único – Compete à 4ª Câmara Criminal, preferencialmente, o processo e julgamento dos

Prefeitos Municipais, podendo o Relator delegar atribuições referentes a inquirições e outras diligências

(Assento Regimental n° 02/92 - dispõe sobre a competência para julgamento de Prefeitos Municipais).

Art. 12 da Resolução n. 01/98 do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, dispõe sobre a

composição e competência dos Órgãos do Tribunal de Justiça, conforme redação dada pela Resolução n. 01/06:

“Art. 12. Às Câmaras Criminais serão distribuídos os feitos atinentes à matéria de sua especialização,

assim especifi cada:

(...)

II - À 4ª Câmara:

1 - competência originária para as infrações penais atribuídas a Prefeitos Municipais (Constituição

Federal, art. 29, inciso X).

140

Mauro Borba

O processo tramitou regularmente, com oferecimento de defesas prévias,

inquirição de testemunhas e interrogatórios dos acusados.

Em alegações fi nais, o Ministério Público sustentou (fl s. 1260/1276):

a) o Poder Executivo de Travesseiro, Município que conta com 2.300 habitantes,

direcionou aos estabelecimentos privados recursos públicos que ultrapassaram um

milhão de reais; b) os empresários benefi ciaram-se superfaturando os produtos

farmacêuticos adquiridos (e/ou subsidiados) pelo Poder Executivo, praticando

preços acima dos valores de mercado à época dos fatos, aplicando o preço máximo

ao consumidor (da tabela da ANVISA); c) os gestores públicos sequer fi scalizavam

se havia preferência na aquisição dos fármacos, com os descontos da Lei Municipal,

para os de nome comercial (éticos ou de referência), ou para compra de medicação

genérica (com preço mais acessível), fato que demonstra a intenção de favorecimento

dos comparsas empresários, em afronta à Lei Federal n. 9.787/99; d) a Prefeitura

de Travesseiro gastou verba bem maior do que a necessária para atender a saúde

da população local, visto que, houvesse a realização de licitação, o valor observaria

o preço fabricante (PF) estipulado pela ANVISA; e) os descontos concedidos aos

munícipes eram fi ctícios, favorecendo os comerciantes; f) o exame do conjunto

probatório consubstanciado nos documentos das fl s. 116/240, no Parecer Técnico

das fl s. 551/560, na Revista Guia de Preços (encartada na fl . 1253), no Relatório

de Auditoria do SUS (fl s. 12/23) e na prova oral, conduz à certeza de que ocorreu

lesão patrimonial ao ente local, justamente pela falta de licitação.

Por sua vez, os denunciados assim se manifestaram:

R. R. alegou (fl s. 1289/1296): a) a concessão de subsídio para os cidadãos

vem sendo executada desde 1999, sem nunca antes ter havido o apontamento de

irregularidade, ilegalidade ou mesmo cometimento de crime; b) não se confi gurou o

delito do art. 89 da Lei n. 8.666/93, pois não se tratou da aquisição de medicamentos

sem licitação, mas sim de concessão de benefício fi nanceiro, amparada em lei;

c) o delito do art. 1º, inc. I, do DL n. 201/67 igualmente não restou comprovado,

haja vista que os percentuais destinaram-se à efetiva compra dos fármacos; d) não

houve comprovação do elemento subjetivo, qual seja o dolo; e) não se confundem os

descontos concedidos pelas farmácias aos seus clientes com o programa municipal

de auxílio para a aquisição de medicamentos; f) a compra não era feita diretamente

pelo Erário, que apenas concedia auxílio nos percentuais de 40, 50 ou 100%, e desde

que o remédio não estivesse disponível no estoque municipal; g) não houve intuito

de favorecimento pessoal dos proprietários das drogarias, citando, para tanto, que a

farmácia de seu sobrinho, G. D., vendeu menos para cidadãos com subsídios do que

141

Controle penal da corrupção – dispensa ou inexigibilidade de licitação, com apropriação ou desvio de rendas públicas – estudo de caso

a JM Drogaria, esta de propriedade da codenunciada J. B., casada com o sobrinho

do ex-Prefeito G. e que, por sua vez, é da sua oposição política e partidária; h) não

houve elemento de prova de prejuízo ao Erário, tampouco a indicação de que outras

propostas poderiam ter sido obtidas pela municipalidade; i) requereu a absolvição,

com base no inc. III ou VII do art. 386 do Código de Processo Penal.

J. S. B. disse (fl s. 1299/1306): a) não pode ser responsabilizada pela não

realização de licitação, já que tal obrigação é do gestor público; b) os critérios para

concessão dos descontos igualmente não são de sua responsabilidade, não podendo ser

punida, por estipular a tabela da ANVISA para venda dos medicamentos; c) o projeto

de lei que concedia o benefício passou pelo Conselho Municipal de Saúde, Câmara

de Vereadores e foi amparado por auditores fi scais do Tribunal de Contas, não tendo

sofrido notifi cação por parte do referido órgão e/ou pelo Ministério Público, bem como

não houve medida para questionar a legalidade da lei; d) não se verifi cou a atuação

dolosa da denunciada, tampouco que possuísse infl uência junto à administração para

indicação de seu estabelecimento para fi ns de aquisição de fármacos; e) não recebeu

valores e nem os repassou a qualquer agente público em decorrência de vantagem

auferida com o ato de dispensa de licitação; f) a sua condição econômica revela a

classe média, sendo que seus únicos bens materiais são a casa em que reside, um

veículo e a farmácia provedora do sustento familiar, além disso, está concluindo a

faculdade, custeada por fi nanciamento estudantil; g) postulou a absolvição, com base

no art. 386, inc. VII, do Código de Processo Penal.

E. C. W. R. e G. D. alegaram (fl s. 1311/1315): a) a atipicidade da conduta,

não sendo cabível a licitação para compra de medicamentos, em face do não

conhecimento prévio de quais fármacos seriam utilizados pela população, nos

termos da Lei Municipal n. 321/99; b) a denunciada E., na condição de Secretária da

Saúde, não tinha autoridade sobre a licitação, e o denunciado G, como empresário

e munícipe, não tinha dever de fi scalizar as leis municipais, mas tão somente

de fazer cumpri-las; c) pleitearam a absolvição, com fundamento no art. 386,

inc. III, do Código de Processo Penal.

Ora, O Departamento Nacional de Auditoria do Sistema Único de Saúde

(Auditoria n. 8.183), na verifi cação de aplicação dos recursos fi nanceiros do

Município, emitiu a Constatação n. 28.691 (abrangência 2007/2008), no seguinte

teor (fl s. 17/19):

O Município de Travesseiro fracionou a aquisição de medicamentos, comprando

produtos diretamente das farmácias, utilizando os recursos de contrapartida/EC-29

142

Mauro Borba

acobertados pela Lei Municipal nº 545/2002, que segundo denúncia são de

parentes do Prefeito Municipal.

Evidência: O Município de Travesseiro utilizou recursos da contrapartida

Municipal na aquisição fracionada de medicamentos das farmácias: JANETE S.

BOTH e GUILHERME e DERTZBACHER & CIA LTDA., todas sediadas no

município de Travesseiro. As aquisições efetuadas encontram-se acobertadas pela

Lei Municipal nº 545 de 18 de outubro de 2002.

O Município utilizou o valor total de R$ 313.636,36 (trezentos e treze mil,

seiscentos e trinta e seis reais e trinta e seis centavos) no exercício de 2007, o

valor de R$ 218.246,19 (duzentos e dezoito mil, duzentos e quarenta e seis reais

e dezenove centavos) no período de 01/01 a 31/03/09 na aquisição direta de

medicamentos não básicos sem a observância dos procedimentos de licitação

previstos na Lei nº 8.666/93 e na Lei nº 10.520/2002. Convém destacar que a

Lei Municipal nº 545 não pode ser contrária as Leis das licitações nº 8.666/93

e 10.520/2002, muito pelo contrário deve observar os preceitos emanados pelas

leis federais.

[...] Recomendação: Não contratar com empresas cujos sócios sejam parentes de

funcionários ligados a Administração Pública. Realizar licitação para aquisição

de medicamentos e outros, visando atender a legislação (Lei nº 8.666/93, Lei

nº 10.520/2002 e Art. 37 da CF/88).

A Administração Pública tem o dever de pautar a sua gestão pelo

planejamento, pela coordenação, pela organização das suas atividades meio e

fi ns. A lei está a exigir isso. E, quando o faz, tem que constituir, ao longo do

tempo, uma projeção de despesas e gastos. Daí a possibilidade de ela buscar o

melhor preço para atender o interesse público em suas atividades corriqueiras –

aquelas demandas que lhes são ordinárias, que não se caracterizam de caráter

eventual. Por isso, a lei exige dela, sim, inclusive com cominação de sanções,

que estabeleça essa programação, essa organização, essa gestão coordenada de

receita e de despesa.

A Lei n. 321/99 autorizou o Poder Executivo de Travesseiro a subsidiar

medicamentos à população, com descontos iniciais de 20 e 30% para as compras

efetivadas no Município, dependendo da necessidade do paciente, se eventual ou

contínua. Com a Lei n. 545/02, instituiu-se desconto de 100% para a medicação

adquirida no Município às pessoas com idade de 65 anos ou mais e que dela

necessitassem continuamente, mantendo os demais percentuais. Nesta época, a

143

Controle penal da corrupção – dispensa ou inexigibilidade de licitação, com apropriação ou desvio de rendas públicas – estudo de caso

única farmácia lá estabelecida era a “J. S. B.”12, de propriedade da codenunciada

J., casada com o sobrinho do então Prefeito Municipal, G. R. H. (fl s. 714/725).

Na gestão do codenunciado R. R., a legislação foi novamente alterada,

tendo ele sancionado a Lei n. 37/0913, para conceder descontos ainda maiores

para os fármacos adquiridos no Município, em 40, 50 e 100%, limitado o valor do

subsídio a R$ 300,00 (trezentos reais) mensais por inscrição (fl . 38).

Quando da edição dessa última normativa, além da farmácia de Janete,

também lá se instalara a farmácia “G. D. e Cia Ltda.”14, propriedade do coacusado

G., sobrinho do atual Prefeito.

A legislação municipal ao autorizar o Poder Executivo a subsidiar

medicamentos adquiridos pelos travesseirenses detém conotação de assistência

social. Todavia, essa política pública não pode ser executada ao arrepio da Lei

de Licitações, que visa justamente a preservar o patrimônio público na busca da

proposta mais vantajosa à Administração.

As provas dos autos demonstram que, no período referido na denúncia

(2009 a 2011), realizou-se licitação tão somente para a compra dos medicamentos

integrantes da lista básica do Município, com aplicação de recursos federais:

Pregões Eletrônicos n. 1/2009, 1/2010 e 1/2011, do tipo menor preço por lote,

para aquisição de medicamentos (fl s. 380/396, 409/425 e 435/450), cujas despesas

foram cobertas por recursos orçamentários consignados na Lei Orçamentária Anual,

formado pelo Fundo Municipal de Saúde, PAB, Farmácia Básica, Municipalização

Solidária, Epidemiologia, Vigilância Sanitária e outros decorrentes de repasses do

Governo Federal e Estadual com fi ns específi cos.

Os demais fármacos necessitados pela população foram adquiridos no comércio

local e subsidiados pelo Poder Público em até 100%, dependendo da necessidade

do paciente e da sua idade. As planilhas de controle interno indicam a listagem dos

munícipes benefi ciados, data da retirada, percentual do subsídio, número da autorização,

número da carteira de saúde e, fi nalmente, a assinatura do benefi ciário (fl s. 747/917).

O sistema de subsídios não pressupunha carência fi nanceira e, tampouco,

havia deliberação pela compra do fármaco pelo melhor preço, em sua forma

genérica ou similar, fi cando a cargo do munícipe dirigir-se à farmácia de sua

preferência, para lá comprar o medicamento.

12 – A empresa obteve registro junto à Receita Federal, em 24-11-2000 (fl . 561).

13 – A Lei entrou em vigor na data da sua publicação – em 09-06-2009.

14 – Guilherme obteve o registro, perante a Junta Federal, em 31-10-2005 (fl . 556).

144

Mauro Borba

Note-se que, com tal procedimento, a aquisição por parte do Município

foi feita de forma direta, sem a realização de procedimento licitatório. Ainda que

as defesas aleguem não era o ente municipal que adquiria o fármaco, inequívoco

que, ao abster-se de comprar a medicação necessária para a farmácia básica do

Município e ao subsidiar até 100% de medicamentos adquiridos, exclusivamente,

nas duas farmácias já nominadas, era o Município, sim, que adquiria os fármacos,

de forma direta.

Desse modo houve burla ao processo licitatório, e os preços praticados

causaram prejuízo à Administração, uma vez que, em se tratando da venda

destinada a entes da administração pública direta e indireta, o preço máximo a ser

aplicado era o Preço Fabricante (PF), de acordo com a Resolução CMED n. 03,

de 04-05-09, disposta no Guia da Farmácia (fl s. 920 e 1.253), ou seja, de ciência

inequívoca dos empresários réus, in verbis:

CÂMARA DE REGULAÇÃO DO MERCADO DE MEDICAMENTOS

CONSELHO DE MINISTROS RESOLUÇÃO nº. 3, de 4 de maio de 2009

Proíbe a aplicação de Preço Máximo ao Consumidor – PMC a medicamentos de

uso restrito a hospitais.

A Secretaria-Executiva faz saber que O CONSELHO DE MINISTROS da

CÂMARA DE REGULAÇÃO DO MERCADO DE MEDICAMENTOS -

CMED, no uso das competências atribuídas pelos incisos I, II, V, VIII e XIII do

art. 6º da Lei nº. 10.742, de 2003, e na observância da Orientação Interpretativa

nº. 2, de 13 de novembro de 2006, aprovou a seguinte RESOLUÇÃO:

Art. 1º Preço Fabricante - PF é o teto de preço pelo qual um laboratório ou

distribuidor de medicamentos pode comercializar no mercado brasileiro um

medicamento que produz.

Art. 2º Preço Máximo ao Consumidor – PMC é o teto de preço a ser praticado pelo

comércio varejista, ou seja, farmácias e drogarias.

Parágrafo único. As farmácias e drogarias, quando realizarem vendas destinadas a

entes da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito

Federal e dos Municípios, deverão praticar o teto de preços do Preço Fabricante –

PF, de que trata o artigo 1º.

Art. 3º Fica proibida a publicação de Preço Máximo ao Consumidor – PMC, em

qualquer meio de divulgação, para medicamentos cujo registro defi na ser o mesmo

“de uso restrito a hospitais e clínicas”.

Art. 4º Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação.

145

Controle penal da corrupção – dispensa ou inexigibilidade de licitação, com apropriação ou desvio de rendas públicas – estudo de caso

Como visto, os valores pagos pelos medicamentos, a maior pela

Administração, revela o dano causado ao ente federado pela dispensa fora das

hipóteses legais, estando o prejuízo aos cofres públicos devidamente descrito na

denúncia. Nesses termos, cumprem-se os requisitos para tipifi cação da conduta, não

havendo apenas a contratação despida de disputa pública, mas também a vontade

livre e consciente (dolo) de lesar o Erário, consistente na intenção de produzir um

prejuízo aos cofres públicos por meio do afastamento indevido da licitação.

Este é o entendimento proclamado pelo Excelso STF:

Ação Penal. Ex-prefeito municipal. Atual deputado federal. Dispensa irregular de

licitação (art. 89, caput, da Lei nº 8.666/93). Dolo. Ausência. Atipicidade. Ação

penal improcedente. 1. A questão submetida ao presente julgamento diz respeito à

existência de substrato probatório mínimo que autorize a defl agração da ação penal

contra os denunciados, levando-se em consideração o preenchimento dos requisitos

do art. 41 do Código de Processo Penal, não incidindo qualquer uma das hipóteses

do art. 395 do mesmo diploma legal. 2. As imputações feitas na denúncia aos ora

denunciados foram de, na condição de prefeito municipal e de secretária de economia

e fi nanças do município, haverem acolhido indevidamente a inexigibilidade de

procedimento licitatório para a contratação de serviços em favor da Prefeitura

Municipal de Santos/SP. 3. Não se verifi ca a existência de indícios de vontade

livre e conscientemente dirigida por parte dos denunciados de superarem a

necessidade de realização da licitação. Pressupõe o tipo, além do necessário

dolo simples (vontade consciente e livre de contratar independentemente da

realização de prévio procedimento licitatório), a intenção de produzir um

prejuízo aos cofres públicos por meio do afastamento indevido da licitação.

4. A incidência da norma que se extrai do art. 89, caput, da Lei nº 8.666/93

depende da presença de um claro elemento subjetivo do agente político: a vontade

livre e consciente (dolo) de lesar o Erário, pois é assim que se garante a necessária

distinção entre atos próprios do cotidiano político-administrativo e atos que

revelam o cometimento de ilícitos penais. A ausência de indícios da presença do

dolo específi co do delito, com o reconhecimento de atipicidade da conduta dos

agentes denunciados, já foi reconhecida pela Suprema Corte (Inq. nº 2.646/RN,

Tribunal Pleno, Relator o Ministro Ayres Britto, DJe de 7/5/10). 5. Denúncia

rejeitada. Ação penal julgada improcedente. (Inq 2616, Relator(a):  Min. DIAS

TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 29/05/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO

DJe-167 DIVULG 28-08-2014 PUBLIC 29-08-2014)

146

Mauro Borba

Identicamente: STF/AP 559, Relator: Min. Dias Toffoli, Primeira

Turma, julgado em 26-08-14, publicado 31-10-14; e STJ/APn 480/MG, Rela.

Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Rel. p/ Acórdão Ministro Cesar Asfor

Rocha, Corte Especial, DJe 15-06-1215.

Para além disso, houve comprovado ganho fi nanceiro, auferido pelos réus

J. e G., a partir da conduta do Prefeito R. de não realizar licitação quando essa

se mostrava absolutamente indispensável, visto que a despesa em tela não era de

caráter excepcional e transitório, bem como os valores despendidos excederam, e

muito, o limite legal para dispensa16. Assim, houve desvio de verbas públicas, em

proveito próprio e das empresas farmacêuticas, causando efetivo dano ao Erário.

Veja-se que os empenhos e os posteriores depósitos bancários somente

foram viabilizados com a contribuição da Secretária da Saúde E. C., que efetuava

a conferência dos medicamentos que possuíam aprovação junto ao Posto de Saúde

e das notas fi scais dos valores vendidos pelas farmácias, cotejando se o subsídio

revertia no valor da compra, para, assim, possibilitar o empenho das notas e

posterior pagamento às drogarias.

Conforme conteúdo probatório produzido na instrução, o dolo dos agentes

públicos é inequívoco, pois, a contar da Auditoria do SUS no ano 2009, passou a ser

de conhecimento público que a sistemática de subsídios violara a Lei Licitatória, com

fracionamento de despesas e prejuízo ao ente federado. Outrossim, os empresários

praticaram valores excessivos ao contratarem com ente da administração direta,

tomando parte no ato ilegal e concorrendo no delito licitatório17, quando não

poderiam aplicar o PMC (Preço Máximo ao Consumidor), benefi ciando-se do

desvio de verbas.

Tais elementos decorrem da prova testemunhal.

15 – No mesmo sentido: RHC n. 35.598/SP, Rel. Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em

05-04-2016, DJe 15-04-2016, e Representação Criminal n. 70065999203, Quarta Câmara Criminal,

Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rogério Gesta Leal, julgado em 20-08-2015.

16 – Art. 24, inc. I, da Lei n. 8.666/93.

17 – Colhe-se a doutrina de NUCCI: “Art. 89: fi gura específi ca para o contratado: [...] importante

destacar que a inserção do parágrafo único restringiu o alcance da lei penal ao contratado (não servidor),

pois colocou, na fi gura típica, além da intenção especial de obter benefício, a comprovada concorrência

para a consumação da ilegalidade. Assim, caso o servidor dispense a licitação, mas o particular não

tome parte em qualquer ato ilegal, que lhe diga respeito, ainda que se benefi cie da contratação indevida,

é incabível a punição” (NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais comentadas. 7ª ed.,

São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 469-470).

147

Controle penal da corrupção – dispensa ou inexigibilidade de licitação, com apropriação ou desvio de rendas públicas – estudo de caso

Ref. às testemunhas de acusação:

G. R. H. destacou ter sido eleito Prefeito no Município a contar de 2001

(gestões 2001-2004 e 2005-2008), tendo alterado a lei que concedia o subsídio para

benefi ciar os idosos e as pessoas que fi zessem uso de medicação contínua, residentes

no Município. Foi proprietário da primeira farmácia instalada em Travesseiro, mas,

antes de assumir o cargo político, repassou o negócio à sua sobrinha. A pessoa que

necessitava da medicação era quem escolhia o local onde iria realizar a compra e

que, na sua gestão, fi scalizavam os valores a serem gastos. Nunca recebeu notifi cação

do Ministério Público ou do Tribunal de Contas indicando irregularidade no

procedimento. Realizava licitação para aquisição de medicamentos que fi cavam à

disposição da população na farmácia básica do Município. Não tem conhecimento

sobre a compra superfaturada de medicamentos. Sobre a sistemática dos subsídios,

declarou que a pessoa deveria ter mais de 65 anos de idade, fazer uso contínuo, e

aos outros, que esporadicamente necessitassem de medicação, dava-se trinta ou

quarenta por cento de desconto. Sabe-se que outros Municípios praticam essa

mesma sistemática de compra de medicamentos para munícipes que se enquadram

nas regras da assistência social (fl s. 1023/1031).

R. dos S., enfermeira concursada do Município, salientou que, em razão

das isenções concedidas, o consumo de remédios acabava sendo estimulado.

As duas farmácias são pertencentes a parentes do anterior e do atual Prefeito.

Sobre a farmácia básica, que fi cava no Posto de Saúde, havia a disponibilidade

da medicação obrigatória. Para os demais fármacos, poderiam ser adquiridos

mediante desconto, nas duas farmácias do Município, conforme a necessidade dos

munícipes. Para obtenção do benefício, a pessoa apresentava uma receita médica,

a qual poderia ser tanto a concedida por médico particular quanto por médico do

Posto de Saúde. Portanto, não havia aplicação apenas aos necessitados e, sequer,

havia uma preocupação de escolher o melhor preço. Comprado o fármaco em uma

das farmácias, a Prefeitura o subsidiava (fl s. 1032/1040).

P. S., agente administrativa, relatou que o ente municipal concedia

desconto nos medicamentos, baseado em lei municipal. Sabia que as farmácias

estabelecidas no Município são de parentes dos Prefeitos. Não tinha ciência de que

os valores praticados eram altos. A depoente concedia autorização para aquisição

dos medicamentos, o que consistia no seguinte procedimento: “a pessoa ia na

farmácia... Pegava a autorização com a receita, ia lá, pegava o orçamento, trazia lá e a gente

concedia o desconto”. Declarou que bastava apenas um orçamento, não se exigindo

a pesquisa de preços em ambos os estabelecimentos. Não havia regra quanto à

148

Mauro Borba

situação econômica da pessoa, sendo o subsídio concedido até mesmo para quem

apresentasse receituário particular. Não sabe dizer se, em municípios próximos,

os preços eram menores. No período que participou junto à Secretaria de Saúde

não houve acusação ou imputação de que o Prefeito estivesse privilegiando uma

ou outra farmácia, não sendo apontado, por qualquer órgão, que a prática fosse

irregular. O subsídio era visto como um benefício para o povo (fl s. 1041/1045).

T. S., pedreiro aposentado, relatou que esteve no Posto de Saúde para

retirar o remédio de que necessitava, o qual não havia disponibilidade, sendo então

encaminhado para compra na rede privada. Adquiriu-o na drogaria de Guilherme

e era um preço, então, uma vizinha avisou-o de que na farmácia da Janete era outro

preço, reclamando dessa diferença, pois acabou pagando mais. O medicamento era

o Sinvastatina, o qual é considerado básico. O Município não exigia orçamento pelo

menor preço. Quando constatou a diferença de valores, a ré Elis estava presente,

não tendo lhe pedido para que retornasse à farmácia para comprar o mais barato.

Recebeu o subsídio na ordem de 100% (fl s. 1.046/1.049).

A. Q., atual Vice-Prefeito de Travesseiro, sustentou que o Município

subsidiava a compra de medicamentos nas farmácias locais, conforme escolha do

paciente, não lhe sendo exigido orçamento pelo menor preço. Na farmácia básica

do Município, havia os medicamentos básicos, os quais eram adquiridos por meio

de licitação. Afora essa medicação, outros remédios que eram consumidos pelos

travesseirenses o Município subsidiava a compra, sem licitação. Em farmácias

situadas fora do Município, os descontos a título de subsídio eram menores, ainda

que o valor do fármaco fosse mais baixo. Os descontos eram concedidos para

todo e qualquer cidadão, não havendo favorecimento. Não houve apontamento

da Câmara de Vereadores, Tribunal de Contas ou do Ministério Público acerca

da irregularidade dessa prática antes da denúncia oferecida nos autos. Declarou

que, nas redes de farmácia maiores, por adquirirem produtos em larga quantidade,

conseguem praticar um melhor preço em comparação às farmácias de menor

porte. Havia controle sobre os valores estarem dentro do permitido pela guia de

medicamentos fornecida pela ANVISA (fl s. 1050/1055).

Ref. às testemunhas de defesa:

P. H. trabalhou na farmácia do corréu Guilherme. Disse que o cliente

vinha com o receituário médico, orçava-se o valor do medicamento, ele voltava

ao Posto de Saúde para retirar a autorização, e depois retornava para a farmácia,

às vezes sim, às vezes não, com a aprovação do Posto de Saúde. Referiu que os

valores praticados para as pessoas que possuíssem autorização do Município, ou

149

Controle penal da corrupção – dispensa ou inexigibilidade de licitação, com apropriação ou desvio de rendas públicas – estudo de caso

para qualquer compra particular, eram os mesmos, seguindo a tabela da ANVISA.

Os medicamentos genéricos tinham um preço menor do que o ético. Referiu que

G. é sobrinho do Prefeito R., sendo que J. é sobrinha do ex-Prefeito. As isenções

eram concedidas, independente da classe social do postulante, observadas as

autorizações do Posto de Saúde (fl s. 1130/1133).

A. M. K. F. mencionou que J. é casada com o sobrinho do ex-Prefeito G.

Sobre os descontos concedidos pela municipalidade, após a consulta com o médico,

o paciente dirigia-se ao Posto de Saúde para retirar os remédios que o médico

receitava; o que não havia no Posto era buscado na farmácia particular, onde se

orçava o valor e, em seguida, retornava-se à Secretaria para fi ns de autorização, ou

indeferimento da compra. Relatou que o seu fi lho teve problema de audição, então

os descontos concedidos lhe favoreceram, diante dos gastos despendidos com os

médicos. Para toda e qualquer aquisição de medicação, exigia-se o receituário

médico. Não havia necessidade de comparar os preços entre as farmácias

(fl s. 1.133v/1.136).

M. N. Q. sustentou que já adquiriu medicamentos nas duas farmácias

estabelecidas no Município, recebendo desconto na ordem de 50% nas compras.

O benefício era concedido independentemente da realização de orçamento pelo

melhor preço, e se destinava à compra de remédios que não estivessem disponíveis

na farmácia básica do Município, sendo, assim, obtidos na rede particular.

Comprava o fármaco que o médico prescrevia, o qual, por vezes, era genérico

(fl s. 1136v/1138v).

M. S. M., farmacêutico, narrou não saber sobre os fatos denunciados.

Por atuar no ramo farmacêutico, esclareceu que, nos produtos genéricos, pode

haver variação do preço dependendo do laboratório. Os medicamentos genéricos

e os de referência vêm tabelados pelo governo com o PMC (Preço Máximo ao

Consumidor). As farmácias podem realizar um cadastro e comercializar algumas

faixas de remédios de uso contínuo, por um preço menor. As grandes redes

conseguem praticar preço mais baixo em comparação às de pequeno porte. Já fora

proprietário de farmácia e efetuava a compra dos medicamentos de distribuidoras,

e não de laboratórios, por exigirem pedido elevado, e, nesse período, vendia pelo

maior preço autorizado pela ANVISA (PMC), sob pena de não obter qualquer

lucro. O Guia da Farmácia é distribuído mensalmente pelo governo quanto ao

PMC. Relatou que, em termos de medicamento genérico, similar ou de referência,

o princípio ativo é o mesmo, e, portanto, idêntico é o efeito, mostrando-se mais

vantajoso ao consumidor adquirir, sempre, o similar ou genérico (fl s. 1139/1142).

150

Mauro Borba

P. J. F. abonou a conduta dos réus. Não se realizava a cotação de preços.

Buscava na rede privada os medicamentos que não estivessem disponíveis na

farmácia básica. O Município não exigia atestado de pobreza ou de insufi ciência

de recursos (fl s. 1142v/1144v).

J. R. W. detalhou que trabalhava na concessão dos descontos, os quais

eram fornecidos, inclusive para os pacientes que consultavam em consultório

particular. Havia sistema informatizado, o qual apontava se o medicamento era

de uso contínuo ou não. Para os idosos que faziam uso contínuo, a isenção era

de 100% e, para os demais, o desconto era de 50%; quando não se tratava de

medicação contínua, o desconto era de 40%, inclusive para os idosos. Os fármacos

adquiridos na rede privada restringiam-se aos não oferecidos na farmácia básica.

Não fi scalizava se os valores cobrados nas farmácias efetivamente observavam o

PMC. O limite para os gastos era de R$ 300,00 (trezentos reais) mensais. Concedia

a autorização para os descontos, mas a Secretária que verifi cava tais concessões

e, em seguida, encaminhava a documentação correlata à Prefeitura. Não era

exigido dos pacientes que realizassem pesquisa pelo menor preço nas farmácias

(fl s. 1145/1148v).

C. C. H. trabalha no setor interno da Prefeitura. Afi rmou que os descontos

concedidos para os travesseirenses independiam da faixa de renda, pelo teto

mensal de R$ 300,00 (trezentos reais). O paciente escolhia a farmácia, não sendo

necessário fazer orçamento. Na farmácia básica, os medicamentos eram fornecidos

de forma gratuita. Quanto aos medicamentos de referência, genérico ou similar,

observava a medicação prescrita pelo médico. O Município de Travesseiro utilizou

como modelo para aquisição dos fármacos a legislação do “Município-mãe” de

Arroio do Meio. A lei local partiu de uma discussão do Conselho de Saúde, sendo o

projeto encaminhado pelo Executivo. O Município pagava o subsídio diretamente

às farmácias, não entregando dinheiro ao paciente. Nas auditorias do Tribunal

de Contas, jamais houve apontamento quanto a qualquer irregularidade, embora

fi scalizassem os empenhos realizados. Sabia que a primeira farmácia instalada no

Município era de propriedade do ex-Prefeito Genésio, que a repassou aos seus

familiares quando assumiu o cargo eletivo. O Prefeito Ricardo foi Secretário

de Saúde na gestão do Prefeito Genésio, no período de 2007, 2008. Não soube

responder o porquê das compras dos medicamentos na rede particular não serem

precedidas de licitação (fl s. 1149/1153v).

D. S., contador, alegou que presta serviços de assessoria para o Município

de Travesseiro desde a sua criação, em janeiro de 1993. No início da concessão

151

Controle penal da corrupção – dispensa ou inexigibilidade de licitação, com apropriação ou desvio de rendas públicas – estudo de caso

do subsídio, o munícipe era ressarcido do preço despendido na farmácia;

posteriormente, passou a realizar-se o pagamento à farmácia, por meio de empenho

direto. A autorização de empenho era concedida pela Secretária da Saúde.

O dispêndio com os medicamentos era registrado como despesa de medicação,

aquisição de medicamentos, uma rubrica específi ca na contabilidade. Não havia

controle efetivo de pagamento quanto aos preços, observando-se, apenas, a tabela

da ANVISA. O Tribunal de Contas não emitiu apontamento quanto à concessão

dos subsídios. Atualmente, o Município faz licitação (fl s. 1154/1158).

V. R. B., professora municipal, narrou que já se utilizou dos subsídios

concedidos para compra de medicamentos não ofertados na farmácia básica do

Município. Exerceu o cargo de Secretária da Saúde no ano 2001, período em que

havia apenas uma farmácia no Município (fl s. 1158v/1160v).

M. N. R. D., irmã do Prefeito e mãe do corréu G., salientou que não

havia restrição da faixa de renda para a compra de medicamentos. Atualmente,

os fármacos são disponibilizados na rede básica. Quanto aos demais, devem ser

buscados por meio de ação judicial (fl s. 1161/1163).

E. G. recordou que, quando houve a auditoria do DENASUS, no ano 2009,

interou-se no assunto relativo à sistemática de como funcionava a questão dos

subsídios para a população. O modelo fora copiado de Arroio do Meio no ano 1999.

Num primeiro momento, o subsídio era pago diretamente ao contribuinte, como

ressarcimento. Após, houve um apontamento do Tribunal de Contas pela forma

como era feito o pagamento, em espécie. A partir disso, alterou-se o procedimento,

passando o valor correspondente a ser empenhado diretamente para as farmácias,

mas a sistemática de operação continuou inalterada. Na auditoria do DENASUS,

houve aponte dizendo que o Município estaria burlando o processo licitatório.

O aumento do percentual dos subsídios partiu da própria comunidade, por

intermédio do Conselho Municipal de Saúde, não tendo conhecimento da

ingerência política de qualquer pessoa ligada à administração. Em relação aos

preços praticados nas farmácias da rede privada, disse que observavam a tabela da

ANVISA, que orienta a prática de preços. Pelo que conferiu das documentações,

tal orientação não foi extrapolada (fl s. 1163v/1168).

E. M. Z., vereadora, tendo trabalhado na gestão do Prefeito G. Atuou

como professora, depois no CRAS, na Assistência Social do Município e, nos

últimos seis meses, foi Secretária de Saúde. Na época em que esteve à frente da

Secretaria fazia o levantamento de preços. Havia um livro com a relação dos

medicamentos do menor ao maior preço, sendo que as farmácias não extrapolavam

152

Mauro Borba

o limite legal. Assinava as autorizações e essas eram repassadas à Prefeitura, onde

era feito o empenho, e depois, tal era direcionado às farmácias. O critério para a

concessão do subsídio era residir no Município. A mesma sistemática era seguida

pelos Municípios de Arroio de Meio e Capitão (fl s. 1168v/1172v).

N. M. B. H. trabalhou como Secretária da Saúde na gestão do Prefeito

G., nos anos 2002 e 2003. Os descontos eram concedidos para quem morasse no

Município. Sabe que os proprietários das farmácias são sobrinhos do ex-Prefeito e

do atual Prefeito (fl s. 1175v/1177).

D. K. K., farmacêutica, trabalhou na farmácia de Janete no período de

2008 a 2012. O paciente apresentava a receita e solicitava o medicamento; fazia

o orçamento do preço que a farmácia vendia, conforme a tabela da ANVISA;

retornava à Secretária de Saúde e obtinha a autorização. Disse que apresentava aos

clientes, além do remédio de referência, também o genérico e o similar. A farmácia

realizava a compra dos produtos pelas distribuidoras de medicamentos atuantes

na região. O valor cobrado do cliente independia se ele comprava utilizando-se do

subsídio do ente municipal ou de forma particular (fl s. 1180/1182).

E. C. W. R., Secretária da Saúde na época dos fatos. Passou a exercer o

cargo no ano 2009 e deu continuidade ao que era seguido na municipalidade.

O funcionário da Secretaria autorizava o subsídio para determinado medicamento;

depois tal autorização era repassada à farmácia e, antes de ser encaminhada para

o empenho, a interroganda recebia a despesa. Com a sua autorização, o valor a ser

pago era encaminhado para a Prefeitura, abrindo-se um processo para empenho e

pagamento. Em todo o procedimento havia uma tabela, sempre respeitada para a

venda dos medicamentos. Não tem conhecimento do benefi ciamento de qualquer

dos envolvidos nessa ação penal. Não soube responder por que, depois da auditoria

do DENASUS, no ano 2009, o Município não passou a observar imediatamente a

licitação para compra dos remédios. O benefício de subsídio era concedido a todos,

sem diferenciação. O Município de Arroio do Meio possuía programa idêntico

(fl s. 1183/1185).

G. D., farmacêutico, à época, proprietário da farmácia F. Medicamentos.

Relatou que se formou em farmácia e, em seguida, abriu o seu próprio comércio,

no ano 2006, sendo que o seu tio R. se elegeu Prefeito apenas no ano 2009. Negou

a prática dos crimes que lhe são imputados. Sobre os preços praticados, mencionou

que o PF, na verdade, é o preço de custo da medicação, e o PMC é o preço aplicado

para a venda. Qualquer nota fi scal de distribuidora registra o PMC, em cima

da nota, que é o preço praticado. Já trabalhou em outras drogarias, nas quais o

153

Controle penal da corrupção – dispensa ou inexigibilidade de licitação, com apropriação ou desvio de rendas públicas – estudo de caso

cálculo também era feito pela venda do fármaco. O paciente apresentava a receita

médica, não sendo dado ao farmacêutico questioná-la. Inclusive, se o médico

prescrevesse um remédio de marca, não detinha autonomia para substituí-lo por

um genérico. Afi rmou que os valores praticados por convênio da Prefeitura eram

os mesmos vendidos para terceiros, sem subsídios. Acrescentou que a medicação

que chegava à farmácia era etiquetada com o preço do dia, conforme a nota fi scal

(fl s. 1185v/1188).

R. R., Prefeito Municipal em segundo mandato, asseverou que a lei que

concedia subsídios foi fi rmada em 1999, dando continuidade a tal sistema. Na

sua gestão aumentou os percentuais e fi xou o teto mensal de R$ 300,00 (trezentos

reais) por munícipe. O Tribunal de Contas não reconheceu qualquer ilegalidade

nessa prática. Não havia como realizar a licitação para compra de medicação sem

saber qual seria a real necessidade do paciente. O Município tem 2.314 habitantes

e, a cada ano, há redução desse número em função de a população ser formada

essencialmente por pessoas idosas e pelo ramo de atividade ser agrícola. Tudo isso

o levou a ajudar as pessoas, e também o comércio, com o regime de subsídio,

mantendo também os empregos, os programas que ajudam os agricultores. Para

quem é produtor, eles têm incentivos, a indústria e o comércio. Disse ser inocente

dos fatos que lhe são atribuídos. Após a auditoria do SUS, continuou defendendo

a impossibilidade de licitação para a compra dos medicamentos não oferecidos na

farmácia básica. Com a denúncia apresentada, o programa de subsídios foi extinto,

havendo a realização de licitação. Alegou que a lei não onerava os cofres públicos

dentro dos 15% que eram defi nidos para a Saúde (fl s. 1188v/1190).

J. S. B., comerciante no ramo da farmácia JM Drogaria. Casada com

o sobrinho do ex-Prefeito G. Atualmente, a sua farmácia é a única atuante no

Município. Jamais ultrapassou o preço máximo do consumidor, atentando à

tabela da ANVISA. Com a extinção da prática dos subsídios, concede 10% de

desconto, e trabalha com a farmácia popular, comercializando fármacos com até

90% de desconto, benefício concedido diretamente pela União. Disse que, tivesse

auferido ganho fi nanceiro, não estaria na faculdade, com fi nanciamento estudantil

do FIES. Sobre os medicamentos, a população buscava aqueles que não eram

disponibilizados pela farmácia popular. Auferia no fi nal do mês o pagamento

alcançado pelo Município, e acabava vendendo mais os medicamentos previstos na

farmácia básica. O cliente tinha a opção de comprar o medicamento de referência

(original), o genérico ou o similar, podendo exigir o de maior preço. Não participou

das licitações promovidas pelo Erário (fl s. 1202/1208).

154

Mauro Borba

Embora os denunciados tenham alegado a impossibilidade de realizar

licitação considerando o objeto, após o oferecimento da denúncia pelo Órgão

acusador, houve extinção do programa de subsídios, passando o Município a

observar aquela modalidade para a compra de fármacos, sem que tenha havido o

relato de qualquer difi culdade para promover a disputa.

Ainda, não procede a argumentação de que o Ministério Público comparou

a medicação comercializada por farmácia de grande porte para fi ns de mensuração

de dano ao Erário. O fato é que, a fi m de benefi ciar os comerciantes locais, houve

dispensa de licitação fora das hipóteses legais, procedimento adotado com o fi m de

causar dano à Administração, o qual efetivamente ocorreu, culminando no desvio

de verbas públicas em proveito próprio e alheio, já que os valores praticados foram

abusivos.

Assim, os empresários concorreram para a prática de atos previstos como

crime de responsabilidade em coautoria com o Prefeito, incidindo a norma de

extensão pessoal do art. 29 do Estatuto Penalista.

Na página da ANVISA18, há defi nição das siglas PF e PMC, o que se

reproduz para melhor elucidação da matéria:

O que é Preço Fábrica (PF)?

O Preço Fábrica ou Preço Fabricante é o preço praticado pelas empresas

produtoras ou importadoras do produto e pelas empresas distribuidoras. O PF

é o preço máximo permitido para venda a farmácias, drogarias e para entes da

Administração Pública.

A Orientação Interpretativa nº 2, de 13 de novembro de 2006, da CMED,

estabelece que em qualquer operação de venda efetivada pelas empresas produtoras

de medicamentos ou pelas distribuidoras, destinada tanto ao setor público como ao

setor privado, deverá ser respeitado, para venda, o limite do Preço Fabricante. Esse

preço inclui os impostos incidentes.

Observação: As vendas de medicamentos efetuadas para entes da Administração

Pública também devem respeitar o Preço Máximo de Venda ao Governo – PMVG,

nos casos de obrigatoriedade de aplicação do Coefi ciente de Adequação de Preço –

CAP (ver itens “Produtos Sujeitos ao Desconto e Fornecedores)

18 – Disponível em: <http://portal.anvisa.gov.br/wps/wcm/connect/Anvisa+Portal/Anvisa/

Pos+-+Comercializacao+-+Pos+-+Uso/Regulacao+de+Marcado/Assunto+de+Interesse/

Compras+Publicas/Perguntas+e+Respostas+-+Compras+Publicas>. Acesso em: 26 maio 2016.

155

Controle penal da corrupção – dispensa ou inexigibilidade de licitação, com apropriação ou desvio de rendas públicas – estudo de caso

O que é Preço Máximo ao Consumidor (PMC)?

O Preço Máximo ao Consumidor é aquele praticado pelas farmácias e Drogarias.

O PMC é o preço máximo permitido para venda ao consumidor e inclui os

impostos incidentes.

Observação: as farmácias e drogarias, ao realizarem vendas a entes da Administração

Pública, deverão respeitar o limite do Preço Fabricante, conforme Orientação

Interpretativa nº 2, de 2006, ou o Preço Máximo de Venda ao Governo – PMVG,

nos casos de obrigatoriedade de aplicação do Coefi ciente de Adequação de Preço –

CAP (ver itens “Produtos Sujeitos ao Desconto e Fornecedores)

Ademais, pelos demonstrativos das empresas, a maior receita advinha dos

subsídios do Poder Público, o que não poderia ser diferente, considerando que

a população local gira em torno de 2.300 habitantes e que todos os munícipes

poderiam auferir o auxílio fi nanceiro, independente da condição econômica, e

lançavam mão desse expediente, gerando lucro às empresas privadas em detrimento

do patrimônio coletivo.

Ressalte-se que sequer as compras diretas feitas em estabelecimentos da

cidade seguiram o critério do menor preço, e, sim, em diversas oportunidades,

compras pelo preço maior, em evidente prejuízo ao Erário municipal, inclusive, em

drogaria pertencente ao sobrinho do Chefe do Executivo, e a outra farmácia, da

sobrinha do ex-Prefeito Municipal.

O fato de ter havido a efetiva compra de medicamentos não afasta a

possibilidade do delito de desvio de rendas públicas.

Entretanto, no caso, aplica-se o princípio da consunção, já que a dispensa

de licitação e a contratação direta das farmácias F. e JM D. foi meio necessário

para a realização do desvio de rendas públicas. Sendo assim, ocorre a absorção do

crime-meio do art. 89, caput e parágrafo único, da Lei n. 8.666/93, pelo crime-fi m

previsto no art. 1º, inc. I, do Decreto-Lei n. 201/67, afastando o concurso material

de crimes.

Sobre o tema, o entendimento deste Tribunal de Justiça do Estado do Rio

Grande do Sul:

AÇÃO PENAL. PREFEITO MUNICIPAL. ART. 1º, INCISO I, DO

DECRETO -LEI Nº 201/67. DESVIO DE GÊNEROS ALIMENTÍCIOS.

DISTRIBUIÇÃO A PESSOAS CARENTES. TESE NÃO ACOLHIDA.

ART. 89 DA LEI Nº 8.666/93. AQUISIÇÃO DE BENS EM CARÁTER

156

Mauro Borba

EMERGENCIAL. VENDAVAL NO MUNICÍPIO. DANOS CAUSADOS.

ABSOLVIÇÃO. AQUISIÇÃO DE MEDICAMENTOS. MAIS DE UM

ESTABELECIMENTO FARMACÊUTICO NO MUNICÍPIO. LICITAÇÃO.

a) A distribuição de gêneros alimentícios a pessoas carentes cadastradas, quando

ausente lei municipal regulamentando tal situação, bem como a adoção de um

programa com critérios objetivos para escolha das pessoas a serem benefi ciadas,

caracteriza o delito previsto no art. 1º, inciso I, do Decreto-lei 201/67. b) A aquisição

de bens em caráter emergencial, em virtude de danos causados no município, por

um vendaval, é hipótese excepcional, que dispensa a realização de procedimento

licitatório. c) A compra de medicamentos, quando há mais de um estabelecimento

farmacêutico no município, é situação que exige a realização de licitação, para

escolha daquela que oferecer menor preço, sendo incabível a alternatividade entre

as farmácias existentes no local. Ação penal parcialmente procedente. (Ação

Penal – Procedimento Ordinário N. 70036148344, Quarta Câmara Criminal,

Tribunal de Justiça do RS, Relator: Gaspar Marques Batista, Julgado em 17-11-11)

(grifei).

APELAÇÃO-CRIME. EX-PREFEITO. ART. 89, CAPUT, LEIN° 8.666/93.

DISPENSA DE LICITAÇÃO. ART. 1°, INCISO I, DO DECRETO-

-LEI N° 201/67. DESVIO DE VERBA PÚBLICA. PRINCÍPIO DA

CONSUNÇÃO. INABILITAÇÃO PARA O EXERCÍCIO DE CARGO OU

FUNÇÃO PÚBLICA. 1. Ocorre a consunção quando a conduta defi nida

por norma incriminadora constitui meio necessário para a preparação ou

execução de delito diverso, restando o ̀ crime-meio absorvido pelo ̀ crime-fi m,

sob pena de violação ao princípio do non bis idem. 2. A inabilitação para o

exercício de cargo ou função pública pelo prazo de 05 anos, está fundamentada

no § 2° do art. 1°, do Decreto-Lei 201/67. Trata-se de conseqüência da

condenação expressamente prevista em lei, portanto de aplicação obrigatória.

Pena alterada. Apelos parcialmente providos. Unânime. (Apelação-Crime

N. 70020816708, Quarta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS,

Relator: Aristides Pedroso de Albuquerque Neto, Julgado em 13-12-07) (grifei).

APELAÇÃO CRIME. EX-PREFEITO MUNICIPAL. FRAUDE À

LICITAÇÃO E PECULATO (ART. 96, INCS. I E V, LF 8666/93, E ART. 1º,

157

Controle penal da corrupção – dispensa ou inexigibilidade de licitação, com apropriação ou desvio de rendas públicas – estudo de caso

INC. I, DL 201/67). PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO. APLICAÇÃO. PROVA.

INSUFICIÊNCIA. APELO DO MP IMPROVIDO. Se a fraude à licitação é

praticada como forma de desviar renda pública, tal conduta, por ser necessária

à consecução do delito previsto no art. 1, I, DL 201/67, é por este absorvida

em face do princípio da consunção. Incomprovado, modo estreme de dúvidas,

que os denunciados, ao superfaturar os valores de bens adquiridos pelo Município,

agiram com o propósito específi co de desviar renda pública em proveito próprio ou

alheio, impõe-se a manutenção da decisão absolutória. Apelo do MP improvido.

(Apelação-Crime N. 70023195316, Quarta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça

do RS, Relator: José Eugênio Tedesco, Julgado em 17-04-08) (grifei).

A dispensa ilegal de licitação realizada somente com a fi nalidade de

propiciar o instrumental necessário para o desvio de verbas públicas é impunível,

visto que se trata de crime-meio para a consecução do crime-fi m, o peculato. Aliás,

a denúncia refere expressamente:

[...] R. R., Prefeito Municipal, [...] E. C. W. R., Secretária da Saúde, [...] J. S.

B. H e G. D.

[...] concorreram comprovadamente para a consumação da ilegalidade,

benefi ciando-se da dispensa ilegal para fi rmar contrato com o poder público, uma

vez que a primeira é proprietária da farmácia “Janete S Both” (JM Drogaria)

e o segundo da farmácia “Guilherme Dertzbacher e Cia Ltda.” (Farmagui

Medicamentos).

Nas mesmas circunstâncias de tempo e de local, os denunciados acima nominados,

em comunhão de esforços e em conjunção de vontades, desviaram verbas públicas

em proveito próprio e das empresas “J. S. B.” e “G. D. e Cia Ltda.”. Isso porque

as farmácias do Município de Travesseiro, valendo-se dos descontos concedidos

aos munícipes (conforme se discorrerá em seguida), venderam a sua medicação

por valor muito maior do que os preços praticados no mercado, de forma que o

Município de Travesseiro, pagou um valor altíssimo pela medicação adquirida

sem licitação junto às farmácias locais, as quais são de propriedade de familiares

do atual e do ex-administrador, do Município de Travesseiro.

Demonstrado, portanto, que a dispensa se tratou do meio utilizado para a

efetivação do peculato, este absorve aquela, impondo-se a condenação dos réus

somente pelo delito de peculato – desvio (art. 1º, inc. I, do Decreto-Lei n. 201/67).

158

Mauro Borba

REFERÊNCIAS

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Atlas, 2002.

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Antonio Fabris Editor, 1994.

FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo. 19ª ed.

Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos

Administrativos. 7ª ed., p. 295, São Paulo: Dialética, 2000.

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modernidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997.

______. Perspectivas Hermenêuticas dos Direitos Humanos e Fundamentais no

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______. Patologias corruptivas nas relações entre Estado, administração e sociedade:

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MONTORO FILHO, André Franco. Corrupção, Ética e Economia. São Paulo:

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OLIVEIRA JÚNIOR, José Alcebíades de. Aspectos Socioculturais e

Político-Jurídicos da Corrupção no Brasil. In LEAL, Rogério Gesta (Org.).

Patologias Corruptivas: as múltiplas faces da hydra. Santa Cruz do Sul: Edunisc,

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PINTO, Céli Regina Jardim. A Banalidade da Corrupção. Belo Horizonte:

Editora UFMG, 2011.

SADEK, Maria Tereza (Org.). Justiça e Cidadania no Brasil. São Paulo:

Editora Sumaré, 2000.

TRÁFICO DE DROGAS E MEIOS OCULTOS DE

INVESTIGAÇÃO: APONTAMENTOS INICIAIS

Jayme Weingartner Neto

Desembargador do TJRS, Doutor em Direito

(1) Atos policiais de investigação, em delitos graves e de perfi l insidioso

e sub-reptício, demandam meios de elucidação (e capacidade de neutralização)

diferenciados e eventualmente mais invasivos do que o arsenal tradicional

disponibilizado para a atuação policial, plasmado que foi – no imaginário jurídico-

-social da redação original do Código de Processo Penal – num Brasil de escassa

urbanização, de vida predominantemente agrária, pré-industrial, cuja criminalidade

de feitio clássico-individual nenhum infl uxo sofrera da tecnociência que marcaria o

desenrolar do breve século XX; um País que ainda desconhecia a intensifi cação de

delitos com características epidêmicas e a necessidade de tutela de bens jurídico-

-penais (com refração constitucional) difusos e coletivos, meio ambiente e saúde

pública – o bem jurídico protegido pela Lei de Drogas, por exemplo.

No contexto de investigações criminais e meios de obtenção de provas

bitolados pelas Leis n. 11.343/06 e n. 12.850/13, observa-se, com os olhos do

2º Grau, que vêm aumentando pedidos defensivos de nulidade de decisões judiciais

que autorizaram infi ltração policial, captação ambiental e, até, de aquisição de

drogas, ao argumento primeiro de que carecem de fundamentação ou amparam-

se em denúncias anônimas (2). Também há alegações de que os policiais agem

muitas vezes como agentes provocadores da venda de drogas, a redundar em crime

impossível, nos termos da Súmula STF n. 145 (3).

O presente texto, sem qualquer pretensão de esgotar a matéria, que

desfia maior reflexão e pesquisa, procura problematizar os dois tópicos e

160

Jayme Weingartner Neto

sistematizar algumas soluções razoáveis, percorrendo decisões do TJRS

no escopo de desenvolver e aperfeiçoar distinções em busca de coerência

jurisprudencial e do quadro analítico mais preciso ao alcance para obter

justiça tópica (4).

(2) Não raras vezes, consoante observação empírica no 2º Grau, a defesa

pede o reconhecimento de nulidade das decisões que, em 1º Grau, autorizaram

infi ltração policial, captação ambiental e, inclusive, a aquisição de drogas por

policiais (para obter prova da materialidade de crimes de tráfi co), referindo que

carecem de fundamentação.

Sobre a infi ltração policial, como meio de obtenção de prova nos crimes

previstos na Lei n. 11.343/06, a necessidade de autorização decorre do seu art. 53,

caput, e inc. I. Também a Lei n. 12.850/13, que defi ne organização criminosa

(§ 1º do art. 1º) e dispõe so bre a investigação criminal, os meios de obtenção da

prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal, regula a infi ltração,

nos arts. 10 e 11, que “será precedida de circunstanciada, motivada e sigilosa

autorização judicial, que estabelecerá seus limites”.

A par da infi ltração, existe, tanto no art. 53, inc. II, da Lei de Drogas, quanto

nos arts. 8º e 9º da Lei n. 12.850/13 a fi gura da “ação controlada” (“não atuação

policial”, na dicção da Lei n. 11.343/06). Ainda acerca dos meios de obtenção de

prova, a Lei n. 12.850/13 (art. 3º, inc. II) incluiu a captação ambiental de sinais

eletromagnéticos, ópticos ou acústicos, medida que não constava, expressamente, na

Lei n. 11.343/06.

Como se vê, a necessidade de autorização judicial para a infi ltração policial

vem consignada em ambas as leis, na especial de drogas e na das organizações

criminosas. Em relação à ação controlada, o § 1º do art. 8º da Lei n. 12.850/13

menciona prévia “comunicação”, pela autoridade policial ou administrativa à

autoridade judicial, fi cando em aberto a harmonização do dispositivo com a

expressa previsão (“mediante autorização judicial”), no caput do art. 53 da Lei

n. 11.343/06, para a não atuação policial.

Embora a Lei n. 12.850/13 não estabeleça o mesmo para a captação ambiental,

a meu sentir, a autorização, além de decorrer de interpretação sistemática, é

indispensável em observância aos direitos fundamentais de proteção da intimidade

e da vida privada, bem como, eventualmente, da inviolabilidade de domicílio dos

investigados, além de garantias processuais.

Tenho presente precedente do TJRS no sentido de que autorizada a

infi ltração, nos termos da Lei n. 11.343/06, em consequência e ipso facto, possível

161

Tráfico de drogas e meios ocultos de investigação: apontamentos iniciais

a captação ambiental (imagens e conversas) por um dos interlocutores, até mesmo

sem autorização judicial.1

Sobre a captação mantida em lugar privado, Renato Brasileiro de Lima

afi rma: “se produzida sem prévia autorização judicial, constitui invasão de

privacidade, pois não está autorizado o ingresso em casa alheia, cuja inviolabilidade

é constitucionalmente assegurada (CF, art. 5º, XI), razão pela qual a coleta de

dados resultante de conversa mantida dentro de domicílio alheio é prova ilícita. Se

a interceptação ambiental em locais públicos é considerada válida pela doutrina e

pela jurisprudência, o mesmo não se pode dizer em relação a uma interceptação

ambiental efetuada no interior de domicílio. Nessa hipótese, além de violar o direito

à intimidade, seja no tocante ao direito ao segredo, seja em relação ao direito de

reserva, haverá evidente afronta à inviolabilidade domiciliar prevista no art. 5º,

inc. XI, da Constituição Federal”.2

Não desconheço, noutra nuance, precedentes deste Tribunal no sentido

de que, autorizada a infi ltração nos termos da Lei n. 11.343/06, desnecessária

fundamentação, uma vez que, instrumento meramente investigativo, a infi ltração

não violaria qualquer direito individual do investigado, sendo necessária para

evitar a responsabilização criminal dos agentes infi ltrados.3

Entendo, contudo, com a devida vênia, em observância ao art. 93, IX, da

Constituição Federal, em suma, que as decisões autorizadoras das técnicas de

investigação mencionadas devem estar devidamente fundamentadas, mormente ao

(i) implicarem indisfarçável restrição de direitos fundamentais e (ii) para legitimar

provas que são obtidas mediante disfarce/ocultação estatal.4

Em síntese, sempre no escopo de diálogo com as colendas Câmaras

Criminais competentes para julgar os delitos em apreço, cogito que, tangente à

captação de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos, há três diferentes cenários

1 – Neste sentido: TJRS, Apelação-Crime n. 70066994229, 2ª Câmara Criminal, Relator: Victor Luiz

Barcellos Lima, julgado em 10-03-16.

2 – LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação Criminal Especial Comentada. Salvador: Editora JusPODIVM,

2016, p. 513.

3 – TJRS, Apelação-Crime n. 70062455613, 2ª Câmara Criminal, Relator: Luiz Mello Guimarães,

julgado em 18-12-14.

4 – No que tange à infi ltração prevista na Lei de Drogas, “imperiosa a prévia e fundamentada decisão

judicial” (THUMS, Gilberto; PACHECO, Vilomar. Nova lei de drogas: crimes, investigação e processo. 3ª ed.

Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2010, p. 164).

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Jayme Weingartner Neto

a distinguir:5 (i) captação de conversa alheia mantida em local público, a confi gurar, a

priori, prova lícita mesmo que produzida sem prévia autorização judicial: “Afi nal

de contas, quem comete um crime em via pública não tem qualquer expectativa

de proteção à intimidade”; (ii) captação de conversa mantida em lugar público, porém

em caráter sigiloso (expressamente admitido pelos interlocutores), constitui invasão

de privacidade, “pois o interceptador não pode imiscuir-se em segredo de terceiros

sem permissão legal; (iii) captação de conversa mantida em lugar privado (caso dos

autos), a necessitar de prévia autorização judicial: “havendo prévia e fundamentada

autorização judicial, toda e qualquer gravação e interceptação ambiental será

considerada prova lícita, nos exatos termos do art. 3º, II, da Lei n. 12.850/13”.

Por outro lado, mesmo gravação ambiental clandestina poderá ser considerada prova

lícita, para demonstrar a inocência do acusado ou quando houver investida criminosa de

um dos interlocutores contra o outro (incidência do princípio da proporcionalidade).

Fora deste eixo pacífi co, grassa forte controvérsia doutrinária e jurisprudencial.6

Para ilustrar, na Apelação Criminal TJRS n. 70068262138 (1a Câmara

Criminal, j. em 10-08-16, Rel. o autor do texto. Preliminares afastadas, à

unanimidade), a partir de representação da autoridade policial, a requerida

“infi ltração” e a captação ambiental de sinais acústicos e ópticos foram autorizadas

pelo Poder Judiciário. Ainda, houve expressa autorização para aquisição de drogas

ilícitas pelos policiais que iriam realizar as diligências. Embora a defesa tenha

alegado que tal decisão não guardou sufi ciente fundamentação, a Câmara concluiu

que, pese efetiva e notoriamente sucinta, a decisão encontrava-se fundamentada.

O requerimento policial solicitou investigação sobre 24 pessoas em pelo menos

7 locais diversos – se tal procedimento reveste-se da melhor técnica, fi ca em aberto.

Certo que a autoridade policial referiu expressamente que se encontrava “em

andamento uma operação de inteligência”; e a nominata fornecida ao juiz era o

resultado parcial, até aquele momento, da atividade policial. Mencionavam-se as

crescentes difi culdades para comprovar os delitos, em face dos cuidados tomados

pelos autores e inovações na ocultação das drogas, além de “temor de represálias”

por parte das testemunhas. Instruído o pedido com relatórios de serviço, baseados

“em denúncias anônimas e no trabalho próprio da delegacia”.7

5 – Sigo LIMA, op. cit., p. 512-4.

6 – LIMA, idem, p. 514-7. A polêmica não vai resenhada por falta de espaço.

7 – Não se tratou, pois, ao menos em princípio, de atuação arbitrária ou aleatória. E a magistrada, ao

apoiar-se em tal requerimento, sinteticamente relatado e obviamente manuseado, acrescido de parecer

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Tráfico de drogas e meios ocultos de investigação: apontamentos iniciais

De igual forma, a Câmara não reconheceu nulidade do feito porque

supostamente defl agrado a partir de denúncias anônimas, pois tais notícias

embasaram prévia investigação, a qual legitimou a atuação policial, como

expressamente anotei – uma operação, em maior ou menor grau, de inteligência,

com reunião de informes pretéritos, seleção de dados relevantes e análise global, de

modo a tornar inteligível a narrativa policial.8

Portanto, no caso referido, os meios de obtenção de prova foram autorizados

judicialmente, nos moldes do art. 53, I e II, da Lei n. 11.343/06, e do art. 3º, II,

III e VII, da Lei n. 12.850/13,9 com base em indícios da participação dos réus em

favorável do Ministério Público, não cinzelou decisão nula – autorizou, inclusive, levantamento de

fundos para fi nanciar a investigação e delimitou-a temporalmente, sendo que a parte dispositiva foi

redigida articuladamente.

8 – Não considero, a priori, denúncia anônima como sufi ciente para diligência policial de busca

domiciliar, necessário o prévio mandado judicial. Recente decisão monocrática do STJ (REsp

n. 1542553, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, 02-12-15), embora reformando decisão desse Relator

(interpretando diversamente a premissa fática), consignou: “É oportuno anotar que, hodiernamente,

há certas reservas para permitir o acesso em domicílio alheio pela polícia, mesmo no caso de tráfi co de

drogas. Tem-se entendido na mesma ordem de idéias do acórdão recorrido não ser permitido o ingresso

das autoridades na casa alheia de maneira arbitrária, sem verifi car previamente o fl agrante delito, para

legitimar a operação somente em momento posterior, se eventualmente constatada a prática do crime

permanente. Assim, para a licitude da prova, a fundada suspeita de cometimento do crime não poderia

ser imaginada, mas deveria estar visível, em momento anterior à violação do domicílio, não podendo

eventual constatação posterior do crime permanente convalidar a abusiva entrada na casa alheia,

por mero acaso”. Também o STF, ao fi xar tese em repercussão geral (tema controverso 280): “(...)

6. Fixada a interpretaç ã o de que a entrada forç ada em domicí lio sem mandado judicial só é lí cita,

mesmo em perí odo noturno, quando amparada em fundadas razõ es, devidamente justifi cadas a posteriori,

que indiquem que dentro da casa ocorre situaç ã o de fl agrante delito, sob pena de responsabilidade

disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados.” (RE 603.616/RO,

Tribunal Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. em 05-11-15). Do voto do Relator: “Por outro lado, provas

ilí citas, informaç õ es de inteligê ncia policial – denú ncias anô nimas, afi rmaç õ es de “informantes policiais”

(pessoas ligadas ao crime que repassam informaç õ es aos policiais, mediante compromisso de nã o serem

identifi cadas), por exemplo – e, em geral, elementos que nã o tê m forç a probató ria em juí zo nã o servem

para demonstrar a justa causa.” (grifou-se)

9 – Parece adequado realizar a integração hermenêutica de ambas as leis, no que tange à investigação criminal e aos meios de obtenção de prova, de modo que, por exemplo, as (reclamadas) lacunas da Lei n. 11.343/06 encontrem-se reguladas pela Lei n. 12.850/13. Neste contexto, fi ca claro que a ressalva do parágrafo único do art. 53 da Lei de Drogas, quanto ao “itinerário provável”, aplica-se apenas para os casos de transporte e transposição de fronteira, “de modo a reduzir os riscos de fuga e extravio do produto, objeto, instrumento ou proveito do crime” (art. 9º, in fi ne, da Lei das Organizações Criminosas). Por outro lado, fi ca em aberto o

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Jayme Weingartner Neto

organização que se benefi ciava da prática ilícita. Assim, ainda que a conclusão da

investigação tenha sido diversa (não apurando, ao cabo, organização criminosa aos

moldes da Lei n. 12.850/13), não houve ilegalidade no meio de prova e afastaram-

-se as nulidades ventiladas.

(3) Outra celeuma recorrente, conforme argumentações defensivas, é que a

autoridade policial, “ao formular pedido de agente infi ltrado e autorização para a

aquisição de drogas por parte desses agentes”, acaba por confundir os conceitos

de agente infi ltrado e agente provocador, nomeadamente na modalidade de tráfi co

“vender” droga.

Aqui, é preciso distinguir, sempre com olhos no caso concreto. Uma resposta

padrão observa que, no mais das vezes, aos acusados imputada-se a prática do

crime de tráfi co de drogas na modalidade “ter em depósito” e “guardar”. Tais

condutas, preexistentes, não seriam estimuladas pelos policiais, não se tratando,

portanto, de fl agrante preparado, pois o crime se consumou já com a realização dos

verbos nucleares “ter em depósito” e “guardar”.

O crime de tráfi co de drogas, tipifi cado no art. 33, caput, da Lei n. 11.343/06,

é daqueles denominados, dogmaticamente, como de tipo misto alternativo, ao

apresentar multiplicidade de verbos nucleares. Assim, a simples confi guração de

uma das ações expressas por um verbo, rectius, de qualquer uma das condutas

descritas por quaisquer dos plúrimos verbos nucleares elencados previamente pelo

legislador, perfectibiliza a infração. Tratando-se de crime de mera conduta, na

maioria das modalidades, encontra-se consumado apenas com a posse da substância

para entrega a terceiro. Nesse sentido, o ato de vender a droga caracteriza mero

exaurimento do crime.

Destaco, também, que a Lei n. 12.850/13, ao tratar da infi ltração policial,

determina, em seu art. 11, seja delimitado o alcance das tarefas dos agentes na

infi ltração. Logo, em princípio, é possível que a autoridade policial inclua a

aquisição de drogas pelos agentes “infi ltrados”.

Reconheço, neste passo, uma zona grísea, que bem vale o esforço de

aclaramento, na confl uência da Súmula n. 145 do STF, versando sobre crime

impossível em face de fl agrante provocado (alegação defensiva, diante do ato de

venda ilusória) e fl agrante prorrogado (ou retardado, ou diferido), no bojo de ação

alcance e melhor interpretação do § 1º do art. 8º da Lei n. 12.850/13, ao mencionar prévia comunicação, ao juiz competente, do retardamento da intervenção policial, isto é, até que ponto signifi caria desnecessidade de prévia autorização judicial, nomeadamente nas hipóteses de organização criminosa.

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Tráfico de drogas e meios ocultos de investigação: apontamentos iniciais

controlada, sendo ainda de distinguir entre agente infi ltrado, agente provocador e

agente encoberto.

Na tradição jurídico-penal brasileira, o fl agrante provocado ocorre quando

o sujeito ativo é induzido a praticar o crime (terceiro faz surgir nele a resolução

criminosa, que até então não se manifestara em qualquer ato de execução), cuja

consumação é previamente inviabilizada (pela disposição e vigilância das forças de

segurança). Trata-se, numa expressão consagrada, de uma pantomima dirigida, modo

ardiloso (para constituir prova condenatória na persecução penal), por demiurgo

estatal que, insidiosamente, domina a cena do crime (e bem poderia considerar-se seu

coautor, ao dispor do domínio do fato, isto é, da decisão acerca do “se” e do “como”

do crime). Como exemplo, a 1ª Câmara Criminal não reconheceu, nem de longe,

tal atuação policial na investigação descortinada na referida ACr. n. 70068262138.

Penso, ademais, que a jurisprudência, na sua maioria, tampouco aceitaria a alegação

defensiva, ainda que as respostas possam variar de estilo.

Certo, há precedente10 considerando a aquisição de drogas por parte dos agentes

policiais como prova inválida, mesmo com prévia autorização judicial, ao afi rmar a

atipicidade da conduta dos réus, num paralelo com o fl agrante preparado. Pondero,

com a devida vênia aos cuidadosos argumentos exposados naquele acórdão, que

a decisão, por maioria, tendencialmente permanece isolada mesmo na 3ª Câmara

Criminal desta Corte, como se vê de outros arestos, anteriores e posteriores.11 Em

suma, ainda que vender droga, neste contexto, possa ser atípico,12 as condutas guardar

10 – Apelação-Crime n. 70063044218, 3ª Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: João Batista Marques Tovo, julgado em 01-10-15. Redator para o Acórdão Des. Diógenes V. Hassan Ribeiro. O Des. Sérgio M. Achutti Blattes, ao acompanhar a divergência, registrou que o fazia “por fundamentos pouco diversos”. 11 – Apelação-Crime n. 70063917843, j. em 14-05-15; Apelação-Crime n. 70067919936, 3ª Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: João Batista Marques Tovo, julgado em 23-03-16. No mesmo sentido da posição jurisprudencial majoritária: Apelação-Crime n. 70041855735, 3ª Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Nereu José Giacomolli, julgado em 21-07-11.12 – Imperiosa a cuidadosa análise do caso concreto, do suporte fático, já que o crime de tráfi co de drogas (na maioria das vezes trata-se de crime único) apresenta-se ora como fenômeno instantâneo (vender) ora permanente (ter em depósito, guardar, trazer consigo), um poliedro multifacetado, raramente concretizando-se num único e isolado verbo (unissubsistente). Pelo que, diante da extensa tessitura típica, rara a tentativa (numa das condutas) que não traga, imbricada, outra ação consumada. Nesta linha: “Quem traz consigo a droga já consumou a infração, logo, é muito difícil pensar em tentativa de venda, afi nal, para vender é preciso ter consigo.” (NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 249). Adiante, ao discorrer sobre o fl agrante preparado e o crime impossível: “Ilustrando: se um policial se passa por usuário e, dirigindo-se a outro usuário, pede para comprar parte da droga que este utiliza, ao tentar vender não pode haver válida prisão em fl agrante. Trata-se

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e trazer consigo são ínsitas à modalidade de tráfi co perpetrada, substanciam crime

permanente e em geral não são infl uenciadas pelo agir do agente estatal.

de delito impossível. Afi nal, não era trafi cante, mas, insista-se, usuário. Somente resolveu vender, pois foi induzido por terceiro, com o fi to exclusivo de lhe causar a prisão em fl agrante. No entanto, não é essa a situação cotidiana.O autêntico trafi cante possui droga ilícita em depósito ou traz consigo para a fi nalidade de vender. Nesse caso, se o policial solicitar o entorpecente e houver a tentativa de venda, não se trata de fl agrante preparado, logo, crime impossível. A prisão é legitimamente efetuada, levando-se em conta os demais verbos constantes do art. 33 da Lei de Drogas, como ‘ter em depósito’, ‘trazer consigo’, ‘guardar’ etc.” (NUCCI, idem, p. 256). Registro, aqui, dissonância doutrinária. LIMA, pese, na leitura que faço, comungar, em linhas gerais, da noção de que se o agente foi induzido a vender droga, nesta modalidade o tráfi co seria impossível, mas subsiste o fl agrante pela conduta anterior (trazer consigo, guardar, oferecer, ter em depósito), consigna: “Nesses casos de venda simulada de drogas, é importante que seja demonstrado que a posse da droga preexistia à aquisição pela autoridade policial”, porém, “se restar demonstrado que somente a quantidade vendida à autoridade policial estava com o agente, há de se concluir pela presença de crime impossível, pois não há crime anterior pelo qual ele possa responder. Ex.: o agente policial induz ou instiga o acusado a fornecer-lhe a droga que, no momento, não a possuía. Porém, saindo do local, e retornando minutos depois apenas com a quantidade de entorpecente pedida pelo policial, ocorre a prisão em fl agrante.” (LIMA, Renato Brasileiro. Legislação Criminal Especial Comentada. Salvador: JusPODIVM, 2016, p. 742-3). Se com a primeira afi rmação concorda-se tout court, a segunda merece reserva, inclusive pelo exemplo, pois, no caso fi gurado, ao retornar com a quantidade de entorpecente, o acusado, inexoravelmente, trouxe consigo a droga. Penso que, de fato, o bem jurídico saúde pública, no aspecto “venda”, não é seriamente ameaçado, pois o destino do entorpecente está previamente traçado pelo agente policial e não será consumido ou reposto em circulação. Mas não se trata, a rigor, de inviabilidade dogmática, pois, dado um contrato sinalagmático (a compra e venda, por excelência), o vendedor realizou tudo que estava ao seu alcance, inclusive a tradição, frustrando-se o ato jurídico complexo pela simulação do comprador. E teria havido, restrita e parcial (por circunstância alheia ao vendedor) circulabilidade, apenas que a droga será objeto (como suporte material) da devida persecução penal. Mesmo ab ovo inválido, diante do objeto ilícito (art. 104, II, do Código Civil), alguma analogia entre os negócios jurídicos em geral e a compra e venda de drogas talvez gere rendimento. No contrato padrão de compra e venda, um dos contratantes [o vendedor] se obriga a transferir o domínio de certa coisa, e o outro [o adquirente] a pagar--lhe certo preço em dinheiro (art. 481 do Código Civil) – e o negócio se considera obrigatório e perfeito “desde que as partes acordarem no objeto e no preço” (art. 482 do Código Civil). A bilateralidade do negócio resplandece no substrato de vida recortado da experiência antropológica, nada obstante, por sólidas razões de política criminal, o legislador tenha fracionado a conduta no sinalagma vender drogas (sujeito ativo do crime de tráfi co, art. 33 da Lei n. 11.343/06) e adquirir drogas (sujeito ativo do delito previsto no art. 28 da Lei n. 11.343/06 [adquirir para recolocar em circulação, consabido, confi gura tráfi co, um dos 18 verbos recortados pelo legislador]). Veja-se que, no direito privado, os defeitos do negócio jurídico elencam-se nos arts. 138 a 165 (erro ou ignorância, dolo, coação, estado de perigo, lesão e fraude contra credores). Quanto ao negócio jurídico simulado, é nulo, “mas subsistirá o que se dissimulou, na substância e na forma” – e a simulação ocorre, dentre outras hipóteses, quando o negócio aparentar “conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais realmente se conferem, ou transmitem” (Código Civil, art. 167, caput, e § 1º,inc. I). Venda houve, poder-se-ia aventar, mas nulo o contrato de compra e venda, pela simulação identitária do adquirente. De toda sorte, voltando à seara penal, as condutas anteriores, como já referi, perfectibilizam, nalguma outra das modalidades, o delito de tráfi co, salvo peculiaridades, que não prescindem das referências concretas.

