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módulo 3: informação e planejamento em saúde

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Page 1: módulo 3: informação e planejamento em saúde
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Curso deDesenvolvimentoGerencial do SUS

COLETÂNEA DE TEXTOS

Page 3: módulo 3: informação e planejamento em saúde

MINISTÉRIO DA SAÚDEMinistro: ALEXANDRE PADILHA

Secretaria de Gestão do Trabalho e Educação na SaúdeSecretário: MILTON DE ARRUDA MARTINS

Diretora de ProgramaDiretora: ANA ESTELA HADDAD

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSOReitora: MARIA LÚCIA CAVALLI NEDER

Vice-Reitor: FRANCISCO JOSÉ DUTRA SOUTOPró-Reitora Administrativa: VALÉRIA CALMON CERISARA

Pró-Reitora de Planejamento: ELISABETH A. FURTADO DE MENDONÇAPró-Reitora de Ensino de Graduação: MYRIAN THEREZA DE M. SERRA

Pró-Reitora de Ensino de Pós-Graduação: LENY CASELLI ANZAIPró-Reitor de Pesquisa: ADNAUER TARQUÍNIO DALTRO

Pró-Reitor de Cultura, Extensão e Vivência: LUIS F. CIRILLO DE CARVALHOPró-Reitor do Campus Universitário do Araguaia: JOSÉ MARQUES PESSOA

Pró-Reitora do Campus Universitário de Rondonópolis: CECÍLIA F. K. KIMURA

Pró-Reitor do Campus Universitário de Sinop: MARCO ANTÔNIO PINTO

Instituto de Saúde ColetivaDiretora: MARTA GISLENE PIGNATTI

Núcleo de Desenvolvimento em SaúdeCoordenadora: NINA ROSA FERREIRA SOARES

CONSELHO DE SECRETARIAS MUNICIPAIS DE SAÚDE-MT Presidente: ANDRÉIA FABIANA DOS REIS

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIROReitor: RICARDO VIEIRALVES DE CASTRO

Instituto de Medicina SocialDiretor: CID MANSO DE MELLO VIANNA

Laboratório de Pesquisa sobre Práticas de Integralidade em SaúdeCoordenadora: ROSENI PINHEIRO

Centro de Estudos e Pesquisa em Saúde ColetivaPresidente: CID MANSO DE MELLO VIANNA

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SAÚDE COLETIVA

Presidente: LUIZ AUGUSTO FACCHINI

CURSO DE DESENVOLVIMENTO GERENCIAL DO SUS

CoordenaçãoFátima Ticianel Schrader

Júlio Strubing Müller NetoMaria Angélica dos Santos Spinelli

Equipe Técnico-AdministrativaAline Paula Motta

Ana Paula Louzada dos AnjosFátima Ticianel SchraderIlva Félix do Nascimento

Landrimar TrindadePatrícia Santos Arruda

Responsável pelo Desenvolvimento do Projeto PedagógicoFátima Ticianel Schrader

Júlio Strubing Müller Neto

Consultoria PedagógicaAluísio Gomes da Silva Júnior

Roseni Pinheiro

Formação de TutoresAlba Regina Silva Medeiros

Aluísio Gomes da Silva JúniorFátima Ticianel Schrader

Geny Catarina Francisca Rodrigues LopesJúlio Strubing Müller NetoNereide Lúcia Martinelli

Regina Lúcia Monteiro HenriquesRoseni Pinheiro

Sueli Batista de Almeida

Tutores e Participantes das Oficinas de Avaliação e ReformulaçãoAlba Regina Silva Medeiros (tutora)

Aline Paula MottaAmaury Ângelo Gonzaga (tutor)

Ana Paula Louzada dos Anjos (tutora)Ana Paula Silva de Faria

Crisley Suzane Rodrigues Araújo (tutora)Diógenes Marcondes (tutor)

Edson BrunettiElizabeth Jeanne Fernandes Santos

Fátima Cristina M. ManfrinFátima Ticianel Schrader (tutora)

Geny Catarina Francisca Rodrigues Lopes (tutora)Júlio Strubing Müller Neto

Landrimar Trindade (tutora)Ligia Regina de Oliveira

Márcia de Campos (tutora)Maria José Vieira Silva Pereira (tutora)

Maria Salete RibeiroMaria Silva Souza (tutora)Marina Atanaka dos Santos

Miriam Tereza Vale Solé Rocha (tutora)Nereide Lúcia Martinelli (tutora)

Oliani Nouey Machado Godoy Ruth Terezinha Kehrig (tutora)

Simone Charbel (tutora)Sônia Maria de Souza Correa (tutora)

Terezinha de C. Viana Gimenes (tutora)Theodoro Carlos Magalhães Pinto (tutor)

Vânia Salete Marchese (tutora)

Caderno de IndicadoresIrani Machado FerreiraLeila de Arruda AlencarNoemi Dreyer Galvão

Terezinha de C. Viana Gimenes

Revisão e NormalizaçãoAna Maria Auler M. Peres

Valéria Marinho Nascimento SilvaTatiana Coelho Lopes

COMPOSIÇÃO DO CONSELHO EDITORIAL DA EDUFMTPresidente: MARINALDO DIVINO RIBEIRO

MembrosAdemar de Lima Carvalho

Aída Couto Dinucci BezerraBismarck Duarte Diniz

Eliana Beatriz Nunes RondonFrederico José Andries Lopes

Janaina Januário da SilvaJosé Serafim Bertoloto

Jorge do SantosKarlin Saori Ishii

Marluce Aparecida Souza e SilvaMarly Augusta Lopes de MagalhãesMoacir Martins Figueiredo Junior

Taciana Mirna SambranoElisabeth Madureira Siqueira

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Júlio Strubing Müller NetoFátima Ticianel Schrader

(Orgs.)

Curso deDesenvolvimentoGerencial do SUS

COLETÂNEA DE TEXTOS

Cuiabá - MT2011

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copyright ©2011, júlio strubing müller neto e fátima ticianel schrader (orgs.).todos os direitos reservados.

Curso de Desenvolvimento Gerencial do SUS – Coletânea de Textos

Supervisão EditorialAna Silvia Gesteira, Janaína Januário da Silva e Aline Paula Motta

Montagem dos Textos da ColetâneaSuzana Silva

Projeto Gráfico e Editoração EletrônicaMauro Corrêa Filho

Diagramação Fabiano Grillaud

Impressão Gráfica e Editora Defanti

Esta obra foi produzida com recurso do Governo Federal

Instituto de Saúde Coletiva - ISCNúcleo de Desnvolvimento em Saúde - NDSAv. Fernando Corrêa da Costa, 2.367 - Campus Universitário - CCBS III - Boa EsperançaCuiabá-MT – CEP 78060-900Telefone: (65) 3615-8834URL: www.ufmt.br/observarhEndereço eletrônico: [email protected]

Editora UniversitáriaAv. Fernando Corrêa da Costa, 2.367 Boa Esperança - Cuiabá-MT – CEP 78060-900Telefone: (65) 3615-8322URL: www.editora.ufmt.brEndereço eletrônico: [email protected]

Projeto realizado em parceria com:

Centro de Estudos e Pesquisa em Saúde Coletiva

Rua São Francisco Xavier, 524 – 7º andar - MaracanãRio de Janeiro – RJ – CEP 20550-900Telefones: (21) 2334-0504 ramal 152 - Fax: (21) 2334-2152URL: www.lappis.org.br / www.ims.uerj.br/cepescEndereço eletrônico: [email protected] é sócio efetivo do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL).

Conselho de Secretarias Municipais de Saúde

Rua Tenente Coronel Duarte, 1070 - Centro-SulCuiabá - MT - CEP: 78020-450Telefone: (65) 3644-2406URL: www.cosemsmt.org.brEndereço eletrônico: [email protected]

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Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e se não ousarmos fazê-la, teremos ficado para sempre à margem de nós mesmos.

Fernando Teixeira AndradeO medo: o maior gigante da alma

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APRESENTAÇÃO DO ISC/UFMT .......................................................................................... 9

APRESENTAÇÃO DO COSEMS/MT ..................................................................................... 11

UFMT COOPERA COM MUNICÍPIOS: desenvolvimento de novos saberes e práticas na gestão do Sistema Único de Saúde em Mato Grosso ........................................................................................... . 13

ESTRUTURA DO CURSO .................................................................................................. 25

UNIDADE I – CONDIÇÃO DE VIDA, POLÍTICA E GESTÃO DO SUS

MÓDULO 1 – CONDIÇÃO DE VIDA E POLÍTICA DE SAÚDE

TEXTOS BÁSICOS

Concepções de saúde e doença ....................................................................................... 33

Sistema Único de Saúde: princípios ................................................................................. 55

Política de saúde em Mato Grosso: dois mandatos para a construção da regionalização ................... 69

Para saber mais (Bibliografia Complementar) ..................................................................... 95

MÓDULO 2 – POLÍTICA E GESTÃO DA SAÚDE NO MUNICÍPIO: a avaliação na perspectiva do usuário, trabalhador e gestor

TEXTOS BÁSICOS

Itinerários terapêuticos de famílias e redes para o cuidado na condição crônica: algumas experiências ... 101

Itinerários terapêuticos de famílias e redes para o cuidado na condição crônica: alguns pressupostos ..113

Planejamento, epidemiologia e programação como instrumentos de gestão ................................121

O desafio da gestão do trabalho no SUS ...........................................................................173

A Emenda Constitucional n. 29, de 13 de setembro de 2000 ..................................................189

Conferências de saúde e formulação de políticas em 16 municípios de Mato Grosso, 2003-2005 ..... 199

Construindo a possibilidade da participação dos usuários: conselhos e conferências no Sistema Único de Saúde ................................................................................................................... 223Para saber mais (Bibliografia Complementar) ....................................................................241

MÓDULO 3 – INFORMAÇÃO E PLANEJAMENTO EM SAÚDE

TEXTOS BÁSICOS

O planejamento estratégico situacional no nível local: um instrumento a favor da visão multissetorial .. 247

SUMÁRIO

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Dados e informação em saúde: para que servem? ............................................................... 265

Para saber mais (Bibliografia Complementar) ................................................................... 279

UNIDADE II: GERENCIAMENTO E ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA E SERVIÇOS DE SAÚDE: INTEGRALIDADE E DIREITO À SAÚDE

MÓDULO 4 – MODELOS TECNOASSISTENCIAIS EM SAÚDE E AVALIAÇÃO DO CUIDADO

TEXTOS BÁSICOS

Modelos assistenciais em saúde: desafios e perspectivas ....................................................... 287

Avaliação da atenção básica em saúde sob a ótica da integralidade: aspectos conceituais e metodológicos .. 297Para saber mais (Bibliografia Complementar) ....................................................................311

MÓDULO 5 – TRABALHO EM EQUIPE

TEXTO BÁSICO

O trabalho em equipe como dispositivo de integralidade: experiências cotidianas em quatro localidades brasileiras ...............................................................................................................317Para saber mais (Bibliografia Complementar) ....................................................................331

MÓDULO 6 – GERÊNCIA DE RECURSOS NA UNIDADE

TEXTO BÁSICO

A gerência dos meios de produção na unidade da rede básica de saúde: um enfoque integrado da administração de materiais, serviços gerais e orçamentária-financeira ..................................... 337Para saber mais (Bibliografia Complementar) ....................................................................351

MÓDULO 7 – EDUCAÇÃO PERMANENTE PARA FORTALECIMENTO GERENCIAL

TEXTO BÁSICO

Educação permanente em saúde: desafio ambicioso e necessário ............................................ 357

Para saber mais (Bibliografia Complementar) ................................................................... 365

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Curso de Desenvolvimento

Gerencialdo SUS

COLETÂNEA DE TEXTOS

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APRESENTAÇÃO DO INSTITUTO DE SAÚDE COLETIVA

Prezado(a) aluno(a),

É um prazer tê-lo(a) como participante do CDG-SUS, uma proposta de desenvolvimento das pessoas e das práticas de gestão e do cuidado em saúde que adota a perspectiva da ética e da integralidade da atenção, visando à construção do perfil e das competências desejadas para os gerentes dos serviços municipais de saúde.

O curso, desenvolvido à luz da política nacional de educação permanente, é apoiado financeiramente pelo Ministério da Saúde e coordenado pelo Núcleo de Desenvolvimento em Saúde (NDS), que inte-gra o Instituto de Saúde Coletiva (ISC) da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT).

Desde 2007, o NDS realiza parcerias com as seguintes instituições para garantir a implementação do CDG-SUS: Fundação Uniselva, Laboratório de Pesquisas sobre Práticas de Integralidade em Saúde (LAPPIS/IMS/UERJ), Conselho de Secretarias Municipais de Saúde (COSEMS/MT) e Secretarias Municipais de Saúde de 52 municípios do Estado de Mato Grosso.

Para sua realização recebeu apoio integral da Diretora do Programa de Capacitação Gerencial do Ministério da Saúde, Dra. Márcia Hiromi Sakai.

A proposta foi alavancada em razão da demanda crescente do SUS por qualificação de gerentes e pro-fissionais da saúde, da complexidade do sistema, da diversidade de atores e de processos de trabalho em espaços da gestão, o que requer a superação do modelo de planejamento e gestão normativo e pouco participativo ainda predominante nas instituições.

Seus objetivos específicos são: a) despertar o aluno para a sua corresponsabilidade com o processo de gestão e do cuidado, colocando o usuário no centro do processo; b) estimular a organização e integração dos processos administrativos gerenciais entre as equipes gestoras e prestadoras de servi-ços; c) estimular a realização de parcerias e o intercâmbio de conhecimento e experiências entre os profissionais da rede municipal; d) ampliar o conhecimento dos participantes, identificando técnicas

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e procedimentos utilizados na resolução dos problemas; e) propiciar mais interação entre os profis-sionais e trabalhadores de saúde e os usuários do SUS, seja individual ou coletivamente; f) fortalecer a Rede de Apoio ao SUS do COSEMS.

Para alcançar esses objetivos, o NDS realiza a capacitação permanente de tutores por meio de ofici-nas e de atividades denominadas laboratório de práticas. Tais profissionais são apoiados pelo trabalho de uma coordenação e ministram, em duplas, o CDG-SUS.

Os 25 tutores habilitados ao longo desses anos são atores sociais comprometidos com a proposta de ensino-aprendizagem – valorizam o conhecimento e as práticas dos participantes e apoiam-se no desenvolvimento profissional e no fortalecimento dessas competências.

Outro ponto de destaque é a metodologia do CDG-SUS, que favorece a análise da realidade muni-cipal. Abrange, portanto, a política, o planejamento, a gestão, o financiamento, o controle social, a gestão de pessoas, a informação e o gerenciamento da unidade de saúde, a organização dos serviços, o trabalho em equipe e a política de educação permanente, tendo como eixos estruturantes o direito à saúde e a integralidade da atenção.

Os tutores utilizam técnicas participativas durante as aulas – como estudo dirigido, plenárias, estudo de casos, mosaico, memória viva, rede explicativa de problemas e construção da agenda de fortaleci-mento gerencial –, com os propósitos de enfatizar a relação entre o conteúdo temático e a metodolo-gia participativa e estimular a implantação de coletivos de educação permanente.

Para que você, aluno(a), tenha acesso ao material do CDG-SUS, realizamos um trabalho conjunto de revisão do curso – seis oficinas de planejamento e avaliação – com o envolvimento da equipe de coor-denação, de tutores e consultores.

O resultado desse esforço, cuja marca é a inovação, está disponível em duas publicações: uma co-letânea de textos básicos e referências bibliográficas complementares e um caderno de atividades, contendo exercícios, estudos de caso e aulas que possibilitam reflexão, avaliação e construção cole-tiva do conhecimento, cuja organização foi realizada pelo NDS/ISC/UFMT em cooperação com o LAPPIS/IMS/CEPESC/UERJ. O aluno recebe também um Caderno de Indicadores preparado para cada município e um CD contendo legislações do SUS, textos e aulas.

Por fim, apresentamos o artigo Desenvolvimento de Novos Saberes e Práticas na Gestão do Sistema Único de Saúde em Municípios de Mato Grosso publicado na Revista Divulgação em Saúde para Debate - Série CONASEMS / CEBES, Número 44, sobre a primeira fase da experiência do CDG-SUS em Mato Grosso realizado em oito municípios, que traz o perfil dos alunos e a avaliação dos cursos, destacando a relevância do projeto de cooperação da UFMT.

Aproveite. O CDG-SUS foi desenvolvido especialmente para você.

Maria Angélica dos Santos Spinelli

COORDENADORA DO PROJETO CDG-SUS

PROFESSORA DOUTORA DO ISC/UFMT

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Curso de Desenvolvimento

Gerencialdo SUS

COLETÂNEA DE TEXTOS

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APRESENTAÇÃO DO COSEMS/MT

O Conselho de Secretarias Municipais de Saúde de Mato Grosso (COSEMS/MT), criado em 21 de maio de 1987, tem uma trajetória de luta e compromisso com a Reforma Sanitária e com a efetivação do Sistema Único de Saúde nas dimensões técnica, política e da organização dos serviços. Defensor intransigente do direito à saúde como condição fundamental de cidadania, o COSEMS/MT vem somando esforços para que a gestão municipal exerça sua competência de forma autônoma, eficaz, democrática e solidária.

O Conselho de Secretarias Municipais é um ator de representação, mobilização e articulação nos contextos local, regional, estadual e nacional para efetivação dos princípios e diretrizes do SUS: universalidade, equidade, descentralização e participação social, que continuam sendo os grandes desafios para as três esferas de governo.

Neste ideário, constrói permanentemente novas práticas e saberes para a superação dos grandes de-safios, entre os quais destacamos a área recursos humanos, seja pela ausência ou deficiência de Plano de Cargos, Carreiras e Salário, conforme a Lei 8.142/90, ou pela consequente falta de uma política de gestão do trabalho e da educação na saúde nos diferentes níveis do sistema, pautados na lógica da educação permanente.

Para enfrentar esses desafios, o COSEMS/MT priorizou na agenda política a parceria com o Núcleo de Desenvolvimento em Saúde do Instituto de Saúde Coletiva (NDS/ISC) da Universidade Federal de Mato Grosso na construção e execução do Programa Estratégico de Desenvolvimento e Capacita-ção Gerencial e de Gestores, visando também à qualificação dos profissionais, trabalhadores e con-selheiros do SUS. O Programa tem como referência o direito à saúde, a integralidade e as diretrizes da Política Nacional de Educação Permanente.

A parceria entre o COSEMS/MT e o ISC/UFMT vem contribuindo nesses anos com o fortaleci-mento do SUS e buscando a superação das desigualdades e dificuldades de acesso dos trabalhadores da saúde e lideranças dos movimentos sociais aos programas de formação e pós-graduação; e, em di-

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ferentes projetos de extensão, integrando o ensino, a pesquisa e os serviços no processo de educação permanente em saúde desenvolvida.

Nessa parceria, não podemos deixar de ressaltar as ações estratégicas realizadas, potencializadas e disseminadas com a participação de integrantes do Projeto Rede de Apoio ao SUS, constituindo intenso processo de mobilização e capacitação que vem atingindo as regiões de saúde do estado. A experiência tem permitido vivenciar novas práticas integradoras e o empoderamento dos sujeitos co-letivos, e tem como raiz e fonte geradora a interação ensino e serviços, viabilizada pela ação conjunta do COSEMS/MT e ISC/NDS desde 2004.

A avaliação positiva dos executores, alunos, monitores e gestores envolvidos na realização dos cursos em 2008 fortaleceu a decisão do COSEMS de priorizar a realização de novos cursos em 2009 e 2010, e, em agosto de 2008, aprovar, na Comissão Intergestores Bipartite de Mato Grosso, 48 novos cur-sos para promover a educação permanente e o fortalecimento gerencial de aproximadamente 1.680 trabalhadores e conselheiros de saúde, atingindo as 14 regiões de saúde do estado. Nesse sentido, o CDG-SUS integra o programa estratégico de ação do COSEMS no estado e sua execução somente tem sido possível na dimensão e amplitude propostas em decorrência da estreita articulação e parce-ria entre as instituições promotoras.

Andréia Fabiana dos Reis

PRESIDENTE DO COSEMS/MT

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Curso de Desenvolvimento

Gerencialdo SUS

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UFMT COOPERA COM MUNICÍPIOS: Desenvolvimento de novos saberes e práticas na gestão do Sistema

Único de Saúde em Mato Grosso1

Júlio Strubing Müller Neto2

Fátima Ticianel Schrader3

Aline Paula Motta4

Este trabalho apresenta a experiência do Curso de Desenvolvimento Gerencial do Sistema Único de Saúde (CDG-SUS) realizado em oito municípios de Mato Grosso - primeira etapa do projeto e que capacitou 221 gerentes e profissionais das Secretarias de Saúde, contribuindo para o fortalecimento do SUS, em uma iniciativa inovadora de ensino e serviço. É uma iniciativa do Núcleo de Desenvolvi-mento em Saúde (NDS) que integra o Instituto de Saúde Coletiva (ISC) da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), em parceria com o Conselho de Secretarias Municipais de Saúde (COSEMS/MT) e as Secretarias Municipais de Saúde beneficiadas.

A qualificação dos gerentes e profissionais da saúde é uma demanda crescente do SUS, em função da complexidade crescente do sistema, da diversidade de atores e de processos de trabalho em espaços da gestão e da prestação dos serviços, o que requer a superação do modelo de planejamento e gestão normativo e pouco participativo, ainda predominante nas instituições. Nesse sentido, o CDG-SUS traz como proposta teórica metodológica o desenvolvimento das pessoas e das práticas de gestão e do cuidado em saúde, numa perspectiva ética e da integralidade da atenção, na construção do perfil e das competências desejadas para os gerentes dos serviços municipais de saúde, tendo como eixo o direito à saúde e às necessidades de saúde da população e dos cidadãos.

Essa proposta é fundamentada no quadro teórico adotado por Peduzzi (2007, p. 161), com base nos

1 Texto adaptado do artigo publicado originalmente na Revista Divulgação em Saúde para Debate - Série CONASEMS / CEBES, Número 44

2 Professor Adjunto do Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal de Mato Grosso (ISC/UFMT); Doutor em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/FIOCRUZ).

3 Enfermeira da SES/MT e SMS/Cuiabá, e pesquisadora do Núcleo de Desenvolvimento em Saúde (NDS/ISC/UFMT); Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal de Mato Grosso (ISC/UFMT).

4 Técnica do Núcleo de Desenvolvimento em Saúde (NDS/UFMT); Discente em Direito do Centro Universitário da Várzea Grande (UNIVAG).

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estudos de processos de trabalho em saúde e na teoria do agir comunicativo, desenvolvida por Haber-mas, que contribuem para o entendimento do trabalho em equipe de saúde e para a compreensão e intervenção na realidade, com vistas às mudanças das práticas, respeitadas as diferenças culturais e a vontade e opinião política dos trabalhadores e usuários do sistema público de saúde. Conhecer e atuar sobre o mundo não são mais atividades individuais de um ator ou sujeito, mas uma relação intersubje-tiva linguisticamente mediada onde o sujeito, além de ter interesse em atuar sobre o mundo, está in-teressado em entender-se com outros sujeitos sobre o significado das questões (HABERMAS, 1987; 2003). É o paradigma da comunicação a promover a ruptura com a velha moldura da relação sujeito versus objeto, substituindo-a por uma relação intersubjetiva, onde se resgatam pretensões de validade. De acordo com Siebeneichler (1989), para a razão centrada no sujeito, vale o critério de verdade no conhecimento dos objetos e de domínio sobre as coisas, enquanto a razão centrada na comunicação procura sua validade na argumentação. Nessa perspectiva, a intervenção sobre a realidade social e sanitária dessa comunidade, ou seja, a implementação de uma determinada política pública de saúde no âmbito local, por exemplo, também deve obedecer às mesmas premissas. É importante ressaltar que as práticas correntes, hegemônicas, de formulação e implementação de políticas de saúde no SUS partem do universo cultural dos gestores e técnicos de saúde, sobretudo da área de planejamento em direção ao universo cultural dos grupos demandantes, esquecendo-se, com freqüência, que quando dois ou mais grupos pertencentes a diferentes mundos da vida interagem para pensar uma ação con-junta, a decisão não pode ser tomada a partir dos valores e normas de um só grupo. Os atores sociais e os trabalhadores de saúde devem ser reconhecidos como sujeitos portadores de valores, crenças, direitos e competências para agir comunicativamente e participar de um discurso racional (ART-MANN, 2001; RIVERA; ARTMANN, 2006).

Para a teoria do agir comunicativo, os sujeitos partilham uma tradição cultural na medida em que se entendem mutuamente e concordam sobre sua condição; quando coordenam suas ações por meio de normas intersubjetivamente reconhecidas, os sujeitos agem como membros de um grupo social solidário; os indivíduos que crescem no interior de uma tradição cultural e participam da vida de um grupo social, além de desenvolverem identidades individuais e coletivas, processos esses mediados pela interação intersubjetiva propiciada pela linguagem. Os sujeitos em relação intersubjetiva são, ao mesmo tempo, produto e produtores do contexto em que estão inseridos, pois a ação comunicativa tem a função de realizar a reprodução cultural, garantir integração social e solidariedade e promover processos de socialização.

Na leitura habermasiana da realidade social, há uma relação dialética entre o mundo da vida, media-do pela linguagem e pela cultura e representado pela razão comunicativa, e o sistema, mediado pelo poder e pelo dinheiro e representado pela razão instrumental. O mundo da vida não esgota todos os aspectos da vida social e a reprodução material da sociedade é desempenhada pelo sistema, no qual as ações são orientadas para o êxito. O sistema é resultante da diferenciação dentro do mundo da vida, dos subsistemas de ação especializados, sistema econômico e sistema administrativo (SIEBENEICH-LER,1989).

Apoiando-se nessas referências teórico-metodológicas, o curso foi desenvolvido à luz da política na-cional de educação permanente e incorporou a participação dos gestores e técnicos municipais de saúde na sua formulação, execução e avaliação, como forma de fortalecer as parcerias entre as insti-tuições de ensino e pesquisa e os serviços de saúde locais. Nesse sentido, responde a antiga demanda dos gestores municipais de saúde ao estreitar os laços de cooperação entre as instituições formadoras

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e os serviços, fortalecendo a gestão municipal e os processos de mudança das práticas de trabalho no cuidado e na docência (BRASIL, 2005).

O CDG-SUS teve como objetivo geral contribuir para a qualificação das práticas de gestão e do cui-dado em saúde no município, além de fortalecer a relação entre as instituições de ensino e pesquisa e a gestão municipal do SUS na implementação da educação permanente em saúde. Foram desenvolvidos instrumentais teóricos e metodológicos com foco na realidade do município, incluindo um conjunto de textos e informações que possibilitam reflexão, avaliação e construção coletiva do conhecimento.

Desenvolvimento do projeto do curso

O NDS foi responsável pela formulação e implantação do projeto e contou com a assessoria especial da Doutora Roseni Pinheiro e com a equipe do Centro de Estudos e Pesquisa em Saúde Coletiva da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (CEPESC/UERJ/LAPPIS) e docentes da UFMT. A coor-denação contou, também, com a cooperação do Colegiado de Gestão do Curso, constituída por pro-fissionais das instituições parceiras. O financiamento ocorreu com recursos do Ministério da Saúde, Organização Pan-Americana da Saúde, cabendo a administração financeira à Fundação UNISELVA de apoio à UFMT. O certificado do aluno foi expedido pela Pró-Reitoria de Vivência Acadêmica e Estudantil da UFMT (PROVIVAS).

O CDG-SUS foi realizado nos seguintes municípios de Mato Grosso: Alta Floresta, Barra do Gar-ças, Campo Verde, Diamantino, Jaciara, Lucas do Rio Verde, Nossa Senhora do Livramento e Si-nop. Para adesão ao curso, o gestor municipal assinou um termo de parceria com o NDS, que foi homologado pelo Conselho Municipal de Saúde, definindo-se as responsabilidades das instituições envolvidas, sendo contrapartida do município a logística para a realização das atividades presenciais, incluindo salas de aula, acesso à internet, lanches, cópias dos documentos do município para subsi-diar o trabalho dos grupos e disponibilidade do monitor local.

A clientela foi constituída por servidor com cargo de gerente ou responsável técnico em Unidades Básicas de Saúde (UBS) e especializada, assim como gerente ou responsável em unidade adminis-trativa/apoio nas áreas de recursos humanos, orçamento, financiamento, material, almoxarifado, farmácia, serviços gerais etc. A seleção dos alunos foi realizada sob responsabilidade do Secretário Municipal de Saúde e da equipe gestora de saúde do município, sendo que duas vagas foram destina-das a representantes dos usuários no Conselho Municipal de Saúde.

Os pré-requisitos para seleção e participação do aluno no curso foram: fazer parte do sistema mu-nicipal, ter, preferencialmente, curso superior completo e contar com ficha de inscrição autorizada pelo gestor local. Para obter certificado, o aluno deveria teve frequência obrigatória de 70% do total da carga horária presencial, além de realizar trabalho individual ou em grupo e o trabalho de campo programado a partir da primeira unidade.

Para sua realização, selecionaram-se docentes universitários do ISC/UFMT, assessores do COSE-MS/MT, integrantes da Rede de Apoio ao SUS5 e monitores do próprio município, esses últimos responsáveis pela organização local e apoio às atividades acadêmicas e de dispersão. A capacitação dos

5 A Rede de Apoio ao SUS é coordenada pelo COSEMS/MT com apoio de instituições parceiras. Tem abrangência estadual com pontos de conexão e integração de gestores, profissionais e conselheiros em todas as 16 regiões do Estado, favorecendo a articulação nas principais áreas de atuação do Conselho e o fortalecimento do papel do município na regionalização e implementação do Pacto pela Saúde.

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monitores ocorreu em três oficinas de trabalho, totalizando 76 horas, sendo que na primeira houve a participação de 34 profissionais de todo o estado com potencial para assumir a monitoria do curso. As demais oficinas priorizaram a preparação do curso, sendo que a terceira ocorreu após o curso piloto no município de Sinop, onde se validou a metodologia e o conteúdo. Ao término dos cursos, foram realizadas duas reuniões com os monitores centrais para elaboração dos relatórios por municí-pio. A execução do curso foi feita por treze desses monitores, sendo oito ligados a gestão municipal.

O projeto do CDG-SUS foi coordenado pelo Professor Júlio Müller e pela Enfermeira Mestre Fátima Ticianel Schrader, com apoio da técnica e estagiária Aline Paula Motta. A coordenação do projeto foi responsável pela formulação do conteúdo, da metodologia, da grade curricular do curso e pela elabo-ração do material pedagógico para capacitação dos monitores e do material instrucional distribuído aos alunos, incluindo: um caderno de informações sobre a situação de saúde de cada município, o programa do curso, textos e aulas em CD, reprodução de DVD de filme sobre o SUS e sobre o Pacto pela Saúde.

Estrutura e metodologia do curso

A estrutura do curso foi organizada em duas unidades que totalizaram 80 horas. O conteúdo baseou--se em noções / conceitos de política, planejamento e gestão da saúde e no processo de trabalho das equipes, tendo a integralidade, o direito à saúde e à educação permanente como eixos que permea-ram todas as etapas do processo de ensino-aprendizagem (PINHEIRO; MATTOS, 2006).

A primeira unidade, com 30 horas presenciais, enfatiza a área de política, planejamento e gestão da saúde no município e é concluída com 20 horas de atividades de campo, durante as quais o aluno realiza leitura e fichamento de textos, entrevistas com usuários e trabalhadores e observação das uni-dades de saúde, com ênfase na organização/gerenciamento dos serviços e satisfação do usuário. Após 30 dias da Unidade I, é realizada a segunda unidade, com 30 horas de aula presencial, enfocando a área de organização da atenção e do cuidado, os serviços, o processo de trabalho, a relação em equipe e a participação do usuário.

A metodologia utiliza técnicas participativas como estudo dirigido, pequenos grupos e plenárias, mosaico, memória viva, estudo de casos, construção de agenda, etc. Enfatiza a relação entre o con-teúdo temático na constituição de novos sujeitos no sistema municipal, a formação de coletivos como estratégia de educação permanente, e corresponsabilidade na condução do SUS (BRASIL, 2005).

Para o estudo da realidade do município, foi elaborado o Caderno de Informação do Município, com dados sobre a situação social, econômica, sanitária e de saúde local (MATO GROSSO, 2008). Utilizou-se, também, o resultado da pesquisa produzido pelo Grupo de Saúde Popular e NDS sobre a incorporação das demandas populares à política de saúde nesses municípios (MÜLLER NETO et al., 2006; GRUPO DE SAÚDE POPULAR, 2007).

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Conteúdo

Os conteúdos da unidade I, Política, Planejamento e Gestão do SUS, foram organizados em quatro mó-dulos:

1. Contextualização e análise da saúde pública no Brasil e em Mato Grosso (CUNHA; CUNHA, 2001);

2. Contextualização e análise da saúde pública no Município: história e aspectos político--institucionais, estrutura e organização da Secretaria de Saúde e a gestão do sistema, pla-nejamento, financiamento, recursos humanos e controle social (BRASIL, 2007; GRUPO DE SAÚDE POPULAR, 2007);

3. Informação e planejamento em saúde: a importância e o papel da informação em saúde, diagnóstico sociodemográfico e de saúde do município, gerenciamento de informações, Planeja SUS, papel da gestão e do controle social no planejamento, principais instrumen-tos de planejamento e gestão do SUS (ANDRADE; SOARES, 2001; BRASIL, 2007; DE’SETA, 2002);

4. Trabalho de campo: orientações sobre leitura dos textos selecionados; entrevista com usuá-rios e trabalhadores de unidades de saúde, com enfoque na organização da rede e dos servi-ços, fluxo dos usuários, acesso/acessibilidade, vínculo, acolhimento, trabalho das equipes e gerenciamento de materiais.

A Unidade II abordou Gerenciamento e a organização do sistema e serviços de saúde: integralidade e direito à saúde, enfatizando o trabalho em equipe na saúde e o processo de trabalho, e o agir comunicativo (PEDUZZI, 2007).

1. Modelos assistenciais em saúde e a estratégia da saúde da família: rede de serviços e orga-nização do cuidado em saúde (SILVA JUNIOR; MASCARENHAS, 2005);

2. Integralidade do cuidado, trabalho em equipe, educação permanente e participação do usuário: análise do trabalho em equipe na saúde, processo de trabalho em saúde e papel da equipe (BONALDI et al., 2007; PEDUZZI, 2007);

3. Gerência de recursos na unidade (MANDELLI, 1997);

4. Pactuação da agenda mínima de educação permanente para fortalecimento gerencial: in-formações necessárias para construção dessa agenda no Município.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Perfil dos alunos do CDG-SUS

O perfil descrito a seguir foi elaborado com base nos dados contidos na ficha de inscrição dos 280 alunos do curso. Do total, 221 concluíram com a frequência exigida (70% de presença), 41 tiveram frequência insuficiente e 18 não terminaram o curso. O Gráfico 1 indica que 40,55% dos alunos inscritos apresentavam idade entre 30 e 39 anos, 31,1% entre 20 e 29 anos e 20,08% entre 40 e 49 anos, sendo 78,82% do total de alunos do sexo feminino.

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GRÁFICO 1 – Percentual dos alunos inscritos no CDG-SUS, segundo faixa etária, Cuiabá (2008)

Fonte: CDG-SUS/NDS/ISC/UFMT (2008).

No item escolaridade dos alunos, 73,23% possuíam ensino superior completo e destes 63,98% eram pós-graduados. Em relação ao tempo de serviço dos profissionais na Secretaria Municipal de Saúde, 51,37% dos alunos referiram trabalhar há um a cinco anos na instituição, 16,08% entre seis a dez anos e 13,73% há mais de 11 anos. Quanto ao vínculo empregatício, 69,41% eram estatutários, 14,12% contratos temporários, 1,18% celetistas e 15,29% não informaram.

O perfil dos alunos inscritos no curso evidenciou o predomínio de uma força de trabalho jovem, com menos de 40 anos, com nível superior e do sexo feminino, sendo que o tempo de vinculação às instituições era recente, inferior a dez anos. Destaca-se, também, a alta proporção de trabalhadores estatutários, contrariando a noção muito difundida da precariedade de vínculos da força de trabalho da saúde municipal. Esses dados sinalizam a importância do investimento em processos de educação permanente nos municípios como estratégia para o fortalecimento gerencial e qualificação do SUS.

Avaliação do CDG-SUS pelos alunos

A avaliação a seguir refere-se ao consolidado do instrumento aplicado junto aos alunos presentes no final da segunda unidade, totalizando 193 fichas de avaliação. O conteúdo do curso foi avaliado como muito bom por 82,90% dos alunos quanto à sua adequação aos objetivos propostos. Para 79,79% dos alunos, a metodologia foi muito boa, favorecendo a discussão sobre os temas propostos e para 74,87% a metodologia estimulou a participação das pessoas no curso. O material didático foi disponibilizado em quantidade suficiente e ofereceu subsídio para discussão dos temas, segundo 73,96% dos alunos.

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Já a linguagem do material didático foi considerada acessível e de muito boa compreensão dos te-mas estudados por 55,79% dos alunos e avaliada como boa por 40,53%. Para a maioria dos alunos (92,75%) os monitores tinham domínio do conteúdo abordado e da metodologia adotada (89,58%). A estrutura física para realização do curso foi avaliada como muito boa (adequada e confortável) para a realização do curso, segundo 56,25% dos alunos e como boa para 39,06%.

A participação ativa do grupo nas atividades e discussões propostas durante o curso foi avaliada como muito boa, segundo 66,32% dos alunos. A participação individual de forma ativa nas atividades e discussões propostas foi avaliada como muito boa por 51,83% e boa por 41,88% dos alunos. A contri-buição do curso para ampliar os conhecimentos sobre o SUS foi avaliada como muito boa por 89,12% dos alunos (Gráfico 2).

GRÁFICO 2 – Avaliação dos alunos do CDG-SUS quanto à contribuição do curso para ampliar o conhecimento sobre o SUS, Mato Grosso, 2008

Fonte: CDG-SUS/NDS/ISC/UFMT (2008)

No Gráfico 3 foram destacados os aspectos significativos considerados passíveis de modificação nas práticas de trabalho e no gerenciamento do SUS municipal a partir do curso: a educação permanente, o planejamento e o cuidado com o usuário, além de outros temas.

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GRÁFICO 3 – Avaliação dos alunos do CDG-SUS quanto às possibilidades do curso de contribuir para mudanças das práticas de trabalho do SUS municipal, Mato Grosso, 2008

Fonte: CDG-SUS/NDS/ISC/UFMT (2008).

Desenvolvimento das pessoas e das práticas de gestão e do cuidado em saúde

Na avaliação final, os alunos responderam a duas questões abertas relacionadas ao trabalho em equi-pe: 1) Mudanças no modo de trabalhar e se relacionar com a equipe; 2) Como trabalhar as novas práticas do cuidado à saúde e as práticas gerenciais na unidade.

As respostas dadas pelos participantes foram analisadas com base nas teorias já citada aqui (HA-BERMAS, 1987, 2003; PINHEIRO; MATTOS, 2006; PEDUZZI, 2007), procurando identificar e relacionar a apropriação dos conceitos-chaves de integralidade, interdisciplinaridade e trabalho em equipe, educação permanente, participação social na saúde e gestão comunicativa ou participativa.

A maioria das respostas foi afirmativa no sentido de apontar a vontade individual para implementação de novas medidas a serem incorporadas no trabalho gerencial a partir do curso, que iam desde o me-lhor conhecimento acerca do funcionamento e as atividades desenvolvidas pelas equipes e os setores da saúde; o fomento da discussão entre as equipes de trabalho utilizando-se os subsídios do curso (trocar e multiplicar conhecimento); iniciativas de realizar encontros mensais para a abordagem de temas importantes para o desenvolvimento do trabalho e motivação dos profissionais, visando à inte-gração da equipe e a compreensão das limitações das abordagens disciplinares tradicionais; gerenciar melhor os recursos da unidade e fazer o planejamento local.

Na avaliação de um aluno pudemos observar o desenvolvimento da percepção que o curso proporcio-na quanto à responsabilidade de cada um no processo de mudança das práticas:

[...] Sim, porque a partir dessas discussões nós podemos melhorar as ações em saúde na nossa unida-de. Entendi que a mudança pode começar em mim, então devo fazer minha parte (A1, CDG-SUS).

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A construção de técnicas para melhorar o acolhimento ao usuário por parte dos profissionais da rede foi abordado como um desafio, no sentido de aumentar o comprometimento de cada um e a resolutividade das ações. Nesse caso, o cidadão teve destaque como o centro do trabalho da equipe e a razão de ser do próprio trabalhador de saúde. A confiança, o interesse, a corresponsabilidade e a determinação na prática do agir e conquistar as ações, promover a ação comunicativa (diálogo, escuta), colaboração e interação entre equipes das unidades foram outros tópicos significativos que emergiram na avaliação. Assim, comentou um aluno:

[...] Sendo mais flexível na minha conduta, dando mais chance à comunicação tanto com a equipe como com usuários. Ter mais espírito de coletividade e iniciar um processo para atuar visando ao acolhimento, à responsabilização / vínculo, à qualidade da assistência, ou seja, à integralidade (A2,CDG-SUS).

Destacou-se também a importância de valorizar o SUS no contexto do município, a necessidade de participação na elaboração das leis, de construir redes em que cada indivíduo se responsabilizasse por suas tarefas, atribuições e competências, visando a um sistema mais humano, ético e acessível. Em relação às práticas de integralidade que seriam implantadas nos serviços, destacaram-se: o vínculo, o acolhimento, acesso e acessibilidade, responsabilidade e instersetorialidade. Alguns comentários gerais dos alunos revelaram a importância do curso no contexto desses municípios, no caso de Mato Grosso, de pequeno e médio porte:

[...] Recebemos esse curso como um presente muito esperado e então a responsabilidade é nossa de sermos multiplicadores, para que nossa equipe também tenha essas informações atualizadas a respeito da reformulação das ações de saúde no SUS e da necessidade de adequá-la à nossa realidade, às normas de organização da atenção básica de saúde, levando em conta os princípios de humaniza-ção, acolhimento e integralidade, que nada mais é do que a qualidade da atenção. (A3, CDG-SUS).

[...] O curso foi muito bom, consegui ter uma visão mais ampla de todos os setores e seus problemas e também que irei levar isso em prática através do grupo (efetivação) da educação permanente. (A4, CDG-SUS).

[...] Este curso contribui em muito para meu aprendizado. Em relação ao SUS, ampliou meus co-nhecimentos. O meu desejo é que todos coloquem em prática o que aprendemos aqui e estaremos contribuindo para que nossa sociedade melhore através de gestores comprometidos. (A5, CDG--SUS).

[...] Antes de começar o curso não imaginava que fosse possível aprender tanto em tão pouco tempo. A forma de aprendizado dinâmica permitiu uma melhor memorização, estimulou-nos a realizar ações e tentar resolver os problemas existentes. (A6, CDG-SUS).

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[...] Sinto nossos servidores mal aproveitados; temos excelentes na rede; pena que por questões po-líticas ou outras não são convocadas ou solicitadas a colocar em prática sua experiência profissional. Às vezes ele vem de locais onde tudo é destaque na área e ele já viveu isso. Pena que por falta de in-vestimento de recursos, de dar condições de trabalho vamos embora; pois a sensação é que paramos no tempo. (A7, CDG-SUS).

[...] O curso foi de extrema valia para o conhecimento, participação. Foi realizado com uma didá-tica muitíssimo boa. Fez enxergar problemas que estão ao nosso lado e fez a gente saber que temos subsídios para resolvê-los em planejamento, integração da equipe e capacitação. (A 8, CDG-SUS).

[...] O curso atingiu seus objetivos nos seguintes aspectos: ampliar nossa visão quanto aos problemas enfrentados no dia-a-dia e criou nossa corresponsabilidade frente a soluções de problemas. (A1 9, CDG-SUS).

Considerações finais

Como observado na avaliação dos alunos, o CDG-SUS cumpriu com seus objetivos propostos, prin-cipalmente o de despertar os profissionais para o potencial de cada um no processo de construção do SUS com qualidade e integralidade, indicando a existência de excelentes profissionais no sistema e a falta de oportunidade para o desenvolvimento da percepção em relação a si mesmo, do potencial do trabalho em equipe a favor do usuário, da comunidade. O CDG-SUS foi uma pequena iniciativa que potencializou a apropriação das estratégias da educação permanente pelos atores que fizeram as mudanças.

A experiência exitosa realizada em Mato Grosso foi apresentada em diversos fóruns do COSEMS/MT e nos Colegiados de Gestão Regional (CGR) que apoiaram a iniciativa e decidiram considerá-la uma das prioridades da política de educação permanente no SUS estadual.

O papel da universidade no trabalho de extensão e docência voltada para as necessidades de saúde da população e ao desenvolvimento de novas competências dos gerentes do SUS foi amplamente reconhecido, não só pelos trabalhadores e gestores municipais da saúde que aprovaram o projeto de continuidade, em CIB/Estadual, como pelo Ministério da Saúde que assegurou o financiamento para execução desse novo projeto dos cursos de desenvolvimento gerencial a serem realizados pela UFMT e seus parceiros, em 2009 e 2010, em 45 municípios de Mato Grosso.

O efeito multiplicador do CDG-SUS, a integração UFMT, COSEMS/MT e Secretariais de Saúde na formulação, execução e avaliação do curso, o foco na realidade do município e nos problemas de saúde prioritários para a população, o enfoque na integralidade da atenção e na interdisciplinaridade do trabalho em equipe, assim como a construção da proposta de educação permanente para o forta-lecimento gerencial do SUS, contribuiu para a mobilização dos trabalhadores de saúde e o empode-ramento dos sujeitos coletivos nos municípios, na luta pela integralidade da atenção e na gestão do cuidado como essenciais à garantia do direito à saúde.

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ReferênciasANDRADE, S.M.; SOARES, D.A. Dados e informação em saúde: para que servem? In: ANDRADE, S.M.; SOARES, D.S.; CORDONI, J.R.L. (Org.). Bases da saúde coletiva. Londrina: UEL, 2001. p. 161-182.

ARTMANN, E. Interdisciplinaridade no enfoque intersubjetivo habermasiano: reflexões sobre o planejamento e AIDS. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 6, n.1, p. 183-195, 2001.

BONALDI, C.; GOMES, R.S; LOUZADA, A.P. F; PINHEIRO, R. O trabalho em equipe como dispositivo de integralidade: experiências cotidianas em quatro localidades brasileiras. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R.A.; BARROS, M.E. (Org.). Trabalho em equipe sob o eixo da integralidade: valores, saberes e práticas. Rio de Janeiro: CEPESC-UERJ/ABRASCO, 2007. p. 53-72.

BRASIL. Conselho Nacional de Secretários de Saúde. A Emenda Constitucional n. 29, de 13 de setembro de 2000. In: BRASIL. O financiamento da saúde. Brasília, DF: CONASS, 2007. p. 60-86. Coleção Progestores: para entender a gestão do SUS, 3.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Departamento de Gestão da Educação na Saúde. Curso de formação de facilitadores da educação permanente em saúde. Unidade de aprendizagem análise do contexto da gestão e das práticas de saúde. Rio de Janeiro: MS/FIOCRUZ, 2005.

CUNHA, J.P.P.; CUNHA, R.E.C. Sistema Único de Saúde: princípios. In: BRASIL. Ministério da Saúde. Gestão municipal de saúde: textos básicos. Rio de Janeiro: Ministério da Saúde, 2001. p. 285-304.

DE’SETA, M.M. Planejamento, epidemiologia e programação como instrumentos de gestão. In: BRASIL. Gesthos: gestão contemporânea nas organizações de saúde. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2002. Modulo II. p. 8-52.

GRUPO DE SAÚDE POPULAR (GSP). Incorporação das demandas populares às políticas municipais de saúde em Mato Grosso: 2003/2006. Cuiabá: GSP, 2007. Relatório de Pesquisa. (Mimeo)

HABERMAS, J. A nova intransparência. Novos Estudos Cebrap. São Paulo, n. 18, p. 103-114, set. 1987.

HABERMAS, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. 2. ed. Tradução Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.

MANDELLI, M.J. A gerência dos meios de produção na Unidade da Rede Básica de Saúde: um enfoque integrado da administração de materiais, serviços gerais e orçamentária-financeira. In: SANTANA, J.P. (Org.). Desenvolvimento gerencial de unidades básicas do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília: OPAS, 1997. p. 236-251.

MATO GROSSO. Caderno de indicadores. Cuiabá: CDG-SUS/NDS/ISC/UFMT, 2008.

MÜLLER NETO, J.S.; SCHRADER, F.T.; PEREIRA, M.J.V.S.; NASCIMENTO, I.F.; TAVARES, L.B.; MOTTA, A.P. Conferências de saúde e formulação de políticas em 16 municípios de Mato Grosso: 2003-2005. Saúde em Debate. Rio de Janeiro, v. 30, n. 73/74, p. 248-274, mai./dez. 2006.

PEDUZZI, M. Trabalho em equipe de saúde no horizonte normativo da integralidade, do cuidado e da democratização das relações de trabalho. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R.A.; BARROS, M.E.B. (Org.). Trabalho em equipe sob o eixo da integralidade: valores, saberes e práticas. Rio de Janeiro: IMS/UERJ/CEPESC/ABRASCO, 2007.

PINHEIRO, R.; MATTOS, R.A. Implicações da integralidade na gestão da saúde. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R.A. (Org.). Gestão em redes: práticas de avaliação, formação e participação na saúde. Rio de Janeiro: CEPESC, 2006. p. 11-26.