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Tráfico de drogas e meios ocultos de investigação: apontamentos iniciais

A jurisprudência mencionada ecoa doutrina: “Situação que tem sido

considerada como exceção válida às hipóteses de fl agrante preparado é aquela

em que o agente provocador induz sujeito ativo à prática do crime visando a

descobrir e autuá-lo por delito preexistente ou contemporâneo ao que foi induzido

a cometer”.13

Logicamente, um fl agrante preparado/provocado tem como causa um

agente provocador, que atua geralmente sem prévia autorização judicial e induz

alguém à prática criminosa (sendo que o sujeito induzido não tinha previamente tal

propósito), campo de incidência da Súmula n. 145 do STF (“Não há crime, quando

a preparação do fl agrante pela polícia torna impossível a sua consumação”),

também pela violação ao direito fundamental de não se autoacusar e o da amplitude

de defesa, para além da inefi cácia absoluta dos meios para consumar o delito.

Distinta, entretanto, a fi gura do agente encoberto. O policial, que se faz passar

por usuário (ocultando sua real condição de agente da lei) e adquire entorpecente

para produzir prova da materialidade e colher informações úteis ou imprescindíveis

no consequente processo penal, não age de forma a induzir o tráfi co de drogas

(que preexiste nas modalidades referidas), evidenciando-se, no suporte fático, que

a droga seria vendida para todo e qualquer usuário que, preenchendo as mesmas

condições de tempo, lugar, hora e modo, solicitasse ou manifestasse interesse na

transação. Essa a fi gura que a 1ª Câmara identifi cou na citada ACr. n. 70068262138.

Nesse sentido: “Em síntese, para serem válidas em juízo, ‘as provas colhidas’

pelo undercover agent devem derivar de atos preparatórios iniciados espontaneamente

pelo investigado, ou devem resultar de iter criminis por ele percorrido também

espontaneamente (...).”.14

Pese entendimento de que haveria coincidência conceitual entre o agente

encoberto e o agente infi ltrado, penso melhor distingui-los. Certo que, nalgumas

situações, o agente infi ltrado (nos termos dos arts. 10 a 14 da Lei n. 12.850/2013)

poderá, no desempenho das tarefas de investigação, ver-se forçado (para ganhar

a confi ança, nas primeiras aproximações) a adquirir drogas quando investiga

organização criminosa atinente a tráfi co de drogas (o art. 11 da referida lei prevê

13 – AVENA, Norberto. Processo Penal Esquematizado. 7ª ed. São Paulo: Editora Método, 2015, p. 864-5.

14 – LIMA, op. cit., p. 575. A rigor, o autor está citando Vladimir Aras (nota de rodapé 168), para quem: “há provocação quando a conduta do infi ltrado ou do agente encoberto é decisiva para a consumação do crime. Não há provocação quando o dolo é latente e antecede o induzimento policial, não havendo ardil ou persuasão dos investigadores para viciar a vontade do suspeito ou fazer surgir a intenção criminosa”.

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Jayme Weingartner Neto

a delimitação do “alcance das tarefas dos agentes”). Evidente, ainda, que o agente

infi ltrado, por defi nição, não revela sua real identidade (o que explica os direitos

delineados no art. 14, incs. II a IV), o que implicaria “risco iminente” e sustação

da operação (§ 3º do art. 12), bem como, no limite, pode envolver-se na eventual

prática de crime, se inexigível conduta diversa (parágrafo único do art. 13 da

Lei n. 12.850/13). Mas, o núcleo defi nitório há de inserir-se numa organização

criminosa, parecendo ser um de seus integrantes,15 situação léguas distante de “parecer

ser um usuário”, que é apenas o destinatário fi nal (cliente) do tráfi co de drogas.

No caso que se vem examinando, portanto, não se reconheceu infi ltração,16

mas atuação de agente encoberto para investigação, ao abrigo da “ação controlada” –

prevista no art. 8º da Lei n. 12.850/13 para retardar fl agrante que, do contrário, seria

seu dever realizar incontinente (art. 302 do Código de Processo Penal), e, com isso,

utilizar-se de meio de obtenção de provas mais amplas, subjetiva e objetivamente, no

que tange ao escopo da organização.17

A fi gura do undercover agent é amplamente utilizada, há tempos, nos países da

Common Law. Trata-se de comprar drogas e prender o vendedor (denominada buy-

-and-bust operation) – o que é aceito, todavia, com fundamental ressalva, isto é, desde

que não se caracterize o entrapment.18 Há um leading case no Canadá, uma decisão

15 – Introduzir-se, ingressar no ambiente criminoso, desvendar sua estrutura, “com a única fi nalidade de colher informações sobre o seu efetivo funcionamento”. Difere da “penetração” [diria de outros atos investigativos pontuais], pois, na infi ltração, “a permanência dos agentes é prolongada, mais duradoura e as informações, embora possam ser obtidas por meios mecânicos, eletrônicos ou informatizados, normalmente são colhidas pessoalmente, uma vez que o infi ltrado passa a fazer parte da associação, atuando da mesma forma que todos os demais componentes”. (THUMS, Gilberto; PACHECO, Vilomar. Nova lei de drogas: crimes, investigação e processo. 3ª ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2010, p. 162-3)16 – Percebo, retrospectivamente, que já afi rmara algo similar na Apelação Criminal n. 70052638772, julgada em 27 de fevereiro de 2013. 17 – Duvidoso, para dizer o mínimo, diante da tipicidade subjetiva (pois a aquisição não se orientava “para consumo pessoal”), que o agente encoberto precisasse da autorização judicial para imunizar-se da incidência do art. 28 da Lei n. 11.343/06. Não se tratou, assim, no caso em comento, de autorização para cometer crimes. 18 – A “armadilha”, lavrada por um agent provocateur, não é reconhecida, como alegação defensiva, pelas Cortes inglesas, quando a situação indica que o réu (que, ao vender drogas para um policial, é preso em fl agrante) ainda tinha liberdade de escolha para conduzir seus atos – por outro lado, a presença do undercover agent pode mitigar a pena. Já o “agente provocador” defi ne-se como a pessoa que ativamente seduz (atrai, alicia), encoraja ou persuade alguém a cometer um crime que, de outra forma, não teria ocorrido, com o propósito de assegurar a respectiva condenação (Oxford dictionary of Law, 4ª ed, edited by Elizabeth A. Martin, Oxford/New York: Oxford University Press, p. 164 e 19).

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Tráfico de drogas e meios ocultos de investigação: apontamentos iniciais

da Suprema Corte (R. v. Mack)19 que fornece diretrizes para substanciar uma prática

policial ilegal como entrapment (aplicando a doctrine of abuse of process). Não se trata,

a rigor, de uma exceção substancial (a desfazer o injusto ou a culpabilidade), mas

de preservar a regular administração da justiça e prevenir abusos. O abuso ocorre

quando a polícia excede limites aceitáveis, como fornecer meios para oportunizar

a ofensa a uma pessoa que não se comportava de maneira a fazer recair sobre si

suspeita razoável de que já estivesse engajada em atividades criminais ou não fosse

previamente objeto de regular investigação (a bona fi de inquiry); ou, mesmo no curso

de inquérito ou diante de suspeitas razoáveis, se a polícia ultrapassa a conduta de

fornecer a oportunidade e induz o cometimento do crime. A barreira posta procura

evitar/minorar o risco de que a polícia acabe atraindo para o ilícito pessoas que,

de outra forma, não cometeriam crimes; e porque, no fi m das contas, não é função

estatal usar o poder de polícia para sair aleatoriamente pelas ruas testando a virtude

das pessoas. Há uma série (não exaustiva) de dez fatores a considerar na apreciação

dos casos concretos.20 A Suprema Corte do Canadá assentou que a alegação de

entrapment é muito grave, pelo que signifi ca em termos de desvio estatal, sendo

certo que a efetiva persecução penal (e o desenvolvimento de correlatas técnicas

investigativas) é dever do Estado na proteção da sociedade, mormente em crimes de

tráfi co de drogas.21 Daí que a exceção só deva reconhecer-se em casos claríssimos,

nos quais a conduta policial tenha violado valores básicos da comunidade.

Ainda que noutro viés e com variação terminológica, a doutrina portuguesa

pode socorrer. Para reconhecer-se o fl agrante provocado esgrimido pela

19 – (1988) 44 C.C.C (3d) 513 (S.C.C), cfe. https://scc-csc.lexum.com/scc-csc/scc-csc/en/item/391/index.do, acesso em 14-06-16: Criminal law – Defences – Entrapment – Traffi cking conviction – Accused once an addict but had given up narcotics – Police informer persistently requesting accused to sell drugs over lengthy period of time – Informer threatening accused and offering large monetary inducement – Whether or not stay of proceedings should issue on basis of entrapment – Manner in which entrapment claim should be dealt with by the Courts. Trilho o caminho do “diálogo judicial internacional”, fenômeno derivado das tradições constitucionais compartilhadas pelos países democráticos, inspirado em RAMIRES, Maurício. Diálogo judicial internacional: a infl uência recíproca das jurisprudências constitucionais como fator de consolidação do Estado de direito e dos princípios democráticos. Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Tese de doutoramento, 2013. 20 – A prévia autorização judicial, penso, acarreta presunção de que havia razoável suspeita pesando contra o réu.21 – O paralelo com o quadro brasileiro parece bastante possível, inclusive pela especial reprovação constitucional ao tráfi co de drogas (CF, art. 5º, inc. XLIII), sem falar dos tratados internacionais e compromissos assumidos pelo Brasil.

170

Jayme Weingartner Neto

defesa, no contexto de delitos de tráfi co de drogas e diante da ação controlada

autorizada judicialmente, seria inexorável a presença de um instigador [indutor]

que dolosamente determinasse outra pessoa à prática de um crime. “Instigador

não é, para estes efeitos, aquele que incentiva, aconselha, meramente sugere ou

reforça o propósito de outrem de cometer um ilícito típico; tão-pouco aquele que

simplesmente o induz àquele cometimento, ajudando-o a vencer as resistências,

físicas, intelectuais ou morais, ou mesmo afastando os últimos obstáculos que o

separam do crime; em suma, todo aquele que, com a sua conduta, infl uencia a motivação

do executor na direcção da realização típica. Este não é autor, mas só, se disso for caso,

participante sob uma forma alargada de cumplicidade. § 46 Instigador no sentido do

artigo 26º é unicamente quem produz ou cria de forma cabal – podia talvez dizer-

-se, pedindo ajuda à língua francesa: quem fabrica ‘de toutes piéces’ – no executor

a decisão de atentar contra um certo bem jurídico-penal através da comissão de

um concreto ilícito típico; se necessário inculcando-lhe a idéia, revelando-lhe a sua

possibilidade, as suas vantagens ou o seu interesse, ou aproveitando a sua plena

disponibilidade e acompanhamento de perto e ao pormenor a tomada de decisão

defi nitiva pelo executor.” Adiante, agora pela negativa: “Só quem já está determinado

à realização de um facto concreto (o chamado omnimodo facturus) é insusceptível

de ser instigado: tal constitui doutrina unânime”.22

Por tudo isso, na ACr n. 70068262138, a 1ª Câmara identifi cou a fi gura

do agente encoberto, que ademais atuou em ação controlada e nos lindes de

investigação razoável. Nem houve infi ltração e tampouco fl agrante provocado,

de modo que as provas correlatas (testemunhal e audiovisual) foram consideradas

lícitas.23

(4) Em conclusão, ciente do estágio provisório da refl exão e da necessidade

de maior e mais completa sistematização: a atuação de agentes policiais encobertos,

neste horizonte e no atual quadro normativo, não ultrapassado o linde da Súmula

22 – DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal. Parte Geral, Tomo I, 2ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 799 e 800, respectivamente.23 – Poderia até dizer, em paráfrase (o autor refere-se a infi ltração policial), que, uma vez admitida a licitude do meio de investigação e, consequentemente, de prova, o depoimento do agente encoberto (reforçado em fi dedignidade pela gravação ambiental das cenas que serão narradas em juízo) constitui “testemunho qualifi cado”, pelo ângulo de visão (é, mais ou menos, um insider): “Chamam-se testemunhas da coroa porque representam o poder estatal. Também o depoimento desse policial infi ltrado é relativo. Não existe prova absoluta no processo penal.” (GOMES, Luiz Flávio. Lei de Drogas Comentada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 239)

171

Tráfico de drogas e meios ocultos de investigação: apontamentos iniciais

n. 145 – consideradas as peculiaridades da intervenção concreta, especialmente

em delitos de tráfi co/associação, nomeadamente operações de aquisição de drogas

de sujeito sobre o qual recai anterior e razoável suspeita de inserção criminosa,

e no curso de investigação de boa-fé – prescinde de autorização judicial, quando

manifestada em fenômeno pontual, mas submete-se (ausente controle jurisdicional

prévio) à estreita verifi cação a posteriori em termos de legitimidade e utilidade das

informações e provas eventualmente obtidas.

Em distinção, investigação de maior porte, estruturada em etapas,

planejada com inteligência, a alongar-se temporalmente, há de benefi ciar-se dos

procedimentos investigatórios e meios de obtenção de prova legalmente previstos

(infi ltração, captação ambiental, ação controlada, etc.), com a devida autorização

judicial (ressalvada, no direito positivo brasileiro, a “comunicação” já referida, nos

termos do § 1º do art. 8º da Lei n. 12.850/13), inclusive para escoimar qualquer

suspeita em relação à atuação dos agentes estatais e tornar incontroverso o ambiente

de coleta de provas.

Certo que enfrentar algumas manifestações da criminalidade contemporânea

impõe a adoção, em maior ou menor medida, de métodos ocultos de investigação, do

que se têm ocupado, em maior ou menor grau, as ciências criminais do mundo

globalizado e hiperconectado. Inegável, à partida, que tais métodos “representam

uma intromissão nos processos de ação, interação e comunicação das pessoas

concretamente visadas, sem que estas tenham conhecimento do fato nem dele se

apercebam. (...) levam as pessoas atingidas – normalmente o suspeito – a ‘ditar’

inconscientemente para o processo ‘confi ssões’ não esclarecidas nem livres”.24

Por outro lado, indisputável que os meios ocultos de investigação “vieram

para fi car”; dada a força normativa dos fatos serem imprescindíveis, “sendo, como

são, insubstituíveis na perseguição e repressão de uma nova fenomenologia criminal –

criminalidade organizada, transnacional, transacional, consensual, victimless – acoitada

em santuários imunes à devassa dos meios tradicionais e ‘abertos’ de investigação”.

Certo que restringem/sacrifi cam direitos fundamentais substanciais e processuais,

representam, em si, “um momento irredutível de danosidade”, levando à balança da

ponderação “para efeitos de cumprimento do imperativo da proporcionalidade”.25

24 – ANDRADE, Manuel da Costa. “Bruscamente no Verão Passado”, a reforma do Código de Processo Penal – observações críticas sobre uma Lei que podia e devia ter sido diferente. Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 105-6.25 – Idem, p. 106-8. Sistematicamente, é preciso positivá-los, ressaltar sua subsidiariedade e preservar as

172

Jayme Weingartner Neto

Apenas para gizar a importância do tema, verifi ca-se que o Projeto de Lei

n. 4.850/16, que tramita na Câmara dos Deputados a partir do movimento “10

medidas contra a corrupção”, prevê, nos seus arts. 49 e 50, a submissão de agentes

públicos a testes de integridade, cujos resultados poderão ser usados para instrução

criminal, com o objetivo de testar a conduta moral e a predisposição dos agentes

públicos para cometer ilícitos contra a administração.26 Ainda que ancorados na

defesa da moralidade pública, testes de integridade aleatórios, a priori, parecem

desproprocionais, confi gurando tortuosos testes de virtude, na fronteira da indução.

Trata-se, ao cabo, de encontrar, ao menos na ótica do Estado-Juiz, o

equilíbrio entre a “carta branca” e a “camisa de força” que não devem, nas

antípodas, demarcar a atuação dos órgãos de persecução penal (Polícia e Ministério

Público), mormente no contexto desafi ador e (um tanto) exasperado das “guerras”

hodiernas (war on terrorism, war on drugs).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, Manuel da Costa. “Bruscamente no Verão Passado”, a reforma

do Código de Processo Penal – observações críticas sobre uma Lei que podia e devia ter sido

diferente. Coimbra: Coimbra Editora, 2009.

AVENA, Norberto. Processo Penal Esquematizado. 7ª ed. São Paulo: Editora

Método, 2015.

esferas de reserva e segredo nucleares (p. 110-2). Tudo a recomendar, no atual estágio da experiência jurídica, um paradigma com algumas traves mestras, tais como reserva de lei (p. 112-3), um catálogo de infrações, a verifi cação em concreto de suspeita fundada, consistente aferição da proporcionalidade, proibições de valoração da prova e, fi nalmente, uma reserva de juiz (tutela preventiva, ressalvadas as situações de “perigo na demora”, com controle posterior) – p. 114-7. Adverte Costa Andrade: “o juiz corre o risco de fi gurar aqui reduzido ao estatuto de longa manus do Ministério Público, assumindo a sua versão dos fatos e chancelando as suas pretensões. (...) [pois] os dados empíricos recolhidos deixam a descoberto o mimetismo sistemático dos juízes de instrução quanto ao pedido da acusação” (p. 118-9).26 – Confi ram-se os artigos: art. 49. A Administração Pública poderá, e os órgãos policiais deverão, submeter os agentes públicos a testes de integridade aleatórios ou dirigidos, cujos resultados poderão ser usados para fi ns disciplinares, bem como para a instrução de ações cíveis, inclusive a de improbidade administrativa, e criminais; art. 50. Os testes de integridade consistirão na simulação de situações sem o conhecimento do agente público, com o objetivo de testar sua conduta moral e predisposição para cometer ilícitos contra a Administração Pública. Notícia do Valor Econômico, 05-08-16, A7, refere: “A proposta leva para o campo da administração pública dispositivo já usado para o combate ao tráfi co de drogas, por exemplo, quando a polícia põe um agente infi ltrado para frequentar uma boca de fumo”.

173

Tráfico de drogas e meios ocultos de investigação: apontamentos iniciais

DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal. Parte Geral, Tomo I, 2ª ed.

Coimbra: Coimbra Editora, 2007.

GOMES, Luiz Flávio. Lei de Drogas Comentada. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2013, p. 239.

LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação Criminal Especial Comentada.

Salvador: Editora JusPODIVM, 2016.

NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. São

Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.

Oxford dictionary of Law, 4ª ed., edited by Elizabeth A. Martin, Oxford/New

York: Oxford University Press.

RAMIRES, Maurício. Diálogo judicial internacional: a infl uência recíproca

das jurisprudências constitucionais como fator de consolidação do Estado de direito e dos

princípios democráticos. Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Tese de

doutoramento, 2013.

THUMS, Gilberto; PACHECO, Vilomar. Nova lei de drogas: crimes, investigação

e processo. 3ª ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2010.

A POSSIBILIDADE DE CONTROLE DE

CONSTITUCIONALIDADE POR PARTE DO TRIBUNAL DE

CONTAS: UM ESTUDO DA SÚMULA N. 347 DO SUPREMO

TRIBUNAL FEDERAL E A POSIÇÃO DO TRIBUNAL DE

JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL1

Caroline Müller Bitencourt2

Janriê Rodrigues Reck3

RESUMO

O trabalho versa sobre as possibilidades de controle de constitucionalidade do

Tribunal de Contas em relação à sua extensão e limites, e da postura do Tribunal de

1 – O presente artigo é fruto do projeto de pesquisa “Projeto Interinstitucional de redes de grupos

de pesquisa sobre o tema Patologias Corruptivas nas relações entre Estado, Administração Pública e

Sociedade: Causas, Consequências e Tratamentos – PARTE II: discutindo formas de enfrentamento do

fenômeno”, coordenado pelo Prof. Dr. Rogério Gesta Leal, e também do projeto de pesquisa “Controle

social e administrativo de políticas públicas”, coordenado pela Dra. Caroline Müller Bitencourt, sendo

as pesquisas desenvolvidas junto ao Centro Integrado de Estudos e Pesquisas em Políticas Públicas –

CIEPPP e do Programa de Pós-Graduação, Mestrado e Doutorado em Direito.

2 – Doutora em Direito. Professora do Programa de Pós-Graduação, Mestrado e Doutorado da

Universidade de Santa Cruz do Sul. Advogada. Pesquisadora vinculada ao Centro de Estudos e

Pesquisa em Políticas Públicas. E-mail: [email protected].

3 – Doutor em Direito. Professor do Programa de Pós-Graduação, Mestrado e Doutorado da

Universidade de Santa Cruz do Sul. Procurador Federal. Pesquisador vinculado ao Centro de Estudos

e Pesquisa em Políticas Públicas. E-mail: [email protected].

176

Caroline Müller Bitencourt e Janriê Rodrigues Reck

Justiça do Rio Grande do Sul frente à Súmula n. 347 do Supremo Tribunal Federal.

O problema proposto é: quais as possibilidades de controle de constitucionalidade

por parte do Tribunal de Contas com fundamento na Súmula n. 347 e como a

mesma tem sido aplicada na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande

do Sul? Visando à resposta do problema, dividiu-se a investigação nos seguintes

tópicos: primeiro, discute-se brevemente o controle de constitucionalidade no

direito brasileiro com ênfase nas especifi cidades do controle difuso, haja vista

parte da doutrina interpretar que caberia controle do Tribunal de Contas nesta

modalidade; em segundo, busca-se discutir a natureza das decisões emanadas pelo

Tribunal de Contas; em um terceiro momento, a interpretação atribuída à Súmula

n. 347 pelo Supremo Tribunal Federal; e, por fi m, analisa-se a postura do Tribunal

de Justiça do Rio Grande do Sul no bojo da matéria. O método de investigação

é o hipotético-dedutivo. Conclui-se que o Tribunal de Justiça nas suas decisões

apenas reforça a validade da Súmula n. 347 e a invoca para legitimar as decisões

proferidas pelo Tribunal de Contas, contudo, não há uma refl exão crítica acerca

de conteúdo e das possibilidades, inclusive, não resta cristalina se a postura do

Tribunal é por reconhecer a competência do Tribunal de Contas para afastar a

aplicação de norma que considere inconstitucional ou se para exercer o controle de

constitucionalidade pela via incidental, contrariando inclusive, na última hipótese,

interpretação recente do Supremo Tribunal Federal no MS n. 31.439.

1 INTRODUÇÃO

O presente artigo perpassa por duas grandes discussões do direito

constitucional e administrativo atualmente. Em primeiro, trata-se do controle de

constitucionalidade das normas no direito brasileiro e da difícil arquitetura do

controle em decorrência da adoção de diferentes modelos e mecanismos ao longo

da história constitucional brasileira, e, em segundo, do papel do Tribunal de Contas,

especialmente acerca da possibilidade e dos limites de ação no que se refere à função

de controle de constitucionalidade. O tema objetiva a refl exão sobre a adequação

da Súmula n. 347 aos dias atuais, abordando-se pontos divergentes a respeito do

tema “controle de constitucionalidade e as condições em que o Tribunal de Contas

exerce seu controle de constitucionalidade”. Para além do estudo doutrinário e

jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, objetiva-se também compreender

a postura adotada pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em relação à

aplicação da Súmula n. 347 do STF.

177

A possibilidade de controle de constitucionalidade por parte do Tribunal de Contas: um estudo da Súmula n. 347 do STF e a posição do Tribunal de Justiça do RS

Tal tema refl ete a importância acadêmica, pois enseja uma série de discussões

sobre a temática da competência, mas também possui um apelo social ante o fato

de que serão os administrados que sofrerão os refl exos dessas decisões.

O problema no qual se centrou a investigação é: quais as possibilidades de

controle de constitucionalidade por parte do Tribunal de Contas com fundamento

na Súmula n. 347 e qual a postura adotada pelo Tribunal de Justiça do Rio grande

do Sul referente a tal matéria?

A hipótese é que o Tribunal de Justiça adota o entendimento majoritário

do Supremo Tribunal Federal de que caberia controle de constitucionalidade pelo

Tribunal de Contas, mas que não discute as minúcias da decisão ignorando as

implicações de reconhecer tal possibilidade de controle.

Dividiu-se a abordagem em quatro tópicos, visando a enfrentar o problema

proposto: primeiramente, será discutido o modelo de constitucionalidade brasileiro

para indagar qual o espaço do Tribunal de Contas como órgão também incumbido do

controle; em seguida, discute-se a natureza do Tribunal de Contas e suas competências,

dentre as quais a averiguação da constitucionalidade das normas, destacando-se o

contexto da criação dessa competência em relação ao conteúdo da Constituição de

1988; para, ao fi nal, analisar os precedentes da Súmula n. 347 do Supremo Tribunal

Federal e seus fundamentos sob um viés crítico, apontando qual a diretriz que tem sido

adotada pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul no que toca a essa matéria.

O método será o hipotético-dedutivo, em que se busca levantar as diversas

hipóteses de aplicação da Súmula n. 347 para após se chegar a uma conclusão e

apreciação crítica de qual a leitura adequada do verbete: “O Tribunal de Contas,

no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos

atos do Poder Público.”

2 ASPECTOS RELEVANTES SOBRE O CONTROLE DE

CONSTITUCIONALIDADE PARA INTERPRETAÇÃO DA SÚMULA

N. 347: UM OLHAR ACERCA DAS ESPECIFICIDADES DA VIA

INCIDENTAL

O enunciado da Súmula n. 347, em si, quando invocado pelos julgadores

quando da sua aplicação, não supre a necessidade de fundamentar e cristalizar

a sua incidência. Dizer que o enunciado sumular não foi revogado e, portanto,

mantém plena vigência no ordenamento não esclarece os termos de sua aplicação,

haja vista que mera redação do texto não resolve por si os possíveis limites e

178

Caroline Müller Bitencourt e Janriê Rodrigues Reck

confl itos oriundos dessa autorização de controle de constitucionalidade por parte do

Tribunal de Contas. Ou seja: quais os limites da declaração de constitucionalidade

pelo Tribunal de Contas? Como interpretar tal disposição sem afrontar a Constituição

no que toca o papel de Guardião da Constituição ao Supremo Tribunal Federal?

Como ler tais dispositivos à luz da máxima que cabe exclusivamente ao Poder

Judiciário a aferição de constitucionalidade das normas no direito brasileiro? Seria

esse um controle difuso ou concentrado? Enfi m, essas são algumas indagações que

se pretende responder. Para tanto, parte-se da revisão de algumas nuances do controle

de constitucionalidade que possuem refl exos nas respostas das questões suscitadas.

a verifi cação da adequação de um ato jurídico (particularmente da lei)

à Constituição. Envolve a verifi cação tanto dos requisitos formais –

subjetivos, como a competência do órgão que o editou – objetivos,

como a forma, os prazos, o rito, observados em sua edição – quanto dos

requisitos substanciais – respeito aos direitos e às garantias consagrados

na Constituição – de constitucionalidade do ato jurídico (MENDES,

G. F.; COELHO, I. M.; BRANCO, P. G. G., 2008).

O reconhecimento da supremacia da Constituição e de sua força vinculante

em relação aos Poderes Públicos torna inevitável a discussão sobre formas e modos

de defesa da Constituição e sobre a necessidade de controle de constitucionalidade

dos atos do Poder Público, especialmente das leis e atos normativos.

O controle de constitucionalidade no direito brasileiro, para boa parte da

doutrina pátria, é conhecido como misto, pois estaria inspirado tanto no controle

concentrado/abstrato, modelo austríaco, bem como no sistema norte-americano,

chamado também de concreto e incidental. Nesse aspecto seria misto, pois

comportaria ações com competência originária ao Supremo Tribunal Federal para

apreciar a constitucionalidade e a competência recursal em se tratando de controle

difuso/incidental em que a constitucionalidade é arguida de forma secundária

(SARLET, I. W.; MARINONI, L. G.; MITIDIERO, D., 2012).

O presente trabalho vai tecer observações em relação ao controle difuso,

pois pacífi co tem sido o entendimento que, pós-Constituição de 1988, o controle

abstrato pertence exclusivamente ao Supremo Tribunal Federal por intermédio das

ações originárias destinadas à preservação da constitucionalidade. Dúvidas têm

pairado se o controle do Tribunal de Contas poderia ser compreendido como um

controle concreto, incidental.

179

A possibilidade de controle de constitucionalidade por parte do Tribunal de Contas: um estudo da Súmula n. 347 do STF e a posição do Tribunal de Justiça do RS

O controle difuso é caracterizado por permitir que todo e qualquer juiz ou

tribunal possa realizar no caso concreto a análise sobre a compatibilidade da norma

infraconstitucional com a Constituição Federal. Nesse caso, o objeto principal da

ação não é a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, sendo a mesma analisada

incidentalmente ao julgamento de mérito. A declaração de inconstitucionalidade

torna-se necessária para a solução do caso concreto em questão, ou seja, a apreciação

de inconstitucionalidade tem o condão de decidir determinada relação jurídica,

objeto principal da ação, daí sua nomenclatura de incidental.

Na via de exceção, a pronúncia do Judiciário, sobre a inconstitucionalidade,

não é feita enquanto manifestação sobre o objeto principal da lide, mas

sim, sobre questão prévia, indispensável ao julgamento do mérito.

Nesta via, o que é outorgado ao interessado é obter a declaração de

inconstitucionalidade somente para efeito de isentá-lo, no caso concreto,

do cumprimento da lei ou ato, produzidos em desacordo com a Lei

maior. Entretanto, este ato ou lei permanecem válidos no que se refere à

sua força obrigatória com relação a terceiros (MORAES, 2009, p. 709).

Se, como fora dito, a inconstitucionalidade não é o aspecto principal, mas, sim,

secundário da demanda, a alegação de (in)constitucionalidade da norma se daria de

forma incidental ou prejudicial, pois a centralidade da demanda é o que ensejou o

pedido no caso concreto (seja como inicial, como contestação, como recurso, etc.),

sendo a discussão sobre a declaração de (in)constitucionalidade apenas um elemento

para apreciação do caso concreto – fundamental para a decisão da lide.

Ressalta-se que, em havendo declaração de inconstitucionalidade da norma

a ser aplicada no caso concreto pela via difusa, a norma contestada não será

excluída do sistema jurídico, surtindo seus efeitos apenas às partes envolvidas na

lide em questão. Sendo assim, em “tese”, a decisão que afasta o ato inconstitucional

não benefi cia a quem não for parte da demanda em que se reconhecer a

inconstitucionalidade. A repercussão dos seus efeitos será, assim como no controle

concentrado ex tunc4, salvo a aplicação do art. 27 da Lei n. 9.868/99, conforme

4 – Porém, a Lei n. 9.868/99 contém disposição (art. 27) que autoriza o Supremo Tribunal Federal, tendo em

vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, a restringir os efeitos da declaração de

inconstitucionalidade ou a estabelecer que ela tenha efi cácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro

momento que venha a ser fi xado, desde que tal deliberação seja tomada pela maioria de dois terços de seus

membros.

180

Caroline Müller Bitencourt e Janriê Rodrigues Reck

entendimento pacífi co do Supremo Tribunal Federal (TAVARES, 2012).

A jurisprudência e a doutrina brasileira vêm se desenvolvendo no sentido

de buscar a base para um controle difuso abstratizado. Basicamente o fundamento

desse fenômeno é a busca de que as decisões do plenário do STF venham a ter

efi cácia geral5, sob o argumento de aprimorar a concretização da Constituição e

garantir que a efetivação de decisão judicial realize os valores de segurança jurídica

e da razoável duração do processo declarados pela própria CF/88.

O processo de abstratização do controle difuso evidencia uma mudança

paradigmática, abrangente e efetiva no que tange à atuação jurisdicional e

legislativa, corolário lógico do processo de uniformização e objetivação da ordem

normativa constitucional. Basicamente a mudança propiciou uma verdadeira

redefi nição do papel do STF em sede de controle difuso de constitucionalidade,

assumindo feição de estabilizador defi nitivo da ordem constitucional, na medida

que seu entendimento se estenda para além das partes envolvidas no processo em

comento (MORAIS, 2010).

A mudança signifi cativa que propiciou verdadeira aproximação em

relação ao controle concentrado, como exemplo, um recurso extraordinário, ao

ser apreciado pelo plenário da casa, este último irá emitir decisão sobre lei ou

ato normativo em tese, desvinculado do próprio caso concreto, tal como faz nas

hipóteses de controle abstrato, logo, a decisão transcende as partes.

A doutrina tem se divido na crítica do tema, entre os que defendem que, ao

abstrativizar o controle concreto/difuso, este perde sua principal característica, qual

seja, a análise do caso concreto que, em sua essência, é único e teria peculiaridades

que envolvem o caso concreto. Já os defensores do fenômeno tratam da necessidade

da atuação objetiva do Supremo Tribunal Federal, construção que parece estar

relacionada com a caracterização da natureza objetiva ao recurso extraordinário,

para que o mesmo não fi que adstrito à perseguição de direitos subjetivos, mas como

um meio de constitucionalidade estipulado para a preservação objetiva da própria

Constituição. Para tal corrente, seria a forma de se levar a decisão do Supremo a

todas as instâncias judicializadas, por meio da forma recursal6.

5 – A EC n. 45/2004 acrescentou ao art. 102 da CF o § 3º, que possui a seguinte redação: “No recurso

extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais

discutidas no caso, nos termos da lei, a fi m de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente

podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros”.

6 – O papel recursal do Supremo Tribunal Federal: Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal,

precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: (...) III - julgar, mediante recurso extraordinário, as

181

A possibilidade de controle de constitucionalidade por parte do Tribunal de Contas: um estudo da Súmula n. 347 do STF e a posição do Tribunal de Justiça do RS

A repercussão geral situou-se como um dos principais e mais difíceis dos

requisitos de admissibilidade do recurso extraordinário que tem por objetivo

restringir o acesso ao STF, permitindo-o analisar os casos de fl agrante cunho

constitucional e que tenham a relevância econômica, jurídica e social com

transcendência da matéria:

Perceba-se, ainda, que a relevância da questão debatida tem de ser

aquilatada do ponto de vista econômico, social, político, ou jurídico.

Não se tire daí, como é evidente, a exigência que a controvérsia seja

importante sob todos esses ângulos de análise: basta que reste caracterizada

a relevância do problema debatido em uma dessas perspectivas. Impõe-se

que a questão debatida, além de se caracterizar como de relevante importe

econômico, social, político ou jurídico, ultrapasse o âmbito de interesse

das partes. Vale dizer: tem de ser transcendente. Também aqui o legislador

infraconstitucional alça mão de linguagem propositadamente vaga,

consentindo ao STF a aferição de transcendência da questão debatida a partir

do caso concreto. A transcendência da controvérsia constitucional levada

ao conhecimento do STF pode ser caracterizada tanto em uma perspectiva

qualitativa como quantitativa. Na primeira, sobreleva para individualização

da transcendência o importe da questão debatida para a sistematização e

desenvolvimento do direito; na segunda, o número de pessoas susceptíveis

de alcance, atual ou futuro, pela decisão daquela questão pelo Supremo, e,

bem assim, a natureza do direito posto em causa (notadamente, coletivo ou

difuso). (SARLET, MARINONI e MITIDIERO, 2012)

A questão constitucional levada a julgamento por meio do recurso

extraordinário terá seu conhecimento subordinado à alegação de questões

relevantes sob o ponto de vista econômico, social, político ou jurídico. Além disso,

a questão deve ultrapassar o âmbito do interesse subjetivo das partes, ou seja, deve

ser transcendente.

Basicamente aqueles que se pronunciam favoravelmente à repercussão

geral, o fazem com base nos seguintes argumentos: i) diminuição dos números

causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida: a) contrariar dispositivo desta

Constituição; b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; c) julgar válida lei ou ato de governo

local contestado em face desta Constituição. d) julgar válida lei local contestada em face de lei federal.

182

Caroline Müller Bitencourt e Janriê Rodrigues Reck

de recurso extraordinário; ii) ampliar seus efeitos em nome da concretização

constitucional; iii) reservar a atuação da Corte apenas para os casos que

detenham relevância para a ordem constitucional. Já os críticos, concentram

seus esforços no sentido de: i) não há critérios e nem controle do que é declarado

como repercussão geral, permitindo uma discricionariedade à beira de uma

arbitrariedade do Supremo; ii) descaracterização do controle difuso, o caso

concreto perde sua importância; iii) propicia uma jurisprudência defensiva, no

sentido de o STF decidir o que ele quer julgar.

Na realidade fática, sendo admitida como juízo de admissibilidade recursal,

não haverá recurso extraordinário sem a existência da repercussão geral. A rigor,

é também dizer: toda manifestação do Supremo Tribunal Federal terá efeitos

panprocessuais em sede de controle difuso. Logo, às questões de ordem concreta,

fática, os efeitos interpartes acabaram restritos às instâncias inferiores e, nesses

casos, havendo matéria de repercussão geral, os mesmos estarão obrigados a aderir

à compreensão emanada do Supremo.

3 A NATUREZA JURÍDICA DO TRIBUNAL DE CONTAS E DE

SUAS DECISÕES: OBSERVAÇÕES SOBRE O SEU PAPEL DE CONTROLE

Discutir a natureza jurídica do Tribunal de Contas e de suas decisões é

fundamental para saber a extensão dos efeitos de suas manifestações acerca da

inconstitucionalidade e ilegalidade da norma, bem como do possível controle de

constitucionalidade de suas próprias decisões. Assim, a redação da Súmula n. 347

deve ser lida à luz das implicações constitucionais de se reconhecer o Tribunal de

Contas como órgão capaz de verifi cação de constitucionalidade, que se verá a seguir:

[...] o Tribunal de Contas da União não é órgão do Congresso Nacional,

não é órgão do Poder Legislativo. Quem assim me autoriza a falar

é a Constituição Federal, com todas as letras do seu art. 44, litteris:

“O Poder Legislativo é exercido pelo Congresso Nacional, que se compõe

da Câmara dos Deputados e do Senado Federal” (negrito à parte). Logo,

o Parlamento brasileiro não se compõe do Tribunal de Contas da União.

Da sua estrutura orgânica ou formal deixa de fazer parte a Corte Federal

de Contas e o mesmo é de se dizer para a dualidade Poder Legislativo/

Tribunal de Contas, no âmbito das demais pessoas estatais de base

territorial e natureza federada (BRITTO, 2001).

183

A possibilidade de controle de constitucionalidade por parte do Tribunal de Contas: um estudo da Súmula n. 347 do STF e a posição do Tribunal de Justiça do RS

Da redação do caput do art. 71 da Constituição de 1988: “O controle externo,

a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas

da União, ao qual compete (...)7” depreende-se a tentativa do Constituinte em

determinar a natureza deste Tribunal. Talvez um critério interessante para a leitura

de sua caracterização jurídica seja a função que o mesmo exerce, haja vista ter

como missão constitucional o controle externo, motivo pelo qual, internamente,

não integra nenhum dos Poderes tipicamente constituídos, Legislativo, Executivo e

Judiciário. Ou seja, é pacífi co o reconhecimento da independência em relação aos

demais Poderes e, portanto, sem qualquer subordinação, apesar de ser fi nanciado

pelo Congresso Nacional conforme redação dada pelo art. 90 da Lei n. 8.493

(BANDEIRA DE MELLO, 2014). Interessante pensar, duas denominações: órgão

e Tribunal.

Enquanto órgão autônomo, como integrante da Administração Pública,

cumpre uma função administrativa, possui capacidade de exarar atos administrativos

em nome dessa função (GORDILLO, 1998). A primeira atribuição de sentido do

termo de função pública no contexto do papel do Tribunal de Contas é determinar

os termos de sua função, que, conforme dito constitucional, é uma técnica, mas

uma decisão técnica sem atributos jurisdicionais, vez que o Tribunal de Contas

não integra a estrutura do Poder Judiciário. Note-se que a tecnicidade da fi gura do

Tribunal está relacionada à sua função do Legislativo, de fi scalização e julgamento

em relação ao dever de prestar contas que cabe a todo aquele que arrecade, guarde,

utilize, gerencie ou administre bens e valores públicos.

Não sendo sua função de natureza jurisdicional e não sendo legislativa, haja

vista sua incompetência como órgão típico de produção normativa, não resta outra

conclusão senão dizer que estamos diante de um Tribunal que exerce função de

7 – II - julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos

da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder

Público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que

resulte prejuízo ao erário público; III - apreciar, para fi ns de registro, a legalidade dos atos de admissão

de pessoal, a qualquer título, na administração direta e indireta, incluídas as fundações instituídas e

mantidas pelo Poder Público, excetuadas as nomeações para cargo de provimento em comissão, bem

como a das concessões de aposentadorias, reformas e pensões, ressalvadas as melhorias posteriores que

não alterem o fundamento legal do ato concessório; IX - assinar prazo para que o órgão ou entidade

adote as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, se verifi cada ilegalidade; X - sustar, se

não atendido, a execução do ato impugnado, comunicando a decisão à Câmara dos Deputados e ao

Senado Federal.

184

Caroline Müller Bitencourt e Janriê Rodrigues Reck

natureza administrativa: “a Corte de Contas não julga, não tem funções judicantes,

não é órgão integrante do Poder Judiciário, pois todas as suas funções, sem exceção,

são de natureza administrativa” (GORDILLO, 1998). Nos dizeres de Justin Filho:

No entanto e mais do que qualquer outro caso, seria possível aludir, a

propósito do Tribunal de Contas, a uma atuação quase jurisdicional. Se tal

expressão puder merecer algum signifi cado próprio, isso reside na forma

processual dos atos e na estrutura autônoma e independente para produzir

a instrução e o julgamento. A fórmula quase jurisdicional é interessante

não para induzir o leitor a imaginar que a atuação do Tribunal de Contas

é idêntica à do Poder Judiciário, mas para destacar como se diferencia

do restante das atividades administrativas e legislativas. Nenhum outro

órgão integrante do Poder Executivo e do Poder Legislativo recebeu da

Constituição poderes de julgamento equivalentes, inclusive no tocante à

relevância e efi cácia, aos assegurados ao Tribunal de Contas (JUSTIN

FILHO, 2013, p. 1206).

Daí enseja a discussão acerca da outra terminologia anteriormente referida,

a atribuição de Tribunal. Ao analisar os Tribunais, Canotilho em sua obra de

direito constitucional alude à fi gura de existir órgãos constitucionais de soberania,

atribuindo-lhes determinadas características, tais como: I – suas competências

tendem a estar determinadas na Constituição; II – poder de auto-organização (via

de regra por meio de regimentos internos; III – não possuem dever de hierarquia dito

não serem subordinados a outros órgãos; IV – travam relações de interdependência

no tocante a outros órgãos descritos pela e na Constituição; V – missão exaurida

diretamente do texto constitucional, daí o termo mediata (CANOTILHO, 2003,

p. 564). Dadas as referidas características dos dizeres de Canotilho, estamos diante

de um órgão de Soberania, contudo no que toca ao controle de constitucionalidade,

há de se retomar o quão soberana será a decisão emanada pelo Tribunal de Contas.

Retomando então o raciocínio: como Tribunal que é, possui independência

das suas funções que são diretamente extraídas de forma mediata pela Constituição,

não se subordinando aos demais órgãos, haja vista gozarem de uma relação de

interdependência com os demais órgãos igualmente constituídos; como órgão que

é, cumpre funções, e tais funções indiscutivelmente são de natureza administrativa.

Dito isso, passa-se à análise das possibilidades interpretativas decorrentes da

Súmula n. 347 do Supremo Tribunal Federal.

185

A possibilidade de controle de constitucionalidade por parte do Tribunal de Contas: um estudo da Súmula n. 347 do STF e a posição do Tribunal de Justiça do RS

4 A SÚMULA N. 347 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E O

DEVER DE ENFRENTAMENTO DAS DIVERSAS POSSIBILIDADES

INTERPRETATIVAS

Retomando-se o conteúdo da Súmula, tem-se a seguinte redação: “O Tribunal

de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade

das leis e dos atos do Poder Público”8. Também a competência é extraída de

norma infraconstitucional na Lei Orgânica e no Regimento Interno do Tribunal de

Contas da União, conforme art. 66 da Lei n. 8.443/92 – Lei Orgânica do TCU –,

combinado com o art. 15, inc. I, alínea e, do regimento interno: “Art. 15. Compete

privativamente ao Plenário, dirigido pelo Presidente do Tribunal: I – deliberar

originariamente sobre: [...]. e) confl ito de lei ou de ato normativo do poder público

com a Constituição Federal, em matéria da competência do Tribunal.”

Não apenas a compreensão sumular e do regimento afi rmavam a

competência do Tribunal de Contas na apreciação da constitucionalidade, mas

também pacífi ca era então a jurisprudência do Tribunal de Contas ao reconhecer

de sua competência para declaração de inconstitucionalidade9.

Pois bem, tal conteúdo pode-se dizer que possui como processo paradigma

no tocante à legitimidade do Tribunal de Contas o MS n. 25.288, de relatoria do

Min. Gilmar Ferreira Mendes, em que houve manifestação do Tribunal de Contas

que determinou à impetrante (no caso Petrobrás) a não aplicação do Decreto

n. 2.745/98, que estabelece o procedimento licitatório simplifi cado por afrontar os

procedimentos determinados pela Lei n. 8.666/93 das licitações:

8 – Vale ressaltar que a redação sumular tem por base a apreciação do Recurso de Mandado de

Segurança n. 8.372 – CE de abril de 1962, sob relatoria do Ministro Pedro Chaves, ainda sob a égide

da Constituição de 1946, que enunciava: Art. 77. Compete ao Tribunal de Contas: I – acompanhar

e fi scalizar, diretamente, ou por delegações criadas em lei, a execução do orçamento; II – julgar as

contas dos responsáveis por dinheiros e outros bens públicos, e a dos administradores das entidades

autárquicas; III – julgar da legalidade dos contratos e das aposentadorias, reformas e pensões. § 1º. Os

contratos, que, por qualquer modo, interessarem à receita ou à despesa só se reputarão perfeitos depois

de registrados pelo Tribunal de Contas. A recusa do registro suspenderá a execução do contrato até que

se pronuncie o Congresso Nacional.

9 – Vide: BRASIL. Tribunal de Contas da União. Pedido de Reexame. Representação. TC 016.126/2001-1. Acórdão 913/2005. Segunda Câmara. Órgão: Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região. Relator: Ministro Ubiratan Aguiar, Brasília, DF, 7 de junho de 2005. Diário Ofi cial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 15 jun. 2005.

186

Caroline Müller Bitencourt e Janriê Rodrigues Reck

“Assim, a declaração de inconstitucionalidade, pelo Tribunal de Contas da

União, do art. 67 da Lei n° 9.478/97, e do Decreto n° 2.745/98, obrigando

a Petrobrás, conseqüentemente, a cumprir as exigências da Lei n° 8.666/93,

parece estar em confronto com normas constitucionais, mormente as que

traduzem o princípio da legalidade, as que delimitam as competências do

TCU (art. 71), assim como aquelas que conformam o regime de exploração

da atividade econômica do petróleo (art. 177). Não me impressiona o teor

da Súmula n° 347 desta Corte, (...). A referida regra sumular foi aprovada

na Sessão Plenária de 13.12.1963, num contexto constitucional totalmente

diferente do atual. Até o advento da Emenda Constitucional n° 16, de

1965, que introduziu em nosso sistema o controle abstrato de normas,

admitia-se como legítima a recusa, por parte de órgãos não-jurisdicionais,

à aplicação da lei considerada inconstitucional. No entanto, é preciso levar

em conta que o texto constitucional de 1988 introduziu uma mudança

radical no nosso sistema de controle de constitucionalidade. Em escritos

doutrinários, tenho enfatizado que a ampla legitimação conferida ao

controle abstrato, com a inevitável possibilidade de se submeter qualquer

questão constitucional ao Supremo Tribunal Federal, operou uma

mudança substancial no modelo de controle de constitucionalidade até

então vigente no Brasil. Parece quase intuitivo que, ao ampliar, de forma

significativa, o círculo de entes e órgãos legitimados a provocar o Supremo

Tribunal Federal, no processo de controle abstrato de normas, acabou o

constituinte por restringir, de maneira radical, a amplitude do controle

difuso de constitucionalidade. A amplitude do direito de propositura faz

com que até mesmo pleitos tipicamente individuais sejam submetidos ao

Supremo Tribunal Federal mediante ação direta de inconstitucionalidade.

Assim, o processo de controle abstrato de normas cumpre entre nós uma

dupla função: atua tanto como instrumento de defesa da ordem objetiva,

quanto como instrumento de defesa de posições subjetivas. Assim, a

própria evolução do sistema de controle de constitucionalidade no Brasil,

verificada desde então, está a demonstrar a necessidade de se reavaliar a

subsistência da Súmula 347 em face da ordem constitucional instaurada

com a Constituição de 198810.”

10 – BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança n. 25.888, Relator Gilmar Ferreira

Mendes. Julgamento em 22-03-06, DJ de 29-03-06. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/

jurisprudencia/menuSumarioSumulas.asp?sumula=2149>. Acesso em: 22 de junho de 2016.

187

A possibilidade de controle de constitucionalidade por parte do Tribunal de Contas: um estudo da Súmula n. 347 do STF e a posição do Tribunal de Justiça do RS

Note-se que apesar de não revogada a Súmula n. 347, a mesma tem sido

interpretada no sentido da impossibilidade de desconectá-la do contexto da

Constituição de 1988, ante a atribuição ao Supremo Tribunal Federal do papel

de Guardião da Constituição, especialmente com o estabelecimento do controle

abstrato de constitucionalidade. Posições doutrinárias como a exemplo de Bullos11

compreendem a redação sumular como uma autorização para o exercício de

constitucionalidade pela via difusa, ou seja, poderia o Tribunal de contas no caso

concreto afastar a incidência da norma declarando sua inconstitucionalidade.

Contudo, vale lembrar que, como discorrido no primeiro tópico desse trabalho,

tratar de controle difuso implica uma série de enunciados decorrentes da espécie

adotada, bem como suas implicações.

A primeira que poderia ser referida toca a necessidade de observação do art. 97

da Constituição, quando a manifestação sobre a constitucionalidade não se der por

juiz singular. Segundo a redação do dispositivo, a apreciação da inconstitucionalidade

deverá se dar pela maioria absoluta dos membros do Tribunal ou do Órgão Especial.

Sendo assim, estaria também o Tribunal de Contas obrigado nesse caso a respeitar

a chamada cláusula de reserva de plenário ao emanar suas decisões (SODRÉ,

2006). Tal conteúdo constitucional também objeto de redação sumular, por meio da

Súmula Vinculante n. 10, diz: “Viola a cláusula de reserva de plenário (Constituição

Federal, art. 97) a decisão de órgão fracionário de tribunal que, embora não declare

expressamente a inconstitucionalidade de norma, afasta a sua incidência no todo ou

em parte12”. Ou seja, afastar a incidência de norma que co nsidera inconstitucional,

apesar de não proferir a declaração de inconstitucionalidade, também seria uma

conduta violadora do art. 97 da Constituição.

A natureza dessa manifestação do Tribunal de Contas na linha de

argumentação do MS 31.43913 do DF, de relatoria do Ministro Marco Aurélio,

11 – Signifi ca que os Tribunais de Contas, embora não detenham competência para declarar a

inconstitucionalidade das leis ou dos atos normativos em abstrato, pois essa prerrogativa é do Supremo

Tribunal Federal, podem, no caso concreto, reconhecer a desconformidade formal ou material de

normas jurídicas, incompatíveis com a manifestação constituinte originária. Sendo assim, os Tribunais

de Contas podem deixar de aplicar ato por considerá-lo inconstitucional, bem como sustar outros atos

praticados com base em leis vulneradoras da Constituição (CF, art. 71, X). Reitere-se que essa faculdade

é na via de exceção, no caso concreto, e não em abstrato, mediante controle concentrado de normas.

12 – BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula Vinculante n. 10. Disponível em: <http://www.

stf.jus.br/portal/jurisprudencia/menuSumario.asp?sumula=1216>. Acesso em: 19 de junho de 2016.

13 – BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança n. 31.439. Relator Min. Marco

188

Caroline Müller Bitencourt e Janriê Rodrigues Reck

que, ao reafi rmar a posição de Mendes no caso paradigma, foi além ao não

reconhecer que tal competência do Tribunal de Contas poderia ser qualifi cada

como controle de constitucionalidade pela via incidental ao dizer: “O TCU, no

exercício de suas atribuições constitucionais, pode determinar a não-aplicação

de lei manifestamente inconstitucional, não consubstanciando tal determinação

controle repressivo de constitucionalidade de lei, cuja competência é exclusiva

do Poder Judiciário”14 (grifo nosso). Essa “não aplicação” não deixa de

afastar a incidência da norma, ou seja, continua sendo uma forma de declarar a

inconstitucionalidade por uma via obscura e mais silenciosa.

Os argumentos no sentido de por ser um Tribunal auxiliar e não integrante

da estrutura Jurisdicional, e por não declarar, mas apenas não aplicar, estaria o

Tribunal de Contas dispensado na regra do art. 97.

O art. 71 da Constituição prevê o exercício pelo Tribunal de Contas da

verifi cação da legalidade de qualquer despesa, inclusive as decorrentes de

contratos, etc.; e a legalidade das concessões iniciais de aposentadoria,

reformas e pensões. Em face desses preceitos basilares, cabe à Corte de

Contas o exame das exigências legais nos casos enunciados e em geral a

ela submetidos, colocando o seu exame em confronto com a Constituição,

não procedendo o argumento da privatividade da interpretação das leis

pelo Poder Judiciário. Se os atos submetidos ao Tribunal de Contas

Aurélio. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.

asp?numero=31439&classe=MS-MC&codigoClasse=0&origem=JUR&recurso=0&tipoJulgamento

=M>. Acesso em: 18 de junho de 2016: EMENTA “MANDADO DE SEGURANÇA. TRIBUNAL DE

CONTAS DA UNIÃO. DETERMINAÇÃO DE NÃO APLICAÇÃO DE LEI INCONSTITUCIONAL:

POSSIBILIDADE. PETROBRAS. REGIME LICITATÓRIO: LEI Nº 8.666/93 OU DECRETO

Nº 2.745/98. REGIME SIMPLIFICADO DE LICITAÇÃO INSTITUÍDO POR DECRETO DO

PRESIDENTE DA REPÚBLICA COM BASE EM PERMISSÃO LEGAL (LEI Nº 9.478/97, ART. 67).

DELEGAÇÃO LEGISLATIVA DE MATÉRIA RESERVADA CONSTITUCIONALMENTE À

LEI: IMPOSSIBILIDADE. Descabe a atuação precária e efêmera afastando do cenário jurídico o que

assentado pelo Tribunal de Contas da União. A questão alusiva à possibilidade de este último deixar de

observar, ante a óptica da inconstitucionalidade, certo ato normativo há de ser apreciada em defi nitivo

pelo Colegiado, prevalecendo, até aqui, porque não revogado, o Verbete nº 347 da Súmula do Supremo.

De início, a atuação do Tribunal de Contas se fez considerado o arcabouço normativo constitucional.

14 – BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança n. 31.439. Relator Min. Marco Aurélio. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=31439&classe=MS-MC&codigoClasse=0&origem=JUR&recurso=0&tipoJulgamento=M>. Acesso em: 18 de junho de 2016.

189

A possibilidade de controle de constitucionalidade por parte do Tribunal de Contas: um estudo da Súmula n. 347 do STF e a posição do Tribunal de Justiça do RS

não estão conforme a Constituição, logo, são atos contra a lei, portanto

inconstitucionais. Ao Tribunal de Contas não compete a declaração

de inconstitucionalidade de lei, nos termos do art. 97, que dá essa

competência aos Tribunais enumerados no art. 92 […]. Caso o ato

esteja fundado em lei divergente da Constituição, o Tribunal de Contas

pode negar-se à aplicação, porque ‘há que distinguir entre declaração de

inconstitucionalidade e não aplicação de leis inconstitucionais, pois esta

é obrigação de qualquer tribunal ou órgão de qualquer dos poderes do

Estado (ROSAS, 2006, p. 151-152).

Posição essa não é novidade na jurisprudência do Supremo Tribunal

Federal, que na ADI-MC 221 reconhece a possibilidade de não cumprimento pela

administração pública de leis que considere inconstitucionais:

O controle de constitucionalidade da lei ou dos atos normativos é da

competência exclusiva do Poder Judiciário. Os Poderes Executivo

e Legislativo, por sua Chefi a – e isso mesmo tem sido questionado

com o alargamento da legitimação ativa na ação direta de

inconstitucionalidade –, podem tão só determinar aos seus órgãos

subordinados que deixem de aplicar administrativamente as leis ou

atos com força de lei que considerem inconstitucionais.15

Questionaria se não seria uma decisão um pouco simplista considerando

os efeitos das decisões prolatadas pelo Tribunal de Contas em relação ao agir

da administração pública. Explica-se: a decisão prolatada pelo Tribunal sobre o

afastamento da lei inconstitucional possui um efeito também peculiar face à natureza

do Tribunal, ou seja, a decisão proferida não faz apenas um efeito “interpartes”,

na medida que a natureza de seu órgão é justamente emanar decisões técnicas

no intuito de orientar a gestão dos recursos públicos por meio da fi scalização de

sua regularização orçamentária, contábil, etc. Parece óbvio que uma manifestação

do Tribunal de Contas transcende a mera análise do caso concreto em que foi

provocado, agindo como um aguilhão para a tomada de decisão de outros gestores

públicos. Seria incoerente com a natureza e função do órgão pensar que sua

15 – BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação direta de inconstitucionalidade. Relator Min. Moreira

Alvez. Disponível em: <http://www.sbdp.org.br/arquivos/material/717_ADI-MC%20221.pdf>.

Acesso em: 20 de junho de 2016.

190

Caroline Müller Bitencourt e Janriê Rodrigues Reck

apreciação seria tão somente o caso concreto, a natureza da regularidade das leis

orçamentárias, fi scais, e a conduta dos gestores no que toca as mesmas serão objeto

de enfrentamento no Tribunal.

Simplesmente ao dizer que é compatível com o Tribunal de Contas

apenas o afastamento da lei que considere inconstitucional e não a declaração de

constitucionalidade ainda que de forma incidental por não ser órgão jurisdicional,

parece uma tentativa de retirar os efeitos e a importância que tais decisões possuem,

especialmente dos efeitos gerados para o exercício do Poder Executivo no que toca

a sua regularidade.

Outro argumento a ser refl etido é a própria discricionariedade da

compreensão do Tribunal acerca das questões de constitucionalidade ou

inconstitucionalidade. Quando se tratar de uma manifestação do STF via controle

concentrado parece não haver muitas discussões teóricas, mas, em se tratando de

manifestação via controle difuso por meio de recurso extraordinário que produz

efeitos panprocessuais, qual seria o limite da discricionariedade interpretativa do

Tribunal de Contas para decidir? Se os efeitos panprocessuais atingem os processos

dos jurisdicionados e não sendo o Tribunal de Contas dessa natureza, indaga-se se

poderia ele decidir pela não aplicação de uma lei que considerada constitucional

pelo STF em apreciação/decisão via recurso extraordinário?

Enfi m, ao que parece, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal não

tem sido densa no enfrentamento das consequências dos proferimentos em sede

de interpretação no conteúdo da Súmula n. 347, quiçá o próprio Tribunal de

Contas. Dito isso, busca-se analisar se e como tais questões têm sido enfrentadas

na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.

5 A COMPREENSÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO

GRANDE DO SUL ACERCA DO CONTEÚDO E APLICAÇÃO DA

SÚMULA N. 347 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Na pesquisa de jurisprudência realizada no sítio do Tribunal de Justiça do

Rio Grande do Sul, selecionaram-se inúmeras variantes das quais não se obteve

resultado. A combinação “Súmula n. 347” “Tribunal de Contas” no sítio pesquisa

de jurisprudência avançada e selecionando-se a opção “todas”, obteve como

resultado apenas três jurisprudências que guardavam relação com o objeto da

pesquisa.

191

A possibilidade de controle de constitucionalidade por parte do Tribunal de Contas: um estudo da Súmula n. 347 do STF e a posição do Tribunal de Justiça do RS

A primeira, trata-se da Apelação Cível n. 7005237557316 de relatoria de Agathe

Schmidt da Silva de recurso de apelação interposto por Maria Fatima Rebello Felizzola,

nos autos do processo de rito comum ordinário movido contra o Estado do Rio Grande

do Sul e o PREVIMPA – Departamento Municipal de Previdência dos Servidores

Públicos do Município de Porto Alegre, em face da sentença de improcedência da

demanda, em que busca a declaração de nulidade do ato de retifi cação de sua

aposentadoria. Dentre suas argumentações, o trabalho se detém apenas na invocação

da incompetência do Tribunal de Contas para declarar a inconstitucionalidade de leis.

Eis o único trecho em que a relatora enfrenta a questão da aplicação da Súmula n. 347:

A autora foi aposentada por invalidez permanente a contar de 08.04.2008,

com proventos proporcionais mensais, com base no art. 34, §§ 2º e 4º

da Lei Municipal nº 478/2002. Porém, o Tribunal de Contas declarou

inconstitucional o mencionado dispositivo da legislação municipal,

deixando de registrar a aposentadoria da ora apelante, ocorrendo a

conseqüente modifi cação do cálculo da proporcionalidade dos proventos

da autora. Em relação à legitimidade do Tribunal de Contas para

declarar a inconstitucionalidade de leis/ atos normativos no exercício

de suas atribuições, não há falar em ilegalidade, diante da redação

da Súmula nº. 347 do Supremo Tribunal Federal: O TRIBUNAL DE

CONTAS, NO EXERCÍCIO DE SUAS ATRIBUIÇÕES, PODE APRECIAR

A CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS E DOS ATOS DO PODER

PÚBLICO17. (grifos no original)

Note-se que o Tribunal apenas reiterou a existência da Súmula n. 347,

como se a atual interpretação do STF fosse justamente no sentido de reforçar a

16 – EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. SERVIDOR PÚBLICO. LEGITIMIDADE DO TRIBUNAL

DE CONTAS PARA DECLARAR A INCONSTITUCIONALIDADE DE LEIS/ ATOS

NORMATIVOS NO EXERCÍCIO DE SUAS ATRIBUIÇÕES. SÚMULA Nº. 347 DO SUPREMO

TRIBUNAL FEDERAL. CONCESSÃO INICIAL DE APOSENTADORIA. INEXISTÊNCIA DE

VIOLAÇÃO DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA NO ÂMBITO DO TRIBUNAL DE

CONTAS, DIANTE DA SÚMULA VINCULANTE Nº. 3 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.

17 – BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação 70051980720. Data de julgamento

15-05-13 e data de publicação 23-05-13. Disponível: <http://www.tjrs.jus.br/site_php/consulta/

download/exibe_documento_att.php?numero_processo=70051980720&ano=2013&codigo=765745>.

Acesso em: 23 de junho de 2016.

192

Caroline Müller Bitencourt e Janriê Rodrigues Reck

possibilidade de controle de constitucionalidade por parte do Tribunal de Contas,

quando na verdade a posição atual é a de que compete a ele apenas deixar de

aplicar norma considerada inconstitucional. A forma como o argumento é exposto,

reforça a antiga compreensão que vem sendo criticada desde o MS n. 25.288 na

fundamentação do Min. Gilmar Mendes. Não houve qualquer enfrentamento

das possíveis consequências de reforçar tal compreensão, demonstrando apenas

uma aplicação mecânica da Súmula sem a refl exão de seu conteúdo e da própria

“instabilidade” que paira sobre ela ainda em sede de Supremo Tribunal Federal.

Reprodução literal ocorreu na segunda decisão analisada, no julgamento

da apelação. Trata-se de recurso da Apelação Cível n. 7005237557318 interposto

por Vera Maria Peres dos Santos em face da sentença que julgou improcedentes os

pedidos formulados contra o Município de Sapucaia do Sul e contra o Estado do

Rio Grande do Sul, almejando a declaração de nulidade de processo administrativo

do Tribunal de Contas que negou executoriedade à Lei Municipal n. 1.968/97, o

que suprimiu gratifi cação incorporada a sua remuneração19. Reiterou a relatora

nos moldes da decisão anterior: “em relação à legitimidade do Tribunal de Contas

para declarar a inconstitucionalidade de leis/ atos normativos no exercício de suas

atribuições, não há falar em ilegalidade, diante da redação da Súmula nº. 347 do

Supremo Tribunal Federal”. Novamente, sem nenhum enfrentamento acerca da

configuração de controle de constitucionalidade e suas consequências.

Não foi diferente no julgamento do Agravo de Instrumento n. 7005910859720

de relatório do Desembargador Antonio Vinicius Amaro da Silveira, constando a

seguinte ementa, novamente discorrendo sobre a declaração de inconstitucionali-

dade de lei pelo Tribunal de Contas:

18 – BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação n. 70052375573. Data de julgamento 18-12-13

e data de publicação 30-01-14. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/

exibe_documento_att.php?numero_processo=70052375573&ano=2013&codigo=2275402>. Acesso

em: 23 de junho 2016.

19 – APELAÇÃO CÍVEL. SERVIDOR PÚBLICO. LEGITIMIDADE DO TRIBUNAL DE CONTAS

PARA DECLARAR A INCONSTITUCIONALIDADE DE LEIS/ ATOS NORMATIVOS NO

EXERCÍCIO DE SUAS ATRIBUIÇÕES. SÚMULA Nº. 347 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.

SUPRESSÃO DE VANTAGEM. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO CONTRADITÓRIO

E DA AMPLA DEFESA NO ÂMBITO DO TRIBUNAL DE CONTAS, PORQUANTO ESTE

ALCANÇA SOMENTE OS ENTES JURISDICIONADOS E NÃO OS SERVIDORES A ESTES

VINCULADOS. NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO DE APELAÇÃO. UNÂNIME.

20 – BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Agravo de Instrumento n. 70059108597.

193

A possibilidade de controle de constitucionalidade por parte do Tribunal de Contas: um estudo da Súmula n. 347 do STF e a posição do Tribunal de Justiça do RS

“INCONSTITUCIONALIDADE DE LEI. TRIBUNAL DE CONTAS

DO ESTADO. No exercício de suas atribuições pode o Tribunal de

Contas do Estado apreciar a constitucionalidade de lei ou ato do Poder

Público, nos termos da Súmula 347 do Supremo Tribunal Federal”. Nas

alegações do agravante, argumentou que está prestes a ser exonerado

por decisão ilegal do Tribunal de Contas do Estado, que declarou a

inconstitucionalidade da Lei Municipal de criação de quotas para

afrodescendentes. Pediu em favor do reconhecimento da incompetência

do Tribunal de Contas para declaração de inconstitucionalidade de lei.

No enfrentamento da questão suscitada o relator apenas aduziu que: “(...)

não constato a ilegalidade manifesta na decisão proferida pelo Tribunal

de Contas na esteira do disposto na Súmula 347 do STF, que autoriza o

Tribunal a aferir a constitucionalidade de leis e atos do Poder Público”21.

Da forma como foi enfrentada a questão no TJRS, sequer pode-se afi rmar

que está seguindo a linha de orientação do STF, ou seja, além de não enfrentar

a problemática sobre o conteúdo, na compreensão da Súmula n. 347, não restou

claro se a postura do Tribunal é por reconhecer a competência do Tribunal de

Contas para afastar a aplicação de norma que considere inconstitucional ou se

para exercer o controle de constitucionalidade pela via incidental. Diante da

literalidade das manifestações, inclina-se a pensar que reconhece a legitimidade

do Tribunal de Contas para o exercício de controle de constitucionalidade de

forma incidental.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em relação ao problema proposto, é possível afi rmar que a hipótese

se confi rmou em certa medida. O Supremo Tribunal Federal não revogou o

verbete da Súmula n. 347 que reconhece a competência para declaração de

constitucionalidade por parte do Tribunal de Contas. Contudo, as manifestações

em decisões via Mandado de Segurança têm ressaltado a impossibilidade de um

21 – BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula Vinculante n. 347. O Tribunal de Contas,

no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do

Poder Público, Brasília, DF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.

asp?servico=jurisprudenciaSumula&pagina=su mula_301_400>.

194

Caroline Müller Bitencourt e Janriê Rodrigues Reck

Tribunal não jurisdicional declarar a inconstitucionalidade de lei, isso porque é

incompetente para o exercício do controle repressivo de constitucionalidade.

Tais compreensões estão também relacionadas à natureza do órgão,

concluindo-se que sua função é de natureza administrativa no auxílio técnico do

Poder Legislativo, na função fi scalizadora e julgadora das Contas do Executivo. Para

exercer tal função é que haveria o reconhecimento da possibilidade da declaração

de constitucionalidade. Demonstrou que tal redação que autorizava o agir do

Tribunal, bem como o contexto da redação sumular, é anterior à Constituição de

1988 e, portanto, deve ser relida à luz da nova ordem jurídica.

Não pairam dúvidas quanto à impossibilidade de essa declaração ser

compreendida sob a ótica do controle abstrato, pois haveria uma usurpação

de competência originária do Supremo Tribunal Federal. Parte da doutrina e

dos julgados tratam de uma possível declaração de constitucionalidade pela

via incidental, o que não restou pacífi co. Isso, pois há também a compreensão

de que a natureza não jurisdicional do órgão impede falar em controle de

constitucionalidade e sim em não aplicação de lei inconstitucional. Adverte-

se no texto que, independentemente da postura adotada, reconhecer a força das

manifestações prolatadas pelo Tribunal de Contas, quando afasta a incidência de

uma norma ou quando declara sua inconstitucionalidade, é fundamental para se

discutir outras questões decorrentes, tais como a necessidade ou não de se observar

a cláusula de reserva de plenário, a transcendência da decisão para casos concretos,

a vinculação do Tribunal de Contas caso já exista a manifestação sobre a alegação

de inconstitucionalidade em comento em sede de recurso extraordinário.