RIVERA, F.J.U.; ARTMANN, E. A liderança como intersubjetividade lingüística. Interface – saúde, educação, comunicação, São Paulo, v. 10, n. 20, p. 411-25, 2006.

SIEBENEICHLER, F.B. Jürgen Habermas: razão comunicativa e emancipação. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.

SILVA JÚNIOR, A.G.; MASCARENHAS, M.T.M. Avaliação da atenção básica em saúde sob a ótica da integralidade: aspectos conceituais e metodológicos. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R.A. (Org.). Cuidado: as fronteiras da integralidade. Rio de Janeiro: CEPESC-UERJ/ABRASCO, 2005. p. 241-257.

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Curso de Desenvolvimento

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ESTRUTURA MODULAR DO CURSO

O CDG-SUS está estruturado em duas unidades e um eixo integrador, que correspondem a oitenta horas de qualificação, com aulas presenciais e um período de dispersão para o desenvolvimento de um trabalho de campo. Dessa forma, garante ao aluno acesso às principais noções de saúde e doença, conceitos de política, planejamento, gestão do SUS, organização do sistema e dos serviços de saúde, tendo a integralidade, o direito à saúde e a educação permanente como eixos.

Unidade I: Condição de vida, política e gestão do SUS�� 30 horas de aula presencial

Temas abordados�� Módulo 1 – 8 horas: Condição de vida e política de saúde

�� Módulo 2 – 10 horas: Política e gestão de saúde no município

�� Módulo 3 – 12 horas: Informação e planejamento em saúde

Eixo integrador: Trabalho de campo�� 20 horas de dispersão

Unidade II: Gerenciamento e organização do sistema e serviços de saúde: integralidade e direito à saúde�� 30 horas de aula presencial

Temas abordados�� Módulo 4 – 12 horas: Modelos tecnoassistenciais em saúde e avaliação do cuidado

�� Módulo 5 – 6 horas: Trabalho em equipe

�� Módulo 6 – 7 horas: Gerência de recursos na unidade

�� Módulo 7 – 5 horas: Educação permanente para fortalecimento gerencial

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UNIDADE I

CONDIÇÃO DE VIDA, POLÍTICA E GESTÃO DO SUS

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Módulo 1: condição de vida e política de saúde

1.1 Condições de vida, saúde e doença�� Principais noções e concepções de saúde e doença.

�� A urbanização acelerada e a industrialização como processos mais frequentes e que têm determinado impactos sobre as condições de produtividade, como as condições de trabalho e a qualidade de vida da classe trabalha-dora.

�� As diferentes formas de organização social para enfrentamento das transformações nos diferentes contextos históricos.

�� Determinantes socioeconômicos, culturais e ambientais, formas de organizações e relações sociais, estilos de vida dos indivíduos e outros fatores tais como idade, sexo, hereditariedade.

�� Relação entre determinantes sociais e rede de usuários: diferentes abordagens de redes para entender o papel intervencionista do Estado de um lado, e, de outro, a sociedade civil.

1.2 Política de Saúde no Brasil�� Contextualização e análise da saúde pública no Brasil: antecedentes e histórico da Reforma Sanitária.

�� A constituição do SUS e a garantia do direito à saúde como política de Estado.

�� Princípios doutrinários e organizativos do SUS, marco regulatório principal (Leis 8.080/90 e 8.142/90; Normas Operacionais Básicas do SUS 91, 93, 96; Norma Operacional da Atenção à Saúde (NOAS/SUS 01); e Pacto pela Saúde).

�� Aspectos da descentralização da política de saúde (municipalização e regionalização), o papel da CIB e da CIT, o controle social e as principais alterações no modelo de atenção à saúde.

�� Pacto pela Saúde: Pacto pela Vida, Em defesa do SUS e de Gestão, as mudança no modelo de relação intergo-vernamental entre os entes federados na responsabilização pelo direito à saúde.

1.3 Política de Saúde em Mato Grosso: a implementação do SUS no período de 1995-2006�� Contextualização e análise da implementação do SUS em Mato Grosso.

�� Antecedentes do SUS: décadas de 1970 e 1980.

�� A implementação do SUS na década de 1990: municipalização regionalizada.

�� Diretrizes da Política Estadual de Saúde (1995): redefinição do papel da SES/MT, os novos modelos de gestão e de atenção e a implementação da NOB/96.

�� Marco legal e desenvolvimento institucional.

�� Consolidação do SUS no período de 2000-2006.

�� O desafio da avaliação da política estadual de saúde.

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TEXTOS BÁSICOS

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CONCEPÇÕES DE SAÚDE E DOENÇA1

Paulo Chagastelles Sabroza

Industrialização, controle social e saúde pública

A partir da metade do século XVIII, importantes transformações passaram a ocorrer na Europa, com impactos notáveis sobre as condições de vida e saúde.

O crescimento demográfico anterior, a acumulação de capitais resultante da espoliação colonial, o fortalecimento dos Estados Nacionais, com crescentes funções reguladoras, o desenvolvimento téc-nico de novas máquinas e a consolidação da lógica de produção capitalista possibilitaram a ampliação em níveis inéditos da capacidade produtiva.

A urbanização acelerada e a industrialização são com frequência os processos mais destacados, tanto por seus impactos sobre as condições de produtividade como nas condições de trabalho e qualidade de vida da classe trabalhadora. Mas estas transformações também modificaram radicalmente as con-cepções sobre saúde e doença e as formas daquelas sociedades intervirem nestas questões.

Inicialmente, o adensamento de pessoas em bairros operários e fábricas sem nenhuma condição de saneamento, submetidas a forte desgaste pela carga excessiva de trabalho e alimentação inadequada, re-sultou em agravamento das condições de saúde a um ponto capaz de ameaçar até mesmo a sobrevivência biológica destes grupos sociais, e portanto a indispensável reprodução ampliada da força de trabalho.13

Mais uma vez na história do Ocidente ocorreu incremento, por um período prolongado, na mortali-dade, compensada apenas, em termos populacionais, por taxas altíssimas de natalidade. Desnutrição, alcoolismo, doenças mentais e violência atingiam pesadamente a nova classe de trabalhadores urbanos.

Doenças conhecidas, como a febre tifoide, e outras novas, importadas das colônias, como a cólera, passaram a serem transmitidas de modo ampliado, para o conjunto da população, pelos precários

1 Publicado originalmente em: SABROZA, Paulo. Concepções de saúde e doença. In: OLIVEIRA, Roberta Gondim de; GRABOIS, Victor; MENDES JÚNIOR, Walter Vieira (Orgs.). Qualificação de Gestores do SUS. Rio de Janeiro: EAD/Ensp, 2009. [CD]. Reprodução autorizada pelo autor.

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sistemas coletivos urbanos de distribuição de água, causando epidemias letais, sempre acompanha-das de pânico. Levando, aqueles que podiam, a abandonar as cidades, que passaram a ser identifi-cadas como locais insalubres.

Os hospitais públicos, onde principalmente os indigentes eram internados, particularmente preci-savam ser evitados, e a mortalidade nas maternidades fazia do parto uma situação de alto risco. A prática médica era mais prejudicial que eficaz.

A tuberculose, conhecida havia séculos, encontrou novas condições de circulação, capaz de ampli-ficar de tal modo sua ocorrência e letalidade que passou a ser uma das principais causas de morte, atingindo principalmente jovens nas idades mais produtivas.

Há duzentos anos, essa imensa crise sanitária colocou em risco o projeto capitalista.

A grande crise sanitária certamente não era apenas uma crise setorial. Expressava, de modo muito sensível, os impasses e contradições acumulados no processo de reprodução daquela organização social. Quando até mesmo a sobrevivência das pessoas fica ameaçada, o próprio pacto social pode vir a ser questionado.

Epidemias e revoltas populares eram conhecidas formas de expressão das crises dos processos de reprodução social, sempre presentes nos modos de produção anteriores.

Sabemos que, em sistemas abertos e complexos, o ruído e a contradição não são simplesmente dis-funcionais, como nos sistemas simples e fechados. Ao contrário, são também elementos indispensá-veis à auto-organização e capacidade de inovação.

Os movimentos coletivos e organizados dos trabalhadores urbanos, reivindicando melhores salá-rios e condições de vida e trabalho, em confronto com os interesses individuais dos proprietários dos meios de produção, foram processos emergentes que impuseram o encaminhamento de novas soluções para a crise.

O outro componente daquela organização social que possibilitou sua superação, em interação não line-ar com os movimentos dos trabalhadores, foi a participação dos Estados Nacionais na regulamentação das condições de trabalho e de uso do espaço urbano, através da introdução de legislações específicas e mecanismos de controle social efetivos, capazes de assegurar melhores condições de vida aos trabalha-dores, ainda que contrariando alguns proprietários, mas no interesse do capitalismo em seu conjunto.

Sob o paradigma da teoria dos miasmas, foram realizadas as reformas urbanas nos centros industriais que reduziram, de modo importante, a transmissão de várias doenças e a mortalidade infantil. Ao mesmo tempo, o modelo da higiene procurava difundir nos grupos populares comportamentos con-siderados adequados para a saúde, dirigidos principalmente aos problemas das crianças e da sexuali-dade, vinculados à concepção de mundo burguesa.

Teve início também a aplicação de métodos estatísticos para contabilizar as mortes e identificar di-ferenças de risco de morrer entre lugares e grupos sociais, contribuindo para o debate que marcou o período, sobre a importância da determinação ambiental ou social.

O projeto da saúde pública moderna nasceu então, no início do século passado, como um componen-te estratégico do processo de controle social sobre as condições de reprodução dos grupos sociais, direcionado ao saneamento do ambiente urbano e mudanças nos padrões culturais do proletariado, através de práticas normativas e educativas.14

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Os avanços das ciências da vida observados na segunda metade do século XIX, com a identificação da estrutura celular, dos principais processos fisiológicos e da teoria evolutiva das espécies, fun-damentaram de modo científico a ideia de saúde enquanto situação de adaptação às condições do meio externo. O modelo de necessidade de equilíbrio entre os meios interno e externo, de Claude Bernard, e da seleção natural dos mais aptos, de Darvin, mostraram-se muito pertinentes enquanto paradigmas capazes de integrar questões como ordem, diferença e mudança.

A metáfora das sociedades como um grande organismo permitiu a elaboração da noção de patologia social e que fossem, desde então, propostos métodos próprios para o estudo das doenças neste nível, dando início à estatística vital e à epidemiologia.

Uma concepção positiva de saúde, vinculada a condições de vida adequadas, pode, então, ser elabora-da e difundida amplamente, ficando as enfermidades bem caracterizadas como resultado da pobreza e da injustiça, e sua possibilidade de superação vinculada ao progresso social.

O desenvolvimento da teoria microbiana das doenças, apontando para a ocorrência de agentes externos específicos como suas, contribuiu decisivamente para a superação dos modelos metafísicos e místicos anteriores, e, ao reconhecer a importância fundamental das condições dos hospedeiros nos processos infecciosos e a relação entre falta de higiene e presença de agentes de doenças, foi de importância mar-cante na consolidação da concepção de saúde como estado de equilíbrio do indivíduo com seu habitat.

Ao mesmo tempo, veio possibilitar ações diretas sobre os processos saúde-doença, no nível individual e coletivo, através de ações específicas eficazes, que não exigiam mudanças no modo de vida e na estrutura social.

Formas de intervenção sobre mecanismos de transmissão de doenças passaram a ser promovidas pelos agentes políticos e econômicos locais, e implementadas por outro tipo de profissional de saúde, o sanitarista, vinculado ao Estado e atuando através de ações limitadas no tempo e no espaço, as campanhas sanitárias.

Em pouco tempo, as grandes epidemias deixaram de fazer parte do perfil de saúde e doença das po-pulações urbanas dos países centrais.15

Nas áreas rurais, e principalmente nas colônias, este modelo, que dependia da transformação das condições de vida do conjunto da população, com reflexos diretos sobre a saúde, não foi implemen-tado. Aqui o controle social era exercido pelas mais diversas formas de violência institucionalizadas,

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sem encontrar resistência organizada por parte dos trabalhadores, e a mortalidade excessiva foi, durante algum tempo, simplesmente contrabalançada pela importação de escravos e pela migração de novos colonos.

Ainda no início deste século, epidemias de doenças transmissíveis, principalmente a febre amarela e a malária, produziam impacto dramático na mortalidade nas cidades e nos principais canteiros de obras localizados nos países periféricos, causando prejuízos ao comércio e dificultando a expansão do capitalismo.

A solução, na época, veio através do incentivo público às pesquisas biomédicas, principalmente aque-las dirigidas às doenças tropicais, e à formação de equipes de trabalho organizadas em moldes milita-res, capazes de intervir com disciplina e eficácia quando necessário, as campanhas sanitárias.16

A intervenção focal, localizada, limitada apenas ao controle de certas enfermidades definidas como prioritárias na perspectiva dos governantes, foi a estratégia característica de atuação sobre a saúde nas formações capitalistas periféricas, na conjuntura do capitalismo molecular competitivo.

Unidades econômicas autônomas organizavam os espaços de produção e de reprodução da força de trabalho de modo integrado, a partir do controle local exercido pelo mesmo ator social, seja no en-genho ou na fábrica com seu bairro operário.

O sucesso dessas campanhas sanitárias tem sido destacado, tanto por seus resultados no controle de processos epidêmicos como pelo exemplo de articulação entre conhecimento científico, competên-cia técnica e organização do processo de trabalho em saúde.

Mas, na medida em que não foram efetivamente modificadas as condições de vida dos diferentes grupos sociais, não produziam impacto sobre a saúde como um todo, ou mesmo sobre a mortalidade geral, que continuou muito alta, principalmente devido aos níveis elevadíssimos da mortalidade infantil.

As outras questões de saúde, aquelas que não interferiam diretamente nas condições de produção, foram deixadas por conta das medicinas tradicional e popular.

A atenção às demandas de cuidados de saúde das pessoas era questão de natureza particular, na me-dida dos recursos de cada uma, ficando os serviços públicos assistenciais voltados àqueles que neces-sitavam de internação compulsória, como loucos, tuberculosos e leprosos, e os serviços filantrópicos dirigidos aos indigentes. De qualquer modo, as técnicas disponíveis interferiam pouco na evolução natural das doenças mais frequentes.

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Capitalismo de Estado, desenvolvimento e políticas de saúde

Durante algum tempo foi inegável o sucesso desse modelo de organização social, centrado na compe-tição e na divisão social do trabalho, tanto no incremento da produção econômica como na elaboração de conhecimento científico e no controle daqueles problemas de saúde definidos como prioritários.

Em uma perspectiva de conjunto, entretanto, os conflitos decorrentes da luta de classes e da luta pelo controle dos mercados resultaram, na primeira metade desse século, em instabilidade social, revoltas, revoluções e contrarrevoluções, e, ainda, duas guerras de abrangência mundial, que produ-ziram mortes, mutilações e sofrimento em dezenas de milhões de pessoas, em uma escala inédita na história da humanidade.

Mesmo o controle conseguido sobre as doenças transmissíveis foi obscurecido por uma nova ca-tástrofe de âmbito global, a epidemia de gripe que assolou os diversos países na segunda década do século XX, relacionada com a amplificação da transmissão do vírus nos cenários de guerra. Em poucos anos, milhões de pessoas morreram desta doença, sem que os serviços de saúde mais uma vez mostrassem qualquer eficácia.

A derrocada econômica da década de trinta, a sucessão de guerras e a ameaça da revolução socialista impuseram uma reestruturação do modelo de organização socioespacial capitalista, com profundos impactos sobre as diversas dimensões da economia e da vida, inclusive sobre o projeto de saúde e os modelos assistenciais.

A crise que culminou mais de cem anos de acumulação do capitalismo molecular competitivo re-sultou, na metade desse século, na emergência e consolidação do modelo capitalista monopolista e de planejamento estatal, que assegurou mais cinco décadas de desenvolvimento econômico e social.

Os Estados nacionais, além das suas funções tradicionais de regulação das relações econômicas e de trabalho, manutenção da ordem e defesa da propriedade e do território, passaram a desempenhar novas funções, inerentes ao modelo desenvolvimentista.

Além de regularem a disputa pelos mercados e assumirem a responsabilidade de criar a infraestrutura necessária à industrialização, passaram a desempenhar de modo ativo, através de políticas sociais, funções direcionadas a assegurar a reprodução ampliada dos trabalhadores e consumidores urbanos e implemen-tando novas estratégias de controle social, de modo a minimizar crises, revoltas populares e epidemias.

Para isto, redirecionaram para o consumo dos diferentes grupos sociais urbanos recursos que, de outro modo, teriam sido transformados em lucros e investidos na produção.

O confronto dos Estados Unidos com a União Soviética, e a constituição de dois blocos de países em antagonismo, resultou em grande incentivo à pesquisa e produção de armamentos, com impacto também sobre várias outras áreas estratégicas. Ao mesmo tempo, a necessidade de consolidação dos blocos levou à formulação e financiamento de projetos de cooperação internacional em várias áreas, com importante impacto sobre as condições de vida e saúde, mas também aumentando muito a de-pendência das formações periféricas em relação às grandes potências mundiais.

A seleção e difusão de sementes de cereais de produtividade muito maior, ainda que dependentes da aplicação crescente de insumos industrializados, como adubos químicos, pesticidas e mecanização, aumentou muito a produção de alimentos, nos países centrais e periféricos, viabilizando a transferên-cia maciça de pessoas dos campos para as cidades.

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Esta transformação tecnológica, conhecida como revolução verde, também assegurou a dependência das áreas rurais aos grandes centros urbanos, rompendo com sua tradicional autonomia.

Uma maior disponibilidade de alimentos e o controle de certas doenças transmissíveis possibilita-ram grande crescimento da população mundial, sobretudo nos países periféricos.

No período do capitalismo de estado, a concentração dos investimentos em apenas alguns poucos polos econômicos resultou em importantes desigualdades regionais. Além da concentração de capital, de energia e de trabalhadores nesses centros industriais, induzida pelas políticas e investimentos públicos, a outra característica espacial marcante foi a necessidade de integração das mais diferentes unidades territoriais, de modo a viabilizar os fluxos indispensáveis de insumos, mercadorias e trabalhadores.

Com isto, grandes movimentos populacionais passaram a ocorrer entre as regiões, e das áreas rurais para as metropolitanas.

Mas esses processos de urbanização e crescimento populacional, dissociados da industrialização, da criação em larga escala de novos empregos nas indústrias e do movimento de organização dos traba-lhadores, não resultou em mudanças na estrutura social e nas condições de vida desses contingentes populacionais urbanos, que passaram a depender diretamente, para sua sobrevivência e controle social, das políticas públicas.

Durante muito tempo, esse intenso crescimento urbano foi considerado disfuncional, um certo tipo de inchamento, patologia social do subdesenvolvimento.

Sabe-se agora que a produção ampliada, simultânea e integrada do desenvolvimento e do subdesenvolvi-mento é uma característica inerente do capitalismo, e que este só pode se materializar através da repro-dução de desigualdades sociais e espaciais, nas várias escalas, de países, regiões e lugares. Só assim são assegurados os gradientes que viabilizam os fluxos, garantindo o dinamismo do processo econômico.17

Durante a segunda metade desse século, esse crescimento das populações urbanas foi fundamental para consolidar um imenso contingente de novos consumidores de produtos industrializados, inclu-sive de insumos de saúde, motivados pelas mensagens dos meios de comunicação de massa.

Os Estados Nacionais, através de suas políticas sociais, de saúde, educação e saneamento, tiveram a responsabilidade de garantir condições de vida em níveis capazes de assegurar sua reprodução am-pliada e controlar o risco de epidemias nas cidades. O projeto de desenvolvimento econômico, tendo as políticas públicas como vetores de organização da economia e do espaço social, produziu transfor-mações profundas nas condições de reprodução social, na determinação dos processos saúde-doença, nas concepções científicas e populares sobre estes fenômenos e nos modelos assistenciais.

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A transição demográfica e a ideologia do desenvolvimento

Na saúde, a descoberta e síntese em escala industrial de antibióticos, inseticidas capazes de eliminar vetores de doenças, hormônios e medicamentos realmente eficazes para muitas doenças, veio modi-ficar radicalmente as práticas da saúde pública e da clínica médica, que passaram cada vez mais a se caracterizar pelas intervenções fundamentadas no conhecimento técnico-científico, em detrimento das práticas tradicionais.

A disseminação desta medicina moderna ocorreu como parte integrante de um projeto de mundo em mudança e desenvolvimento imaginado linear. Nesta ideologia evolucionista, todas as diferentes for-mações socioespaciais seguiriam, na medida em que fossem ocorrendo as acumulações necessárias, a mesma trajetória, passando pelas mesmas etapas históricas já registradas pelas nações desenvolvidas.

Um modelo importante que expressa esta concepção é o da transição demográfica, que procura apresentar as relações entre crescimento e estrutura das populações e seus diversos padrões de mor-talidade e natalidade, nas diferentes etapas de desenvolvimento.

A previsão feita por Maltus, no século XIX, de inevitáveis crises sociais, decorrentes da relação desfavorável entre o contínuo crescimento das populações e o lento aumento da produção de alimen-tos, veio a ser refutada, mesmo antes do incremento da produtividade agrícola, pelas mudanças nos padrões reprodutivos.

Quando se analisa grandes séries históricas de estatísticas de mortalidade e estimativas de natalidade, disponíveis para alguns países e cidades europeias desde a metade do século XVIII, pode-se reco-nhecer, com regularidade, quatro períodos, que se sucederam em um intervalo de duzentos anos:18

1. Um período inicial, onde a mortalidade era muito alta, com taxas acima de 25 por mil habitantes, e grande variação entre os anos, devido à ocorrência de epidemias com alta letalidade. As taxas de natalidade, também muito altas, nos limites do potencial reprodutivo da espécie humana, eram ape-nas um pouco maiores, assegurando apenas a reposição da população e um pequeno crescimento. A estrutura etária mostrava uma pirâmide de base ampla, com uma proporção elevada de crianças e um número muito reduzido de idosos, de mais de 60 anos. A curva de mortalidade proporcional apresentava uma concentração de óbitos em crianças de menos de um ano e de um a quatro anos.

2. Em uma etapa seguinte, as mortes por doenças epidêmicas são controladas, e as taxas de mortalidade passam a cair regular e rapidamente, em decorrência das transformações sociais observadas no início do século passado. A natalidade continua alta, e até aumenta um pouco, devido ao menor desgaste e mortalidade das mulheres no parto. A população cresce exponencialmente, a taxas elevadas.

3. Em seguida, a mortalidade continua a cair, mas com menor velocidade, pois já foram controladas as causas mais vulneráveis às mudanças nas condições ambientais. O fenômeno marcante passa a ser a queda progressiva e continuada da natalidade, através da difusão de práticas anticoncepcio-nais tradicionais nas famílias dos trabalhadores urbanos, a partir do aumento da preocupação com questões como o trabalho feminino e o custo de manutenção dos filhos. A população continua crescendo, mas as taxas são cada vez menores.

4. Uma quarta etapa volta a mostrar uma aproximação de natalidade e mortalidade, e, portanto, um crescimento pequeno. Mas agora com taxas muito baixas, em torno de dez por mil habitantes, peso irrelevante da mortalidade por doenças infecciosas e uma estrutura populacional distinta, com elevado percentual de pessoas e óbitos nos grupos mais idosos.

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Esta relativamente rápida e recente modificação na estrutura populacional, acompanhando um gran-de aumento na expectativa de vida, de cerca de 40 anos para mais de 70, foi certamente um marco na história da espécie humana.

É importante registrar que, nos países capitalistas centrais, ela não decorreu da incorporação de técnicas específicas de controle de doenças, mas, fundamentalmente, das grandes transformações estruturais observadas nas suas formas de organização social.

Indicadores de mortalidade, passíveis de serem calculados a partir dos registros civis, foram então amplamente utilizados para caracterizar as diferenças de nível de desenvolvimento entre regiões e países, e para avaliar o impacto de políticas sociais e transformações econômicas. Três se mostraram particularmente sensíveis:

�� O coeficiente de mortalidade infantil, ou número de óbitos de crianças de menos de um ano de idade para cada mil nascidos vivos.

�� A mortalidade proporcional por doenças infecciosas e parasitárias, ou o percentual dos óbitos neste grupo de causas em relação ao total de óbitos registrados.

�� A mortalidade proporcional em idosos, de 50 e mais anos de idade, ou o percentual dos óbitos neste grupo de idade em relação ao total de óbitos.

A precariedade dos registros de óbitos e nascimentos muitas vezes prejudicava as comparações, co-mumente só estando disponíveis estatísticas confiáveis para áreas urbanas.

Ao centrar a preocupação relacionada com as questões demográficas no crescimento absoluto da população, deixou-se em segundo plano características que posteriormente se mostrariam da maior relevância.

A diminuição da natalidade, associada ao aumento da expectativa de vida resultou também na re-dução da população ativamente envolvida nos processos de trabalho, com novas implicações sociais.

Nas formações socioespaciais periféricas a tendência de queda da mortalidade só ocorreu mais de cem anos depois do início da transição demográfica na Europa, e por fatores determinantes muito distintos, relacionados à difusão do conhecimento técnico-científico e aos programas de coopera-ção internacional.

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Doença, pobreza e desigualdade

A questão da desigualdade e da persistência da pobreza, apesar do contínuo desenvolvimento dos meios de produção, passou a dominar o debate político no campo da saúde pública, influenciando também a produção acadêmica e levando a proposta de ações específicas para atender os excluídos. O ciclo vicioso da doença e da pobreza foi uma metáfora que presidiu as discussões sobre saúde e de-senvolvimento, nas décadas de quarenta a sessenta, colocando a questão da produtividade individual e reatualizando a antiga polêmica do século passado sobre qual seria a melhor estratégia para assegurar as desejadas transformações na qualidade de vida.

Grupos de esquerda propunham a redução da pobreza através do desenvolvimento econômico e social, enquanto outros, de direita, identificavam apenas nas práticas científicas as possibilidades concretas de romper o ciclo vicioso, a partir do aumento da produtividade dos trabalhadores e do sistema social como um todo, depois da redução das doenças.

Na perspectiva do Estado e do desenvolvimento socioeconômico, a saúde passara a ser concebida ora como meio, recurso estratégico capaz de assegurar a produtividade do sistema, ora como subprodu-to, resultado da evolução das técnicas e das relações sociais.

Para os trabalhadores assalariados, a ideia de saúde veio representar cada vez mais a capacidade de poder trabalhar e de assegurar o atendimento de suas necessidades básicas e as de suas famílias.

Nas formações sociais periféricas, como o Brasil, a aplicação das novas técnicas de controle de do-enças, por inseticidas, medicamentos, hidratação oral e saneamento, resultou na rápida queda da mortalidade infantil e da mortalidade por doenças infecciosas, principalmente malária, tuberculose e mais recentemente as diarreias infecciosas, sem que tenham ocorrido simultaneamente transfor-mações na organização social.

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Programas de cooperação internacional apoiaram, com recursos financeiros e transferência de tec-nologias, as ações de controle de doenças, em escala global, como parte integrante da proposta de consolidação de blocos políticos e militares.

Campanhas verticais permanentes, institucionalizadas, com forte organização burocrática, foram então utilizadas para implementar, em áreas consideradas estratégicas, as novas práticas de saúde, mesmo na ausência de uma rede de serviços assistenciais com cobertura adequada.

A erradicação total do vírus da varíola, a eliminação da febre amarela urbana das Américas, a inter-rupção da transmissão da malária e da doença de Chagas, na maior parte das áreas anteriormente endêmicas, a eliminação da poliomielite e o controle da raiva urbana e do sarampo comprovaram a efetividade dessas práticas.

Como não ocorreu simultaneamente redução nas taxas de natalidade, as populações passaram a cres-cer exponencialmente, até com taxas maiores que 3% ao ano, exercendo fortes pressões sobre os recursos públicos e sobre o ambiente.

Algumas décadas depois, a disseminação de técnicas anticoncepcionais, também através de campa-nhas verticais, com orientação técnica e financiamento internacional, resultou na queda progressiva da natalidade e na tendência ao envelhecimento da população, novamente com redução da proporção daqueles economicamente ativos.

De certo modo, pode-se dizer que, nesses países, teria ocorrido um tipo comprimido de transição demográfica, tendo se passado, em menos de cinquenta anos, o que nos países centrais levou mais de dois séculos para ocorrer.

Mas os determinantes e as consequências desses processos são muito diferentes nas duas condições históricas, de modo que a experiência daqueles não parece ser de muita utilidade quando se procura analisar os desdobramentos demográficos, culturais e sanitários dessa intervenção recente e inédita nos padrões de reprodução social das classes populares dos países periféricos.

Medicina preventiva e história natural das doenças

A necessidade de preservar a saúde da força de trabalho urbana, já com algum grau de especialização profissional, impôs, nos países industrializados, uma importante mudança na agenda da saúde públi-ca, que passou a dar ênfase na atenção individual e na aplicação de medidas de prevenção de doenças, particularmente aquelas relacionadas à reprodução da população e ao desgaste dos adultos jovens.

O modelo da história natural das doenças, proposto por Leavell e Clark,20 serviu de orienta-ção tanto para os projetos de saúde pública como para a prática médica durante cinco décadas, ainda sendo amplamente utilizado.

Sua lógica central é reconhecer a doença como processo dinâmico, que percorre os corpos dos in-divíduos, e que tem seus determinantes também no ambiente em que estes vivem, permitindo que sejam identificados diferentes períodos na evolução desses processos patogênicos e distintas oportu-nidades de intervenções médico-sanitárias.

Os períodos da história natural de uma doença são:

�� O pré-patogênico, ou de atuação dos determinantes ambientais e sociais, anteriores ao início das manifestações patológicas, dividido em inespecífico e de indução, ou de exposição a deter-minantes específicos;

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�� O patogênico, quando já há alterações de normalidade, podendo ser pré-clínico, ou assintomá-tico, e clínico, ou sintomático;

�� O período de incapacidade, temporária ou permanente, em que há readaptação do doente às suas condições normais ou a uma nova condição de vida, quando persistem sequelas limitantes.

O ponto de perspectiva desse modelo é a da clínica médica, e os conceitos de normalidade e condi-ções normais de vida são, portanto, tecnicamente definidos, como também o é a classificação das diferentes formas de doenças.

As oportunidades de intervenção passaram a ser analisadas tanto por sua eficácia como pela relação custo-benefício, sendo reconhecidas as seguintes:

�� A promoção da saúde, ou intervenção sobre os determinantes sociais, ambientais e comporta-mentais inespecíficos.

�� A prevenção, ou atuação sobre determinantes específicos, como situação de imunidade ou ex-posição a agentes patógenos.

�� O tratamento, dividido em tratamento precoce, ainda no período assintomático, e tratamento das doenças já estabelecidas.

�� A recuperação, quando se procura superar as limitações decorrentes das doenças e promover a reinserção do doente na sociedade.

Considerando as relações custo-benefício e as limitações da medicina preventiva em conceber e pro-por transformações estruturais nas sociedades, priorizaram-se as ações nos níveis de prevenção espe-cífica e o diagnóstico e tratamento precoces.

Ao estender sua abrangência da enfermidade estabelecida ao período pré-patogênico, passou-se a con-siderar como objeto de atenção da prática médica, em sua modalidade preventiva, não mais apenas os doentes, mas o conjunto da população, pois, afinal, todos podem vir a adoecer e terão que morrer.

Na dimensão da saúde pública, o modelo da medicina preventiva se mostrou poderoso instrumento de mudanças, ampliando as possibilidades de atuação dos serviços de saúde, propondo a integração da atenção médica com as ações preventivas, de controle ambiental e de educação para a saúde.

O novo modelo transferiu a atenção da saúde pública do espaço de transmissão das doenças para os corpos das pessoas e seus locais de moradia e trabalho, com implicações importantes para assistência à saúde e para as estratégias de controle social.

Outro bloco de disciplinas, constituído pela epidemiologia, a administração de serviços, o planeja-mento em saúde e as ciências do comportamento, veio a responder pelo corpo conceitual e metodo-lógico das ciências da saúde, que passou a orientar as novas práticas.

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O conceito de “população”, entendido simplesmente como coletivo de indivíduos residentes em uma determinada unidade territorial, definida por critérios político-administrativos, tornou-se central para as propostas de saúde implementadas no contexto do capitalismo de estado.

Além das doenças capazes de dificultar o desenvolvimento dos processos produtivos, passaram tam-bém a ser consideradas como problemas de saúde aquelas com elevada frequência nos diversos grupos populacionais, através do conceito de “doença de massa”, que transformava o doente em unidade operacional das campanhas institucionais.

Procedimentos de screening na população geral e em grupos de risco passaram a constituir instru-mentos importantes, tanto para o levantamento da magnitude e monitoramento dos problemas como para seu diagnóstico precoce, induzindo uma maior demanda dos serviços médico-assistenciais.

A sífilis e a tuberculose são exemplos de doenças de massa que finalmente vieram a ser controladas através de exames periódicos associados a tratamento com novos e eficazes medicamentos.

Também algumas enfermidades características da infância, como a difteria, tiveram sua expressão muito reduzida pela oferta e demanda de vacinação nos serviços públicos.

O monitoramento dos problemas de saúde dependia do diagnóstico dos casos, notificação e consoli-dação sistemática das informações em informes estatísticos regulares de uso restrito aos serviços. A vigilância epidemiológica passou a ser atividade prioritária.21

A efetividade desse modelo assistencial estava diretamente relacionada à extensão de cobertura dos serviços, à capacidade de programação das ações de saúde e à ampliação e mobilização da demanda individual por cuidados curativos e preventivos.

Essas condições nem sempre estiveram presentes, mesmo nos países centrais, fazendo com que seg-mentos numerosos da população ficassem excluídos dos benefícios das novas formas de prevenir e curar doenças.

No Brasil, apenas na década de setenta do século passado a proposta da medicina preventiva foi im-plantada, através da reforma do ensino médico e da saúde pública.

Na década seguinte, pela primeira vez pode ser constatada a dissociação entre o aumento da pobreza, medido a partir da queda do valor do salário mínimo real em São Paulo e o aumento da mortalida-de infantil. Enquanto ocorria a progressiva queda do poder aquisitivo dos trabalhadores urbanos, a mortalidade infantil continuou diminuindo de modo importante, mostrando que já não era mais um indicador sensível das condições de desenvolvimento.22

Medidas de saúde pública, como o saneamento das periferias urbanas, programas ampliados de vaci-nação, a disseminação da reidratação oral e a redução da natalidade nos grupos de alto risco foram os determinantes desta relação aparentemente paradoxal.23

Nas grandes cidades, a crescente medicalização das diferentes queixas dos grupos populares foi outro processo estratégico promovido através dos serviços públicos de saúde, na medida em que ampliou imensamente o mercado por serviços e produtos e, ao mesmo tempo, mostrou-se eficaz instrumento de controle social, viabilizando sistemas de informação capazes de monitorar tendências na popu-lação e transformar em demanda por serviços de saúde as reivindicações populares, que, de outra forma, poderiam se expressar como revolta em relação às suas condições de vida.

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Nestas circunstâncias, para esses grupos sociais, a ideia de saúde foi sendo associada cada vez mais ao acesso a serviços médico-assistenciais, embora estes mostrassem baixa resolutividade em relação aos seus problemas concretos.24 Para o Estado, ausência de crises.

O conceito de transição epidemiológica e a nova agenda da saúde pública

A diminuição das taxas de mortalidade e o aumento na expectativa de vida certamente tinham que resultar em importantes mudanças na composição das principais causas de morte. A progressiva redução daquelas antes denominadas potencialmente evitáveis, como as infecciosas, as atribuíveis à desnutrição e a problemas relacionados ao parto, fez com que a preocupação com outras causas, principalmente as enfermidades cardiovasculares e as neoplasias, passassem para um primeiro plano, nos países centrais.

A importância crescente destas não foi simplesmente uma decorrência da maior duração da vida média, ou da diminuição relativa das demais. Naqueles países onde, há várias décadas, já existiam estatísticas de saúde confiáveis, pode ser constatado que, a partir dos anos quarenta, ocorreu aumen-to real na frequência de mortes por estes grupos de causa, nos vários grupos etários, possivelmente associado a comportamentos e à exposição a novos produtos, relacionados ao modo de vida nas me-trópoles altamente industrializadas.

Na década de cinquenta, um novo modelo, o da Multicausalidade das Doenças,25 passou a fun-damentar outra proposta de pesquisas epidemiológicas, difundindo o uso de métodos estatísticos nas pesquisas em saúde e tipos de estudos controlados, com o propósito de identificar fatores etiológicos re-lacionados às doenças que passaram a ser problemas de saúde. Alguns êxitos importantes, como a identi-ficação da relação entre fumo e câncer de pulmão, contribuíram para sua consolidação na área científica.

De certo modo, este modelo apenas estendia às doenças não transmissíveis a mesma concepção de que cada doença deveria ter fatores causais externos e específicos, e que estes poderiam ser identifi-cados através da aplicação rigorosa do método científico.

Apesar dos êxitos iniciais, esta expectativa não se concretizou, resultando em distanciamento entre a pesquisa epidemiológica e as práticas assistenciais.

Retomando a perspectiva desenvolvimentista, outro modelo, denominado Transição Epidemio-lógica, foi proposto para descrever essas importantes mudanças nos perfis de causas de morte, que acompanharam a Transição Demográfica.

Este serviu de referência para as importantes modificações na agenda da saúde pública nos países centrais, que ocorreram nos anos oitenta, quando foram definidas novas prioridades e propostas de atenção à saúde.

Esgotadas as esperanças de identificação dos agentes etiológicos, a extensão do modelo de preven-ção específica às doenças não transmissíveis foi implementada através de programas centrados no diagnóstico precoce e no monitoramento individual da evolução clínica, através de exames de saúde periódicos, com notável efetividade.

Mesmo sendo reconhecida a relação de determinação entre as condições de vida nas cidades indus-trializadas e o aumento destas enfermidades, a viabilidade de transformações estruturais na organiza-ção social não podia ainda ser considerada, e a questão da prevenção foi progressivamente direciona-da para a identificação de fatores de risco no nível individual e para o reconhecimento e modificação de estilos de vida particulares a eles vinculados.

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Fatores de risco são apenas marcadores capazes de vincular a uma certa condição ou característica individual a probabilidade de adoecer e morrer, sem conotação de causalidade ou eficácia preditiva quando aplicados a casos singulares. Apesar dessas limitações, o uso do conceito se generalizou nas ciências da saúde, nos serviços e na sociedade.22

Acesso às informações de saúde, possibilidade individual de modificação de comportamentos de risco, monitoramento periódico de marcadores clínicos de doenças e acesso a serviços de saúde es-pecializados, de uso intensivo de tecnologia, passaram a ser os condicionantes da efetividade da nova proposta. A avaliação de eficácia e custo-benefício desses procedimentos passou a ser uma prioridade de pesquisa, chamada de epidemiologia clínica27, que deslocou para um segundo plano as pesqui-sas de base populacional.

Resultados positivos na avaliação das tendências da mortalidade por doenças cardiovasculares, dia-betes e várias formas importantes de câncer vieram a contribuir para a consolidação deste modelo, onde a responsabilidade é, em grande parte, transferida para os indivíduos, na medida de suas pos-sibilidades e interesses.

O atendimento dessas demandas não seria mais relevante nem para a dinâmica do processo de pro-dução nem para a reprodução e o controle social da população.

Esta singularização radical da questão da saúde levou até mesmo a que se passasse a questionar a per-tinência de propostas de saúde pública, no novo contexto social.

A emergência da pandemia de AIDS veio recolocar o problema da relação entre o individual e o coletivo em outros termos, além de mostrar a vulnerabilidade das sociedades atuais, impondo a ela-boração de novos projetos de saúde, nos diferentes níveis.

O modelo capitalista de estado, centrado na industrialização, no uso intensivo de energia e no pla-nejamento econômico e social, já apresentava sinais de esgotamento desde a década de 70, sendo a queda continuada da produtividade da economia e a questão ecológica, definida pelo esgotamento dos recursos não renováveis e a poluição, duas dimensões críticas da crise mais geral. Dezenas de milhões de casos de pessoas infectadas com AIDS vieram dramaticamente expressar as limitações de seu projeto de saúde pública.

Integração territorial, segmentação social e transição epidemiológica imperfeita

Quando se analisa a questão da transição epidemiológica em países como o Brasil, frequentemente se considera que eles apresentam atualmente um padrão misto, ou então, intermediário, decorrente de uma transição ainda não completada, ainda em andamento.28

Isto parece descrever parte importante dessa nossa realidade complexa, justificando o que tem sido denominado de heterogeneidade estrutural.29 Certamente o modelo de modernização conservadora aqui implantado resultou na permanência de formações espaciais e estruturas políticas e econômicas arcaicas, configurando o que se denomina domínio conservador.

Mas a concepção linear de que as diferenças de perfis de saúde decorrem apenas da persistência de países, regiões e lugares em estágios diferentes de um único modelo de desenvolvimento e transição epidemiológica vem sendo cada vez mais questionada.30

O conceito de “transição epidemiológica” foi elaborado apenas a partir da análise do comportamento das causas de mortalidade. Quando se considera também os padrões de morbidade, vê-se que, nesses

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países, muitas enfermidades infecciosas continuam prevalentes,31 embora o acesso às diversas formas de atenção médica tenha efetivamente reduzido tanto a mortalidade como a frequência de formas graves.

Não seria mesmo esperado que o atual modelo médico-assistencial, centrado no atendimento de doentes, tivesse impacto sobre os processos de transmissão dos parasitas.

A questão é que, ainda assim, nas últimas décadas várias doenças infecciosas foram controladas, ou mesmo tiveram sua transmissão interrompida, através da aplicação sistemática de ações simples, de forma programada, quando isto passou a ser considerado prioridade. Mas outras, ao contrário, pare-cem estar fora de controle, apresentando tanto aumento na incidência como maior difusão espacial, em relação à sua área anterior.19

O importante aumento de mortalidade de adultos jovens, principalmente homens, por causas violen-tas é outra característica do que vem sendo chamado de “terceiro padrão”.

Para entendermos esta proposta, e suas implicações, precisamos compreender melhor as relações entre o recente processo de reestruturação econômica, que vem sendo chamado de “globalização”, as novas formas de espacialização dos processos sociais e sua relação com a produção da violência e de certas doenças infecciosas agora consideradas emergentes ou reemergentes.

Uma das características mais importantes do capitalismo de estado foi a integração territorial, atra-vés da construção de redes interligando todas as unidades espaciais, e estendendo a influência das metrópoles muito além de seus limites e vizinhanças.

No Brasil, isto foi assegurado pela construção, com recursos públicos, de uma extensa malha rodovi-ária. Grandes desigualdades regionais, interligadas por redes físicas, criaram as condições adequadas para o intenso fluxo de pessoas e mercadorias, viabilizando a transmissão ampliada daqueles parasitas capazes de se adaptarem a estes circuitos.33

Um exemplo foi a intensificação da transmissão da malária na Amazônia, a partir da metade da década de 70. Esta endemia, que havia sido até então mantida sob controle, deixou de responder às medidas dos programas tradicionais, e só regrediu depois que os garimpos da região foram fechando, e a mobilidade populacional diminuiu.34

A concentração de pessoas, das mais distintas procedências, nas regiões metropolitanas, muitas delas sem emprego fixo, e, portanto, com alta mobilidade, resultou em grande aumento da taxa de contato social, e, consequentemente, do risco de transmissão de parasitas de pessoa a pessoa. Não foi por acaso que a maior epidemia de meningite meningocócica e a maior concentração de casos de AIDS ocorreram em São Paulo.

Mais recentemente, outros determinantes sociais e espaciais, relacionados com as transformações no processo de produção vieram contribuir para a crise sanitária.

Entre muitas modificações em curso, podemos destacar a progressiva transferência do eixo da pro-dução industrial de uso intensivo de energia para processos de uso intensivo de informação e, como consequência, a diminuição das vantagens comparativas de escala que trazia a concentração das ativi-dades produtivas em uma mesma região metropolitana.

A desconcentração territorial da produção, a informatização acelerada, levando a uma necessidade muito menor de postos de trabalho, e de uma qualificação muito maior dos trabalhadores, associadas ao imenso desenvolvimento dos meios de comunicação e a uma nova divisão internacional do traba-lho, dirigida pelas corporações transnacionais, deram início a transformações que progressivamente se propagam e influenciam todas as estruturas das organizações socioespaciais.

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A distância física deixou de ser relevante, e unidades produtivas dinâmicas passam a se localizar até em pontos distantes do território, e mesmo além dos limites das fronteiras tradicionais, desde que isto represente maior competitividade, configurando uma rede integrada de unidades do circuito superior, ou técnico-científico global.

O papel dos Estados Nacionais no planejamento econômico e na implementação da infraestrutura de estradas, energia e comunicação deixa de ser fundamental, e eles passam a ser impelidos a minimizar o custo do setor público, como estratégia de assegurar o aumento crescente de produtividade, com prejuízos para as ações de controle de doenças.

Este aumento de produtividade representa, como sempre, transferência de recursos que eventual-mente seriam utilizados no consumo e reprodução da população para novos investimentos, agora mediados pelo setor financeiro internacional.

Uma questão central passou a ser a manutenção e mesmo ampliação da capacidade de consumo das imen-sas populações urbanas, com desemprego e redução dos investimentos públicos em políticas sociais, mas sem risco de revoltas e crises sanitárias capazes de trazer limitações à reestruturação econômica.

As estratégias têm sido a fragmentação do território, assegurando maior controle social através de poderes políticos locais, e a segmentação social, com a emergência de um novo componente, o cir-cuito inferior urbano, integrado e dinâmico. Este circuito espacial de produção, descrito ora como economia informal, ora como estratégia de sobrevivência popular, caracteriza-se por sua produtividade e relativa autonomia, pois representa custos sociais mínimos para o capital e para o Es-tado, e ainda gera renda que garante a reprodução, o consumo ampliado e transferência importante de recursos para o circuito principal.36

Embora sua importância seja variável entre as diversas metrópoles, o circuito capitalista inferior ur-bano está presente, e aumentando, também nos países centrais.

Do ponto de vista social, representa uma nova pobreza, muito distinta da pobreza rural dos do-mínios conservadores, e que tem sido denominada de pobreza radical, pois é escolarizada e tem conhecimento da sua situação de desigualdade, não vê mais como perspectiva realista a mudança desta condição, e, sendo urbana e estando exposta aos contrastes todo o tempo pelos meios de comunicação de massa, é irada.37

Duas características marcantes desse circuito, mais importante que o nível da renda, são a baixa incorporação de inovações técnico-científicas e a ausência de seguridade social.

Uma nova segmentação da população urbana é produzida, com aqueles integrados ao circuito principal, os denominados vulneráveis, por sua inserção no circuito inferior, dinâmico mas inse-guro, e os excluídos, aqueles que não conseguem mais trabalho ou outra fonte de renda, e acabam perdendo até mesmo sua condição de cidadania.38

O setor que mais cresce é o dos vulneráveis, por suas características demográficas e pela dinâmica dos processos econômicos. Eles não devem ser considerados uma classe social, pois entre eles existem trabalhadores assalariados, empresários, autônomos, contraventores e desempregados. Também não podem ser classificados como lumpen, pois integram um circuito dinâmico e produtivo da sociedade.

O problema é que, quando um trabalhador desse circuito é incapacitado, por doença, acidente ou velhice, tende a ser deslocado, com sua família, para o grupo dos excluídos.

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É evidente que os níveis de desgaste, projetos de saúde e perfis epidemiológicos dos grupos sociais que integram os diferentes segmentos são muito diferentes.

Os integrados têm expectativa de vida, problemas de saúde e acesso a serviços, através dos planos de saúde, semelhantes àqueles dos países centrais, independentemente do lugar onde vivem. Pode-se esperar que a forte pressão pelo aumento de produtividade e instabilidade no emprego vá aumentar os problemas da saúde mediados pelo stress, mas ao também induzir mudanças no estilo de vida, como meio de assegurar competitividade.

Os excluídos urbanos certamente têm altas taxas de mortalidade, mas não existem propostas de saúde específicas para esse grupo social. Pode-se esperar que tuberculose, desnutrição, alcoolismo e doenças mentais sejam problemas muito importantes entre eles.

Os vulneráveis são o grupo mais complexo, onde os problemas de saúde se avolumam, impondo no-vos modelos assistenciais. Como não estão mais diretamente vinculados aos setores mais dinâmicos da economia, sua saúde não é mais um recurso indispensável ao desenvolvimento. Por outro lado, não tem acumulação individual que garanta sua sobrevivência quando não estão aptos para o traba-lho. Dependem fundamentalmente dos serviços públicos, que não foram organizados para responder com a eficácia necessária aos seus problemas. O aumento de expectativa de vida faz com que viver com a doença venha ser um componente importante do projeto de saúde deste grupo, sendo crítico o cenário de futuro, quando as coortes atuais em atividade estiverem, por idade ou incapacidade, excluídas do trabalho e de renda.

A desterritorialização, a ausência de vínculo empregatício estável e a ruptura da estrutura familiar tradicional levaram a uma grande mobilidade, com maior taxa de contato social e exposição a am-bientes e situações de risco.

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Como consequência, criaram-se condições de produção e difusão da violência e de certas doenças infecciosas, aquelas transmitidas por contato pessoa a pessoa, por vetor mecânico, como seringas, e por insetos bem adaptados ao ambiente transformado pelas atividades humanas.

Atualmente esses novos processos críticos não apresentam perspectiva de solução, através da aplica-ção dos recursos de saúde convencionais. Além disso, como os circuitos e grupos convivem no mes-mo espaço, a segmentação social não impede que os problemas sejam compartilhados, com certeza de forma desigual, mas difundindo um agudo sentimento de insegurança por toda a sociedade.