No que se refere à postura do Tribunal de Justiça, os escassos julgados que

puderam ser analisados demonstram uma falta de clareza sobre a compreensão

do conteúdo e extensão da Súmula n. 347, limitando-se a reproduzir seu texto e

reafi rmar a sua vigência, sem maiores enfrentamentos teóricos e práticos.

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CONDIÇÕES E POSSIBILIDADES DE CUMULAÇÃO

DAS SANÇÕES PARLAMENTARES EM FACE DAS

ESTABELECIDAS PELA LEI DE IMPROBIDADE

ADMINISTRATIVA E O SEU TRATAMENTO NA

JURISPRUDÊNCIA DO PODER JUDICIÁRIO BRASILEIRO1

Eduarda Simonetti Pase2

RESUMO

Com este trabalho objetiva-se identifi car se ocorre cumulação de sanções

quando se tratar de punir agentes que pratiquem atos que violem mais de uma

ordem jurídica, especialmente atos que confi gurem improbidade administrativa

por parte de parlamentares e também autorizem o processamento do fato pela Casa

Legislativa respectiva, culminando, assim, com a perda do mandato do parlamentar

e, consequentemente, a suspensão dos direitos políticos. Para isso, num primeiro

momento, faz-se uma breve exposição acerca das sanções que podem ser aplicadas

1 – O presente artigo é fruto dos debates realizados no bojo do “Projeto Interinstitucional de redes de

grupos de pesquisa sobre o tema Patologias Corruptivas nas relações entre Estado, Administração Pública

e Sociedade: Causas, Consequências e Tratamentos – Parte II: discutindo formas de enfrentamento do

fenômeno”, coordenado pelo Prof. Dr. Rogério Gesta Leal, sendo as pesquisas desenvolvidas junto ao

Centro Integrado de Estudos e Pesquisas em Políticas Públicas – CIEPPP.

2 – Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado da

Universidade de Santa Cruz do Sul/Rio Grande do Sul, com bolsa PROSUP/CAPES, modalidade

Taxa, na linha de pesquisa sobre Constitucionalismo Contemporâneo. Graduada em Direito pela

Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Advogada. E-mail: [email protected].

198

Eduarda Simonetti Pase

pelo Poder Legislativo aos seus membros, identifi cando os atos que confi guram

quebra de decoro parlamentar, desde a Constituição Federal até os atos em espécie

elencados em cada Código de Ética e Decoro Parlamentar (Câmara dos Deputados

Federais, Senado Federal e Assembleia Legislativa gaúcha). Da mesma forma são

expostas as sanções previstas na Lei de Improbidade Administrativa, momento em

que é feita uma breve exposição sobre as naturezas jurídicas das sanções previstas

na lei e que também podem ser aplicadas pelas Casas Legislativas para ao fi nal

abordar e identifi car a (não) cumulação das sanções. Assim, parte-se da hipótese

de que o sancionamento de um parlamentar que tenha infringido tanto a ordem

jurídica protegida pela Lei de Improbidade Administrativa (Lei n. 8.492/92) como

a ordem disciplinar da honra do Poder Legislativo não confi gura bis in idem, no

caso da suspensão dos direitos políticos, que na LIA pode ou não ser aplicada e na

quebra de decoro é decorrência da perda (cassação) do mandato.

1 INTRODUÇÃO

A pesquisa que se pretende desenvolver no presente trabalho buscará

analisar as consequências dos fatos que importam em improbidade administrativa,

comparando-as e diferenciando-as das sanções aplicáveis pelo Poder Legislativo a

seus membros, em processos que visem a investigar a quebra de decoro parlamentar.

O estudo justifi ca-se para que a sanção não se confi gure, nunca, em bis in idem, mas

apenas no correto sancionamento de ilícitos administrativos, da forma preconizada

pelo legislador.

A crise de representação parlamentar tem se tornado comum no atual

cenário político mundial e parece ter se instalado sistematicamente no Brasil.

Entretanto, a preocupação com o tema se justifi ca, na medida em que o estudo dos

processos de julgamento de quebra de decoro revela, além de uma forma essencial

de proteção da Instituição Poder Legislativo, desigualdades no tratamento dos casos

e vulnerabilidade dos mandatos a interesses políticos. Ao se falar em suspensão

dos direitos políticos, o cuidado na aplicação de tal sanção deve sempre estar

amparado por uma das hipóteses constitucionalmente autorizadas. Quando se fala

em suspensão de direitos políticos de um membro do Poder Legislativo, o cuidado

deve ser ainda mais alto, tendo em vista que signifi ca a ruptura da vontade popular

e deve ocorrer em caráter de excepcionalidade, proibindo-se a sua utilização como

espécie de instrumento de constrangimento.

199

Condições e possibilidades de cumulação das sanções parlamentares em face das estabelecidas pela Lei de Improbidade Administrativa e o seu tratamento na jurisprudência do Poder Judiciário brasileiro

Assim, para buscar responder à proposta inicial, qual seja, identifi car se ocorre

cumulação de sanções quando se tratar de punir agentes que pratiquem atos que

violem mais de uma ordem jurídica, especialmente atos que confi gurem improbidade

administrativa por parte de parlamentares e também autorizem o processamento do

fato pela Casa Legislativa respectiva por quebra de decoro, culminando, assim, com

a perda do mandato do parlamentar e, consequentemente, a suspensão dos direitos

políticos. Parte-se da hipótese (que poderá ser refutada ou, no caso, confi rmada)

de que a aplicação da sanção de perda do mandato em julgamento por quebra de

decoro parlamentar não confi gura bis in idem para com a sanção de perda da função

pública e suspensão dos direitos políticos aplicada em sede de ação de improbidade

administrativa, tendo, em ambos os casos, o mesmo fato gerador. Isso porque as

esferas de responsabilização são distintas e uma possui caráter disciplinar e a outra

caráter civil-administrativo, em que pese a sanção de perda da função e suspensão

dos direitos políticos tenha caráter eminentemente político.

Para isso, num primeiro momento, faz-se uma breve exposição acerca

das sanções que podem ser aplicadas pelo Poder Legislativo aos seus membros,

identifi cando os atos que confi guram quebra de decoro parlamentar desde a

Constituição Federal até os atos em espécie elencados em cada Código de Ética

e Decoro Parlamentar (Câmara dos Deputados Federais, Senado Federal e

Assembleia Legislativa gaúcha). Da mesma forma são expostas as sanções previstas

na Lei de Improbidade Administrativa, momento em que é feita uma breve

exposição sobre as naturezas jurídicas das sanções previstas na lei e que também

podem ser aplicadas pelas Casas Legislativas para ao fi nal abordar e identifi car a

(não) cumulação das sanções.

2 AS SANÇÕES PARLAMENTARES E AS SANÇÕES DA LEI DE

IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA: BREVE EXPOSIÇÃO

Em várias legislaturas vê-se os membros do Poder Legislativo questionando

o seu mandato por possível prática de atos que violem o decoro parlamentar,

fazendo surgir diversas questões jurídicas em torno do tema. Tais questões

ganham importância porque os parlamentares, quando vencidos na esfera política,

geralmente tentam a manutenção do seu mandato por meio da intervenção do

Poder Judiciário, trazendo a lume razões jurídicas para contrapor o julgamento,

tido como político, realizado por seus pares parlamentares.

200

Eduarda Simonetti Pase

Entretanto, também é importante depositar atenção quando a sanção

imposta pelo próprio parlamento também puder ser processada na esfera judicial,

para tratar, por exemplo, das consequências de uma imposição de sanção em seara

parlamentar (no exercício do seu poder disciplinar) e a imposição de sanção pelo

mesmo fato na esfera judicial. Em se tratando, especifi camente, de sanções aplicadas

a agentes nos casos de improbidade administrativa que também confi gurem atos

a serem analisados pelas Casas Legislativas, primeiramente é necessário analisar

quais das sanções previstas na Lei de Improbidade Administrativa também podem

ser aplicadas em sede de Poder Legislativo aos seus pares.

Assim, primeiramente precisa-se estabelecer os tipos e espécies de sanções

aplicáveis pelo Poder Legislativo aos seus membros, para depois catalogar as sanções

aplicáveis no caso de condenações por atos de improbidade administrativa que

também possam ser tratados e sancionados pelo próprio Poder Legislativo, quando

tais atos forem praticados por membro seu. Uma vez feita essa identifi cação, será

necessário estabelecer também a natureza jurídica dessas sanções para que ao fi nal

seja possível construir um panorama sobre a possibilidade ou não de cumulação

de sanções parlamentares em face das estabelecidas pela Lei de Improbidade

Administrativa, sendo o que se passa a construir nos tópicos a seguir.

2.1 ESPÉCIES DE SANÇÕES APLICADAS AOS PARLAMENTARES

EM SUAS CASAS LEGISLATIVAS

Aqui serão catalogadas as sanções aplicáveis a parlamentares por suas

respectivas Casas Legislativas, a partir do que estabelece a Constituição Federal

de 1988. Especialmente serão analisadas as sanções e as condutas previstas nos

Regimentos Internos das Casas do Congresso Nacional e, de formal supletiva, a

disposição da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, visto que

todos possuem como parâmetro as disposições constitucionais.

Antes de entrar ao tema propriamente dito, é válido retomar alguns aspectos

que permeiam a noção de decoro parlamentar. Ainda que o conceito possa parecer

fl uido ou indeterminado, a Constituição Federal oferece um indicativo em que seja

possível pautar o ato de interpretação. Veja-se quando a Constituição trata das

imunidades de Deputados ou Senadores no art. 53, § 8º, ela refere que as imunidades

são prerrogativas exercidas e titularizadas pelos parlamentares enquanto tais.

Contudo, quando trata do decoro, a própria Constituição expressa-se com decoro

201

Condições e possibilidades de cumulação das sanções parlamentares em face das estabelecidas pela Lei de Improbidade Administrativa e o seu tratamento na jurisprudência do Poder Judiciário brasileiro

parlamentar, em seu art. 55, inc. II, e não com decoro do parlamentar. Esse esforço

é feito para sinalizar que o real titular do comportamento decoroso que se espera de

um titular de mandato eletivo no Poder Legislativo, isto é, o destinatário dessa norma

constitucional, não é o parlamentar em si, o Deputado, Senador, Vereador, mas

sim a própria Instituição do Parlamento, isto é, o Poder Legislativo propriamente

dito. Ou seja, “é ele, Parlamento, Congresso Nacional, quem tem o direito a que

se preserve, através do comportamento digno de seus membros, sua imagem, sua

reputação e sua dignidade. Saímos do exercício do mandato parlamentar (objeto

de proteção pelas imunidades) e chegamos à honra objetiva do Parlamento, que

deve ser protegida de comportamentos reprováveis por parte de seus membros”

(PINHEIRO, 2006). Daí porque se dizer que o bem jurídico tutelado pela norma

do art. 55, II, da Constituição Federal é a confiabilidade, a honorabilidade, do

Poder Legislativo. Ainda nesse aspecto, Pinheiro (2006) esclarece que

é exatamente por isso, também, que só ele, Parlamento, no exercício de

típico poder censório, tem competência para decidir qual conduta considera

ofensiva à sua honra objetiva e qual conduta reputa admissível, tolerável. Este

juízo, portanto, em cada caso concreto, daquilo que seja ou não incompatível

com o decoro parlamentar, é exclusivo de cada Casa do Poder Legislativo,

sem nenhuma interferência de qualquer outro poder, incluindo-se, aí, o Poder

Judiciário. Porque não cabe ao Poder Judiciário interferir no Parlamento

a ponto de substituir-lhe no julgamento e na preservação de sua própria

imagem, ditando-lhe determinado padrão moral. (Grifos no original)3

Não se busca defender a não intervenção ou controle do Poder Judiciário

sobre determinados atos que são inerentes ao procedimento de apuração de quebra

de decoro pelas Casas Legislativas. Mas, sim, reforçar que o Poder Judiciário só

está autorizado a controlar esse procedimento nos seus aspectos legais e formais,

como será demonstrado adiante. Isso, pois, quanto ao mérito das questões, isso é,

no que tange à específi ca defi nição do que seja o decoro parlamentar, a Constituição

limita-se a exemplifi car duas hipóteses (abuso das prerrogativas e percepção de

vantagens indevidas – § 1º do art. 55 da CF), reservando ao Regimento Interno das

3 – Outro não é o entendimento do Supremo Tribunal Federal que, desde sua primeira manifestação

sobre o tema (RMS n. 4.241, Rel. Min. Luiz Gallotti) até sua recente jurisprudência (RE n. 113.314; MS

n. 21.443; MS n. 23.529), não tem admitido revisão judicial de julgamento político atinente à cassação

de mandato parlamentar por quebra de decoro.

202

Eduarda Simonetti Pase

Casas Legislativas a defi nição de outras situações em que se verifi cará este desvio

de procedimento (PINHEIRO, 2006). Esse aspecto será relevante para o trabalho,

tendo em vista que duas das formas previstas como quebra de decoro já na própria

CF são as que confi guram também improbidade administrativa.

Assim, a Constituição Federal estabelece, em seu art. 55, § 1º, que são três

(duas já defi nidas no texto constitucional e uma aberta para defi nição pelo próprio

Poder Legislativo) as hipóteses constitucionais de quebra de decoro parlamentar,

I – os casos previstos no regimento (a mais ampla de todas e onde o Constituinte

deu margem de atuação ao próprio Poder Legislativo); II – o abuso das prerrogativas

asseguradas a membro do Congresso Nacional (Câmara dos Deputados Federais e

Senado Federal), Assembleias Legislativas e Câmaras de Vereadores e III – percepção

de vantagens indevidas (onde ocorrerá com maior frequência a possibilidade de o ato

confi gurar afronta ao decoro parlamentar e também confi gurar ato de improbidade

administrativa). No caso do Código de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos

Deputados, essa regra vem disposta no seu art. 4º, incs. I e II.

O Código de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados

Federais trata as sanções previstas e aplicáveis aos Deputados Federais como

sanções disciplinares. Isto é, para o Código de Ética e Decoro Parlamentar a

natureza jurídica das sanções é disciplinar. Isso se extrai do parágrafo único do

art. 1º da Resolução n. 25/2001 (que institui o Código de Ética e Decoro

Parlamentar da Câmara), exemplifi cadamente dos arts. 1º, parágrafo único, 2º e

10, § 1º, todos do Código de Ética da Câmara dos Deputados Federais.

O Código de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados Federais

prevê, em seu art. 10, quatro espécies de sanção disciplinar, a saber: I – censura,

verbal ou escrita; II – suspensão de prerrogativas regimentais por até 6 (seis) meses;

III – suspensão do exercício do mandato por até 6 (seis) meses; IV – perda de

mandato. A Constituição Federal de 1988, contudo, em seu art. 55 prevê somente

a perda do mandato, deixando aberta a regulamentação do artigo, a qual foi feita

pelo Código de Ética e Decoro Parlamentar, no caso da Câmara dos Deputados

Federais, o qual ampliou o rol de atos passíveis de ferirem o decoro parlamentar,

pois a própria Constituição Federal atribuiu essa prerrogativa às Casas Legislativas,

tendo em vista que esse aspecto de sanções serve para preservar a imagem e

honra do próprio Poder Legislativo enquanto instituição pública, sendo portanto

(no entender do Constituinte Originário) a melhor fi gura a defi nir o que fere a

instituição ou não, já que tais instrumentos são institutos destinados à garantia do

exercício do mandato popular e à defesa do Poder Legislativo. As previsões desses

regimentos devem estar amparadas pelas bases fi xadas na Constituição, e o que

203

Condições e possibilidades de cumulação das sanções parlamentares em face das estabelecidas pela Lei de Improbidade Administrativa e o seu tratamento na jurisprudência do Poder Judiciário brasileiro

exorbitar a margem de atuação fi ca, sem dúvida, submetida à apreciação do Poder

Judiciário para o controle de constitucionalidade concentrado.

Assim, no que tange à Câmara dos Deputados, as hipóteses de ofensa ao

decoro parlamentar são assim punidas:

Câmara dos Deputados Federais

Censura verbal Art. 11. A censura verbal será aplicada pelo Presidente

da Câmara dos Deputados, em sessão, ou de Comissão,

durante suas reuniões, ao Deputado que incidir nas condutas

descritas nos incs. I e II do art. 5º.

Art. 5º. Atentam, ainda, contra o decoro parlamentar as

seguintes condutas, puníveis na forma deste código:

I – perturbar a ordem das sessões da Câmara dos Deputados

ou das reuniões de Comissão;

II – praticar atos que infrinjam as regras de boa conduta

nas dependências da Casa;

Censura escrita Art. 12. A censura escrita será aplicada pela Mesa, por

provocação do ofendido, nos casos de incidência nas

condutas previstas no inc. III do art. 5º ou, por solicitação

do Presidente da Câmara dos Deputados ou de Comissão,

nos casos de reincidência nas condutas referidas no art. 11.

Art. 5º, III – praticar ofensas físicas ou morais nas

dependências da Câmara dos Deputados ou desacatar, por

atos ou palavras, outro parlamentar, a Mesa ou Comissão ou

os respectivos Presidentes;

Suspensão das

prerrogativas regimentais

por até 6 meses

Art. 13. O projeto de resolução oferecido pelo Conselho

de Ética e Decoro Parlamentar que proponha a suspensão

de prerrogativas regimentais, aplicável ao Deputado que

incidir nas condutas previstas nos incs. VI a VIII do art. 5º

deste Código, será apreciado pelo Plenário da Câmara dos

Deputados, em votação ostensiva e por maioria absoluta de

seus membros, observado o seguinte:

Art. 5º, VI – revelar informações e documentos ofi ciais de

caráter sigiloso, de que tenha tido conhecimento na forma

regimental;

Suspensão das

prerrogativas regimentais

por até 6 meses

VII – usar verbas de gabinete ou qualquer outra inerente ao

exercício do cargo em desacordo com os princípios fi xados

no caput do art. 37 da Constituição Federal;

VIII – relatar matéria submetida à apreciação da Câmara

dos Deputados, de interesse específi co de pessoa física ou

jurídica que tenha contribuído para o fi nanciamento de sua

campanha eleitoral;

204

Eduarda Simonetti Pase

Suspensão do exercício

do mandato por até 6

meses

Art. 14, § 1º – Será punido com a suspensão do exercício

do mandato e de todas as suas prerrogativas regimentais o

Deputado que incidir nas condutas previstas nos incs. IV, V,

IX e X do art. 5º.

IV – usar os poderes e prerrogativas do cargo para constranger

ou aliciar servidor, colega ou qualquer pessoa sobre a qual

exerça ascendência hierárquica, com o fi m de obter qualquer

espécie de favorecimento;

V – revelar conteúdo de debates ou deliberações que a

Câmara dos Deputados ou Comissão hajam resolvido que

devam fi car secretos;

IX – fraudar, por qualquer meio ou forma, o registro de

presença às sessões ou às reuniões de Comissão;

X – deixar de observar intencionalmente os deveres

fundamentais do Deputado, previstos no art. 3º deste código.

Perda do mandato Art. 14, § 3º – Será punido com a perda do mandato o

Deputado que incidir nas condutas previstas no art. 4º.

Art. 4º. Constituem procedimentos incompatíveis com o

decoro parlamentar, puníveis com a perda do mandato:

I – abusar das prerrogativas constitucionais asseguradas aos

membros do Congresso Nacional (Constituição Federal,

art. 55, § 1º);

II – perceber, a qualquer título, em proveito próprio ou de

outrem, no exercício da atividade parlamentar, vantagens

indevidas (Constituição Federal, art. 55, § 1º);

III – celebrar acordo que tenha por objeto a posse do

suplente, condicionando-a à contraprestação fi nanceira ou à

prática de atos contrários aos deveres éticos ou regimentais

dos Deputados;

IV – fraudar, por qualquer meio ou forma, o regular andamento

dos trabalhos legislativos para alterar o resultado de deliberação;

V – omitir intencionalmente informação relevante ou, nas

mesmas condições, prestar informação falsa nas declarações

de que trata o art. 18;

VI – praticar irregularidades graves no desempenho do

mandato ou de encargos decorrentes, que afetem a dignidade

da representação popular.

No que se refere ao Senado Federal, as sanções aplicáveis pelo próprio

Senado aos parlamentares Senadores, quando da quebra de decoro parlamentar,

que é quando tanto a Constituição como o Regimento Interno das Casas, por meio

205

Condições e possibilidades de cumulação das sanções parlamentares em face das estabelecidas pela Lei de Improbidade Administrativa e o seu tratamento na jurisprudência do Poder Judiciário brasileiro

dos seus Códigos de Ética e Decoro Parlamentar permitem que o Poder Legislativo

sancione os seus membros.

Assim, no Senado, as sanções previstas são, conforme o art. 7º do seu

Código de Ética e Decoro Parlamentar, I – advertência; II – censura (verbal ou

escrita); III – perda temporária do exercício do mandato e IV – perda do mandato.

Essas sanções também possuem caráter disciplinar, como estabelecido na Câmara

dos Deputados. Dessa forma, no Senado, os atos que violam o decoro parlamentar

têm defi nidas as sanções na seguinte disposição:

Senado Federal

Advertência Art. 8º. A advertência é medida disciplinar de competência

dos Presidentes do Senado, do Conselho de Ética e Decoro

Parlamentar ou de Comissão.

Censura Art. 9º. A censura será verbal ou escrita.

§ 1° – A censura verbal será aplicada pelos Presidentes do

Senado, do Conselho de Ética e Decoro Parlamentar ou de

Comissão, no âmbito desta, quando não couber penalidade

mais grave, ao Senador que:

I – deixar de observar, salvo motivo justifi cado, os deveres

inerentes ao mandato ou os preceitos do Regimento Interno;

II – praticar atos que infrinjam as regras da boa conduta nas

dependências da Casa;

III – perturbar a ordem das sessões ou das reuniões.

§ 2° – A censura escrita será imposta pelo Conselho de Ética

e Decoro Parlamentar e homologada pela Mesa, se outra

cominação mais grave não couber, ao Senador que:

I – usar, em discurso ou proposição, de expressões

atentatórias ao decoro parlamentar;

II – praticar ofensas físicas ou morais a qualquer pessoa,

no edifício do Senado, ou desacatar, por atos ou palavras,

outro parlamentar, a Mesa ou Comissão, ou os respectivos

Presidentes.

Perda temporária do

exercício do mandatoArt. 10. Considera-se incurso na sanção de perda temporária

do exercício do mandato, quando não for aplicável

penalidade mais grave, o Senador que:

I – reincidir nas hipóteses do artigo antecedente;

II – praticar transgressão grave ou reiterada aos preceitos do

Regimento Interno ou deste Código, especialmente quanto à

observância do disposto no art. 6º;

206

Eduarda Simonetti Pase

Perda temporária do

exercício do mandatoIII – revelar conteúdo de debates ou deliberações que o

Senado ou Comissão haja resolvido devam fi car secretos;

IV – revelar informações e documentos ofi ciais de caráter

reservado, de que tenha tido conhecimento na forma

regimental;

V – faltar, sem motivo justifi cado, a dez sessões ordinárias

consecutivas ou a quarenta e cinco intercaladas, dentro da

sessão legislativa ordinária ou extraordinária.

Perda do mandato Art. 11. Serão punidas com a perda do mandato:

I – a infração de qualquer das proibições constitucionais

referidas no art. 3º (Constituição Federal, art. 55);

II – a prática de qualquer dos atos contrários à ética e ao

decoro parlamentar capitulados nos arts. 4º e 5º (Constituição

Federal, art. 55);

III – a infração do disposto nos incisos III, IV, V e VI do

art. 55 da Constituição*.

*Art. 55. Perderá o mandato o Deputado ou Senador:

III - que deixar de comparecer, em cada sessão legislativa, à terça parte das sessões ordinárias da Casa a que pertencer,

salvo licença ou missão por esta autorizada;

IV - que perder ou tiver suspensos os direitos políticos;

V - quando o decretar a Justiça Eleitoral, nos casos previstos nesta Constituição;

VI - que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado.

Em comparativo com o que estabelece o Código de Ética e Decoro

Parlamentar da Câmara dos Deputados, nesse acontece a suspensão do exercício

do mandato por até 6 meses, enquanto no Senado é a perda temporária sem prazo

máximo fi xado. Também, outra diferença é que no Senado não há previsão da

suspensão das prerrogativas do mandato, enquanto que na Câmara dos Deputados

há. Ainda em termos comparativos, no Senado Federal existe a possibilidade de

aplicação de advertência como sanção, enquanto que na Câmara dos Deputados

Federais a sanção mais branda é representada pela censura (verbal ou escrita).

No que se refere às sanções aplicadas pela Assembleia Legislativa do Estado

do Rio Grande do Sul aos Deputados Estaduais que ferirem o decoro parlamentar,

o Regimento Interno da Assembleia prevê, em seu art. 41, como sanções a serem

aplicadas: I – censura (verbal ou escrita); II – suspensão do exercício do mandato;

ou III – perda do mandato. Nestes termos, no âmbito do Poder Legislativo

gaúcho, a perda do mandato poderá ser aplicada ao Deputado Estadual I – que

infringir qualquer das proibições do art. 33 do Código de Ética Parlamentar;

II – que reincidir, por 03 (três) vezes na mesma legislatura, em conduta ofensiva à

imagem da Assembleia Legislativa, na forma do art. 34; III – que tiver declarado

207

Condições e possibilidades de cumulação das sanções parlamentares em face das estabelecidas pela Lei de Improbidade Administrativa e o seu tratamento na jurisprudência do Poder Judiciário brasileiro

o excesso de faltas, na forma do art. 42; IV – que perder ou tiver suspensos os

direitos políticos; V – quando o decretar a Justiça Eleitoral, nos casos previstos na

Constituição Federal; VI – que sofrer condenação criminal em sentença transitada

em julgado.

Observe-se que nos casos das hipóteses I, II e VI, a perda do mandato

será decidida pelo Plenário da Assembleia Legislativa, por voto aberto e maioria

absoluta, mediante provocação da Mesa ou de partido político com representação

na Casa, em processo disciplinar instruído pela Comissão de Ética Parlamentar.

E, nos casos previstos nas hipóteses III, IV e V, a perda será declarada pela Mesa

da Assembleia Legislativa. Não obstante, o Código de Ética Parlamentar gaúcho

mantém a ordem constitucional do art. 56 da Constituição Federal.

Um aspecto importante que também pode ser pensado, antes de se debater

os aspectos centrais do decoro e posteriormente da improbidade em si, é se seria

possível submeter um parlamentar a procedimento de quebra de decoro sobre

atos praticados quando este não estiver exercendo a função de parlamentar, nos

casos previstos no art. 56, incs. I e II4, da Constituição Federal, por exemplo. Não

obstante, ainda sobre esse cenário surge outro questionamento, se esse parlamentar

que está afastado das funções de parlamentar e que exerce função de pessoa que

está submetido a incidência de crimes de responsabilidade, a partir da posição

do Supremo Tribunal Federal sobre o caso, poderá este parlamentar afastado de

suas funções (de parlamentar) ser processado por improbidade estando sujeito ao

processamento por crime de responsabilidade? Ainda, altera-se o cenário sobre o

aspecto do decoro parlamentar?

Para responder a tais questionamentos, parte-se das hipóteses em que

parlamentar seja investido em cargos de Ministro de Estado ou Secretário de

Estado. Ademais, a resposta passa pelos incisos do art. 56 da Constituição Federal,

que, com o auxílio de Pinheiro (2006), extrai-se que

a licença por motivos pessoais (por prazo limitado) ou por motivos de

saúde, além da investidura nos cargos de Ministro de Estado, Secretário

4 – Art. 56. Não perderá o mandato o Deputado ou Senador:

I - investido no cargo de Ministro de Estado, Governador de Território, Secretário de Estado, do Distrito

Federal, de Território, de Prefeitura de Capital ou chefe de missão diplomática temporária;

II - licenciado pela respectiva Casa por motivo de doença, ou para tratar, sem remuneração, de interesse

particular, desde que, neste caso, o afastamento não ultrapasse cento e vinte dias por sessão legislativa.

208

Eduarda Simonetti Pase

de Estado ou chefe de missão diplomática, entre outros,  não gera a

perda do mandato parlamentar. É dizer: muito embora o congressista

esteja investido no cargo de Ministro, não exercendo, portanto, suas

funções congressuais, ele, deputado/senador, continua titular de seu

mandato. Ou seja, há a titularidade do mandato, muito embora não haja

o efetivo exercício.

Com esse cenário, tem-se que é possível a cassação do mandato, por quebra

de decoro parlamentar, de congressista que esteja afastado do exercício das funções

de representante eleito, ou seja, os atos praticados por parlamentares no exercício do

cargo de Ministro ou Secretário de Estado, podem dar ensejo a perda do mandato

por quebra de decoro, tendo em vista ainda titularizar o mandato de representante

e, que diante da potencial possibilidade de este parlamentar reassumir a sua

vaga no Poder Legislativo, este possui a prerrogativa de processar membro seu,

buscando proteger a honra objetiva do próprio Poder Legislativo, que é o que move

a ideia de decoro parlamentar. Até porque as situações do art. 56 da Constituição

Federal preveem um afastamento eminentemente temporário do exercício das

funções parlamentares, que pode cessar a qualquer tempo, inclusive por um ato

de vontade do próprio titular do cargo. Ou seja, abre-se o processo para que seja

aniquilado o direito do parlamentar de retornar à instituição. Porque seu retorno,

que não pode ser impedido por nenhum outro parlamentar, pode trazer para a

Casa efeitos maléfi cos em sua honra. É como se a Casa agisse preventivamente

(se o congressista ainda estiver licenciado ou investido nos cargos elencados no

inc. I do art. 56 da Carta Política) ou repressivamente, caso o parlamentar já tenha

reassumido suas funções parlamentares (PINHEIRO, 2006).

Exemplifi cando: imagine-se que um parlamentar esteja licenciado por motivos

pessoais (hipótese do art. 56, II, da CRFB/88) e que, durante essa licença, cometa

um crime de estupro, por exemplo. Nesta conjectura, possui todo o interesse a Casa

Legislativa, na qual possui mandato este parlamentar, que este perca defi nitivamente

o seu mandato, tendo também por consequência a perda do direito de, a qualquer

momento, retornar para a Casa em que era titular de mandato. Isso, pois, esse

retorno, pode comprometer de modo signifi cativo a respeitabilidade da Instituição.

Outro exemplo que ilustra este cenário e que se enquadra melhor na proposta

aqui trabalhada é o caso de determinado parlamentar ser investido nas funções de

Ministro de Estado ou Secretário de Estado e ser acusado de praticar atos que

confi gurem improbidade administrativa. Esse congressista pode ter tolhido o seu

209

Condições e possibilidades de cumulação das sanções parlamentares em face das estabelecidas pela Lei de Improbidade Administrativa e o seu tratamento na jurisprudência do Poder Judiciário brasileiro

direito de reassumir o exercício do mandato a qualquer momento que, no dizer

de Pinheiro (2006), pode-se sugerir uma cassação preventiva desse direito, a ser

motivada pelo fundado receio de que o indivíduo retorne à sua Casa Legislativa

trazendo consigo toda pecha de imoralidade decorrente do exercício de outra

função pública: a de Ministro ou Secretário de Estado, ou qualquer das outras

elencadas no art. 56, inc. I, da Constituição Federal.

Ainda neste exemplo, a saída não poderia ser diferente, tendo em vista

que, caso o parlamentar já tenha retornado ao exercício do seu mandato com

seus pares, pode esse Deputado/Senador/Vereador sofrer processo por quebra de

decoro parlamentar como qualquer outro colega seu, desde que, obviamente, a

prática desses atos comprometa a honorabilidade do Poder Legislativo. É por isso

que existe o decoro parlamentar, isto é, para proteger a honra objetiva do Poder

Legislativo. Esse fato levanta outro aspecto que é a inexigibilidade de que a prática

do ato indecoroso seja contemporânea ou concomitante com o exercício ou a

titularidade do mandato parlamentar.

Sobre o aspecto da concomitância do exercício do mandato para com a prática

do ato indecoroso, é preciso reforçar a alegação de que parlamentares investidos

em outros cargos não poderiam ser cassados por quebra de decoro, tendo em vista

que o princípio da separação dos poderes proíbe o exercício simultâneo de funções

em mais de um poder (PINHEIRO, 2006). A dúvida surgiria nos casos do art. 56,

inc. I, da CRFB/88, que é quando o afastamento do exercício do mandato eletivo

se dá em razão do exercício de função em outro cargo, cargos estes pertencentes ao

Poder Executivo. Nesse caso há o exercício efetivo de funções em um Poder, por

pessoa que é titular (embora não exerça) de mandato parlamentar. Nesses casos a

fi gura do titular se destaca da fi gura daquele que exerce a função de parlamentar.

O parlamentar continua sendo titular do mandato, mas afastado do exercício. Nesse

sentido tem-se uma importante decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal:

O membro do Congresso Nacional que se licencia do mandato para

investir-se no cargo de ministro de Estado não perde os laços que o

unem, organicamente, ao Parlamento (CF, art. 56, I). (...). (...) ainda

que licenciado, cumpre-lhe guardar estrita observância às vedações e

incompatibilidades inerentes ao estatuto constitucional do congressista,

assim como às exigências ético-jurídicas que a Constituição (CF, art. 55,

§ 1º) e os regimentos internos das casas legislativas estabelecem como

elementos caracterizadores do decoro parlamentar.” (MS 25.579-MC,

210

Eduarda Simonetti Pase

rel. p/ o ac. Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 19-10-05, Plenário,

DJ de 24-08-07).

Ou seja, para o primeiro questionamento a resposta deve ser positiva,

isto é, pode um parlamentar sofrer processo por quebra de decoro parlamentar

e, eventualmente, ter declarada a perda do seu mandato, quando praticar atos

indecorosos nas hipóteses do art. 56, incs. I e II, da Constituição Federal. O que

este dispositivo constitucional veda é a perda do mandato do Deputado ou Senador

que se afastar do exercício das funções de parlamentar para assumir o exercício

das funções ali elencadas. Mas, as ações que este parlamentar praticar enquanto

titular da função de Ministro de Estado, por exemplo, pode ter refl exos diretos na

manutenção da titularidade do seu mandato enquanto parlamentar.

Quanto ao segundo questionamento, sobre a possibilidade de este

parlamentar ser processado por improbidade administrativa ou por crime de

responsabilidade, a discussão é bastante densa e, nesse caso, essa proposta se

restringirá a realizar uma breve refl exão, indicando a existência da discussão sem

pretender esgotá-la. O que importa para este estudo é saber se, independentemente

de o parlamentar estar submetido ao regime de responsabilização dos crimes

de responsabilidade (por exercer função que tenha esta prerrogativa fi xada

constitucionalmente, como é o caso de Ministro de Estado, por exemplo) ou se

submetido ao regime de responsabilização da Lei de Improbidade Administrativa.

O que importa saber é se a possível alteração do regime de responsabilização

infl uencia na possibilidade de processamento do parlamentar por quebra de decoro.

Ou seja, independentemente de o parlamentar ser juridicamente responsabilizado

pelo regime de responsabilização dos crimes de responsabilidade ou da Lei de

Improbidade Administrativa, este parlamentar, que, eventualmente, praticar um

ato desonroso quando afastado do exercício da função parlamentar, poderá ser

processado por quebra de decoro e perder o seu mandato, por meio de julgamento

pela própria Casa Legislativa de que for membro.

Assim, visto quais são as condutas que podem gerar a instauração de processo

para apuração de quebra de decoro parlamentar, a partir da Constituição Federal

e dos institutos jurídicos internos às Casas do Congresso Nacional, bem como da

Assembleia Legislativa gaúcha, busca-se explorar as espécies de sanções previstas

na Lei de Improbidade Administrativa para que, ao fi nal, seja possível identifi car,

portanto, quais sanções da Lei de Improbidade se identifi cam com a consequência

mais grave do processamento de um parlamentar por quebra de decoro, que é a

211

Condições e possibilidades de cumulação das sanções parlamentares em face das estabelecidas pela Lei de Improbidade Administrativa e o seu tratamento na jurisprudência do Poder Judiciário brasileiro

perda do mandato, para, então, mais uma vez identifi car a existência de um duplo

grau sancionatório.

2.2 ESPÉCIES DE SANÇÕE S PREVISTAS DA LEI DE

IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA

Apresentadas as hipóteses que, uma vez realizadas, podem confi gurar a

instauração de processo por quebra de decoro parlamentar contra membro do

Poder Legislativo, passa-se a verifi car as condutas confi guradoras de improbidade

administrativa que poderão também gerar a instauração de processo por quebra

de decoro nos casos praticados por parlamentares. Outrossim, passa-se a verifi car

as sanções previstas pela Lei de Improbidade Administrativa para identifi car

se existem sanções comuns entre as aplicadas nos casos de processamento do

parlamentar pela sua Casa Legislativa e se também punido judicialmente por

prática de improbidade administrativa. Assim, ao fi nal, será possível confi rmar ou

não a hipótese levantada, isto é, de que não há cumulatividade de sanções nesses

casos, ou seja, não se confi gura bis in idem, tendo em vista que, se o fato violar

mais de uma ordem jurídica, ensejará a aplicação das sanções previstas para cada

ordem, sem que isso acarrete, necessariamente, um bis in idem.

Tal afi rmação é possível de se sustentar no momento em que se considera

a sanção de perda do mandato e suspensão dos direitos políticos aplicada em

processo que investigue quebra de decoro parlamentar, uma sanção disciplinar.

Nesse sentido, Borin e Lemes (2013) auxiliam o entendimento sustentando que

“essas sanções [as aplicadas em sede de improbidade administrativa] têm natureza,

em regra, administrativa; mas diferentemente das demais sanções administrativas,

apenas pode ser imposta por meio da via jurisdicional. E elas, em princípio, não

excluem as demais esferas jurídicas de sanções, administrativas ou não”.

A Lei de Improbidade Administrativa ressaltou a necessidade de

honestidade no trato público, criando novas sanções de natureza administrativa e,

materializando a intenção constitucional do art. 37, § 4º, da Constituição Federal,

previu também sanções políticas e novos instrumentos para a recomposição civil

dos prejuízos causados à Administração e a anulação de atos de enriquecimento

ilícito, ou seja, estando alheia a sanções disciplinares (BORIN; LEMES, 2013).

Assim, observando a disposição sistemática da Lei de Improbidade, tem-se

que ela contempla três espécies de atos de improbidade, quais sejam: i) aqueles que

212

Eduarda Simonetti Pase

importam o enriquecimento ilícito (art. 9º); ii) os que causam prejuízo ao Erário

(art. 10) e iii) aqueles que atentam contra os princípios da Administração Pública

(art. 11). Essas “espécies” de improbidade podem ocorrer isoladamente ou até mesmo

combinando-se, por exemplo, um sujeito pode, com um mesmo ato, incorrer em

enriquecimento ilícito (art. 9º) e causar prejuízo ao Erário (art. 10). Observa-se que a

última espécie de improbidade, a do art. 115, violação aos princípios da Administração

Pública, é a única espécie que pode ser considerada isoladamente, pois, uma vez

praticada qualquer uma das outras duas espécies, através de uma correta interpretação

do sistema de sanções da LIA, esse a considera absorvida dentro das demais.

Decorrente dessa divisão dos atos que impliquem, notadamente, em

improbidade administrativa, a LIA cuidou de separar também em três grupos as

sanções aplicáveis às espécies de improbidade, sem estabelecer previamente a qual

ilícito aplicar-se-iam. Será o art. 12 da Lei de Improbidade que irá estabelecer as

sanções aplicáveis a cada espécie de ato ilícito, tendo estabelecido, para os atos que

impliquem em enriquecimento ilítico (art. 9º), a sujeição do sujeito i) à perda dos

bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, ii) ao ressarcimento integral

do dano, iii) perda da função pública, iv) suspensão dos direitos políticos de oito

a dez anos, v) pagamento de multa civil de até três vezes o valor do acréscimo

patrimonial e vi) a proibição de contratar com o Poder Público ou receber

benefícios ou incentivos fi scais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que

por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de dez

anos (art. 12, inc. I).

Não obstante, para os atos que impliquem em prejuízo ao Erário (art. 10),

a LIA estabeleceu que o agente está sujeito i) ao ressarcimento do dano, ii) à perda

dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, iii) à perda da função

pública, iv) suspensão dos direitos políticos de cinco a oito anos, v) pagamento de

multa civil de até duas vezes o valor do dano e vi) a proibição de contratar com

5 – A título de complementação informativa, interessante olhar a análise feita nos artigos “Quais as

modalidades mais incidentes de condenação pela Lei de Improbidade Administrativa: enriquecimento

ilícito, dano ao Erário ou inobservância dos Princípios da Administração Pública? Possíveis

conclusões”, de autoria de Cynthia Juruena e Denise Friedrich, e “Os princípios que fundamentam as

condenações por improbidade administrativa pelo artigo 11/LIA: uma análise a partir da jurisprudência

do TJRS”, dos autores Karine Santos e Ricardo Hermany. Ambos disponíveis na obra: LEAL, R. G.

BITENCOURT, C. M. Temas polêmicos da jurisdição do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

dos crimes aos ilícitos de natureza pública incondicionada. Porto Alegre: Tribunal de Justiça do Rio

Grande do Sul, 2015.

213

Condições e possibilidades de cumulação das sanções parlamentares em face das estabelecidas pela Lei de Improbidade Administrativa e o seu tratamento na jurisprudência do Poder Judiciário brasileiro

o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fi scais ou creditícios, direta

ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio

majoritário, pelo prazo de cinco anos (art. 12, inc. II).

Por fi m, para os atos que violem os princípios da Administração Pública

(art. 11), as sanções poderão ser i) o ressarcimento integral do dano, ii) se houver a

perda da função pública, iii) a suspensão dos direitos políticos de três a cinco anos,

iv) pagamento de multa civil de até cem vezes o valor da remuneração percebida pelo

agente e v) a proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou

incentivos fi scais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de

pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de três anos (art. 12, inc. III).

Acerca das sanções da LIA, imprescindível, para o trabalho, abordar as

questões sobre a sua natureza jurídica. Descarta-se de antemão a possibilidade de

natureza penal, a partir da própria interpretação do dispositivo constitucional que

autoriza a proteção da probidade administrativa. Isso, pois, prescreve o art. 37,

§ 4º, da Constituição que os atos de improbidade administrativa importarão a

suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade

dos bens e o ressarcimento ao Erário, na forma e gradação previstas em lei, sem

prejuízo da ação penal cabível. A parte fi nal do dispositivo refl ete que as sanções

ali previstas não possuem caráter penal. Ademais, caso um ato de improbidade

também confi gurar em um ilícito penal, as suas consequências serão apuradas em

processo penal próprio, distinto, portanto, da apuração de improbidade da Lei

n. 8.429/92 (BORIN; LEMES, 2013).

Ainda sobre a natureza jurídica da LIA, não é possível confundi-la com

as sanções funcionais, por exemplo, tendo em vista que estas possuem natureza

estritamente administrativa, uma decorrência do princípio da hierarquia que rege o

serviço público, as quais, no mais das vezes, consistem em advertência, suspensão

e demissão. Ou seja, “as faltas funcionais, além de violar os estatutos, podem

confi gurar-se, concomitantemente, em atos de improbidade administrativa, quando

haverá a necessidade da apuração dos fatos (e aplicação das sanções cabíveis)

tanto na esfera administrativo-funcional” (BORIN; LEMES, 2013, p. 18) – por

meio do processo administrativo disciplinar ou da sindicância ou, no caso deste

estudo, do processo por quebra de decoro parlamentar – quanto na esfera da Lei de

Improbidade (por meio de ação judicial). Assim, “caso o ato realmente confi gure-

-se falta funcional e ato de improbidade administrativa, dever-se-á aplicar tanto as

sanções previstas na Lei n° 8.112/90 (na esfera federal, repita-se) quanto àquelas

previstas na Lei n° 8.429/92” (BORIN; LEMES, 2013, p.18).

214

Eduarda Simonetti Pase

Nesse sentido, Maria Silvia Zanella di Pietro (2009) conclui que as sanções

têm natureza eminentemente civil e explica que a Lei n. 8.429/92 ampliou o

espectro sancionatório para além do previsto na Constituição (a suspensão dos

direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o

ressarcimento ao Erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo

da ação penal cabível), para então inserir, também como sanções (art. 12): a) a

perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio; b) a multa civil e

c) a proibição de contratar com o Poder Público ou receber incentivos fi scais ou

creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da

qual seja sócio majoritário.

Contudo, há algumas leituras sobre as sanções da LIA que ultrapassam o

seu caráter puramente civil, destacando-se o seu caráter político, como no caso

da suspensão dos direitos políticos, principal sanção que interessa a este estudo.

Por exemplo, em Borin e Lemes (2013, p. 19), quando afi rmam que a perda ou a

suspensão dos direitos políticos é uma consequência grave,

a que o ordenamento constitucional apenas prevê em situações

peculiaríssimas (cancelamento da naturalização – artigos 15, I, e 12,

§ 4.º, I; perda da nacionalidade brasileira em razão de aquisição voluntária

de outra nacionalidade – art. 12, § 4.º, II; recusa de cumprimento de

obrigação legal a todos imposta ou de satisfação de prestação alternativa –

artigos 15, IV, e 5.º, VIII; incapacidade civil absoluta – art. 15, II;

condenação criminal transitada em julgado – art. 15, III; e condenação

irrecorrível em ação de improbidade administrativa (artigos 15, V, e 37,

§ 4.º).

Entretanto, não se pode falar que a sanção de suspensão dos direitos políticos

em sede de condenação por improbidade administrativa tem caráter político. O seu

caráter é jurídico, que terá refl exos, inevitavelmente, na esfera da vida política do

sujeito. Os seus refl exos são políticos, mas, na sua aplicação, os critérios devem

ser jurídicos. Se fosse admitido o contrário, estar-se-ia admitindo e legitimando a

politização do Poder Judiciário. Não há que se olvidar que essa sanção é aplicada

em sede de processo judicial.

Já é possível perceber que as sanções aplicáveis no caso de quebra de

decoro parlamentar avaliado pela Casa Legislativa de determinado parlamentar

nem previsão exata possui na Lei de Improbidade. Os Códigos de Ética e Decoro

215

Condições e possibilidades de cumulação das sanções parlamentares em face das estabelecidas pela Lei de Improbidade Administrativa e o seu tratamento na jurisprudência do Poder Judiciário brasileiro

Parlamentar preveem a perda do mandato (cassação), que tem como decorrência a

suspensão dos direitos políticos. O que permanece em discussão é se a suspensão dos

direitos políticos aplicáveis em sede de improbidade administrativa confi gurariam,

portanto, um bis in idem para com a suspensão decorrente da perda do mandato

por quebra de decoro parlamentar. A elementaridade de tal discussão tem como

pano de fundo o fato de os direitos políticos consistirem em um conjunto de regras

constitucionais e infraconstitucionais que regulam e autorizam o pleno exercício

da soberania popular, sobretudo em regimes democráticos representativos,

por intermédio do sufrágio universal, expressado principalmente por meio do

voto secreto, direto e igual para todos, tendo em vista que, em se tratando do

ordenamento jurídico brasileiro, conferem ao sujeito os atributos da cidadania

plena. Não obstante, “a suspensão dos direitos políticos, decorrente de ato de

improbidade administrativa, é autônoma, e imposta no juízo cível na sentença que

julgar procedente a ação civil de improbidade administrativa. A imposição decorre

do juízo cível e é executada pela Justiça Eleitoral, depois da ciência do trânsito em

julgado da decisão” (BORIN; LEMES, 2013, p. 19).

Assim, as condutas tipifi cadas como confi guradoras de improbidade

administrativa pela Lei n. 8.429/92, em regra, abrirão a possibilidade de sanção

por parte da Casa Legislativa da qual o parlamentar é titular. Como compete ao

Poder Legislativo, na maior parte dos casos, decidir o que irá ser conduta apta a

quebrar o decoro e a submeter o parlamentar à determinada sanção, pode haver

casos em que haja o processamento do sujeito por improbidade administrativa,

mas que, na esfera disciplinar, entenda-se o contrário (ainda que raro). A sanção

de perda do mandato por quebra de decoro é disciplinar, mas o entorno do cenário

em que ela será aplicada é político.

3 A SUSPENSÃO DOS DIREITOS POLÍTICOS DECORRENTE

DE PERDA DE MANDATO EM SEDE DE SANÇÃO PARLAMENTAR

EM FACE DA SUSPENSÃO ESTABELECIDA PELA LEI DE

IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA: A PROBLEMÁTICA SOB A

ÓTICA DA JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA

A discussão em torno do sancionamento de membros do Poder Legislativo

que tenham seus direitos políticos suspensos, seja por condenação direta em ação

de improbidade administrativa, seja por consequência decorrente da perda de

216

Eduarda Simonetti Pase

mandato em sede de processo por quebra de decoro parlamentar, tem como pano

de fundo a necessidade inerente à ideia de democracia representativa, na qual a

responsabilização dos detentores do poder visa a alcançar uma maior qualidade na

atuação das instituições democráticas, por exemplo e especialmente, a instituição

do Poder Legislativo. A necessidade de investigação e responsabilização com as

sanções previstas no ordenamento jurídico fazem-se ainda mais necessárias quando

o cenário de uma nação política é marcado pela descrença do cidadão ao corpo

de sujeitos que o representam no cenário político. Assim, “a responsabilidade,

portanto, é um mecanismo inerente ao sistema representativo, que procede do

pensamento político liberal presente nas revoluções burguesas, através do qual o

povo elege integrantes do seu meio para representá-lo, sendo que tais representantes

estariam aptos a efetuar uma apreciação mais prudente da vontade popular, melhor

protegendo os interesses da coletividade” (SANSON; JUNQUEIRA, 2013, p. 114).

Conforme as lições de Giorgio Berti (1994, p. 68),

Anche in queste più moderne prospettive, sembra che il senso dela rappresentanza

o della rapprentatività, a differenza della democrazia identitaria, si racchiuda

nella controllabilità e prima ancora nella trasparenza di um rapporto basato

sostanzialmente sulla responsabilità; che cioè la rappresentanza, al di là degli

aspetti formali relativi all’investitura elettiva dei rappresentanti (parlamenti,

governi, etc.), non sia politicamente troppo diversa dalla democrazia diretta, ma

pur si differenzi da questa sotto um profi lo que direi senz´altro giuridico. Quando

il diritto è sapientemente manipolato, può persino fare dei miracoli!

Assim, a necessidade de responsabilização decorre da antevisão constitucional

de algumas hipóteses nas quais certos princípios constitucionais colocam-se em

situação de antagonismo. Esse é o caso de a moralidade e a probidade entrarem em

colisão com o direito à representação, por exemplo. Isto é, “a continuidade mesma

no exercício de determinado mandato parlamentar, pelos desvios eventualmente

registrados, pode confi gurar fator de corrosão da essência de valores fundamentais,

afetando a própria ideia de Constituição” (PINHEIRO, 2016), sendo avesso, portanto,

à noção de democracia e de um mandato que prime pela realização dos direitos

fundamentais. Com essas questões no entorno, a Lei de Improbidade, no seu âmbito

de responsabilidade e bem jurídico que pretende proteger, busca a responsabilização

quando do atingimento desse bem protegido. Já em outro ramo de proteção, os

Códigos de Ética e Decoro Parlamentar das Casas Legislativas previram, a partir da

217

Condições e possibilidades de cumulação das sanções parlamentares em face das estabelecidas pela Lei de Improbidade Administrativa e o seu tratamento na jurisprudência do Poder Judiciário brasileiro

autorização constitucional, a possibilidade de responsabilização dos parlamentares

quando da ofensa da honra objetiva do Poder Legislativo.

Resta então entender a suspensão de direitos políticos decorrentes de perda

de mandato por parlamentar que incorra na quebra de decoro. Nesse ponto, ajuda

o texto na Lei Complementar n. 64/90, na sua alteração pela Lei Complementar

n. 81/94. Esta última altera a redação da alínea “b” do inc. I do art. 1º da Lei

Complementar n. 64, de 18 de maio de 1990, para elevar de três para oito anos

o prazo de inelegibilidade para os parlamentares que perderem o mandato por

falta de decoro parlamentar. Assim, tem-se que são inelegíveis os membros do

Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas, da Câmara Legislativa e das

Câmaras Municipais que hajam perdido os respectivos mandatos por infringência

do disposto nos incs. I e II do art. 55 da Constituição Federal (que trata do

decoro parlamentar) dos dispositivos equivalentes sobre perda de mandato das

Constituições Estaduais e Leis Orgânicas dos Municípios e do Distrito Federal,

para as eleições que se realizarem durante o período remanescente do mandato

para o qual foram eleitos e nos oito anos subsequentes ao término da legislatura.

No que se refere à sanção de suspensão dos direitos políticos decorrente

de condenação direta em ação de improbidade administrativa, devem preencher

dois requisitos básicos, sendo o primeiro a necessidade de que “a decisão na

ação de improbidade tenha sido prolatada de forma colegiada por maioria ou

unanimidade, por exemplo, por uma das câmaras do Tribunal de Justiça do

Estado, ou tenha ocorrido o trânsito em julgado da decisão monocrática ou

colegiada” (RAMAYANA, 2012, p. 294). Ainda, essa suspensão pela LIA exige,

como segundo requisito, que a condenação se dê em sede de decisão monocrática

ou colegiada. A suspensão dos direitos políticos por meio de condenação em

improbidade administrativa deve estar expressa na sentença, caso contrário não

será causa da inelegibilidade do art. 1º, I, alínea l, da LC n. 64/90.

No caso da inelegibilidade decorrente da LC n. 64/90, lembra-se que, com

a alteração da LC n. 135/10, o ato de improbidade deve, necessariamente, ser

um ato doloso que importe lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito,

isto é, são as duas condutas em uma. A suspensão, nesses casos, ocorre desde a

condenação ou o trânsito em julgado até o transcurso do prazo de oito anos após

o cumprimento da pena. Assim, a suspensão dos direitos políticos decorrente de

condenação direta em improbidade administrativa, no caso da ofensa aos princípios

da Administração Pública, decorrem da previsão constitucional do art. 15, inc. V,

combinado com o art. 37, § 4º. Ou seja, o prazo de cumprimento da suspensão dos

218

Eduarda Simonetti Pase

direitos políticos no caso de condenação em improbidade administrativa tem o seu

decurso independente da suspensão decorrente de perda de mandato por quebra de

decoro parlamentar. Nesse sentido, para os casos de improbidade

o prazo deve ser contado de oito anos após o cumprimento das sanções

impostas, por exemplo, na ação civil de improbidade administrativa.

A jurisprudência do TSE é nesse sentido, pois está arrimada nas Ações

Declaratórias de Constitucionalidade nº 29 e nº 30 e na Ação Direta de

Inconstitucionalidade nº 4.578/DF, julgadas pelo Supremo Tribunal

Federal, que declararam a constitucionalidade da Lei Complementar

nº 135/2010, além de se reconhecer incidência da nova causa de

inelegibilidade sobre fatos anteriores (RAMAYANA, 2012, p. 293)6.

Veja-se no caso julgado pelo Tribunal de Justiça gaúcho em que se fraudou um

processo seletivo para estagiários, no qual um Vereador teria se beneficiado dos serviços

prestados por eles. Nesse caso, além da suspensão dos direitos políticos do Vereador, o

Tribunal sentenciou com a perda da função pública, o que fez com que perdesse, portanto,

o seu mandato junto à Câmara Municipal, sem a necessidade de processamento do

Vereador pela Câmara de Vereadores por quebra de decoro parlamentar.

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE IMPROBIDADE. CONTRATAÇÃO

SIMULADA DE ESTAGIÁRIO. INEXISTÊNCIA DE PRESTAÇÃO

DE SERVIÇOS OU QUALQUER ATO QUE JUSTIFIQUE O

6 – 5. Veja-se ainda o entendimento exarado pelo STJ, no Recurso Especial n. 993.658, de relatoria

do Ministro Francisco Falcão: A sanção de suspensão temporária dos direitos políticos, decorrente

da procedência de ação civil de improbidade administrativa ajuizada perante o juízo cível estadual ou

federal, somente perfectibiliza seus efeitos, para fi ns de cancelamento da inscrição eleitoral do agente

público, após o trânsito em julgado do decisum, mediante instauração de procedimento administrativo-

-eleitoral na Justiça Eleitoral. 6. Consectariamente, o termo inicial para a contagem da pena de suspensão

de direitos políticos, independente do número de condenações, é o trânsito em julgado da decisão, à luz

do que dispõe o art. 20 da Lei 8.429/92, verbis: “a perda da função pública e a suspensão dos direitos políticos

só se efetivam com o trânsito em julgado da sentença condenatória”. 7. A título de argumento obiter dictum,

sobreleva notar, o entendimento sedimentado Tribunal Superior Eleitoral no sentido de que “sem o

trânsito em julgado de ação penal, de improbidade administrativa ou de ação civil pública, nenhum pré-

-candidato pode ter seu registro de candidatura recusado pela Justiça Eleitoral”. Precedentes do TSE:

REsp 29.028/MG, Rel. Min. Marcelo Ribeiro, publicado em sessão em 26-08-08 e CTA n. 1.607, Rel.

e. Min. Caputo Bastos, DJ de 06-08-08. (Grifos no original)

219

Condições e possibilidades de cumulação das sanções parlamentares em face das estabelecidas pela Lei de Improbidade Administrativa e o seu tratamento na jurisprudência do Poder Judiciário brasileiro

PERCEBIMENTO DA BOLSA ENSINO. DISTRIBUIÇÃO DO

VALOR AOS DEMAIS PARTICIPANTES DO ATO. VIOLAÇÃO

DOS PRINCÍPIOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E PREJUÍZO

AO ERÁRIO. Conforme revela a prova dos autos, houve a simulação de

contrato de estágio, nunca tendo havido o concurso do estagiário, que

repassava parte da bolsa aos réus. Um, Vereador, suposto benefi ciário

do trabalho, outro, intermediário da falsa contratação. Ato doloso que

se mostra atentatório aos princípios da Administração Pública (art. 11,

I, da Lei de Improbidade) e causa prejuízo ao erário (art. 10, I, da Lei

nº 8.429/1992), sujeitando todos os participantes às penas correspondentes

previstas na Lei de Improbidade. Irrelevância da absolvição dos réus no

processo criminal, haja vista a falta de identidade dos tipos e independência

das sanções administrativas (art. 12 da Lei nº 8.429/1992). Apelação

do réus desprovida. Apelação do Ministério provida. (Apelação Cível

Nº 70034862912, Vigésima Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça

do RS, Relator: Marco Aurélio Heinz, julgado em 17/11/2010).

Dessa decisão, em fase de cumprimento de sentença, o Vereador agravou e o

Tribunal manteve a sua decisão, oportunidade em que expressou ser o entendimento

daquele Órgão que a condenação em improbidade com perda da função e suspensão

dos direitos políticos gera a perda do mandato automaticamente, sem a necessidade de

processamento por quebra de decoro parlamentar, por parte da Câmara de Vereadores.

AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE IMPROBIDADE.

CONDENAÇÃOÀ SUSPENSÃO DOS DIREITOS POLÍTICOS.

PERDA DO MANDATO. VEREADOR. É vedada a cassação de direitos

políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de improbidade

administrativa (art. 15, V da CF). Perderá o mandato, o Deputado,

Senador, e, pelo princípio de simetria, o Vereador, que perder ou tiver

suspensos os direitos políticos (art. 55, IV da CF). O agravante foi

condenado à suspensão dos seus direitos políticos e à perda da função

pública, em razão da prática de ato de improbidade, por sentença

transitada em julgado. A extinção do mandato de vereador decorre

dessa punição, cumprindo à Mesa Diretora da Câmara de Vereadores,

apenas declarar a perda do mandato do condenado. Precedente desta

Corte. Agravo desprovido. (Agravo de Instrumento Nº 70053358784,

220

Eduarda Simonetti Pase

Vigésima Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator:

Marco Aurélio Heinz, Julgado em 08/05/2013). (Grifos próprios).

A partir desse entendimento, poder-se-ia pensar na hipótese de que o

processamento de um parlamentar pela sua Casa Legislativa (quando já condenado

em improbidade administrativa à perda da função e suspensão dos seus direitos

políticos), no caso de quebra de decoro, teria como resultado proporcionar um

retorno à sociedade que aquele corpo de parlamentares representa, tendo em vista

que o objetivo máximo a ser alcançado com o processo por quebra de decoro é a

perda (cassação) do mandato e a consequente suspensão dos direitos políticos que

já o fora. Ocorre que nem em todos os casos a sanção de suspensão dos direitos

políticos é aplicada em sede de ações de improbidade que tenha como réu um

membro do Poder Legislativo, tendo em vista que na etapa de fi xação das sanções,

devido à regra de necessidade de graduação da sanção à gravidade do ato, a sanção

de suspensão dos direitos políticos é tida como necessária de se graduar de acordo

com a gravidade real do ato. A exemplo dessa afi rmação, serve o seguinte acórdão

do Tribunal de Justiça gaúcho, oportunidade na qual o Tribunal excluiu das sanções

aplicadas ao caso a suspensão dos direitos políticos que haviam sido fi xados em

sede de sentença no 1º Grau:

ADMINISTRATIVO. IMPROBIDADE. VEREADORES. DIÁRIAS

E DESPESAS DE INSCRIÇÃO EM EVENTO. AUSÊNCIA

DE FREQUÊNCIA. ART. 9º, CAPUT, E INCISO XI, LEI

DE  IMPROBIDADE. Corresponde a inequívoco ato de improbidade,

enquadrado em o art. 9º, caput, e inciso XI, Lei nº 8.429/92, o

recebimento de diárias por vereadores, assim como o ressarcimento das

despesas de inscrição, quanto a curso que não frequentaram efetivamente,

como se confi rma pela ausência das assinaturas na listagem de presença.

IMPROBIDADE  E SANÇÕES. ART. 12, I, LEI Nº 8.429/92.

APLICAÇÃO ISOLADA OU CUMULATIVA. PRINCÍPIOS DA

PROPORCIONALIDADE E RAZOABILIDADE. EXCLUSÃO DAS

PENAS DE PERDA DE FUNÇÃO PÚBLICA E SUSPENSÃO DOS

DIREITOS POLÍTICOS. MULTA CIVIL E PROPORCIONALIDADE.

Não há cogente incidência, modo cumulativo, das sanções traçadas no

art. 12, Lei de Improbidade, podendo se aplicar os apenamentos isolada

ou cumulativamente, sob o enfoque dos princípios da proporcionalidade

221

Condições e possibilidades de cumulação das sanções parlamentares em face das estabelecidas pela Lei de Improbidade Administrativa e o seu tratamento na jurisprudência do Poder Judiciário brasileiro

e razoabilidade, o que leva, no caso dos autos, à exclusão das sanções

de perda de função pública e suspensão dos direitos políticos. Justifi ca-

-se, pela menor ofensa, a redução da multa civil para o mínimo previsto

em o art. 12, I, Lei nº 8.429/92, parâmetro este adotado pela sentença,

aliás, no que tange à suspensão dos direitos políticos. (Apelação e

Reexame Necessário Nº 70058317900, Vigésima Primeira Câmara Cível,

Tribunal de Justiça do RS, Relator: Armínio José Abreu Lima da Rosa,

Julgado em 30/04/2014). (Grifos próprios).

É por esse modo que determinada Casa Legislativa poderá entender pela

necessidade de cassação do mandato de determinado parlamentar, membro seu,

muito embora não tenha sido aplicada a sanção de suspensão dos direitos políticos em

sede de ação de improbidade, por exemplo. Este proceder é absolutamente legítimo,

e as questões meritórias não podem ser revistas pelo Poder Judiciário. Assim, muito

embora em determinadas ações de improbidade administrativa, que tenham como

réu um parlamentar, não seja aplicada a sanção de suspensão dos direitos políticos e

perda da função pública, poderá esta Casa Legislativa, seja Câmara dos Deputados

Federais, Senado, Assembleias Legislativas ou até mesmo Câmaras de Vereadores,

processá-lo por quebra de decoro parlamentar, se for o caso, e ter aplicada a perda

do mandato a este parlamentar. Isto, pois, como já destacado, o processamento por

quebra de decoro visa a proteger a honra da instituição Poder Legislativo e a prática

de determinado ato de improbidade, ainda que não sancionado na esfera judicial

com a suspensão dos direitos políticos, pode, sim, dotar-se de um potencial altamente

lesivo à imagem daquela Casa Legislativa. Legitimando, portanto, a cassação do

mandato por quebra de decoro. Contudo, esse modo de extinção do mandato deve

ser sempre visto e aplicado em caráter de excepcionalidade, para não se incorrer em

rupturas habituais do mecanismo de representação popular.

Com base nas lições de Canotilho (2003), a legitimidade dos órgãos

representativos não decorre simplesmente da delegação da vontade do povo, mas

também do conteúdo dos seus atos, que, quando justos, permitem aos cidadãos,

mesmo com suas diferenças, se reencontrarem nos atos de seus representantes.

Nesse sentido, indica Frota (2012, p. 18) que, em nível nacional, “o primeiro

deputado a perder o mandato por ofensa ao decoro, desde a Constituição de 1946,

foi Eduardo Barreto Pinto, por ter-se deixado fotografar de casaca e cuecas pela

revista O Cruzeiro”. Não obstante, “em 1989 [já sob o ordenamento jurídico da

Constituição de 1988], Felipe Cheidde e Mário Bouchardet também perderam o

222

Eduarda Simonetti Pase

mandato não por falta de decoro, mas por não comparecerem a mais de um terço

das sessões ordinárias na mesma sessão legislativa” (FROTA, 2012, p. 18). Ademais,

apresenta que, “em 1991, o deputado Jabes Rabelo foi cassado por tráfi co de drogas

e, em 1993, os deputados Itsuo Takayama, Nobel Moura e Onaireves Moura, por

compra e venda de fi liações partidárias” (FROTA, 2012, p. 19), indicando, assim, a

alteração nos sentidos de decoro parlamentar. Ao todo, desde a legislatura 1987-1991

até a legislatura 2015-2019, 23 Deputados Federais e três Senadores tiveram declarada

a perda do seu mandato por quebra de decoro parlamentar. Luiz Estevão (sua

cassação ocorreu em 2000, acusado de desviar R$ 170 milhões destinados à

construção do Fórum Trabalhista de São Paulo, tendo sido o primeiro Senador

cassado na história do Brasil). O segundo Senador a sofrer a perda do mandato

foi Demóstenes Torres (em 2012, acusado de associação a Carlinhos Cachoeira, a

partir de investigações decorrentes do escândalo do Mensalão). O terceiro e último

Senador a perder o mandato foi Delcídio do Amaral (em 2016, acusado de utilizar

o cargo para obstrução da justiça, a partir de investigações da Operação Lava-Jato).

Em pesquisa preliminar junto à jurisprudência do Tribunal de Justiça

do Rio Grande do Sul, foi possível fi rmar a posição dos Tribunais Superiores a

respeito da limitação de intervenção do Poder Judiciário nas questões meritórias

em processos que analisam a quebra de decoro parlamentar7. Exemplo disso pode-

-se ter na Apelação Cível n. 70009566043, de relatoria do Desembargador João

Carlos Branco Cardoso, na qual se levou à análise do Tribunal a possível nulidade

do processo por quebra de decoro do Vereador de Santa Vitória do Palmar Aluízio

Alegre Machado. As questões a serem analisadas pelo Tribunal diziam respeito

à regularidade do procedimento adotado pela Comissão Processante da Câmara

de Vereadores, que extrapolou o prazo legal de 90 dias para encerrar o processo.

Entendeu-se, então, que não houvera caracterizado irregularidade ou ilegalidade

alegada pelo Vereador, pois “a Comissão processante só não concluiu seus

trabalhos integralmente no prazo previsto, porque, corretamente, deferiu o pedido

de realização de perícia grafotécnica formulado pelo autor, que, por sua vez, não

7 – Nesse sentido julgado paradigma do Supremo Tribunal Federal. “Ato da Mesa da Câmara dos

Deputados, confi rmado pela Comissão de Constituição e Justiça e Redação da referida Casa

legislativa, sobre a cassação do mandato do impetrante por comportamento incompatível com o decoro

parlamentar. (...) Não cabe, no âmbito do mandado de segurança, (...) discutir deliberação, interna

corporis, da Casa Legislativa. Escapa ao controle do Judiciário, no que concerne a seu mérito, juízo

sobre fatos que se reserva, privativamente, à Casa do Congresso Nacional formulá-lo”. (MS 23.388,

rel. Min. Néri da Silveira, julgamento em 25-11-1999, Plenário, DJ de 20-04-2001. Grifos próprios).

223

Condições e possibilidades de cumulação das sanções parlamentares em face das estabelecidas pela Lei de Improbidade Administrativa e o seu tratamento na jurisprudência do Poder Judiciário brasileiro

foi localizado para intimação da sessão de julgamento, dando ensejo à expiração

do prazo, ocultando-se” (Apelação Cível n. 70009566043).

No Agravo de Instrumento n. 70035870161, por sua vez, as questões levadas

à análise dizem respeito a irregularidades na instauração da Comissão Processante

pela Câmara de Vereadores de Erebango, a qual foi instalada para processar

determinado Vereador por quebra de decoro, por suposta agressão física a um

outro Vereador. No caso, irregularidade confi gurou-se devido ao fato de a Câmara

não ter instalado a Comissão no prazo estabelecido pelo Regimento Interno e ter

sido composta apenas depois da ocorrência do fato que seria processado.

No reexame necessário (n. 70035792522) da sentença proferida nos autos do

mandado de segurança impetrado por Francisco Tadeu Magnus contra ato do Presidente

da Câmara de Vereadores de Xangri-lá, o Poder Judiciário foi instado a se manifestar

em assunto decorrente de procedimento que apurava quebra de decoro parlamentar,

quando o Vereador processado teceu críticas ao Secretário de Administração e

Finanças do Município. Reconheceu-se que tais opiniões estão protegidas pela

imunidade material do parlamentar. Afi rmou-se que, em se tratando de manifestações

proferidas por Vereador, no exercício de mandato eletivo, a Constituição Federal

(art. 29, VIII) e a Lei Orgânica do Município (art. 39) asseguram a inviolabilidade por

suas opiniões, palavras e votos, confi rmando-se, portanto, a sentença.

Em um segundo reexame necessário (n. 70067912113), desta vez, em

sentença de mandado de segurança impetrado por Vilmar Soares contra o

Presidente da Câmara de Vereadores de Caiçara, o Tribunal reformou a decisão de

cassação do mandato do Vereador por entender que o trâmite do processamento

feriu os dispositivos legais que regem a matéria. Destacou ainda que

não é de competência do judiciário a análise do mérito do ato administrativo, sendo

possível, apenas, o controle dos aspectos formais da legalidade do procedimento

utilizado pela Câmara de Vereadores, em razão do princípio da separação dos

poderes, previsto no artigo 2º da Constituição Federal. E, nessa perspectiva,

destaco que o processo de cassação de mandato de vereador, dadas suas

gravíssimas repercussões, deve obedecer às rígidas formalidades legais,

não se admitindo o atropelo de regras legais expressas em nome da

celeridade ou da instrumentalidade do processo de apuração das faltas

imputadas ao vereador acusado. E, no caso, verifi co que o processo não

obedeceu aos ditames do Decreto-Lei nº 201/67 (Reexame Necessário

nº 70067912113, p. 3. Grifos no original).

224

Eduarda Simonetti Pase

Este foi um caso onde houve a reforma da decisão proferida pela Câmara de

Vereadores (reintegração do Vereador à sua função) sem a necessidade de enfrentar

o mérito dos fatos que levaram ao processamento por quebra de decoro parlamentar.