Capitalismo técnico-científico e uma nova agenda da saúde pública

A pandemia de AIDS e o risco de emergência de outros parasitas, capazes de colocar em risco não apenas o processo integrado de produção, mas, até mesmo a sobrevivência de populações, com gran-de possibilidade de difusão através das novas facilidades de transporte e em decorrência da intensifi-cação da circulação de pessoas e mercadorias, na economia globalizada, impuseram novamente a pre-ocupação com estratégias de controle de doenças transmissíveis, na escala supranacional, da biosfera.

Um modelo de vigilância e intervenção estratégica, de abrangência global, vem sendo implementado, a partir do modelo do Centro de Controle de Doenças de Atlanta, nos EUA, de modo a assegurar a notificação, o isolamento laboratorial, e, se necessário, a contenção de parasitas emergentes em qualquer parte do mundo.39

Outro componente da dimensão estratégica do projeto de saúde pública globalizado é a indução da identificação de prioridades regionais, permitindo o direcionamento dos recursos públicos, de modo seletivo e através de critérios técnicos, para aquelas doenças e setores onde possam ser mais efetivos, abandonando o princípio de cobertura universal e de unificação de prioridades que prevaleceu no modelo anterior.

Isto vem sendo fortemente apoiado pelo Banco Mundial, através da disseminação do modelo de carga das doenças,40 que introduz conceitos como incapacidade e anos potenciais de vida perdidos no cál-culo de uma nova geração de indicadores de saúde.

No Brasil, a incorporação nas práticas de saúde dessa dimensão estratégica de interesse global ainda é incipiente, embora inevitável.

O projeto de saúde do Estado Brasileiro parece haver chegado a um impasse, devido à superposição de objetivos e modelos mal resolvidos, inerentes a conjunturas passadas,41 respondendo a múltiplos interesses que não são aqueles do conjunto da população, nem estão relacionados com o desenvol-vimento das forças produtivas. O que é bem característico da nossa modernização, pactuada com poderes regionais conservadores.

De qualquer modo, a fragmentação territorial e o aprofundamento da segmentação social colocam em questão a viabilidade de um projeto comum, ainda que mantendo a concepção operacional de Sistema Único de Saúde.

Três componentes se impõem:

�� O assistencialismo, voltado aos grupos dos excluídos, tanto aqueles dos bolsões de pobreza nos do-mínios conservadores como, e principalmente, os novos excluídos urbanos. Como é feito em muitos países, por razões éticas e morais, é urgente a implantação de programas de distribuição gratuita de alimentos e medicamento, eliminando a dor e a fome agudas, e o controle de doenças transmissíveis.

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�� A preservação da saúde e da capacidade de trabalho daqueles integrados nos processos dinâmicos do circuito principal, através da difusão mais eficaz de informações sobre saúde, induzindo mu-danças nos estilos de vida, minimizando fatores de risco bem conhecidos, e da implementação de modelo assistencial centrado na eficácia dos procedimentos médicos.

�� Para aqueles que integram o circuito inferior, o projeto de saúde pública tem que estar centrado na implementação de programas efetivos de prevenção específica de doenças, particularmente as não transmissíveis para as quais já se dispõe há décadas de recursos preventivos eficazes, capazes de reduzir a incidência e o risco de evolução para formas graves, e para o tratamento das enfermi-dades tratáveis, de modo a assegurar a recuperação da saúde.

Os serviços públicos de saúde têm também que assumir sua dimensão comunitária, já que estão na interface do circuito inferior com as políticas de Estado, podendo atuar como instrumento de con-trole social ou na promoção da saúde.42

Com o fim do projeto desenvolvimentista e das mudanças no papel do Estado, as possibilidades de avanço social e de transformações nas condições de vida passaram, efetivamente, para o âmbito da sociedade civil, especificamente para o espaço do circuito inferior urbano, onde diferentes concep-ções de saúde interagem.

Aí estão as condições de autonomia que possibilitam a construção de alternativa ao modelo medica-lizante imposto e que não atende às suas necessidades básicas.

Não se está propondo o retorno às práticas alternativas, mas a clara definição daquilo que é de com-petência dos serviços de saúde, através da aplicação de técnicas com fundamentação científica, e do que só pode ser elaborado e resolvido a partir de práticas comunitárias.

Grupos de ajuda mútua, assistência psicológica por grupos religiosos, mutirões comunitários para ações de saneamento e vacinação, ações comunitárias de atenção aos idosos, incapacitados e crianças vulneráveis, grupos de apoio aos dependentes de drogas, são exemplos de como as soluções têm sido encontradas neste nível.

Uma aproximação entre serviços públicos e práticas assistenciais comunitárias já está ocorrendo, como exemplificam certos projetos de atenção integral às crianças e os programas de médicos da família.

A proposição de modelos com ênfase na promoção da saúde,43 através de ações comunitárias efetivas nas transformações das condições de vida, vem recebendo recentemente apoio de agências internacionais, apontando seus interesses na análise das possibilidades de construção de uma saúde pública não estatal, concebida a partir da lógica da vida, e não da perspectiva da economia.

Embora o nosso Sistema Único de Saúde tenha sido proposto assim, a questão do financiamento vem ocupando quase inteiramente o espaço dos debates, sem que tenham ocorrido mudanças relevantes no modelo assistencial.

Só recentemente foram definidas ações estratégicas, como a nova forma de financiamento das ações básicas pelos municípios, capazes de apoiar a implementação de projetos de promoção da saúde.

A municipalização dos serviços de saúde criou as possibilidades de desenvolvimento desse tipo de práticas comunitárias, na medida em que define com clareza a competência e a composição dos conselhos de saúde, em todos os níveis, dando condições para o debate sobre a melhor forma de utilização dos recursos públicos, com participação de representantes dos diferentes atores sociais.

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Esta mesma municipalização, entretanto, na medida em que reforça o poder de decisão de políticos locais, também possibilita o reforço do uso clientelista dos recursos de saúde, direcionando-os para práticas assistencialistas ineficazes.

Os profissionais de saúde pública, nesta interseção crítica, podem vir a ter, atuando junto com os grupos sociais organizados, um papel relevante na composição de uma nova proposta, de interesse do Estado e da população, mas centrado nos problemas concretos das pessoas, que articule o conhe-cimento científico e o saber popular, a capacidade técnica de prevenir e curar certas enfermidades com a competência de viver com aquelas que não podem ser curadas, e de dar assistência respeitosa à morte, integrados em um só projeto de vida e saúde.

Referências13 - ENGELS, F. La situación de la classe obrera en Inglaterra. Madrid: Akal Editor, 1976.

14 - ROSEN, G. Uma história da Saúde Pública. São Paulo: Hucitec/Unesp, 1994.

15 - STARK, E.The epidemics as a social event. International of Health Services,7:681-705,1977.

16 - AGUDELO, S.F. Saúde e Imperialismo: A ação antimalárica na América Latina e a Fundação Rockfeller. In Textos de Apoio de Ciências Sociais2, Rio de Janeiro: PEC/ENSP, 1984.

17 - SMITH, N. Desenvolvimento Desigual. São Paulo: Ed. Bertrand Brasil, 1988.

18 - OMRAN, A. The epidemiologic transition A theory of the epidemiology of population change. Milbank Mem. Fund., 49 : 509-583, 1971.

19 - SABROZA, P. C.; KAWA, H. & QUEIROZ, W. S. Doenças Transmissíveis: Ainda Um Desafio. In: Minayo,C (Org.) Os Muitos Brasis: Saúde E População Na Década de 80. Rio de Janeiro: Hucitec/Abrasco, 1995.

20 - LEAVELL & CLARK. Preventive Medicine for the Doctor in his Community. New York: Mac Graw-Hill, 1958.

21 - MONTEIRO,C.A. Contribuição para o estudo de significado da evolução do coeficiente de mortalidade infantil no município de São Paulo nas três últimas décadas. (1950-1979) Rev. Saúde Publ, São Paulo, 16: 7-18, 1982.

22 – FOSSAERT ,H., LLOPIS, A. e TIGRE, C.H. Sistemas de Vigilância Epidemiológica. Bol.Of Sanit.Panam 1974.

23 - SABROZA, P.C., TOLEDO, L.M., OSANAI,C.H. A Organização do Espaço e os Processos Endêmico-Epidêmicos. In: LEAL,M.C.; SABROZA,P.C.; RODRIGUEZ, R.H.; BUSS,P.M. (Org) Saúde, Ambiente e Desenvolvimento Vol 2. São Paulo-Rio de Janeiro Hucitec-Abrasco, pp.56-77, 1992.

24 - COSTA,O.V. e AUGUSTO,M.H.A. Uma Escolha Trágica: saúde ou assistência médica? São Paulo em Perspectiva. 9 (3), 94-101, 1995.

25 - MACMAHON,B., PUGH,T. e IPSEN,J. Epidemiologic Methods. Boston: Little, Brown & Co., 1970.

26 - Cesar,C.L.G. O enfoque de risco em saúde pública. In BARRETO, M.L.; ALMEIDA FILHO, N.A.; VERAS,R.P. e BARATA,R.C. (Org.)- Epidemiologia, Serviços e Tecnologias em Saúde. Série Epidemiológica 3. Rio de Janeiro, Fiocruz / ABRASCO, 1998.

27 - FEINSTEIN, A. Why clinical epidemiology? Clinical Research, 20: 821-825, 1972.

28 - PRATA,R. A Transição Epidemiológica no Brasil. Cad. Saude Públ. Rio de Janeiro, 8 (2) 168-175, 1992.

29 - POSSAS, M. C. Epidemiologia e Sociedade. Heterogeneidade estrutural e Saúde no Brasil. São Paulo : Hucitec, 1989.

30 - BARRETO, M.L. e CARMO,E,H. Situação de Saúde da População Brasileira: Tendências Históricas, Determinantes e Implicações para as Políticas de Saúde. Informe Epidemiológico do SUS. Jul / dez, 1994.

31 - BARRETO, M.e col. Mudanças dos padrões de morbi-mortalidade: uma visão crítica da abordagem epidemiológica. Physis.Revista de Saúde Coletiva.III (1).127-146, 1993.

32 - FRENK, J., FRENJKA,T., BOBADILLA,J.L., STER,C., LOZANO,R. e JOSE, M. La Transición Epidemiologica en America Latina. Bol.Of Sanit.Panam., 111 (6) 458-496, 1991.

33 - SABROZA, P.C., TOLEDO, L.M., OSANAI, C.H.:A Organização do Espaço e os Processos Endêmico-Epidêmicos. In LEAL, M.C.; SABROZA,P.C.; RODRIGUEZ, R.H.; BUSS, P.M.(Org). Saúde, Ambiente e DesenvolvimentoVol 2. São Paulo-Rio de Janeiro Hucitec-Abrasco, p. 56-77, 1992.

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34 - BARATA,R.C. Malária no Brasil: Panorama epidemiológico na última década. Cadernos de Saúde Pública. Rio de Janeiro. 11 (1): 128-136, 1993.

35 - SANTOS, M. Técnica, Espaço, Tempo, Globalização e Meio Técnico-Científico- Informacional. São Paulo: Ed. Hucitec, 1994.

36 - SANTOS, M.. O Espaço Dividido. Os dois Circuitos da Economia Urbana em Países Subdesenvolvidos. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora S.A, 1978.

37 - Leão, E.C.- A Ética do Desenvolvimento. In Leal, M.C.; Sabroza,P.C.; Rodriguez, R.H.; Buss, P.M.(org) Saúde, Ambiente e Desenvolvimento Vol 1. São Paulo-Rio de Janeiro Hucitec-Abrasco, , pp.217-232, 1992.

38 - Ribeiro, L.C.de Queirós - Reforma Urbana e o Desafio da Gestão Democrática da Cidade. In RIBEIRO; QUEIRÓS, L.C. Globalização, Fragmentação e Reforma Urbana. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994, p. 287.

39 - Centers for Disease Control and Prevention. Adressing emerging infectious diseases threats: a prevention strategy for the United States.MMWR, 43 (RR-5), 1-18, 1994.

40 - LOZANO,R.; MURRAY,C.J.L.; FRENK, J. e BOBADILA,J.L. Burden of Disease Assessment and Health System Reform: Results of a Study in Mexico. Journal of International Development. 7 (3): 555-563, 1995.

41 - MONTEIRO, C.A.; IUNES, R.F. e TORRES, A. A Evolução do País e de Suas Doenças. Informe Epidemiológico do SUS. 2 Abr / Jun, 1996.

42 - SPOSATI, A e LOBO, E. Controle Social e Políticas de Saúde. Cad. Saude Públ. Rio de Janeiro, 8 (4): 366-378, 1992.

43 - NOACK,H. Concepts of health and health promotion. In ABELIN,T., BRZEZINSK,Z.J. e Carstair,V.D.L. Measurement in health promotion and protection. WHO Regional Publicatios, Europeans Series, 22. Copenhagen: Word Health Organization, 1987.

44 - MACEDO, C.G. Notas para uma História Recente da Saúde Pública na América Latina. Brasília: OPS - Representação no Brasil, 1997.

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SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE: PRINCÍPIOS1

JOÃO PAULO PINTO DA CUNHAROSANI EVANGELISTA DA CUNHA2

O processo de construção do Sistema Único de Saúde (SUS) é resultante de um conjunto de emba-tes políticos e ideológicos, travados por diferentes atores sociais ao longo dos anos. Decorrentes de concepções diferenciadas, as políticas de saúde e as formas como se organizam os serviços não são fruto apenas do momento atual. Ao contrário, têm uma longa trajetória de formulações e de lutas.

A busca de referências históricas do processo de formulação das políticas de saúde, e da vinculação da saúde ao contexto político geral do país, pode contribuir para um melhor entendimento do mo-mento atual e do próprio significado do SUS. Nesse sentido, o objetivo deste texto é apresentar, de forma organizada, os elementos que compõem o SUS e alguns marcos históricos da política de saúde no Brasil. É claro que, após alguns anos de sua implantação legal pela Constituição Federal de 1988, o SUS não é hoje uma novidade. No entanto, apesar do tempo decorrido e da clareza das definições legais, o SUS significa transformação e, por isso, processo político e prático de fazer das ideias a rea-lidade concreta. A afirmação legal de um conceito é um passo importante, mas não é, em si, uma garantia de mudanças. Construção é a ideia que melhor sintetiza o SUS. Garantido o alicerce, falta compor, parte a parte, a estrutura do edifício. Não existe um caminho natural para isso. Os emba-tes políticos, corporativos e a variada gama de interesses de um setor que mobiliza muitos recursos estarão sempre presentes. Não é a constatação da impossibilidade, pelo contrário, uma exortação ao trabalho político consequente.

Como se trata de um texto introdutório, procura-se abordar os conceitos e a história da constituição do Sistema Único de Saúde a partir da trajetória da política de saúde e Previdência no Brasil.

1 Texto publicado originalmente no Caderno Planejamento e Gestão em Saúde, organizado por Francisco Eduardo Campos, Lídia Maria Tonon e Mozart de Oliveira Júnior. Belo Horizonte: Coopmed (Caderno de Saúde, 2). Reprodução autorizada pelos autores.2 CUNHA, João Paulo Pinto da; CUNHA, Rosani Evangelista da Cunha. Sistema Único de Saúde: princípios. In: BRASIL. Ministério da Saúde. Gestão municipal de saúde: textos básicos. Rio de Janeiro: MS, 2001. p. 285-304.

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O processo histórico de construção do SUS

O Período 23-30: nascimento da Previdência Social no Brasil

O surgimento da Previdência Social no Brasil se insere num processo de modificação da postura libe-ral do Estado frente à problemática trabalhista e social, portanto, num contexto político e social mais amplo. Esta mudança se dá como decorrência da contradição entre a posição marcadamente liberal do Estado frente às questões trabalhistas e sociais e um movimento operário-sindical que assumia importância crescente e se posicionava contra tal postura. Esta também é a época de nascimento da legislação trabalhista brasileira.

Em 1923, é promulgada a Lei Eloy Chaves, que, para alguns autores, pode ser definida como marco do início da Previdência Social no Brasil. De 1923 a 1930, surgem as Caixas de Aposentadoria e Pensões (CAPs). Eram organizadas por empresas, de natureza civil e privada, responsáveis pelos benefícios pe-cuniários e serviços de saúde para os empregados de empresas específicas. As CAPs eram financiadas com recursos dos empregados e empregadores e administradas por comissões formadas por represen-tantes da empresa e dos empregados. Cabia ao poder público apenas a resolução de conflitos.

No modelo previdenciário dos anos 20, a assistência médica é vista como atribuição fundamental do sistema, o que levava, inclusive, à organização de serviços próprios de saúde. Caracteriza ainda este período o elevado padrão de despesa. Estas duas características serão profundamente modificadas no período posterior.

Em relação às ações de saúde coletiva, este período é marcado pelo surgimento do chamado “sani-tarismo campanhista”, nascido da Reforma Carlos Chagas em 20-23. Este sanitarismo se pautava por uma visão de combate às doenças de massa, com forte concentração de decisões e com estilo repressivo de “intervenção sobre os corpos individual e social”. Alguns anos antes, em 1920, havia sido criado o Departamento Nacional de Saúde Pública, responsável por estas ações.

Quadro 1 – O período 23-30: nascimento da Previdência Social no Brasil

O período 30-45: propostas de contenção de gastos e surgimento das ações centralizadas de saúde pública

Com a Revolução de 30, liderada por Getúlio Vargas, assume o poder uma coalizão que traz, de for-ma destacada, a preocupação com o novo operariado urbano. Este período foi marcado pela criação de órgãos e instrumentos que legitimaram a ação sindical em moldes corporativos.

Do ponto de vista político, este período é caracterizado por uma profunda crise, marcado por greves e manifestações, principalmente entre os anos 30-35. A busca de aliados por parte do governo, que tentava ampliar sua base de apoio, incluindo entre elas as classes trabalhadoras urbanas, colocava em evidência o tema da Previdência Social. Foi criado o Ministério do Trabalho, aprofundou-se a legisla-ção trabalhista, ao mesmo tempo em que havia restrições e manipulações na esfera sindical.

Em relação à Previdência Social, houve profundas modificações no que se refere à organização e

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concepção. Do ponto de vista de concepção, a Previdência é claramente definida como seguro, privi-legiando os benefícios e reduzindo a prestação de serviços de saúde. Embora com algumas oscilações entre os institutos, a legislação adotada entre 30 e 45 tentará diferenciar as atribuições de benefícios e serviços de saúde. Estes passam a ser entendidos como concessão, e não mais atribuição específica, sendo uma função provisória e secundária. Tal definição provoca um profundo corte nas despesas com assistência médico-hospitalar.

Do ponto de vista organizativo, este é um momento marcado pela criação dos Institutos de Aposen-tadoria de Pensões (IAPs), entidades organizadas não mais por empresas, mas por categorias profis-sionais. Diferentemente das CAPs, a administração dos IAPs era bastante dependente do governo federal. O conselho de administração, formado com participação de representantes de empregados e empregadores, tinha uma função de assessoria e fiscalização, e era dirigido por um presidente, indicado diretamente pelo presidente da República. Há uma ampliação da Previdência com a incor-poração de novas categorias antes não cobertas pelas CAPs.

Caracterizam esta época a participação do Estado no financiamento (embora meramente formal) e na administração dos institutos, e um esforço ativo para diminuir despesas, com a consolidação de um modelo de Previdência mais preocupado com a acumulação de reservas financeiras do que com a ampla prestação de serviços. Isto faz com que os superávits dos institutos constituam um respeitável patrimônio e um instrumento de acumulação na mão do Estado. A Previdência passa a se configurar como “sócia” do Estado nos investimentos de interesse do governo.

Em relação às ações de saúde coletiva, esta é a época do auge do sanitarismo campanhista. Em 1937, é criado o primeiro órgão de saúde de dimensão nacional, o Serviço Nacional de Febre Amarela, em 39 o Serviço de Malária do Nordeste, e em 40 o Serviço de Malária da Baixada Fluminense.

No período 38-45, o Departamento Nacional de Saúde é reestruturado e dinamizado, articulando e centralizando as atividades sanitárias de todo o país. Em 1942, é criado o Serviço Especial de Saúde Pública (SESP), com atuação voltada para as áreas não cobertas pelos serviços tradicionais.

Quadro 2 – O período 30-45: propostas de contenção de gastos e surgimento das ações centralizadas de saúde pública

O período 45-66: crise do regime de capitalização e nascimento do sanitarismo desenvolvimentista

Este momento pode ser subdividido em duas fases do ponto de vista da conjuntura política. A primeira é representada pelo fim do Estado Novo e a redemocratização do país. É o período do desenvolvimentismo, que levou a um acelerado processo de urbanização e industrialização. Foi marcante no governo Juscelino a visão de que a solução para os problemas sociais estava mais no desenvolvimento do que nas políticas sociais. O esgotamento do modelo populista de relação entre o Estado e os trabalhadores vai-se acentuando, em função da contradição entre um projeto nacional

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desenvolvimentista em associação com o capital estrangeiro e a possibilidade de incorporar as demandas dos trabalhadores.

Uma segunda fase é inaugurada com o golpe de 64, que estabelece uma ruptura com os governos democráticos anteriores. O regime instalado tem como características o autoritarismo, com o fe-chamento dos canais de participação aos trabalhadores, e um discurso de racionalidade técnica e administrativa, que repercutiu nas ações de Previdência e saúde.

As ações de Previdência são agora caracterizadas pelo crescimento dos gastos, elevação de despesas, diminuição de saldos, esgotamento de reservas e déficits orçamentários. Isto levou a um processo de repartição simples, e não mais à capitalização, como no período anterior. Tais mudanças podem ser ex-plicadas como resultado de uma tendência natural (maior número de pessoas recebendo benefícios, uma vez que esta é a época de recebimento de benefícios dos segurados incorporados no início do sistema); e também em decorrência de mudanças de posições da Previdência Social (desmontagem das medidas de contenção de gastos dos anos 30-45; crescimento dos gastos com assistência médica, que sobem de 2,3% em 45 para 14,9% em 66; crescimento dos gastos com benefícios em função do aumento dos beneficiários e de mudanças nos critérios de concessão de benefícios e no valor médio destes).

A legislação pós-45 é marcada pela progressiva desmontagem das medidas de cunho contencionista do período anterior. Na Constituição de 46, a assistência sanitária é incorporada à Previdência So-cial, e em 1953 é promulgado o “Regulamento Geral dos Institutos de Aposentadoria e Pensão”, que formaliza a responsabilidade dos mesmos com a assistência médica. A Lei Orgânica da Previdência Social (LOPS), promulgada em 1960, uniformiza direitos dos segurados de diferentes institutos, o que agrava as dificuldades financeiras crescentes da Previdência no período. Esta lei pode ser considerada um marco da derrota do modelo contencionista anterior, estendendo ao conjunto dos segurados um plano extremamente amplo de benefícios e serviços. Além da assistência médica e dos benefícios pecuniários, a legislação se refere a habitação, empréstimos e alimentação.

A uniformização dos benefícios alcançados com a LOPS, assim como a extensão da Previdência So-cial aos trabalhadores rurais, por meio do Estatuto do Trabalhador Rural, aprovado no governo João Goulart, não são acompanhadas de novas bases financeiras concretas para sua efetivação. Para fazer frente aos novos gastos, a contribuição dos segurados é progressivamente elevada. Quanto à contri-buição do Estado, a LOPS rompe com o conceito de contribuição tripartite. Cabem à União, a partir de então, apenas os gastos com administração e pessoal.

Nessa mesma época, o Brasil passa a ser influenciado pelas ideias de seguridade social que são am-plamente discutidas no cenário internacional após a Segunda Guerra mundial, em contraposição ao conceito de seguro da época anterior. Ao mesmo tempo, vive-se um intenso processo de construção e compra de hospitais, ambulatórios e equipamentos, por parte dos institutos, e de celebração de convênios para prestação de assistência médico-hospitalar aos segurados.

Com o golpe de 1964 e o discurso de racionalidade, eficácia e saneamento financeiro, ocorre a fusão dos IAPs, com a criação do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS). Este fato, ocorrido em 1966, marca também a perda de representatividade dos trabalhadores na gestão do sistema. A unificação enfrentava resistências dos grupos privilegiados pelo antigo sistema corpora-tivo. O governo, no entanto, alegava que a centralização de recursos poderia ser a alternativa para viabilizar o cumprimento do direito de assistência à saúde.

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Em relação à assistência médica, houve um crescimento dos serviços médicos próprios da Previ-dência e dos gastos com assistência médica em geral, mas persistia uma demanda elevada, agravada pelo fato de este direito ter sido estendido a todos os segurados. Os serviços próprios continuavam a conviver com o setor privado conversado e contratado, também em expansão.

O sanitarismo desenvolvimentista, característico do período, teve sua contribuição mais voltada para as discussões conceituais relacionadas à saúde. Os sanitaristas da época estabeleceram relação entre saúde e economia e definiram a saúde de um povo como o corolário de seu desenvolvimento econômico. Podem ser apontados dois marcos desta época: o primeiro foi a criação da Comissão de Planejamento e Controle das Atividades Médico-Sanitárias, com a função de elaborar o plano plu-rianual, integrando as atividades de saúde ao Plano Nacional de Desenvolvimento; o segundo foi a realização da III Conferência Nacional de Saúde, que, além de discutir as propostas elaboradas por aquela comissão, sistematizou as propostas de descentralização e municipalização da saúde.

Quanto à organização de serviços, o fato mais marcante foi a criação, em 1956, do Departamento Na-cional de Endemias Rurais (DNERU), com a finalidade de organizar e executar os serviços de investiga-ção e combate às principais patologias evitáveis deste período, dentre elas a malária, leishmaniose, doença de Chagas, peste, brucelose, febre amarela, esquistossomose e outras endemias existentes no país.

Quadro 3 – O período 45-66: crise do regime de capitalização e nascimento do sanitarismo desenvolvimentista

O período 1966-73: acirramento da crise e privatização da assistência médica

Foi um período marcado pelo crescente papel do Estado como regulador da sociedade e pelo alija-mento dos trabalhadores do processo político, ao lado de uma política de arrocho salarial decorrente do modelo de acumulação adotado.

A criação do INPS insere-se na perspectiva modernizadora da máquina estatal, aumenta o poder de regulação do Estado sobre a sociedade e representa uma tentativa de desmobilização das forças políticas estimuladas em períodos populistas anteriores. O rompimento com a política populista não significou alteração em relação à política assistencialista anterior; ao contrário, o Estado amplia a cobertura da Previdência aos trabalhadores domésticos e trabalhadores rurais, além de absorver as pressões por uma efetiva cobertura daqueles trabalhadores já beneficiados pela LOPS. Excetuando os trabalhadores do mercado informal, todos os demais eram cobertos pela Previdência Social. Em relação à assistência médica, observa-se um movimento ainda mais expressivo de ampliação de cobertura.

Os gastos com assistência médica, que continuam a crescer neste período, chegam a representar mais de 30% dos gastos totais do INPS em 76. A ênfase é dada à atenção individual, assistencialista e especializada, em detrimento das medidas de saúde pública, de caráter preventivo e de interesse coletivo. Exemplo do descaso com as ações coletivas e de prevenção é a diminuição do orçamento do Ministério da Saúde, que chega a representar menos de 1,0% dos recursos da União.

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Acontece uma progressiva eliminação da gestão tripartite das instituições previdenciárias, até sua extinção em 70. Ao mesmo tempo, a “contribuição do Estado” se restringia aos custos com a es-trutura administrativa. A criação do INPS propiciou a implementação de uma política de saúde que levou ao desenvolvimento do complexo médico-industrial, em especial nas áreas de medicamentos e equipamentos médicos. Ao mesmo tempo, e em nome da racionalidade administrativa, o INPS dá prioridade à contratação de serviços de terceiros, em detrimento dos serviços próprios, decisão que acompanha a postura do governo federal como um todo. De 1969 a 1975, a porcentagem de serviços comprados de terceiros representou cerca de 90% da despesa do INPS.

A modalidade de compra de serviços adotada possibilitou o superfaturamento por parte dos serviços contratados, com prejuízo do atendimento médico prestado e colocando em risco o sistema financei-ro da instituição. Para aumentar o faturamento, estes serviços utilizavam os expedientes de multipli-cação e desdobramento de atos médicos, preferência por internações mais caras, ênfase em serviços cirúrgicos, além da baixa qualidade do pessoal técnico e dos equipamentos utilizados.

A expansão do complexo previdenciário criou uma nova modalidade de atendimento, a medicina de grupo, estruturada a partir de convênios entre o INPS e empresas, ficando estas com a responsabili-dade pela atenção médica de seus empregados. O convênio-empresa foi a forma de articulação entre o Estado e o empresariado que viabilizou o nascimento e o desenvolvimento do subsistema que viria a se tornar hegemônico na década de 80, o da atenção médica supletiva.

Apesar das atribuições definidas pelo Decreto-Lei 200/67 para o Ministério da Saúde, com subor-dinação da assistência médica previdenciária à política nacional de saúde, a prática mostrava um ministério esvaziado em suas competências. São incorporadas a ele a Fundação SESP e a Fundação das Pioneiras Sociais, dando início à autarquização do ministério, que acompanhava processo similar da administração federal.

Por parte da saúde coletiva, as ações estão dispersas num conjunto de ministérios: Agricultura, Transportes, Trabalho, Interior, Educação etc., e internamente ao Ministério da Saúde, num conjun-to de órgãos da administração direta e indireta.

Quadro 4 – O período 1966-73: acirramento da crise e privatização da assistência médica

O período 74-79: crise, reforma e consolidação da rede privada em saúde

As alterações na conjuntura política, dos pontos de vista interno e externo, forçaram o Estado a for-talecer a opção pela Seguridade Social como forma de buscar legitimidade, o que leva à intensificação do modelo por meio do aumento crescente de cobertura e ampliação de benefícios.

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Em 1974, são criados o Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS) e o Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social (FAS). A criação do ministério significou o fortalecimento das ações de Previdência no interior do aparelho estatal. A criação do FAS proporcionou a remodelação e a am-pliação dos hospitais da rede privada, por meio de empréstimos com juros subsidiados. A existência de recursos para investimento e a criação de um mercado cativo de atenção médica para os prestado-res privados levaram a um crescimento próximo de 500% no número de leitos hospitalares privados no período 69-84, de tal forma que subiram de 74.543 em 1969 para 348.255 em 1984.

O II Plano Nacional de Desenvolvimento, elaborado no mesmo período, consagra a separação de ações de saúde coletiva e atenção médica, e reserva os primeiros ao setor estatal, e os segundos, via Previdência Social, ao setor privado. O plano institucionaliza o modelo médico assistencial privatista e define competências para as instituições públicas e privadas. Ocorre uma autonomização da políti-ca de assistência médica previdenciária, em função da revogação de parte do Decreto-Lei 200, que estabelecia a necessidade de sua obediência à política nacional de saúde.

A falta de controle sobre os serviços contratados criou condições para que a corrupção atingisse, em 1974, níveis que ameaçavam o equilíbrio financeiro da Previdência. São definidos, então, me-canismos de enfrentamento da crise, com o objetivo de controlar as distorções do modelo vigente, criando condições que possibilitassem a continuidade da expansão, sem alterar substancialmente o modelo. São definidos mecanismos de controle do setor contratado, por intermédio da criação da Empresa de Processamento de Dados da Previdência Social (DATAPREV), da ampliação dos convê-nios (convênios com sindicatos, universidades, prefeituras, governos estaduais, dentre outros) e da normatização e criação de mecanismos institucionais de relação público-privado e entre esferas de governo. Dentre estes, merecem destaque o Plano de Pronta Ação (PPA) e o Sistema Nacional de Previdência Social (SINPAS). O PPA tinha como objetivo desburocratizar o atendimento dos casos de emergência, o que levou à universalização do atendimento desses casos. Foram estabelecidas for-mas de relacionamento por meio de contratos, com pagamento de serviços prestados e convênios, com repasse de subsídios fixos. O PPA tem importância em virtude do início da universalização do atendimento com recursos previdenciários e por remunerar instituições estatais.

A criação do SINPAS tinha como objetivo disciplinar a concessão e manutenção de benefícios e pres-tação de serviços, o custeio de atividades e programas, a gestão administrativa, financeira e patrimo-nial da Previdência. Foram criados o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS) e o Instituto de Arrecadação da Previdência Social (IAPAS), além de se integrarem os órgãos existentes. A criação do SINPAS pode ser compreendida no processo de crescente tendência à universalização e à adoção do modelo de Seguridade Social.

Neste período, estão definidas as bases que permitiram a hegemonia, na década de 70, do modelo assistencial privatista. De acordo com Mendes (1993), este modelo se assenta no seguinte tripé: a) o Estado como financiador do sistema, por meio da Previdência Social; b) o setor privado nacional como maior prestador de serviços de assistência médica; c) o setor privado internacional como o mais significativo produtor de insumos, em especial equipamentos médicos e medicamentos.

Em relação às ações de saúde coletiva, percebe-se uma coincidência entre as propostas internacionais de cuidados primários em saúde, decorrentes da Conferência de Alma-Ata, da qual o Brasil é um dos signatários, e a necessidade interna de desenvolver e expandir cobertura para contingentes popula-cionais excluídos pelo modelo previdenciário.

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Tendo como referência as experiências em vigor, as recomendações internacionais e a necessidade de expandir cobertura, em 1976 inicia-se o Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Sa-neamento (PIASS). Concebido na Secretaria de Planejamento da Presidência da República, o PIASS se configura como o primeiro programa de medicina simplificada do nível federal e irá permitir a entrada de técnicos provenientes do “movimento sanitário” no interior do aparelho de Estado. O programa concentra suas ações nas Secretarias Estaduais de Saúde, que adotam modelos desconcen-trados. Em 1979, é estendido a todo o território nacional, o que resultou numa grande expansão da rede ambulatorial pública.

Esta época pode ser definida como o início do movimento contra-hegemônico que, nos anos 80, viria a se conformar como o projeto da Reforma Sanitária brasileira. Em todo o país, surgem movimentos de trabalhadores de saúde. São criados o Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (CEBES) e a As-sociação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (ABRASCO), que participam do processo de sistematização das propostas de mudança do modelo de saúde em vigor. Acontecem também os primeiros encontros de secretários municipais de saúde, alimentando um incipiente, mas crescente, movimento municipalista em saúde.

Quadro 5 – O período 74-79: crise, reforma e consolidação da rede privada em saúde

A década de 80: eclosão da crise estrutural e consolidação das propostas reformadoras

O Brasil vivia um quadro político e econômico marcado por dificuldades no panorama nacional e in-ternacional, caracterizado por um processo inflacionário e uma crise fiscal sem controle, ao lado do crescimento dos movimentos oposicionistas e de divisões internas nas forças que apoiavam o regime. A derrota do governo nas eleições de 1982, agregada ao crescimento do processo recessivo, “quebrou a coesão interna do regime, determinando um redesenho de seus pactos”. Têm início neste momento os movimentos em direção ao processo de redemocratização do país. Teixeira & Oliveira (1976) definem os anos 80-83 como o período de eclosão de três crises: ideológica, financeira e político-institucional.

A crise ideológica se caracteriza pela necessidade de reestruturação e ampliação dos serviços de saú-de. As experiências antes relatadas e a repercussão interna da Conferência de Alma-Ata – cujos países participantes reconhecem a atenção primária e a participação comunitária como estratégias para a conquista da meta “Saúde para todos no ano 2000” – inspiram a formulação do PREV-SAÚDE. Este projeto incorpora os pressupostos de hierarquização, participação comunitária, integração de servi-ços, regionalização e extensão de cobertura. A discussão do projeto faz eclodir uma divisão profunda entre a equipe responsável pelo mesmo e alguns setores interessados na questão saúde, principalmen-te a Federação Brasileira de Hospitais. Isto origina versões diferentes do PREV-SAÚDE e faz com que ele seja caracterizado como “natimorto”, não chegando a ser implementado.

A crise financeira é decorrente do déficit crescente desde 1980. Em contradição com um sistema em franca expansão, a base de financiamento continuava sem qualquer alteração. Havia um desacordo

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entre a crescente absorção de faixas cada vez mais extensas da população cobertas pela proteção so-cial e a manutenção de um regime financeiro calcado na relação contratual.

Ao lado da restrição das fontes de financiamento, com ausência do Estado no financiamento da Previ-dência e da expansão de cobertura, o modelo de privilegiamento dos produtores privados de serviços de saúde implantado é corruptor, incontrolável e sofisticado, o que o torna extremamente oneroso. Isto levou a propostas de contenção de despesas, especialmente da assistência médica.

A crise político-institucional é marcada pela criação do Conselho Consultivo da Administração de Saúde Previdenciária (CONASP), em 1981, com o objetivo de

operar sobre a organização e o aperfeiçoamento da assistência médica, sugerir critérios de alo-cação de recursos previdenciários para este fim, recomendar políticas de financiamento e de assistência à saúde, analisar e avaliar a operação e o controle da Secretaria de Assistência Médica da Previdência Social.

O CONASP era composto por representantes de diferentes ministérios, por representantes da socie-dade civil e de parte dos prestadores de serviços de saúde contratados/conveniados. As propostas, de inspiração racionalizadora, visando cortar custos, têm sua maior expressão no documento “Reorga-nização da Assistência Médica no Âmbito da Previdência Social”, formulado em 1982. O documento recupera propostas antes apresentadas pelo PREV-SAÚDE no sentido da hierarquização, regionaliza-ção, descentralização e integração de serviços, dentre outras. Propõe mudanças na sistemática de pa-gamentos, introduz novos mecanismos de auditoria técnica e propõe a plena utilização da capacidade instalada dos serviços públicos de saúde, incluindo os estaduais e municipais.

Ao lado das propostas racionalizadoras do CONASP, cresciam os movimentos reformadores da saúde e o movimento oposicionista no país. Em 1982, são eleitos vários prefeitos comprometidos com as pro-postas de descentralização, o que levou a bem-sucedidas experiências municipais de atenção à saúde.

A proposta do CONASP foi consubstanciada nas Ações Integradas de Saúde (AIS), que podem ser divididas em dois momentos: um anterior e outro posterior à Nova República. Mais do que um pro-grama dentro do INAMPS e das Secretarias de Saúde, as AISs passaram da estratégia setorial para a reforma da política de saúde. Em 1984, eram destinados às AISs 4% do orçamento do INAMPS, passando para 12% em 1986. Ao lado do aumento de recursos destinados ao setor público, merecem destaque a universalização no uso de recursos previdenciários e a incorporação de novos atores na disputa pelos mesmos. Em 1988, as AISs abrangiam todos os estados e 2.500 dos pouco mais de 4.000 municípios então existentes.

No governo da Nova República, a proposta das AISs é fortalecida, e este fortalecimento passa pela valorização das instâncias de gestão colegiada, com a participação de usuários dos serviços de saúde.

Em 1986, é realizada em Brasília a VIII Conferência Nacional de Saúde (CNS), com ampla participa-ção de trabalhadores, governo, usuários e parte dos prestadores de serviços de saúde. Precedida de conferências municipais e estaduais, a VIII CNS significou um marco na formulação das propostas de mudança do setor de saúde, consolidadas na Reforma Sanitária brasileira. Seu documento final sistematiza o processo de construção de um modelo reformador para a saúde, definida como

resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso a serviços de saúde. É, as-sim, antes de tudo, o resultado das formas de organização social da produção, as quais podem gerar desigualdades nos níveis de vida.

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Este documento serviu de base para as negociações na Assembleia Nacional Constituinte, que se reuniria logo após.

Em paralelo ao processo de elaboração das propostas de mudança no setor de saúde, deu-se a confor-mação de outro modelo, o chamado modelo neoliberal.

Durante o processo de elaboração da Constituição Federal, outra iniciativa de reformulação do sis-tema foi implementada, o Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS). Idealizado como estratégia de transição em direção ao SUS, propunha a transferência dos serviços do INAMPS para estados e municípios. O SUDS pode ser percebido como uma estadualização de serviços. Seu prin-cipal ganho foi a incorporação dos governadores de estado no processo de disputa por recursos previdenciários. Contudo, a estadualização, em alguns casos, levou à retração de recursos estaduais para a saúde e à apropriação de recursos federais para outras ações, além de possibilitar a negociação clientelista com os municípios.

Como resultante dos embates e das diferentes propostas em relação ao setor de saúde presentes na Assembleia Nacional Constituinte, a Constituição Federal de 1988 aprovou a criação do SUS, reconhecendo a saúde como um direito a ser assegurado pelo Estado e pautado pelos princípios de universalidade, equidade, integralidade e organizado de maneira descentralizada, hierarquizada e com participação da população.

Quadro 6 – A década de 80: eclosão da crise estrutural e consolidação das propostas reformadoras

O Sistema Único de Saúde: princípios doutrinários e organizativos

A primeira e maior novidade do SUS é seu conceito de saúde. Este “conceito ampliado de saúde”, re-sultado de um processo de embates teóricos e políticos, como visto anteriormente, traz consigo um diagnóstico das dificuldades que o setor saúde enfrentou historicamente e a certeza de que a reversão deste quadro extrapolava os limites restritivos da noção vigente. Encarar saúde apenas como ausência de doenças nos legou um quadro repleto não só das próprias doenças, como de desigualdades, insatis-fação dos usuários, exclusão, baixa qualidade e falta de comprometimento profissional.

Para enfrentar esta situação, era necessário transformar a concepção de saúde, de serviços de saúde e, até mesmo, de sociedade. Uma coisa era se deparar com a necessidade de abrir unidades, contratar profissionais, comprar medicamentos. Outra tarefa é conceber a atenção à saúde como um projeto que iguala saúde com condições de vida. O direito à saúde, nesta visão, se confunde com o direito à vida.

Este conceito ampliado, ao definir os elementos condicionantes da saúde, incorpora:

�� meio físico (condições geográficas, água, alimentação, habitação etc.);

�� meio socioeconômico e cultural (emprego, renda, educação, hábitos etc.);

�� garantia de acesso aos serviços de saúde responsáveis pela promoção, proteção e recuperação da saúde.

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Ou seja, para se ter saúde, é preciso possuir um conjunto de fatores, como alimentação, moradia, emprego, lazer, educação etc. A saúde se expressa como um retrato das condições de vida. Entretan-to, a ausência de saúde não se relaciona apenas com a inexistência ou a baixa qualidade dos serviços de saúde, mas com todo este conjunto de determinantes.

A saúde precisa, desta forma, incorporar novas dimensões e se torna responsável por conquistas que, até então, se colocavam externas a ela. O sistema de saúde deve-se relacionar com todas as forças políticas que caminhem na mesma direção, como a defesa do meio ambiente, o movimento contra a fome, as manifestações pela cidadania, contra a violência no trânsito, pela reforma agrária etc. O SUS, ao abraçar este conceito, pressupõe ainda a democratização interna da gestão dos serviços e dos sistemas de saúde como um elemento a mais no movimento de construção da cidadania.

Antes de abordar a doutrina e os princípios organizativos do SUS, é importante frisar dois aspectos.

Em primeiro lugar, o SUS faz parte das ações definidas na Constituição como sendo de “relevância pú-blica”, ou seja, é atribuída ao poder público a regulamentação, a fiscalização e o controle das ações e dos serviços de saúde, independentemente da execução direta do mesmo. De acordo com Goulart (1991),

as competências decorrentes da relevância pública envolvem, certamente, o exercício de um poder regulador, de arbitragem e de intervenção executiva por parte das esferas do poder público e, por consequência, de suas agências de prestação de serviços.

Para ele, este poder pode ser traduzido como autoridade e responsabilidade sanitárias. Em segundo lugar, a saúde faz parte de um sistema mais amplo, o Sistema da Seguridade Social. De acordo com o artigo 194 da Constituição, a Seguridade Social “compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade destinada a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”.

Ao lado do conceito ampliado de saúde, o SUS traz dois outros conceitos importantes: o de sistema e a ideia de unicidade. A noção de sistema significa que não estamos falando de um novo serviço ou órgão público, mas de um conjunto de várias instituições, dos três níveis de governo e do setor pri-vado contratado e conveniado, que interagem para um fim comum. Na lógica do sistema público, os serviços contratados e conveniados são seguidores dos mesmos princípios e das mesmas normas do serviço público. Os elementos integrantes do sistema referem-se, ao mesmo tempo, às atividades de promoção, proteção e recuperação da saúde.

Este sistema é único, ou seja, deve ter a mesma doutrina e a mesma forma de organização em todo o país. Mas é preciso compreender bem esta ideia de unicidade. Num país com tamanha diversi-dade cultural, econômica e social como o Brasil, pensar em organizar um sistema sem levar em conta estas diferenças seria uma temeridade. O que é definido como único na Constituição é um conjunto de elementos doutrinários e de organização do sistema de saúde, os princípios da univer-salização, da equidade, da integralidade, da descentralização e da participação popular. Estes ele-mentos se relacionam com as peculiaridades e determinações locais, por meio de formas previstas de aproximação da gerência aos cidadãos, seja com a descentralização político-administrativa, seja através do controle social do sistema.

O SUS pode, então, ser entendido a partir da seguinte imagem: um núcleo comum (único), que concentra os princípios doutrinários, e uma forma de organização e operacionalização, os princípios organizativos.

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Princípios doutrinários

Universalização

Historicamente, quem tinha direito à saúde no Brasil eram apenas os trabalhadores segurados do INPS e depois do INAMPS. Com o SUS, isto mudou: a saúde passa a ser um direito de cidadania de todas as pessoas e cabe ao Estado assegurar este direito. Neste sentido, o acesso às ações e serviços deve ser garantido a todas as pessoas, independentemente de sexo, raça, renda, ocupação ou outras características sociais ou pessoais. O SUS foi implantado com a responsabilidade de tornar realidade este princípio.

Equidade

O objetivo da equidade é diminuir desigualdades. Mas isso não significa que a equidade seja sinônimo de igualdade. Apesar de todos terem direito aos serviços, as pessoas não são iguais e, por isso, têm necessidades diferentes. Equidade significa tratar desigualmente os desiguais, investindo mais onde a carência é maior. Para isso, a rede de serviços deve estar atenta às necessidades reais da população a ser atendida. A equidade é um princípio de justiça social.

Integralidade

O princípio da integralidade significa considerar a pessoa como um todo, atendendo a todas as suas ne-cessidades. Para isso, é importante a integração de ações, incluindo a promoção da saúde, a prevenção de doenças, o tratamento e a reabilitação. Ao mesmo tempo, o princípio da integralidade pressupõe a articulação da saúde com outras políticas públicas, como forma de assegurar uma atuação intersetorial entre as diferentes áreas que tenham repercussão na saúde e qualidade de vida dos indivíduos.

Princípios organizativos

Para organizar o SUS a partir dos princípios doutrinários apresentados e considerando-se a ideia de seguridade social e relevância pública, existem algumas diretrizes que orientam o processo. Na ver-dade, trata-se de formas de concretizar o SUS na prática.

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Sistema Ú

nico de Saúde: PrincípiosJoão Paulo Pinto da Cunha e Rosani Evangelista da Cunha

Regionalização e hierarquização

A regionalização e a hierarquização de serviços significam que os serviços devem ser organizados em níveis crescentes de complexidade, circunscritos a determinada área geográfica, planejados a partir de critérios epidemiológicos, e com definição e conhecimento da clientela a ser atendida. Como se trata aqui de “princípios”, de indicativos, este conhecimento é muito mais uma perspectiva de atua-ção do que uma delimitação rígida de regiões, clientelas e serviços.

A regionalização é, na maioria das vezes, um processo de articulação entre os serviços existentes, buscando o comando unificado dos mesmos. A hierarquização, além de proceder à divisão de níveis de atenção, deve garantir formas de acesso a serviços que componham toda a complexidade requerida para o caso, no limite dos recursos disponíveis em dada região. Deve ainda incorporar-se à rotina do acompanhamento dos serviços, com fluxos de encaminhamento (referência) e de retorno de in-formações ao nível básico do serviço (contrarreferência). Estes caminhos somam a integralidade da atenção com o controle e a racionalidade dos gastos no sistema.

Descentralização e comando único

Descentralizar é redistribuir poder e responsabilidades entre os três níveis de governo. Na saúde, a descentralização tem como objetivo prestar serviços com maior qualidade e garantir o controle e a fiscalização pelos cidadãos. Quanto mais perto estiver a decisão, maior a chance de acerto. No SUS, a responsabilidade pela saúde deve ser descentralizada até o município. Isto significa dotar o município de condições gerenciais, técnicas, administrativas e financeiras para exercer esta função.

A decisão deve ser de quem executa, que deve ser o que está mais perto do problema. A descentra-lização, ou municipalização, é uma forma de aproximar o cidadão das decisões do setor e significa a responsabilização do município pela saúde de seus cidadãos. É também uma forma de intervir na qualidade dos serviços prestados.

Para fazer valer o princípio da descentralização, existe a concepção constitucional do mando único. Cada esfera de governo é autônoma e soberana em suas decisões e atividades, respeitando os princípios gerais e a participação da sociedade. Assim, a autoridade sanitária do SUS é exercida na União pelo mi-nistro da Saúde, nos estados pelos secretários estaduais de Saúde e nos municípios pelos secretários ou chefes de departamentos de Saúde. Eles são também conhecidos como “gestores” do sistema de saúde.

Participação popular

O SUS foi fruto de um amplo debate democrático. Mas a participação da sociedade não se esgotou nas discussões que deram origem ao SUS. Esta democratização também deve estar presente no dia-a--dia do sistema. Para isto, devem ser criados os Conselhos e as Conferências de Saúde, que têm como função formular estratégias, controlar e avaliar a execução da política de saúde.