Nesse sentido ainda, no julgamento do MS n. 21443, pelo STF, restou estabelecido que

no caso de cassação de mandato de parlamentar (art. 55, II, da Constituição Federal), o

ato disciplinar é da competência privativa da Câmara respectiva, situado em instância

distinta da judiciária e dotado de natureza diversa da sanção penal, mesmo quando

a conduta imputada ao Deputado coincida com tipo estabelecido no Código Penal,

tendo sido denegada a segurança pleiteada no caso. Nesse aspecto, o entendimento

expressado neste julgamento se adequa ao tema aqui trabalhado, quando, por exemplo,

o relator explica que “a sanção disciplinar imposta pela Câmara dos Deputados

difere da natureza da condenação criminal, é processada em outra instância que a do

Poder Judiciário, cabendo privativamente à Câmara dos Deputados” (MS n. 21443) e

continua “nem seria compreensível que, nas hipóteses presumivelmente as mais graves

de quebra de decoro (as coincidentes com tipos delituosos), a ação de disciplina da

Câmara fi casse tolhida pela dependência e a espera não só da deliberação do Poder

Judiciário, como da própria iniciativa do órgão do Ministério Público” (MS n. 21443).

Por fi m, o relator ressaltou que “é certo que condenação criminal transitada em julgado

acarreta necessariamente a perda do mandato (art. 55, VI, da Constituição), mas essa

previsão não impede que a Câmara, qualifi cando um procedimento (criminoso ou

não) como incompatível com o decoro, imponha a sanção disciplinar correspondente

(perda do mandato)” (MS n. 21443).

Ou seja, as instâncias de aplicação de sanções (responsabilização em

improbidade administrativa e quebra de decoro parlamentar) são instâncias distintas

e não podem se confundir. No caso da instância penal, há que se lembrar que esta

vinculará as demais quando restar sentenciada a inexistência do fato ou negativa de

autoria. Mas, nas demais instâncias, improbidade administrativa, por exemplo, por

serem instâncias diversas e com naturezas jurídicas também diversas, as sanções

aplicadas em cada seara não poderão ser tidas como passíveis de ocorrência de

bis in idem, sob pena de se aniquilar uma das formas de se responsabilizar um

indivíduo que tenha infringido tais ordens.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir das premissas expostas no decorrer deste estudo, pode-se perceber

que a responsabilização de indivíduos que transgridam regras de ordem jurídica

225

Condições e possibilidades de cumulação das sanções parlamentares em face das estabelecidas pela Lei de Improbidade Administrativa e o seu tratamento na jurisprudência do Poder Judiciário brasileiro

pré-estabelecidas é inerente à democracia representativa, sobretudo quando a

transgressão ocorre no trato para com a coisa pública, que é o caso da improbidade

administrativa. Não obstante a isso, foi possível perceber que, em um Estado

Democrático de Direito, no qual predomina o exercício da democracia por

intermédio da representação política, se faz essencial manter determinado

comportamento moral e ético por parte daqueles que ocupam os postos de

representantes da vontade popular e que, caso violada essa honra, passível de

sancionamento para se resguardar a imagem de uma das instituições mais essenciais

no processo de representação política democrática, o Poder Legislativo. Fala-se

aqui do decoro parlamentar.

Para isso, apresentaram-se as condutas que, de acordo com a Constituição

Federal de 1988 e conforme os Códigos de Ética e Decoro Parlamentar tanto das

Casas do Congresso Nacional como da Assembleia Legislativa gaúcha, confi guram

como condutas indecorosas e passíveis de sanção. A partir disso, adentrou-se

especialmente na sanção da perda do mandato (cassação) por quebra de decoro

parlamentar e tentou-se analisar se a suspensão dos direitos políticos decorrente

de cassação de mandato eletivo por quebra de decoro confi guraria uma espécie

de bis in idem quando analisada com a sanção de suspensão dos direitos políticos

aplicável em sede de ação de improbidade administrativa. Tudo isso sob o enfoque

da atividade legislativa.

Sobre esse ponto, com o auxílio da jurisprudência dos Tribunais Superiores

e verifi cando também a partir da jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio

Grande do Sul, foi possível concluir e confi rmar a hipótese levantada, isto é, de

que a aplicação da sanção de suspensão dos direitos políticos em sede de ação de

improbidade administrativa não confi gura bis in idem para com a suspensão dos

direitos políticos decorrentes de perda (cassação) do mandato eletivo por quebra

de decoro parlamentar, sanção esta aplicada em sede de procedimento interno

das Casas Legislativas. Isso porque as esferas de responsabilização são distintas

e uma possui caráter disciplinar e a outra caráter civil-administrativo, em que

pese a sanção de perda da função e suspensão dos direitos políticos tenha caráter

eminentemente político.

Por fi m, foi possível identifi car ainda a posição do Poder Judiciário no que

tange ao dever de não intervenção nas questões meritórias de procedimentos que

tratem da quebra de decoro parlamentar pelas Casas Legislativas, reservando-se,

sim, o dever de intervenção e análise quando solicitado, em questões formais e de

regularidade legal de tais processos.

226

Eduarda Simonetti Pase

REFERÊNCIAS

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Milano: Cedam, 1994.

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227

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Eduarda Simonetti Pase

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UM ESTUDO DE CASO DA AÇÃO POPULAR N. 70056129380

CONTRA O MUNICÍPIO DE VIAMÃO: O CONTROLE

SOCIAL DA TARIFA DOS TRANSPORTES PÚBLICOS1

Augusto Carlos de Menezes Beber2

Resumo: o presente artigo visa a discutir a possibilidade de controle social da tarifa

dos transportes públicos, tendo por escopo um estudo de caso da Ação Popular n. 70056129380

contra o Município de Viamão. Para tanto, reconstruiu-se o conceito de controle social a

partir de uma vertente procedimentalista, passando-se à leitura de alguns institutos do direito

administrativo que regem o tema das tarifas de transporte público. Ao cabo, analisou-se o caso

da referida ação popular, pugnando-se pela aderência à decisão do Tribunal de Justiça, e, ao

fi m, a partir do conceito encontrado, identifi cou-se positivamente a possibilidade de controle

social em relação às tarifas, ressalvando-se o instrumento processual adequado para tanto.

1 INTRODUÇÃO

Em 1984, George Orwell demonstrou os riscos do totalitarismo por meio

de um universo fi ctício, em que todos os sujeitos de um país se submetiam ao

1 – O presente artigo é fruto dos debates realizados no bojo do “Projeto Interinstitucional de redes de

grupos de pesquisa sobre o tema Patologias Corruptivas nas relações entre Estado, Administração Pública

e Sociedade: Causas, Consequências e Tratamentos – PARTE II: discutindo formas de enfrentamento do

fenômeno”, coordenado pelo Professor Doutor Rogério Gesta Leal, sendo as pesquisas desenvolvidas

junto ao Centro Integrado de Estudos e Pesquisas em Políticas Públicas – CIEPPP.

2 – Graduando do Curso de Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, com bolsa de

iniciação científi ca institucional, modalidade PUIC, sob a orientação do Professor Doutor Janriê

Rodrigues Reck. E-mail: [email protected]

230

Augusto Carlos de Menezes Beber

controle realizado pela fi gura do Grande Irmão, mentor e estruturador da ordem

estatal.

Desde estudos que datam do século XIX, a Sociologia tem se inclinado a

chamar esse fenômeno de controle social, pois nele, por intermédio de institutos

repressivos (como o direito penal), o Estado assumiria o poder de defi nir como

deve ser o agir dos sujeitos, regulando suas ações, omissões e expectativas de vida.

Hodiernamente, e especialmente no meio jurídico, o controle social possui

uma conotação muito diferente: trata-se, sobretudo, de uma forma de preservar o

interesse público por meio do exercício de virtudes cívicas.

Com isso, grandes nomes do direito público, com destaque para o direito

administrativo, têm colocado com frequência o controle social ao lado das demais

modalidades de controle da Administração, evidenciando assim uma tendência de

participação e inclusão social nas estruturas burocráticas do Estado.

A partir desse cenário, intui-se com o presente trabalho realizar uma análise

crítica da Ação Popular n. 70056129380, na qual se discutiu a possibilidade de

controle sobre o valor da tarifa dos transportes públicos no Município de Viamão.

Com isso, pretende-se discorrer também sobre o conceito de controle social,

verifi cando-se a sua incidência ou não no caso concreto sub judice.

Nestes termos, a pesquisa se dividirá em três pontos: no primeiro, trar-se-á

uma perspectiva procedimentalista para o conceito de controle social; no segundo,

abordar-se-á a dogmática do direito administrativo, especifi camente no que tange

ao tema das tarifas dos transportes públicos; e, no terceiro, far-se-á uma análise do

referido julgado, buscando-se trabalhar as categorias estudadas à luz do caso prático.

2 AS DIMENSÕES DO CONTROLE SOCIAL E SEU ENFOQUE

JURÍDICO

2.1 O CONCEITO DE CONTROLE SOCIAL A PARTIR DE UMA

VERTENTE PROCEDIMENTALISTA

A despeito de muito se falar sobre controle social, sua temática ainda se

encontra permeada por uma intensa vagueza, sendo seu conceito rotineiramente

confundido com o de participação social ou com o de democracia participativa.

Em nível semântico, os dicionários de língua portuguesa fornecem múltiplas

defi nições para o vocábulo controle. Segundo Houaiss (2010, p. 197), controle

231

Um estudo de caso da Ação Popular n. 70056129380 contra o Município de Viamão: o controle social da tarifa dos transportes públicos

signifi ca tanto “monitoração ou fi scalização minuciosa de acordo, padrões,

normas, etc.” quanto “poder, domínio ou autoridade sobre alguém ou algo”.

Para Ferreira (2010, p. 576), controle tem por defi nição “ato, efeito ou poder

de controlar; domínio, governo” ou “fi scalização exercida sobre as atividades de

pessoas, órgãos, departamentos, ou sobre produtos, etc., para que tais atividades,

ou produtos, não se desviem das normas preestabelecidas”.

Em nível doutrinário, Pereira (2010) defende que controle corresponde à

adequação ou ao redirecionamento de certo comportamento ou decisão, sempre

relacionado a um critério reformador ou padrão referencial.

Por sua vez, Domingos Poubel de Castro vaticina que controle vem do latim

rotulum, que signifi ca “relação de contribuintes”. Para Castro (2008), historicamente

o vocábulo controle está vinculado a fi nanças, pois, em sua origem francesa, a

palavra contre-rôle signifi ca “registro efetuado em confronto com o documento

original, com a fi nalidade de verifi cação da fi dedignidade dos dados” (CASTRO,

2008, p. 27). Ainda, conforme sustenta o autor, foi com a transposição do termo

controle para a língua portuguesa que este se corrompeu e assumiu também o atual

sentido de dominação.

A palavra social, adjetivo do substantivo controle, vem do latim sociale, e

signifi ca aquilo que pertence ou é relativo à sociedade. Logo, somado ao exposto, o

controle social pode ser entendido semanticamente como “processo pelo qual uma

sociedade ou grupo procura assegurar a obediência de seus membros por meio dos

padrões de comportamento existentes”. (MICHAELIS, 2000, p. 578)

A produção dos sentidos do controle social, contudo, ultrapassa também a

semântica e encontra respaldo na Sociologia, a qual tem o controle por objeto de estudo

desde o fi nal do século XIX. De forma geral, o viés sociológico analisa os meios aplicados

pela sociedade a determinado sujeito para fazer com que este adote um comportamento

alinhado com valores sociais preestabelecidos. (SABADELL, 2013, p. 127)

Para Sabadell (2013), quando uma professora ministra uma aula, quando

celebridades na televisão se posicionam ou mesmo quando pais educam seus

fi lhos, todos estão, de certo modo, exercendo uma espécie de controle social.

(SABADELL, 2013, p. 127)

Logo, para a socióloga, o controle social está imbricado com os processos

que inserem o indivíduo dentro de valores e práticas sociais. Por essa razão, o

“controle social está intimamente relacionado com os conceitos de ‘poder’ e de

‘dominação política’, que criam determinada ordem social e integram os indivíduos

nela”. (SABADELL, 2013, p. 128, grifos no original)

232

Augusto Carlos de Menezes Beber

Portanto, por meio de um juízo sumário, pode-se conceber o conceito de

controle social como uma orientação coercitiva a uma direção preestabelecida,

marcada por aspectos de normatividade e de executoriedade.

Assim, afere-se que, tanto semântica, sociológica ou doutrinariamente

defende-se que o controle é exercido com base em acordos – leia-se normas –

estabelecidos socialmente, e posto em prática por intermédio de meios como

reprimendas, calotes, exclusão, pressão pública ou pela simples expressão de ideias.

Assevera-se, contudo, que os sentidos do controle social também assumem

uma dimensão diferenciada quando este é considerado a partir de uma perspectiva

jurídica.

Nesse sentido, Carlos Ayres Britto (1992), então Ministro do Supremo

Tribunal Federal, vaticina que controle social é direito público subjetivo, e não

poder, pois quando um cidadão exerce o direito ao controle social, está, na realidade,

interferindo nos negócios políticos por meio da interpretação da Constituição.

Notadamente, o primeiro pensamento que surge em relação à função do

controle social enquanto direito é o dever de o Estado acatar a conduta do particular.

Porém, lembra-se que essa é uma conduta preestabelecida, pois é pressuposto do

controle a existência anterior de uma norma pactuada e compartilhada socialmente.

“Em realidade, a regra condutora do direito subjetivo ao controle preexiste à

manifestação da vontade individual e não aporta consigo uma autorização para o

seu titular agir enquanto editor normativo.” (BRITTO, 1992, p. 4)

Por isso, Britto (1992) afi rma que aquele que aciona as vias de controle

do Poder Público não produz nova regra de direito, ou seja, não participa do

processo de elaboração jurídica. Nisso reside a diferença primordial entre controle

e participação: nesta, existe manifestação do poder político – notadamente, nos

limites da abertura constitucional – e naquele há aplicação de norma constitucional

preexistente.

Dessa maneira, o controle social enquanto processo não se confi gura em um

momento estanque, mas necessita de diversos atos engatados comunicativamente.

A partir disso, a participação social integra o processo de controle, do mesmo

modo como a democracia deliberativa revela o melhor cenário para o seu exercício.

Robert Alexy (2013), em sua teoria argumentativa, classifi ca o discurso

jurídico como um caso especial do discurso prático. Como consequência, o autor

defende que discurso jurídico sofre declinação a outras regras, além das impostas

pela racionalidade comunicativa, pelo fato de estar necessariamente vinculado ao

direito vigente.

233

Um estudo de caso da Ação Popular n. 70056129380 contra o Município de Viamão: o controle social da tarifa dos transportes públicos

Em decorrência disso, o discurso jurídico deve estar necessariamente

pautado por argumentos referentes à lei, à dogmática e aos precedentes do direito

positivo. Logo, o campo do discursivamente possível é mais restrito, tendo em

vista as formas e as regras das quais os falantes devem partir para construir um

argumento jurídico (ALEXY, 2013).

Nisso, ao analisar o controle social na dimensão do discurso prático, os

agentes têm o dever de observar tão somente as regras da racionalidade discursiva.

Por outro lado, ao acionar o controle social na dimensão do discurso jurídico, aos

agentes cabe relacionar seus argumentos aos condicionantes que o próprio direito

enquanto instituição determina.

2.2 OS SUJEITOS DO CONTROLE SOCIAL A PARTIR DA

SEPARAÇÃO ENTRE ESTADO E SOCIEDADE

De acordo com a linha de pensamento exposta, falar em discurso jurídico

implica discorrer sobre o local em que este é produzido: o Estado. Nisso, para

Habermas (2003, p. 171),

o Estado é necessário como poder de organização, de sanção e de execução,

porque os direitos têm que ser implantados, porque a comunidade de

direito necessita de uma jurisdição organizada e de uma força para

estabilizar a identidade, e porque a formação da vontade política cria

programas que têm que ser implementados.

O princípio da separação entre Estado e sociedade também serve para ilustrar

o fato de que os atores do controle social dos atos estatais só podem ser agentes

não estatais, membros da sociedade civil. Na dicção de Siraque (2004, p. 112),

“o controle social é realizado por um particular, por pessoa estranha ao Estado,

individualmente, em grupo de pessoas ou através de entidades juridicamente

constituídas”.

Nesse diapasão, Habermas (2003) assevera que o princípio da separação

entre Estado e sociedade exige uma cultura política desacoplada das estruturas

de classe, de forma que se possam amortecer as divisões sociais que existem e

seus efeitos redutores da livre comunicação entre os pares, para que se possa assim

exercer o poder social de maneira desembaraçada e genuinamente democrática. “Se

o direito deve ser normativamente fonte de legitimação e não simples meio fático

234

Augusto Carlos de Menezes Beber

da organização do poder, então o poder administrativo tem que ser retroligado ao

poder produzido comunicativamente.” (HABERMAS, 2003, p. 235)

A partir disso, pode-se verifi car que poder social e poder administrativo

não se confundem, refl etindo assim a dependência do controle social em relação

aos processos institucionais que permitem o seu exercício. Se poder social e poder

administrativo se confundissem, não haveria necessidade de um agente estatal

processar e executar os casos de desvio das normas, pois qualquer membro da

comunidade faria esse papel independentemente da ação dos demais.

Ainda que parcela da população acredite que algum agente político rompeu

com as normas constitucionais as quais ele deve obediência, a retirada de seu cargo

somente ocorre por meio de um processo regularmente formado, pautado pelas

regras que os próprios membros da comunidade pactuaram anteriormente.

O direito forma o meio pelo qual o poder comunicativo é fi ltrado e

transformado em poder administrativo, o qual o Estado faz uso para manter a

ordem instituída normativamente. Assim, identifi ca-se um ciclo jurídico-político

autofágico: enquanto o poder dá suporte ao direito, o direito, por sua vez, garante o

exercício do poder. E, nesse sentido, “o direito funciona como meio de organização

do poder do Estado. Inversamente, o poder, na medida em que reforça as decisões

judiciais, serve para a constituição de um código jurídico binário”. (HABERMAS,

2003, p. 182)

À guisa desse entendimento, retoma-se a ideia de que o controle social não é

um fenômeno que ocorre somente à luz do direito, mas que nele adquire um sentido

latente de manutenção e promoção da integridade social. Consequentemente, o

controle social dos atos estatais, no medium jurídico, torna-se assim um instituto

regrado pelo direito em prol da atuação da sociedade sobre ela mesma.

Diante disso, admite-se que nem sempre é fácil reconhecer a diferença entre

participação e controle social. Uma manifestação contra a corrupção pode ser

entendida como controle na medida em que exige o cumprimento dos princípios

do art. 37 da Constituição, que obrigatoriamente devem ser observados pela

Administração Pública.

Entretanto, normalmente os protestos têm uma roupagem muito difusa, e

raramente visam a produzir efeitos em um ato concreto. Assim, as manifestações, ao

tempo em que não visam a produzir norma nova – portanto, não se caracterizando

como participação – na qualidade de controle não conseguem estabelecer espaços

comunicativos sólidos que proporcionem ao Poder Público contra-arrazoar ou até

mudar sua posição.

235

Um estudo de caso da Ação Popular n. 70056129380 contra o Município de Viamão: o controle social da tarifa dos transportes públicos

Para resolver esse problema, o medium do direito cria canais institucionalizados

de exercício do controle social que permitem a formação discursiva de consensos.

Por intermédio desses canais, a pretensão corretiva associa-se à pretensão de

retidão, fazendo valer os pactos fi rmados. “A institucionalização jurídica do

código de direito exige, fi nalmente, a garantia dos caminhos jurídicos, pelos quais

a pessoa que se sentir prejudicada em seus direitos possa valer suas pretensões.”

(HABERMAS, 2003, p. 162)

Por exemplo, no ordenamento jurídico brasileiro encontram-se diversos

meios de controle social institucionalizados em relação às ações do Estado, como

são a Ação Popular, a Ação Civil Pública, as denúncias aos Tribunais de Contas,

entre tantos outros instrumentos espalhados pela legislação infraconstitucional.

Logo, o controle social (como processo) tem seus contornos jurídicos

realizados pelo direito positivo ao qual se vincula. Este, por sua vez, irá determinar

quando, em que termos, e por quem o controle social poderá ser exercido.

3 AS TARIFAS DE TRANSPORTE A PARTIR DA DOGMÁTICA

CONTEMPORÂNEA DO DIREITO ADMINISTRATIVO

3.1 BREVES NOTAS SOBRE O MODELO DE ESTADO

REGULADOR

Exposto o conceito de controle social com o qual se trabalhará, mostra-se

necessário elucidar o pano de fundo que rege a temática da decisão a ser analisada.

Assim, para o correto deslinde da presente pesquisa, é mister que se aborde, ainda

que brevemente, o cenário jurídico perpassado pela decisão, a saber, o modelo

estatal regulatório.

Inicialmente, destaca-se que o referido modelo exsurge como uma

contrapartida ao Welfare State, no qual se encontra uma orientação positiva da

função estatal, marcada pelo ativismo socioeconômico dos organismos políticos.

(JUSTEN FILHO, 2002)

O modelo regulatório, como a própria nomenclatura indica, encerra em si

o propósito de distribuição das tarefas públicas essenciais, as quais, no modelo do

Welfare State, o Poder Público não teve condições de efetivar sozinho. Assim, aos

particulares, sob a regulação do Estado, coube a prestação de atividades antes de

trato exclusivamente estatal.

236

Augusto Carlos de Menezes Beber

Desse modo, mormente não haja uma substituição do modelo prestacional

do Estado em favor do modelo regulador, hodiernamente aceita-se o papel do

particular no provimento dos serviços públicos, devendo o Estado fi scalizar sua

prestação, mantendo sob atuação direta apenas as atividades que a organização

econômica representar um risco para a coletividade em razão da lógica de mercado

aplicada. (JUSTEN FILHO, 2002)

Logo, a regulação estatal das atividades desempenhadas pelos particulares, a

título de serviço público, submete-se aos fi ns e aos meios de execução determinados

ou determináveis pelo ente público, consistindo em uma espécie de supressão da

autonomia privada. (JUSTEN FILHO, 2002)

Neste cenário encontram-se as agências reguladoras, marco de um novo

perfi l de atuação do Estado nas atividades econômicas. Conforme Menezello

(2002, p. 58):

muda-se, com isso, a maneira de agir do Estado brasileiro na condução

de algumas atividades para anunciar uma nova ordem, em que este se

abstém de prestar serviços públicos, reforçando, como dissemos, sua

atuação na esfera da regulação e da fi scalização, a fi m de desenvolver

maior razão e efi cácia.

Por consequência, são atribuídas às agências reguladoras as funções

de fi scalizar o cumprimento da legislação por parte do prestador da atividade

regulada, a fi m de que os interesses da sociedade como um todo sejam preservados

(MENEZELLO, 2002). Na lição de Justen Filho (2002, p. 321),

cabe ao Estado fi scalizar a atividade do particular, se a ele tiver

sido atribuído o encargo de prestar serviço público. Isso signifi ca

impossibilidade de o particular invocar sigilo de negócio ou interesse

privado como argumento jurídico, manter indevassados seus livros,

documentos ou condições negociais. O particular que presta serviço

público encontra-se em situação de transparência perante a entidade

concedente.

Assim, no modelo de Estado regulador, esvazia-se o monopólio da prestação

direta dos serviços públicos por parte do Estado, entretanto, sem este deixar de exercer

o seu papel de mantenedor e fi scalizador das atividades essenciais ao interesse público.

237

Um estudo de caso da Ação Popular n. 70056129380 contra o Município de Viamão: o controle social da tarifa dos transportes públicos

Para o tema dos transportes públicos, tal contextualização mostra-se deveras

necessária, eis que tal segmento refere-se a serviço público prestado por particulares

sob a supervisão do Estado.

Nesse sentido, salienta-se que no Rio Grande do Sul cabe à Agência

Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados – AGERGS a fi scalização

de atividades de transporte público, tendo como uma de suas competências

institucionais a promoção de audiências públicas para o debate sobre as condições

de uso e sobre o dispêndio fi nanceiro relativo aos meios de locomoção.

Assim, o tema das tarifas dos transportes públicos deve ser pensado à luz

do modelo regulador de Estado, tendo em vista que as atividades prestadas pelos

particulares enquanto serviço público submetem-se a especial fi scalização.

Deste modo, fi rmados os pontos estruturais, mostra-se necessário entender

como o valor das tarifas de transporte é fi xado, vez que, quando este é prestado

na qualidade de serviço público, a sua variação no mercado deve obedecer

necessariamente às normas de direito público, como se verá a seguir.

3.2 O PROCESSO DE CONTRATAÇÃO E AS NORMAS

RELATIVAS ÀS TARIFAS NAS CONCESSÕES DE SERVIÇOS

PÚBLICOS DE TRANSPORTE

Sabidamente, a Administração Pública, ao contratar, deve buscar o melhor

atendimento ao interesse público, observados os princípios constitucionais do

art. 37, somados aos princípios setoriais do direito administrativo.

Com isso, o processo (ou procedimento) licitatório exsurge como uma

etapa necessária para a contratação menos onerosa ao erário, razão pela qual

suas modalidades e tipos são delineados na Lei Federal n. 8.666/93 e nas leis

administrativas paralelas a esta.

Uma vez fi nalizado o certame e defi nido o vencedor, homologa-se o feito

e opera-se a contratação com o particular, conforme minuta contratual fornecida

pela Administração, a qual deve ser aderida pelo contratado.

Na minuta contratual, devem estar dispostas as cláusulas que irão reger a

relação jurídica entre as partes, dentre as quais menciona-se o valor cobrado pelos

serviços prestados, bem como as formas de reajuste tarifário para manutenção do

equilíbrio econômico-fi nanceiro contratual, conforme dispõe o art. 23, VI, da Lei

n. 8.987/95. Nesse sentido, Granziera (2002, p. 165, grifos no original) afi rma que

238

Augusto Carlos de Menezes Beber

a cláusula de reajuste deve indicar o índice ou a fórmula mais adequada

para manter o valor de execução do objeto do contrato. Se se trata da

prestação de serviços de limpeza, por exemplo, um percentual importante

de seu valor deve ser reajustado de acordo com o dissídio coletivo anual.

Já os materiais utilizados nos serviços podem ser reajustados por índices

mais genéricos, como o Índice Geral de Preços (IGP).

Naturalmente, no universo econômico das sociedades empresárias

encontram-se diversos fatores que infl uenciam na defi nição do preço dos serviços.

Encargos trabalhistas, variações de câmbio e modifi cação no custo dos insumos são

apenas alguns exemplos de variáveis que podem ter impacto direto nas despesas da

atividade.

Por certo que, diferentemente do que opera em relações puramente privadas,

em razão do caráter público da contratação, não é uma simples mudança nos

ventos empresariais que irá ensejar a possibilidade de alteração do contrato. A Lei

n. 8.666/93, no art. 65, § 1º, obriga o suporte pela contratada de variações que

podem ir de 25 a 50% em relação ao valor inicial pactuado.

Acrescenta-se ainda que os encargos de natureza tributária, via de regra,

são inclusos ao preço, portanto, sendo repassados ao consumidor na prestação dos

serviços. Nesse sentido, em decisão proferida no Recurso Especial n. 1.185.070/RS,

o Min. Teori Zavascki, à época membro da referida Corte Especial, discorreu que

dada a natureza onerosa e sinalagmática da prestação dos serviços

concedidos, é inafastável que a contraprestação a cargo do consumidor

(tarifa) seja sufi ciente para retribuir, pelo menos, os custos suportados pelo

prestador, razão pela qual é também inafastável que, na fi xação do seu

valor, sejam considerados, em regra, os encargos de natureza tributária.

É também decorrência natural do caráter oneroso e sinalagmático do

contrato de concessão a manutenção, durante toda a sua vigência, da

equação econômico-fi nanceira original. (BRASIL 2010)

Por isso, as concessões públicas contêm em seus respectivos contratos

fórmulas que equacionam as variáveis que integram os custos para a prestação

dos serviços. A título de exemplo, pode-se mencionar a minuta contratual das

concessões de transporte público do Município de Pelotas – RS, a qual consta o

seguinte termo:

239

Um estudo de caso da Ação Popular n. 70056129380 contra o Município de Viamão: o controle social da tarifa dos transportes públicos

2. O reajuste anual da TARIFA BASE e das tarifas diferenciadas dela

decorrentes será realizado mediante a aplicação da seguinte fórmula:

TR = TP * (1 + ((( PRDi / PRDo )* P1) + ( VINPC * P2 ) + ( VIGP-DI

* P3 ))) (BRASIL, 2016)

Como se pode verifi car, as incógnitas da equação incluem os custos com

combustível, lubrifi cantes, pessoal, além da variação infl acionária dos preços.

Logo, o fundamento para o controle das tarifas não é o valor em si, mas

a legalidade da aplicação da cláusula contratual que estipula a forma de cálculo

tarifário. Assim, em termos práticos, o controle incide sobre a tarifa apenas de

forma transversa, na medida em que é o próprio contrato que deve ser questionado

juridicamente.

4 O CASO DA AÇÃO POPULAR N. 70056129380

4.1 BREVE RELATO DO OCORRIDO

Em conformidade com as ideias até então desenvolvidas, a premissa

básica para a existência de controle social sobre a tarifa dos transportes públicos

é a possibilidade de haver mecanismos institucionais que incidam sobre o preço

fi xado.

Conforme discorrido, o atual modelo de gestão do Estado brasileiro delegou

aos particulares, mediante concessão ou permissão, a prestação da atividade de

transporte, com a ressalva de que os contratos devem ser celebrados sob o regime

da Lei de Licitações, estando sujeitos, quando for o caso, ao controle por parte das

agências reguladoras.

Nesta senda, encontra-se o caso da Ação Popular n. 70056129380.

Os autores do pleito buscaram judicialmente a redução das tarifas de transporte

urbano do Município de Viamão, face à redução dos encargos tributários que

incidiriam sobre o valor do serviço. Além disso, os autores populares alegaram

como vício a ausência de prévio procedimento licitatório.

Pela análise do caso, o juízo de 1º grau extinguiu sumariamente o feito em

razão da impossibilidade jurídica do pedido, tomando por fundamento o fato de

que a ação popular não seria meio adequado para atender a pretensão dos autores,

diante da ausência do prejuízo ao Erário.

240

Augusto Carlos de Menezes Beber

Entendeu o juízo singular que, ainda que tenha havido uma redução do

PIS e PASEP, assim como da COFINS, não incorre em ilegalidade a omissão da

Administração municipal em rever o contrato para reduzir o valor da tarifa dos

transportes. No mesmo sentido, negou a pretensão relativa à ausência de licitação,

pois não havia nos autos comprovação de efetivo dano ao Erário.

Insatisfeitos, os autores apelaram ao Tribunal de Justiça, cujos fundamentos

passa-se à análise a seguir.

4.2 DA ANÁLISE CRÍTICA DO CASO

Em concordância com o juízo singular, o Tribunal por unanimidade

confi rmou as razões da sentença, mantendo-a nos termos em que extinguiu o feito

sem julgamento de mérito.

Nisto, o principal argumento a ser enfrentado, o qual justifi cou o decisum,

é a inadequação do instrumento da ação popular para a redução das tarifas de

transportes, pois estas, em tese, são custeadas por consumidores, e não pelo Erário.

Normativamente, pode-se verifi car que a ação popular tem como viés a proteção do

patrimônio público, compreendido como os bens e direitos de valor econômico, artístico,

estético, histórico ou turístico, conforme dicção do § 1º do art. 1º da Lei n. 4.717/65.

Assim, tomando-se por base a premissa legal, a arguição relativa à

possibilidade do cabimento do pleito popular deve ter, necessariamente, uma

vinculação à lesão ao Erário, objeto de proteção da Lei.

Logo, correto o posicionamento do Tribunal de Justiça, eis que seria ônus

dos autores demonstrarem (no mínimo) o caráter patrocinado da concessão – ou

seja, o caráter de uma concessão em que há subsídio do Poder Público ao lado dos

particulares para justifi car a ação.

Em recente julgado, a Justiça Estadual de Mato Grosso proferiu a seguinte sentença

nos autos de ação popular, também sobre o tema da tarifa dos transportes públicos:

Contudo, o autor popular deduziu a pretensão de anular atos

administrativos que estariam a causar lesão ao patrimônio e aos interesses

particulares, ou seja, da população usuária do serviço de transporte coletivo

municipal. O ato que se pretende a nulidade, qual seja, a Deliberação

n.º 03/2016-ARSEC não encerra ato lesivo ao patrimônio público, mas

sim, dos particulares que pagam o aumento da tarifa de transporte sem

que haja a necessária melhoria do referido serviço (BRASIL, 2016). 

241

Um estudo de caso da Ação Popular n. 70056129380 contra o Município de Viamão: o controle social da tarifa dos transportes públicos

Sustentam ambos os tribunais que a efi cácia da ação popular é desconstitutiva

e condenatória, não sendo instrumento hábil para constituir obrigações ao Poder

Público, como, por exemplo, a de construir rodovias.

Ademais, a tutela buscada pelos autores do pleito em análise é a proteção

do interesse difuso dos consumidores, usuários de transporte, e não a proteção ao

Erário, razão pela qual o instrumento eleito mostra-se inadequado.

Repita-se, o lesionado pela situação narrada na inicial é o consumidor, a

população usuária do transporte urbano coletivo, que paga caro e vem se

sujeitando, há muito tempo, a um serviço de péssima qualidade, insufi ciente

e que não oferece condições de segurança e comodidade (BRASIL, 2016).

Outrossim, houve o impedimento do reajuste das tarifas de transporte

público, circunstância ocorrida por meio do ajuizamento de ação civil pública pelo

órgão de defesa do consumidor do Estado de Goiás.3

Logo, a decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

mostra-se alinhada com o entendimento das demais cortes de justiça do País, vez

que confi rmou a sentença que extinguiu o feito sem resolução de mérito. Veja-se o

que levantou o Des. Marco Aurélio Heinz, relator do acórdão gaúcho:

Os autores não apontam qual a lesividade aos cofres públicos da não

redução da tarifa que é suportada, não pelo erário, mas pelo passageiros

do serviço concedido.

De fato, a ação popular visa a proteção dos direitos difusos dos usuários

do transporte coletivo, cujo bem jurídico não é alcançado pela ação

popular (BRASIL, 2016).

Por conseguinte, entende-se que, para os autores lograrem sucesso em sua

pretensão, os mesmos teriam que ter demonstrado o prejuízo ao Erário (para

legitimar o instrumento da ação popular).

De outra banda, na hipótese de ser viável a ação civil pública (instrumento

correto para defesa do interesse dos consumidores), deveria ter sido demonstrada

3 – Para mais informações sobre o caso, ver Acórdão n. 201593928220, julgado pela 5ª Câmara

Cível do TJGO em 10-03-2016, relator Des. Delitro Belo de Almeida Filho, publicado no Diário

da Justiça em 18-03-2016. Disponível em: <http://www.tjgo.jus.br/jurisprudencia/showacord.

php?nmfi le=TJ_3928228420158090000%20_2016031020160407_75654.PDF>.

242

Augusto Carlos de Menezes Beber

a ilicitude da tarifa dos transportes públicos, pois a mesma, conforme discorrido,

é construída por meio de uma minuta contratual já pactuada no momento da

licitação.

O Des. Francisco José Moesch, na mesma linha do relator, assim asseverou:

No caso, não restou demonstrada a lesividade ao patrimônio público.

A ação popular foi proposta objetivando a redução da tarifa do transporte

coletivo, o que viria em benefício, exclusivamente, dos usuários do serviço.

Desse modo, concorda-se com a decisão proferida pelo Egrégio Tribunal

de Justiça do Rio Grande do Sul, no sentido de que, na forma proposta, a ação

popular não corresponde ao pleito intentado pelos autores.

Por outro lado, acrescenta-se que o enfoque demasiado na perda patrimonial

dos cofres públicos não deve ser o fundamento maior do decisum, principalmente

quando enfrentada a questão da não ocorrência do certame licitatório. Assim se

manifestou o relator em relação ao tema:

Mesmo a alegação de violação do princípio da licitação para a delegação

do serviço a particular, não pode ser examinada pela via da ação popular

em razão da ausência de alegação de prejuízo do erário (BRASIL, 2016).

Veja-se que, conforme o raciocínio exposto, a ausência de alegação de

prejuízo ao Erário seria o óbice para o não enfrentamento da questão da licitação

nos autos da ação popular ajuizada.

Entretanto, esse enfoque não tem sido aplicado pela doutrina moderna,

eis que, com o advento da Constituição Federal de 1988, ampliou-se o âmbito de

proteção da ação popular, abarcando não somente o Erário, mas a moralidade

administrativa, o meio ambiente e o patrimônio histórico e cultural. Nesse sentido

posiciona-se Rodolfo de Camargo Mancuso (2001, p. 100, grifos no original):

Presente a ampliação do objeto da ação popular, a partir do novo conceito

inserto no art. 5º, LXXIII, da Constituição Federal, impende destacar um

aspecto muito importante: se a causa da ação popular for um ato que o

autor reputa ofensivo à moralidade administrativa, sem outra conotação

de palpável lesão ao erário, cremos que em princípio a ação poderá vir a

ser acolhida, em restando provada tal pretensão, porque a atual CF erigiu a

“moralidade administrativa” em fundamento autônomo para a ação popular.

243

Um estudo de caso da Ação Popular n. 70056129380 contra o Município de Viamão: o controle social da tarifa dos transportes públicos

Por conseguinte, não diga o Tribunal que a ausência ou a não alegação de

prejuízo ao Erário seja fundamento para afastar a análise do pleito popular, pois a

tutela do referido instrumento jurídico não se restringe ao patrimônio público em

sentido econômico-fi nanceiro.

Nesse diapasão, o Superior Tribunal de Justiça, na análise do Recurso

Especial n. 1.559.292/ES, conforme acórdão lavrado pelo Min. Relator Herman

Benjamin, exarou a seguinte decisão:

Sobre a necessidade de comprovação de dano em Ação Popular,

é possível aferir que a lesividade ao patrimônio público é in re ipsa.

Sendo cabível para a proteção da moralidade administrativa, ainda

que inexistente o dano material ao patrimônio público, a Lei 4.717/65

estabelece casos de presunção de lesividade, bastando a prova da prática

do ato nas hipóteses descritas para considerá-lo nulo de pleno direito

(BRASIL, 2016).

Sendo assim, embora a ação popular não tenha sido o instrumento jurídico

adequado para a revisão das tarifas de transporte público no caso em apreço, de

acordo com as razões já expostas, a ausência de licitação, procedimento que tem

como fi m cabal o melhor atendimento ao interesse público, é mácula que deve ser

imperativamente analisada, independentemente de lesão patrimonial do Erário,

em razão dos fundamentos da tutela administrativa.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao fi m e ao cabo, desenvolvidas as considerações acerca do tema ao longo do

presente trabalho, pode-se então tecer algumas notas provisórias sobre a proposta

realizada.

Primeiramente, sendo o controle social, por intermédio de uma vertente

procedimentalista, um processo pelo qual se assegura o cumprimento dos padrões

normativos instituídos socialmente, a primeira pergunta que se sobressai é: existe

um padrão normativo que justifi que a sua exigibilidade pelo medium do direito em

relação ao tema das tarifas dos transportes públicos?

A resposta é positiva. O ordenamento jurídico brasileiro protege os usuários

de transporte coletivo, elegendo, desde o processo de contratação pública, as

melhores condições para prestação do serviço.

244

Augusto Carlos de Menezes Beber

A segunda pergunta é: a exigibilidade sobre a qual recai o controle depende

de caracteres unicamente econômicos? Ou seja: o alto custo das tarifas dos

transportes por si só justifi ca algo em direito?

Não. Conforme visto, o valor das tarifas é calculado mediante uma fórmula

que está presente nos contratos públicos. Ademais, no contexto do Estado

Regulador, havendo agências que versem sobre os temas, as mesmas estarão aptas

a fi scalizar as condições de oferta do serviço.

Prosseguindo: na ausência de fi scalização, o ordenamento jurídico brasileiro

prevê a incidência de mecanismos instrumentais de defesa dos usuários contra

o aumento injustifi cado das tarifas, dentre os quais podem ser acionados por

membros da sociedade civil?

Sim. Há canais institucionalizados que permitem a discussão da legitimidade

do valor das tarifas, tendo como parâmetro as dimensões contratuais pactuadas e

os demais fatores legais incidentes.

Entretanto, conforme exposto ao longo do trabalho, a via da ação popular

somente pode ser acionada quando há lesão ao Erário ou a matéria a este

relacionada diretamente, situação em que somente incorrem as concessões em

que há dispêndio do patrimônio público ao lado do particular (por exemplo, as

concessões patrocinadas).

Logo, a forma mais comum de discussão do valor das tarifas de transporte

público tem sido por meio da ação civil pública, a qual, embora admita como

legitimada “popular” a associação constituída há pelo menos um ano, tem, na

prática, sido manejada pelo Ministério Público em defesa dos consumidores.

Diante do exposto, pode-se concluir que é possível haver o controle social das

tarifas dos transportes públicos, mas que, no direito brasileiro, conforme decidiu o

Tribunal de Justiça, a ação popular em regra não é o instrumento hábil para tanto.

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UMA ANÁLISE DA SÚMULA VINCULANTE N. 13

NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA A PARTIR DA

JURISPRUDÊNCIA DO TJRS: LIMITES E POSSIBILIDADES

DE SUA APLICABILIDADE PARA A NOMEAÇÃO DE

CARGO POLÍTICO1

Cynthia Gruendling Juruena2

Ricardo Hermany3

RESUMO

O presente capítulo teve por escopo analisar a Súmula Vinculante n. 13, a

qual trata da vedação ao nepotismo na Administração Pública direta e indireta.

1 – Este capítulo foi desenvolvido a partir de pesquisas realizadas no Projeto de Pesquisa Internacional

“Patologias Corruptivas”, e se refere ao eixo 2, no qual vêm sendo trabalhadas as (in)tensas relações

entre governança, governabilidade e corrupção.

2 – Mestranda em Direito do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Direito da Universidade de Santa

Cruz do Sul – UNISC, com bolsa Capes (PROSUP) tipo II. Pós-graduanda em Direito Público pela Verbo

Jurídico. Integrante do Grupo de Pesquisa “Espaço local e inclusão social”, coordenado pelo Professor Pós-

-Doutor Ricardo Hermany. Integra o Projeto de Pesquisa Internacional “Patologias Corruptivas”, coordenado

pelo Professor Doutor Rogério Gesta Leal e o Grupo de Pesquisa “Direito, Cidadania e Políticas Públicas”,

sob coordenação da Profa. Pós-Doutora Marli Marlene Moraes da Costa. E-mail: [email protected].

3 – Pós-Doutor pela Universidade de Lisboa. Doutor pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos.

Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito, Mestrado e Doutorado – da Universidade de

Santa Cruz do Sul – UNISC. Professor da Graduação da UNISC e da FEMA – Fundação Educacional

Machado de Assis. Advogado. E-mail: [email protected].

248

Cynthia Gruendling Juruena e Ricardo Hermany

Após verifi car os precedentes do Supremo Tribunal Federal que embasaram a edição da

Súmula, efetuou-se uma análise na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande

do Sul, acerca de sua aplicabilidade. A partir da análise jurisprudencial, investigaram-

-se, com base nos argumentos das decisões, os limites e possibilidades de extensão da

Súmula Vinculante n. 13 para a nomeação de cargo político. Os resultados preliminares

obtidos indicam que é possível a aplicação da Súmula, devendo ser analisado o caso em

comento. A metodologia utilizada no presente trabalho, em sua pesquisa jurisprudencial,

foi quantitativa para a seleção dos acórdãos e qualitativa para sua análise. O método de

procedimento utilizado foi uma abordagem bibliográfi ca para investigar o tema com

sua fundamentação teórica, justifi cando seus limites e contribuições.

Palavras-chave: administração pública; cargo político; jurisprudência;

nomeação; súmula vinculante.

1 INTRODUÇÃO

O presente capítulo tratará acerca da Súmula Vinculante n. 13 (Súmula do

Nepotismo) e como vem ocorrendo a sua aplicação na Administração Pública

direta e indireta, a partir de pesquisa jurisprudencial realizada no sítio do Tribunal

de Justiça do Rio Grande do Sul.

Nesse sentido, primeiramente será explanado acerca da Súmula Vinculante

n. 13 e de seu surgimento, em que será realizada a análise em sede dos argumentos

utilizados pelo Supremo Tribunal Federal nos precedentes que lhe deram origem.

No segundo ponto, será verifi cada a jurisprudência do TJRS com relação

ao tema do nepotismo, a partir de pesquisa desenvolvida no sítio eletrônico do

Órgão. Será verifi cado quando o Tribunal acolhe e rechaça a aplicação da Súmula

Vinculante, observando os argumentos utilizados pelos desembargadores.

No terceiro momento, a partir dos precedentes do STF e da análise

jurisprudencial realizada no TJRS, com base nos argumentos utilizados pelos

magistrados, analisar-se-á quanto aos limites e possibilidades de extensão da

Súmula Vinculante n. 13 para a nomeação de cargo político.

2 A SÚMULA VINCULANTE N. 13 NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

A Súmula Vinculante n. 13, conhecida como a Súmula Vinculante do

Nepotismo, foi aprovada pelo STF, por unanimidade, em 21 de agosto de 2008.

249

Uma análise da Súmula Vinculante n. 13 na Administração Pública a partir da jurisprudência do TJRS: limites e possibilidades de sua aplicabilidade para a nomeação de cargo político

Essa veda o nepotismo no âmbito dos três Poderes, nas esferas da União, Estados

e Municípios.

Conforme o enunciado da Súmula Vinculante, tem-se que:

a nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral

ou por afi nidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante

ou de servidor da mesma pessoa jurídica, investido em cargo de direção,

chefi a ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de

confi ança, ou, ainda, de função gratifi cada na Administração Pública

direta e indireta, em qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do

Distrito Federal e dos municípios, compreendido o ajuste mediante

designações recíprocas, viola a Constituição Federal (BRASIL.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Súmula Vinculante n. 13, 2008).

Dessa feita, a Administração Pública direta e indireta, em todos os órgãos,

deve cumprir com a Súmula acima enunciada, tendo em vista que está em

consonância com a Constituição Federal de 1988 e com os princípios que regem a

Administração Pública.

Em um primeiro momento, é importante verifi car a origem etimológica do

termo nepotismo, visto que a decisão ora analisada proíbe essa prática. Remetendo-

-se ao latim, o radical nepos signifi ca sobrinho ou descendente. Já o sufi xo “ismo”,

que advém do grego ismos, exprime “a prática de”. Unindo-se o radical e o sufi xo,

nepotismo signifi caria a “prática de sobrinho/descendente”.

Nesse sentido, conforme o dicionário Houaiss (2001, p. 2011), nepotismo

revela ser “sobrinho do sumo pontífi ce; Conselheiro papal; por extensão de sentido,

indivíduo especialmente protegido ou predileto; favorito”. A partir da origem

terminológica e de suas defi nições, resta claro que o nepotismo se caracteriza na

concessão de privilégios a seus familiares.

Diante disso, o STF, com a edição da Súmula Vinculante n. 13, teve por

escopo o de coibir a concessão de privilégios a familiares, visto que essa prática em

muitos casos está atrelada à imoralidade. Isto pois a relação entre parentes se afi gura

em uma relação de lealdade e confi ança, podendo ocorrer, em muitos casos, que

o favorecido irá resguardar os interesses de seu hierárquico e não os interesses da

Administração Pública (que, por sua vez, deve agir conforme o interesse público).

A Súmula Vinculante n. 13 prevê, em sua vedação ao nepotismo, o alcance do

parentesco por afi nidade até o terceiro grau.

250

Cynthia Gruendling Juruena e Ricardo Hermany

O nepotismo possui relação com a administração pública patrimonialista,

sendo essa prática de concessão de privilégios a familiares um dos legados deixados

por um longo período em que o Brasil teve esse modelo organizacional. Segundo

Faoro (2008, p. 26-30), nesse modelo havia um jogo de infl uências e pressões

recíprocas, e as instituições públicas estavam subordinadas ao poder do soberano.

No modelo patrimonialista, benefícios e privilégios são concedidos a uma

minoria da sociedade, e cargos públicos não são conferidos de acordo com o

profi ssionalismo e meritocracia de quem o ocupa, e, sim, conforme as relações

pessoais que possuem com quem detinha o poder. Nesse sentido, o Estado, no

modelo patrimonialista, se aparelha segundo suas necessidades, e não visando a

atender as necessidades do povo (ARAÚJO, 2011, p. 68).

Dessa forma, as práticas de nepotismo coadunam-se com o patrimonialismo,

modelo esse que, no entanto, é incompatível com a Constituição Federal de 1988,

haja vista que atualmente adota-se o modelo gerencial, com a reforma4 realizada

no governo federal no ano 2005. No modelo gerencial, há valores e princípios

que devem nortear a gestão pública, como a profi ssionalização da alta burocracia

(na qual houve a universalização de concursos para ingresso em serviço público),

descentralização e desconcentração, orientação dos serviços para os cidadãos,

efi ciência, novas formas de controle e de prestação dos serviços, accountability e

transparência (ABRUCIO, 2007, p. 79-84).

Diante disso e em decorrência dos princípios que regem a Administração

Pública, do modelo de Estado Democrático de Direito consagrado na Constituição,

da Constituição Federal de 1988 e da ideia de construção de uma boa administração

pública, instaurou-se a necessidade de repensar as práticas de nepotismo – que são

de cunho patrimonialista, o que vai de encontro ao que preceitua a Constituição

de 1988. Nesta senda, dois precedentes do STF ensejaram a edição da Súmula

Vinculante n. 13, que serão aqui analisados.

A começar pela Ação Declaratória de Constitucionalidade – ADC, tendo

como relator o Min. Carlos Britto, e ajuizada pela Associação dos Magistrados

Brasileiros – AMB, em que o requerido foi o Conselho Nacional de Justiça – CNJ.

Essa Ação Declaratória de Constitucionalidade, datada de 18 de maio de 2005,

4 – É intitulado também “reforma Bresser” por ter sido Luiz Carlos Bresser Pereira – o Ministro da

Administração Federal e Reforma do Estado à época – que orientou a reforma. Ainda, os termos “nova

gestão pública” e “reforma administrativa gerencial” também são utilizados como sinônimos para

reforma gerencial.

251

Uma análise da Súmula Vinculante n. 13 na Administração Pública a partir da jurisprudência do TJRS: limites e possibilidades de sua aplicabilidade para a nomeação de cargo político

trata da Resolução n. 07/05 do CNJ. Primeiramente será analisada a medida

cautelar, em que se fará a análise dos pedidos e da decisão dos ministros.

Preenchidos os requisitos de legitimidade, importa, em primeiro plano, tratar do

que dispõe a Resolução n. 07 do CNJ. A Associação dos Magistrados Brasileiros, na

ação, expressa que o CNJ, no uso de seus atributos conferidos pela Emenda n. 45/045

e de acordo com o os princípios da Administração Pública, dispostos no art. 37 da

Constituição Federal, fez adequado uso de sua competência na edição dessa resolução.

Ainda, ressaltam na decisão que os condicionamentos impostos pela

Resolução n. 07 não atentam contra os incs. II e V do art. 37 da Constituição

Federal de 1988 (liberdade de nomeação e exoneração dos cargos em comissão

e funções de confi ança), isto pois a interpretação desses incisos deve estar em

consonância com o que preceitua o caput do artigo em comento.

A Resolução n. 07/05 do CNJ, de acordo com os princípios da moralidade

e da impessoalidade que se encontram consagrados no art. 37 da Constituição

Federal de 1988, disciplinou que:

Art. 1º É vedada a prática de nepotismo no âmbito de todos os órgãos

do Poder Judiciário, sendo nulos os atos assim caracterizados. Art. 2º

Constituem práticas de nepotismo, dentre outras: I - o exercício de cargo de

provimento em comissão ou de função gratifi cada, no âmbito da jurisdição

de cada Tribunal ou Juízo, por cônjuge, companheiro ou parente em linha

reta, colateral ou por afi nidade, até o terceiro grau, inclusive, dos respectivos

membros ou juízes vinculados (BRASIL, 2005) (grifo próprio).

Cabe registrar que o CNJ, nessa resolução, dispôs acerca da vedação do

nepotismo no âmbito do Poder Judiciário, constituindo-se essa Ação Declaratória

5 – A Emenda Constitucional n. 45/04 trouxe importantes alterações no ordenamento jurídico

brasileiro. Cabe ressaltar que, referente a esta Ação Declaratória de Constitucionalidade, que é um

dos precedentes da Súmula Vinculante n. 13, a EC n. 45/05 dispõe que: “§ 4º Compete ao Conselho

o controle da atuação administrativa e fi nanceira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres

funcionais dos juízes, cabendo-lhe, além de outras atribuições que lhe forem conferidas pelo Estatuto

da Magistratura:

[...]

II zelar pela observância do art. 37 e apreciar, de ofício ou mediante provocação, a legalidade dos

atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Poder Judiciário, podendo desconstituí-

-los, revê-los ou fi xar prazo para que se adotem as providências necessárias ao exato cumprimento da

lei, sem prejuízo da competência do Tribunal de Contas da União” (grifo próprio).

252

Cynthia Gruendling Juruena e Ricardo Hermany

de Constitucionalidade em precedente para a extensão dessa proibição para os

demais Poderes.

Nesse sentido, foi deferida a medida liminar, por maioria de votos, em

fevereiro de 2006, requerida pela Associação dos Magistrados Brasileiros para,

dentre outros, suspender o julgamento de processos que tenham por escopo o de

questionar a constitucionalidade da resolução, até que seja realizado o exame

de mérito da ADC; impedir que juízes e tribunais venham a proferir decisões no

sentido de afastar a aplicabilidade da Resolução n. 07/05; e suspender, com efi cácia

ex tunc, os efeitos de decisões que tenham determinado o afastamento da aplicação.

Superada a menção à medida cautelar, passa-se para a análise da Ação

Declaratória de Constitucionalidade, julgada em 20 de agosto de 2008, iniciando-se

com os pedidos e fundamentos da Associação dos Magistrados Brasileiros. Estes

foram: a) o Conselho Nacional de Justiça tem competência constitucional para

zelar pela observância do art. 37 da Constituição Federal de 1988; b) a vedação

ao nepotismo é regra constitucional, visto que essa decorre dos princípios da

impessoalidade, moralidade, igualdade e efi ciência administrativa; c) além de estar

subordinado à legalidade formal, o Poder Público fi ca adstrito à juridicidade, conceito

mais abrangente que inclui os comandos diretamente veiculados pela Constituição

Federal; d) a Resolução n. 07/05 do CNJ não prejudica o necessário equilíbrio entre

os Poderes do Estado — por não subordinar nenhum deles a outro —, nem vulnera

o princípio federativo, dado que também não estabelece vínculo de sujeição entre as

pessoas estatais de base territorial.

Após ter sido deferido o pedido de medida liminar, foi determinada a remessa

dos autos ao Procurador-Geral da República, que, em seu parecer, opinou pela

procedência da ação. Por unanimidade, assim como foi o deferimento da medida

liminar, foi julgada procedente a Ação Declaratória de Constitucionalidade, sendo

essa decisão dotada de efeito vinculante.

O STF entendeu ser a edição da Resolução n. 07/05 ato apropriado e

dentro do exercício de poder do CNJ, isso porque, dentre suas atribuições, está

a incumbência de zelar pela observância do art. 37 da Constituição Federal de

1988.

O segundo precedente trata de uma repercussão geral em recurso

extraordinário (n. 579.951-4, Rio Grande do Norte), tendo como Relator o

Min. Ricardo Lewandowski, como recorrente o Ministério Público do Estado do

Rio Grande do Norte e como recorrido o Município de Água Nova e outro (a/s).

O Tribunal reconheceu a repercussão geral da questão suscitada. Tal recurso

253

Uma análise da Súmula Vinculante n. 13 na Administração Pública a partir da jurisprudência do TJRS: limites e possibilidades de sua aplicabilidade para a nomeação de cargo político

extraordinário foi interposto contra acórdão que entendeu pela inaplicabilidade

da Resolução n. 07/05 do CNJ (objeto de discussão do precedente da ADC acima

analisado) para os Poderes Executivo e Legislativo. Sustentou-se nesse acórdão –

objeto de recurso extraordinário – que havia a necessidade de lei expressa para

a vedação do nepotismo nos demais Poderes. Além disso, foi aduzido que a

nomeação de parentes de agentes de poder e ocupantes de cargos em comissão

para o exercício desses mesmos cargos ou de função de confi ança não viola os

princípios expressos no art. 37 da Constituição Federal de 1988.

No recurso extraordinário, abrigado pelo dispositivo 102, inc. III, alínea a, da

Constituição Federal de 1988, alegou-se a ofensa ao Princípio da Moralidade e ao

art. 37, II, da mesma Carta. Sustentou-se que a proibição do nepotismo nos demais

Poderes decorre desse princípio constitucional, não sendo necessária lei expressa.

Além disso, o art. 37, inc. II, da Constituição Federal de 1988 autoriza a livre

nomeação para cargo em comissão e função de confi ança apenas para atribuições

de chefi a, direção e assessoramento, situação esta que não se compatibiliza com a

nomeação para o cargo de motorista, como é o caso de um dos litisconsortes desse

recurso extraordinário que ora se examina.

Houve o conhecimento e provimento do recurso extraordinário, entendendo-

se que o princípio constitucional que ampara a vedação ao nepotismo se dirige

a toda a Administração Pública, nas esferas federal, estadual e municipal, sendo

reformado o acórdão e determinada pelo STF a exoneração dos ocupantes de cargo

em comissão. Ademais, foi decidido que o Município de Água Nova se abstenha

de contratar ou nomear qualquer pessoa física ou jurídica (na pessoa do sócio) que

seja parente daquele ocupante de mandato eletivo ou cargo em comissão. Como

visto, esse recurso extraordinário possui repercussão geral.

Verifi cada a origem do nepotismo e a Súmula Vinculante n. 13, bem como

os precedentes do STF que alicerçaram a sua edição, passa-se para a análise da

jurisprudência do TJRS acerca desse tema central para a administração pública

contemporânea.

3 A JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO

DO RIO GRANDE DO SUL ACERCA DA SÚMULA VINCULANTE N. 13

Após a abordagem da Súmula Vinculante n. 13, sua origem e os precedentes

do STF que embasaram a sua edição, serão analisados os dados resultantes de

uma pesquisa jurisprudencial no sítio do TJRS sobre a temática em comento.

254

Cynthia Gruendling Juruena e Ricardo Hermany

Cabe, antes da abordagem em si, explanar acerca da metodologia utilizada para

a realização da análise jurisprudencial no sítio eletrônico do TJRS. Após, serão

trazidos os resultados encontrados com tal investigação.

Para análise dos julgados do TJRS, algumas balizas utilizadas necessitam

ser explicitadas a fi m de evidenciar a metodologia de análise; ou seja, demonstrar o

padrão de busca que resultou nos julgados que aqui serão analisados numericamente

e em seu conteúdo decisório.

Primeiramente, elucida-se que para a pesquisa não foi necessário o

preenchimento do campo de data de publicação e data de julgamento, tendo em

vista ser a Súmula Vinculante n. 13 do ano 2008, o que se demonstra não ser um

grande espaço temporal. Passa-se agora a simplesmente elucidar o preenchimento

dos campos para realizar a pesquisa quantitativa. No espaço destinado a palavras-

-chave digitou-se, entre aspas, Súmula Vinculante 13; Órgão Julgador: Todos;

Relator: Todos; pesquisa por Ementa; Seção: não foi selecionada, sendo a busca

realizada no cível e no crime; Tipo de Processo: Todos (porque ao selecionar um

tipo de processo específi co, o fi ltro não corresponde com o número real de ações,

muitas vezes zerando a busca); Número: nenhum; Comarca de Origem: nenhuma.

Com a realização da metodologia de análise acima descrita, obteve-

-se apenas 11 resultados, o que verifi ca ser um número restrito. Dessa forma,

quantitativamente, esse é o resultado da pesquisa. Tendo em vista que cada acórdão

será analisado isoladamente, passa-se para a análise qualitativa.

Desses 11 acórdãos, 7 são apelações cíveis e 4 são agravos de instrumento. Dessa

forma, tendo em vista que há um maior número de apelações cíveis, primeiramente

analisar-se-á os fundamentos das apelações e, após, dos agravos de instrumento.

A começar pela Apelação Cível n. 70039472683, que tramitou na 3ª Câmara

Cível, tendo sido julgada em 16 de dezembro de 2010, sendo relator do presente

recurso o Des. Rogério Gesta Leal. Essa objetivava a reintegração do apelante João

Carlos Félix de Oliveira, que foi exonerado do cargo em comissão de Chefe de

Setor, após denúncia de prática de nepotismo. A sentença ora atacada denegou

o que está sendo pleiteado, sob o fundamento da inexistência de ilegalidade

no ato que o exonerou do cargo, eis que decorrente do poder discricionário da

administração. Ainda, foi indicada a existência de nepotismo, pois a confi guração

de parentesco alcança os casos de parentesco por afi nidade, conforme a Súmula

Vinculante n. 13 do STF.

Foi negado o provimento ao recurso, tendo em vista que as nomeações para

cargo em comissão são de caráter precário, passível de exoneração do servidor a

255

Uma análise da Súmula Vinculante n. 13 na Administração Pública a partir da jurisprudência do TJRS: limites e possibilidades de sua aplicabilidade para a nomeação de cargo político

qualquer tempo, nos termos do art. 37, inc. II, da Constituição Federal, dispensando

o processo administrativo. Ademais, a observância à Súmula Vinculante n. 13 deve

se sobrepor às demais normas secundárias, o que é o caso das nomeações para

cargo em comissão.

A Apelação Cível n. 70043654508, também tramitada na 3ª Câmara Cível,

tendo o julgamento ocorrido em 29 de março de 2012, sendo relator do recurso o

Des. Eduardo Delgado. Esse recurso de apelação foi interposto contra a sentença

denegatória proferida nos autos do mandado de segurança. A impetrante postula

a reforma da sentença, para que seja concedida a sua nomeação para o cargo

de vice-diretora. Sustenta que houve eleição para diretoria de Escola Pública

Municipal, a qual concorreu à função de vice-diretora, mediante a formação de

uma chapa, registrada na Ata n. 11/10 da Comissão Eleitoral. No entanto, ocorreu

o indeferimento de sua nomeação pelo Secretário Municipal da Administração, em

razão do grau de parentesco de irmã com a servidora eleita para o cargo de Diretora.

O recurso foi desprovido, e os fundamentos que embasaram o deferimento

foram:

no caso concreto, a recorrente é irmã de servidora municipal eleita

e nomeada para o cargo de direção da mesma escola municipal onde

pretende ela exercer o cargo de Vice-Diretora, de modo que, confi gurado

o parentesco consanguíneo, em linha colateral, de 2º grau, tratou a

Administração de, em cumprimento à disposição contida na Súmula

Vinculante n.º 13, indeferir sua indicação ao cargo pretendido, a ser

exercido com função gratifi cada, não se verifi cando no ato qualquer

irregularidade. Oportuno salientar que, ainda que o acesso ao cargo

de Vice-Diretora ocorra mediante eleição, por parte da comunidade

escolar, sua assunção depende de ato do administrador (BRASIL.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. Apelação

Cível n. 70043654508, 2012) (grifo próprio).

Nesse sentido, ainda que a impetrante houvesse sido eleita para assumir

a função de vice-diretora, a Administração entendeu pela aplicação da Súmula

Vinculante n. 13 (por tratar-se de vínculo de parentesco com a diretora da mesma

escola). O TJRS decidiu nesse mesmo sentido.

A Apelação Cível n. 70056735103, que tramitou na 2ª Câmara Cível,

teve o seu julgamento na data de 20 de novembro de 2013, tendo como relator o

256

Cynthia Gruendling Juruena e Ricardo Hermany

Des. João Barcelos de Souza Júnior. O apelante, Município de Senador Salgado

Filho, interpôs o recurso em virtude de sentença de parcial procedência de ação

civil pública ajuizada pelo Ministério Público, que declarou a nulidade do ato de

nomeação de Décio Dutra de Oliveira para o cargo de Secretário Municipal de

Educação, determinando a sua exoneração.

A Ação Civil Pública foi ajuizada por ser Décio Dutra de Oliveira sobrinho

de Fernando Vanderlei Dutra, Secretário Municipal de Obras, Habitação, Trânsito

e Transportes, o que confi gura nepotismo. Entretanto, o Município alega que a

vedação de contratação de parentes até o terceiro grau não se aplica aos cargos de

natureza política, tais como o de Secretário Municipal. Ademais, foi sustentado

que os Secretários não são parentes do Prefeito Municipal, responsável pelas

nomeações, não havendo qualquer relação de hierarquia ou infl uência funcional

entre eles.

O relator, valendo-se das razões quando do julgamento do Agravo de

Instrumento n. 70051067338 apresentado pela recorrente, aduz que a jurisprudência

está pacifi cando o entendimento de que a vedação contida na referida Súmula

também é aplicável aos dirigentes superiores da Administração Pública. Ademais,

assevera que na referida Súmula Vinculante n. 13 não há taxativamente a exceção

de afastamento de sua aplicação para os agentes políticos. Nesse sentido e com

base nesses fundamentos, a apelação cível foi desprovida, por maioria dos votos.

A Apelação Cível n. 70057212482, que foi processada perante a 2ª Câmara

Cível, julgada em 26 de março de 2014, teve como relatora a Desa. Laura Louzada

Jaccottet. Trata-se de recurso de apelação interposto em face de sentença que, nos

autos da Ação Civil Pública, por ato de improbidade administrativa, ajuizada pelo

Ministério Público, julgou procedente e confi rmou a medida liminar no sentido

de: a) reconhecer a prática de ato de improbidade administrativa pelo demandado

em razão da nomeação indevida de seu sobrinho, por infração ao art. 11 da Lei

n. 8.429/92 e à Súmula Vinculante n. 13 do STF; b) determinar a suspensão dos

direitos políticos do demandado pelo período de 3 anos, bem como condená-lo

ao pagamento de multa civil correspondente a 12 meses da remuneração por ele

recebida como Prefeito Municipal quando da nomeação indevida, com atualização

monetária pelo IGP-M desde então e juros moratórios mensais de 1% a partir da citação.

Em suas razões, o apelante sustenta que o servidor nomeado possui curso

técnico em contabilidade, e que a função por ele desempenhada se equiparava a de

Secretário Municipal, o que se constitui em função política. Dessa forma, não se

257

Uma análise da Súmula Vinculante n. 13 na Administração Pública a partir da jurisprudência do TJRS: limites e possibilidades de sua aplicabilidade para a nomeação de cargo político

constituindo em prática de nepotismo e devendo ser afastado o ato de improbidade.

Houve provimento do recurso, por unanimidade, merecendo destaque os

fundamentos dessa jurisprudência, que foram no sentido de que:

a Súmula Vinculante 13 do Supremo Tribunal Federal proíbe o nepotismo;

todavia, a própria Corte Suprema tem entendimento no sentido de que

cargos de natureza política afastam, no caso concreto e dependendo

das circunstâncias, a incidência da referida Súmula Vinculante, por ele

editada (BRASIL. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO

SUL. Apelação Cível n. 70057212482, 2014) (grifo próprio).

No próximo ponto, retornar-se-á à discussão sobre os limites e possibilidades

de extensão da Súmula Vinculante n. 13 para a nomeação de cargo político, sendo

de extrema relevância para o presente trabalho as últimas duas jurisprudências

acima analisadas.

Dando prosseguimento à análise jurisprudencial, a Apelação Cível

n. 70061772356, julgada pela 21ª Câmara Cível em 29 de outubro de 2014, teve

como relator o Des. Arminio José Abreu Lima da Rosa. O apelante recorre da

sentença que julgou parcialmente procedente o pedido formulado na Ação Civil

Pública por ato de improbidade administrativa proposta pelo Ministério Público,

sendo a sentença no sentido de: a) reconhecer a prática de atos de improbidade

administrativa pelo réu, na concessão de função gratifi cada à cunhada do réu e

ao cunhado do Secretário de Finanças, por se confi gurar em infração ao art. 11

da Lei n. 8.429/92 e à Súmula Vinculante n. 13 do STF, devendo ser declaradas

nulas tais nomeações e determinando a imediata exoneração da função gratifi cada,

tornando defi nitiva a liminar; b) determinar a suspensão dos direitos políticos do

requerido pelo período de 3 anos, bem como condená-lo ao pagamento de multa

civil consistente em 12 meses da remuneração que percebia como prefeito quando

do apontamento da irregularidade, com atualização monetária pelo IGP-M desde

então e juros moratórios mensais de 1% a partir da citação; c) julgar improcedente

o pedido de declaração de nulidade de outras nomeações e/ou contratações que

possam confi gurar nepotismo.

Nas razões recursais, o apelante defende a inexistência de ato ímprobo,

discorrendo sobre os conceitos de função gratifi cada e gratifi cação de função.

Dispõe que a gratifi cação de função, paga aos servidores por desempenharem

atividades junto ao controle interno, não corresponde ao exercício de funções

258

Cynthia Gruendling Juruena e Ricardo Hermany

de direção, chefi a e assessoramento. Diante disso, afasta-se a confi guração de

nepotismo, na esteira de decisão do TCE.

A apelação foi, em parte, provida por unanimidade. Os desembargadores

entenderam que, quanto aos itens “a” e “c”, não há nada a ser reparado na

sentença, devendo ser mantido o reconhecimento da prática de atos de improbidade

administrativa pelo réu, bem como devendo ser julgado improcedente o pedido

de declaração de nulidade de outras nomeações e/ou contratações que possam

confi gurar nepotismo. Portanto, houve revisão da sentença no que tange ao item

“b”, qual seja, da penalização relativa à suspensão dos direitos políticos. Assim,

com base na incidência dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade,

reduziu-se a multa de 12 meses de remuneração para 1 vez. Ainda, não se justifi ca

a penalidade de suspensão dos direitos políticos.

A Apelação Cível n. 70065759789, processada na 22ª Câmara Cível e com

o seu julgamento em 20 de agosto de 2014, teve como relatora a Desa. Maria

Isabel de Azevedo Souza. O Ministério Público ajuizou ação de improbidade

administrativa para a condenação nas sanções do art. 12, incs. I, II e III, da Lei

n. 8.429/92, bem como a restituição dos valores indevidamente percebidos dos

cofres públicos. No caso em tela, o Prefeito Municipal nomeava para cargos em

comissão e função gratifi cada esposa, nora, genro e fi lha do Presidente da Câmara

Municipal em troca de favores políticos.

Na instância de 1º Grau, foi julgada procedente a ação e reconhecida a

prática de ato de improbidade administrativa pelo requerido, por afronta aos

arts. 9º, XI; 10, I e XII; e 11, caput e inc. I, da Lei n. 8.429/92 (Lei de Improbidade

Administrativa – LIA). Como eram diversos réus, as penas culminadas foram

distintas. No entanto, as condenações se caracterizavam em suspensão dos direitos

políticos, pagamento de multa civil, ressarcimento integral do dano e perda dos

cargos em comissão que exerciam. Os recursos foram providos em parte, isto pois

o Egrégio Tribunal de Justiça entendeu que o Prefeito Municipal e o Presidente da

Câmara Municipal praticaram ato de improbidade administrativa, no dispositivo

11 da referida LIA. No entanto, em razão da ausência de provas de que os parentes

favorecidos não tenham trabalhado, não respondem pelos atos ímprobos que os

benefi ciaram.

A última Apelação Cível que será referida, de n. 70065994352, com a

análise na 2ª Câmara Cível, teve o julgamento na data de 25 de novembro de

2015, sendo relator o Des. João Barcelos de Souza Júnior. Trata-se de recurso

de apelação, interposto pelo Ministério Público, em face da sentença que julgou

259

Uma análise da Súmula Vinculante n. 13 na Administração Pública a partir da jurisprudência do TJRS: limites e possibilidades de sua aplicabilidade para a nomeação de cargo político

improcedente ação civil pública ajuizada pela prática de atos de improbidade

administrativa. O Ministério Público baseou sua pretensão de condenação dos

réus por ato de improbidade administrativa em razão da contratação de Maria

Elisete Kuver de Araújo e Andrelise Kuver de Araújo para realização de trabalhos

em prol da Secretaria do Turismo do Município de Caxias do Sul. Segundo o

órgão ministerial, a contratação dessas pessoas deu-se de forma irregular, tendo

em vista que elas são ligadas por laços de parentesco com o assessor da Secretaria.