Os Conselhos de Saúde, que devem existir nos três níveis de governo, são órgãos deliberativos, de caráter permanente, compostos com a representatividade de toda a sociedade. Sua composição deve ser paritária, com metade de seus membros representando os usuários, e a outra metade, o conjun-to composto por governo, trabalhadores da saúde e prestadores privados. Os conselhos devem ser criados por lei do respectivo âmbito de governo, em que serão definidas a composição do colegiado e outras normas de seu funcionamento.

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As Conferências de Saúde são fóruns com representação de vários segmentos sociais que se reúnem para propor diretrizes, avaliar a situação da saúde e ajudar na definição da política de saúde. Devem ser realizadas em todos os níveis de governo.

Um último aspecto que merece destaque é o da complementaridade do setor privado. Este princí-pio se traduz nas condições sob as quais o setor privado deve ser contratado, caso o setor público se mostre incapaz de atender a demanda programada. Em primeiro lugar, entre os serviços privados devem ter prioridade os não-lucrativos ou filantrópicos. Para a celebração dos contratos, deverão ser seguidas as regras do direito público. Em suma, trata-se de fazer valer, na contratação destes ser-viços, a lógica do público e as diretrizes do SUS. Todo serviço privado contratado passa a seguir as determinações do sistema público, em termos de regras de funcionamento, organização e articulação com o restante da rede. Para a contratação de serviços, os gestores deverão proceder a licitação, de acordo com a Lei Federal no 8.666/93.

A criação do SUS, pela Constituição Federal, foi depois regulamentada através das Leis no 8.080/90, conhecida como Lei Orgânica da Saúde, e no 8.142/90. Estas leis definem as atribuições dos diferen-tes níveis de governo com a saúde; estabelecem responsabilidades nas áreas de vigilância sanitária, epidemiológica e saúde do trabalhador; regulamentam o financiamento e os espaços de participação popular; formalizam o entendimento da saúde como área de “relevância pública” e a relação do po-der público com as entidades privadas com base nas normas do direito público, dentre outros vários princípios fundamentais do SUS. Outros instrumentos têm sido utilizados para possibilitar a ope-racionalização do Sistema, dentre eles as Normas Operacionais Básicas do Sistema Único de Saúde, publicadas pelo Ministério da Saúde, sob a forma de portaria.

Considerações finais

A operacionalização das diretrizes aqui apresentadas tem sido uma tarefa cotidiana de vários dos muni-cípios brasileiros. Esta não tem sido uma tarefa simples e enfrenta obstáculos de toda ordem: dificulda-des de financiamento, disputa de grupos com interesses divergentes, insuficiência de capacidade geren-cial, excessiva burocracia nas formas de administrar a coisa pública, experiência ainda recente com os processos de descentralização e democratização, insuficiência de mecanismos jurídicos para a regulação da rede privada, formação de recursos humanos com perfil diferente daquele demandado pelo novo sistema e uma lista interminável de outros problemas. Apesar disso, várias experiências bem-sucedidas têm sido implementadas. O SUS se constrói no cotidiano de todos aqueles interessados na mudança da saúde no Brasil. Entendê-lo é uma boa forma de fortalecer a luta por sua construção.

ReferênciasBRASIL. Ministério da Saúde. Relatório Final da VIII Conferência Nacional de Saúde. Brasília, 1986.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988.

BRASIL. Lei n. 8.080/90. Brasília: Diário Oficial da União, 1990.

BRASIL. Lei n. 8.142/90. Brasília: Diário Oficial da União, 1990.

BRASIL. Ministério da Saúde. Incentivo à participação popular e controle social no SUS. Brasília: IEC, 1994.

GOULART, F. A. A. Distritalização e Responsabilidade Sanitária. Brasília, 1991.

MENDES, E. V. Distrito Sanitário: o processo social de mudança das práticas sanitárias do Sistema Único de Saúde. São Paulo: Hucitec/Abrasco, 1993.

TEIXEIRA, S. M. F. & OLIVEIRA, J. A. A. Previdência Social: 60 anos de história da Previdência no Brasil. Petrópolis: Vozes/Abrasco, 1976.

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POLÍTICA DE SAÚDE EM MATO GROSSO: DOIS MANDATOS PARA A CONSTRUÇÃO DA REGIONALIZAÇÃO1

LUISA GUIMARÃES2

O estudo de aspectos da política estadual de saúde em Mato Grosso, no período de 1995 a 2000, quando o desenvolvimento da atenção à saúde teve como prioridade a organização das ações e servi-ços sob a lógica da regionalização, traz elementos relevantes para a discussão da cooperação intergo-vernamental, necessária ao processo de descentralização.3 No caso de Mato Grosso, os municípios foram estimulados pela gestão estadual a formar consórcios entre si e a estabelecer parcerias com o Estado e, assim, viabilizar a provisão da atenção especializada – referência para a atenção básica – de uma região definida. Buscava-se, nesse sentido, resolver de forma cooperativa problemas comuns, cuja solução extrapolava a capacidade e os recursos de cada município ou do Estado, com benefícios para todos. Os ganhos com a associação ultrapassavam, já em princípio, aspectos administrativos, porque não se tratava de iniciativa isolada, mas integrante do processo de descentralização setorial, que, a longo prazo, contribuiria para o aumento da integralidade da atenção no interior do Estado e redução de iniquidades no sistema.

1 Publicação originalmente em: GUIMARÃES, Luisa. Política de Saúde em Mato Grosso: dois mandatos para a construção da regionalização. In: MATO GROSSO. Secretaria de Estado de Saúde. Regionalização da saúde em Mato Grosso: em busca da integralidade da atenção. Mato Grosso: SES, 2002. p. 39-66. Este texto é parte do capítulo IV da Dissertação de Mestrado “Arquitetura da Cooperação Intergovernamental: os Consórcios em Saúde de Mato Grosso”, defendida pela autora junto à ENSP/Fiocruz. Reprodução autorizada pela autora.2 Psicóloga, Mestre em Ciências e Psicóloga do Ministério da Saúde.3 A pesquisa está delimitada no período de 1995 a 2000 e foi desenvolvida no contexto do Governo Dante Martins de Oliveira, de 1995 a 1998, reeleito para o período seguinte (1999 a 2002). O Governador, membro do Partido Social Democrata do Brasil (PSDB), foi eleito por coalizão de 10 partidos, com 72,5% dos votos. Dante de Oliveira tem longa trajetória política, desde movimentos estudantis e populares, até deputado estadual (1978, pelo Movimento Democrático Brasileiro – MDB), deputado federal (1982), prefeito de Cuiabá (1985 e em 1992, pelo Partido Democrata Trabalhista – PDT), ministro de Estado (1986) e governador (1995 e 1999). Alcançou popularidade nacional em 1984, com a autoria da emenda constitucional que propôs a eleição direta para Presidente da República e que impulsionou a campanha pelas Diretas-já. Os grandes projetos de seu governo no Estado foram empreendimentos energéticos, consórcios intermunicipais de saúde, democratização do ensino e autonomia das escolas (Governo de Mato Grosso, 2001). As metas para o segundo mandato incluem investimentos na área social e estímulo ao desenvolvimento econômico e industrial de forma sustentável, de modo a assegurar o patrimônio ambiental de Mato Grosso (Governo de Mato Grosso, 2001). Nos dois mandatos, o governador manteve à frente da pasta da saúde Júlio Strubing Müller Neto, médico sanitarista, ex-Secretário Municipal de Saúde de Cuiabá, quando Dante de Oliveira foi Prefeito da Capital (Governo MT, 2001).

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O incentivo à formação de consórcios de saúde foi um componente da política de Governo de Estado, empreendida pela gestão estadual, como integrante da proposta de organização regional do sistema de atenção à saúde (Governo do Estado de Mato Grosso, 1998), que incluía um conjunto de transforma-ções, entre as quais: a reestruturação do órgão estadual gestor da saúde, a criação das Comissões Intergestores Bipartite Regionais (CIBR), a realização da Programação Pactuada e Integrada (PPI), a implantação do Siste-ma Estadual de Referência (SER) – com as respectivas Câmaras de Compensação Regionais (CCR) e Centrais de Regulação Regionais (CRR) – e a organização de Câmaras de Auditorias Regionais (CAR). A ativação de todos esses mecanismos, simultânea à efetivação do processo de descentralização, objetivava promover mudança do modelo de atenção de fragmentado para regionalizado.4 O desenvolvimento da política de saú-de de Mato Grosso, no período estudado, indica, finalmente, que, para a efetividade da implementação do processo de descentralização, implantado por meio de normas federais – de caráter universal –, foi necessária a coordenação e a atuação da gestão estadual na assessoria e na capacitação dos municípios, na definição de incentivos e, fundamentalmente, na transferência da decisão referente à gestão de sistemas de saúde para espaços regionais (SES/MT, 2000d).

A situação do Estado e dos municípios de Mato Grosso na construção de acordos e pactos, mediante o consórcio e a regionalização na saúde, ainda que rica em potencialidades e expressiva nos resultados, não pode ser generalizada para todos os demais, porque tem um valor agregado, resultante de espe-cificidades locais – políticas e sociais – que confluem, por conseguinte, para um processo de organi-zação regional próprio, baseado na cooperação entre municípios e Estado.5 Todavia, para analisar o consórcio como instrumento de cooperação intergovernamental no processo de descentralização, o caso de Mato Grosso foi identificado como significativo, porque nesse Estado seria possível observar o surgimento e o desenvolvimento da cooperação entre os municípios e desses com o Estado, a partir de uma política ativa do governo estadual, adotada em 1995, e mantida no mandato seguinte.6

Para alcançar os objetivos de pesquisa do consórcio como instrumento de cooperação intergover-namental, partiu-se de uma panorâmica de características do Estado de Mato Grosso e da gestão da saúde correspondente ao período em estudo (1995—2000), seguida de breve revisão do processo de descentralização nesse Estado, implantado por meio das NOB’s, que culmina com o seu direciona-mento pela via da regionalização, mediante o estímulo aos consórcios de saúde.

1. Mato Grosso: breve caracterização do estado

O Estado de Mato Grosso está situado na Região Centro-Oeste do Brasil e a estimativa populacional para o ano de 2000 era de 2.498.150 residentes (IBGE, 2001).7 A distribuição dessa população é

4 Modelo de atenção à saúde é aqui entendido como a forma em que ocorre o atendimento das necessidades sentidas e não sentidas da população, que resulta em um tipo de relação e de interação entre os recursos disponíveis e essa população. Há farta literatura sobre o tema e opiniões contrastantes. Regionalização, por sua vez, é aqui entendida como articulação e mobilização municipal, que considera características geográficas, fluxo de demanda, perfil epidemiológico, oferta de serviços e vontade política expressa pelos municípios de se consorciar ou estabelecer outra relação de caráter cooperativo (NOB/93).5 No caso específico do setor saúde, denota-se que o Secretário Estadual reúne características de liderança tradicional, carisma pessoal e competência técnica, com compromisso social.6 Políticas ativas e contínuas são expressas por níveis governamentais interessados na implementação dessas, mediante a indução eficientemente desenvolvida e implementada, que pode compensar atributos estruturais dos governos e das próprias políticas, implicando na redução de custos e aumento de benefícios. É traduzida em decisões favoráveis aos programas de descentralização de meios e de recursos financeiros, políticos e administrativos necessários para implementar tais políticas. São coordenadas e coincidentes com outras ações de governo e os incentivos são contínuos, compensando obstáculos administrativos (Arretche, 2000:73-4).7 Mato Grosso ocupa 10,6% da área territorial do Brasil (Gazeta Mercantil, 2000).

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predominantemente urbana, seguindo a tendência do País. Contudo, apresenta baixa densidade de-mográfica, em torno de 2,5 habitantes por quilômetro quadrado (IBGE apud SES/MT, 1998). Mato Grosso possui 126 municípios, representando 2,3% do total de localidades do Brasil, onde residem cerca de 1,6% da população brasileira.8

Entre as regiões do Brasil, a Centro-Oeste vem consolidando-se como área de produção agroin-dustrial, impulsionada por forte ação estatal, fundamental para a ocupação e a transformação produtiva da Região. Os investimentos públicos ocorreram tanto em infraestrutura de trans-portes, energia e armazenagem, quanto em políticas de crédito rural e de preços, programas de colonização e incentivo à pecuária.9 A expansão econômica decorrente foi acompanhada por grandes f luxos migratórios, geradores de taxas de crescimento populacional superiores às médias nacionais. No caso de Mato Grosso, esse processo esteve mais concentrado na região central, de sul a norte do Estado – área de maior produção agropecuária e de valor da produção industrial –, onde os municípios receberam migrantes provenientes do Centro-Sul e do Nor-deste do País (Unicamp, 1999).10

No Centro-Oeste, ainda que expressivo, o crescimento populacional concentrou-se em cidades--polo, atrativas de investimentos privados de grande porte e de modernas indústrias com alta produ-tividade. Tais fatores, ao fim e ao cabo, reforçaram disparidades existentes, consolidando a economia do Centro-Oeste como complementar à do Sudeste, sem alcançar, portanto, transformações nas relações de produção da Região.

Uma heterogeneidade espacial marcou a existência de cidades pouco estruturadas, com fracos laços de articulação e complementariedade, predominando municípios de pequeno porte e baixo grau de desen-volvimento das atividades e dos serviços urbanos, com pouca inserção no cenário regional e nacional (Unicamp, 1999:178).

As correntes migratórias, por sua vez, foram em busca de melhores oportunidades de trabalho e, portanto, apresentam estrutura etária mais envelhecida. No Brasil, os números referentes ao percen-tual de pessoas residentes em Estado ou município diferente daquele em que nasceram são bastante variados entre as cinco regiões, indicando que os indivíduos, em relação ao local de nascimento, mudam mais de cidade do que de Estado.

Na média, em 1999, cerca de 16% dos residentes eram não-naturais do Estado, enquanto os não--naturais no município eram 39%, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad/IBGE). Esses números são bem maiores na Região Centro-Oeste, respectivamente, 35% e 54%, repercutindo significativamente nos perfis populacionais de demanda de serviços e de ocupação ter-

8 Em 2000, foram criados novos municípios, totalizando 139 no Estado. Os municípios novos tiveram o primeiro governo municipal no ano de 2001.9 O Governo de Estado tem programa de incentivos (ampliação, equipamento, pesquisa) direcionado às indústrias atrelado à redução da carga tributária. Nos últimos anos, a arrecadação tributária do Estado aumentou em nove vezes. No ano de 2000, Mato Grosso foi o maior produtor nacional de soja, líder de produção nacional de algodão, vice-líder na safra de arroz e o quarto em rebanho de rezes. O ecoturismo está recebendo investimentos internacionais. As características geográficas do Estado impõem que o transporte seja intermodal, utilizando de hidrovias, rodovias e ferrovias em um mesmo percurso. Os investimentos em infraestrutura e serviços refletem diretamente sobre maior circulação de informações e tecnologias. A área de serviços públicos representa mais de 50% dos investimentos entre os anos de 1998 e 2005. Na indústria, no ano de 1997, apenas 21% dos investimentos privados se concentraram na Capital (Gazeta Mercantil, 2000).10 O Consórcio Intermunicipal de Saúde da Região de Teles Pires está situado nesse corredor produtivo, na região mais central do Estado.

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ritorial (Brasil, 2000).11 Em decorrência da migração, a taxa de crescimento foi de 2,39% ao ano, na segunda metade da década de 1990 (SES/MT, 2000).

Em Mato Grosso, os municípios são pequenos em termos populacionais e apenas três cidades têm populações grandes, em faixas de mais de 100 mil habitantes (Tabela 1 e Mapas 1 e 2). Dos 126 mu-nicípios, 90 localidades (71%) têm população inferior a 15 mil habitantes e, nessas, residem cerca de um terço (27%) da população total do Estado. Na capital, Cuiabá, moram 20% da população do Estado. No interior, por sua vez, há grande dispersão, com dificuldades de acesso, grandes distâncias e barreiras geográficas entre as cidades. A população indígena no Estado representa 1,3% da popula-ção estadual, e existem 39 etnias, presentes em 44 municípios. Para essa população étnica, existem programas específicos de atenção à saúde (SES/MT, 1998).

TABELA 1: Distribuição de Municípios, por População, em Mato Grosso, 1998

Fonte: Elaborado com Base em Estimativa Populacional do IBGE 1998 apud SES/MT, 1998.

Os mapas seguintes ilustram a distribuição populacional no território e a densidade demográfica, evidenciando a prevalência de municípios extensos e pouco populosos, resultando em baixas densi-dades populacionais. A região de maior densidade existente no Estado é a capital, Cuiabá. Ao centro do Estado e no sentido norte-sul, observam-se também áreas de maior densidade populacional, em geral ao longo de rodovias de integração, a exemplo da Cuiabá-Santarém.

Em Mato Grosso, no ano de 1997, a população economicamente ativa (PEA) representou 46% da população total e o PIB era de R$ 9,08 bilhões, distribuídos entre atividades de agropecuária (45%), indústria (13%) e serviços (42%). O PIB per capita era de R$ 3.971,00 – o do Brasil, no ano de 1996, foi de R$ 4.503,00 – (Gazeta Mercantil, 2000).12

11 O Centro-Oeste ocupa ainda posição estratégica em relação à Região Amazônica, fator relevante, considerando que fluxos migratórios se dirigiram ao interior dos Estados, e novos municípios foram surgindo ao longo de rodovias. Propriedades extensas de terras, carentes de infraestrutura e em presença de reservas indígenas fazem parte do perfil das novas cidades, modificando profundamente a ocupação territorial regional. De 1970 a 1995, por exemplo, a área de pastagem na Região teve incremento de 150% (Unicamp, 1999).12 O PIB de 1997 foi composto de 45% para os setores agrícola e pecuária, 42% para serviços e 13% para indústria (Gazeta Mercantil, 2000).

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Distribuição populacional por município de Mato Grosso - 1996

Fonte: Extraído de IBGE, 2000, apud Lavras, 1999.

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Mato Grosso - Densidade demográfica - 1996

Fonte: Extraído de IBGE, 2000, apud Lavras, 1999.

1.1. Condições de Saúde e oferta de serviços em Mato Grosso: alguns indicadores

Alguns dados são mostrados em seguida, com objetivo de apresentar a moldura na qual os consórcios surgem e se desenvolvem em Mato Grosso. Quanto aos indicadores básicos de saúde no Estado, a expectativa de vida no ano de 1997 era de 65,01 anos para homens e 71,12 para mulheres. A taxa de mortalidade infantil era de 29,3 por mil nascidos vivos (IDB/1997; IBGE, 2000). Entre a população masculina, a primeira causa de morte foi por causas externas (26%) e a segunda, por doenças do aparelho circulatório (25%). Na população feminina, esse perfil é distinto: as doenças do aparelho circulatório são a principal causa de morte (28%) e as neoplasias, a segunda (13%). Nos menores de um ano de idade, a principal causa de morte são as afecções perinatais e, na faixa de um a quatro anos de idade, predomi-nam as causas externas (SES/MT, 1998).

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Com referência à dependência do sistema público de saúde, pesquisa sobre a população que utiliza exclusivamente o SUS mostra que, na Região Centro-Oeste, esse percentual encontrava-se em tor-no de 39%, na segunda metade da década de 1990 (Ibope apud MS/SAS, 2000c:18). Quanto aos beneficiários de saúde suplementar no Estado, no mesmo período, a estimativa era que apenas 13% da população do Estado dispunha de algum plano ou seguro privado de saúde (Pnad, 2000). Com referência aos planos privados de saúde, outra fonte é o cadastro das operadoras de seguros privados, o qual demonstra que o Estado de Mato Grosso apresenta uma das menores porcentagens (3,85%) de beneficiários do país e a menor (0,35%) da Região Centro-Oeste. Nessa Região, os beneficiários de planos privados representam 3,94% do total Brasil (ANS, 2001:14, 29 e 33). O predomínio da dependência do SUS sobre o acesso aos planos privados de saúde reforça a necessidade de melhoria dos atributos de assistência e cobertura do sistema público de atenção no Estado.

Quanto à assistência hospitalar pública, no ano de 1995, Mato Grosso tinha uma taxa de 2,89 leitos do SUS por mil habitantes; em 1999, essa taxa sofreu leve redução, passando para 2,80. Embora Mato Grosso seja o segundo Estado da federação em taxa de ocupação de leitos do SUS, o número de leitos está abaixo da média do país, que é de 2,99 por mil habitantes (MS, 2000). Em Mato Grosso, no ano de 1998, 86% dos hospitais tinham leitos contratados pelo SUS, resultando que 75% do total de leitos existentes no Estado (público e privado) estavam disponíveis para o SUS. Os leitos privados contratados (54%) responderam por cerca de 30% do gasto hospitalar. O número de internações estava em torno de 8,6 por 100 habitantes/ano. Quanto à natureza das unidades ambulatoriais e hospitalares, 104 eram privadas e 44 públicas (SES/MT, 1998).

Quanto à atenção ambulatorial, no ano de 1998, 67% das unidades de saúde do SUS existentes em MT eram postos e centros de saúde, sendo que o gasto per capita ambulatorial totalizava R$ 23,45. Nesses, 55% dos procedimentos realizados eram por profissionais não médicos (Aveianm — Atos de vigilância epidemiológica, imunização e atos não médicos). No período de 1994 a 1998, houve incremento de 150% na produção ambulatorial e de 280% na alta complexidade e no alto custo. Esses números podem indicar que a estruturação da atenção básica nos municípios, mediante a implantação de ações preventivas e de atenção ambulatorial, segundo o modelo adotado no Estado, levou ao crescimento progressivo da demanda por serviços especializados. Os recursos do orça-mento geral do Estado destinados à saúde, em 1998, equivaleram a 4,92% do total e a execução foi de 56% (SES/MT, 1998).13

No período de 1995 a 1999, observa-se redução de 58% no número de cesáreas, indicando melhora na assistência ao parto, uma vez que a taxa de cesárea era alta no Estado. No mesmo período, ocorreu o aumento de 120% do gasto per capita com alta complexidade (MS, 2000), indicativo de ampliação no acesso a esses serviços. Em 1998, 84% da população de MT avaliava positivamente o desempenho da saúde no Estado (SES/MT, s/data c).

Quanto à organização do sistema estadual, na área da saúde, em Mato Grosso, uma divisão adminis-trativa, desde 1992, agregou conjuntos de municípios em nove Polos Regionais de Saúde, transformados em treze no ano de 2000. Para incrementar a descentralização pela via da regionalização, a atuação desses polos foi transformada. A reconfiguração visou à superação de dificuldades na distribuição do

13 O valor orçado para a saúde, no ano de 1998, em Mato Grosso, corresponde a cerca de 70% do estabelecido para o ano de 2000 pela Emenda Constitucional 29.

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parque assistencial e no fluxo de pacientes (Lavras, 1999).14 O surgimento da articulação de muni-cípios, sob a forma de consórcios em algumas regiões do Estado, nesse período, modificou o fluxo de paciente entre cidades em Mato Grosso. Com o objetivo de prover meios para a assistência espe-cializada e hospitalar em uma região, os municípios mato-grossenses foram estimulados pelo Estado a constituir consórcios intermunicipais. Assim, dos 126 municípios do Estado, 74 estão organizados nos dez consórcios existentes, no ano de 2000, cobrindo cerca de 30% da população.

Mesmo fortemente estimulados e apoiados pela SES/MT, tais consórcios buscam a autonomia muni-cipal e a cooperação mútua e com o Estado, com finalidade de potencializar a capacidade gestora do SUS como um todo (Lavras, 1999).

2. Política Estadual de Saúde: diretrizes, estratégias e projetos prioritários

A gestão estadual, objeto de análise desta pesquisa, cumpre o segundo mandato consecutivo. O primeiro teve início em 1995 e o segundo, em 1999. O titular da SES/MT foi reconduzido em seu cargo, fator favorável para a continuidade da política estadual assumida no primeiro mandato, que propunha, fundamentalmente, empreender nova configuração ao sistema estadual de saúde.15

O governo estadual incentivou os municípios a constituírem consórcios intermunicipais de saúde, em parcerias cooperativas com o Estado, mediante apoio técnico, político e descentralização de recursos necessários. A política que incentivou a constituição dos consórcios no Estado de Mato Grosso teve as bases expressas no documento Política de Saúde em Mato Grosso: diretrizes, estratégias e projetos prioritários, apresentado pela SES/MT aos municípios, em julho de 1995. Esse docu-mento contém o referencial geral para o setor saúde no Estado e tem, como eixo de condução, a “diminuição das desigualdades social e regional em relação à qualidade de vida”, mediante a melhoria das condições sócio-sanitárias e ambientais, prioritariamente de grupos sociais, municípios e regiões mais desfavorecidos (SES/MT, 2000c).