No entanto, inexistem provas de que essas contratações se deram a pedido ou por

infl uência de Saulo, evidenciando, em vez disso, que as prestadoras dos serviços

foram contratadas diretamente pelo réu Jaison Barbosa dos Santos, na qualidade

de Secretário do Turismo, o qual não mantém laço de parentesco com nenhuma

delas. Diante disso, foi julgada improcedente a Ação Civil Pública ajuizada pelo

Ministério Público.

A apelação cível foi parcialmente provida, na qual houve o entendimento

de que a contratação pelos demandados – quais sejam, Secretário Municipal de

Turismo e assessor (cargo de confi ança) da Secretaria Municipal de Turismo –, da

demandada Maria Elisete Kuver de Araújo, companheira de Saulo, para prestar

serviços junto à referida secretaria, está permeada de irregularidades, pois afronta

o art. 106 da Lei Orgânica do Município de Caxias do Sul e a Súmula Vinculante

n. 13 do STF. A contratação importa em ato de improbidade administrativa,

tipifi cado no art. 11, caput, culminado com o art. 3º da Lei n. 8.429/92. A contratação

de Andrelise Kuver de Araújo, cunhada de Saulo, para prestar serviços junto à

secretaria, também se confi gura em ato de improbidade administrativa, tipifi cado

no art. 11, caput, da referida Lei.

Dessa forma, analisadas as apelações cíveis que possuem vinculação

com a vedação ao nepotismo, passa-se à exposição dos agravos de instrumento

encontrados com a busca de jurisprudência no sítio eletrônico do TJRS.

O primeiro Agravo de Instrumento que será analisado, de n. 70051067338,

refere-se à Apelação Cível n. 70056735103 (já analisada no presente trabalho), o

qual teve julgamento na data de 19 de dezembro de 2012. Foi mantida a antecipação

de tutela deferida para a imediata exoneração de ocupante do cargo de Secretário

Municipal de Educação, sendo desprovido, por maioria, o Agravo de Instrumento.

Interessante aqui ressaltar que a Súmula Vinculante n. 13 foi aplicada pelo TJRS,

nesse caso, em sede de nomeação de cargo político.

O Agravo de Instrumento n. 70056422900 tramitou na 21ª Câmara Cível

e foi julgado em 30 de outubro de 2013, sendo o Des. Marco Aurélio Heinz o

260

Cynthia Gruendling Juruena e Ricardo Hermany

relator da ação. O Prefeito do Município de Sagrada Família agrava da decisão que,

em sede de liminar, determinou o afastamento do cargo em comissão de Secretária

Municipal, sua esposa, sob o argumento de violação da Súmula Vinculante n. 13 do

STF, na ação de improbidade movida pelo Ministério Público. O agravante sustenta

a legalidade da nomeação por se tratar de cargo político, não incidindo a vedação

prevista para os parentes até terceiro grau, conforme jurisprudência consonante.

Os magistrados decidiram no sentido de que não se submete às hipóteses da

Súmula Vinculante n. 13 a nomeação de agente político, afi gurando-se o cargo de

Secretário de Estado em agente político, segundo entendimento do próprio STF.

Nesta senda, não se constitui em ilegalidade a nomeação da esposa do Prefeito

para o desempenho do cargo de Secretária Municipal, tendo em vista tratar-se de

cargo político. Assim, o TJRS deu provimento ao agravo.

O Agravo de Instrumento n. 70061065603, julgado em 2 de outubro de 2014

na 2ª Câmara Cível teve como relator o Des. Ricardo Torres Hermann. Esse recurso

foi interposto pelo Município de Piratini, em razão de ação proposta pelo Ministério

Público que, em sede de pedido liminar, deferiu a exoneração das demandadas

por serem, respectivamente, esposa e companheira de vereadores desse Município.

Foi sustentada a inaplicabilidade da Súmula n. 13 do STF às contratações para

cargos de natureza eminentemente política. Diante desse fundamento alegado pelo

agravante, o relator – acompanhado pelos demais desembargadores – manifestou-

-se no sentido de que:

basicamente porque ainda é controversa a aplicação da mencionada

Súmula Vinculante 13 do STF em relação às nomeações políticas,

afi gurando-se, por isso, temerária a imediata determinação de exoneração

das duas servidores (sic) nomeadas pelo executivo municipal para o

exercício dos cargos de Diretora de Biblioteca e de Diretora de Telecentro.

(BRASIL. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL.

Agravo de Instrumento n. 70061065603, 2014) (grifo próprio).

Neste diapasão, foi dado provimento ao agravo de instrumento, entendendo-

-se que merece reforma a decisão que determinou a exoneração das demandadas.

Nota-se que o TJRS vem se posicionando no sentido de não aplicar a Súmula

Vinculante n. 13 para os casos de nomeações políticas.

O último Agravo de Instrumento a ser analisado, de número 70057526907,

teve o seu trâmite na 3ª Câmara Cível, atuando como relator o Des. Eduardo

261

Uma análise da Súmula Vinculante n. 13 na Administração Pública a partir da jurisprudência do TJRS: limites e possibilidades de sua aplicabilidade para a nomeação de cargo político

Delgado, e a data de julgamento foi 20 de novembro de 2014. Esse tratou de

agravo de instrumento interposto pelo Ministério Público contra a decisão que

negou a tutela provisória, proferida nos autos de ação civil pública, em desfavor do

Município de São Pedro da Serra. Em sede de 1º Grau, o magistrado entendeu que:

em atenção ao pedido de antecipação de tutela, ressalto que, não obstante

a força imperativa da Súmula Vinculante n. 13 do STF, de observância

obrigatória aos demais órgãos da administração pública, é fato que

consoante o entendimento explicitado pela própria Corte Suprema, no

sentido que a vedação ao nepotismo não alcança a nomeação para cargos

políticos. Deste modo, o Prefeito Municipal não estaria impedido, por

força da indigitada súmula, a nomear parente seu para exercício de cargo

político de Secretário Municipal (BRASIL. TRIBUNAL DE JUSTIÇA

DO RIO GRANDE DO SUL. Agravo de Instrumento n. 70057526907,

2014) (grifo próprio).

No voto do desembargador-relator, o mesmo trouxe jurisprudências do

TJRS, do STJ e do STF, no que tange à aplicação da Súmula Vinculante n. 13

para nomeações políticas. As jurisprudências não convergiam entre si, sendo que,

como veremos no próximo ponto, em diversos momentos os ministros do STF

asseveravam que a súmula vinculante do nepotismo não traz a exceção de não

aplicação a cargo político. Isto pois deve ser analisado o caso e verifi cado se houve

a prática de nepotismo, para que se aplique ou se afaste a incidência dessa Súmula

Vinculante.

Em seu voto, o relator ressaltou que, diante desse dissenso nos tribunais

acerca da aplicação ou não da Súmula Vinculante às nomeações de cargo político,

é necessário que haja a contextualização para que seja caracterizado. Dessa forma,

o magistrado negou provimento ao recurso, com os demais desembargadores

de acordo. Umas das desembargadoras desse agravo de instrumento expôs que

o plenário do STF já se pronunciou acerca da inaplicabilidade do conteúdo da

referida Súmula quanto a cargos de natureza política. Mais adiante, apontou que

essa posição não era uníssona na Corte.

Efetuada a abordagem jurisprudencial a partir do sítio eletrônico do TJRS,

acerca da aplicabilidade da Súmula Vinculante n. 13, serão verifi cadas quais as

possibilidades de extensão dessa Súmula para as nomeações políticas, a partir da

jurisprudência ora analisada e de jurisprudência do STF.

262

Cynthia Gruendling Juruena e Ricardo Hermany

4 OS LIMITES E POSSIBILIDADES DE EXTENSÃO DA SÚMULA

VINCULANTE N. 13 PARA A NOMEAÇÃO DE CARGO POLÍTICO

Realizada a análise da jurisprudência do TJRS acerca da aplicabilidade da

Súmula Vinculante n. 13, verifi car-se-ão os limites e possibilidades de extensão dessa

Súmula para a nomeação de cargo político. Essa abordagem será feita a partir do Egrégio

Tribunal de Justiça e da forma com que o STF tem se posicionado acerca do tema.

Primeiramente, importante se adentrar mais detidamente na análise da

Apelação Cível n. 70056735103, que tramitou na 2ª Câmara Cível e teve o seu

julgamento na data de 20 de novembro de 2013. O Município sustentou que a

vedação de contratação de parentes até o terceiro grau não se aplica aos cargos de

natureza política, tais como o de Secretário Municipal.

O relator, valendo-se das razões quando do julgamento do Agravo de

Instrumento n. 70051067338 (que também foi objeto de análise) apresentado pela

recorrente, asseverou que a jurisprudência está pacifi cando o entendimento de que

a vedação contida na referida Súmula também é aplicável aos dirigentes superiores

da Administração Pública. O magistrado sustentou que, na referida Súmula

Vinculante n. 13, não há taxativamente a exceção de afastamento de sua aplicação

para os agentes políticos. Nesse sentido e com base nesses fundamentos, a apelação

cível foi desprovida, por maioria dos votos.

Dessa forma, nota-se que no caso em comento o TJRS decidiu no sentido de

aplicar a Súmula Vinculante n. 13 para a nomeação de cargo político, isto porque

na Súmula não consta a exceção de ser inaplicável às nomeações políticas.

No entanto, como vimos em outros julgamentos6 do próprio TJRS, os

fundamentos utilizados pelos magistrados para aplicar ou afastar a Súmula

Vinculante para as nomeações políticas possuem importantes e respeitáveis

divergências. Isto porque há decisões no sentido de que é aplicável – como visto

acima – e outras que suscitam ser inaplicável, em que os magistrados decidiram –

em sede de agravo de instrumento – no sentido de que a nomeação de agente

político não se submete às hipóteses da Súmula Vinculante n. 13.

Cabe registrar que há jurisprudência do Egrégio Tribunal de Justiça

sustentando que o STF entende ser Secretário Municipal cargo de natureza política,

não devendo, então, ser aplicada a Súmula Vinculante n. 13. No entanto, o tema

não está pacifi cado no STF, cabendo trazer posição divergente:

6 – Como na Apelação Cível n. 70057212482, Agravo de Instrumento n. 70056422900 e Agravo de

Instrumento n. 70061065603.

263

Uma análise da Súmula Vinculante n. 13 na Administração Pública a partir da jurisprudência do TJRS: limites e possibilidades de sua aplicabilidade para a nomeação de cargo político

A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta,

colateral ou por afi nidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade

nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de

assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confi ança

ou, ainda, de função gratifi cada na administração pública direta e indireta

em qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e

dos Municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas,

viola a Constituição Federal.

O teor do Verbete não contém exceção quanto ao cargo de secretário

municipal.

3. Indefi ro a liminar.

4. Solicitem informações ao reclamado.

5. Vindo a manifestação ao processo, colham o parecer da Procuradoria

Geral da República.

6. Publiquem. (BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Medida

Cautelar na Reclamação n. 15571/RS, 2013) (grifo próprio)

Dessa forma, o posicionamento adotado pelo Min. Marco Aurélio vai de

encontro ao que foi sustentado em uma das jurisprudências analisadas no presente

trabalho, de que a Corte Suprema entende ser secretário municipal cargo político.

Importa salientar ainda que a Mina. Cármen Lúcia suscita questões importantes

nos autos de medida cautelar, como:

(...) O texto da Súmula Vinculante n. 13 deste Supremo Tribunal

Federal não excepciona a nomeação de parentes para cargos políticos

e, conforme fi cou assentado na Reclamação n. 6.650-MC-AgR, a

caracterização de nepotismo deverá ser feita em cada caso.

Isso porque, como salientei no julgamento da Ação Declaratória de

Constitucionalidade n. 12/DF, o princípio constitucional da moralidade

administrativa não autoriza o parentesco como critério de admissão no

serviço público, nem mesmo para cargos de confi ança, pois confi ança se

avalia pela qualifi cação do candidato e não na qualidade do nome por

ele ostentado (BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Medida

Cautelar na Reclamação nº 16402/SC, 2015) (grifo próprio).

264

Cynthia Gruendling Juruena e Ricardo Hermany

A partir desse trecho supracitado, tem-se o que é trazido em diversos

momentos pelo STF, de que a Súmula Vinculante n. 13 em momento nenhum

excepciona a sua aplicação para nomeação de cargos políticos. Ademais, a

caracterização de nepotismo para nomeações políticas deverá ser feita de acordo

com o caso concreto. Dessa forma, caso haja comprovação de qualifi cação técnica

e/ou profi ssional para a ocupação do cargo, será possível afastar a incidência da

Súmula Vinculante n. 13 e manter quem está em exercício no cargo.

E, ainda, tem-se o entendimento de que a confi ança se avalia pela qualifi cação

do candidato, e não pela qualidade do nome por ele ostentado. Verifi cou-se, em muitos

argumentos dos apelantes ou agravantes, que a nomeação de alguém que possua

vínculo parental se dá em razão da relação de confi ança que é estabelecida entre eles.

Entretanto, esse entendimento é de cunho patrimonial, no qual a relação de confi ança

entre os administradores estaria acima da necessidade de atender ao interesse público.

No entanto, foi visto que as práticas que se remetem ao modelo

patrimonialista devem ser combatidas, pois o mesmo não possui consonância com

a Constituição Federal de 1988 e com os preceitos que devem ser observados pela

Administração Pública.

Por essa razão, a Mina. Cármen Lúcia aduz que a confiança deve ser avaliada

pela qualificação do candidato, por estar o interesse público e a busca por uma

boa administração pública acima das relações mantidas pelos administradores.

Nesta senda, a relação de confi ança não pode se sobrepor à qualifi cação técnica ou

profi ssional do ocupante do cargo em comissão.

Nesse sentido, tem-se que o STF entende ser possível a aplicação da Súmula

Vinculante n. 13 para a nomeação de cargos políticos, devendo ser analisado o caso

concreto, buscando avaliar se o ocupante do cargo possui qualifi cação técnica, pois

a mera relação de parentesco não cumpre com o atendimento ao interesse público.

No entanto, em certas jurisprudências, como visto, o TJRS entende

sumariamente pela inaplicabilidade da Súmula Vinculante n. 13 para nomeação

de cargos políticos, sem, muitas vezes, fazer a análise do caso concreto – que é a

forma como o STF vem entendendo que deva ser realizado.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com o presente capítulo, expôs-se a necessidade que houve em se

editar a Súmula Vinculante n. 13, visto que as práticas de nepotismo não se

coadunam com a Constituição Federal de 1988 e os princípios constitucionais

265

Uma análise da Súmula Vinculante n. 13 na Administração Pública a partir da jurisprudência do TJRS: limites e possibilidades de sua aplicabilidade para a nomeação de cargo político

que informam a Administração Pública. Para mais, o nepotismo possui estreita

vinculação com um modelo patrimonialista, ultrapassado e cujas práticas

devem ser combatidas.

Dessa forma, fez-se necessário referir os precedentes do STF que ensejaram

a edição da Súmula Vinculante n. 13, de 2008. A partir disso, realizou-se uma

busca no sítio eletrônico do TJRS, para, com a análise jurisprudencial referente a

essa Súmula, verifi car como o Egrégio Tribunal vem decidindo.

Sem delimitar os anos de busca, obteve-se quantitativamente somente 11

resultados acerca da Súmula Vinculante n. 13, sendo 7 apelações cíveis e 4 agravos

de instrumento. Com esse resultado, realizou-se uma análise qualitativa a partir

do inteiro teor dos acórdãos. Extraiu-se, com a análise jurisprudencial, que a

aplicação da Súmula Vinculante n. 13 para os casos de nomeação de cargo político

era diversa, dependendo do magistrado.

Há jurisprudências no sentido de afastar sumariamente a aplicação da

Súmula para esses casos, sob a fundamentação de que o STF possui o entendimento

de que a nomeação de cargo político se constitui em uma exceção da Súmula de

vedação do nepotismo. Ainda, houve entendimento do Tribunal para que o caso

fosse analisado com maior rigor, não havendo arcabouço probatório suficiente,

para que não houvesse exoneração sem indícios contundentes de que o ocupante

do cargo não possuía qualificação (técnica e/ou profissional).

No terceiro ponto do presente trabalho, verifi caram-se então os limites e as

possibilidades de aplicabilidade da Súmula Vinculante para os casos de nomeações

políticas. Essa análise foi realizada a partir da jurisprudência do TJRS e do STF.

Concluiu-se que a Suprema Corte tem o entendimento de que a Súmula Vinculante

não excepciona a nomeação de cargo político, devendo ser analisado o caso

concreto para verifi car se o ocupante deste cargo efetivamente possui qualifi cação

para exercê-lo em prol do interesse público.

Nesta senda, há magistrados do Egrégio Tribunal de Justiça que decidem

conforme o STF, ou seja, que cada caso deve ser analisado isoladamente e mediante

arcabouço probatório, para evitar que haja prejuízos à sociedade. No entanto,

também se verifi caram decisões no sentido de afastar a Súmula Vinculante n. 13

para as nomeações de cargo político.

Diante dessa análise realizada no TJRS e no Supremo Tribunal Federal,

conclui-se que é possível estender a Súmula Vinculante n. 13 para os casos de

nomeações de cargos políticos, com a análise concreta da qualificação, visto que o

atendimento ao interesse público é primordial.

266

Cynthia Gruendling Juruena e Ricardo Hermany

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111, 112, 114, 115, 125, 126, 127, 128, 129, 134 e 168 da Constituição Federal, e

acrescenta os arts. 103-A, 103-B, 111-A e 130-A, e dá outras providências. Disponível

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267

Uma análise da Súmula Vinculante n. 13 na Administração Pública a partir da jurisprudência do TJRS: limites e possibilidades de sua aplicabilidade para a nomeação de cargo político

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268

Cynthia Gruendling Juruena e Ricardo Hermany

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ANTIGOVERNABILIDA DE E CORRUPÇÃO NA ESFERA

MUNICIPAL: A JURISPRUDÊNCIA DO TJRS ENVOLVENDO

CASOS DE REPASSE INDEVIDO DE REMUNERAÇÃO DE

ASSESSORES PARLAMENTARES1

Luiz Felipe Nunes2

Ianaiê Simonelli da Silva3

RESUMO

O presente trabalho tem por tema a antigovernabilidade e a corrupção na

esfera municipal, sendo analisada, para tanto, a jurisprudência do Tribunal de Justiça

do Rio Grande do Sul acerca do repasse indevido de remuneração de assessores

parlamentares. Na busca por seu desenvolvimento, foram criados alguns títulos

e em cada um são tratadas questões relevantes para o tema proposto, utilizando-

-se do método dedutivo e consulta bibliográfi ca e jurisprudencial. Com o trabalho

verifi cou-se que a adoção de um sistema de coalizões na década de 90 permitiu

novas formas de barganha política e fomentou atos de corrupção, clientelistas e

patrimonialistas. Após o desenvolvimento necessário para a abordagem do tema,

1 – Este trabalho é fruto de estudos junto ao grupo de pesquisa em Patologias Corruptivas, coordenado

pelo Prof. Dr. Rogério Gesta Leal e vinculado ao Centro Integrado de Estudos e Pesquisas em Políticas

Públicas – CIEPPP.

2 – Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Santa Cruz do Sul. Rio Grande do Sul. Brasil.

Advogado. E-mail: [email protected].

3 – Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Santa Cruz do Sul. Rio Grande do Sul. Brasil.

Advogada. E-mail: [email protected].

270

Luiz Felipe Nunes e Ianaiê Simonelli da Silva

discute-se como o Tribunal tem se posicionado frente ao comprovado repasse

indevido de remuneração de assessores parlamentares. Conclui-se o trabalho

apontando para a fragilidade dos cargos em comissão, cargos esses que, na busca

por permitir a coalizão de interesses diversos por meio da colocação de aliados e

indicados em cargos de livre nomeação e exoneração, muitas vezes, nesse intuito,

acaba sendo desvirtuado e recai em atos ímprobos e atentatórios ao interesse público.

Palavras-chave: Assessor parlamentar, cargo em comissão, presidencialismo

de coalização, repasse indevido e corrupção.

1 INTRODUÇÃO

O tema da antigovernabilidade e da corrupção na esfera municipal surge com

fôlego renovado principalmente em decorrência de alguns escândalos veiculados

amplamente pela mídia ofi cial e inofi cial nos últimos anos. Nesse viés, o também

ilícito repasse de remuneração dos assessores parlamentares para fi ns diversos

ganhou algumas manchetes nacionais, sendo seus articuladores destituídos de seus

cargos e sofrendo punição na esfera civil, criminal e eleitoral.

Com a adoção do presidencialismo no Brasil, a partir da década de 90,

o sistema de coalização, denominado de presidencialismo de coalização, ganha

espaço no cenário político, condicionando as relações de poder entre o Executivo

e o Legislativo e visando a oportunizar a governança. Esse mesmo sistema de

coalizão tem seus refl exos nas esferas estaduais e municipais, nas quais as demandas

regionais e locais necessitam de alianças, muitas vezes nada homogêneas, para

concretizar seus interesses.

Nas diversas esferas de poder, esse sistema de coalização, em que muitas

vezes um dos poderes cede para o outro, acaba sendo necessário para a governança

da esfera em questão; no entanto, tal quadro formado de negociatas acaba gerando

espaço para corrupção, clientelismo e patrimonialismo no poder.

Na esfera municipal, uma das formas de se permitir coalizões de interesses

privados e públicos é por meio dos denominados cargos em comissão, que permitem

à autoridade política – nos casos concretos analisados, prefeitos e vereadores –

negociar com diversos interesses setoriais, concedendo cargos públicos a fi m de

coalizar interesses. Diante desse panorama posto, questiona-se como o Tribunal

de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul tem se posicionado frente a casos

271

Antigovernabilidade e corrupção na esfera municipal: a jurisprudência do TJRS envolvendo casos de repasse indevido de remuneração de assessores parlamentares

de repasse indevido de remuneração de assessores parlamentares. Na busca por

responder a esse questionamento, utilizou-se do método de abordagem dedutivo e

de uma consulta bibliográfi ca e jurisprudencial.

2 COMO SE DÁ A ANTIGOVERNABILIDADE E CORRUPÇÃO NA

ESFERA MUNICIPAL

A década de 80 foi marcada por um cenário de crescente desequilíbrio fi scal,

agitação das contas públicas e infl ação galopante. Somam-se a esse cenário as

diversas tentativas de estabilização da economia, com a criação de diversos Planos

a que a população é submetida, desencadeando uma extensa sequência de ensaios

e erros. Por conseguinte, gerou-se um modelo de adaptação da economia dentro do

marco neoliberal, produzindo agendas governamentais com pequena fl exibilidade.

Dessa forma, tais problemas de governo devem ser enfrentados em um contexto de

redemocratização e quebra com a ordem social pregressa.

Com a redemocratização resurge a fi gura do presidencialismo no Brasil,

modelo conhecido como presidencialismo de coalizão. A união desses dois

elementos explica o nosso sistema político, de modo que o presidencialismo é o

sistema de governo no qual o chefe do Executivo é eleito diretamente pelo sufrágio

popular e tem um mandato independente dos deputados e senadores.

Para Schier (2014), no conjunto do acondicionamento institucional

brasileiro, pode-se afi rmar que, no que concerne às relações entre Poder Executivo e

Legislativo, a despeito da adoção do sistema presidencialista, a dinâmica da chefi a

de governo acerca-se do modelo parlamentarista de coalizões governamentais.

De modo que no modelo brasileiro, conhecido como presidencialismo de

coalizão, contitui-se um Poder Executivo com muitos poderes, conhecido como

hiperpresidencialismo ou presidencialismo bonapartista, que é estimulado a

efetuar alianças uma vez que, ante a existência de um multipartidarismo, nenhuma

legenda política consegue obter maioria mínima no Parlamento (SCHIER, 2014).

O Brasil é uma federação, e as eleições para o Parlamento Nacional ocorrem

em âmbito local, sendo que há necessidade de formação de alianças político-

-partidárias, regionais e de mercado, fundamentalmente em relação a fi nanciadores

privados de campanhas eleitorais, criando uma situação em que o Legislativo se

torna refém do Executivo. Assim, como a governabilidade depende da renovação

da aliança no decorrer do mandato, o aparelho burocrático do Executivo, por conta

272

Luiz Felipe Nunes e Ianaiê Simonelli da Silva

dessas demandas partidárias ou regionais, acaba cedendo às pressões da aliança.

Ademais, como no caso brasileiro as alianças não são homogêneas, o Executivo

necessita ceder, no plano de suas políticas e decisões, a interesses políticos e

regionais que inúmeras vezes são contraditórios e favorecem tão somente interesses

setoriais, tanto economicamente quanto territorialmente. E, por consequência, esse

quadro fomenta a corrupção, o clientelismo e o patrimonialismo (SCHIER, 2014).

Desde a entrada em vigor da ordem constitucional de 1988, a discussão sobre

o funcionamento do Brasil em democracia tem discordado sobre aspectos pontuais

da relação entre os Poderes e os seus confl itos. Abranches (1988) foi o propulsor

dessa discussão que, antes mesmo da defi nição da forma fi nal do texto constitucional,

assinalava as correntes densas da história brasileira que teriam de ser consideradas em

qualquer desenho institucional. Ou seja, qualquer que fosse o mecanismo de governança

constituído pela Constituinte, teria de conviver com uma intensa heterogeneidade

das demandas sociais (LIPJHART, 1999, p. 80-81), uma impetuosa acumulação de

confl itos distributivos e de exigências formuladas a um Estado que estava, no fi nal

dos anos 80, esgotado em sua legitimidade, bem como em sua capacidade fi scal e de

gestão. Eis então o dilema que se colocou para o constituinte no formato institucional,

os mecanismos de governo teriam de combinar a efi cácia decisória tradicionalmente

integrada aos sistemas políticos descritos como majoritários4 com a representatividade

dos modelos consensuais5, sendo que a distinção entre sistemas majoritários e

consensuais foi operacionalizada em Lipjhart (1999, cap. 1 a 3, p. 1 a 47).

Importa destacar que, no contexto de uma transição à democracia, a

legitimidade das decisões emanadas do sistema político originário não poderia ser

aceita como dada, posto que numa sociedade heterogênea, com interesses setoriais

muito diversifi cados e rígidos, o revezamento no poder seria difi cultado pela mesma

severidade das linhas divisórias entre grupos, e a simples imposição do interesse

da maioria poderia provocar reações mais intensas dos grupos minoritários que

estivessem excluídos, esse contexto dentro de um quadro cuja adesão às novas

regras ainda não se poderia ter como assegurada (BITTENCOURT, 2012).

Abranches (1988, p. 21-22) enuncia a combinação que move o universo

político nacional:

4 – Majoritários no sentido de que geram no aparelho estatal situações de maioria clara que conseguem formar governo e impor suas decisões dentro das regras vigentes.5 – Consensuais no sentido de que o funcionamento permite a uma maioria de grupos distintos infl uir nas decisões, conquistando mais legitimidade

para o resultado fi nal e reduzindo os pontos de tensão.

273

Antigovernabilidade e corrupção na esfera municipal: a jurisprudência do TJRS envolvendo casos de repasse indevido de remuneração de assessores parlamentares

[...] o Brasil é o único país que, além de combinar a proporcionalidade, o

multipartidarismo e o “presidencialismo imperial”, organiza o Executivo

com base em grandes coalizões. A esse traço peculiar da institucionalidade

concreta brasileira chamarei, à falta de melhor nome, “presidencialismo

de coalizão” [...].

Já na República de 1946, era possível identifi car a essência desse conceito,

a coalizão para obtenção de maiorias e governabilidade fazia-se após as eleições,

conforme eixos partidários e regionais. Entretanto, os riscos desse tipo de coalizão

são muito intensos.

Em um primeiro momento, atente-se à associação entre partidos que

pode ser ad hoc, desconsiderando incompatibilidades programáticas ou, ainda,

desconsiderando interesses divergentes quanto ao conteúdo das políticas a perseguir

pela coalizão. (BORSONI, 2004, p. 107-108).

Outro risco pode se dar quando da montagem da coalizão ou de parte dela,

que se faz em bases clientelistas de distribuição de cargos e benesses governamentais;

ocorre que as demandas por esse tipo de benefício podem sobrepujar a capacidade

ou a disposição do presidente de serem concedidos (BITTENCOURT, 2012).

Cumpre salientar que o Presidente da República está no centro de quaisquer

confl itos ou crises, sendo o interlocutor para formação da coalizão, ocasionando

uma agudização das divergências entre facções e, por conseguinte, fragiliza o próprio

personagem que, supostamente, teria papel moderador (BITTENCOURT, 2012).

O que se nota no decorrer dos anos é que a necessidade de constituir coalizões

partidárias tornou estatais e órgãos públicos miras cruciais para a colocação de

aliados e indicados, que na maioria das vezes estão alimentados pela corrupção.

Consequência disso é o que foi desvelado pela Operação Lava Jato, que desde 2014

traz uma série de esquemas envolvendo indicações de cargos em órgãos públicos,

propinas em obras públicas, além de pagamento de parte de salários de assessores

parlamentares, acertos que servem como doações para campanhas eleitorais.

A Lava Jato está em sua 32ª fase de acordo com o relatório da Justiça Federal, que

apontou que as condenações da Operação somam 680 anos, 8 meses e 25 dias.

A maior operação contra corrupção no Brasil desvendou conchavos, sobretudo

alcançando nomes importantes da política brasileira que há muitos anos fazem

parte dos governos, com negociatas que começaram há 30 anos.

No Brasil são muitos os desafi os e pressões dos fatores exógenos constatando-

-se uma falência do modelo desenvolvimentista, fundamentado na industrialização

274

Luiz Felipe Nunes e Ianaiê Simonelli da Silva

por substituição de importações, intensamente centralizado no Estado, com a

consequente deterioração da ordem político-institucional que amparava esse

modelo. Nesse sentido é o entendimento de Diniz (1996, p. 3):

[...] em contraposição às interpretações dicotômicas, parece-me mais

adequada uma perspectiva que integre os dois planos da análise, associando

à dimensão externa os condicionamentos internos relacionados à corrosão

da ordem pregressa. Por esta razão, o descompasso entre o Estado

e a sociedade situa-se no cerne da presente crise. O hiato entre uma

institucionalidade estatal rígida, dotada de fraco potencial de incorporação

política, e uma estrutura social cada vez mais complexa e diferenciada

exacerbou as tensões ligadas ao processo de modernização. Instaurou-

-se um sistema multifacetado e multipolar de representação de interesses,

através do qual a sociedade extravasou do arcabouço institucional vigente,

implodindo o antigo padrão corporativo do Estado sobre a sociedade.

No que tange ao controle governamental, importa realizar algumas

considerações acerca do presidencialismo de coalizão que trazem todas as

modelagens do relacionamento Executivo-Legislativo apontando uma convergência

de posições conseguida pelos mais diferentes caminhos: um deles é a imposição do

poder de agenda, negociação e coparticipação. Isso demonstra, para a estabilização

das relações políticas, minimização de riscos de rompimento com as instituições

democráticas ou, mesmo que estas permanecessem mantidas, representavam grave

instabilidade social (PEREZ-LIÑAN, 2009, p. 321).

Entretanto, essa conquista sendo consequência da estabilização política

fundamentada em negociata instrumental de objetivos comuns, ocasiona um

aumento de riscos de diminuição da já limitada “accountablity horizontal”, que

nada mais é do que o controle sobre o Executivo, exercido pelo Congresso e por

outras instituições. Uma das formas de atração de parlamentares para a coalizão

tem como resultado a cooptação, por meio de incentivos de grande intensidade,

com a fi nalidade de o legislador deixar de desempenhar o papel de vigilância sobre

eventuais abusos do poder concentrado nas mãos do Presidente (PEREZ-LIÑAN,

2009, p. 329), ações que os retiram do papel que lhes compete na disposição da

divisão de poderes.

Assim, com ambos os poderes compartilhando as mesmas metas, não há

garantia de validade do pressuposto de que a divisão de poderes determina controle

275

Antigovernabilidade e corrupção na esfera municipal: a jurisprudência do TJRS envolvendo casos de repasse indevido de remuneração de assessores parlamentares

recíproco. Tal conclusão reforça o entendimento de alguns arrolamentos empíricos

internacionais em direção a que a participação nas atividades de controle não é

o enfoque do trabalho legislativo mais sedutor aos parlamentares (PELIZZO &

SAPENHURST, 2007, p. 387).

Contrário senso, se a constituição da maioria se dá numa coalizão de

múltiplos interesses, aumenta a possibilidade de que apareçam, mesmo porque o

resultado da coalizão em termos de políticas tende a ser diverso da preferência

individual e de seus integrantes (LLANOS & MUSTAPIC, 2005A, p. 19-21).

Nesse sentido, o fato de o mandato do Executivo não depender da maioria

parlamentar deveria, em tese, ser um facilitador do controle, uma vez que

[...] nos sistemas presidenciais não existe, a princípio, a mesma pressão

institucional – que existe nos sistemas parlamentares – pela disciplina

parlamentar para sustentar o governo, o que poderia liberar os deputados

individualmente e as bancadas governistas para exercer um controle

muito mais amplo sobre o governo (PALANZA, 2005, p. 83).

Importante ressaltar que, apesar de os exemplos terem sido citados em nível

de União, esses padrões de relações entre Poderes ocorrem também nos governos

regionais e municipais, cujas consequências e riscos sejam similares (POWER &

TAYLOR, 2011A, p. 264). Deveras, a Constituição Federal estabelece uma simetria

institucional praticamente total para todos os entes federativos, consequentemente,

as regras de ingresso e exercício do poder são as mesmas. Ademais, as regras

eleitorais são uniformes, e o sistema partidário proporciona condições quase

homogêneas entre regiões e no fl uxo de candidatos entre objetivos eleitorais nas

distintas esferas. De tal modo, os fenômenos e conclusões conseguidos para a União

tendem a ser também proeminentes para a interpretação de Estados e Municípios.

O fenômeno da corrupção é sem sombra de dúvidas uma das maiores

preocupações do mundo contemporâneo, tanto na esfera pública como na esfera

privada. Guarda relevância tal preocupação, fundamentalmente, devido ao

momento de crise do Estado de Direito, sendo que a corrupção é apontada como

um dos fatores mais lesivos para a democracia e para a racionalidade jurídica.

Para Schier (2014), o modelo de democracia proporcional adotado no

Brasil tem possibilitado, com frequência, o fenômeno da transferência de votos,

destacando-se que a maioria desmedida dos parlamentares que alcançam vaga

no parlamento, no País, é eleita com votos transferidos pelos partidos e pelos

276

Luiz Felipe Nunes e Ianaiê Simonelli da Silva

candidatos mais votados de sua agremiação. Portanto, poucos se elegem com

os próprios votos, permanecendo devedores de favores às grandes lideranças

da legenda. Entretanto, ao invés de o processo fortalecer e valorizar os partidos

políticos, ele propicia a valorização dos próprios políticos de destaque no âmbito

das agremiações. Problema esse que se agrava, igualmente, com a adoção do voto

obrigatório dentro de um multipartidarismo, que gera a existência de projetos de

governo muito próximos e sem identidade ideológica para que possam buscar

a disputa de todos os votos, projeta-se para o plano federativo, provocando que

planos e composições de governo se direcionem ao atendimento de demandas e

fi nanciadores locais de campanha política.

Importa salientar que, como a República Federativa do Brasil é formada pela

união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constituindo-

-se em Estado Democrático de Direito, tanto os Estados quanto os Municípios

obedecem à mesma regra do presidencialismo de coalizão, de modo que o prefeito

é o chefe do Executivo, e o Legislativo é formado pela Câmara de Vereadores.

Um assunto recorrente nas Câmaras de Vereadores é a questão do repasse

de verbas salariais de assessores aos parlamentares. Em virtude disso, foi elaborada

uma pesquisa de casos concretos ocorridos no Estado do Rio Grande do Sul

julgados pelo Tribunal de Justiça nos quais se passa a analisar a jurisprudência

encontrada acerca do tema.

3 A JURISPRUDÊNCIA DO TJRS ENVOLVENDO CASOS

DE REPASSE INDEVIDO DE REMUNERAÇÃO DE ASSESSORES

PARLAMENTARES

A pesquisa foi realizada a partir da coleta de dados no site do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, por meio da pesquisa de jurisprudência, na qual, por intermédio da ferramenta de busca, pesquisou-se por palavras-chave, sendo considerados para a análise todos os resultados obtidos, sem delimitação temporal, haja vista a pouca incidência de resultados acerca do tema ainda no Tribunal.

Assim, os resultados foram fi ltrados unicamente por palavras-chave, sendo

que, nas demais ferramentas de pesquisa, não foram fi ltradas, utilizando-se para

tanto a análise das decisões de “todos” os Tribunais (Alçada, Justiça e Turmas

Recursais), “todos” os relatores, “todos” os tipos de processos existentes no

Tribunal, e assim por diante.

277

Antigovernabilidade e corrupção na esfera municipal: a jurisprudência do TJRS envolvendo casos de repasse indevido de remuneração de assessores parlamentares

Muito embora a pesquisa incialmente tenha resultado em uma infi nidade

de decisões acerca do tema do “repasse indevido” de remuneração de assessores

parlamentares, na leitura das decisões a maioria não tinha referência ao tema

proposto pelo trabalho, mas dizia respeito à falta de repasse ou repasse indevido de

contribuições previdenciárias obrigatórias ao INSS.

Para efetuar a pesquisa nos moldes propostos, foi elaborada uma série de

conjunções de palavras, lançadas na ferramenta de pesquisa para obter o resultado

desejado, como: “cargo em comissão” + “repasse”; “cargo em comissão” +

“divisão de vencimentos”; “cargo em comissão” + “concussão”; “assessor

parlamentar” + “divisão”; “assessor parlamentar” + “repasse”; “assessor” +

“divisão de vencimentos” e “assessor” + “dividir”.

Assim, foram encontradas quinze decisões do Tribunal de Justiça do Rio

Grande do Sul acerca do tema do repasse indevido de remuneração dos assessores

parlamentares a terceiros analisados, o que confi gura, como já mencionado na

parte discursiva inicial do presente trabalho, ato de antigovernabilidade, sendo

manifestação da corrupção na esfera municipal.

Dessas decisões, quatro são criminais, nas quais teria ocorrido o crime

de concussão, e onze buscavam a responsabilização civil dos agentes políticos

(vereadores e prefeitos municipais).

Na esfera municipal, as funções de confi ança e os cargos comissionados são

aqueles descritos no art. 37, V, da Constituição Federal, que menciona:

V - as funções de confi ança, exercidas exclusivamente por servidores

ocupantes de cargo efetivo, e os cargos em comissão, a serem preenchidos

por servidores de carreira nos casos, condições e percentuais mínimos

previstos em lei, destinam-se apenas às atribuições de direção, chefi a e

assessoramento.

Ou seja, aqueles cargos – chefi a, direção ou assessoramento –, para os quais

o legislador não criou um cargo específi co, são de livre nomeação e exoneração,

sendo exercidos por pessoas de confi ança, cargos de confi ança, admitidos numa

função pública de forma temporária.

Os cargos em comissão são de ocupação transitória. Seus titulares são

nomeados em função da relação de confi ança que existe entre eles e a

autoridade nomeante [...]. A natureza desses cargos impede que os

278

Luiz Felipe Nunes e Ianaiê Simonelli da Silva

titulares adquiram estabilidade. Por outro lado, assim como a nomeação

para ocupá-los dispensa a aprovação prévia em concurso público, a

exoneração do titular é despida de qualquer formalidade especial e fi ca a

exclusivo critério da autoridade nomeante. (CARVALHO FILHO, 2005,

p. 475).

Por essa razão menciona o art. 37, II, da CF/88:

II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação

prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo

com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista

em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em

lei de livre nomeação e exoneração.

Assim, as pessoas nomeadas para cargos em comissão não são funcionários

públicos, pois a Constituição exige concurso para investidura em cargo ou emprego

público, não lhes cabendo uma série de prerrogativas do funcionalismo público,

como é o caso da estabilidade no cargo ou emprego público.

APELAÇÃO CÍVEL. SERVIDOR PÚBLICO. MUNICÍPIO DE SÃO

LEOPOLDO. REINTEGRAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. CARGO EM

COMISSÃO DE LIVRE NOMEAÇÃO E EXONERAÇÃO. ART. 37,

II, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PLEITOS CORRELATOS

AFASTADOS. 1. Os cargos em comissão não se revestem de caráter de

permanência, sendo exercidos de forma precária e passíveis de exoneração

ad nutum pela Administração Pública. Precedentes. 2. Caso em que não

há ilegalidade no ato de exoneração impugnado, fi cando rechaçada a

pretensão do recorrente de reintegração no cargo comissionado. Inexistente,

ademais, comprovação de qualquer liame entre a doença ocupacional

alegada e o ato de dispensa praticado pela Administração Municipal.

3. Afastada a ilegitimidade do ato exoneratório, naturalmente os pleitos

de pagamento de salários com refl exos trabalhistas, pensionamento até os

60 anos de idade por redução da capacidade laborativa e indenização por

dano moral devem ser rechaçados. 4. Sentença de improcedência da ação na

origem (Apelação Cível Nº 70045646585, Quarta Câmara Cível, Tribunal

de Justiça do RS, Relator: Eduardo Uhlein, Julgado em 27/02/2013).

279

Antigovernabilidade e corrupção na esfera municipal: a jurisprudência do TJRS envolvendo casos de repasse indevido de remuneração de assessores parlamentares

Em muitos dos casos analisados na jurisprudência do Tribunal de

Justiça do Rio Grande do Sul, verifi cou-se o receio dos ocupantes de cargos

comissionados de perderem o emprego em razão desse poder de decisão – livre

nomeação e exoneração – concentrado nas mãos da autoridade política. Assim,

nos casos comprovados de repasse indevido, verifi cou-se uma efetiva coação, má-

-fé e desonestidade com a verba que cabia ao assessor parlamentar, por parte da

autoridade nomeante:

Aliás, como bem destacaram os agentes do Parquet que ofi ciaram no

feito, é muita ingenuidade pensar que houve acordo da assessora com

o parlamentar sobre a disposição dos vencimentos daquela. Veja: Fazer

acordo dispondo dos vencimentos do outro. Esta afi rmação, feita pelo

apelado, fala por si, demonstrando não só a coação a que foi submetida

a servidora, mas também a má-fé e desonestidade com que se houve o

vereador.

Não é honesto, nem age de boa-fé quem divide, em benefício próprio,

o que é do outro, tendo consciência da ilegalidade dessa conduta,

mormente considerando tratar-se o agente de vereador e o outro de seu

próprio assessor parlamentar.

Note-se que a divisão da remuneração da assessora contraria especialmente

o disposto no art. 3º da Lei Municipal nº 4.259/99, que estabelece o valor

devido à aludida servidora a título de remuneração.

Registre-se, ainda, que é totalmente falaciosa a afi rmação de que a

assessora obteve vantagem com o acordo, aumentando o salário que

possuía antes da assunção do cargo de R$ 180,00 para R$ 470,00, pois,

na realidade, ela perdeu R$ 800,00, ganhando apenas R$ 470,00, quando,

por lei deveria receber R$ 1.270,00.

Evidente a coação, pois, como se vê, a servidora nada ganhou com o

acordo, a não ser o emprego, e com ele concordava somente para garantir-

-se no emprego, sobre o qual tinha o apelado o poder decisório. (Apelação

Cível Nº 70009264342, Décima Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do

RS, Relator: Cláudio Augusto Rosa Lopes Nunes, Julgado em 05/07/2007).

Assim, diante da possibilidade de vir a perder o emprego, os assessores

parlamentares entregavam parcela de seus vencimentos a seus nomeadores para

permanecerem em seus cargos.

280

Luiz Felipe Nunes e Ianaiê Simonelli da Silva

CABO ELEITORAL. ALEGACAO DE QUE, PARA NAO SER

EXONERADO DE CARGO EM COMISSAO NO EXECUTIVO,

ERA OBRIGADO A TRABALHAR, EM FINS DE SEMANA,

PARA O VEREADOR QUE O INDICARA E, AINDA, A DIVIDIR

PARTE DE SEUS VENCIMENTOS COM TERCEIROS. ACAO

IMPROCEDENTE. APELO DESPROVIDO. (grifo nosso). (Apelação

Cível Nº 596241836, Quarta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS,

Relator: José Maria Rosa Tesheiner, Julgado em 03/09/1997).

Feita esta breve introdução, passamos aos critérios utilizados pelo Tribunal

para condenação e absolvição nos casos, bem como análise crítica de como esse

tema está sendo tratado pelos Desembargadores.

Dos quinze casos envolvendo repasse indevido de remuneração de assessores

parlamentares encontrados no sítio do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

• Quatro diziam respeito à instância criminal, na qual teria ocorrido o crime

de concussão. São eles: Ação Penal – Procedimento Ordinário n. 70028709574,

4ª Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marcelo Bandeira

Pereira, julgado em 02-06-11; Apelação-Crime n. 70047882501, 4ª Câmara

Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Gaspar Marques Batista, julgada

em 02-08-12; Processo-Crime n. 70011510211, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça

do RS, Relator: Ranolfo Vieira, julgado em 26-12-05; Ação Penal – Procedimento

Ordinário n. 70028709574, 4ª Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS,

Relator: Newton Brasil de Leão, julgado em 18-12-14.

Dos onze sobressalentes:

• Nove foram decididos em favor dos ex-detentores de cargo em comissão:

Apelação Cível n. 70009264342, 18ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS,

Relator: Cláudio Augusto Rosa Lopes Nunes, julgada em 05-07-07; Apelação

Cível n. 70046160206, 2ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relatora:

Sandra Brisolara Medeiros, julgada em 27-06-12; Apelação Cível n. 70039551676,

21ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Arminio José Abreu Lima

da Rosa, julgada em 15-12-10; Apelação Cível n. 70044641462, 6ª Câmara Cível,

Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sylvio José Costa da Silva Tavares, julgada em

21-05-15; Apelação Cível n. 70005239504, 9ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do

RS, Relator: Adão Sérgio do Nascimento Cassiano, julgada em 17-12-03; Apelação

Cível n. 70028990307, 21ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator:

Marco Aurélio Heinz, julgada em 1º-07-09; Apelação Cível n. 70022986921,

281

Antigovernabilidade e corrupção na esfera municipal: a jurisprudência do TJRS envolvendo casos de repasse indevido de remuneração de assessores parlamentares

4ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: João Carlos Branco Cardoso,

julgada em 17-12-08; Apelação Cível n. 70022986863, 4ª Câmara Cível, Tribunal

de Justiça do RS, Relator: João Carlos Branco Cardoso, julgada em 17-12-08;

Apelação Cível n. 70009264342, 18ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS,

Relator: Cláudio Augusto Rosa Lopes Nunes, julgada em 05-07-07; Apelação

Cível n. 70010505154, 3ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Paulo

de Tarso Vieira Sanseverino, julgada em 24-03-05.

• Dois em desfavor: Apelação Cível n. 596241836, 4ª Câmara Cível,

Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Maria Rosa Tesheiner, julgada em

03-09-97; Apelação Cível n. 70048544290, 9ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do

RS, Relatora: Iris Helena Medeiros Nogueira, julgada em 18-07-12.

Como todo processo, os casos envolvendo supostamente o repasse indevido

de remuneração de assessores parlamentares às autoridades nomeantes necessita

ser comprovado nos autos. Muito embora a hipótese levantada pelos autores possa

ser possível no mundo dos fatos, cabe a eles comprovar os fatos constitutivos de

seu direito, conforme preconizava, na época das decisões, o antigo Código Civil,

art. 333, I (art. 373, I, do novo CPC, com igual redação), sendo imprescindível para

a responsabilização da parte demandada. Assim, tendo em vista que em dois casos

não houve prova cabal para comprovação do fato alegado, restaram desprovidos

ambos os apelos no Tribunal.

APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. DANOS

MORAIS E MATERIAIS. ALEGADA COAÇÃO MORAL.

REPASSE DE VENCIMENTOS. CARGO EM COMISSÃO. NÃO

COMPROVAÇÃO DOS FATOS CONSTITUTIVOS. ART. 333, I, DO

CPC. PRETENSÃO IMPROCEDENTE. 1. Caso em que a requerente

não se desincumbiu do ônus de comprovar os fatos constitutivos de seu

direito (art. 333, I, do CPC). Embora possível na hipótese examinada,

não trouxe evidências de que havia o repasse de vencimento para a

ré, elemento imprescindível para a responsabilização civil da parte

demandada. 2. Ausência de prova cabal para comprovação do fato

alegado. A agenda utilizada na campanha, as portarias de nomeação e

exoneração e algumas movimentações bancárias (que não comprovam

repasse de verbas) não servem como prova sufi ciente para comprovar

a tese alegada na inicial. A prova testemunhal, no mesmo sentido, não

corroborou a tese sustentada. APELO DESPROVIDO. UNÂNIME.

282

Luiz Felipe Nunes e Ianaiê Simonelli da Silva

(Apelação Cível Nº 70048544290, Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça

do RS, Relator: Iris Helena Medeiros Nogueira, Julgado em 18/07/2012)

Nesses casos, o substrato probatório não conseguiu alcançar a pretensão

da parte autora, comprovando suas alegações. Assim, extratos bancários

podem ser utilizados para comprovar eventuais transferências bancárias

entre contas, bem como prova testemunhal. Ainda sobre a questão da prova

e da relativização da vedação constante no art. 5º, LVI, da CF/88, tem-se

admitido a gravação ambiental ou clandestina, quando se está em situação de

legítima defesa (como no conhecido caso de sequestradores telefonando para

a residência de vítimas, exigindo resgate, tendo os pais gravado tais conversas)

ou quando não se poderia obter, de outra forma, prova indispensável ao

resguardo de direitos mais expressivos, atuando, aqui, nitidamente, o princípio

da proporcionalidade (70039551676). O Supremo Tribunal Federal, quando

se trata de gravação efetuada por um dos locutores da conversa, tem seguido

a seguinte posição:

CONSTITUCIONAL. PROCESSO CIVIL AGRAVO REGIMENTAL

EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO

POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. GRAVAÇÃO. CONVERSA

TELEFÔNICA FEITA POR UM DOS INTERLOCUTORES, SEM

CONHECIMENTO DO OUTRO. INEXISTÊNCIA DE CAUSA

LEGAL DE SIGILO OU DE RESERVA DE CONVERSAÇÃO.

LICITUDE DA PROVA. ART. 5º, XII e LVI, DA CONSTITUIÇÃO

FEDERAL. 1. A gravação de conversa telefônica feita por um dos

interlocutores, sem conhecimento do outro, quando ausente causa legal

de sigilo ou de reserva da conversação não é considerada prova ilícita.

Precedentes. 2. Agravo regimental improvido. (AI n. 578858, AgR, Relator(a):

Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma, julgado em 04/08/2009).6

No entanto, muito embora os Tribunais tenham relativizado algumas

questões quanto à produção probatória, nesses casos ainda é difi cultada, pois

6 – Em posição semelhante ver: Apelação-Crime n. 70020255006, 8ª Câmara Criminal, Tribunal de

Justiça do RS, Relator: Roque Miguel Fank, julgada em 12-12-07; e AI n. 666459, AgRg, Relator:

Min. Ricardo Lewandowski, 1ª Turma, julgado em 06-11-07.

283

Antigovernabilidade e corrupção na esfera municipal: a jurisprudência do TJRS envolvendo casos de repasse indevido de remuneração de assessores parlamentares

muitas vezes, conforme os relatos das decisões analisadas, o repasse indevido de

valores acaba ocorrendo em espécie e em locais mais reclusos.

Nos casos em que o autor conseguiu provar o fato constitutivo de seu direito,

o Tribunal se manifestou favoravelmente ao pedido utilizando como fundamento

para sua decisão as seguintes normativas:

• Improbidade administrativa (Lei n. 8.429/92):

Art. 1º = 70039551676

Art. 3º = 70039551676, 70022986921

Art. 9º = 70046160206, 70009264342

Art. 9º, I = 70046160206, 70010505154

Art. 11 = 70009264342, 70039551676, 70028990307, 70022986921,

70010505154

Art. 11, I = 70010505154, 70009264342

Art. 12 = 70028990307

Art. 12, I = 70046160206

Art. 12, II = 70010505154

Art. 12, III = 70010505154, 70009264342

Art. 12, parágrafo único = 70028990307

• Violação a princípios fundamentais de Direito Público:

Legalidade = 70009264342, 70010505154

Moralidade = 70009264342, 70039551676, 70028990307

Impessoalidade, honestidade, imparcialidade, lealdade à

instituição = 70039551676

Proporcionalidade e razoabilidade = 70046160206, 70010505154,

70028990307

Intimidade = 70022986921, 70022986863

• Violação à Constituição:

Art. 37, § 4º = 70046160206, 70039551676

Art. 37, § 6º = 70039551676

• Código Penal:

Art. 316 = 70044641462, 70005239504

Art. 71 = 70044641462

Art. 92, I, a e b = 70044641462

• Código Civil:

Art. 935 = 70044641462, 70022986921

• Código de Processo Civil:

Art. 333, II = 70044641462

284

Luiz Felipe Nunes e Ianaiê Simonelli da Silva

Uma vez que o conjunto probatório recolhido na instrução manifeste a

existência de um ato ilícito, tem-se decidido que:

1) A absolvição na esfera criminal, com fulcro no art. 386, VII (não existir

prova sufi ciente para a condenação), do CPC, não impede a responsabilidade por

ato de improbidade administrativa, em face do princípio da independência das

instâncias.

2) É cabível a aplicação da Lei de Improbidade para agentes políticos, pois

equiparam-se, nos termos do art. 3º, a agentes públicos.

3) A coerção para a entrega da remuneração de assessor pago pelos cofres

públicos demonstra o mau uso do dinheiro público, pois esse repasse não atende a

interesse público, mas tão somente a interesse particular.

4) Muito embora o repasse indevido possa ser utilizado para subcontratação

de outros funcionários “fantasmas”, confi gura-se ato irregular e fere princípios

fundamentais do Direito Público.

5) Viola princípios básicos da Administração Pública, tais como legalidade

do ato administrativo, impessoalidade, honestidade, imparcialidade, lealdade à

instituição, entre outros.

6) O ato de improbidade ofende também a moralidade administrativa,

sujeitando seu infrator às penas deste ato infracional.

7) Mesmo que não ocorra lesão ao patrimônio público, aplicam-se

as disposições da Lei de Improbidade, pois o repasse indevido é uma grave

irregularidade praticada no exercício da função pública.

8) O enriquecimento ilícito não é critério para aplicação da Lei

de Improbidade, tão somente a violação aos princípios básicos de Direito

Público.

9) Muito embora não haja vontade de prejudicar o Erário – dolo específi co

–, o dolo genérico basta para confi gurar a tipifi cação do art. 11 da Lei de

Improbidade.

10) Ocorrendo o repasse, suspendem-se os direitos políticos, bem como

proibição de contratar com o Poder Público.

11) A punição decorrente de ato ímprobo deve ser balizada pelos princípios

da razoabilidade e da proporcionalidade, sendo que a sanção deve ser determinada

com base na “extensão do dano causado”, bem como no “proveito patrimonial

obtido pelo agente”.

285

Antigovernabilidade e corrupção na esfera municipal: a jurisprudência do TJRS envolvendo casos de repasse indevido de remuneração de assessores parlamentares

4 ANTIGOVERNABILIDADE E CORRUPÇÃO NA ESFERA

MUNICIPAL: A JURISPRUDÊNCIA DO TJRS ENVOLVENDO CASOS

DE REPASSE INDEVIDO DE REMUNERAÇÃO DE ASSESSORES

PARLAMENTARES

Por meio da análise das decisões envolvendo repasse indevido de

remuneração de assessores parlamentares, percebeu-se que o Tribunal entendeu que

não houve prejuízo ao Erário, isso porque, independente dos repasses indevidos,

o serviço era prestado pelo assessor. No entanto, muito embora não tenha

ocorrido esse prejuízo, tal prática corresponde a um mau uso de dinheiro público,

não benefi ciando a Câmara Municipal, mas atendendo a interesse particular de

vereador (70028990307).

Os repasses analisados variavam de acordo com o caso concreto, chegando

a até 70% do salário percebido. Nesse caso, o Tribunal entendeu que “[...] não

se mostra crível que a servidora, por mera liberalidade, tenha consentido em

abrir mão de mais da metade de seus vencimentos, restando cerceada no direito

à remuneração a que fazia jus por força de lei, já que ocupante de cargo público”

(70044641462).

Em muitos dos casos analisados, na própria oitiva, os acusados não negavam

a existência desse repasse indevido de remuneração. No entanto buscavam explicar

o fato por meio de um suposto acordo entre vereador e assessor, bem como com

o partido político ao qual o vereador era fi liado (70028990307). “Então, por esse

contexto probatório resta evidente que o réu, como líder da bancada, não só sabia

mas comandava a nomeação dos cargos em comissão da bancada, pois essa era a

orientação do partido” (70005239504).

Em alguns casos o argumento do repasse era para cobrir despesas do

Gabinete, tais como materiais de escritório, transporte, dentre outros materiais que

a Câmara Municipal não fornecia, supostamente um ônus que não podia mais

suportar. Uma “caixinha” do gabinete. Posteriormente, na investigação criminal,

descobriu-se que era utilizado para planejamento de campanha do mandato do

vereador e para auxílio de quem precisasse, para “ajudar” (70028709574).

No caso que mais nos chamou a atenção de repasse indevido de remuneração,

todos os detentores de cargos em comissão do Município de Erechim, por meio de

ameaça implícita e às vezes explicita de exoneração imediata, foram obrigados a

286

Luiz Felipe Nunes e Ianaiê Simonelli da Silva

ter, em suas folhas de vencimentos, desconto, em percentual variável, em favor do

Partido Democrático Trabalhista, com a fi nalidade de arrecadar R$ 190 mil para

quitar dívidas oriundas do frustrado pleito municipal do ano 2000. Na investigação,

os funcionários, questionados acerca do desconto e das autorizações para tal,

mencionaram que estavam “cumprindo ordens” (70047882501).

Noutros casos, o argumento era de que os acusados não obrigavam ou

coagiam seus assessores a contratar ou dividir seus salários com terceiros, pois tais

práticas eram comuns nas Câmaras Municipais (70022986921).

Por meio da atuação do Tribunal, pode-se verifi car a obtenção de ganho

ilícito por parte dos acusados que, utilizando-se de sua superioridade hierárquica,

exerciam indevidamente sobre os assessores o poder que lhes era inerente, sendo

que estes viam-se obrigados a ceder a tais exigências, sob pena de amargar a

demissão (70044641462).

“O réu contestou asseverando que houve acordo entre a assessora e outros

funcionários para que os valores fossem divididos em face da possibilidade

da contratação pelo gabinete de apenas um assessor. Salientou que houve

a concordância por parte de Carolina em dividir os seus vencimentos”

(70010505154).

Nos casos judicializados, vislumbra-se que, muito embora os assessores

tenham se submetido a tais exigências, não concordaram com tal repasse.

Independente de ser praxe ou costume, o fato é que tal prática é ilegal, pois viola

uma série de regulamentos, e porque o servidor tem direito à integralidade de seu

salário (70005239504).

Em alguns casos, o repasse mostrou-se fonte para pagamento de assessores

“frios”, assessores que não foram legalmente nomeados para algum cargo na

Câmara Municipal: “Confi rma que antes de ser assessor ‘ofi cial’ recebia o dinheiro

do vereador” e “As testemunhas Edio e Paulo confi rmam a prática feita pelos

vereadores de utilizarem parte do dinheiro de um assessor para pagarem outros,

‘não ofi ciais’ ” (70005239504).

Aponta o Tribunal que a divisão dos vencimentos por si só já constitui

ato irregular, maior ainda é a irregularidade na contratação direta de outros

“assessores” em razão do risco de indenizações trabalhistas em decorrência desse

vínculo empregatício entre o “assessor” ilegalmente “contratado” e o Município,

por meio da Câmara de Vereadores: “[...] fato é que a autora e os ‘assessores frios’

287

Antigovernabilidade e corrupção na esfera municipal: a jurisprudência do TJRS envolvendo casos de repasse indevido de remuneração de assessores parlamentares

são pagos com os recursos públicos retirados do povo através dos tributos. Por

isso que o erário e o povo devem ser respeitados por todos, especialmente pelos

políticos” (70005239504).

Novamente, o que mostrou-se ser fonte de poder de coação em diversos

julgados para o repasse indevido foi o caso de os servidores terem sido nomeados

para assessores parlamentares de vereadores e prefeitos, sendo os cargos de livre

nomeação e exoneração, e da autoridade nomeante o poder de decisão.

Dito isso, passamos às considerações fi nais do trabalho.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por meio da pesquisa jurisprudencial acerca do tema proposto e no intuito

de responder ao questionamento que motivou o presente trabalho, verifi cou-se que

o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul tem entendido que o repasse

de remuneração de assessor parlamentar, uma vez comprovado, é ato ilícito e viola

uma série de prerrogativas legais, sendo resultado de ato ímprobo e de manifesto

desvio corruptivo na esfera municipal.

Os julgados mostraram a fonte do poder de coação das autoridades políticas

no tocante ao repasse indevido, a saber, o poder de nomeação e exoneração das

autoridades políticas para os cargos de livre nomeação e exoneração. Tais cargos,

além de serem utilizados como forma de barganha política, fomentam atos

corruptivos, clientelistas e patrimonialistas.

A esfera municipal revelou ser fonte de coalizões partidárias por meio da

colocação de aliados e indicados em cargos em comissão. Na maioria dos julgados,

o repasse indevido de remuneração de assessores parlamentares era utilizado com

o propósito de inclusão de “assessores fantasmas” em gabinetes de vereadores,

pessoas contratadas de forma não ofi cial e ilegal, mas que representam, devido

ao risco desse empreendimento, uma forma de prefeitos e vereadores negociarem,

com diversos interesses setoriais, concedendo cargos públicos a fi m de coalizar

interesses que os benefi ciem.

6 REFERÊNCIAS

ABRANCHES, Sérgio. Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional

brasileiro. Dados, 31 (31), 1988. Rio de Janeiro: IUPERJ, 1988.

288

Luiz Felipe Nunes e Ianaiê Simonelli da Silva

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Cível n. 70045646585, 4ª Câmara Cível, Relator: Eduardo Uhlein, julgada em

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BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação

Cível n. 70009264342, 18ª Câmara Cível, Relator: Cláudio Augusto Rosa Lopes

Nunes, julgada em 05-07-07. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br/site_php/

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BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação

Cível n. 596241836, 4ª Câmara Cível, Relator: José Maria Rosa Tesheiner,

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consulta/consulta_processo.php?nome_comarca=Tribunal+de+Justi%E7a

&versao=&versao_fonetica=1&tipo=1&id_comarca=700&num_processo_

mask=596241836&num_processo=596241836&codEmenta=334696&temIntTeor

=false>. Acesso em: 12 jul. 2016.

BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação

Cível n. 70048544290, 9ª Câmara Cível, Relatora: Iris Helena Medeiros Nogueira,

julgada em 18-07-12. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br/site_php/consulta/

download/exibe_documento_att.php?numero_processo=70048544290&ano=201

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289

Antigovernabilidade e corrupção na esfera municipal: a jurisprudência do TJRS envolvendo casos de repasse indevido de remuneração de assessores parlamentares

BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação

Cível n. 70039551676, 21ª Câmara Cível, Relator: Arminio José Abreu Lima da

Rosa, julgada em 15-12-10. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br/site_php/

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BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação-

-Crime n. 70020255006, 8ª Câmara Criminal, Relator: Roque Miguel Fank,

julgada em 12-12-07. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br/site_php/consulta/

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-Crime n. 70047882501, 4ª Câmara Criminal, Relator: Gaspar Marques Batista,

julgada em 02-08-12. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br/site_php/consulta/

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2&codigo=1386800>. Acesso em: 12 jul. 2016.

BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação

Cível n. 70044641462, 6ª Câmara Cível, Relator: Sylvio José Costa da Silva Tavares,

julgada em 21-05-15. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br/site_php/consulta/

download/exibe_documento_att.php?numero_processo=70044641462&ano=201

5&codigo=769636>. Acesso em: 12 jul. 2016.

BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação

Cível n. 70005239504, 9ª Câmara Cível, Relator: Adão Sérgio do Nascimento

Cassiano, julgada em 17-12-03. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br/site_php/

consulta/download/exibe_documento_att.php?numero_processo=70005239504

&ano=2003&codigo=487152>. Acesso em: 12 jul. 2016.

BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação

Cível n. 70028990307, 21ª Câmara Cível, Relator: Marco Aurélio Heinz, julgada

em 1º-07-09. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br/site_php/consulta/

download/exibe_documento_att.php?numero_processo=70028990307&ano=200

9&codigo=1012608>. Acesso em: 12 jul. 2016.

BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação

Cível n. 70022986921, 4ª Câmara Cível, Relator: João Carlos Branco Cardoso,

julgada em 17-12-08. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br/site_php/consulta/

download/exibe_documento_att.php?numero_processo=70022986921&ano=200

8&codigo=1902754>. Acesso em: 12 jul. 2016.

290

Luiz Felipe Nunes e Ianaiê Simonelli da Silva

BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação

Cível n. 70010505154, 3ª Câmara Cível, Relator: Paulo de Tarso Vieira Sanseverino,

julgada em 24-03-05. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br/site_php/consulta/

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SCHIER, Paulo Ricardo. Linhas gerais do presidencialismo de coalizão no Brasil e

seu vínculo com a questão da corrupção. O texto é a transcrição de palestra proferida no

IV Congresso Brasil – Polônia de Direito Constitucional, realizado em Wroclaw –

Polônia, entre os dias 13 e 15 de outubro de 2014. Manifesta-se, aqui, a Fundação

CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, pelo

apoio fi nanceiro concedido para a participação no evento.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. AI n. 578858 AgRg, Relatora:

Mina. Ellen Gracie, 2ª Turma, julgado em 04-08-09. Disponível em: <http://www.

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SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. AI n. 666459 AgRg, Relator:

Min. Ricardo Lewandowski, 1ª Turma, julgado em 06-11-07. Disponível em:

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É POSSÍVEL A UTILIZAÇÃO DO RITO PROCESSUAL

DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA PARA APLICAR A LEI DE

IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA? UM ESTUDO DA

POSTURA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE

DO SUL COMPARADO AO STJ

Juliana Machado Fraga1

Paulo José Dhiel2

Resumo: O presente trabalho tem como escopo abordar a questão da

aplicabilidade da Lei de Improbidade Administrativa, Lei n. 8.429, pelo rito da

Ação Civil Pública, a qual está devidamente prevista no art. 129, III, da Constituição

Federal e regulamentada na Lei n. 7.347/85. Abordou-se a presente temática a

partir de uma análise de decisões do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande

do Sul em comparativo com o Superior Tribunal de Justiça, em consonância

com a legislação pátria, com o objetivo de verifi car como estes Tribunais vêm

1 – Mestra em Direitos Sociais e Políticas Públicas da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC.

Mestra em Direitos Humanos pela Universidade do Minho. Pós-Graduada em Direito e Processo

do Trabalho e Direito Previdenciário. Integrante do grupo de pesquisa internacional “Estado,

Administração Pública e Sociedade: Patologias Corruptivas”, coordenado pelo Prof. Dr. Rogério Gesta

Leal. Integrante do grupo de pesquisa “Constitucionalismo Contemporâneo” coordenado pelo Prof.

Pós-Doutor Clovis Gorczevski. Advogada. E-mail: [email protected].

2 – Mestrando em Direitos Sociais e Políticas Públicas pela Universidade de Santa Cruz do Sul –

UNISC. Integrante do grupo de pesquisa internacional “Estado, Administração Pública e Sociedade:

Patologias Corruptivas”, coordenado pelo Prof. Dr. Rogério Gesta Leal. Integrante do grupo de

pesquisa “Estado, Administração Pública e Sociedade” coordenado pela Profa. Dra. Denise Bittencourt

Friedrich. Advogado. E-mail: [email protected].

292

Juliana Machado Fraga e Paulo José Dhiel

se posicionando quanto às questões referentes à possibilidade e embasamento

da Ação Civil Pública por Improbidade Administrativa e como esta ação vem

se delineando como meio de repressão aos atos corruptivos. Para a realização

deste trabalho, utilizou-se o método dedutivo de abordagem de pesquisas e, como

método auxiliar, valeu-se do método histórico. Utilizou-se, também, a pesquisa

bibliográfi ca, visando a realizar o desenvolvimento do tema proposto a partir de

referencial teórico.

Palavras-chave: Ação civil pública. Corrupção. Improbidade administrativa.

Tribunal de Justiça. Superior Tribunal de Justiça.

Abstract: This work has the scope to address the issue of the applicability of the

Administrative Misconduct Law, Law No 8429, the rite of Public Civil Action, which is

properly provided for in Article 129, III of the Federal Constitution and regulated by Law

7.347/85 . Addressed to this theme from an analysis of decisions of the State Court of

Rio Grande do Sul in comparison with the Superior Court of Justice, in accordance

with Brazilian legislation, in order to see how these courts come to positioning on issues

concerning the possibility and basis of public civil action by Administrative Misconduct and

how this action is emerging as a means of repression of corruptive acts. For this work we

used the deductive method research approach and as an auxiliary method took advantage

of the historical method. It used also the literature, aiming carry out the development of the

proposed topic from theoretical.

Keywords: Public civil action. Corruption. Administrative dishonesty. Court of

justice. Superior Justice Tribunal.

INTRODUÇÃO

É sabido que a Ação Civil Pública objetiva resguardar os direitos

protegidos pela Constituição Federal brasileira, podendo ter por fundamento a

inconstitucionalidade de lei, ato normativo ou ato lesivo à coletividade. Via de

regra, os legitimados para a propositura da Ação Civil Pública são: Ministério

Público, pessoas jurídicas de direito público interno e entidades paraestatais.

A Ação Civil Pública demonstra-se como instrumento processual para

o exercício do controle popular sobre os atos dos Poderes Públicos. Pode ser

293

É possível a utilização do rito processual da ação civil pública para aplicar a lei de improbidade administrativa? Um estudo da postura do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul comparado ao STJ

defi nida como meio de repressão aos danos à coletividade, sejam direitos de ordem

ambiental, econômica, histórica, turística ou interesses difusos. Por meio da Ação

Civil Pública pode-se exigir a reparação do dano causado ao patrimônio público

por ato de improbidade, assim como a aplicação das sanções especificadas no art.

37 da Constituição Federal de 1988, quando decorrentes de conduta irregular de

agente público.

Por sua vez, a Lei de Improbidade Administrativa, Lei n. 8.429, de 02-06-92,

veio por complementar o que foi defi nido pelo poder constituinte, estabelecendo as

sanções aplicáveis aos agentes públicos, nos termos do art. 37, § 4º, da Constituição

Federal, para os casos de enriquecimento ilícito por intermédio da prática de ato de

improbidade administrativa.

Nesse sentido, evidencia-se que estes dois institutos demonstram-se como

mecanismos de controle popular das ações do Poder Público ao que tange à

proteção de bens públicos, Erário, moralidade e probidade.

Dessa forma, imprescindível que se verifi que como essas ferramentas podem

ser utilizadas conjuntamente para garantir interesses coletivos e difusos, bem como

se realize uma análise contundente da jurisprudência dominante acerca do tema.

Assim, pesquisou-se no Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

e no Superior Tribunal de Justiça com o verbete “ação civil pública lei improbidade”

(sem aspas), acórdãos entre as datas de 01-01-15 a 31-12-15, a fi m de verifi car como

tem sido decidida tal matéria no Superior Tribunal de Justiça. O presente trabalho

é, em suma, uma verifi cação de como tem sido defi nido o tema em apreço nos

nossos tribunais.

2 A LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA E SUA

APLICABILIDADE NA AÇÃO CIVIL PÚBLICA

A conexão entre os atos de improbidade administrativa e a sua aplicabilidade

na Ação Civil Pública é a Constituição de 1988 e está intimamente ligada à

fundamentação de interesse público, do que decorrem questões centrais como

os princípios da Administração Pública: legalidade, impessoalidade, moralidade,

publicidade e efi ciência.

A expressão improbidade administrativa no Direito Brasileiro teve sua inicial

menção na Constituição Cidadã de 1988, notadamente em seus arts. 15, V, e 37,

XXI, § 4º. Contudo, a legislação infraconstitucional decorrente (Lei n. 8.429/92)

294

Juliana Machado Fraga e Paulo José Dhiel

é quem veio a regulamentá-la. O Código Penal Brasileiro também faz referência

(art. 29) ao tema no momento em que estende a responsabilidade a qualquer pessoa

que venha a induzir, concorrer para a consumação do ato de improbidade ou dele

se favorecer de qualquer maneira direta ou indiretamente, mesmo não sendo agente

da Administração Pública.

Não obstante, é o art. 37, § 4º, da CF, ao dispor sobre as sanções políticas,

civis e administrativas aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento

ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na Administração

Pública direta, indireta ou fundacional, que inaugura e impulsiona a legislação

tendo como desígnio a probidade no trato com a coisa pública.

A menção ao ato de improbidade administrativa remete invariavelmente à

malversação de recurso público, à imoralidade e à ilegalidade. Consoante isso tem

sido verdadeiro sinônimo para corrupção e desonestidade por quem está investido

em cargo ou função pública ou por quem com ele mantém relações, seja por ação

ou por contexto omissivo de falta de zelo (FERRACINI, 2001). Tem, portanto,

a ver com deslealdade no desempenho da função pública com transgressão da

legislação e dos princípios que norteiam a Administração Pública.

A defi nição dos atos de improbidade administrativa tem sido um desafi o

atual consoante a sua comparação com o Direito Penal pelos efeitos das suas

decisões. A legislação regulamentadora aponta uma série de situações a ensejarem

a improbidade, mas resiste a uma tipifi cação encapsulada como ocorre no Direito

Penal. Reside neste aspecto o maior debate tanto nos tribunais como na própria

doutrina. De igual sorte, há uma dissimetria sobre a aplicabilidade da legislação

sobre improbidade administrativa com a dos crimes de responsabilidade (LEAL,

2013). Existem verdadeiras antinomias e incompatibilidades na cominação

de sanções entre a Lei de Crimes de Responsabilidade e a Lei de Improbidade

Administrativa, ainda mais quando muito se discute a que nível de agentes nas

funções públicas uma ou outra é aplicável.

Os princípios norteadores da Administração Pública, já citados, têm na

moralidade e probidade uma relação intrínseca e de relevância na análise dos atos

ensejadores de punição no âmbito da Lei de Improbidade Administrativa. Na

doutrina há alguma distinção identifi cando a moralidade como gênero e a probidade

com uma espécie desta. Nesta linha, os atos atentatórios à probidade seriam ao

mesmo tempo atentatórios à moralidade pública, conforme expõe Ferracini (2001).

Porém, Di Pietro (2002) defende ser a moralidade e a probidade expressões

que signifi cam a mesma coisa, haja vista que se relacionam com a ideia de

295

É possível a utilização do rito processual da ação civil pública para aplicar a lei de improbidade administrativa? Um estudo da postura do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul comparado ao STJ

honestidade na Administração Pública. A probidade ou moralidade administrativa

signifi cam mais que a mera legalidade formal da atuação administrativa, devem

ser observados, também, os princípios éticos de lealdade, de boa-fé e de regras que

assegurem a boa administração pública.

Já segundo Ferracini (2001), a probidade seria um mínimo da moral contida

nessa, e não geral como pretende a minoria dos doutrinadores, esclarecendo-se que

o próprio direito é parte da moral.

O fato de o art. 37 da CF/88 prever expressamente a moralidade como

um dos princípios da atividade estatal evidencia uma preocupação com a ética na

administração pública de modo mais amplo do que até então, quando era restrita

aos agentes políticos. A intenção do legislador era de atender aos demais princípios,

como o da efi ciência, mas com clara preocupação de combater a corrupção e

instrumentalizar meios de evitar a impunidade e o enriquecimento ilícito (LEAL,

2013). É isso que se pode depreender do § 4º do art. 37: “os atos de improbidade

administrativa importarão a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens

e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da

ação penal cabível”.

Incumbiu à Lei n. 8.429/92 regulamentar as disposições constitucionais e

ela identifi ca três tipos de atos de improbidade administrativa: atos que representam

enriquecimento ilícito; atos que causam prejuízo ao Erário e atos de improbidade

administrativa que atentam contra os princípios da Administração Pública.

A partir disso fi ca clara a conexão direta entre probidade administrativa e

moralidade administrativa. Assim, temos que toda conduta que atente contra a

moralidade administrativa enseja ser, também, ato confi gurador de improbidade.

Já o inverso nem sempre confi rma a mesma lógica. Nem todo ato de improbidade

administrativa atenta contra a moralidade administrativa. Por essa ótica, a

probidade administrativa fi ca identifi cada como um mínimo da moral contida

nessa. Assim, a improbidade revela a qualidade do homem que não procede bem,

por não ser honesto, agindo indignamente, sem caráter, atuando com indecência,

consoante descreve Silva (2003).

Independente desta discussão quanto ao gênero ou espécie, a etimologia

da palavra improbidade nos ajuda a entender este que é um dos maiores males

que afetam a Administração Pública brasileira. Improbidade deriva do latim

improbitas, que signifi ca má qualidade, malícia. No caso da Administração Pública,

rotineiramente representa sinônimo de desonestidade e corrupção (GONZÁLEZ-

PÉREZ, 2000).

296

Juliana Machado Fraga e Paulo José Dhiel

Tendo em mente que um dos princípios da administração pública é a

legalidade, temos que os atos dos agentes públicos devem se pautar a partir dessa

premissa para atender, também, às demais, como moralidade e probidade. Essa

é uma das razões de os atos ilícitos também serem considerados uma infração

ensejadores de punição de seus autores. Não basta que os atos sejam honestos e

morais, terão que atender aos princípios da legalidade (LEAL, 2013). De igual

sorte, ainda que tenham respaldo legal, esse aspecto por si só não impede eventual

responsabilização se foram imorais e desonestos.

Previstos na CF/88, mas regulamentados pela Lei Federal n. 8.429/92, os

atos de improbidade são conceituados e agrupados em três categorias: a) os do

art. 9º, que versam sobre enriquecimento ilícito do agente público causando ou não

prejuízo econômico ao Erário; b) os do art. 10, que são os concretamente lesivos ao

Erário e c) os elencados no art. 11, que afrontam os princípios da Administração

Pública e podem ou não causar prejuízo ao Erário ou enriquecimento ilícito.

Em que pese que a descrição dos atos identifi cados nos arts. 9º e 10 seja mais

precisa, o termo aberto dos atos de improbidade administrativa descritos no art. 11 tem

sido tema de grande discussão acadêmica e doutrinária, não menos na jurisprudência.

Um dos meios de controle da atividade administrativa recai sobre a atuação

do Ministério Público, entidade constitucionalmente criada (art. 127 e seguintes

da CF/88) para tutelar os valores e interesses da sociedade. Precisamente nesse

contexto que ocorre a relação com a Ação Civil Pública. Trata-se de instrumento

disponível ao Ministério Público (ainda que não exclusivamente a este) justamente

para atuar na defesa dos interesses coletivos e difusos e buscar a sanção daqueles

que lesam o patrimônio público (MEIRELLES, 2008).

O instrumento da Ação Civil Pública surge para suprir uma lacuna até

então existente, eis que não há, a rigor, um controle ministerial direto sobre

a ação administrativa por parte do Ministério Público, considerando que a sua

incumbência é demandar no Poder Judiciário. É a partir da Ação Civil Pública

que o Ministério Público participa do controle jurisdicional, como guardião

constitucional da probidade, conforme elucida Ferracini (2001).

Nessa senda, a doutrina tem se posicionado no sentido de que incumbe ao

Ministério Público o dever de promover a Ação Civil Pública na defesa de todo e

qualquer direito difuso ou coletivo. Considera ser da essência do Ministério Público

zelar pela res publica e a própria Lei n. 8.429 identifi ca o Ministério Público como

um dos legitimados para a propositura da Ação Civil Pública, englobando todo ato

potencial a caracterizar ato atentatório contra a probidade administrativa.

297

É possível a utilização do rito processual da ação civil pública para aplicar a lei de improbidade administrativa? Um estudo da postura do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul comparado ao STJ

Reside aqui uma questão importante que não está totalmente pacifi cada

na doutrina. A Lei de Improbidade Administrativa não exige expressamente a

anterior instauração de inquérito civil como requisito para propor uma ação de

improbidade. Ainda assim, tem-se no inquérito civil um meio efi caz, a partir dos

poderes requisitórios para a apuração e colhida de elementos comprobatórios da

ocorrência de eventual ilícito, assim como a identifi cação quanto à sua autoria.

A adequação da Ação Civil Pública como meio para responsabilizar agentes

por atos de improbidade administrativa é o tema proposto nesta discussão. Nesse

sentido, o Ministério Público tem a incumbência de fi scalizar a legalidade da

conduta administrativa e sua razoabilidade, isto é, adequação entre os meios e

fi ns, conforme aduz Meirelles (2008). Contudo, fi ca limitado quanto à análise de

mérito dos atos administrativos, notadamente na dimensão de oportunidade e

conveniência, estes aspectos intrínsecos da discricionariedade do administrador.

E a Ação Civil Pública pode servir para responsabilizar por ato de

improbidade? A Ação Civil Pública  é o instrumento processual, previsto na

Constituição Federal brasileira e em leis infraconstitucionais, de que pode se

valer o Ministério Público. De igual sorte, há outras entidades legitimadas para a

defesa de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos e, portanto, para a

propositura da mesma ação.

Muito embora não possa ser chamada de ação constitucional, a Ação Civil

Pública tem um status constitucional, questão pacifi cada na doutrina, vez que a

Constituição atribui ao Ministério Público tal função institucional (art. 129, II e III,

da CF/88), assim como a outras entidades, notadamente associações civis (art. 129,

§ 1º, da Constituição Federal). Assim, não há exclusividade do Ministério Público em

propor a Ação Civil Pública, mas legitimidade concorrente (Lei n. 7.347/85, art. 5º).

É a Lei n. 7.347/85 que disciplina a Ação Civil Pública incutindo-lhe o propósito

de prevenir e reprimir danos ao meio ambiente, ao consumidor, ao patrimônio público,

aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico e turístico, por infração da

ordem econômica e da economia popular, ou à ordem urbanística. Seu objeto pode

ser tanto a condenação em dinheiro ou o cumprimento de obrigação de fazer ou

não fazer. Cabe aqui lembrar a disciplina constitucional sobre o Ministério Público:

“O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do

Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos

interesses sociais e individuais indisponíveis” (art. 127, da CF/88).

Tendo como um dos aspectos centrais servir como um importante canal

de acesso à jurisdição, a Ação Civil Pública tem no Ministério Público um ator

298

Juliana Machado Fraga e Paulo José Dhiel

importante. Com certeza é o mais atuante na sua propositura e atuação, consoante

evidencia-se da análise de jurisprudências do Tribunal de Justiça do Estado do Rio

Grande do Sul e do Superior Tribunal de Justiça. Assim, caso não seja parte direta

no processo, terá necessária intervenção na condição de fi scal da lei.

Aliás, esta atuação está plenamente respaldada pela Constituição Federal,

como se depreende do art. 129, da CF/88:

Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:

I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;

[...]

III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção

do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses

difusos e coletivos.

A doutrina, assim como a jurisprudência, tem se posicionado no sentido de que a

Ação Civil Pública não deve limitar-se a buscar o ressarcimento de danos ao Erário público.

Para Meirelles (2008), citando Luís Roberto Barroso, a Ação Civil Pública

possui alternatividade. Isto não impede a cumulação de pedidos numa mesma ação

como de indenização pecuniária ou de fazer ou não fazer. Além disso, os fi ns aos

quais se destina a Ação Civil Pública constam em outras normas. Exemplo é o

CDC – Código de Defesa do Consumidor – que a indica como meio para buscar a

invalidação de cláusulas abusivas (Lei n. 8.078/90, art. 51, § 4°). Este aspecto deixa

claro que além de sua premissa preventiva e repressiva, não deixa de possuir um

caráter constitutivo, pois cria situação jurídica nova.

Nesse diapasão, superadas as premissas iniciais deste tema, passar-se-á à análise

de como o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul tem decidido acerca

do cabimento da Ação Civil Pública para os casos de Improbidade Administrativa.

3 O POSICIONAMENTO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO

DO RIO GRANDE DO SUL ACERCA DA APLICABILIDADE DA LEI DE

IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA

O tema da Ação Civil Pública por Improbidade Administrativa encontra-

-se pacifi cado no Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul no que

tange ao seu cabimento. Na pesquisa realizada para a feitura do presente trabalho

encontrou-se 163 acórdãos no período de 01-01-2015 a 31-12-2015 por meio da

299

É possível a utilização do rito processual da ação civil pública para aplicar a lei de improbidade administrativa? Um estudo da postura do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul comparado ao STJ

busca pelo vocábulo “ação civil pública lei improbidade”. Estas decisões em 100%

foram pelo cabimento do rito da Ação Civil Pública para casos de Improbidade

Administrativa.

Entretanto, somente algumas destas decisões se prestaram a uma análise

criteriosa do cabimento do rito da Ação Civil Pública. Somente cerca de 8% dos

acórdãos analisados especifi caram a razão do cabimento da Ação de Improbidade

Administrativa pelo rito da Ação Civil Pública, sendo que algumas apenas entraram

no cerne desta questão quando suscitadas questões diversas como, por exemplo,

arejada por uma das partes a possibilidade de ingresso de Ação Popular e não da

Ação Civil Pública3 ou quando questionada a legitimidade da Defensoria Pública

na propositura da Ação Civil Pública4.

Pode-se verifi car pelo gráfi co que segue que as decisões deste tipo de ação, em

modo geral, não têm o condão de elucidar o tema da Improbidade Administrativa, pois

entende que há previsão expressa quanto ao cabimento da Ação Civil Pública na Lei

n. 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública) quando menciona em seu art. 1º que cabe a

esta demanda a proteção dos direitos coletivos e difusos, bem como a responsabilização

por infrações de ordem econômica e por lesão ao patrimônio público e social.

Ainda, apega-se à Constituição Federal em seu art. 37, § 4º, o qual menciona

a possibilidade de sanções de cunho cível e administrativo sem prejuízo da ordem

penal. Assim, refutando qualquer alegação de inviabilidade da Ação Civil Pública

por coisa julgada em outra esfera.

Nesse tocante, o gráfi co demonstra que as decisões do Tribunal de Justiça do

Estado do Rio Grande do Sul muito pouco servem como meio de elucidar acerca

do tema da Improbidade Administrativa, pois, embora considere o cabimento

ou não da demanda e julgue o caso concreto, pouco discute a possível utilização

de ritos diversos para essas ações e quando seria possível a utilização desses

mecanismos repressivos de atos ímprobos. Tem-se que esta atitude seria de grande

valia para os operadores do direito, sejam eles integrantes do Ministério Público,

Defensoria Pública ou juízes de 1º Grau, a fi m de obterem mecanismos de combate

à corrupção com uma possível interpretação e maior compreensão sobre como o

Tribunal vem decidindo questões que abordem este assunto.

3 – Trata-se do julgado n. 70065844581 que discute o cabimento da Ação Popular e não da Ação Civil

Pública para casos de improbidade administrativa.

4 – Caso dos julgados n. 70067061267 e 70065077406, nos quais se discute a possibilidade de ingresso

da Ação Civil Pública pela Defensoria Pública.

300

Juliana Machado Fraga e Paulo José Dhiel

Análise das Decisões – Ação Civil Pública por Improbidade

Administrativa TJRS

Pode-se perceber que, diante dos julgados do Tribunal de Justiça do Estado

do Rio Grande do Sul, a Ação C ivil Pública é de fato o mecanismo utilizado para

a proteção do patrimônio público, dos princípios constitucionais da Administração

Pública, e, ainda, como método de repressão aos atos ímprobos, lesivos, imorais ou

ilegais, conforme previsão do art. 12 da Lei n. 8.429/92 e art. 3º da Lei n. 7.347/85.

Dos dados analisados somente 8% das decisões enfrentam o cabimento

da Improbidade Administrativa por Ação Civil Pública sem suscitar questões

diversas do processo. Esse percentual é muito baixo para que se possa analisar

criteriosamente as possibilidades de enfrentamento da corrupção por intermédio

da Lei de Improbidade Administrativa, Lei n. 8.429/92.

Nesse sentido, Di Pietro (2013, p. 880) aduz que:

[...] constitui pressuposto da ação civil pública o dano ou a ameaça de

dano a interesse difuso ou coletivo abrangidos por essa expressão o dano

ao patrimônio público e social, entendida a expressão no seu sentido

mais amplo, de modo a abranger o dano material e o dano moral. Com

a expressão direito difuso ou coletivo, constante no artigo 129, III da

Constituição, foram abrangidos interesses públicos concernentes a grupos

indeterminados de pessoas (interesse difuso) ou toda sociedade (interesse

301

É possível a utilização do rito processual da ação civil pública para aplicar a lei de improbidade administrativa? Um estudo da postura do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul comparado ao STJ

geral); a expressão interesse coletivo não está empregada, aí, em sentido

restrito, como ocorre com o mandado de segurança coletivo, mas em

sentido amplo, como sinônimo de interesse público ou geral.

Moraes (2007) leciona também que o mecanismo para repressão dos atos

ímprobos e todo e qualquer ato lesivo, ilegal ou imoral é de fato a Ação Civil

Pública. Contudo, a caracterização do ato de improbidade é fundamental para a

Ação Civil Pública por Improbidade Administrativa, ou seja, não cabe meramente

a demonstração da ilegalidade, e sim a comprovação do dolo e a tentativa de iludir

a boa-fé, a fi m de obter proveito ilegítimo para si ou para terceiro.

Improbidade Administrativa requesta como elemento subjetivo de sua

confi guração a voluntariedade do agente público, pois que na conduta livre e

voluntária concebeu a realização de um plano eticamente reprovável preordenada

à concessão de vantagem pessoal ou de terceiro em detrimento da Administração

Pública, conforme elucida Costa (2005).

Assim, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul tem decidido

de acordo com a doutrina majoritária acerca da Improbidade Administrativa e da

necessidade de comprovação da presença de dolo, como colaciona-se a seguir a

ementa do acórdão n. 70063852149.

Ementa: AGRAVO. AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO

PÚBLICO NÃO ESPECIFICADO. DIREITO ADMINISTRATIVO.

AÇÃO CIVIL PÚBLICA. RECEBIMENTO DA AÇÃO. REQUISITOS

CONFIGURADOS. 1. A ação proposta preenche todos os requisitos

exigidos pelos artigos 295 do CPC, tendo sido relatado todos os fatos e a

participação de cada réu nos alegados atos ímprobos, estando devidamente

fundamentada a peça. 2. A exordial foi devidamente instruída com

documentos que demonstram os indícios acerca da materialidade e autoria

dos fatos, por intermédio do qual se caracteriza o ato ímprobo, cumprindo

a exigência do art. 17, §§6º e 8º da Lei nº 8.429/92. Precedente deste

Tribunal. 3. O Ministério Público é parte legítima para a propositura da

ação civil pública, cuja competência lhe foi atribuída pela art. 129, §1º

da Constituição Federal, artigo 5º da Lei nº 7.347/85 e art. 17 da Lei

nº 8.429/92. 4. A ação civil pública é o meio adequado para recuperação

dos valores indevidamente apropriados pelos réus, pois visa a proteção

dos interesses difusos e coletivos, do patrimônio público e social. 5.

302

Juliana Machado Fraga e Paulo José Dhiel

Os argumentos trazidos no recurso não se mostram razoáveis para reformar

a decisão monocrática. NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO.

(Agravo Nº 70063852149, Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do

RS, Relator: Sergio Luiz Grassi Beck, Julgado em 15/04/2015)

Pode-se observar no julgado supra que sendo a Ação Civil Pública o instrumento

adequado para proteção dos direitos coletivos e difusos, incluindo a matéria de

Improbidade Administrativa cabendo ao réu a comprovação de não enquadramento

dos atos ímprobos, sendo esta por meio da descaracterização inequívoca da intenção

do agente se desviar dos princípios basilares da Administração Pública, não bastando

mera conduta irregular ou até mesmo ilegal para justifi car a aplicação das sanções

reservadas na LIA (Lei de Improbidade Administrativa).

Cumpre destacar, ainda, que inúmeras decisões alertam para o in dubio pro

societate5, ou seja, o dever de prosseguimento da demanda enquanto não houver certeza

inequívoca da não caracterização do ato ímprobo. Assim, o objetivo maior desta ação

é garantir o bem público e proteger a sociedade da corrupção e da improbidade.

Logo, evidencia-se que o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

tem decidido as questões relacionadas à Improbidade Administrativa com lucidez

e apreço à legislação pátria. Embora haja ausência de explanação hermenêutica em

seus julgados, demonstrando de forma contundente o cabimento do mecanismo

da Ação Civil Pública para conter atos de Improbidade Administrativa, pode-

-se perceber que as decisões demonstram alinhamento com o cerne da Lei de

Improbidade, tal sendo a punição daqueles que de forma comprovada obtiveram-

-se de cargos públicos para violar e lesar o patrimônio coletivo, cabendo a esses

sanções mais duras do que as de mera conduta ilegal.

Dessa forma, passará a analisar a aplicabilidade e habilidade da norma no

Superior Tribunal de Justiça comparando suas decisões com as do Tribunal de

Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.

4 COMPARATIVO DA APLICABILIDADE DA LEI DE

IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA QUANDO DA PROPOSITURA

DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA NO TRIBUNAL DO ESTADO DO

RIO GRANDE DO SUL AO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

O propósito do presente trabalho é analisar a aplicabilidade da Ação Civil

Pública nas ações por atos de Improbidade Administrativa e traçar um comparativo

5 – A exemplo do julgado n. 70067243550.

303

É possível a utilização do rito processual da ação civil pública para aplicar a lei de improbidade administrativa? Um estudo da postura do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul comparado ao STJ

a respeito desse ponto nas decisões do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul –

TJRS com as decisões do Superior Tribunal de Justiça – STJ.

Em que pese a análise sobre a fundamentação nas suas decisões, incumbe

aqui registrar alguns dados para melhor elucidação acerca do volume de ações

versando sobre o tema.

A pesquisa foi realizada no site do STJ delimitando a abrangência em

“acórdãos” ao longo do ano 2015 com as seguintes palavras: “ação civil pública lei

improbidade”. O retorno da pesquisa resultou em 192 acórdãos, dos quais apenas

6% são oriundos do TJRS. Levando-se em conta o número de ações apreciadas no

TJRS em 2015, o número de demandas oriundas do Tribunal gaúcho e apreciadas

em 2015 no STJ é bastante reduzido. Todavia, cabe aqui a ressalva de que não se

está analisando as mesmas demandas em ambos os Tribunais. Por óbvio, apenas

como exemplo, uma demanda julgada em dezembro de 2015 no TJRS difi cilmente

poderia ter nova apreciação no STJ ainda no mesmo ano.

Decisões do STJ – Ano 2015

Diante dessas ponderações, o recorte no presente artigo será feito na análise dos Recursos Especiais suscitados para apreciação do Superior Tribunal de Justiça. Dos 192 acórdãos publicados em 2015 pelo STJ envolvendo o tema “ação civil pública lei

304

Juliana Machado Fraga e Paulo José Dhiel

improbidade”, 51 são de Recursos Especiais, representando 26,56%, conforme tabela abaixo. Ainda no aspecto estatístico, o que se denota é certo “equilíbrio” entre os REsps providos e não providos.

Já em relação às demandas oriundas do TJRS, apenas quatro são acórdãos

de Recursos Especiais relacionados especifi camente à Ação Civil Pública e

Improbidade Administrativa. Estes serão objeto de uma análise direta para

identifi car o posicionamento do STJ em relação à aplicabilidade da Ação Civil

Pública como meio de responsabilização para atos de Improbidade Administrativa.

Dos quatro Recursos Especiais julgados em 2015 e que tiveram como origem

o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, três6 têm relação direta com o tema da

Ação Civil Pública e Improbidade Administrativa. Contudo, nenhum deles ataca

diretamente o tema do cabimento da Ação Civil Pública para responsabilidade em

casos de Improbidade Administrativa.

Já um dos Recursos Especiais versa sobre matéria processual civil. A sua

inclusão no retorno da pesquisa jurisprudencial no STJ deu-se apenas por menção

a precedentes similares, no REsp n. 1257058, no sentido de que

[...] isso não impede que, a partir da sua realização, haja pertinente

utilização como prova emprestada em Ações de Improbidade que

6 – REsp n. 1569324/RS, REsp n. 1380926/RS e REsp n. 1171503/RS.

305

É possível a utilização do rito processual da ação civil pública para aplicar a lei de improbidade administrativa? Um estudo da postura do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul comparado ao STJ

envolvem os mesmos fatos, assegurado o direito à ampla defesa e ao

contraditório7.

A análise deste recorte feito na jurisprudência do Superior Tribunal de

Justiça permite identifi car que resta superada qualquer discussão quanto ao

cabimento da Ação Civil Pública em questões que envolvam atos de Improbidade

Administrativa. Isso se evidencia tanto pela ausência de questionamento pelas

partes quanto num debate específi co nos votos dos ministros nos mencionados

Recursos Especiais. Além disso, superada qualquer discussão quanto ao cabimento

da Ação Civil Pública em ações de Improbidade Administrativa pelo próprio

regular conhecimento e apreciação dos Recursos Especiais pelo STJ.

Nesse sentido, pode-se perceber, pelas pesquisas realizadas para feitura deste

trabalho, que ambos os Tribunais, tanto o Superior Tribunal de Justiça quanto o Tribunal

de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, entendem pelo cabimento da Ação Civil

Pública como instrumento de defesa em face dos atos de Improbidade Administrativa,

motivo pelo qual há total recebimento dessas ações perante os Tribunais.

Pode-se evidenciar que o Superior Tribunal de Justiça e o Tribunal do

Estado do Rio Grande do Sul demonstram afi nidade em suas decisões, pois

expõem o recebimento destas demandas de Ações Civis Públicas por Improbidade

Administrativa, ainda que se limitem a pouca fundamentação e explanação quanto

à motivação do recebimento e cabimento desta. De todo modo, importa salientar

que estes Tribunais vêm servindo seu propósito quanto à aplicabilidade da norma

Constitucional e infraconstitucional, ao passo que em seus julgados aplicam a

proteção dos direitos difusos da coletividade e em apreço a probidade econômica

no resguardo do princípio do in dubio pro societate, ou seja, na dúvida protege-se a

sociedade frente aos indícios de Improbidade Administrativa.

Nesse diapasão, são de grande valia os julgados abordados neste trabalho,

pois demonstram o poder de controle social e dos mecanismos de defesa do

patrimônio público na defesa dos direitos da coletividade e, principalmente,

a forma coerente que nossos Tribunais têm abordado o assunto de tamanha

complexidade, que é a Improbidade Administrativa, com ponderação, embora

haja a relevância de proteger o bem público sem, no entanto, deixar de garantir os

direitos constitucionais do réu.

7 – Trata-se do REsp n. 1257058/RS em que se dicute a licitude de dados obtidos em interceptações

telefônicas e escutas ambientais em ação de execução fi scal.

306

Juliana Machado Fraga e Paulo José Dhiel

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conclui-se com a presente pesquisa que os Tribunais brasileiros, mais

especifi camente o Superior Tribunal de Justiça e o Tribunal do Estado do Rio

Grande do Sul, têm-se demonstrado como aliados à proteção do patrimônio

público e direitos difusos da coletividade, haja vista que seu posicionamento de

recebimento da Ação Civil Pública por Improbidade Administrativa evidencia o

alinhamento destes Tribunais para com a necessidade de proteção do bem público.

Tem-se, então, que o manejo do instituto da Ação Civil Pública na persecução

dos interesses difusos, direitos coletivos e do patrimônio público, é primordial para

que se alcancem os objetivos diante do Poder Judiciário. É nesse sentido que se tem

fi rmado entendimento na jurisprudência, a fi m de proteger o patrimônio público

e a sociedade com o exercício da defesa coletiva. Os resultados do levantamento

jurisprudencial vão ao encontro desse fato.

O instrumento da Ação Civil Pública, como mecanismo de defesa e proteção

ao bem público, consoante o art. 129, III, da CF/88 aliado à Lei n. 7.347/85, defi ne

a modalidade de controle da corrupção e atos ímprobos por intermédio do Poder

Judiciário. Assim, este instrumento tem sido amplamente aceito pelos Tribunais

e se evidencia como uma forma contundente de combate à corrupção, trazendo

inúmeros benefícios às formas de controle social.

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Acesso em: 05 jul. 2016.

OS ATOS CULPOSOS DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA

À LUZ DO DIREITO FUNDAMENTAL À BOA

ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA1

Luiz Egon Richter2

Augusto Carlos de Menezes Beber3

Resumo: O presente artigo visa a discutir a necessidade da observância do direito à

boa administração pública nas hipóteses de confi guração de atos administrativos culposos.

Considerando que a jurisprudência já se consolidou no sentido de exigir o elemento

volitivo prejudicial ao Erário nos tipos puramente dolosos (arts. 9º e 10), sustenta-se que

as hipóteses de culpa também devem abordar o rompimento do ato com o pano de fundo

republicano, sob pena de se fazer uma interpretação desarrazoada da Lei n. 8.429/92.

1 INTRODUÇÃO

A improbidade administrativa, conforme extraída do art. 37, § 4º, da

Constituição Federal, constitui espécie jurídica que encerra atos que mitigam a

1 – O presente artigo é fruto dos debates realizados no bojo do “Projeto Interinstitucional de redes de

grupos de pesquisa sobre o tema Patologias Corruptivas nas relações entre Estado, Administração Pública

e Sociedade: Causas, Consequências e Tratamentos – Parte II: discutindo formas de enfrentamento do

fenômeno”, coordenado pelo Professor Doutor Rogério Gesta Leal, sendo as pesquisas desenvolvidas

junto ao Centro Integrado de Estudos e Pesquisas em Políticas Públicas – CIEPPP.

2 – Doutorando em Direito, Mestre em Desenvolvimento Regional, Especialista em Direito Constitucional

pela UNISC e Especialista em Direito das Coisas pela Unisinos. Professor da graduação da Universidade de

Santa Cruz do Sul, titular da disciplina de Direito Administrativo e Registrador Público. E-mail: [email protected].

3 – Graduando do Curso de Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, Rio Grande do

Sul, Brasil, com bolsa de iniciação científi ca institucional, na modalidade PUIC, sob a orientação do

Professor Doutor Janriê Rodrigues Reck. E-mail: [email protected].

310

Luiz Egon Richter e Augusto Carlos de Menezes Beber

atuação da Administração e o atendimento ao interesse público, razão pela qual

pode ser enquadrada dentro do gênero corruptivo.

Por sua vez, dando sequência ao referido comando constitucional, a Lei

n. 8.429/92, conhecida como Lei de Improbidade Administrativa, classifi ca

sumariamente e de forma exemplifi cativa os três grandes grupos de atos de

improbidade, encontrados respectivamente nos arts. 9º (atos que importam em

enriquecimento ilícito), 10 (atos que confi guram dano ao Erário) e 11 (atos que

violam os princípios da Administração).

Após pesquisas realizadas anteriormente4, constatou-se que, por meio

de interpretação gramatical e sistemática da Lei, a jurisprudência do Superior

Tribunal de Justiça5 inclinou-se no sentido de que somente os atos de improbidade

que ensejam dano ao Erário podem ser confi gurados a título de culpa. Por

consequência, para a tipifi cação de atos de improbidade que importem em

enriquecimento ilícito ou em violação aos princípios da Administração Pública, é

necessária a constatação da conduta dolosa do agente.

Trata-se de um entendimento jurídico que se ampara no caráter violador e

desonesto da improbidade, a qual não pode ser confundida com a mera ilegalidade,

razão pela qual a sua confi guração depende da comprovação da vontade do agente

em prejudicar a Administração Pública.

Por conseguinte, em continuidade aos estudos confeccionados, parte-se do

entendimento jurídico exposto para, neste momento, investigar especifi camente a

forma com que os atos de improbidade são tipifi cados quando sua confi guração

ocorre a título de culpa.

A tese aqui esposada é de que, se os atos de improbidade de conduta dolosa

exigem uma vontade de malversação do patrimônio público, os atos culposos, por

serem violações a deveres jurídicos, também devem estar retroligados ao desrespeito

voluntário ao pano de fundo normativo que orienta a Administração Pública.

Assim, no compasso da jurisprudência, advoga-se a necessidade de as

ações culposas – sejam elas realizadas por negligência, imprudência ou imperícia

– estarem combinadas com violações aos postulados republicanos para poderem

ensejar as sanções por improbidade.

4 – Para tanto, ver o artigo intitulado “Dos argumentos/critérios preponderantes utilizados em acórdãos

do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul para a reforma/manutenção de decisões de

1º Grau em Ações Civis Públicas por improbidade administrativa”, publicado na obra “Temas Polêmicos

da Jurisdição do Tribunal de Justiça: dos crimes aos ilícitos de natureza pública incondicionada”.

5 – Ver, por exemplo, os acórdãos paradigmáticos REsp n. 842.428/ES, Rel. Min. Eliana Calmon; e

EResp n. 479.812/SP, Rel. Min. Teori Zavascki.

311

Os atos culposos de improbidade administrativa à luz do direto fundamental à boa Administração Pública

Considerando-se ainda que o bem jurídico protegido pela Lei n. 8.429/92

não é o “numerário” administrativo em si, mas a probidade administrativa e os

princípios que emergem da Constituição, não se mostra razoável exigir uma conduta

altamente qualifi cada para as sanções dos arts. 9º e 11, e, no caso do art. 10, pelo fato

de haver dano material, exigir-se apenas uma técnica jurídica mais simples.

Notadamente, os incs. II, III, VII, XIV, XV, XVI, XVII e XVIII do art. 10

fazem menção expressa ao dever de observação das formalidades legais. Entretanto,

a não observância de alguma formalidade pode acarretar de forma imediata as

sanções por improbidade?

A resposta para tanto é dúplice: se a ação culposa resultar de mero equívoco,

não; por outro lado, se importar em violação ao pano de fundo jurídico que orienta

e fundamenta o direito administrativo, sim.

Logo, o ponto nevrálgico da presente problemática está no que o direito

brasileiro vem assistindo irromper no direito internacional, especialmente no

direito europeu, como direito fundamental à boa administração pública, que, por

seu turno, corresponde a um plexo de direitos exigíveis subjetivamente.

Conforme Juarez Freitas (2007), o direito fundamental à boa administração

pública contém em si o direito a uma administração transparente, dialógica,

imparcial, proba, respeitadora da legalidade temperada, eficiente, eficaz, econômica

e teleologicamente responsável.

De mais a mais, a boa administração pública é um direito de núcleo fl exível,

razão pela qual nele podem ser encontrados outros elementos, como o dever de

moralidade, participação social e motivação e, como acrescenta Freitas (2007), a

observância aos princípios da precaução e da prevenção.

Logo, a atuação administrativa deve ser pautada por atos comedidos e bem

planejados, tendo por base escolhas legítimas que privilegiem o interesse público.

Por consequência, as medidas tomadas pela Administração em cumprimento ao seu

dever constitucional precisam encontrar um termo médio entre o agir exacerbado e

a falta de diligência, em consonância com o princípio da proporcionalidade.

Voltando-se à improbidade administrativa, nota-se que a confi guração de

culpa tipifi cadora dos atos ímprobos requer necessariamente a observância das

formas jurídicas culposas e dos elementos da boa administração pública.

Nesse ponto, conforme se verá adiante, concorda-se com a jurisprudência,

no sentido de que a culpa que tipifi ca a improbidade deve sofrer interpretação que

a qualifi que, de forma a uniformizar o entendimento sobre a matéria, vez que o

direito, à luz da integridade, não pode ser contado aos pedaços.

312

Luiz Egon Richter e Augusto Carlos de Menezes Beber

A partir dessas considerações, serão analisados acórdãos do Tribunal de

Justiça do Rio Grande do Sul, buscando-se questionar como a jurisprudência vem

enfrentando as questões aqui levantadas, bem como se tem sido identifi cados atos

culposos, e qual o tratamento jurídico dado a eles.

2 O DIREITO FUNDAMENTAL À BOA ADMINISTRAÇÃO

PÚBLICA COMO PANO DE FUNDO DA ATIVIDADE ADMINISTRATIVA

Ann Abraham (2009) sabiamente vaticina que a prática administrativa

representa uma interface crítica entre o Estado e seus cidadãos, sendo mediadora

das operações que transformam as aspirações jurídicas dos direitos humanos em

realidade concreta. Nesses termos, a prática administrativa opera por intermédio de

escolhas, as quais, segundo o magistério de Juarez Freitas, devem ser caracterizadas

no Estado Constitucional como escolhas administrativas legítimas.

Ademais, hodiernamente entende-se que no Estado Constitucional a

Administração deve observar o plexo de princípios a que está vinculada, agindo nos

limites do Direito, o qual confere a ela o dever de escolher bem, dentro de uma janela

de possibilidades que não a torna escrava de programas legislativos pré-defi nidos, mas

que lhe dá margem para traçar estratégias criativas de governança (FREITAS, 2007).

A partir dessa ótica, Jaime Rodríguez-Arana Muñoz (2012), em tenaz leitura

da Constituição Espanhola de 1978, anota como função precípua dos poderes

públicos a promoção do exercício da liberdade e da igualdade dos indivíduos,

de forma a integralizar e tornar pleno o acesso e a participação na vida política,

econômica, cultural e social.

Assim como Freitas, amparado no princípio da dignidade da pessoa humana,

Arana Muñoz vê o indivíduo como finalidade da ação estatal e centro da vida

pública, tornando o aperfeiçoamento das condições que permitem um exercício

aprofundado e qualitativo das liberdades individuais um elemento inseparável dos

objetivos da boa administração (MUÑOZ, 2012).

No mesmo sentido, Ann Abraham (2009), em consonância com o exposto,

levanta a necessidade de a Administração sofrer um processo de humanização, no

qual resgata-se o propósito de atender às demandas do cidadão comum, esquecidas

ou desvirtuadas pela burocracia. Para a autora, a importância de postulados da boa

administração deve envolver uma discussão sobre os direitos humanos, tendo em

vista o impacto que a qualidade da gestão pública causa diretamente no exercício

dos direitos individuais e no desenvolvimento humano.

313

Os atos culposos de improbidade administrativa à luz do direto fundamental à boa Administração Pública

Nesses termos, o pleno exercício da discricionariedade legítima requer

o protagonismo da sociedade, verdadeira detentora e destinatária dos frutos do

poder, invocada a participar das deliberações públicas (FREITAS, 2007). Arana

Muñoz (2012) chega a destacar que a articulação entre as ações estatais e a opinião

dos cidadãos é um elemento necessário para o sucesso dos bons governos e das

boas administrações, vez que uma burocracia desvinculada da realidade não tende

a promover as melhores políticas públicas, ainda que dotadas de perfeição técnica.

Para o autor espanhol, a boa administração e o bom governo encontram-se em

uma posição denominada reformista da Administração Pública. Arana Muñoz, em sua

análise, afasta-se de uma posição imobilista, caracterizada pelo desejo de manutenção

estática das estruturas sociais, econômicas e culturais, do mesmo modo como refuta

a posição revolucionária, que busca subverter a ordem existente com base na rejeição

total da situação presente (MUÑOZ, 2012). Para o autor, a posição reformista mostra-

-se adequada, portanto, por aceitar o que está posto sem cair em conformidade, mas

produzindo alterações que visam a uma melhora autêntica das estruturas sociais.

Além disso, a razão para adotar-se o reformismo como bandeira decorre

igualmente na mutação constante a que o tecido social está submetido. As administrações

não estão isentas de enfrentar fenômenos como a imigração, o desenvolvimento de

novas tecnologias ou mesmo de reformas políticas. Logo, a modernização encontrada

no bojo do reformismo torna-se mais um processo de atuação contínua, necessário ao

bom desempenho da máquina pública (MUÑOZ, 2012).

Nesse diapasão, impende também trazer à baila o princípio da dignidade da

pessoa humana, estampado no art. 1º, III, da Constituição da República de 1988,

o qual deve nortear toda atividade pública.

Por conseguinte, adotando-se o reformismo de Muñoz, a função

administrativa deve mostrar-se articulada com a realidade a qual pertence, de modo

a buscar, em máximo grau, tornar efetivos os direitos que celebram a dignidade

humana, tornando a função pública o medium jurídico necessário para concretizar

os direitos humanos.

Nesse cenário, notadamente integrador e de cunho marcadamente

principiológico, consagra-se e concretiza-se o que Freitas (2007, p. 20) conceituou

como direito fundamental à boa administração pública:

[...] trata-se do direito fundamental à administração pública efi ciente

e efi caz, proporcional cumpridora de seus deveres, com transparência,

motivação, imparcialidade e respeito à moralidade, à participação social e à

314

Luiz Egon Richter e Augusto Carlos de Menezes Beber

plena responsabilidade por suas condutas omissivas e comissivas. a (sic) tal

direito corresponde o dever de a administração pública observar, nas relações

administrativas, a cogência da totalidade dos princípios constitucionais que a

regem. (Grifos do original)

Observa-se, assim, que o direito à boa administração pública compreende

um plexo de princípios jurídicos com força normativa, os quais constituem o pano

de fundo sob o qual as administrações devem se orientar.

Tal direito, em consonância com o exposto, privilegia os destinatários

da atividade estatal, de modo que o seu cumprimento é medida necessária para

legitimar a ação do Poder Público nas esferas pública e privada.

Anota-se que o contexto do direito à boa administração vem de um

movimento em que países membros da União Europeia aproximam-se em um

ideal de aperfeiçoamento da gestão do interesse público compartilhado pelas

comunidades nacionais.

Para Vasilica Negrut (2011), a literatura especializada aponta para uma

defi nição de boa administração que envolve necessariamente elementos como o

direito de acesso à informação, proteção efi ciente dos direitos fundamentais e do

direito de defesa, e o dever de motivação dos atos estatais.

Nesse sentido, o art. 41º, 1, da Carta de Direitos Fundamentais da União

Europeia de Nice estampa o direito à imparcialidade no tratamento aos cidadãos,

à equidade e à duração razoável das demandas.

Em sequência, o art. 41º, 2, por seu turno, elenca o direito de qualquer

pessoa ser ouvida antes de ser tomada decisão a seu respeito, bem como o do

acesso aos processos que lhes refi ram e o dever da Administração em fundamentar

suas decisões. Ainda, conforme o art. 42º, deve ser resguardado o direito de acesso

aos documentos públicos do Parlamento Europeu, do Conselho e da Comissão.

Ao cabo, o art. 43º estabelece o direito de apresentar petição ao Provedor de Justiça

Europeu para apontar casos de má administração.

Entretanto, destaca Negrut (2011) que ainda que haja referências ao direito

à boa administração na Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, ou

mesmo no Código Europeu de Boa Conduta Administrativa, as considerações

temáticas mais relevantes encontram-se nas decisões da Corte Europeia de Justiça

e na Corte Europeia de Direitos Humanos.

De mais a mais, a Carta de Direitos Fundamentais representou um avanço

para os povos de países que não previam em suas Constituições um plexo de

315

Os atos culposos de improbidade administrativa à luz do direto fundamental à boa Administração Pública

direitos como o direito à boa administração pública. Negrut (2011) destaca o

caso da Romênia, que, em nível constitucional, reconhece o direito estrangeiro a

ponto de suprir o direito nacional com as garantias estabelecidas com a referida

Carta.

No Brasil, hodiernamente ocorre o fenômeno da instrumentalização dos

direitos encontrados na Constituição, semelhantes ao plexo de direitos articulados

sob o manto da boa administração pública da Carta Europeia. Notadamente,

a Carta Magna de 1988 também traz como garantias fundamentais o direito à

razoável duração do processo (art. 5º, LXXVIII ), ao contraditório e à ampla defesa

(art. 5º, LV ), à impessoalidade e à isonomia (art. 37) e o direito à informação e o

acesso aos documentos públicos (art. 5º, XXXIII).

Ademais, conforme o relatório anual publicado pelo Provedor de Justiça

Europeu, em 2014 cerca de 21,5% dos inquéritos encerrados tiveram como causa

pedidos de informação e acesso a documentos; 19,3%, questões envolvendo a

aplicação de tratados; 19,3%, concursos e processos de seleção; 16%, questões

políticas e institucionais; 11,3%, Administração e Estatuto dos Funcionários; 8,3%,

adjudicação de contratos ou atribuição de subvenções; e 6%, sobre a execução de

contratos.

Diante disso, mostra-se que a boa administração vem ganhando espaço como

direito e como garantia dos indivíduos em ter um respaldo daqueles que exercem

o poder em seu nome, o que ratifi ca o fato de que a atividade administrativa não

pode ser vista ou tratada como um fi m em si mesma, mas como um instrumento

para a dignidade da pessoa humana.

Por consequência, crê-se que as demandas da boa administração, por

envolverem o cerne da atividade estatal, são o verdadeiro objeto a ser tutelado

pelas leis do direito administrativo sancionador.

Logo, em se tratando de improbidade administrativa, a maior – ou única

violação – que pode ensejar a sua confi guração é a violação ao pano de fundo

que deve ser o norte da atividade estatal. Não se pode inverter os valores jurídicos

da Lei – o que qualifi ca a improbidade não é tão somente a perda patrimonial do

Erário – mas a atuação em desconformidade com as normas que regem a função

administrativa do Estado.

Tal entendimento, consubstanciado no que descreveu-se como sendo o

argumento do interesse público, é adotado pela jurisprudência do Tribunal de Justiça,

a qual entende ser a probidade administrativa o bem tutelado pela Lei n. 8.429/92,

e não o patrimônio propriamente dito.

316

Luiz Egon Richter e Augusto Carlos de Menezes Beber

A alta relevância da moralidade e da probidade administrativa são

argumentos que os desembargadores usam para tomar decisões que, em

um jogo de interesses e princípios eminentemente privados, não tomariam.

Explica-se: com este argumento, entende-se que, não importando o valor ou o

dano causado pelo ato dito ímprobo, o que se fere com a conduta desonesta não

é o dinheiro, a moeda, mas a moralidade administrativa, de inestimável valor.

(BEBER; RICHTER, 2015, p. 276)

Do mesmo modo posiciona-se a doutrina, conforme se depreende da leitura

das lições de Mateus Bertoncini (2010, p. 15), o qual consagra o direito à probidade

como direito subjetivo fundamental:

embora interesse ao homem individualmente considerado, o direito

fundamental à probidade administrativa visa à proteção do povo e da

Nação brasileira contra a corrupção administrativa, direito reconhecido

na Constituição Federal em face dos diversos princípios e regras

destinados a enfrenta-la, referidos inicialmente, da Lei de regência

(LIA), e, no plano transnacional, das Convenções Interamericana

(CICC) e da ONU Contra a Corrupção, internalizadas pelo nosso

ordenamento jurídico.

Nesse sentido, a jurisprudência se posicionou em afi rmar que a mera

ilegalidade não se confunde com a improbidade. Improbidade é deslealdade, má-

-fé. A problemática jurídica que surge em relação a tanto é: como então a patologia

da improbidade se identifi ca?

A resposta que se sustenta é a seguinte: para se identifi car a improbidade,

é preciso anteriormente identifi car quais foram os bens jurídicos violados. Assim,

uma vez que o pano de fundo da atividade estatal se encontra espelhado no plexo

jurídico que é o direito à boa administração pública, a sua violação, somada ou

não à subtração patrimonial do Estado, é que se mostra elementar à confi guração

da improbidade.

Assim, nas ações de improbidade, o ônus do Estado não é provar somente a

perda patrimonial do Erário (pois esta pode ser inclusive reavida com uma ação de

ressarcimento, que é imprescritível), mas, sim, provar que o agente público atuou

em desconformidade com o regime jurídico que deveria observar.

317

Os atos culposos de improbidade administrativa à luz do direto fundamental à boa Administração Pública

3 O AGIR ADMINISTRATIVO ENTRE A VEDAÇÃO AO EXCESSO

(ÜBERMASSVERBOT) E A PROIBIÇÃO À PROTEÇÃO INSUFICIENTE

(UNTERMASSVERBOT)

Em sequência ao presente estudo, discorrer-se-á brevemente sobre os parâmetros

pelos quais se pode analisar a possível incidência da improbidade administrativa em

razão de atos culposos, admissíveis nos termos do art. 10 da Lei n. 8.429/92.

Abordar-se-á o assunto sob a perspectiva da boa administração pública,

conforme exposto anteriormente, ratifi cando-se a tese de que o bem jurídico

tutelado da Lei é a probidade no trato público, além do plexo de direitos que se

reúne no pano de fundo da boa administração.

Inicialmente, renova-se a fala exposta, no sentido de que a atuação

administrativa se faz por meio de escolhas, as quais, sob o paradigma democrático,

devem se caracterizar como escolhas administrativas legítimas.

Nesse sentido, Freitas (2007) leciona que cabe à Administração, sob a égide do

Estado constitucional, tecer suas ações de forma a respeitar o direito à participação,

aos fundamentos da República e aos direitos fundamentais individuais.

No entanto, não basta a Administração almejar a concretização de direitos.

Ela deve fazê-lo na medida em que não cause desequilíbrio nas relações sociais e

jurídicas do sistema. Dessa forma, percebe-se que a juridicidade dos atos estatais

tem a necessidade de estar alinhavada com a vedação ao excesso (übermassverbot) e

a proibição à proteção insufi ciente (untermassverbot). Sobre o assunto, Gervasoni e

Bolesina (2014, p. 49) asseveram que

o Estado, ao atuar em prol dos direitos fundamentais, é limitado, de um

lado, por meio dos limites superiores da proibição de excesso e, de outro, por

meio de limites inferiores da proibição da não-sufi ciência. Tais parâmetros,

associados à noção de proporcionalidade (também conhecidos como dupla

face da proporcionalidade) referem-se, portanto, à proibição do excesso

(Übermassverbot) e à proibição de proteção insufi ciente (Untermassverbot).

Ambas exercem a função de parâmetro de avaliação da constitucionalidade

das intervenções praticadas nos direitos fundamentais. A primeira dita que

estas não podem ocorrer de modo excessivo; já a proibição de proteção

insufi ciente (Untermassverbot) pode ser compreendida, de certa forma,

como um imperativo de tutela, destinado a assegurar um “mínimo” de

proteção em face de um padrão constitucionalmente estabelecido.

318

Luiz Egon Richter e Augusto Carlos de Menezes Beber

Ou seja, tanto uma atuação administrativa que não dê efetividade ao

princípio da dignidade da pessoa humana quanto uma atuação que exorbite seu

poder de interferência social não encontram resguardo jurídico, podendo ensejar a

confi guração de improbidade, ainda que a título de culpa.

Notadamente, no plano prático encontram-se muito mais situações de

descaso e de proteção insufi ciente com a coisa pública, o que acarreta uma verdadeira

ilegalidade por omissão estatal. Nesse sentido, são válidas as contribuições de

Pedro Roberto Decomain (2014, p. 122):

[...] a improbidade marcada pela culpa em sentido estrito existirá, aqui,

antes no terreno da negligência – conduta displicente – do que no terreno da

imprudência – conduta afoita e com inobservância de regras de cautela. Isso

resulta claro a partir da própria dicção do inciso X do artigo, que considera

improbidade o agir negligente na conservação do patrimônio público.

Ao cabo, convence-se que o debate sobre as insufi ciências (e incongruências)

do agir estatal deve ser enfrentado para a questão da improbidade. Por certo que,

se todos os entes estão vinculados ao dever de boa administração pública, a má

prestação dos serviços públicos, ou a não transformação das riquezas nacionais

em benefícios à população pode ter por causa uma gestão que, por omissão ou

incongruência, comete ato de improbidade.

Segundo relatório anual da Receita Federal, em 2014, o Brasil registrou a

maior carga tributária geral da América Latina. Paralelamente, a Organização das

Nações Unidas apontou para o mesmo período a América Latina e a região do

Caribe como as regiões com maior índice de desigualdade social do mundo.6

No caso brasileiro, a situação torna-se ainda mais grave por haver uma

reversão à equação que diz que melhores arrecadações deveriam refl etir em

melhores serviços públicos, logo, em maior qualidade de vida. Notadamente, se

é possível elencar variáveis que impedem a devida conversão, deve-se incluir, no

mínimo, elementos como a corrupção e a má gestão dos recursos públicos.

6 – Apesar de nos últimos anos ter havido um avanço em relação a indicadores de desenvolvimento

humano, o Brasil ainda carece dar um respaldo aos seus cidadãos, especialmente quanto ao desencontro

que os dados estatísticos refl etem. Pode-se observar que países como a Dinamarca, que está entre as

nações com maiores índices de desenvolvimento humano do mundo, possuem uma tributação muito

superior à brasileira, preferindo a incidência fi scal em relação à renda, lucro e ganho de capital do que

sobre bens e serviços, que representam a maior parcela arrecadatória brasileira.

319

Os atos culposos de improbidade administrativa à luz do direto fundamental à boa Administração Pública

Ann Abraham (2009) anota que, em geral, a noção que se tem de má

administração é associada a termos como preconceito, negligência, desatenção,

atraso, incompetência, inaptidão, perversão, arbitrariedade e torpeza. Ao lume

do Estado Constitucional, a perda de qualidade das prestações públicas importa

em grave violação aos preceitos básicos de uma boa administração pública,

especialmente seu núcleo principal, a dignidade da pessoa humana.

O exercício mal empregado do poder se revela em escolhas realizadas que

não observam os padrões constitucionais de juridicidade e que não se confundem

com a discricionariedade. Realizar obras novas quando há outras inacabadas,

traçar projetos sem observância de normas básicas de engenharia, adquirir material

desnecessário, são todos exemplos de atos empregados de forma contrária aos

princípios contidos no direito fundamental à boa administração pública, o que

torna a prática não apenas inefi ciente no plano fático, mas ilícita no plano jurídico.

À luz do direito fundamental à boa administração pública, trata-se de uma

prerrogativa dos cidadãos e um dever do Estado de fazer as vezes de administrador

negativo, contornando as mazelas de decisões além ou aquém dos limites

desenhados pela Constituição.

Assim, em termos de improbidade administrativa, advoga-se que não é a

mera irregularidade que confi gura o ato ímprobo (conforme vem sustentando a

jurisprudência), mas elementar à tipifi cação é a violação aos deveres constitucionais

que são inerentes à atividade pública.

Sabidamente, os atos culposos se caracterizam ordinariamente por resultados

não volitivos do agente. Entretanto, ao contrário do que o senso comum pode

esperar, tais atos podem ensejar a responsabilidade de quem os praticou, quando

este assumiu o ônus da atividade, especialmente da atividade pública.

Logo, o corpo social não pode arcar com os custos de uma má administração,

como vem infelizmente ocorrendo no cenário brasileiro. Neste ponto, inarredável

complementar: má administração, essa não caracterizada por meros equívocos

administrativos, mas pela violação ao pano de fundo da atividade administrativa.

Conforme Decomain (2014, p. 122):

A ação descuidada, marcada pelo desinteresse na preservação daquilo que

pertence à Administração Pública, é que confi gura a improbidade. E esse

pouco caso pela coisa pública insere-se também no terreno da desonestidade.

Não com a marca do propósito de produzir desfalque patrimonial (como

acontece em relação a outros incisos), mas pelo menos com a marca da

320

Luiz Egon Richter e Augusto Carlos de Menezes Beber

incúria no exercício da função, produzindo com isso o dano que, houvesse o

agente atuado como deveria, realizando o esforço que o cargo lhe impunha

para a preservação do patrimônio público, não teria tido lugar.

Nesse diapasão, a arbitrariedade não se confunde com a discricionariedade.

A arbitrariedade por ação e a arbitrariedade por omissão, no entendimento de

Freitas (2007), são na verdade os dois principais vícios da discricionariedade

administrativa.

A arbitrariedade por ação resume-se na atuação do agente público fora

do amparo de norma válida, ou mesmo quando há algum desvio abusivo das

destinações legais ou constitucionais do ato praticado. A arbitrariedade por

omissão, por outro lado, ocorre quando a atuação administrativa se dá de forma

impotente ou inoperante, rompendo com o dever de diligência positiva e com os

princípios da prevenção e da precaução (FREITAS, 2007).

Conforme Gavião Filho (2011), a diligência exigível daquele que realiza

a escolha pública restringe-se aos limites do desenvolvimento geral e científi co

conhecido, uma vez que afronta à razoabilidade a exigência de conhecimento

global sobre todas as medidas alternativas possíveis. Face ao exposto, mesmo que

após a tomada de decisão surjam alternativas mais favoráveis à Administração, o

gestor público estará imune de sanções em relação à medida tomada, mesmo que

ela não seja a que melhor atenda ao interesse público.

O Tribunal de Contas da União, em observância ao princípio parcial da

necessidade, atribui ao gestor a noção de homem médio, ou seja, daquele que

possui a razoável diligência que de todos se espera, para analisar o cumprimento

necessário ao dever de zelo na prática administrativa.7

Com isso, chega-se à conclusão de que, tratando-se de atos culposos de

improbidade administrativa, a sua confi guração, observado o pano de fundo da

boa administração, vai depender da inobservância dos deveres constitucionais

de vedação ao excesso (übermassverbot) e a proibição à proteção insufi ciente

(untermassverbot).

7 – Nesse sentido, ver AC n. 10642/2015 – 2ª Câmara, data da sessão: 17-11-15, Rela.: Ana Arraes;

AC n. 1001/2015 – Plenário, data da sessão: 29-04-15, Rel.: Benjamin Zymler. Destaca-se o enunciado

extraído do Acórdão n. 1275/2011 – Plenário, data da sessão: 18-05-11, Rel.: Raimundo Carreiro: A regra

é o gestor agir de acordo com os pareceres técnicos e jurídicos. Somente nos casos em que o parecer contém

erros perceptíveis aos olhos do homem médio, ou seja, aquele que age com a razoável diligência que de todos

é esperada, é razoável exigir do gestor que aja de modo diverso do indicado no parecer.

321

Os atos culposos de improbidade administrativa à luz do direto fundamental à boa Administração Pública

Nessa senda, a proteção jurídica dos administradores públicos repousa no

agir diligente, no qual, empregando-se os meios adequados e acessíveis no espaço-

-tempo, garante-se uma proteção sufi ciente aos direitos fundamentais.

4 A TUTELA DA BOA ADMINISTRAÇÃO NA CONFIGURAÇÃO

DOS ATOS CULPOSOS DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA: UMA

DISCUSSÃO NECESSÁRIA NA JURISPRUDÊNCIA

Após as considerações tecidas anteriormente, importa discorrer sobre o

instituto da improbidade administrativa confi gurada por atos culposos, conforme

a leitura dada pela jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.

Inicialmente, o art. 10 da Lei de Improbidade Administrativa elenca as

espécies de atos de improbidade passíveis de sanção a título de culpa, dentre os

quais pode-se citar, a título de exemplo, a realização de operações fi nanceiras sem

observância dos trâmites legais (inc. VI), permitir, facilitar ou concorrer para que

terceiro enriqueça ilicitamente (inc. XII), dentre outros.

Assentadas as premissas teóricas, busca-se agora defender a tese de que

a confi guração da culpa ímproba, a qual depende de uma atuação negligente,

imprudente ou imperita, deve estar relacionada a uma violação dos preceitos da boa

administração pública, e não tão somente (ou primordialmente) ao prejuízo do Erário.

Notadamente, para tanto deve ser realizada uma (re)interpretação do

conceito de improbidade que a jurisprudência vem se amparando. Afi nal, se

o agente ímprobo é aquele que agiu de má-fé, como a culpa pode qualifi car a

improbidade, quando esta tem por escopo o descuido ou a desatenção?

A partir dessa problemática, muitos julgados têm buscado qualifi car a culpa

que atende ao disposto na Lei, chamando-a por vezes de culpa grave ou culpa

consciente.8 Em acórdão de 19 de maio de 2016, de lavra do Des. José Aquino Flôres

de Camargo, teceram-se as seguintes considerações a respeito do tema:

8 – A respeito disso, veja-se o julgamento paradigmático do REsp n. 879.040/MG, Rel. Min. Luiz

Fux, julgado em 21-10-08, DJe 13-11-08, de onde se extrai a seguinte premissa: “3. (...) Ora, o ato de

improbidade administrativa pela própria articulação das expressões refere-se a condutas não apenas

ilegais, pois ao ato ilegal é adicionado um plus que, no caso concreto, pode perfazer ou não um ato

de improbidade. Daí que parte da doutrina bate-se pela perquirição do elemento subjetivo capaz de

identifi car não qualquer culpa praticada pelo agente público, mas necessariamente, um campo de culpa

consciente, grave, denotando indícios de conduta dolosa”.

322

Luiz Egon Richter e Augusto Carlos de Menezes Beber

Culpa grave. Art. 10 da Lei 8.429/92. Conduta do agente dolosa ou,

pelo menos, eivada de culpa grave. Confi gura-se a conduta culposa quando,

apesar de o agente não pretender o resultado, atua com negligência, imprudência

ou imperícia, denotando imperdoável descuido com a coisa pública. Daí punir-se

a má gestão administrativa, fruto de erro inescusável de diligência, denotativo de

má-fé. (BRASIL, 2016, grifos nossos)

Percebe-se pelo acórdão citado que, para adequar a hipótese de sanção

por culpa ao conceito de improbidade construído, a jurisprudência entendeu por

bem alicerçar uma categoria especial para os atos culposos, os quais, além dos

elementos ordinários (negligência, imprudência ou imperícia), deve abranger um

descuido com a coisa pública.

Semelhantemente, na Apelação Cível n. 70063372346, julgada em 28

de maio de 2015, o Tribunal apreciou o caso de agentes políticos que deixaram

disponíveis cheques em branco a servidor (o qual se apropriou de verbas públicas),

não havendo qualquer controle dos valores despendidos.

Na análise do caso, do qual foi relatora a Desa. Marilene Bonzanini, o

Tribunal entendeu confi gurada a culpa grave dos agentes, tendo em vista que a sua

ação omissiva permitiu a ocorrência do evento danoso ao Erário. Veja-se:

tenho que, tendo em vista que foram deixados cheques em branco à

disposição de servidores municipais, sem qualquer controle de sua

destinação, e havendo apropriação particular de valores pertencentes ao

ente público municipal em virtude dessa conduta desidiosa, resta confi gurada,

de forma plena, a culpa grave que permite a condenação em improbidade

administrativa com dano ao erário, nos termos do art. 10 da 8.429/92

(BRASIL, 2015, grifo nosso)

Assim prossegue a relatora:

O Prefeito e o Secretário da Fazenda assumiram a responsabilidade pela

assinatura de cheque em branco colocado à disposição de servidor sem

verifi car, previamente, a existência de nota de empenho. E mais ainda no

caso dos autos que sequer cuidaram de posterior fechamento e conciliação

de contas, tanto que a apropriação indevida somente veio a ser detectada

meses após.

323

Os atos culposos de improbidade administrativa à luz do direto fundamental à boa Administração Pública

[...]

E não se diga que é praxe administrativa e que, por isso, há justifi cativa:

a administração da máquina pública não deve ser feita como a administração

da própria casa, em que é natural deixar cheques ou valores para os fi lhos ou

responsáveis pela guarda da casa para os gastos cotidianos. Na administração

de verba pública deve-se atentar à legislação e ao dever dos gestores para

com os administradores – fato notoriamente não observado no caso em

tela.

[...]

Não se cuida também de mera ilegalidade, mas de culpa grave aferível

objetivamente. O Prefeito e o Secretário da Fazenda, assinando cheque

em branco sem controlar destinação, assumem os riscos desse proceder.

(BRASIL, 2015, grifos nossos)

Outrossim, na Apelação Cível n. 70062396577, julgada em 19 de agosto de

2015, também houve a confi guração de culpa, sem menção ao adjetivo “grave”.

O caso analisado pelo Tribunal era relativo à compra de fármacos sem a realização

de procedimento licitatório, o que gerou um custo quase três vezes maior ao

Município.

De se registrar que o depoimento de Dionei Ruggeri, tesoureiro municipal

no período de fevereiro de 2005 a agosto de 2009, fl . 1.696, foi no sentido

de que o controle interno (do qual ele fazia parte) do Município, o setor

jurídico, a assistência social e o demandado tinham conhecimento de

que a compra direta dos fármacos ultrapassava o valor máximo para

a dispensa de licitação, bem como que o procedimento licitatório via

pregão eletrônico gerava economia ao erário, situação que evidencia o

agir no mínimo culposo – pela desídia com o dinheiro público – do então

Prefeito Municipal.

Nesse contexto, prudente salientar que os atos de improbidade administrativa

que causam prejuízo ao erário dispensam a prova do dolo, sendo sufi ciente

para a sua caracterização a presença de culpa. (BRASIL, 2015)

Analiticamente, observa-se que em ambos os casos, em que se entendeu

confi gurada a improbidade, fundamentou-se a condenação dos réus com base na

desídia e no prejuízo ao Erário.

324

Luiz Egon Richter e Augusto Carlos de Menezes Beber

Considerando o exposto ao longo da presente narrativa, leva-se em conta

que as decisões também deveriam ter enfrentado o rompimento com o pano de

fundo da boa administração, a qual deve orientar a prática administrativa.

Veja-se que, tratando-se de jurisdição, não basta apenas a sustentação

argumentativa da relevância dos fatos (sob pena de tornar cada caso uma análise

de gravidade pontual), mas deve-se construir e demonstrar a violação ao direito.

No primeiro julgado, em que houve a cedência de cheques em branco a

servidor que se apropriou de valores do Erário, entende-se que, para a confi guração

da improbidade na modalidade culposa, deve-se demonstrar que a negligência dos

atores resultou no rompimento com o dever de boa administração, em especial

com o dever de proteção e de zelo com a coisa pública.

Lembra-se que, conforme exposto, a proibição à proteção insufi ciente

(untermassverbot) exige que os administradores tomem as medidas necessárias

para evitar que um direito fundamental – no caso do acórdão, a probidade na

administração – tenha seu núcleo mínimo violado.

Uma vez que os agentes políticos trataram com descuido a coisa pública,

violando o pano de fundo administrativo, a improbidade deve restar demonstrada,

sendo o dano ao Erário apenas exaurimento da má conduta pública.

Não se pode transferir o foco argumentativo à discussão da perda patrimonial.

Se o dano ao Erário admite um maior alcance de tipifi cação do que a pura

violação aos deveres de boa administração, estar-se-ia admitindo que a proteção

ao patrimônio material – ainda que por vezes ínfi mo – deve possuir guarda jurídica

maior do que os princípios que norteiam a Administração no Estado brasileiro.

Da mesma forma, no segundo caso indicado, o que se mostra imprescindível

para a confi guração da improbidade (culposa) é a ação que não buscou a aquisição mais

econômica e efi ciente para o interesse público, o que resultou em perda patrimonial.

Com isso, sustenta-se que, à luz do Estado Constitucional, a tutela da boa

administração é o bem protegido pela Lei de Improbidade Administrativa, razão

pela qual a sua violação deve restar fundamentada para haver a incidência de

qualquer espécie condenatória da norma.

Por derradeiro, encerrando-se o discurso, mas não o debate, reitera-se o acórdão

da lavra da Desa. Marilene Bonzanini: a culpa grave tem um revestimento que permite

identifi cá-la objetivamente. A explicação para tanto, a qual ainda deve ser reconhecida

pelo Poder Judiciário, é a seguinte: a tutela da boa administração é o escopo do espírito

republicano, o qual deve ser preservado considerando-se a dimensão objetiva de seus

postulados jurídicos, os quais não tomam por efeito a motivação interna dos agentes.

325

Os atos culposos de improbidade administrativa à luz do direto fundamental à boa Administração Pública

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao fi m e ao cabo, é mister advogar, em sede de considerações fi nais, que,

se o tema da improbidade administrativa resta cada vez mais atual, também o é o

tema da boa administração pública.

De origem europeia, o direito à boa administração pública compreende um

plexo de direitos e garantias que devem orientar a atividade pública, a qual deve

ser entendida em sua dimensão instrumental, com fundamento na realização da

dignidade da pessoa humana.

Por sua vez, a improbidade administrativa, disciplinada no Brasil pela Lei

n. 8.429/92, tutela a probidade na Administração, sancionando uma série de atos

que são qualifi cados pela desonestidade no trato público.

Considerando-se que ambos os temas se preocupam com o mesmo objeto –

ou ao menos com objetos muito próximos –, uma refl exão que agregue a boa

administração e a improbidade deve somar esforços na tarefa de aperfeiçoamento

da forma de gestão e de interpretação dos assuntos públicos.

Por isso, defende-se que a violação à boa administração é um dos elementos

principais que caracterizam o ato de improbidade administrativa. Sendo ela o pano

de fundo da atividade estatal, é o seu rompimento que confi gura uma transgressão

jurídica, o que pode ter como exaurimento a perda patrimonial.

Tal posicionamento se refl ete nos atos culposos, em que não há intenção de

lesionar o Erário. Uma vez que a atuação administrativa deve se pautar entre a vedação

ao excesso (übermassverbot) e a proibição à proteção insufi ciente (untermassverbot), o

descuido, ou o rompimento com o dever de zelo, que compõe o pano de fundo da

boa administração, deve corroborar para a caracterização da improbidade.

Ademais, entende-se que o cumprimento ao dever de boa administração

é também garantia do gestor público. A ação diligente, pautada pela cautela nas

atividades administrativas, tende a atender os pressupostos de legitimidade do

Estado Constitucional, inclusive isentando de responsabilidade o agente de um

eventual dano futuro, uma vez que as decisões públicas são tomadas em espaço e

tempo finitos.

As consequências da má administração já são muito bem conhecidas

– até mesmo vivenciadas. Resta agora compreender os preceitos de uma boa

administração – e incluí-los nos fundamentos que trabalham a improbidade –

que, sem dúvida alguma, é uma das patologias mais inibidoras da melhor prática

administrativa.

326

Luiz Egon Richter e Augusto Carlos de Menezes Beber

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O SILÊNCIO DA JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL

DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL FRENTE AOS

PRINCÍPIOS CONSAGRADOS NO ART. 11 DA LEI DE

IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA

Denise Bittencourt Friedrich1

Márcia Silveira Moreira2

Resumo: A abordagem feita no artigo referiu-se à forma como a

jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul faz do art. 11 da Lei de

Improbidade Administrativa – LIA (Lei n. 8.429/92), notadamente dos dispositivos

d e cargas axiológicas contidos no caput. A indagação que ensejou a pesquisa foi: no

momento da aplicação do art. 11 da LIA, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do

Sul recepciona a sua complexidade diante das situações fáticas que se apresentam,

preocupando-se em desvelar os signifi cados dos princípios ali consagrados?

Visando a construir uma resposta a esse problema, primeiro analisou-se a base

teórica da teoria da argumentação de Klaus Günther, que serviu para apreciar se a

aplicação do art. 11 pelo referido Tribunal tem sido adequada. Depois analisou-se

a apresentação e a apreciação do mérito das decisões que aplicam o art. 11 da LIA.

A hipótese que inicialmente foi traçada se confi rmou, haja vista que, pela análise

1 – Doutora em Direito pelo PPGD da Universidade de Santa Cruz do Sul, professora permanente do

PPGD da Universidade de Santa Cruz do Sul, professora de Direito Administrativo da graduação dessa

mesma universidade, integrante do Projeto de Pesquisa Internacional sobre Patologias Corruptivas.

E-mail: [email protected].

2 – Pós-graduada em Direito do Trabalho, Processo do Trabalho e Direito Previdenciário pela

Universidade de Santa Cruz do Sul. Integrante do grupo de pesquisas “Patologias Corruptivas”,

coordenado pelo Professor Doutor Rogério Gesta Leal. Advogada. E-mail: [email protected].

330

Denise Bittencourt Friedrich e Márcia Silveira Moreira

da jurisprudência, a referência ao art. 11 da Lei de Improbidade Administrativa

fi gura nas decisões que visam à condenação de agentes administrativos pela prática

de atos de improbidade. Porém o Tribunal gaúcho preocupa-se mais em debater a

tipifi cação do dolo dos agentes e o princípio da legalidade, do que atribuir sentindo

aos deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições,

que representam princípios dirigidos aos agentes administrativos. Além disso,

muito pouco de apreciação e de contextualização se notou, representando um

verdadeiro silêncio jurisprudencial.

1 INTRODUÇÃO

O tema do presente artigo refere-se à apreciação feita pela jurisprudência do

TJRS ao aplicar o art. 11 da Lei de Improbidade Administrativa – LIA (Lei n. 8.429/92),

que traz um rol de princípios cujo desrespeito por parte do agente público implica a

incidência das sanções previstas na referida lei. O problema que se pretende investigar

refere-se à seguinte situação: no momento da aplicação do art. 11 da LIA, o Tribunal

de Justiça do Rio Grande do Sul recepciona a sua complexidade diante das situações

fáticas que se apresentam, preocupando-se em desvelar o signifi cado dos princípios

ali consagrados? A hipótese que se tem é que a referência a estes princípios presta-se

muito mais a uma questão retórica e menos a real compreensão dos valores consagrados

pelo discurso de fundamentação (feito pelo legislador), acabando, assim, em limitar a

complexidade da lei e reduzindo seu alcance.

O trabalho estruturou-se primeiro em uma análise de temas epistemológicos

vinculados à argumentação jurídica, especialmente na ideia de decisão de Luhmann

e depois nos postulados teóricos de Klaus Günther ao tratar dos discursos de

fundamentação e aplicação. Depois apresentar-se-á a pesquisa jurisprudencial

realizada e, fi nalmente, a partir dos argumentos extraídos dos cases selecionados,

pretende-se analisar se a aplicação do art. 11 da LIA atende às premissas

epistemológicas eleitas aqui.

Antes de iniciar o desenvolvimento, porém, cabe apresentar como foi feita

a pesquisa jurisprudencial junto ao sítio do Tribunal de Justiça do Rio Grande do

Sul (<http://www.tjrs.jus.br/site/>), sendo compilados os dados e transcritos em

gráfi cos para ilustrar melhor os parâmetros das decisões adotadas.

Buscou-se com a pesquisa apontar a presença do art. 11 da Lei n. 8.429/92

nas decisões judiciais do Tribunal gaúcho e o enfoque dado aos princípios que

regem o referido artigo.

331

O silêncio da jurisprudência do Tribunal de Justiça do RS frente aos princípios consagrados no art. 11 da Lei de Improbidade Administrativa

Os fi ltros utilizados para pesquisa foram: Tribunal: Tribunal de Justiça

do Rio Grande do Sul; Órgão Julgador: nada; Relator/Redator: nada; Tipo de

Processo: nada; Classe CNJ: nada; Assunto CNJ: nada; Referência Legislativa:

nada; Jurisprudência: nada; Comarca de Origem: nada; Assunto: nada; Data

de Julgamento: 01/01/2015 a 31/12/2015; Número: nada; Seção: nada; Tipo

de Decisão: Acórdão; Procurar resultados com a expressão: improbidade

administrativa (sem aspas).

A pesquisa retornou 498 acórdãos com a expressão improbidade

administrativa e deste total oito não se referiam à improbidade administrativa

tratada pela Lei n. 8.429/92 sendo descartados; outros 124 julgados citavam o

art. 11 em sua ementa e/ou fundamentação os quais foram analisados à luz do

objetivo pesquisado, e que serão analisados adiante.

2 POSTULADOS TEÓRICOS DO DISCURSO DE

FUNDAMENTAÇÃO E APLICAÇÃO

Cabe ressaltar a ideia de decisão aqui adotada. Para tanto recorrer-se-á às

lições de Luhmann (1997) acerca das decisões, haja vista sua peculiaridade. Importa

aqui a forma peculiar com a qual Luhmann (1997, p. 10) percebe uma relação entre

decisão e alternativas, ao afi rmar que as alternativas não estão fora da decisão “las

alternativas se obtenen mediante el retiro de valoraciones o puntos de comparación”. O mais

importante dessa observação é que a própria eleição de alternativas é também uma

decisão, e, enquanto tal, não é neutra, pois o sujeito/sistema que elege alternativas

age infl uenciado por valores. Além disso, a decisão não se vincula apenas com

as alternativas eleitas, mas relaciona-se com todo o horizonte de alternativas que

não foram eleitas. Todas as alternativas (as eleitas e as não eleitas) fazem parte

da decisão. Então, a decisão para Luhmann (1997, p. 10) é a forma pela qual “es

transpasada la unidad de la diferencia de alternativas a la alternativa escogida, de tal manera

que en el resultado de la decisión permanece como historia y contingencia”.

Nota-se que, embora uma decisão, em sede de aplicação de uma norma, não

contemple explicitamente elementos normativos, ainda assim, estarão presentes

na decisão. Dessa forma, a não contemplação, por parte do aplicador, de alguns

princípios elencados no art. 11 da LIA não os retira da decisão.

Antes de fazer a análise dos argumentos apresentados pelo TJRS, cabe

investigar o que informa o discurso de aplicação/adequação e o discurso de

fundamentação/justifi cação da norma. Essa dicotomia implica a necessidade de

332

Denise Bittencourt Friedrich e Márcia Silveira Moreira

distinguir entre o momento de fundamentação de uma norma e o momento da sua

aplicação porque os sinais característicos componentes do momento aplicativo são

imprevisíveis, razão pela qual ainda que uma norma seja válida, não signifi ca que

seja adequada ao caso concreto.

A justifi cação/fundamentação da norma vincula-se à validade dos

enunciados e visa a alcançar a universalidade de um princípio moral que seja

imparcial, que implica, nos termos da teoria de Günther, alcançar o assentimento

de todos os envolvidos e atingidos pelo princípio. Porém, como jamais poderá uma

norma atingir a infi nidade de situações devido a limitações cognitivas e temporais,

a dimensão da aplicação irá fazer um juízo de adequabilidade, ou seja, para

verifi car se a norma é adequada à situação que se apresenta e, nesse ponto, deverão

ser examinadas todas as características da situação e consideradas todas as normas

que podem ser aplicadas. Nesse sentido:

O discurso de aplicação se caracteriza pela tentativa de considerar

todas as características de uma situação em relação a todas as normas

que possam remeter-se a ela. Este desiderato é alcançado mediante o

conceito de coerência e tem por fi nalidade a constituição de um sentido

de imparcialidade à aplicação. A aplicação será imparcial quando

coerentemente realizar a adequação entre todas as características e todas

as normas envolvidas em cada caso (GÜNTHER, 2004, p. 17).

A fundamentação leva em conta os motivos para que um enunciado seja

observado por todos como uma regra. Porém, em sede de aplicação, cada uma

das situações é relevante. Assim, a decisão a respeito da validade de uma norma

(fundamentação) não refl ete a respeito da sua adequação em uma situação, ou

seja, dizer que uma norma seja válida não signifi ca que ela seja adequada a uma

determinada situação.

Segundo Günther (2004), não é possível abdicar de uma razão prática, na qual se

sustenta o ideal da equidade que se revela tanto em seguir princípios corretos como em

aplicá-los de forma imparcial e considerando todas as situações, de forma que as razões

das ações possuem uma dimensão de validade (fundamentação) e uma dimensão de

aplicação (adequação). Assim, a fundamentação e a aplicação estão vinculadas, haja

vista a afi rmação que Günther (2004, p. 24-25) faz dizendo que “Quem souber avaliar

corretamente a situação, também agirá de forma moralmente correta – e vice-versa”.

Assim, “Ao ligar o julgamento de qualidade moral de uma ação a uma bem-sucedida

333

O silêncio da jurisprudência do Tribunal de Justiça do RS frente aos princípios consagrados no art. 11 da Lei de Improbidade Administrativa

avaliação da respectiva situação, precisamos desistir de isolar a fundamentação de

uma norma e de submetê-la a um exame isento quanto à sua correção”. Com isso, o

problema que Günther aponta é que as máximas universalistas, tidas em discurso de

fundamentação, não consideram as situações excepcionais.

Por tal razão, defende uma versão mais fraca do princípio “U” “que

permite compreender a ideia da imparcialidade no sentido de um principio de

fundamentação, motivo pelo qual precisa ser complementada por um principio

da aplicação imparcial independente” (GÜNTHER, 2004, p, 37). Assim, sugere

a seguinte versão mais fraca de “U”: “Uma norma é válida se as consequências

e os efeitos colaterais de sua observância puderem ser aceitos por todos, sob as

mesmas circunstâncias, conforme os interesses de cada um, individualmente.”

(p. 67). Nesse ponto diverge de Habermas, para quem o princípio “U” depende da

anuência de todos os atingidos (sentido forte do princípio “U”).

No sentido fraco, o princípio “U” “parece que só conseguimos levar

em consideração algumas possíveis situações de aplicação […]” (p. 57),

consequentemente, a versão mais fraca de “U” (presente apenas na fundamentação)

deve ser complementada pela aplicação, na qual todas as características da

situação devem ser apreciadas. A versão fraca de “U” na fundamentação precisa

ser reforçada na aplicação, momento em que serão realçadas as especifi cidades da

situação e a relacionar as consequências da aplicação com os interesses dos outros

como pessoas concretas.

Já que no discurso de fundamentação, com vista à universalização de normas

morais, não há como contemplar todas as situações, caberá a complementação no

momento da aplicação, a fi m de assegurar a razão prática. Então, no discurso de

aplicação, deve fi gurar a apreciação de todas as características da situação, a fi m

de assegurar a aplicação imparcial. Conclui-se daí que a fundamentação é mais

restrita que a aplicação3, pois, como aquela visa à universalização e é impossível

(sentido fraco) prever todas as situações nas quais a norma poderá ser aplicada bem

como alcançar o consentimento de todos os possíveis atingidos, será no momento

da aplicação que as peculiaridades da situação poderão ser apreciadas.4

3 – Adverte Günther (p. 65) “Somente se o nosso saber abrangesse todos os casos de aplicação de uma

norma é que faríamos coincidir o juízo sobre a validade da norma com o juízo sobre a adequação”.

Porém, como isso apresenta-se impossível, a aplicação é que fará a adequação da norma à situação.

4 – Interessante que, na aplicação do art. 11 da LIA, ocorre a situação inversa: o legislador, na

fundamentação, foi mais abrangente ao prever situação em que hoje não são aplicadas pelo TJRS no

seu discurso de aplicação.

334

Denise Bittencourt Friedrich e Márcia Silveira Moreira

Os discursos de aplicação “combinam a pretensão de validade de uma

norma com o contexto determinado, dentro do qual, em dada situação, uma

norma é aplicável” (GÜNTHER, 2004, p. 79). Desta forma, tais discursos fazem a

recontextualização da norma até então apenas tida como válida a partir de juízos

gerais. No momento da aplicação da norma, para assegurar sua adequação ao

caso, deve-se levar em conta a orientação abaixo:

A relação de uma norma com todos os demais aspectos de uma

circunstancia precisa ser defi nida, de novo, em cada situação de

aplicação, porque não é possível prever a alteração de constelações de

sinais característicos. […] a seleção pode ser considerada adequada, se

tiver sido precedida da consideração de todos os sinais característicos da

situação de aplicação. (GÜNTHER, p. 114)

De tal maneira, os discursos de aplicação apenas partem das normas prima

facie estabelecidas, sem, contudo, a elas se limitarem, na medida em que fazem

a recontextualização da norma às circunstâncias que envolvem a situação. Essa

postura do aplicador também visa à aplicação coerente.

Normas prima facie servem para o entendimento do que são os princípios,

na medida em que estes correspondem mais “a regras prima facie do que decisões

últimas irremovíveis, motivo pelo qual a sua observância exige um ‘refi namento

e uma diferenciação’ constante” (p. 222). Eles devem ser sempre interpretados

em situações concretas, para alcançar o ideal da adequada aplicação. Com

isso cabe lembrar que a proposta desse artigo é analisar a aplicação que o TJRS

faz dos princípios consagrados no art. 11 da LIA, o que demonstra a pertinência

em apresentar a necessária apreciação situacional para a adequada aplicação de

princípios (enquanto normas estabelecidas prima facie). Então, a correta aplicação

demanda uma apreciação das características que envolvem o caso, a fi m de levantar o

signifi cado dos princípios diante das singularidades do caso apresentado. Não basta,

com isso, apenas a referência ou indicação genérica do enunciado do princípio.

No que diz respeito aos argumentos de adequação no Direito, leciona

Günther (2004, p. 369) que “argumentações de adequação somente possuem o

valor de contribuir com recursos retóricos para se conseguir impor como decisão”.

Diga-se que os argumentos que demonstram a adequação da decisão servem para

impor não apenas como decisão, mas para que ela se imponha como uma decisão

legítima, daí a necessária motivação das decisões, pois apenas assim é possível que

335

O silêncio da jurisprudência do Tribunal de Justiça do RS frente aos princípios consagrados no art. 11 da Lei de Improbidade Administrativa

os atingidos por ela possam reconstruir os laços históricos e identifi car se há uma

coerência nesse discurso de aplicação.

Apresentado o postulado teórico do discurso de aplicação proposto por

Günther que interessa a esse trabalho, no passo seguinte entende-se por bem

analisar algumas jurisprudências colhidas na pesquisa, a fi m de demonstrar se a

recontextualização do discurso de fundamentação foi devidamente feita ante as

características da situação.

3 OS RESULTADOS DA PESQUISA

Apenas para relembrar, a pesquisa foi norteada pela expressão improbidade

administrativa, que é uma expressão mais ampla do que o real objeto desse artigo

em analisar apenas o art. 11 da LIA. Ocorre que, para se ter um cenário mais real

dos casos que envolvem o referido artigo, optou-se por primeiro fazer uma pesquisa

mais ampla, para depois fazer o recorte necessário.

Mister aclarar que os julgados trazem temas recorrentes que apontam os

princípios gerais da administração pública, notadamente os contemplados no

art. 37 da Constituição Federal. Além dessa incidência, também percebeu-se a

frequente discussão entre o elemento subjetivo que caracteriza o dolo nos atos de

improbidade administrativa. Assim, a pesquisa dividiu-se em conformidade com

a relação feita pelo julgador entre o art. 11 e os temas princípios da administração

pública, dolo e improbidade administrativa.

Observou-se que seis acórdãos que utilizaram o art. 11 em sua fundamentação

se ativeram a citá-lo de forma mais genérica excluindo ou atribuindo aos atos

praticados à característica da improbidade administrativa nos termos do artigo em

comento, sem aprofundar o tema.

Em outras 12 decisões, o art. 11 foi referido nas fundamentações juntamente

com os arts. 9º, 10 e 12 sem individualizar a aplicação de cada artigo ao fato julgado,

e em alguns momentos afastando a aplicação do art. 11 ao caso comentado por estar

a conduta nele prevista abrangida pelos demais artigos. Nestes julgados específi cos

consideramos como não debatida a aplicação do art. 11 na fundamentação.

Os princípios gerais da administração pública foram mencionados em 27

julgamentos, alguns faziam menção à Constituição Federal de 1988 e logo após

ao art. 11. Em outros relacionavam os princípios gerais como sendo o preceito

emanado da leitura do referido artigo.

336

Denise Bittencourt Friedrich e Márcia Silveira Moreira

Outras 35 decisões utilizaram o argumento de que a improbidade

administrativa é a ilegalidade qualifi cada pelo elemento subjetivo dolo tipifi cado

no art. 11 da Lei n. 8.429/92.

A caracterização do dolo nos termos do art. 11 é a presença mais forte

no debate dos acórdãos estudados, que se alinham, em regra geral, à posição do

Superior Tribunal de Justiça, citando os julgados os precedentes daquela Corte.

De forma mais expressiva, em 35 julgados, estão os acórdãos que apontam

o desrespeito ao art. 11 pela ofensa aos princípios gerais da administração pública

e pela prática de ato doloso do agente.

Destaca-se ainda que, entre os acórdãos que trataram dos princípios gerais

da administração pública, previstos no art. 37 da Constituição Federal de 1988,

11 deles referiram ofensa aos deveres de honestidade, imparcialidade, lealdade e

legalidade referenciados pelo art. 11.

As fi guras a seguir demonstram de forma gráfi ca os resultados da pesquisa.

Do total de 498 acórdãos analisados que tratavam sobre o tema improbidade

administrativa, em apenas 25% aplicou-se o art. 11 da Lei n. 8.429/92, no

julgamento das demandas.

Deste total de acórdãos pesquisados 9% relacionaram como sendo preceito

do art. 11 a observação dos princípios gerais da administração pública e a

inexistência do dolo nos atos praticados pelos agentes públicos, para fundamentar

o voto; e outros 6% apontaram a observação dos princípios gerais da administração

pública como a orientação contida no artigo em comento.

337

O silêncio da jurisprudência do Tribunal de Justiça do RS frente aos princípios consagrados no art. 11 da Lei de Improbidade Administrativa

Analisando sob o prisma dos 124 julgados que utilizam o art. 11 da LIA para

fundamentar seus votos, observa-se que pouco mais da metade destes (57%)relacionam

o art. 11 à observação dos princípios gerais da administração pública (22%), em alguns

casos aliados ao elemento subjetivo dolo (28%), como cerne norteador do referido artigo.

338

Denise Bittencourt Friedrich e Márcia Silveira Moreira

Os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade, tratados

pela LIA no art. 11, pouco ou quase nada são debatidos nos julgados, sendo que

do total de 498 acórdãos, apenas 16 tratam deles, juntamente com os princípios

constitucionais, representando 3% dos julgados emanados pela corte no ano 2015.

Passa-se agora à analise do art. 11 da LIA:

Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra

os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que

viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às

instituições, e notadamente:

I - praticar ato visando fi m proibido em lei ou regulamento ou diverso

daquele previsto, na regra de competência;

II - retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício;

III - revelar fato ou circunstância de que tem ciência em razão das

atribuições e que deva permanecer em segredo;

IV - negar publicidade aos atos ofi ciais;

339

O silêncio da jurisprudência do Tribunal de Justiça do RS frente aos princípios consagrados no art. 11 da Lei de Improbidade Administrativa

V - frustrar a licitude de concurso público;

VI - deixar de prestar contas quando esteja obrigado a fazê-lo;

VII - revelar ou permitir que chegue ao conhecimento de terceiro, antes

da respectiva divulgação ofi cial, teor de medida política ou econômica

capaz de afetar o preço de mercadoria, bem ou serviço.

VIII - descumprir as normas relativas à celebração, fi scalização e

aprovação de contas de parcerias fi rmadas pela administração pública

com entidades privadas.

IX - deixar de cumprir a exigência de requisitos de acessibilidade previstos

na legislação.

Para não se alongar, a análise da jurisprudência deter-se-á apenas no caput do

artigo, ou seja, na presença, no discurso de aplicação, dos “deveres de honestidade,

imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições”.

A Apelação Cível n. 70063103261 apreciou o caso do prefeito do Município

de Triunfo entendendo ter ele cometido ato de improbidade administrativa por

“violação aos princípios republicanos insculpidos nos arts. 37, II, CF/88, e 20,

CE/89, a mantença, durante todo o período em que o apelante esteve à frente do

Executivo Municipal, de centenas de casos de irregular admissão de funcionários

públicos”. A Corte gaúcha entendeu que por não ter ocorrido o locupletamento

patrimonial, tampouco prejuízos ao Erário (já que os servidores indevidamente

trabalharam), a improbidade se confi gura pela incidência do art. 11 da LIA.

No voto do Desembargador-Relator Arminio José Abreu Lima da Rosa, ao

fi nal, de forma muito reduzida e pouco elucidativa, afi rma que “não trata-se do

caso do art. 9º da LIA, pois este cuida dos casos mais graves de improbidade, em

que o agente público, de modo ilícito, locupleta-se com qualquer tipo de vantagem

patrimonial indevida”. Por isso, entende que o fato narrado enquadra-se no art. 11

da LIA com o seguinte argumento: “Mais corresponde ao caso dos autos à velha,

e nefanda, práxis política de clientelismo, mais afeiçoada sua capitulação em o

art. 11, Lei de Improbidade”. Porém, seu discurso de aplicação deste dispositivo

encerra-se na frase aqui transcrita, sem fazer nenhum aponte às características da

situação que convencem pela adequada aplicação do art. 11.

Em outra situação, na Apelação Cível n. 70062504972, trata das sucessivas

contratações da irmã do prefeito de Palmeira das Missões para o cargo de

professora, entendendo o Tribunal que “A prova produzida nos autos demonstra

a confi guração de atos de improbidade administrativa que atentam contra

340

Denise Bittencourt Friedrich e Márcia Silveira Moreira

princípios da administração pública, notadamente da legalidade, impessoalidade

e moralidade”. O Relator cita a defi nição dos princípios previstos no art. 11

referindo-se às lições de “Silvio Antônio Marques em sua obra Improbidade

Administrativa, ação civil e cooperação jurídica internacional (São Paulo: Saraiva

2010, p. 111-112)”, apenas citando os princípios da legalidade, da impessoalidade

e da moralidade administrativa, sem contemplar os demais princípios previstos no

art. 11, tais como “deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade

às instituições”. Após, o relator passa a descrever o caso, sem, porém, demonstrar

como que as peculiaridades da situação (contratação da irmã do prefeito por mais

de três anos, afastando-se do dever de concurso público) infringem um ou outro

princípio. Observa-se a falta de referência aos princípios diante da situação:

Não há qualquer justifi cativa para as sucessivas contratações temporárias,

com a dispensa da realização de concurso público ao longo de 03 anos.

E causa estranheza a falta de referência aos critérios utilizados na

avaliação de cada candidato, uma vez que consta nas atas tão-somente

a respectiva colocação nos processos seletivos. Não há como saber por

quais motivos cada concorrente foi classifi cado na posição a ele atribuída.

[...]

E outro fator que confi gura a improbidade é a falta de publicidade

adequada das seleções, levando ao raciocínio de que havia intuito de

privilegiar a irmã do prefeito.

Interessante que, após esses argumentos, o relator passa a analisar o

descumprimento ao princípio da publicidade, que sequer foi explicitado pelo

art. 11. Não que não seja de extrema importância esse princípio, sendo um dos que

mais se vincula ao ideal de bom governo e ao princípio republicano, mas como

aqui se está analisando a adequada aplicação do Direito, a partir dos postulados

teóricos de Günther, pode-se verifi car que a referência ao art. 11 não é explorada

diante das características da situação.

Ao fi m da decisão mais uma vez refere-se ao art. 11, sem desenvolver os

princípios nele consagrados:

A prova produzida revela o fl agrante intuito do réu, ex-prefeito municipal,

de não realizar concurso público para o magistério, com o nítido

propósito de favorecer sua irmã, concretizando-se também a prática de

341

O silêncio da jurisprudência do Tribunal de Justiça do RS frente aos princípios consagrados no art. 11 da Lei de Improbidade Administrativa

nepotismo. Houve afronta aos princípios basilares da administração

pública, notadamente os da legalidade, moralidade e impessoalidade.

Confi gurada, assim, a prática de atos de improbidade praticados pelo réu,

ex-prefeito municipal de São José das Missões, nos termos do art. 11,

caput, e seu inciso I, da Lei nº 8.429/92, devendo ser mantida a sentença

atacada em seu mérito.

Situação semelhante a esta de nepotismo, ocorreu na Apelação Cível

n. 70063038277, em que o Ministério Público Estadual atribui ao demandado

a prática dos atos descritos nos arts. 10, I, II, IX, X e XII, e 11, I e II, da Lei

n. 8.429/92, pois, na condição de Prefeito em exercício do Município de Horizontina,

manteve sua irmã no cargo de Diretora do Departamento de Emprego, afrontando,

assim, a vedação consagrada pela Súmula Vinculante n. 13 do STF.

Ao analisar os artigos que descrevem as condutas ímprobas, o relator traz

um elemento importante sobre o art. 11 da LIA: “O art. 11 da Lei n. 8.429/92

(atos de improbidade pela inobservância dos princípios da Administração Pública)

é de aplicação subsidiária ou residual, caso inexista adequação típica da ação às

hipóteses dos seus arts. 9º (atos de improbidade que importam em enriquecimento

ilícito) e 10 (atos de improbidade que importam em prejuízo ao erário)”. Assim,

a incidência dos artigos que descrevem os atos de improbidade se dá de forma

isolada, sem que haja a tipifi cação conjugada de duas ou mais condutas. Então,

só poderá ser condenado pela inobservância dos princípios administrativos, se não

ocorrer o enriquecimento ilícito ou o prejuízo ao Erário, talvez por essa razão,

a condenação pelo art. 11 seja tão frequente. Isso deixa ainda mais evidente a

importância da exploração mais adequada dos princípios nela contemplados.

Ao analisar essa última apelação, nota-se um maior cuidado por parte da

relatora em apresentar os princípios ante as circunstâncias. Chama a atenção a

preocupação da relatora em desmembrar o princípio da lealdade, que não aparece

nas demais decisões, conforme observa-se do trecho abaixo:

A deslealdade às instituições se insere no conceito de improbidade

compreendido por conduta dolosa, com nota essencial da deslealdade,

desonestidade, má-fé ou ausência de caráter. A parcialidade, como

destaca o autor, é vislumbrada quando a conduta do autor não se pauta

por critérios lógico-racionais, mas se deixa infl uenciar por interesses

estranhos à totalidade dos interesses afetados por sua ação, situação

342

Denise Bittencourt Friedrich e Márcia Silveira Moreira

em que deixa de ser conduta objetiva, desinteressada, isenta, neutra a

independente. Ressalta, em referência à Fábio Medina Osório (Teoria

da Improbidade Administrativa), que a afronta à imparcialidade que

enseja a improbidade seria aquela em que o agente público marca sua

atividade administrativa pela perseguição de fi ns particulares, motivações

egoísticas, ambições pessoais que se sobreponham ao interesse público.

Embora de forma muito sucinta, nota-se nessa jurisprudência uma breve

análise da lealdade. Outra conclusão que se extrai de toda a casuística pesquisada é

que a maior preocupação ainda está em desmembrar as características situacionais

do elemento subjetivo, relegando a um segundo plano a análise dos princípios

consagrados no art. 11. Tal situação fi ca muito bem evidenciada a partir da seguinte

exposição da relatora, após apresentar os argumentos da sentença de 1º Grau:

Como visto, a sentença guerreada analisou com percuciência o suporte

fático que envolve a questão posta sob apreciação, sobretudo quanto à

verifi cação do elemento subjetivo que permeia a conduta confi guradora

de ato de improbidade administrativa que importa em violação aos

princípios regentes da atividade administrativa. (grifo nosso)

Com isso, dá-se por encerrada a análise da jurisprudência, pois os demais

casos que expressamente analisam o art. 11 da LIA, em certa medida, repetem os

argumentos e reproduzem a prática de pouco se deter em um discurso de aplicação

jurisprudencial que complemente o discurso de fundamentação. Ao contrário

do que leciona Günther, para quem o discurso de aplicação, para assegurar a

adequada aplicação das normas, deve trazer à baila as características da situação

para assegurar a aplicação coerente e por sua vez imparcial.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Percebeu-se, pela análise da jurisprudência, que o art. 11 da Lei de

Improbidade Administrativa fi gura nas decisões que visam à condenação de

agentes administrativos pela prática de atos de improbidade. Porém o Tribunal

gaúcho preocupa-se mais em debater a tipifi cação do dolo dos agentes e o princípio

da legalidade. Ao analisar os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade,

e lealdade às instituições, que representam princípios dirigidos aos agentes

343

O silêncio da jurisprudência do Tribunal de Justiça do RS frente aos princípios consagrados no art. 11 da Lei de Improbidade Administrativa

administrativos, muito pouco de apreciação e de contextualização se notou,

representando um verdadeiro silêncio jurisprudencial.

Assim, percebe-se que ocorre o inverso das lições de Günther, na medida

em que defende a recontextualização feita pelo discurso de aplicação ao discurso

de fundamentação, haja vista o princípio fraco de “U” que vigora nesse último.

Nos casos analisados, porém, o discurso de aplicação feito pelo Tribunal de Justiça

do Rio Grande do Sul não aprecia as características da situação que lhe cabem

investigar, deixando de fazer o uso da razão prática na aplicação, o que compromete

a racionalidade vinculada ao contexto em que opera. Ocorre que a fundamentação

foi mais abrangente do que a aplicação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LUHMANN, Niklas. Organización y Decisión. Autopoiesis, acción y entendimiento

comunicativo. Tradução de Darío Rodriguez Mansilla. México: Anthropos, 1997.

GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no dirieto e na moral: justifi cação e

aplicação. Tradução de Claudio Molz. São Paulo: Landy Editora, 2004.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. Ação Civil

Pública n. 70063103261. Relator: Des. Arminio José Abreu Lima da Rosa.

Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br/busca/?tb=proc>. Acesso em: 2 jul. 2016.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. Ação Civil

Pública n. 70062504972. Relator: Des. Almir Porto da Rocha Filho. Disponível

em: <http://www.tjrs.jus.br/busca/?tb=proc>. Acesso em: 2 jul. 2016.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. Ação Civil

Pública n. 70063038277. Relatora: Desa. Marilene Bonzanini. Disponível em:

<http://www.tjrs.jus.br/busca/?tb=proc>. Acesso em: 3 jul. 2016.

A APLICAÇÃO DA RESPONSABILIDADE PENAL DA

PESSOA JURÍDICA PELO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO

ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL1

Brenda Catoi2

Bruna Henrique Hübner3

RESUMO

No presente trabalho buscou-se averiguar de que forma o Tribunal de Justiça

do Estado do Rio Grande do Sul vem aplicando, no período compreendido entre

julho de 2013 e julho de 2016, a responsabilidade penal às pessoas jurídicas. Em um

primeiro momento, serão apresentados os métodos utilizados na ferramenta de pesquisa

jurisprudencial do site do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, bem como

os resultados quantitativos, e depois serão analisadas as questões teóricas discutidas nos

acórdãos obtidos, de forma a elucidar a aplicação pelo TJRS no tocante à responsabilidade

penal da pessoa jurídica. O método de abordagem utilizado foi o hipotético-dedutivo e

como técnica de pesquisa, a jurisprudencial e a bibliográfi ca (artigos e livros).

1 – Este trabalho é fruto de pesquisas desenvolvidas junto ao Grupo de Pesquisa “Estado, Administração

Pública e Sociedade”, coordenado pelo Prof. Dr. Rogério Gesta Leal, que atua na linha de pesquisa: Patologias

Corruptivas, do Programa de Pós-Graduação em Direito (Mestrado e Doutorado) da UNISC. As autoras são

bolsistas de iniciação científi ca da modalidade PUIC-CNPq, sob orientação do Prof. Dr. Rogério Gesta Leal.

2 – Graduanda do Curso de Direito na Universidade de Santa Cruz do Sul. Bolsista de Iniciação Científi ca

CNPq do Grupo de Pesquisa “Estado, Administração Pública e Sociedade”, coordenado pelo Prof.

Dr. Rogério Gesta Leal, atuando na linha de pesquisa: Patologias Corruptivas, do Programa de Pós-

Graduação em Direito (Mestrado e Doutorado) da UNISC. E-mail: [email protected].

3 – Aluna da UNISC e integrante do Grupo de Pesquisa Patologias Corruptivas, coordenado pelo Prof.

Dr. Rogério Gesta Leal.

346

Brenda Catoi e Bruna Henrique Hübner

1 INTRODUÇÃO

A responsabilidade penal da pessoa jurídica, embora muito discutida, não

possui contornos claros, tal impressão é predominante entre os acadêmicos de

direito, bem como de muitos docentes e estudiosos do assunto, que analisam a

responsabilidade a partir da legislação alienígena (Alemanha, Espanha, França,

etc.).

O impacto das empresas na sociedade como um todo, mantém acesa a

discussão acerca de sua possível penalização na seara penal, haja vista o emprego

da pessoa jurídica para fi ns ilícitos.

Considerando a importância que a pessoa coletiva possui hodiernamente,

buscou-se analisar a forma como lhe é aplicada a responsabilidade penal pelo

Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. De pronto, deve-se atentar

para o fato de no Brasil a pessoa jurídica somente ser responsabilizada penalmente

na seara ambiental, o que restou confi rmado pela análise dos julgados.

2 ANÁLISE DA APLICAÇÃO DA RESPONSABILIDADE PENAL DA

PESSOA JURÍDICA PELO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO

GRANDE DO SUL

A pesquisa foi realizada no dia 11 de julho de 2016, tendo como padrão

de busca o prazo de três anos (de 11 de julho de 2013 a 11 de julho de 2016)

à data de publicação no site www.tjrs.jus.br. Selecionou-se a opção pesquisa de

jurisprudência. Em relação ao preenchimento dos campos de busca, digitou-se:

no campo destinado a palavras-chave: “responsabilidade penal” “pessoa jurídica”;

Órgão Julgador: Todos; Relator: todos, pesquisa por Ementa; Seção: Todas; Tipo

de Processo: Todos; Número: nenhum; Comarca de Origem: nenhuma; Data de

julgamento: nenhuma; Data de Publicação: 11 de julho de 2013 a 11 de julho de

2016. Com esses termos, o fi ltro encontrou cinco acórdãos.

Nova busca foi feita, na mesma data e selecionando as mesmas opções acima

descritas, exceto as palavras-chave, sendo utilizadas: “pessoa jurídica” 9.605/98.

O fi ltro obteve 18 acórdãos.

Concluída a classifi cação quantitativa dos documentos encontrados,

passou-se a análise qualitativa, observando a forma como o TJRS aplica nos casos

concretos a responsabilidade penal às pessoas jurídicas.

347

A aplicação da responsabilidade penal da pessoa jurídica pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

Obteve-se um total de 23 acórdãos, mas como foram usados dois fi ltros, três

acórdãos repetiram-se, ou seja, trabalhou-se com o total de 20 acórdãos.

Como já se aguardava, haja vista que o ordenamento jurídico brasileiro

possibilita somente a responsabilização criminal da pessoa jurídica de direito

privado pelo cometimento de crimes ambientais (art. 225, § 3º, Constituição da

República, que dispõe: “as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente

sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas,

independentemente da obrigação de reparar os danos causados”), 14 ementas são a

respeito da Lei de Crimes Ambientais e 6 tratam de crimes contra a honra.

No caso dos crimes contra a honra (calúnia, difamação e injúria), todos os

julgados apontaram para a ilegitimidade da pessoa jurídica para fi gurar no polo

passivo das lides, explicando que, somente nos crimes contra a ordem econômica

e fi nanceira e contra a economia popular (art. 173, § 5º, da Constituição Federal) e

nos crimes contra o meio ambiente, a pessoa jurídica é parte legítima para fi gurar

no polo passivo de ação penal.

BITENCOURT (2012), ao conceituar os sujeitos ativos dos crimes contra

a honra, expressamente consigna que a pessoa jurídica não está legitimada para

praticar tais tipos de crime. Corrobora com tal entendimento CAPEZ (2012), que

defende que, no tocante aos crimes contra a honra, não existe a possibilidade de

responsabilização penal de pessoa jurídica.

Verifi ca-se que inexiste em nosso ordenamento a possibilidade de ser

imputada à pessoa jurídica a prática de crime contra a honra, o que é confi rmado

pela doutrina nacional especializada.

3 A PREVISÃO DE RESPONSABILIZAÇÃO PENAL DA PESSOA

JURÍDICA NA LEI DOS CRIMES AMBIENTAIS

Crime ambiental, grosso modo, é todo e qualquer dano ou prejuízo

causado aos elementos que compõem o ambiente (fauna, fl ora, recursos naturais

e o patrimônio cultural). Suas condutas estão previstas na Lei n. 9.605 de 12 de

fevereiro de 1998 (Lei de Crimes Ambientais), que determina as sanções penais e

administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente.

A pessoa jurídica que incorre em alguma das condutas tipifi cadas na Lei de Crimes

Ambientais, por óbvio, não pode ter sua liberdade restringida da mesma forma que a

pessoa física, sendo penalizada com multa e/ou penas restritivas de direitos, que são:

348

Brenda Catoi e Bruna Henrique Hübner

a suspensão parcial ou total das atividades; interdição temporária de estabelecimento,

obra ou atividade; a proibição de contratar com o Poder Público, bem como dele

obter subsídios, subvenções ou doações (art. 22 da Lei n. 9.605/98). Existe também a

possibilidade de prestação de serviços à comunidade por meio de custeio de programas

e de projetos ambientais; execução de obras de recuperação de áreas degradadas;

contribuições a entidades ambientais ou culturais públicas. Para fi ns de prescrição,

aplica-se o prazo de dois anos, nos termos do art. 114, inc. I, do Código Penal.

No caso de crime ambiental, o rito é o da ação civil pública, tendo por

propósito a reparação do dano onde ocorreu a lesão dos recursos ambientais.

Podem propor esta ação o Ministério Público, a Defensoria Pública, a União,

os Estados, os Municípios, as empresas públicas, as fundações, as sociedades de

economia mista e as associações com fi nalidade de proteção ao meio ambiente.

A discussão doutrinária acerca do tema da responsabilização penal da pessoa

coletiva prolonga-se com o passar do tempo, em que pese que sua aplicação à tutela

ambiental já esteja indiscutivelmente fi rmada em nosso ordenamento jurídico –

primeiramente, por meio do art. 225, § 3º, da Constituição Federal e, posteriormente,

pelo advento da Lei n. 9.605/98, denominada Lei dos Crimes Ambientais –, tendo

em vista principalmente o fato de que parte mais tradicional da doutrina tem-se

apegado ao dogma romano-germânico do societas delinquere non potest, que, em

conformidade com a chamada teoria da fi cção legal de Savigny, prevê que a pessoa

jurídica é totalmente destituída de uma personalidade e, logo, incapaz de manifestar

vontade, ou seja, é impossível que este mesmo ente fi ctício viesse a praticar uma

conduta que gerasse efeitos na esfera penal, pois, para isso, é necessário exatamente o

atributo da vontade, requisito essencial para que haja, aliás, também a culpabilidade

(MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL).

Em relação aos crimes ambientais, a doutrina favorável à responsabilização

penal da pessoa jurídica entende que a natureza desta deve ser vista pela lente

da teoria da realidade técnica, pela qual a noção de personalidade é própria do

campo ideológico e jurídico. Processualmente falando, a denúncia, no caso da

pessoa jurídica, deve obedecer ao previsto no parágrafo único do art. 3º da Lei

n. 9.605/98, devendo a peça inicial acusatória especifi car, como parte no polo

passivo da ação, a pessoa jurídica infratora e as pessoas físicas que contribuíram

para o delito ambiental. Contudo, quando não for possível a apuração dessas

pessoas naturais, tal situação deve constar na peça portal acusatória, sob pena de ser

considerada inepta. Em relação ao interrogatório, via de regra, o ente jurídico será

interrogado por intermédio da pessoa física de seu representante legal. Todavia, é

349

A aplicação da responsabilidade penal da pessoa jurídica pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

aceitável a indicação de um preposto, tanto quando este for um maior conhecedor

dos fatos em questão quanto no caso do representante legal ser também réu no

mesmo processo, podendo ocorrer colisão de defesa (MINISTÉRIO PÚBLICO

DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL).

Seria, todavia, inviável que o ente coletivo viesse a ser cobrado sempre que

se visse envolvido em uma ofensa ambiental, mesmo quando indiretamente.

Por esse motivo, o próprio art. 3º da Lei dos Crimes Ambientais oferece dois

requisitos essenciais para que haja a responsabilização da pessoa jurídica. Em

primeiro lugar, a infração em questão deve ser cometida por decisão de seu

representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, isto é, a decisão que

provocou o dano ambiental deve ter se originado dos administradores da pessoa

jurídica, sendo possível a responsabilidade penal também pela omissão destes.

O segundo requisito para a responsabilização penal da pessoa jurídica,

e talvez também o principal, consiste no aspecto de que o dano ambiental

tenha sido praticado em prol do interesse ou benefício da pessoa corporativa.

Desse modo, se o dirigente do ente coletivo tomar uma decisão que em nada

interesse ou benefi cie a empresa, ainda que a utilize para seus fi ns ilícitos, não

haverá de se falar na responsabilização da pessoa jurídica. (www.mprs.mp.br).

A aplicação do art. 3º da Lei dos Crimes Ambientais é matéria incontroversa

na jurisprudência do Egrégio Tribunal de Justiça gaúcho, a respeito, interessante o

acórdão da Apelação-Crime n. 70065185530. Nesse julgado, os réus nas razões da

apelação suscitaram, em relação à pessoa coletiva, preliminarmente, a inadequação

da responsabilização criminal da pessoa jurídica, violação do devido processo legal

pela ausência de interrogatório da pessoa jurídica e ausência de individualização

das condutas da pessoa jurídica.

Em relação à responsabilização criminal da pessoa jurídica de direito privado pelo

cometimento dos crimes ambientais, o relator asseverou sua previsão constitucional,

bem como discorreu acerca da previsão constante na Lei dos Crimes Ambientais.

Ademais, ponderou que as Cortes Superiores reconhecem a constitucionalidade

da responsabilidade penal das pessoas jurídicas pelo cometimento de crimes que

tutelam o meio ambiente, bem jurídico de natureza coletiva4.

4 – Nesse sentido: (HC 92.921, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Primeira Turma,

julgado em 19-08-08, DJe-182 DIVULG 25-09-08 PUBLIC 26-09-08 EMENT VOL-02334-03

350

Brenda Catoi e Bruna Henrique Hübner

Por fi m, observou não haver nenhuma irregularidade pela denúncia ter sido

direcionada, também, contra a pessoa jurídica, tampouco quanto ao procedimento

adotado nesta ação penal, observando que:

No que se refere aos requisitos do art. 41, do CPP, foram atendidos na

peça incoativa, com a sufi ciente descrição dos fatos delituosos, por meio

da demonstração do interesse ou o benefício da pessoa jurídica com a

obtenção dos ilícitos (delitos cometidos, em tese, por meio de decisões

dos representantes legais da pessoa jurídica, alcançando facilidade de

acesso náutico aos associados e aumento da sua área útil).

Considerando o pedido expresso da defesa, dou por prequestionados os

arts. 5º, inc. LIV, da CF; 185, 186, 187 e 188, todos do CPP; e 1º e 2º, do

Pacto San José da Costa Rica (Decreto nº 678/92).

Tal posicionamento é unânime nos acórdãos do período da presente pesquisa,

tendo em vista a previsão constitucional e infraconstitucional da responsabilização

coletiva dos entes na seara ambiental.

Passa-se agora, nos subcapítulos, a analisar pontos específi cos acerca

da responsabilização penal da pessoa jurídica enfrentados pelos julgadores nos

acórdãos analisados.

3.1 DA IMPUTAÇÃO ISOLADA DA PESSOA JURÍDICA

A responsabilização da pessoa jurídica é direta e cumulativa com a pessoa

física, sendo a cumulação exigência, haja vista que sem a anuência do ser humano

se torna impossível afi rmar a prática de um crime e especifi car o enquadramento

da responsabilidade da pessoa jurídica.

A Constituição Federal de 1988 previu a responsabilidade penal da

pessoa jurídica, por meio do que dispõem os arts. 173, § 5º e 225, § 3º, que têm,

respectivamente, os seguintes conteúdos:

Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração

direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando

P-00439 RJSP v. 56, n. 372, 2008, p. 167-185); (RMS 39.173/BA, Rel. Min. REYNALDO SOARES

DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 06-08-15, DJe 13-08-15) e (RHC 40.317/SP, Rel.

Min. JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 22-10-2013, DJe 29-10-2013).

351

A aplicação da responsabilidade penal da pessoa jurídica pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse

coletivo, conforme defi nidos em lei.

§ 5º - A lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes

da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a

às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a

ordem econômica e fi nanceira e contra a economia popular.

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente

equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de

vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo

e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

§ 3º - As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente

sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e

administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos

causados.

Decorrência da previsão constitucional é que a Lei Ambiental Penal (Lei

n. 9.605/98) estabeleceu a responsabilidade penal da pessoa jurídica por crimes

contra o meio ambiente:

Art. 3º As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil

e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração

seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de

seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade.

Parágrafo único. A responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a

das pessoas físicas, autoras, co-autoras ou partícipes do mesmo fato.

De enfatizar-se, no entanto, que a imputação isoladamente formalizada

contra pessoa jurídica não vem sendo admitida. Isso porque a coautoria é sempre

necessária nos delitos praticados pela pessoa jurídica.

Segundo Luiz Régis Prado:

Para se imputar a prática de um fato punível e o eventual elemento

subjetivo (vontade) à pessoa jurídica é indispensável uma ação ou

omissão do ser humano. Isso impõe que se lance mão de um artifício

para atribuir à pessoa jurídica os atos de uma pessoa física: ‘um salto’

da pessoa física para a jurídica. O fundamento penal encontrado está na

352

Brenda Catoi e Bruna Henrique Hübner

teoria da identifi cação (identifi cation theory) – identifi cação do controlling

mind – originário da jurisprudência cível (acórdão da House of Lords, 1915),

que acabou por alcançar a área criminal, em 1944. O juiz ou tribunal

deve procurar identifi car a pessoa que ‘não seja um empregado ou agente,

cuja sociedade seja responsável pelo fato em decorrência de uma relação

hierárquica, mas qualquer um que a torne responsável porque o ato

incriminado é o próprio ato da sociedade’ (PRADO, 2009, p. 129).

Também nesse sentido é a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: 

RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA.

CRIME CONTRA O MEIO AMBIENTE. ART. 38, DA LEI

N.º 9.605/98. DENÚNCIA OFERECIDA SOMENTE CONTRA

PESSOA JURÍDICA. ILEGALIDADE. RECURSO PROVIDO.

PEDIDOS ALTERNATIVOS PREJUDICADOS.

1. Para a validade da tramitação de feito criminal em que se apura o

cometimento de delito ambiental, na peça exordial devem ser denunciados

tanto a pessoa jurídica como a pessoa física (sistema ou teoria da dupla

imputação). Isso porque a responsabilização penal da pessoa jurídica não

pode ser desassociada da pessoa física – quem pratica a conduta com

elemento subjetivo próprio.

2. Oferecida denúncia somente contra a pessoa jurídica, falta pressuposto

para que o processo-crime desenvolva-se corretamente.

3. Recurso ordinário provido, para declarar a inépcia da denúncia

e trancar, consequentemente, o processo-crime instaurado contra a

Empresa Recorrente, sem prejuízo de que seja oferecida outra exordial,

válida. Pedidos alternativos prejudicados. RMS 37293 / SP, ROMS

2012/0049242-7, Rel. Min. Laurita Vaz, T5, j. 02/05/2013).

Verifi ca-se, então, que devem ser denunciadas tanto a pessoa jurídica

como a pessoa física – sistema ou teoria da dupla imputação, haja vista que a

responsabilização penal da pessoa coletiva não pode ser desassociada da pessoa

física, que é quem pratica a conduta com elemento subjetivo próprio.

Caso a denúncia seja oferecida somente contra a pessoa jurídica, falta pressuposto

para que o processo-crime desenvolva-se corretamente, devendo ela ser rejeitada.

353

A aplicação da responsabilidade penal da pessoa jurídica pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

3.2 RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA DE

DIREITO PÚBLICO

Na Apelação-Crime n. 70057449340, de relatoria do Des. Rogério Gesta

Leal, o Ministério Público denunciou o Município de Pinheiro Machado e o

Secretário Municipal de Meio Ambiente, pelas condutas do art. 54 e do art. 60,

respectivamente, da Lei n. 9.605/98.

Para Vladimir Passos Freitas e Gilberto Passos Freitas (2010), a

responsabilização da pessoa jurídica somente cabe às de direito privado, pois a

pessoa jurídica de Direito Público (União, Estados, Distrito Federal, Municípios,

autarquias e federações públicas) não pode cometer ilícito penal no seu interesse ou

benefício; pois, ao contrário das pessoas de natureza privada, só podem perseguir

fi ns que alcancem o interesse público.

Contudo, há posicionamentos contrários:

a lei brasileira não faz qualquer distinção, ao contrário, por exemplo,

da expressa exclusão formulada no Código Penal Francês (art. 121-2,

Título II, Capítulo I). Como já mencionamos na nota anterior, há previsão

explicita em alguns Códigos Penais estaduais americanos, como é o caso

do Alabama, em relação à possibilidade de se punir a empresa pública

e até mesmo o governo. Não vemos nenhum óbice à responsabilização

penal da pessoa jurídica de direito público (União, Estados, Distrito

Federal, Municípios, autarquias e fundações públicas). (NUCCI, 2013,

p. 214).

No acórdão em comento, argumentou o relator:

Veja-se que, sob este argumento, o ente público nunca poderia completar

o requisito elencado no art. 3º, da Lei nº 9.605/98, que estabelece a

necessidade de que o fato delituoso ocorra no interesse ou benefício da

pessoa jurídica, isto porque, se a proteção do meio ambiente se encontra

no rol de deveres do Estado conforme estabelece a Constituição Federal,

em seu art. 225, caput, como poderia a violação desse bem representar

algum interesse ou benefício para o Estado?

Quando isso não acontece é porque o administrador público agiu

com desvio de poder. Em tal hipótese só a pessoa natural pode ser

354

Brenda Catoi e Bruna Henrique Hübner

responsabilizada penalmente, e os agentes públicos poderão ser

responsabilizados pelos atos que tenham concorrido para que ocorressem.

E estão corretos no ponto, sob pena de se permitir amplo exercício de

subjetividades decisionais do Poder Judiciário sem controles mínimos de

legitimidade democrática.

O relator também destaca a impossibilidade de aplicação das penas restritivas

de direito previstas pelo diploma ambiental às pessoas jurídicas de direito público:

Outro argumento contrário à responsabilização da pessoa jurídica de

direito público se encontra no âmbito das penas aplicáveis, eis que as

penas restritivas de direitos previstas nos incisos I e II, do art. 22, da

lei ambiental (suspensão parcial ou total de atividades e interdição do

estabelecimento, obra ou atividade), não se aplicam ao Estado em razão

do princípio da continuidade do serviço público.

A proibição de contratar com o Poder Público (inciso III, do art. 22)

também é inaplicável às pessoas de direito público por uma questão de

lógica: a realização de contratos administrativos entre entes públicos não

visa a obtenção de lucro por nenhuma das partes, mas tão somente uma

maior efi ciência na prestação de serviços pelo Estado.

As penas de multa, por sua vez, e de prestação de serviços à comunidade,

seriam, em tese, desprovidas de sentido, na medida em que não

representariam propriamente uma punição. Como a multa é revertida ao

próprio Estado, não se teria a aplicação de penalidade.

Não bastasse, o Chefe do Departamento de Meio Ambiente, ainda

que pudesse ser apontado como co-autor, não retira a legitimidade do

ordenador da despesa pública municipal, que é o Prefeito Municipal, ao

qual a Constituição Federal outorga a prerrogativa de função (art. 29,

inc. X, da CF). A peça incoativa sequer aponta a responsabilidade ou ato

praticado e em que circunstâncias aquele agente indicado por este teria

praticado ou contribuído à realização do ato ilícito.

Na ementa em análise, os desembargadores entenderam que somente cabe a

responsabilização da pessoa jurídica de direito privado em delitos ambientais, haja

vista que a pessoa jurídica de direito público não pode cometer ilícito penal no seu

interesse ou benefício. Ao contrário das pessoas de natureza privada, as de direito

355

A aplicação da responsabilidade penal da pessoa jurídica pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

público somente podem perseguir fi ns que alcancem o interesse público, não se

completando os requisitos do art. 3º da Lei ambiental.

3.3 PRESCRIÇÃO

Aplica-se à pessoa jurídica o prazo prescricional previsto no art. 114, inc. I,

do CP, haja vista que à pessoa jurídica as penas aplicáveis são as disciplinadas no

art. 22 da Lei n. 9.605/98, consistindo em: suspensão parcial ou total de atividades;

interdição temporária de estabelecimento, obra ou atividade, além de proibição de

contratar com o Poder Público, bem como obter subsídios, subvenções ou doações,

aplicando-se, portanto, subsidiariamente o Código Penal quanto à prescrição da

pena de multa, ausente regramento específi co.

Merece a transcrição o voto proferido pelo eminente Relator, Des. José

Eugênio Tedesco, quando do julgamento do Recurso em Sentido Estrito

n. 70026956300:

conforme o disposto no artigo 21 da Lei nº 9.605/98, as penas aplicáveis

isolada, cumulativamente ou alternativamente às pessoas jurídicas são:

multa, restritiva de direitos e prestação de serviços à comunidade.

Em relação à multa, é verdade que ela prescreve em 2 (dois) anos,

quando imposta isoladamente, a teor do que prescreve o artigo 114, I,

CP. Este lapso, no presente caso, já decorreu entre os dois marcos acima

mencionados.

Já quanto à restritiva de direitos e prestação de serviços à comunidade,

a citada lei não traça qualquer parâmetro que possa servir de base ao

cálculo da prescrição, isto porque, naquilo que concerne às pessoas

jurídicas, as penas, à exceção do § 3º do art. 22, não apresentam extensão

temporal. Aliás, atenta-se para que, na sistemática do CP, as penas

restritivas de direitos substituem as penas privativas de liberdades, daí

porque, sintomaticamente, a prescrição se calcula com base na pena

corporal substituída. Na Lei Ambiental, ao contrário do CP, as penas

restritivas são autônomas, e não meramente substitutivas. Logo, as regras

do CP, aqui, caem no vazio.

Portanto, esta inexistência de limites máximo e mínimo para as penas

restritivas aplicáveis às pessoas jurídicas traz o problema relativo

à prescrição. Máxime porque a Constituição Federal estabelece a

356

Brenda Catoi e Bruna Henrique Hübner

prescrição como regra geral, enumerando as exceções de modo taxativo.

Conclusivamente, porque sujeitas à prescrição, é decisivo que se estabeleça

algum critério que oriente seu cálculo.

De forma resumida, pode-se dizer que o TJRS entende que quando a ré

é pessoa jurídica e a pena restritiva de direito de prestação pecuniária é aplicada

de forma autônoma (art. 21, da Lei n. 9.605/98), para a qual não há defi nição de

prazo prescricional, utiliza-se, por equiparação, o prazo aplicado à pena de multa,

qual seja, de dois anos, como reza o art. 114, inc. I, do CP.

3.4 HABEAS CORPUS: PESSOA JURÍDICA COMO PACIENTE

No Habeas Corpus n. 70056708431, o relator explanou que, em face

da natureza híbrida que vem sendo reconhecida ao remédio constitucional e

ampliada pelas decisões pretorianas, no sentido de servir para trancamento de ação

penal, como medida excepcional, que somente pode ser concretizada quando o

fato narrado evidentemente não constituir crime, estiver extinta a punibilidade,

for manifesta a ilegitimidade de parte ou faltar condição exigida pela lei para o

exercício da ação penal, cabe a concessão de habeas corpus à pessoa jurídica.

Em seu voto, o relator destacou que parte da doutrina também tem admitido

esta hipótese:

Pode-se, ainda, examinar a justa causa quando a pessoa jurídica está sendo

perseguida por um fato atípico, que levará, seguramente a uma absolvição,

conforme já asseveramos quando tratamos da sentença criminal, motivo

pelo qual não seria de todo inconveniente a concessão da ordem de habeas

corpus.

Não podemos deixar de lado, também, que a persecução penal pode servir

de abuso do poder de denunciar do Ministério Público, motivo pelo qual o

Superior Tribunal de Justiça já concedeu a ordem de habeas corpus nesta

situação: RSTJ, 29/113.

É claro que em situações como a presente, quando se tem a nítida verificação

da ausência do fumus boni juris, por um exame da prova dos autos e dos

termos da investigação, icto occuli, palpável a inexistência de bom direito,

argumentamos no sentido de que a concessão da ordem é necessária.

Portanto, nesta hipótese, nos parece possível a ordem do habeas corpus

ser interposta pela pessoa jurídica, mercê do exame do fumus boni juris,

357

A aplicação da responsabilidade penal da pessoa jurídica pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

posto que, negar-se esse direito, é submeter o partícipe de um crime ao

constrangimento ilegal, enquanto que o autor material da conduta poderá

ser benefi ciado da ordem, posto que pessoa física. Seria uma negativa do

princípio da comunicabilidade dos recursos.

Dessa forma, quando apenas a pessoa jurídica fi gura como paciente, admite-

-se, sob o argumento de que, no momento em que se a reconhece como ré (art. 225,

§ 3º, da CF), dar-se o direito ao remédio heroico contra perpetração de ilegalidades.

O Superior Tribunal Federal já se posicionou, admitindo a concessão5.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Da análise dos acórdãos chegou-se à seguinte conclusão acerca da

aplicação pelo TJRS da responsabilidade penal da pessoa jurídica: (a) não

5 – PENAL. PROCESSUAL PENAL. CRIME AMBIENTAL. HABEAS CORPUS PARA TUTELAR

PESSOA JURÍDICA ACUSADA EM AÇÃO PENAL. ADMISSIBILIDADE. INÉPCIA DA

DENÚNCIA: INOCORRÊNCIA. DENÚNCIA QUE RELATOU a SUPOSTA AÇÃO CRIMINOSA

DOS AGENTES, EM VÍNCULO DIRETO COM A PESSOA JURÍDICA CO-ACUSADA.

CARACTERÍSTICA INTERESTADUAL DO RIO POLUÍDO QUE NÃO AFASTA DE TODO A

COMPETÊNCIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA E

BIS IN IDEM. INOCORRÊNCIA. EXCEPCIONALIDADE DA ORDEM DE TRANCAMENTO DA

AÇÃO PENAL. ORDEM DENEGADA. I - Responsabilidade penal da pessoa jurídica, para ser aplicada,

exige alargamento de alguns conceitos tradicionalmente empregados na seara criminal, a exemplo da

culpabilidade, estendendo-se a elas também as medidas assecuratórias, como o habeas corpus. II - Writ

que deve ser havido como instrumento hábil para proteger pessoa jurídica contra ilegalidades ou abuso

de poder quando fi gurar como co-ré em ação penal que apura a prática de delitos ambientais, para os

quais é cominada pena privativa de liberdade. III - Em crimes societários, a denúncia deve pormenorizar

a ação dos denunciados no quanto possível. Não impede a ampla defesa, entretanto, quando se evidencia

o vínculo dos denunciados com a ação da empresa denunciada. IV - Ministério Público Estadual que

também é competente para desencadear ação penal por crime ambiental, mesmo no caso de curso d’água

transfronteiriços. V - Em crimes ambientais, o cumprimento do Termo de Ajustamento de Conduta, com

conseqüente extinção de punibilidade, não pode servir de salvo-conduto para que o agente volte a poluir.

VI - O trancamento de ação penal, por via de habeas corpus, é medida excepcional, que somente pode

ser concretizada quando o fato narrado evidentemente não constituir crime, estiver extinta a punibilidade,

for manifesta a ilegitimidade de parte ou faltar condição exigida pela lei para o exercício da ação penal.

VII - Ordem denegada. (HC 92.921, Relator(a):  Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Primeira Turma,

julgado em 19-08-08, DJe-182 DIVULG 25-09-08 PUBLIC 26-09-08 EMENT VOL-02334-03 P-00439

RJSP v. 56, n. 372, 2008, p. 167-185).

358

Brenda Catoi e Bruna Henrique Hübner

há responsabilização penal da pessoa jurídica nos crimes contra a honra, haja

vista a inexistência de previsão legal; (b) devem ser denunciadas tanto a pessoa

jurídica como a pessoa física – sistema ou teoria da dupla imputação, tendo em

vista que a responsabilização penal da pessoa coletiva não pode ser desassociada

da pessoa física, que é quem pratica a conduta com elemento subjetivo próprio;

(c) somente cabe a responsabilização da pessoa jurídica de direito privado em

delitos ambientais, haja vista que a pessoa jurídica de direito público não pode

cometer ilícito penal no seu interesse ou benefício, pois diversamente das pessoas

de natureza privada, as de direito público, somente podem buscar fi ns que alcancem

o interesse público, não se completando os requisitos do art. 3º da Lei Ambiental;

(d) aplica-se à pessoa jurídica o prazo prescricional previsto no art. 114, inc. I,

do CP, haja vista que à pessoa jurídica as penas aplicáveis são as disciplinadas no

art. 22, da Lei n. 9.605/98 (suspensão parcial ou total de atividades; interdição

temporária de estabelecimento, obra ou atividade, além de proibição de contratar

com o Poder Público, bem como obter subsídios, subvenções ou doações),

aplicando-se, portanto, subsidiariamente o Código Penal quanto à prescrição da

pena de multa, ausente regramento específi co; (e) a possibilidade de concessão

de habeas corpus, considerando que, no momento em que se reconhece a pessoa

coletiva como ré (art. 225, § 3º, da CF), dar-se o direito ao remédio heroico contra

perpetração de ilegalidade.

A partir do quadro doutrinário e jurisprudencial exposto no decorrer do

presente trabalho, denota-se que o TJRS possui orientações fi rmadas no tocante à

responsabilização penal da pessoa jurídica, tanto que os entendimentos se repetem

nos acórdãos analisados, bem como que a construção petroriana do TJRS vai ao

encontro da jurisprudência dos tribunais superiores.

5 REFERÊNCIAS

BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal Comentado. 7ª ed. São Paulo:

Saraiva, 2012.

BRASIL. Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível

em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso

em: 21 abr. de 2016.

BRASIL. Lei n. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998. Disponível em: <http://www.

planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9605.htm>.

359

A aplicação da responsabilidade penal da pessoa jurídica pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação-

-Crime n. 70065185530. Relator: Rogério Gesta Leal. Data de julgamento:

26-11-15. Data de publicação: 22-01-16. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br/

busca/search?q=cache:www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/consulta_processo.

php%3Fnome_comarca%3DTribunal%2Bde%2BJusti%25E7a%26versao%3

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=26/11/2015&relator=Rogerio Gesta Leal&aba=juris>.

_____._____. Apelação-Crime n. 70057449340. Relator: Rogério Gesta

Leal. Data de julgamento: 29-05-14. Data de publicação: 16-07-14. Disponível

em: <http://www.tjrs.jus.br/busca/search?q=cache:www1.tjrs.jus.br/site_php/

consulta/consulta_processo.php%3Fnome_comarca%3DTribunal%2Bde%2B

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Comarca de Pinheiro Machado&dtJulg=29/05/2014&relator=Rogerio Gesta

Leal&aba=juris>.

_____._____. Recurso em Sentido Estrito n. 70026956300. Relator: José

Eugênio Tedesco. Data de julgamento: 25-06-09. Data de publicação: 03-08-09.

Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br/busca/search?q=cache:www1.tjrs.jus.br/

s i t e _ p h p / c o n s u l t a / c o n s u l t a _ p r o c e s s o. p h p % 3 F n o m e _ c o m a r c a %

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tor=Jos%C3%A9 Eug%C3%AAnio Tedesco&aba=juris>.

360

Brenda Catoi e Bruna Henrique Hübner

_____._____. Recurso-Crime n. 71005463344. Relator: Edson Jorge Cechet.

Data de julgamento: 10-08-15. Data de publicação: 12-08-15. Disponível em:

<http://www.tjrs.jus.br/busca/search?q=cache:www1.tjrs.jus.br/site_php/

consulta/consulta_processo.php%3Fnome_comarca%3DTribunal%2Bde%2B

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comarca%3D700%26num_processo_mask%3D71005463344%26num_processo

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8&lr=lang_pt&site=ementario&access=p&oe=UTF-8&numProcesso=710054633

44&comarca=Comarca de Guapor%C3%A9&dtJulg=10/08/2015&relator=Eds

on Jorge Cechet&aba=juris>.

_____._____. Hábeas-Córpus n. 70056708431. Relator: Rogério Gesta

Leal. Data de julgamento: 17-10-13. Data de publicação: 13-11-15. Disponível

em: <http://www.tjrs.jus.br/busca/search?q=cache:www1.tjrs.jus.br/site_php/

consulta/consulta_processo.php%3Fnome_comarca%3DTribunal%2Bde%2B

Justi%25E7a%26versao%3D%26versao_fonetica%3D1%26tipo%3D1%26id_

comarca%3D700%26num_processo_mask%3D70056708431%26num_processo

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8431&comarca=Comarca de Encantado&dtJulg=17/10/2013&relator=Rogerio

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A LEI ANTICORRUPÇÃO E A CRIAÇÃO DO CADASTRO DE

EMPRESAS PUNIDAS: A IMAGEM EMPRESARIAL FRENTE

À MORAL PÚBLICA

Ramônia Schmidt1

Rogério Gesta Leal2

RESUMO

O presente artigo busca, por meio de uma abordagem dedutiva e pesquisas

doutrinária e jurisprudencial, investigar o impacto da criação de cadastros de

empresas punidas pela prática de atos corruptos à imagem e à reputação empresarial.

PALAVRAS-CHAVE: Corrupção. Lei Anticorrupção. Responsabilização

Empresarial. Transparência. Reputação Empresarial.

1 – Mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado da UNISC.

Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Graduada

em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Integrante do Grupo de Pesquisas

“Estado, Administração Pública e Sociedade – Patologias Corruptivas”, vinculado ao PPGD da UNISC,

coordenado pelo Professor Doutor Rogério Gesta Leal. Advogada. E-mail: [email protected].

2 – Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Doutor em Direito.

Professor Titular da UNISC. Professor da UNOESC. Professor Visitante da Università Túlio Ascarelli –

Roma Trè, Universidad de La Coruña – Espanha, e Universidad de Buenos Aires. Professor da Escola

Nacional de Formação e Aperfeiçoamento da Magistratura – ENFAM. Membro da Rede de Direitos

Fundamentais – REDIR, do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, Brasília. Coordenador Científi co do

Núcleo de Pesquisa Judiciária, da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento da Magistratura –

ENFAM, Brasília. Membro do Conselho Científi co do Observatório da Justiça Brasileira. Coordenador

da Rede de Observatórios do Direito à Verdade, Memória e Justiça nas Universidades brasileiras –

Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. E-mail: [email protected].

362

Ramônia Schmidt e Rogério Gesta Leal

1 INTRODUÇÃO

O tema da corrupção tem ganhado destaque junto aos meios de comunicação

nos últimos anos, revelando ao público cifras inimagináveis de desvio de recursos

públicos no Estado Brasileiro, seja em nível nacional, estadual ou municipal.

Os dados apresentados pela organização Transparency International no ano

2015 revelam um Brasil em posição de vulnerabilidade junto ao mundo e à própria

América do Sul, alertando para o necessário trabalho de combate à corrupção a ser

desenvolvido de forma urgente. (TRANSPARENCY INTERNATIONAL, 2015)

Embora de difícil conceituação, a corrupção sempre está ligada a uma

conduta de desvio da moralidade coletiva, em que o egoísmo guia as ações de

determinados indivíduos em busca da satisfação de interesses privados em

detrimento dos interesses de todos.

Quando praticada junto à esfera pública, os efeitos da corrupção revelam-se

na insufi ciência de recursos do Estado para assegurar a vida digna de seus cidadãos,

impossibilitando, em termos práticos, a garantia de direitos fundamentais.

As formas e os meios empregados em tais desmandos, via de regra,

consubstanciam-se no desvio de recursos ou na obtenção de vantagens e

favorecimentos, de modo que as atividades de prevenção dos atos corruptivos e

as sanções a serem aplicadas pela sua prática devem ter por objeto tanto órgãos e

agentes públicos como organizações e pessoas da esfera privada.

Na pesquisa a ser aqui desenvolvida, pretende-se primeiramente analisar, de

forma rápida, a consciência e o comprometimento ético que deve pautar as ações

de todos os indivíduos, em todas as esferas da vida – social, empresarial e pública.

Em um segundo momento, discorrer-se-á acerca da evolução normativa

brasileira no combate à corrupção, que culmina com a promulgação da Lei

n. 12.846/13, mais conhecida por “Lei Anticorrupção”, que inovou ao tratar da

responsabilização das pessoas jurídicas pela prática de atos corruptos e a previsão

de disponibilização de listas de empresas punidas por tais atos.

2 ÉTICA E MORAL: DA SOCIEDADE À EMPRESA

A opção do homem por viver em sociedade trouxe consigo a necessária

convivência e a busca constante pela pacifi cação dessa convivência. Elegeram-

-se regras de condutas próprias a cada grupo social e que defi nem as diretrizes

363

A Lei Anticorrupção e a criação do cadastro de empresas punidas: a imagem empresarial frente à moral pública

comportamentais a serem seguidas por aqueles que se encontram nele inseridos,

como forma de garantir a unidade do grupo.

Entretanto, por mais justos e honrosos que possam ser os valores morais

defendidos por cada comunidade, a verdade é que não se alcançou êxito em

converter todos os indivíduos à prática de uma vida que busca a satisfação do

interesse coletivo em detrimento dos interesses pessoais.

Esse desvio comportamental caracteriza a corrupção. É a incapacidade do

homem de respeitar a regra coletiva no intuito da obtenção de alguma vantagem,

seja ela representada em ganho fi nanceiro ou outro benefício qualquer, em favor

próprio ou de terceiros.

Na seara pública, a corrupção do agente público redunda na desvinculação

da atividade estatal da fi nalidade da própria existência do Estado. Olvidam-se os

princípios democráticos e de boa administração, fere-se o escopo da preservação e

promoção do bem comum. (RICHTER, 2014)

No âmbito organizacional empresarial, da mesma forma que nos demais

aspectos da vida em coletividade, existem regras morais e éticas a serem cumpridas.

Dentro de uma empresa, há diversas expectativas com as quais lidar, e o respeito

no tratamento de cada uma dessas variáveis incorpora o valor da empresa em si.

A prática de um ato contrário à moral, em que pese possa representar a

obtenção de algum ganho pessoal, por vezes, também revela-se um processo

doloroso. Especialmente dentro das corporações, em que cumpre aos empregados

a tomada de decisões em razão da função que desempenham, o agir antiético

decorre de pressões internas e externas.

Como revelam Ferrel, Fraedrich e Ferrel (2001, p. 160), utilizando o cenário

americano para suas lições, as questões comerciais e a necessidade de cumprir com

metas previamente estabelecidas levam a um debate ético íntimo:

[...] à medida que gerentes e empregados enfrentam a necessidade de

tomar decisões cada vez mais complexas, as questões éticas ocupam

o primeiro plano nas preocupações da empresa. Com freqüência, as

decisões são tomadas em ambientes coletivos com diferentes sistemas de

valores, pressões competitivas e interesses políticos que contribuem para

a possibilidade de má conduta. Uma pesquisa mostrou que quase 50%

dos trabalhadores sentem pressão para agir de forma ilegal ou antiética.

[...] Em outro levantamento, 47% de gerentes de recursos humanos

disseram que se sentiam pressionados por empregados ou por outros

364

Ramônia Schmidt e Rogério Gesta Leal

administradores a fugir dos padrões éticos da empresa a fi m de alcançar

objetivos comerciais.

A empresa, igualmente como ocorre com os demais atores sociais, enfrenta

o dilema entre a oportunidade de crescimento e a ética. Obter mais lucro, aumentar

a produtividade, inserir-se e manter-se em um mercado competitivo são temáticas

constantes na vida empresarial e demandam a tomada de decisões.

Se devidamente organizada e devidamente trabalhado um código de

conduta entre todos os colaboradores, os riscos de um desvio moral, ainda que

diante de ofertas de crescimento, reduzem-se. Todavia, imersos em um mercado

competitivo, por vezes a oportunidade e a recompensa decorrentes da corrupção

mostram-se demasiado atraentes, conduzindo a um mar de turbulência difícil de

controlar. (FERREL, FRAEDRICH, FERREL, 2001)

Ou ainda, em algumas situações, os instrumentos de controle ético

idealizados pelas organizações são implantados somente em seu aspecto formal.

Preocupados somente em atender às exigências no aspecto formal, as organizações

relegam as questões atinentes à efetividade dos controles internos, difi cultando

outras formas de verifi cação externas sob a aparência de gestão responsável.

(LEAL, 2014)

Nessas situações, mais do que violações éticas, as corporações correm o

risco de envolverem-se em problemas legais. Tratando-se de áreas imprecisas ou

dilemas éticos ambíguos, a sentença entre o certo e o errado, entre o correto e

o reprovável encontra-se em normas específi cas e por vezes recai até mesmo ao

Poder Judiciário.

Nas relações, a ética revela-se por meio da reciprocidade. Quando

conhecida e aplicada a palavra da lei, sabe-se de antemão o resultado para o seu

descumprimento e a extensão dos danos decorrentes dessa aplicação:

A ética aqui, portanto, não é um mero pressuposto factível ou

desconhecido da ciência jurídica. É, por assim dizer, um elemento do ato,

uma condição normal de executoriedade. Refl ete lisura no conhecimento

da lei. Prova exação na conduta administrativa. Impõe relações estáveis.

Compõe obrigações recíprocas. Não impede a responsabilização por

danos possíveis. Controla o direito aplicável. (FRANCO SOBRINHO,

1997, p. 37)

365

A Lei Anticorrupção e a criação do cadastro de empresas punidas: a imagem empresarial frente à moral pública

E justamente, a fi m de tentar coibir a prática da corrupção, idealizam-se a

cada dia novas normas jurídicas, que buscam antever comportamentos e nichos de

prática corruptiva, bem como estabelecer penalizações exemplares à transgressão

de tais regras.

Consoante ver-se-á no item seguinte, o ordenamento jurídico brasileiro tem

evoluído na matéria do combate à corrupção, buscando atingir não apenas o agente

público corrupto, como todos os demais atores de tais desmandos.

3 A EVOLUÇÃO DO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

NO COMBATE À CORRUPÇÃO: A LEI ANTICORRUPÇÃO

Levando-se em consideração os apontamentos do item anterior, que

revelam a prática de atos corruptivos, tanto na esfera pública quanto na privada,

inegavelmente os esforços em combater tais desmandos devem atuar igualmente

em ambas as frentes.

Trata-se necessariamente da criação de normas e demais dispositivos

administrativos e legais que visem à sensibilização, conscientização e punição

de todos os envolvidos na teia da corrupção. Como destaca Rodríguez-Arana

(2013), atuações isoladas não têm a capacidade de solucionar tal problema, faz-se

necessário um controle da Administração Pública que atinja sociedade e Estado,

cidadãos e agentes públicos.

Nesse sentido, merece destaque a evolução normativa brasileira no combate

à corrupção. A partir da década de 1990, idealizaram-se diversas normas de

proteção do interesse público, prevenção de atos corruptos e punição de agentes

que os praticam.

A primeira das normas a merecer destaque é a Lei n. 8.429, de 2 de junho

de 1992 (BRASIL, 1992), conhecida como “Lei da Improbidade Administrativa”,

que trata das sanções aplicáveis aos agentes públicos corruptos, com a tipifi cação

de hipóteses de condutas desonestas e previsão de procedimentos administrativos e

judiciais para a averiguação de condutas suspeitas.

O fato de a referida Lei não trazer uma conceituação fechada acerca do

signifi cado do termo “improbidade” pode atuar positivamente na luta travada contra

a corrupção. Se corretamente aplicada e interpretada, permite um alargamento na

compreensão do que seja defi nido por conduta ímproba e, consequentemente, pode

vir a alcançar uma maior aplicabilidade.

366

Ramônia Schmidt e Rogério Gesta Leal

Outra norma que deve ser evidenciada é a Lei n. 12. 527, de 18 de novembro

de 2011, que assegura e regulamenta o acesso à informação pública. Mais conhecida

como “Lei de Acesso à Informação”, impõe aos órgãos da Administração Pública

Direta e Indireta, bem como às demais entidades que utilizam recursos públicos,

o dever de publicização de informações de interesse geral em local de fácil acesso

ao público em geral.

Trata-se, pois, da implementação efetiva do direito à informação (do cidadão)

e do dever de transparência (da Administração Pública e demais entidades ligadas

a ela), com a proposta de ampliação de canais de contato e uso de tecnologias nessa

aproximação:

Mais do que parâmetros substantivos, a lei estabelece procedimentos para

o diálogo, e enriquece o processo de interpretação acerca da aplicação do

princípio da transparência do qual o acesso a informação é um dos pilares,

ao ampliar os canais e procedimentos, institucionalizados e legítimos,

para atuação dos diversos atores envolvidos. [...] Além dos procedimentos

para o acesso à informação, a Lei n. 12.527 defi ne como atribuição de

todos os órgãos e entidades públicos assegurar a gestão transparente da

informação, propiciando amplo acesso a ela e sua divulgação, bem como

a proteção da informação, garantindo sua disponibilidade, autenticidade

e integridade (art. 6º, I e II). (ROCHA, 2012, p. 89)

Por fi m, mas não menos importante, importa destacar a idealização da Lei

Anticorrupção (Lei n. 12.846, de 1° de agosto de 2013), que é objeto específi co

de análise deste trabalho. Inovou tal norma ao dispor acerca da responsabilidade

civil e administrativa de pessoas físicas e jurídicas pela prática de atos lesivos ao

patrimônio público nacional ou estrangeiro, ou ainda atos contrários aos princípios

da Administração Pública:

Art. 1°. Esta Lei dispõe sobre a responsabilização objetiva administrativa

e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração

pública, nacional ou estrangeira.

Parágrafo único. Aplica-se o disposto nesta Lei às sociedades empresárias

e às sociedades simples, personifi cadas ou não, independentemente

da forma de organização ou modelo societário adotado, bem como a

quaisquer fundações, associações de entidades ou pessoas, ou sociedades

367

A Lei Anticorrupção e a criação do cadastro de empresas punidas: a imagem empresarial frente à moral pública

estrangeiras, que tenham sede, fi lial ou representação no território

brasileiro, constituídas de fato ou de direito, ainda que temporariamente.

(BRASIL, 2013)

Além de instituir a responsabilidade às empresas sob as mais diversas formas de

personifi cação, a Lei Anticorrupção traz em seu bojo a defi nição das condutas tipifi cadas

como lesivas e sujeitas às penalidades legais, que vão desde a oferta de vantagem

indevida a agente público até a interferência em atos de investigação e fi scalização:

Art. 5°. Constituem atos lesivos à administração pública, nacional ou

estrangeira, para os fi ns desta Lei, todos aqueles praticados pelas pessoas

jurídicas mencionadas no parágrafo único do art. 1o, que atentem

contra o patrimônio público nacional ou estrangeiro, contra princípios

da administração pública ou contra os compromissos internacionais

assumidos pelo Brasil, assim defi nidos:

I - prometer, oferecer ou dar, direta ou indiretamente, vantagem indevida

a agente público, ou a terceira pessoa a ele relacionada;

II - comprovadamente, fi nanciar, custear, patrocinar ou de qualquer modo

subvencionar a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei;

III - comprovadamente, utilizar-se de interposta pessoa física ou jurídica

para ocultar ou dissimular seus reais interesses ou a identidade dos

benefi ciários dos atos praticados;

IV - no tocante a licitações e contratos:

a) frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro

expediente, o caráter competitivo de procedimento licitatório público;

b) impedir, perturbar ou fraudar a realização de qualquer ato de

procedimento licitatório público;

c) afastar ou procurar afastar licitante, por meio de fraude ou oferecimento

de vantagem de qualquer tipo;

d) fraudar licitação pública ou contrato dela decorrente;

e) criar, de modo fraudulento ou irregular, pessoa jurídica para participar

de licitação pública ou celebrar contrato administrativo;

f) obter vantagem ou benefício indevido, de modo fraudulento,

de modifi cações ou prorrogações de contratos celebrados com a

administração pública, sem autorização em lei, no ato convocatório da

licitação pública ou nos respectivos instrumentos contratuais; ou

368

Ramônia Schmidt e Rogério Gesta Leal

g) manipular ou fraudar o equilíbrio econômico-fi nanceiro dos contratos

celebrados com a administração pública;

V - difi cultar atividade de investigação ou fi scalização de órgãos, entidades

ou agentes públicos, ou intervir em sua atuação, inclusive no âmbito das

agências reguladoras e dos órgãos de fi scalização do sistema fi nanceiro

nacional. (BRASIL, 2013)

Na esfera administrativa, a Lei prevê duas formas de sanções: a aplicação de

multa – a ser arbitrada entre 0,1% e 20% do faturamento bruto da pessoa jurídica

do último exercício anterior à instauração do procedimento administrativo – e a

publicação extraordinária da decisão condenatória – a ser divulgada em meios

de comunicação de grande circulação na área de atuação do condenado. Tais

penalidades poderão ser aplicadas isolada ou cumulativamente, a depender de

cada caso concreto, sendo que o seu cumprimento não exclui a responsabilidade

da empresa condenada à reparação integral do dano provocado.

Independentemente da responsabilização administrativa, poderá, ainda, a

Administração Pública, por meio de suas respectivas advocacias públicas, ou por

intermédio do Ministério Público, buscar a responsabilidade judicial pela prática

dos atos descritos no art. 5° da Lei Anticorrupção já antes transcritos.

As sanções previstas na esfera judicial, por sua vez, igualmente podem ser

aplicadas isolada ou cumulativamente. São elas: perdimento de bens, direitos ou

valores que representem a vantagem indevida; suspensão ou interdição parcial das

atividades da empresa; dissolução compulsória da pessoa jurídica; e proibição de

receber incentivos, doações e empréstimos de órgãos, entidades públicas ou instituições

fi nanceiras controladas pelo poder público, pelo prazo de um a cinco anos.

Como se vê, as penalidades previstas na Lei Anticorrupção a serem

aplicadas às pessoas físicas ou jurídicas envolvidas na prática da corrupção buscam

atingir diferentes aspectos e estágios da atividade empresária. Seja por meio do

perdimento imediato de bens e valores, seja pela proibição de receptação de

incentivos e empréstimos públicos durante um período de até cinco anos, os efeitos

da condenação a curto ou longo prazo são inegavelmente gravosos.

Todavia, além dessas sanções administrativas e judicialmente acima

destacadas, a norma em apreço trouxe nova espécie de penalidade. Não se trata de

sanção propriamente dita, mas cujas consequências poderão ser semelhantes entre si.

Trata-se da criação de listas abertas ao público em geral, disponibilizadas em

meio de fácil acesso, constando todas as informações atinentes às pessoas jurídicas

punidas pela prática de atos corruptivos e às sanções aplicadas.

369

A Lei Anticorrupção e a criação do cadastro de empresas punidas: a imagem empresarial frente à moral pública

Como ver-se-á a seguir, tais listas atingem ponto nevrálgico às empresas,

na era da disseminação da informação e da conscientização da responsabilidade

social: a reputação.

4 A CRIAÇÃO DAS LISTAS DE EMPRESAS PUNIDAS

INTRODUZIDA PELA LEI N. 12.846/13 E A GESTÃO DE REPUTAÇÃO

EMPRESARIAL

Como rapidamente discorrido no item anterior, na constante e crescente

luta da sociedade brasileira contra a corrupção, a evolução do ordenamento

jurídico tem revelado-se uma das mais poderosas armas. Consequentemente, mais

do que prever sanções a serem aplicadas aos agentes públicos envolvidos nos atos

corruptos, as normas adotadas pelo Brasil no combate à corrupção – sejam elas

concebidas pelo Poder Legislativo local, ou decorrentes da assinatura de tratados

internacionais ou ainda meros protocolos de intenção – buscam atingir todas as

esferas suscetíveis a tais desmandos.

Dentre tais normas, merece especial destaque a criação da Lei Anticorrupção,

que propõe a responsabilização das pessoas jurídicas pelos atos praticados contra a

Administração Pública, seja ela nacional ou estrangeira – conforme também antes

já discorrido de modo sucinto.3

Dentre os diversos avanços trazidos por tal Lei, adquire especial relevância

a criação de um cadastro nacional de empresas punidas, por meio do qual se revela

ao mundo nomes e sanções aplicadas em cada caso concreto:

Art. 22. Fica criado no âmbito do Poder Executivo federal o Cadastro

Nacional de Empresas Punidas - CNEP, que reunirá e dará publicidade

às sanções aplicadas pelos órgãos ou entidades dos Poderes Executivo,

Legislativo e Judiciário de todas as esferas de governo com base nesta

Lei.

§ 1° Os órgãos e entidades referidos no caput deverão informar e manter

atualizados, no Cnep, os dados relativos às sanções por eles aplicadas.

3 – Posteriormente, acerca da implementação prática de tais cadastros, a referida Lei foi regulamentada

pelo Decreto n. 8.420, de 18 de março de 2015 e pela Instrução Normativa n. 2 da Controladoria-Geral

da União, de 7 de abril de 2015.

370

Ramônia Schmidt e Rogério Gesta Leal

§ 2° O Cnep conterá, entre outras, as seguintes informações acerca das

sanções aplicadas:

I - razão social e número de inscrição da pessoa jurídica ou entidade no

Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica - CNPJ;

II - tipo de sanção; e

III - data de aplicação e data fi nal da vigência do efeito limitador ou

impeditivo da sanção, quando for o caso.

§ 3° As autoridades competentes, para celebrarem acordos de leniência

previstos nesta Lei, também deverão prestar e manter atualizadas no

Cnep, após a efetivação do respectivo acordo, as informações acerca do

acordo de leniência celebrado, salvo se esse procedimento vier a causar

prejuízo às investigações e ao processo administrativo.

§ 4° Caso a pessoa jurídica não cumpra os termos do acordo de leniência,

além das informações previstas no § 3o, deverá ser incluída no Cnep

referência ao respectivo descumprimento.

§ 5° Os registros das sanções e acordos de leniência serão excluídos depois

de decorrido o prazo previamente estabelecido no ato sancionador ou do

cumprimento integral do acordo de leniência e da reparação do eventual

dano causado, mediante solicitação do órgão ou entidade sancionadora.

Art. 23. Os órgãos ou entidades dos Poderes Executivo, Legislativo

e Judiciário de todas as esferas de governo deverão informar e manter

atualizados, para fi ns de publicidade, no Cadastro Nacional de Empresas

Inidôneas e Suspensas - CEIS, de caráter público, instituído no âmbito do

Poder Executivo federal, os dados relativos às sanções por eles aplicadas,

nos termos do disposto nos arts. 87 e 88 da Lei no 8.666, de 21 de junho

de 1993. (BRASIL, 2013)

Trata-se, pois, da idealização de uma forma de penalização que supera a

sanção pecuniária ou a proibição de contratação, essas típicas às pessoas jurídicas

e seus dirigentes. Agora, mais do que buscar o ressarcimento imediato aos cofres

públicos ou de preservar a coisa pública por meio de negativas de contratação por

períodos determinados, o aspecto trabalhado pela Lei Anticorrupção diz respeito

também à publicização e às repercussões decorrentes da aplicação de sanções.

Em termos práticos, a implementação de ambos os cadastros previstos na

Lei Anticorrupção, Cadastro Nacional de Empresas Punidas – CNEP e Cadastro

Nacional de Empresas Inidôneas e Suspensas – CEIS, em termos práticos, está

371

A Lei Anticorrupção e a criação do cadastro de empresas punidas: a imagem empresarial frente à moral pública

ligada à Controladoria-Geral da União – CGU. Utilizando-se da ferramenta

de acesso universal que é a internet, disponibilizou-se junto ao site do Portal da

Transparência, a relação de todas as empresas e pessoas físicas punidas.

Acerca do Cadastro Nacional de Empresas Punidas – CNEP, o banco de

dados disponibilizado é mantido pela Controladoria-Geral da União – CGU, “[...]

que tem como objetivo consolidar a relação das empresas que sofreram qualquer das

punições previstas na Lei n. 12.846/2013 (Lei Anticorrupção)”. (BRASIL, 2016a)

Qualquer pessoa tem acesso ao relatório, sem necessidade de identifi cação,

e a lista de empresas punidas é disponibilizada em arquivo único para download,

na qual se encontram especifi cados os dados tanto da empresa quanto do tipo de

penalidade aplicada e o seu prazo de aplicação.

Especifi camente quanto ao Cadastro Nacional de Empresas Inidôneas e

Suspensas – CEIS, conforme explicação disponibilizada no site e que precede à

relação propriamente dita, novamente, a manutenção do banco de informações é

de responsabilidade da Controladoria-Geral da União, e “[...] tem como objetivo

consolidar a relação das empresas e pessoas físicas que sofreram sanções das quais

decorra como efeito restrição ao direito de participar em licitações ou de celebrar

contratos com a Administração Pública”. (BRASIL, 2016b)

O acesso a tais dados é aberto a todos os usuários, sem qualquer necessidade

de identifi cação. As ferramentas de pesquisa disponibilizadas permitem ao usuário

a pesquisa pelo nome de uma empresa ou pessoa física específi ca (mediante

inserção de dados, como nome ou CNPJ/CPF), ou ainda mediante acesso à lista

integral.

Além da disponibilização do nome dos punidos, também são expostos os

dados da sanção e a data fi nal da penalidade, bem como informado o órgão público

sancionador.

Indubitável, pois, a importância da disponibilização de tais informações em

meio de acesso fácil e rápido. Trata-se de atribuir efetividade à publicização dos

atos inerentes à Administração Pública.

Em uma sociedade marcada pela rapidez na propagação da informação, e

em que a cada dia busca-se e leciona-se maior comprometimento de indivíduos,

organizações e governos com questões éticas comportamentais e ambientais, a

divulgação de nomes e penas de uma forma organizada tem um grande potencial

de repercussão.

Sejam tais informações analisadas pelos consumidores, preocupados em

consumir somente produtos e serviços de reconhecido comprometimento ético,

372

Ramônia Schmidt e Rogério Gesta Leal

sejam elas usadas pelas empresas concorrentes, que podem manipular os dados a

seu favor, é incontestável que a reputação da empresa punida será atingida.

Logo, a esfera atingida por meio da divulgação de tais informações em banco

público, aberto a todos, desenha-se para além da perda de um valor fi nanceiro pré-

-determinado e previsível. Trata-se de atacar um valor intangível, haja vista que a

reputação das organizações inegavelmente compõe o seu patrimônio – capaz de

alavancar o valor econômico e sua importância no cenário mundial, ou soterrar

quaisquer expectativas quando perdidas.4

Como bem defi ne Srour (2003, p. 345), a reputação é de difícil conceituação,

visto que se trata de algo intangível e que decorre da percepção dos outros:

Falar em reputação – e sobretudo de boa reputação – é falar de um ativo

intangível, cuja fragilidade é proverbial, porque, de forma singela, diz

respeito à percepção que outros têm quanto ao valor de uma organização

ou de um profi ssional [...] está intimamente ligada à confi ança coletiva,

ou melhor, à legitimidade que se conquista pelas políticas praticadas ou

pelas ações cometidas.

Assim, trabalhar reputação – a boa reputação – é tratar do seu agir, tendo

em vista a compreensão de tais atos junto aos outros. É atuar com correção,

esperando que o restante do mundo aperceba-se de tal singularidade e que valorize

esse comprometimento.

Tal reconhecimento, por parte da sociedade, traduz-se em credibilidade

(SROUR, 2003). Gozar de credibilidade tem por pressuposto essencial já gozar de

boa fama. Ou seja, trabalha-se para a criação ou manutenção do bom nome, e com tal

reputação, tornar-se legítimo detentor de credibilidade que o diferencia dos demais.

Constrói-se um caminho de busca constante e permanente pela boa reputação, cujo

reconhecimento, por vezes, demora um longo tempo para acontecer. Já a sua perda, em

total dissonância com a lógica da sua obtenção, esvai-se por entre os dedos em um instante.

A luta de anos ou de toda uma vida organizacional pode ser destruída

mediante a ocorrência de fatos e condutas desabonadoras e, especialmente, a

propagação de tal informação ao público.

4 – Como defi nem Abreu, Diehl e Macagnan (2011), os ativos intangíveis constituem fatores de

produção imateriais empregados na produção de bens ou de serviços, que, associados aos fatores

produtivos, atuam como meio de apoio à manutenção de vantagem competitiva – dentre os quais se

pode destacar imagem da empresa, carteira de clientes e motivação de empregados.

373

A Lei Anticorrupção e a criação do cadastro de empresas punidas: a imagem empresarial frente à moral pública

E é este o ponto nevrálgico que pretende a Lei Anticorrupção atingir: atacar

em uma esfera cujo resultado fático não possui limites previamente conhecidos,

haja vista que a repercussão depende de outros atores sociais.

Criar uma lista de livre acesso e com a disponibilização de todas as

informações atinentes à penalização de empresas pela prática de corrupção acarreta

efeitos que se estendem no tempo e que permanecem penalizando o infrator mesmo

após o fi m (ou cumprimento) das demais sanções.

Para além do avanço no combate à corrupção, há de se observar o impacto

que a disponibilização de tais informações acarreta ao penalizado. Como

anteriormente já comentado, os efeitos superam a aplicação de multas – as quais,

ainda que aplicadas em valores exponenciais, têm efeito momentâneo e meramente

fi nanceiro; ou a proibição de contratação com a Administração Pública – que

possui um período determinado.

A disponibilização de uma lista aberta de pessoas físicas e jurídicas

penalizadas em matéria corruptiva permite o acesso e a utilização de tal informação

por consumidores e concorrentes, afetando diretamente a reputação e o valor de

mercado do penalizado.

Como já pacifi cado pelo Superior Tribunal de Justiça, por meio da edição da

Súmula 2275, e reiteradamente aplicada na jurisprudência do Tribunal de Justiça do

Estado do Rio Grande do Sul, as pessoas jurídicas, embora não sejam detentoras

de uma moral subjetiva, haja vista que não possuem capacidade afetiva, possuem

uma moral objetiva defensável perante terceiros e, consequentemente, indenizável.

Utilizando por analogia os julgados do Tribunal de Justiça gaúcho no

que diz respeito aos pedidos de indenização por dano moral experimentados por

pessoas jurídicas, extrai-se que para a sua confi guração deve restar comprovada a

conduta que tenha ferido o seu conceito, o seu bom nome ou a reputação junto ao

mercado e aos consumidores.

Exemplifi cativamente, em julgamento de recurso de Apelação de

n. 70067061283, de relatoria do Des. Antônio Maria de Freitas Iserhard,

restou deferido o pedido de condenação à indenização por danos morais

sofridos por uma empresa em razão da inscrição indevida de seu nome junto

aos cadastros de proteção ao crédito.6 (BRASIL, 2016c)

5 – Súmula n. 227 – A pessoa jurídica pode sofrer dano moral. (BRASIL, 1999)

6 – “APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. Hipótese em que confessado

pela ré a inclusão do nome da autora no seu cadastro de restrição ao crédito. Cabível a concessão de

374

Ramônia Schmidt e Rogério Gesta Leal

Ou seja, a ideia trabalhada pela jurisprudência, no que diz respeito às

empresas e à defesa de sua moral, diz respeito à noção e preservação de seu bom

nome no mundo dos negócios. A inscrição junto a cadastros de maus pagadores,

inegavelmente traz por consequência a perda da probidade comercial e de direito

ao crédito.

Abalados o conceito e o bom nome mediante a atribuição da pecha de mau

pagador – ainda que incorreta e indevida –, entende-se por caracterizado o abalo

moral e o direito à sua reparação mediante indenização a ser arbitrada.

No mesmo sentido, no julgamento da Apelação de n. 70063048201, de

relatoria do Des. Alexandre Kreutz, extrai-se de forma ainda mais clara que a

caracterização do dano moral de pessoa jurídica depende da exteriorização do fato

desabonador.7 (BRASIL, 2016e)

indenização por danos morais à pessoa jurídica por prejudicar sua reputação e seu crédito. APELO

PROVIDO. UNÂNIME. (Apelação Cível Nº 70067061283, Décima Primeira Câmara Cível, Tribunal

de Justiça do RS, Relator: Antônio Maria Rodrigues de Freitas Iserhard, Julgado em 08/06/2016).”

(BRASIL, 2016c)

7 – “APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. AÇÃO DECLARATÓRIA

DE INEXISTÊNCIA DE DÉBITO C/C INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS.

PROTESTO INDEVIDO. EMPRÉSTIMO RECUSADO EM RAZÃO DO PROTESTO. AUSÊNCIA

DE PROVA. PESSOA JURÍDICA. DANO MORAL. JUROS DE MORA. MAJORAÇÃO DOS

HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. Inaplicabilidade do CPC/2015. Art. 14 do CPC. Regra de direito

intertemporal. Decisão proferida anteriormente a entrada da Lei n. 13.105/2015. Cerceamento de defesa

não confi gurado. Da decisão que indeferiu a prova testemunhal, a parte não interpôs o recurso competente.

Preclusão confi gurada. O dano material depende de prova concreta acerca de sua confi guração. Os

documentos apresentados não atestam o prejuízo no valor de R$ 20.000,00, nem mesmo a perda do

negócio, relativo à compra do imóvel. Em se tratando de protesto indevido de título, o dano moral se

confi gura in re ipsa, isto é, prescinde de prova, ainda que seja pessoa jurídica. Incidência da Súmula 227 do

STJ, de acordo com o qual “a pessoa jurídica pode sofrer dano moral”. Em se tratando de responsabilidade

civil contratual, o termo inicial dos juros moratórios, referente ao dano material reconhecido na sentença,

deve ser a data da citação, conforme dispõe o art. 405 do Código Civil. A fi xação dos honorários deve

obedecer à equidade e valorar as moduladoras elencadas nas alíneas do § 3º c/c §4º do art. 20 do CPC,

modo a não ensejar o aviltamento da profi ssão de advogado. No caso em apreço, os honorários foram

fi xados em patamar ínfi mo, diante do trabalho realizado pelo advogado e o tempo de tramitação do feito,

merecendo, pois, majoração. Compensação dos honorários. É possível a compensação dos honorários

advocatícios, forte a aplicação do artigo 21 do CPC/73 e Súmula 306 do STJ, porquanto inaplicável o

regramento previsto no Código de Processo Civil vigente, já que a sentença e o recurso de apelação foram

praticados na vigência da antiga legislação processual civil. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.

UNÂNIME. (Apelação Cível Nº 70063048201, Décima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do

RS, Relator: Alexandre Kreutz, Julgado em 30/06/2016)”. (BRASIL, 2016e)

375

A Lei Anticorrupção e a criação do cadastro de empresas punidas: a imagem empresarial frente à moral pública

No feito em questão, analisava-se a possibilidade do deferimento de indenização

decorrente do protesto indevido de título, entendendo-se pelo seu deferimento, haja

vista que a efetivação do protesto é sinônimo de publicidade do fato.

Tem-se, assim, que a construção jurisprudencial do dano moral empresarial

rege-se pela percepção do restante da sociedade acerca dos atos praticados. O ato

ou fato errado e/ou indevido deverá ser corrigido, todavia, caso não se torne do

conhecimento de terceiros, não confi gurará dano indenizável.

A corroborar, transcreve-se trecho do voto proferido pelo Des. Umberto

Guaspari Sudbrack no julgamento da Apelação n. 70069290161, que tratava de

pedido de indenização decorrente de mero apontamento indevido de títulos para

protesto:8

No caso concreto, o pedido de indenização por danos morais não

prospera, porém, exatamente por força da já referida distinção entre

honra objetiva e subjetiva. Do exame do feito, não se verifi ca qualquer

abalo à honra objetiva da parte autora – uma vez que os títulos indicados

a protesto foram sustados antes que houvesse a publicização dos seus

efeitos, impedindo a ocorrência do dano.

Dessa forma, as afl ições pelas quais a administradora da empresa

recorrente teve de passar, ao se deparar com dois títulos indicados para

protesto, não são sufi cientes para a caracterização do dever de indenizar,

já que se cuida de causa de confi guração de dano moral por força da

violação à honra subjetiva, daí porque não tem qualquer pertinência, ante

8 – “APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. APONTAMENTO DE

TÍTULOS PARA PROTESTO. SUSTAÇÃO ANTES DA PUBLICIZAÇÃO. DANO MORAL.

PESSOA JURÍDICA. HONRA OBJETIVA. INOCORRÊNCIA. Não obstante a pessoa jurídica

seja titular de direitos da personalidade, com a conseqüente possibilidade de ser vítima de abalo

extrapatrimonial, a confi guração do dano moral em prejuízo de pessoa jurídica dá-se de maneira

distinta daquela atinente à pessoa física, tendo em vista que não tem a pessoa jurídica capacidade de

sentir emoção, dor, repulsa, embaraço em seu âmago, sendo incabível falar em abalo em sua honra

subjetiva. Por outro lado, a empresa não está imune, contudo, a eventual lesão a sua honra objetiva, que

diz respeito a sua reputação e ao nome a zelar no seu âmbito negocial. Nesse sentido, levando em conta

que, nos termos da jurisprudência deste Órgão fracionário, o aponte indevido de título para protesto,

por si só, não é fonte geradora do dever de indenizar - por não ocorrer a publicização dos efeitos

do protesto -, deve ser mantida a sentença de improcedência. Apelação desprovida. (Apelação Cível

Nº 70069290161, Décima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Umberto

Guaspari Sudbrack, Julgado em 16/06/2016)”. (BRASIL, 2016d)

376

Ramônia Schmidt e Rogério Gesta Leal

a mencionada distinção entre honra subjetiva e honra objetiva, sendo a

pessoa jurídica titular apenas dessa última. (BRASIL, 2016d)

Novamente, a distinção entre protesto efetivo e apontamento para protesto reside

no alcance do ato. No caso do mero apontamento, não se confi gura o dano em razão

da inexistência de exposição e publicização da qualidade de mau pagador ao restante

da sociedade. Quando ocorrido o efetivo protesto, passa a estar consubstanciado o

dano, em razão do abalo de confi ança e imagem acerca da empresa.

Em outras situações, como a inclusão indevida de valores em faturas,

por exemplo, entende o Tribunal de Justiça gaúcho pela não caracterização de

dano e, consequentemente, indevida eventual indenização moral pretendida.

Nessas ocasiões, a cobrança indevida não atinge a moral da pessoa jurídica, que

unicamente passará pelo transtorno de discutir a ausência de contratação do

serviço.9 (BRASIL, 2016f)

Ainda que pago o valor indevido, comprovado o empreender de forças

na discussão e cancelamento do débito, não haverá qualquer violação à imagem

empresarial. Aqui, o dano moral não constitui forma de punição daquele que agiu

indevidamente, mas apenas e tão somente de ressarcimento pela mácula a sua boa

reputação.

Assim, por lógica, a exposição de uma empresa em cadastros e listas

por condutas corruptivas, igualmente poderá atingir a sua relação para com os

concorrentes, os consumidores e o mercado.

9 – “APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. CONTRATO DE

PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE TELEFONIA. SERVIÇOS NÃO SOLICITADOS. PERÍODO

DE ABRANGÊNCIA. A restituição em dobro da quantia paga acerca de serviços não solicitados

deve abranger todos os pagamentos realizados pelo consumidor. EXIBIÇÃO DAS FATURAS

TELEFÔNICAS. Tratando-se de relação de consumo, a ré deve exibir a documentação e/ou

informações necessárias ao adequado esclarecimento da relação jurídica existente entre as partes (art 6º,

III e VIII, da Lei n. 8.078/90 - CDC). DANO MORAL. PESSOA JURÍDICA. A pessoa jurídica pode

ser vítima de dano moral (honra objetiva) quando atingida em sua imagem, credibilidade e bom nome

no meio social e no mercado em que atua (Sumula 227 do STJ). Por outro lado, simples transtornos ou

meros dissabores nas relações econômicas e sociais não têm relevância sufi ciente para caracterizar dano

moral. No caso concreto, inexiste comprovação de a imagem, credibilidade ou o bom nome da empresa

no meios social e no mercado tenha sido atingido. Por isso, não procede a pretensão de indenização

por danos morais. APELAÇÃO PARCIALMENTE PROVIDA. (Apelação Cível Nº 70069627776,

Décima Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marco Antonio Angelo, Julgado em

07/07/2016)”. (BRASIL, 2016f)

377

A Lei Anticorrupção e a criação do cadastro de empresas punidas: a imagem empresarial frente à moral pública

Trata-se, novamente, do fator exteriorização. Ainda que os processos

administrativos e judiciais que antecedem as penalizações possam ser públicos,

o seu acesso certamente é restrito – seja em razão de difi culdades impostas pelo

linguajar técnico, seja pela forma e local de disponibilização das decisões que por

vezes tolhe o direito do cidadão.

A idealização de uma lista única, em um único local de fácil acesso,

disponibilizando apenas as informações que realmente interessam ao público em

geral, incontestavelmente tem maior poder de dar publicidade à matéria e divulgá-la.

Os concorrentes, como antes já dito, aguardam justamente a oportunidade

de sobressair-se dos demais que atuam no mesmo ramo. A disponibilização do

nome de um concorrente por conduta ímproba constituirá um diferencial a ser

trabalhado, tanto na forma de exaltação de seu agir ético como na propagação

interessada das informações atinentes aos erros praticados pelos demais.

Os consumidores, que detêm o direito de escolha, de optar pelos prestadores

de serviços e produtos que preferem, são governados pela sua consciência e

constantemente expostos a ações publicitárias que buscam induzi-los a uma

determinada opção.

Por fi m, o mercado atua na seleção dos melhores em cada espaço

negocial – e na exclusão daqueles que não atendem às expectativas. Não se

reabrem espaços para aqueles que perderam o crédito, tampouco para aqueles

que carregam estigmas em seu nome ou que sofrem rejeição dos consumidores.

Esses mesmos efeitos, certamente serão suportados pelas empresas punidas

pela prática de atos corruptos e que tenham seus nomes e penalizações expostas

nos cadastros idealizados pela Lei Anticorrupção.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A breve análise dos elementos acima trabalhados, deixa evidenciar o

comprometimento do Estado brasileiro na luta contra a corrupção, fazendo uso da

norma jurídica como uma de suas armas mais efi cazes.

Ainda, resta evidente que a concepção de tais normas tem suportado

evolução constante. Mais do que punir apenas agentes públicos ou defi nir sanções

econômicas, as leis têm buscado a responsabilização de todos aqueles que de

alguma forma contribuíram para a prática do ato corrupto – sejam eles pessoas

físicas ou jurídicas.

378

Ramônia Schmidt e Rogério Gesta Leal

Nesse sentido, a Lei Anticorrupção inovou ao tratar da responsabilização

das pessoas jurídicas e ao determinar a disponibilização do nome das empresas

punidas em matéria de corrupção, mediante a criação de cadastros de livre acesso

ao público.

A inscrição e a veiculação dessas listas inaugura nova fase em matéria de

sancionamento, vez que atinge valores intangíveis no meio empresarial, atacando

a reputação da organização e comprometendo a sua imagem perante todos os

setores, o que reclama maturação por parte da doutrina e casuística nacional e em

muito ainda vamos ter que avançar.

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aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de

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BRASIL. Lei n. 12.527, de 18 de novembro de 2011. Regula o acesso a informações

previsto no inc. XXXIII do art. 5º, no inc. II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216

da Constituição Federal; altera a Lei n. 8.112, de 11 de dezembro de 1990; revoga

a Lei n. 11.111, de 5 de maio de 2005 e dispositivos da Lei n. 8.159, de 8 de janeiro

de 1991; e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/

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www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12846.htm>. Acesso em:

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379

A Lei Anticorrupção e a criação do cadastro de empresas punidas: a imagem empresarial frente à moral pública

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Ramônia Schmidt e Rogério Gesta Leal

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UM ESTUDO DE CASO DA AÇÃO POPULAR N. 70032484198

CONTRA A CÂMARA MUNICIPAL DE VEREADORES DE

PELOTAS: O CONTROLE SOCIAL EM FACE DA PRÁTICA

DO NEPOTISMO 1

Jonathan Augustus Kellermann Kaercher 2

Carla Luana da Silva3

Resumo: O presente trabalho versará sobre a Ação Popular como

instrumento de controle social dos atos corruptivos. Assim, o problema central

1 – Este artigo é resultado de pesquisas feitas junto ao Centro Integrado de Estudos e Pesquisas em

Políticas Públicas – CIEPPP, do Programa de Pós-Graduação em Direito, Mestrado e Doutorado da

Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, e vinculado ao Diretório de Grupo do CNPq intitulado

Estado, Administração Pública e Sociedade, coordenado pelo Prof. Titular Dr. Rogério Gesta Leal,

bem como decorrência de projeto de pesquisa intitulado “Patologias Corruptivas nas relações entre

Estado, Administração e Sociedade: causas, consequências e tratamentos”.

2 – Advogado, mestrando no Programa de Pós-Graduação em Direito com Conceito 5 na Capes –

Mestrado e Doutorado da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC (2015-2016), com Taxa

PROSUP/Capes, na linha de pesquisa “Políticas Públicas”. É integrante do grupo de pesquisa

“Patologias Corruptivas nas relações entre Estado, Administração e Sociedade: causas, consequências

e tratamentos”, coordenado pelo Prof. Dr. Rogério Gesta Leal, vinculado ao PPGD – UNISC e

certifi cado pelo CNPq. E-mail: [email protected].

3 – Advogada, mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e

Doutorado da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, com bolsa PROSUP/Capes, modalidade

Taxa, na linha de pesquisa “Constitucionalismo Contemporâneo”. Integrante do Grupo de Pesquisa

“Estado, Administração Pública e Sociedade”, coordenado pelo Prof. Dr. Rogério Gesta Leal, na

linha de “Patologias Corruptivas”, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Direito (Mestrado e

Doutorado) da UNISC. E-mail: [email protected].

382

Jonathan Augustus Kellermann Kaercher e Carla Luana da Silva

desta pesquisa gira em torno de analisar se Ação Popular poderá servir como

controle social às práticas corruptivas. Para isso, analisa-se a Ação Popular em

aplicação no caso concreto de corrupção quanto a atos praticados na Câmara

Municipal de Vereadores de Pelotas, no Estado do Rio Grande do Sul – RS. Assim,

para além de um estudo bibliográfi co, o presente artigo buscará, na jurisprudência

do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, os aportes necessários

para as observações de como essa ação tem sido manuseada visando ao controle

da contratação pública no que diz respeito à prática de atos corruptivos, no caso, a

prática de nepotismo.

1 INTRODUÇÃO

Inicialmente, salienta-se que os contornos sociais e econômicos que são

dados em torno da corrupção expõem diariamente consequências que passam do

âmbito da Administração Pública brasileira, gerando variadas consequências à

sociedade. Assim, diante da crescente preocupação com a corrupção, surgem os

meios de controle para sua inibição, sendo um desses mecanismos existentes o

controle social exercido por meio do instituto da Ação Popular.

Nesse sentido, aborda-se especifi cadamente, no presente artigo, o controle

social exercido por meio da Ação Popular n. 70032484198 contra a prática do

nepotismo na Câmara Municipal de Vereadores de Pelotas, no Estado do Rio

Grande do Sul – RS. Dessa forma, o problema que conduz o presente trabalho é o

seguinte: considerando que o nepotismo é uma prática corruptiva que está vinculada

às relações de parentesco no trabalho e emprego e que o seu desencadeamento

viola as garantias constitucionais, pergunta-se se a Ação Popular poderá servir

como controle social às práticas corruptivas.

Para desenvolver uma resposta ao presente questionamento faz-se,

primeiramente, um estudo do que vem a ser a corrupção, seus feitos e as estratégias

para sua inibição. Em um segundo momento, indo ao encontro do objetivo do

presente estudo, trazem-se os mecanismos de controle a essas práticas, dentre eles

o controle social pelo cidadão por meio da Ação Popular. Assim, tem-se que o

tema central do presente estudo é a Ação Popular como instrumento de controle

social dos atos corruptivos, tendo em vista sua aplicação pelo Tribunal de Justiça

do Estado do Rio Grande do Sul.

Eis o tema desenvolvido.

383

Um estudo de caso da Ação Popular n. 70032484198 contra a Câmara Municipal de Vereadores de Pelotas: o controle social em face da prática do nepotismo

2 PONDERAÇÕES CONCEITUAIS SOBRE A CORRUPÇÃO COMO

FENÔMENO MULTIFACETADO

Inicialmente, salienta-se que a corrupção é um fenômeno defi nido pela

Organização das Nações Unidas como sendo o “abuso da função pública para

ganho pessoal direto ou indireto”, enquanto no Dicionário Houaiss é um “ato ou

efeito de subornar uma ou mais pessoas em causa própria ou alheia, geralmente com

oferecimento de dinheiro” (PETRELLUZZI; RIZEK JÚNIOR, 2014, p. 19-20).

Vulgarmente, conceituar corrupção é uma tarefa quase impossível, pois o

termo comporta inúmeros signifi cados e extensa gama de consequências.

Há, no entanto, um ponto em comum: trata-se de algo negativo; jamais

positivo. Em dicionários, as defi nições não variam e perfi lam o mesmo

contexto: decompor, depravar, desmoralizar, subornar, tornar podre,

enfi m, destroçar algo. (NUCCI, 2015, p. 1)

Nesse sentido, as condutas corruptivas são entendidas como extremamente

complexas, onde se envolvem agentes públicos e privados, pessoas físicas e

pessoas jurídicas, sendo difícil encontrar uma defi nição ou até mesmo um único

conceito que venha a contemplar todas as possibilidades que o vocabulário encerra

(PETRELLUZZI; RIZEK JÚNIOR, 2014).

Assim, para fi ns de análise do tema, o conceito de corrupção é o seguinte:

trata-se de toda e qualquer vantagem obtida pelos agentes públicos no

exercício das funções que cause prejuízo aos bens, serviços e dos interesses

do Estado. (LIVIANU, 2014, p. 25)

Nesse contexto, observa Leal (2013) que, na tradição do pensamento político

ocidental, não há um único consenso sobre o que vem a ser corrupção, ou seja, não

há uma defi nição nesse sentido. Portanto, não se pode falar de uma única Teoria

Política de Corrupção, pois existem diferentes abordagens sobre o tema, por meio

de determinados marcos teóricos e fi losófi cos específi cos.

La corrupción tiene semejanza com la palabra corrosión, efectivamente,

la acción corrupta se puede dar em forma instantánea, pero tras de ella

hay todo um proceso en el que la conciencia y la voluntad han sido poco

384

Jonathan Augustus Kellermann Kaercher e Carla Luana da Silva

a poco corroídas. Incluso las fuentes originales de esta tendencia perversa

trascienden nuestro momento histórico (LLACA, 2015, p. 168) 4.

Em outras palavras, este fenômeno é um difícil debate de se compreender

e defi nir, haja vista que possui diversos campos de conhecimento, pois inúmeros

são os conceitos que esclarecem essa prática. Logo, pode-se também entender que

a corrupção vem a surgir como uma ideia de destruição e degradação. Assim, por

exemplo, nesta perspectiva:

[…] a corrupção se apresenta como um meio de degradação do interesse

público em prol da satisfação do interesse privado. O agente público,

apesar de exercer suas funções no âmbito de uma estrutura organizacional

destinada à consecução do bem comum, desvia-se dos seus propósitos

originais e passa atuar em prol de um interesse privado bipolar, vale

dizer, aquele que, a um só tempo, propicia uma vantagem indevida para

si próprio e enseja um benefício para o particular que compactuou com a

prática corrupta (GARCIA, 2013, p. 68).

E esse tipo de benefício não passa a ser somente econômico. No âmbito

político, por exemplo, a exploração do prestígio e a conduta desviada com o intuito

de obter vantagem de natureza política, mesmo que não tenha fi nalidade econômica,

caracteriza igualmente a corrupção (PETRELLUZZI; RIZEK JÚNIOR, 2014).

E isso não ocorre somente em esfera pública, mas também em esfera privada, como

é o caso de empresas privadas, que são corrompidas por meio de seus funcionários

que se utilizam do cargo que ocupam a fi m de obter ganhos pessoais próprios ou

alheios.

Logo, dá para se considerar que, quem para se fi rmar no controle utiliza,

ilegalmente, de sua função, mesmo que não venha lograr obter vantagem econômica,

está também agindo de maneira corrupta. Ademais, a ausência de consciência

coletiva somada à supremacia do interesse privado sobre o público é igualmente

um poderoso elemento de estímulo à corrupção, tornando-se socialmente aceitável.

(GARCIA, 2013) Com isso, dá para se estabelecer o entendimento de que:

4 – A corrupção tem semelhança com corrosão, onde de fato a ação corrupta pode se dar

instantaneamente, mas por trás dela há todo um processo em que a consciência terá sido gradualmente

corroída. As fontes originais desta tendência vão além do nosso momento histórico.

385

Um estudo de caso da Ação Popular n. 70032484198 contra a Câmara Municipal de Vereadores de Pelotas: o controle social em face da prática do nepotismo

[...] o problema da corrupção, assim, é amplo, envolvendo, na verdade,

qualquer locupletamento indevido decorrente da prática de ato ilegal ou

mesmo antiético para benefi ciar alguém ou facilitar alguma atividade,

ainda que legítima de outrem, ou ainda, comportar-se de maneira

indevida para obter algum benefício para si ou para outrem, ainda que

sem conteúdo econômico. Nesse sentido amplo, por exemplo, também

seriam atos de corrupção o do empregado que assina o livro de presença

por outro ou o funcionário que pula a catraca controladora de entradas

e saídas para burlar a vigilância de horário de expediente. (GRECO

FILHO, V.; RASSI, J. D.; 2015, p. 16)

O fenômeno da corrupção, portanto, é defi nido como um tema amplo e

difícil de compreender, em razão de abranger variados campos do conhecimento,

havendo, nesse sentido, variados conceitos que esclarecem o que vem a ser essa

prática. Logo, a corrupção tanto pode sugerir a ideia de destruição como a de

mera degradação, assumindo uma perspectiva natural, como evento efetivamente

apurado na realidade fenomênica, ou meramente valorativa.

Assim, a corrupção é entendida como uma relação social, que é estabelecida

por duas pessoas ou dois grupos de pessoas, compostos por corruptos e corruptores,

com a intenção de transferir renda ilegal, tanto da sociedade, como de fundo

público, para a concretização de fi ns exclusivamente privados.

Relação essa, que também abrange a troca de favores estabelecida entre os

grupos ou pessoas e, comumente, ao pagamento dos corruptos com a utilização de

propina ou de quaisquer outros tipos de incentivos, compactuados pelas regras do

jogo e, em consequência, pelo sistema de incentivos que delas insurgem.

Corrupção é o comportamento que se desvia dos deveres formais de

uma função pública devido a interesses privados (pessoais, familiares, de

grupo fechado) de natureza pecuniária ou para melhorar o status, ou que

viola regras contra o exercício de certos tipos de comportamento ligados

a interesses privados (KLITGAARD, 1994, p. 40).

Ademais, as histórias que são difundidas sobre o tema da corrupção buscam

esclarecê-la como um fenômeno multifacetário, cujos aspectos são culturais,

políticos, sociais, institucionais e econômicos. É defi nida como um padrão de

comportamento que se afasta de normas predominantes em um dado contexto,

386

Jonathan Augustus Kellermann Kaercher e Carla Luana da Silva

sendo que este comportamento é associado a uma particular motivação que,

conforme tratado anteriormente, é o ganho privado a expensas do público (BREI,

2016). E as suas consequências são inúmeras, dentre elas:

[…] la corrupción ha provocado en la administración pública desgracias

semejantes: pérdida de efectividad, aumento de costos en la burocracia y

de gastos en la sociedad; resultados fuera de control y los programados

absolutamente precarious. En un gobierno corrupto, entrar a una ofi cina

pública es dar un paso en el abismo; el riesgo y la incertidumbre campean.

Lá pérdida de reglas y el dominio de la informalidad convierten a la

tramitología en una película de terror, todo puede suceder (LLACA,

2015, p. 168) 5.

A par disso, é necessário ressaltar que a corrupção é trazida por meio de

temas centrais no processo comunicativo de globalização, em que se buscam

unir esforços internacionais, tanto para o seu controle, quanto para uma possível

execução, difusão e fortalecimento de ferramentas preventivas e de diagnósticos

que sejam efi cazes, visando, com isso, a objetivos comuns aos povos civilizados e

democráticos (OSÓRIO, 2013).

É interessante frisar que a tarefa de buscar a inclusão social das parcelas

da população menos favorecidas encontra difi culdades na progressiva

carência de recursos fi nanceiros, não só no nosso País, como em grandes

potências mundiais, como os Estados Unidos. Mas, no Brasil, o problema

é mais crônico, pois, além da grande desigualdade social com a qual

convivemos, deparamo-nos com altos índices de corrupção praticada por

agentes que deveriam estar a serviço da sociedade e não de interesses

pessoais. (BOTELHO, 2010, p. 120)

Em verdade, quando a corrupção se encontra espalhada em todo o corpo

político e tolerada pela comunidade, as pessoas mais necessitadas, por consequência,

5 – A corrupção tem provocado na administração pública desgraças semelhantes: perda de efetividade,

aumento de custos da burocracia e de gastos com a sociedade; resultados fora de controle e programas

absolutamente precários. Em um governo corrupto, entrar em um setor público é dar um passo ao

abismo; o risco e a incerteza predominam. A perda de regras e o domínio da informalidade convertem

a burocracia em um fi lme de terror, onde tudo pode acontecer.

387

Um estudo de caso da Ação Popular n. 70032484198 contra a Câmara Municipal de Vereadores de Pelotas: o controle social em face da prática do nepotismo

sentem os efeitos dessa mazela social de forma mais direta, em razão de que as

estruturas dos poderes instituídos se ocupam, por vezes, com questões que lhes

rendam vantagens, seja de grupos, seja de indivíduos, do que com interesses

públicos vitais existentes (LEAL, 2013). Em consequência disso:

[…] hospitais públicos deixam de atender pacientes na forma devida

porque são desviados recursos da saúde para outras rubricas orçamentárias

mais fáceis de serem manipuladas e desviadas como prática de suborno e

defraudação; famílias em situação de pobreza e hipossufi ciência material

não podem se alimentar porque os recursos de programas sociais são

desviados para setores corruptos do Estado e da Sociedade Civil; as

escolas públicas não têm recursos orçamentários à aquisição de material

escolar em face dos desvios de recursos para outros fi ns, e os alunos

fi cam sem condições de formação minimamente adequadas (LEAL;

KAERCHER, 2015, p. 02).

Infelizmente, quando as pessoas se tornam mais conscientes dos danos

que a corrupção provoca a interesses públicos e mesmo privados, elas fi cam

sensibilizadas com medidas de enfrentamento e tratamento dessa patologia

(LEAL, 2014). Em razão de ser uma patologia manifesta em grande parte do

mundo, deixou de ser somente uma preocupação nacional. Assim, ao longo dos

anos a corrupção se tornou uma preocupação predominantemente nacional ou

regional, transformando-se em um tema de debate global.

Em menos de meia década a reação mundial contra a corrupção tomou

de assalto o cenário político internacional. Governos caíram. Partidos

há muito no poder foram expulsos do comando. Presidentes, primeiros-

-ministros, parlamentares e caciques corporativos antes poderosos foram

questionados/investigados, à exaustão, por promotores, e engrossam os

registros de processo judiciais. Itália, França, Japão, Coréia do Sul, Índia,

México, Colômbia, Brasil, África do Sul: nenhuma região escapou e

pouquíssimos países estão imunes. (GLYNN, P.; KOBRIN, S. J.; NAÍM,

M., 2002, p. 27)

Diante disso, depreende-se que a corrupção tem efeitos signifi cativos sobre

a democracia, no sentido de que ela rompe com os pressupostos fundamentais

388

Jonathan Augustus Kellermann Kaercher e Carla Luana da Silva

do regime, tais como a igualdade política e a participação. Minimiza a infl uência

da população no processo de tomada de decisões, seja em razão de fraudes nos

processos decisórios, como nas eleições, seja pela desconfi ança e pela suspeita que

ela vem a gerar entre os próprios cidadãos com relação ao governo e às instituições

democráticas. Acaba, por fi m, minimizando a transparência das ações dos

governantes (MENEGUELLO, 2011).

A corrupção não pode ser considerada como um fenômeno exclusivamente

de uma sociedade ou de um momento de seu desenvolvimento, conforme sugerem

algumas teorias evolutivas modernizantes, haja vista que ela está corrente nas

formações sociais mais distintas, consoante comprovam trabalhos publicados nos

últimos anos nas ciências sociais (BEZERRA, 1995).

Além do exposto, as práticas defi nidas como corruptas ou, em outras

palavras, corruptoras, não são idênticas, pois sofrem uma variação signifi cativa.

De fato, o fenômeno da corrupção possui uma dimensão legal, histórica e cultural

que não pode ser negligenciada, quando se pretender estudá-la (BEZERRA, 1995).

A luta contra a corrupção é complicada por inúmeros fatores; porém, a

difi culdade básica é defi nir o que seja a corrupção, independentemente

se sua defi nição legal, que varia enormemente de uma sociedade para a

outra. O termo tem sido empregado para se referir a um amplo espectro

de ações. Pode ser usado para designar ações ilegais ou antiéticas

perpetradas por pessoas em posição de autoridade ou de confi ança no

serviço público, ou por cidadãos e empresas em sua relação com os

agentes públicos. Consequentemente, parece claro que a luta contra esse

mal não pode ser confi nada ao setor público e restringir-se a medidas

punitivas, penais e administrativas, dirigidas a agentes individuais, pois

não há dúvida de que a corrupção interna quase sempre depende da

relação entre os agentes públicos e os cidadãos. (SILA, 2008, p. 575)

A corrupção, portanto, é um dos assuntos mais debatidos no processo

comunicativo de globalização, em que se procuram reunir esforços e auxílios

internacionais, para o seu combate, bem como para a implementação e o

fortalecimento de ferramentas preventivas e de diagnósticos precisos, pois esse debate

é um objetivo comum frente aos povos civilizados e democráticos (OSÓRIO, 2013).

No entanto, uma das respostas que parece ser mais viável a isso tudo, é a de

que o Estado deve procurar fomentar a utilização de mecanismos de “controle” já

389

Um estudo de caso da Ação Popular n. 70032484198 contra a Câmara Municipal de Vereadores de Pelotas: o controle social em face da prática do nepotismo

existentes, bem como a criação de novos meios que auxiliem na minimização de

atos corruptivos. A partir daí, como já está acontecendo, entende-se que algumas

mudanças acontecerão, mesmo que sejam vagarosamente conquistadas.

É interessante frisar que a tarefa de buscar a inclusão social das parcelas

da população menos favorecidas encontra difi culdades na progressiva

carência de recursos fi nanceiros, não só no nosso País, como em grandes

potências mundiais, como os Estados Unidos. Mas, no Brasil, o problema

é mais crônico, pois, além da grande desigualdade social com a qual

convivemos, deparamo-nos com altos índices de corrupção praticada por

agentes que deveriam estar a serviço da sociedade e não de interesses

pessoais. (BOTELHO, 2010, p. 120)

A par disso, dentre tantos mecanismos que estão presentes no sistema

brasileiro, um deles que parece ser de grande relevância é o instituto da Ação

Popular. Botelho (2010, p. 185), nesse sentido, dispõe que: “a Ação Popular é

um instrumento constitucional posto à disposição do cidadão para que se possa

anular ato lesivo ao patrimônio público, exercendo grande relevância no combate

a corrupção”. A partir dessa visão, é que se analisa a possibilidade do instituto

de a Ação Popular servir como controle social pelo cidadão em face das práticas

corruptivas. Portanto, esse é o tema que se passa a analisar, com o auxílio de um

estudo de caso do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, envolvendo

a prática de nepotismo.

3 O CONTROLE SOCIAL EXERCIDO POR MEIO DA AÇÃO

POPULAR CONTRA PRÁTICA DO NEPOTISMO: ANÁLISE DO CASO

CONCRETO N. 70032484198

Frente a um cenário de uma corrupção desenfreada e multifacetada, surgiria

a necessidade de buscar mecanismos de controle para inibição desse fenômeno.

Pensando nesse aspecto, surgem para esse contexto os meios de controle da

Administração Pública, com especial relevância o meio de controle social exercido

por meio do cidadão pelo instituto da Ação Popular. Tem-se que a Ação Popular

é um remédio constitucional em que qualquer cidadão tem a legitimidade para

o exercício de um poder de natureza essencialmente política, constituindo, deste

modo, manifestação direta da soberania popular (SILVA, 2007).

390

Jonathan Augustus Kellermann Kaercher e Carla Luana da Silva

Como bem ensina Justen Filho (2005), o controle da atividade administrativa

dependeria da utilização de instrumentos adequados e satisfatórios, e os

instrumentos que trazem em seu bojo a participação popular, os controles sociais,

atenderiam essas expectativas. Furtado (2015, p. 62) aponta que “a necessidade de

controlar as atividades administrativas desenvolvidas pelo Estado, é percebida de

modo evidente pela comunidade como instrumento imprescindível de combate e

prevenção da corrupção”.

Diz–se que foi com o término do período autoritário, vigente de 1964 a 1985,

que acaba por constar na agenda política brasileira o controle social, tendo com ele

a proposta de elevar o nível de transparência do Estado brasileiro (BOTELHO,

2010). Consoante Botelho (2010), o controle social surgiria como uma esperança

de que por meio de organizações formais e informais ocorresse a fi scalização das

organizações públicas, tornando seu exercício efetivamente exercido.

Segundo Mancuso (2001) o modelo de Estado de Direito, sendo

substancialmente democrático, dependeria da efi cácia desse controle social sobre o

poder com o intuito de se prevenir da consequência do perecimento das instituições

básicas que o compõe. “A Constituição Federal vigente, instaurou, claramente uma

democracia participativa, que conclama aos cidadãos, isoladamente ou reunidos

em associações ou sindicatos, a colaborarem na gestão e fi scalização da coisa

pública” (MANCUSO, 2001, p. 17). Refl ete ainda Mancuso (2001), que no Brasil

o vigor democrático é expresso na Constituição Federal de 1988 por meio dos

mecanismos jurisdicionais de controle dos atos do Poder Público, em especial pela

criação de instrumentos processuais vinculados à defesa da cidadania.

Sendo disposta como um desses instrumentos constitucionais de defesa a

cidadania, sabe-se que a Ação Popular é um importante remédio constitucional.

Na Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, inc. LXXIII, e na Lei

Infraconstitucional n. 4.717, de 1965, dispõe a presente ser um meio constitucional

posto à disposição de qualquer cidadão para obter a invalidação de atos ilegais

ou lesivos ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à

moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural.

Trata-se de uma garantia inerente ao sistema democrático, instituída

como meio de propiciar a participação popular no controle da atividade

administrativa. A Ação Popular se caracteriza pela legitimação de

qualquer cidadão para questionar atos administrativos, o que propicia

a ampliação signifi cativa da participação popular na vida comunitária

391

Um estudo de caso da Ação Popular n. 70032484198 contra a Câmara Municipal de Vereadores de Pelotas: o controle social em face da prática do nepotismo

e representa um modo de integração entre a sociedade e o Estado. Esta

natureza justifi ca um regime jurídico próprio e peculiar, diferenciado

em face dos demais instrumentos processuais (JUSTEN FILHO, 2005,

p. 777).

Analisando seu conteúdo, a Ação Popular seria um instrumento de defesa

dos interesses da coletividade, não se amparando por ela direitos individuais

próprios, mas da comunidade, sendo benefi ciário direto e imediato o povo, titular

do direito subjetivo de um governo honesto (MEIRELLES, 2010). Botelho (2010)

explica que são requisitos da Ação Popular, o ajuizamento da ação feito por

cidadão brasileiro, a presença de ilegalidade ou ilegitimidade do ato a invalidar e

que o ato seja lesivo ao patrimônio público.

Especifi cando, segundo Meirelles (2010), o primeiro requisito de ser

cidadão6 refl ete-se no fato de ser toda pessoa humana no uso e gozo de seus

direitos cívicos e políticos, tendo a qualidade de eleitor. “Isso porque tal Ação

se funda essencialmente no direito político do cidadão, que, tendo o poder de

escolher os governantes, deve ter, também, a faculdade de lhes fi scalizar os atos da

administração” (MEIRELLES, 2010, p. 129).

Quanto ao segundo requisito, a ilegalidade ou ilegitimidade do ato a

invalidar diz-se que seria aquele contrário ao Direito, infringindo “normas

específi cas que regem sua prática ou por se desviar dos princípios gerais que

norteiam a Administração Pública” (MEIRELLES, 2010, p. 129), resultando

lesão ao patrimônio público. Falando em patrimônio público, já se nota que o

terceiro requisito é justamente a lesividade7 ao mesmo, onde lesivo será “todo ato

ou omissão administrativa que desfalca o erário ou prejudica a Administração,

assim como o que ofende bens ou valores artísticos, cívicos e culturais, ambientais

ou históricos da comunidade” (MEIRELLES, 2010, p. 129).

Justen Filho (2005) argumenta que o presente instrumento teria fi ns

preventivos, visando a impedir efeitos lesivos, como também repressivos, sendo

proposta depois da lesão, com o intuito de anular o ato e responsabilizar os causadores

do dano. Nesse sentido, toma-se como base o caso concreto n. 70032484198

6 – Os inalistados, os partidos políticos, entidades de classe ou qualquer outra pessoa jurídica não tem

qualidade para propor Ação Popular. Vide Súmula n. 365 do STF.

7 – A lesividade que abrange o texto constitucional abrange tanto o patrimônio material quanto moral,

bem como estético, espiritual e histórico.

392

Jonathan Augustus Kellermann Kaercher e Carla Luana da Silva

do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, para analisar esses aspectos

específi cos de aplicação da Ação Popular, como meio repressivo, anulando atos

lesivos, entendidos aqui pelas práticas corruptivas:

APELAÇÃO CÍVEL. REEXAME NECESSÁRIO. AÇÃO POPULAR.

CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. MUNICÍPIO DE

PELOTAS. CÂMARA MUNICIPAL DE VEREADORES. PRÁTICA

NEPÓTICA. AUSÊNCIA DE INTERESSE PROCESSUAL

AFASTADA. EFETIVIDADE E UTILIDADE DA AÇÃO

CONSTITUCIONAL. SUMULA VINCULANTE Nº 13, SUPREMO

TRIBUNAL FEDERAL. MORALIDADE ADMINISTRATIVA.

AGRAVO RETIDO. 1. Agravo retido. Não se conhece de agravo retido

sobre o qual a parte deixa de reiterar seja apreciado nas razões de

apelação. Aplicação do artigo 523, § 1º, do CPC. 2. Interesse processual.

Considerando-se que a atividade administrativa fundamenta-se nos

primados da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e

efi ciência, e que ao Estado compete zelar pelo meio ambiente e pelo

patrimônio cultural lato sensu, em ocorrendo lesão a tais direitos, qualquer

cidadão eleitor estará autorizado a fazer valer em juízo a tutela desse

bem, valor ou interesse, por meio de actio popularis, conforme a norma

constitucional - artigo 5º, inciso LXXIII. Se a providência desconstitutiva

e/ou condenatória for insufi ciente para frear o ato lesivo ou ameaçador

ao patrimônio público, outras medidas a ela se somarão, face à máxima

efetividade e maior utilidade da ação. Interesse processual do autor

popular reconhecido, do que decorre a impositiva desconstituição da

sentença para iniciar-se a fase instrutória, a fi m de que se comprove a

imoral prática de nepotismo na seara do Poder Legislativo do Município

de Pelotas, demonstrando-se a condição de servidores públicos dos réus e

o grau de parentesco destes com os Srs. Vereadores. AGRAVO RETIDO

NÃO CONHECIDO. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.

SENTENÇA DESCONSTITUÍDA. (Apelação e Reexame Necessário

nº 70032484198, Terceira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS,

Relator: Rogerio Gesta Leal, Julgado em 17/03/2011)

Nesse, pode-se observar a utilização do controle social por meio da Ação

Popular em face da corrupção. Trata-se de decisão julgada em 17 de março de

393

Um estudo de caso da Ação Popular n. 70032484198 contra a Câmara Municipal de Vereadores de Pelotas: o controle social em face da prática do nepotismo

2011 e publicada em 6 de abril do mesmo ano, pela 3ª Câmara Cível, em Reexame

Necessário de Apelação Cível n. 70032484198, interposta por Thiago Seidel em

face da sentença que extinguiu, sem resolução de mérito, a Ação Popular ajuizada

contra a Câmara Municipal de Vereadores de Pelotas, seus respectivos Vereadores

e parentes, em razão da inadequação da via eleita.

No caso em tela, o Senhor Thiago Seidel ajuizou Ação Popular contra a

Câmara de Vereadores do Município de Pelotas, contra seus respectivos vereadores

e parentes de tais agentes, investidos em cargo em comissão ou de confi ança, ou,

ainda, de função gratifi cada, no Poder Legislativo local. O objetivo da ação visava

à demissão de todos os parentes em até terceiro grau já contratados pelos senhores

vereadores, e a proibição em defi nitivo de contratação de novos.

In verbis a sentença foi extintiva, ao argumento de que o cunho da Ação

Popular é desconstitutivo e, subsidiariamente, condenatório, não servindo para

determinar a obrigação de fazer ou não fazer, como a desconstituição de ato tido

ilegal (contratação de servidores públicos), e a condenação dos responsáveis pela

prática de nepotismo no âmbito do Poder Legislativo local.

Na mesma oportunidade da apelação, foi interposto agravo retido, o qual

por unanimidade não foi conhecido pela Turma nos termos do art. 523, § 1º, do

CPC. No acórdão da apelação, também houve a exclusão da lide de um co-réu,

bem como parcial provimento ao recurso. Thiago Seidel apresentou suas razões

recursais, no entanto apenas uma litisconsorte apresentou resposta pleiteando sua

exclusão da lide, porquanto não mais ocupava cargo de confi ança junto ao Poder

Legislativo do Município de Pelotas.

Nos termos do art. 1º da Lei n. 4.717/65, os desembargadores constataram a

possibilidade do manejo de Ação Popular para obstar a prática de nepotismo, objetivando

a anulação dos atos de admissão de servidores comissionados ou contratados para

exercer função gratifi cada junto à Câmara. Alude o art. 1º da Lei n. 4.717/65 que

[...] qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a anulação ou

a declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio da União, do

Distrito Federal, dos Estados, dos Municípios[...]. § 1º - Consideram-se

patrimônio público para os fi ns referidos neste artigo, os bens e direitos de

valor econômico, artístico, estético, histórico ou turístico.

Nesse sentido, constatou-se que o ato lesivo é aquele que pode ser

classifi cado como algo que malfere a moralidade administrativa, o meio ambiente e

394

Jonathan Augustus Kellermann Kaercher e Carla Luana da Silva

o patrimônio histórico e cultural, servindo a ação para atacá-lo. Essa manifestação

foi destacada pela Constituição Federal em seu art. 5º, LXXIII:

[...] qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise

a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado

participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio

histórico e cultural, fi cando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de

custas judiciais e do ônus da sucumbência

Sob a orientação dessas disposições, determinou-se, como fi nalidade

principal do manejo do instituto da Ação Popular, a cessação desse ato lesivo,

que pode se concretizar por providência constitutiva negativa como é o caso da

anulação. O objetivo-fi m seria sempre a máxima efetividade e maior utilidade da

Ação Popular, devendo sempre prevalecer a interpretação que confi ra a maior

extensão da proteção dos interesses em questão.

Na oportunidade viu-se que tal prática contraria a Súmula Vinculante

n. 138 do STF, que proíbe a prática do nepotismo no âmbito dos três Poderes

da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e possui função

normativa, vinculando os órgãos do Poder Judiciário e a administração pública

direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal. Essa prática estaria

caracterizando indiscutivelmente uma das formas de corrupção, que como visto,

traz em seu bojo efeitos nefastos à sociedade.

Por tudo, admissível é o pedido em ação popular, além de visar à

desconstituição do ato contrário à moralidade administrativa (anulação

das nomeações dos parentes comissionados dos vereadores do Município

de Pelotas, por prática nepótica), dispensável a demonstração de lesividade

ao patrimônio público, também contemplar a ordem de abstenção de

novas contratações ao arrepio da diretriz constitucional , para conferir

efetivamente àquele comando, o que vai ao encontro da Súmula

8 – A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afi nidade, até o

terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em

cargo de direção, chefi a ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confi ança

ou, ainda, de função gratifi cada na administração pública direta e indireta em qualquer dos poderes da

União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste mediante designações

recíprocas, viola a Constituição Federal.

395

Um estudo de caso da Ação Popular n. 70032484198 contra a Câmara Municipal de Vereadores de Pelotas: o controle social em face da prática do nepotismo

Vinculante nº 13 (Apelação e Reexame Necessário n. 70032484198,

Terceira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rogerio Gesta

Leal, Julgado em 17/03/2011).

Foi reconhecida, então, a possibilidade de manejo de Ação Popular ao caso em

tela, visto que a prática do ato corruptivo de nepotismo estaria sendo lesiva à moralidade

administrativa, estando até mesmo por infringir súmula do Supremo Tribunal Federal.

No caso, constatou-se que não haveria provas seguras da condição de servidores

públicos dos réus, nem mesmo do grau de parentesco que possuem com os vereadores

do legislativo local, matéria a ser aferida em nível de 1º Grau, no devido processo legal

constitucional e infraconstitucional. Contudo, observando a constituição do ato lesivo,

desconstituiu-se a sentença e determinou-se o retorno dos autos ao 1º Grau para que

tais dados aportem aos autos, autorizando o julgamento de mérito.

Vê-se que nesse caso concreto a Ação Popular fi guraria como controle da

prática de nepotismo, sendo, portanto, um controle social por parte do cidadão contra

atos tidos como corruptos. Essa por sua vez, em sua utilização, mostrou resultados

positivos, visto que tenha atendido seu objetivo de anular atos que sejam lesivos ao

patrimônio público em sentido lato, como tão bem se confi gura pela corrupção.

O manuseio da Ação Popular estaria concretizando a participação popular,

refl etida pela abertura à cidadania dada pela Constituição, e, como visto, seus

efeitos são essencialmente efetivos. Como já relacionado, pelo fato de a corrupção

delinear-se como um fenômeno cada vez mais complexo, a solução mais efetiva

para sua inibição parece estar na utilização dos instrumentos à disposição da

sociedade, que seria a peça-chave para essa realização do objetivo de construir uma

sociedade em prol do interesse público.

Todavia, mesmo vendo a efetividade da utilização da referida Ação como

meio de controle social a práticas corruptivas, Botelho (2010) aponta que a

população ainda não está acostumada a exercer esse controle social sobre os atos

da Administração Pública, deixando uma atuação muito a desejar, sendo diversas

vezes até mesmo utilizada de forma desvirtuada como instrumento de oposição

política. Esse é um fato a se pensar.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

De fato, um dos grandes problemas enfrentados pela sociedade, tanto em

nível nacional como global, é a corrupção. Essa, por sua vez, entendeu-se como

396

Jonathan Augustus Kellermann Kaercher e Carla Luana da Silva

um fenômeno extremamente complexo, visto que, por ter um largo campo de

abrangência, não tem como se obter uma defi nição ou mesmo um único conceito

do que vem a se constituir. Mesmo não tendo como se chegar a uma unanimidade

conceitual, compartilhou-se da ideia de que a corrupção tem efeitos signifi cativos

sobre as esferas da sociedade.

Viu-se que, frente a esse cenário, a procura de mecanismos para a inibição

da corrupção tornou-se um tema relevante a se considerar. Assim, dentre tantos

mecanismos que estão presentes no sistema brasileiro, o que pareceu assumir o

papel de ser a solução mais efetiva, foi o instituto da Ação Popular, entendida como

controle social da Administração Pública. A Ação Popular constituiu-se como um

instrumento constitucional posto à disposição do cidadão para anular atos lesivos

ao patrimônio público, exercendo grande relevância no controle da corrupção.

Sob esse viés, analisou-se então, o caso concreto da Ação Popular n. 70032484198

do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, ação manuseada, visando

ao controle da contratação pública no que diz respeito à prática de ato corruptivo.

Nessa avaliação, entendeu-se que a Ação Popular fi guraria como controle da prática de

nepotismo, sendo, portanto, um controle social por parte do cidadão contra atos tidos

como corruptos.

Nessa aplicação, sua utilização mostrou resultados positivos, visto que,

tenha atendido seu objetivo de anular atos que sejam lesivos ao patrimônio público,

no caso em tela lesivo à moralidade administrativa. Assim, o manuseio da Ação

Popular estaria concretizando a participação popular, refl etida pela abertura à

cidadania dada pela Constituição. Considerando que a corrupção torna-se um

fenômeno cada vez mais complexo, a solução mais efetiva para sua inibição parece

estar na utilização dos instrumentos à disposição do cidadão. E nesse sentido,

concluiu-se que o instrumento da Ação Popular serve como controle social efetivo.

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II

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