No transcurso desta pesquisa, foi assumido que o documento Política de Saúde em Mato Grosso: diretrizes, estratégias e projetos prioritários continha as diretrizes e as estratégias propostas pela gestão estadual. A observação das diretrizes explicitadas no documento revelou que apontavam, fundamentalmente, para a transformação do modelo de atenção à saúde, com a definição das atividades e o comparti-lhamento de responsabilidades entre governos municipais e estadual. As estratégias orientavam-se para a organização do sistema de saúde pela via da regionalização e o consórcio apresentou-se como a principal ferramenta para enfrentar problemas comuns, na expansão da integralidade da atenção e da equidade no interior do Estado.

O reconhecimento da função desse documento como orientador básico para a gestão da saúde no Estado parte tanto da equipe técnica quanto do titular da SES, o qual reafirma, ao assumir o segundo mandato, a importância do seu conteúdo para a discussão das ações do governo e a definição das prioridades.

14 A nova reconfiguração desenvolvida pelo Estado contou, em seu início, com apoio do MS, dentro do Projeto de Apoio à Reforma do Sistema Único de Saúde – Componente Federal, parte integrante da cooperação técnica do Brasil – Reino Unido. O objetivo geral, no caso de Mato Grosso, naquele projeto foi implantar sistemas microrregionais de saúde que contribuam com os municípios no desenvolvimento de suas responsabilidades no âmbito no SUS, favorecendo a articulação intermunicipal, a qualificação da atenção à saúde e a otimização dos recursos existentes e possibilitando o exercício pleno das funções gestoras das Secretarias Municipais de Saúde e da Secretaria Estadual de Saúde (Lavras, 1999:12). Nesse processo, o aprimoramento dos consórcios para a organização da atenção hospitalar e dos serviços de diagnóstico e terapêutico foi um dos objetivos específicos.15 A descrição da política estadual está fundamentada em documentos de várias naturezas do Governo do Estado, os quais expressam o plano, as estratégias e a decisão política que sustentaram o desenho de regionalização proposto.

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O documento da SES/MT está organizado em três títulos e um anexo (SES/MT, 2000c). Do pri-meiro título – Referências Gerais para a Política Estadual de Saúde –, consta a articulação e a integração de políticas sociais (saneamento, habitação, educação, promoção social, justiça e segurança, cultu-ra, esporte) com as demais áreas do governo (energia, transporte, comunicação), referidas como necessárias para a consolidação do SUS e para a redefinição do papel institucional da SES/MT.16 A articulação e a integração entre políticas de governo buscariam potencializar a atividade pública, para enfrentar problemas relativos à pobreza, à fome, às questões ambientais, à violência, ao processo pro-dutivo e à urbanização. A consolidação do SUS se expressaria no estabelecimento de novas relações – entre os entes federativos, entre o setor público e o privado e entre o governo e a sociedade – e integraria um processo mais profundo de reforma democrática do Estado. A redefinição do papel institucional da SES/MT, por sua vez, se traduziria na implantação de novos modelos de gestão e na reorganização setorial para a promoção da saúde e o atendimento da demanda assistencial.

No segundo título – Diretrizes para a Política Estadual de Saúde –, estão estabelecidas as referências para a implantação da política de saúde no Estado, que são: democratização e participação social, priorida-de às ações de vigilância à saúde, melhoria quantitativa e qualitativa dos serviços assistenciais, regio-nalização, descentralização e novos modelos assistenciais. Para a consecução dessas transformações, os instrumentos estariam previstos nas políticas de ciência e tecnologia e de recursos humanos, que redefiniriam o papel institucional da SES/MT e os novos modelos de gestão e organização.17

O terceiro capítulo – Estratégias – trata, em última instância, do aumento da capacidade da Secretaria na condução do processo de construção e de consolidação da política estadual de saúde, tais como o estabelecimento e a consolidação de parcerias, a atuação intersetorial, a cooperação técnica e o trabalho orientado por problemas, objetivos, resultados e projetos. Foi privilegiada a atividade de interação intergovernamental para cooperar na solução de problemas comuns, buscar a superação de conflitos e formar consensos. Essa interação ocorre em espaços e fóruns específicos, entre represen-tantes dos níveis governamentais, desses com a sociedade civil organizada, com a representação dos recursos humanos setoriais e com o setor privado.

O anexo do documento contém os Projetos Prioritários, resultantes da combinação das diretrizes da po-lítica estadual com as linhas estratégicas. São eles: (1) cooperação técnica e capacitação; (2) vigilância à saúde; (3) programação, controle, avaliação e sistema de auditoria; (4) recursos humanos e ciência e tecnologia; (5) organização da atenção descentralizada e de referência regional; (6) modernização institucional e gerencial; e (7) controle social e democratização do setor.

O documento Política de Saúde em Mato Grosso: diretrizes, estratégias e projetos prioritários é conciso, indicativo de que o governo estadual pretendeu explicitar a intencionalidade política da gestão na saúde, mediante marcos gerais para a organização da atenção, de forma descentralizada e pela via da regionalização. Nesse sentido, seu conteúdo não é exaustivo, mas fundamentado nas diretrizes e sistemáticas do SUS. Avança na medida em que a SES/MT posicionou-se com papel de protagonista para mudanças nas relações federativas (entre municípios e desses com o Estado) e para a implantação de novos modelos de gestão e de organização dos serviços, objetivando responder problemas e necessidades de saúde da população.

16 O SUS compreende um conjunto de ações e serviços realizados nos três níveis de governo para atender às demandas sanitárias coletivas e individuais da população. As atividades assistenciais realizadas nos serviços se dirigem a indivíduos ou coletividades e são prestadas em unidades ambulatoriais, hospitalares ou domiciliares, e realizadas por estabelecimentos públicos e privados. Essas unidades se organizam em redes regionalizadas e hierarquizadas e conformam subsistemas municipais de atenção integral inseridos no sistema estadual correspondente (MS/SAS, 2000).17 As diretrizes foram revistas em 1998 e aqui figuram as atuais (SES/MT, 2000c).

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O conjunto de proposições, por sua vez, expressa que a intenção da gestão estadual seria a de trazer, para o centro das discussões entre os governos, a questão da organização do cuidado sanitário, com um modelo de atenção definido. Esse modelo reforçaria a responsabilidade pela atenção de uma população adscrita, na definição de prioridade para a atenção básica – executada pelo município – e na busca da garantia da integralidade, mediante a parceria intergovernamental.18 A ação cooperativa entre municípios, assim fomentada pelo Estado, objetivaria configurar as regiões como espaços de decisão e de articulação intergovernamental, nos aspectos de programação financeira, contratação de recursos humanos, administração de unidades de saúde mais especializadas e ampliação da oferta de serviços no interior. A SES/MT, para tanto, passaria a exercer papel protagonista de coordenação do sistema estadual de saúde, mediante política ativa de indução de mudança de modelo de orga-nização da atenção e, ao mesmo tempo, assumiria a liderança setorial, integrando outras áreas do governo, atualizando os processos de negociação entre esferas de gestão e, dessas, com a sociedade e com os prestadores.

A análise do documento sugere, ainda, que a gestão estadual tenha, ao assumir o governo da SES/MT, a disposição de compartilhar com os municípios a definição de mecanismos para contornar dificuldades e ampliar a oferta de ações de saúde no âmbito regional e, assim, alcançar a atenção integral. A avaliação do Estado, naquela época, indica que, se de um lado os municípios isolados tinham capacidade restrita para assumir a gestão da atenção básica, de outro, o Estado não poderia, sozinho, assumir a provisão de serviços mais complexos (secundários e terciários). Uma forma con-ciliadora seria, então, implantar, simultaneamente, processos de transferência de responsabilidades e de recursos referentes à atenção básica, até então centralizados, para o município, bem como gerar espaços regionais institucionalizados de articulação, negociação, pactuação e cooperação quanto à atenção mais complexa. A proposta da SES baseia-se no consórcio em saúde como instrumento a ser estimulado, para contornar as limitações e fortalecer a capacidade de ambos os gestores em assumir o novo modelo. Em decorrência de seu caráter cooperativo, cada um se fortaleceria para cumprir a sua responsabilidade e todos se beneficiariam dos resultados alcançados. A pesquisa e o estudo de caso de Mato Grosso buscam discutir essa proposição.

3. Desenvolvimento da política estadual no contexto das NOB/93 e NOB/96: morfologia do sistema de saúde em Mato Grosso

As Normas Operacionais Básicas (NOB) são instrumentos editados pelo Ministério da Saúde (MS), que regulamentam, de forma universal, o processo de descentralização da gestão nas três esferas de governo. Para tanto, estabelecem condições de gestão às quais os municípios e os Estados se habilitam, segundo a respectiva capacidade, para cumprir os requisitos previamente definidos e de assumir as responsabilidades estabelecidas. Ainda que regulamentem processos graduais de descen-tralização de recursos e de responsabilidades referentes à atenção à saúde, desde o nível central até as esferas sub-nacionais, as NOB’s, por seu caráter universal, não dão conta de questões específicas da realidade tão diferenciada e complexa de quase seis mil municípios brasileiros. Além disso, estudos demonstram que, na saúde, como em outras áreas sociais, a assunção, por parte dos municípios, de responsabilidades decorrentes da descentralização é fortemente influenciada pela política de incenti-vos adotada pelo gestor estadual (Arretche, 1999).

18 A integralidade é diretriz do SUS que pressupõe articulação entre promoção, proteção, recuperação e reabilitação (ver Giovanella et al., 2000).

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A implantação efetiva da descentralização da gestão do SUS, prevista nas NOB’s, no caso de Mato Grosso, foi traduzida e expressada nas linhas gerais da Política de Saúde em Mato Grosso: diretrizes, estra-tégias e projetos prioritários, considerando o plano político da gestão estadual e a realidade institucional setorial dos municípios e do próprio Estado. Nesse sentido, a gestão estadual teve ação pró-ativa em duas direções: na morfologia dos sistemas de saúde (estrutura) e nos mecanismos necessários a sua implanta-ção (organização). No presente estudo, o primeiro aspecto – morfologia do sistema – será discutido a partir da análise da forma de implementação dos conteúdos das NOB’s, referente à partilha de responsabilidades entre Estado e municípios, no desenho dos sistemas locais de saúde. Quanto ao segundo aspecto – mecanismos –, foram estudados os instrumentos que a gestão estadual utilizou, para formalizar os processos da organização regional da atenção no Estado.

No novo modelo proposto pela SES/MT, o papel do município seria de: (i) elaborar a programação municipal de serviços de saúde de baixa e média complexidade; (ii) gerenciar unidades de saúde do seu território; (iii) executar ações básicas de saúde; (iv) garantir a prestação de serviços de saúde em seu território; e (v) avaliar os resultados e desempenho do Sistema Municipal de Saúde (SES/MT, s/data).

No caso de Mato Grosso, avaliações prévias realizadas pelo MS para acompanhar a implantação da descentralização, no tocante ao estabelecido nas NOB’s, demonstram que, no período anterior ao do governo em estudo – ano de 1994, primeiro de vigência da NOB/93 –, a saúde no Estado caracteri-zava-se por forte descentralização da gerência e da gestão para os municípios, com frágil participação estadual nas funções de coordenação do Sistema (MS/SAS, 1995 e 1995a), ou seja, por aquela avalia-ção, embora ocorresse a descentralização em direção aos municípios, a gestão estadual não exercia papel na definição de estratégias, mecanismos e instrumentos, para promover acordos e pactos entre os gestores. Tais acordos eram avaliados como favorecedores da implantação da descentralização e, em consequência dessa lacuna, a municipalização decorria de iniciativa isolada do próprio município sem a coordenação do Estado.19 O governo estadual, que se inicia em 1995, assumiu com a proposta de mudar a condução da descentralização no Estado, ao pretender passar da situação de ausência da gestão estadual para a participação ativa em nível regional, coordenando o processo de programação integrada e o sistema de referência, induzindo e mediando a negociação intergovernamental e ava-liando e controlando os sistemas municipais de saúde e, sobretudo, transformando o espaço regional, estabelecendo relações intergovernamentais com os municípios.20

A habilitação de municípios em MT, nos termos da NOB/93 – com vigência no período de 1994 a 1997 –, tomada aqui como uma expressão da descentralização, apresenta situação típica de acordos prévios entre os gestores, porque todas as habilitações ocorreram nos dois primeiros anos de vigência da NOB/93 (1994 e 1995) e foram, nas condições de gestão incipiente e parcial, menos avançadas. A exceção foi o Município de Cuiabá, capital do Estado, que foi habilitado na condição de gestão semiplena, modalidade mais avançada, o que ocorreu no ano de 1995. Tal situação indica que (i) a adesão à NOB/93 no Estado de Mato Grosso não foi expressiva; (ii) concentrou-se nas condições de gestão menos avançadas; (iii) não evoluiu ao longo da vigência da Norma; e (iv) esteve condicionada

19 De acordo com a tipologia desenvolvida pelo Ministério da Saúde, o modelo de gestão mato-grossense, até 1994, era atomizado, porque cada sistema de saúde municipal desenvolvia-se de forma isolada, não configurando o conjunto dos municípios do Estado um sistema de saúde estadual e, nesse sentido, tal modelo tendia a reforçar as iniquidades históricas dos sistemas locais e regionais de saúde (MS/SAS, 1995).20 Cabe recordar que esse estudo tem, como recorte de tempo, o período compreendido entre o ano de 1995 e o de 2000. Assim, o primeiro mandato do governo estadual em estudo (1995 a 1998) coincide com o período de vigência da NOB/93, com exceção do último ano, quando entrou em vigência a NOB/96, publicada em fins de 1996 e operacionalizada em 1998.

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à rede de serviços existente no território, considerando que apenas a capital, onde se concentram os serviços de saúde, habilitou-se na condição mais avançada de gestão (Tabela 2).

O número de municípios habilitados nos termos da NOB/93 em MT, como mostra a Tabela 2, cor-respondeu a 49% do total de municípios do Estado (19%, na condição incipiente; 29%, na condição parcial e 1%, na semiplena), nos quais residiam 71% da população (9% da população do Estado resi-diam em municípios habilitados na condição incipiente; 42%, na condição de gestão parcial e 20%, na semiplena). Cuiabá foi habilitada em abril de 1995 e, portanto, no início do primeiro mandato do governo estadual em estudo; a partir daí, passou a receber um teto financeiro correspondente a cerca de 32% do total do teto financeiro estadual. Esse último aspecto sinaliza que a rede de serviços existente no território de Cuiabá era referência para uma população maior que a residente naquela cidade (20%) e, por conseguinte, que o acesso a esse tipo de serviço permanecia concentrado na Capital do Estado (Tabela 2).21

TABELA 2 - Habilitação de Municípios na NOB/93 em Mato Grosso, 1994–1997

Fonte: Elaborado com base em informações do MS/SAS, 1997.

Ainda que a habilitação de Estados, nos termos da NOB/93, não tenha significado a efetivação da transferência financeira prevista, alguns habilitaram-se às condições de gestão estabelecidas. Mato Grosso foi um dos poucos que pleiteou e foi habilitado na condição de gestão parcial, em junho de 1994, durante o governo anterior. Embora bastante formal, a habilitação de Estados implicava no cumprimento de uma série de requisitos por parte da gestão estadual: a aprovação do pleito, no âm-bito estadual, pelo Conselho Estadual de Saúde (CES) e pela Comissão Intergestores Bipartite (CIB) e, finalmente, a apresentação do processo ao MS para análise e aprovação na Comissão Intergestores Tripartite (CIT). Todo esse trâmite para a habilitação requeria da gestão estadual ações administra-tivas, as quais, a depender da decisão política, poderiam resultar em mudanças reais, tais como a formulação e a implantação de um Plano Estadual de Saúde (PES), o funcionamento de um Fundo Estadual de Saúde (FES), de um Conselho Estadual de Saúde (CES) e da CIB e, ainda, a implantação de mecanismos e sistemáticas de descentralização.

21 A procedência das internações realizadas na Capital demonstra variação importante entre os anos de 1995 e 1998. Em 1995, 47,9% das internações eram de residentes em Cuiabá e, no ano de 1998, passa a ser 61,6%. O atendimento de residentes em Cuiabá, no Pronto-Socorro, em 1998, corresponde a 82,1% dos atendimentos. Ambos dados são fortes indicativos de melhoria da capacidade de resolução das redes assistenciais do interior do Estado (SES/MT, s/data).

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Em 1996, foi aprovada uma nova NOB, que começou a ser operacionalizada apenas em 1998, por-que, no ano de 1997, na CIT, foi discutido o valor financeiro do piso da atenção básica (PAB) – valor per capita, distribuído pelo governo federal, para a cobertura de catálogo de ações de atenção básica –, definição essencial para a efetivação da habilitação. Esse adiamento compulsório da habilitação marcou um período em que vários Estados, inclusive Mato Grosso, iniciaram a preparação da habili-tação, junto aos municípios, mediante a pactuação de requisitos, ainda que provisórios, para orientar o processo de pleito municipal. 22 Tal preparação resultou que, de modo similar à Norma passada, no primeiro ano de vigência da NOB/96, ocorressem todas as habilitações do Estado. Prevaleceu o acordo e somente a Capital foi habilitada na condição de gestão mais avançada (Tabela 3). Assim, se, por um lado, a habilitação foi ampliada para todos os municípios, por outro, manteve a tendência de concentração na condição de gestão menos avançada (plena da atenção básica), ainda que possa impli-car em mudanças significativas no modelo de atenção e, no caso da regionalização em Mato Grosso, participação efetiva dos municípios na gestão do sistema estadual de saúde.

TABELA 3 - Habilitação de Municípios na NOB/96 em Mato Grosso, 1998–2000

Fonte: Elaborado com base em informações do MS/SAS, 2000.

A avaliação da SES/MT sobre a habilitação, nos termos da NOB/96, é que ela foi distinta da anterior e significou, além de transformações do modelo de atenção, o incremento da oportunidade de par-ticipação social efetivada nas recentes Conferências Municipais de Saúde, que, no processo anterior, não foram realizadas pelos municípios, apesar de habilitados (SES/MT, 2000c). Para a SES/MT, foram também fatores indicativos dos avanços com a descentralização na NOB/96 as mudanças na organização da atenção municipal, ilustradas pela implantação dos Programas de Agentes Comunitá-rios de Saúde (PACS) e de Saúde da Família (PSF) nos municípios.

A avaliação da SES/MT é que, nos termos da NOB/96, a habilitação ocorrida no Estado, em que a Capital esteve na condição plena do sistema municipal e os demais municípios, na plena da atenção básica, foi uma estratégia que se complementou com a organização regionalizada pela via dos consór-cios. Isso, porque municípios habilitados na gestão plena da atenção básica tiveram, assim, condições de realizar as ações básicas no próprio território municipal e contar com referência organizada regio-nalmente e garantida mediante a cooperação intergestores (SES/MT, s/data a). Nessa perspectiva, poder-se-ia considerar que, no caso de Mato Grosso, os programas de atenção comunitária foram

22 Em 1997, o Estado estava organizado em polos regionais; em alguns, havia CIB Regionais (CIBR), que recebiam os pleitos municipais e preparavam parecer para apreciação da CIB estadual, conforme estabeleceu a Resolução CIB/MT 005/97, de 9/5/97 (SES/MT, 2000a).

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potencializados pela organização, em âmbito regional, dos serviços especializados (de referência), por intermédio dos consórcios intermunicipais de saúde.23

No ano de 1999, o Ministério da Saúde realizou nova avaliação do processo de descentralização no SUS, a partir de indicadores de gestão (administrativos, financeiros e de utilização), aplicados a um município de cada Estado brasileiro, geralmente a capital. Nesse estudo, os dados de Mato Grosso, em princípio, apresentam resultados correlacionados à implementação dessa política. Essas mudanças apontam para a execução da política de saúde proposta em 1995, a qual deu nova direção ao processo de descentralização e, portanto, de habilitação. O eixo fundamental foi a ordenação da referência de serviços especializados, de forma regionalizada, com simultânea organização municipal da atenção básica.

Em Mato Grosso, o estudo do Ministério da Saúde mostrou que a Secretaria Municipal de Saúde de Cuiabá, habilitada na condição de gestão plena do sistema municipal, teve a composição do teto para a assistência revista, com o objetivo de incorporar a necessidade de serviços de outros municípios, que permaneciam tendo por referência a rede assistencial sediada na Capital.24 A recomposição do teto de Cuiabá incluiu a programação da referência do interior, definindo melhor a utilização de serviços e de recursos decorrentes da organização regional. Foi constatado que a Capital gerenciava 91% das unidades ambulatoriais existentes no seu território, as quais significam 54,5% da produção ambula-torial total do Estado. As demais unidades ambulatoriais existentes no território da capital estavam sob a gestão estadual, por serem unidades especializadas de referência para o interior do Estado. Quanto à gestão hospitalar, o estudo do MS concluiu que Cuiabá recebia 100% da produção hospi-talar das unidades sediadas no município e, do total de internações realizadas na capital, 64% são de residentes do próprio município.25

Em síntese, segundo a análise referida acima, a descentralização do SUS em Mato Grosso, estudada a partir da gestão da rede e do aspecto financeiro referentes ao Município de Cuiabá, indicou coe-rência entre a condição de habilitação e o desenvolvimento da gestão em si mesma, visto que toda a rede hospitalar e 90% da ambulatorial estão sob gestão municipal. No âmbito ambulatorial, a rede é gerida junto com o Estado, porque a SES/MT permaneceu com a gestão de algumas unidades de referência e de outras, nas quais desenvolvia programas de saúde específicos e, ainda, com a gestão da assistência farmacêutica ambulatorial. O setor ambulatorial é demonstrativo também da dinâmica do processo, em construção, de pactuação e negociação entre os governos. No caso de Mato Grosso, o modelo regionalizado, à medida que vai organizando a referência no interior, gera ajustes no teto da capital, para onde fluía a totalidade das demandas de média e alta complexidade até 1996. Os ajustes

23 A implantação de programas de atenção básica com experiência local virtuosa demanda rede regionalizada, resultante de processos de articulação e negociação entre sistemas locais de saúde, de complexidade crescente para a referência e atenção integral. Outros fatores influem na resolução dos serviços e incluem a composição tecnológica, a qualidade técnica dos profissionais e os recursos disponíveis. A oferta mais próxima e a definição clara de responsabilidades, por nível de atenção e elenco de ações – básico, médio e alta complexidade –, certamente ampliam o alcance dos programas comunitários (Sousa, 2000). Estima-se que o funcionamento adequado de unidades básicas é capaz de resolver 80% das demandas de atenção à saúde. Programas comunitários permitem melhor conhecimento da clientela, acompanhamento de casos, ordenação de encaminhamentos e racionalização do uso de tecnologias. Mesmo com alto grau de resolução, esse nível de atenção requer uma rede de referência para especialidades e leitos.24 Nem todos os níveis de complexidade de serviços estão disponíveis no interior do Estado, considerando inclusive questões de viabilidade e economia de escala aplicáveis também nesse caso. O estudo do Ministério da Saúde parece indicar que os ajustes na pactuação da referência e na composição do teto da capital resultava de melhor organização da prestação de serviços assistenciais no restante do Estado. No entanto, foram mantidos serviços complexos da Capital como referência para todo o Estado.25 Em Seminário sobre a Gestão Estadual do SUS – tendências e perspectivas, realizado pela Secretaria de Políticas da Saúde do MS, em parceria com a Opas, em 1999, o Secretário Estadual de Saúde de Mato Grosso reafirmou as diretrizes da política estadual de saúde em implementação desde 1995 (MS/SPS, 1999b).

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no teto dos recursos ambulatoriais programados para Cuiabá, ocorridos no período de 1998 a 1999, ilustram o deslocamento de recursos financeiros assistenciais para custear a ampliação dos serviços no interior. Tais ajustes tiveram que ser processados, para que a programação da assistência refletisse as melhorias nos serviços locais e regionais.

4. Mecanismos institucionais para a organização regional

Em vista do argumento do presente estudo de que a adoção, pela gestão estadual, de políticas ativas de incentivo promove a assunção, por parte dos municípios, das responsabilidades advindas com a descentralização (Arretche, 1999), interessa identificar, no caso de Mato Grosso, o que – além da proposta política que traduzia para a realidade estadual as normas universais – a gestão estadual pre-cisou pôr em prática para as mudanças que propunha e quais foram de fato as mudanças alcançadas. A pesquisa nos documentos da SES/MT, as entrevistas com diversos atores do Sistema e as visitas de campo permitiram observar que a modalidade de descentralização de Mato Grosso implicava na regionalização de mecanismos e instrumentos – de gestão do sistema, de construção de coalizões e consensos, de cooperação, de planejamento e programação, de regulação e de monitoração da assis-tência – adotados pela SES, em cooperação com os municípios, para promover a organização regional da atenção à saúde.

Tais mecanismos vão sendo adotados em Mato Grosso na lógica regional, e em processo do qual fazem parte os consórcios em saúde: reestruturação do órgão estadual gestor da saúde, a criação de comissões intergestores, a realização da programação integrada, a conformação do sistema de refe-rência e contrarreferência e a organização da auditoria. Quanto aos resultados alcançados, podem ser observados: a ativação de espaços regionais de decisão consoante à política de saúde, a cooperação intermunicipal e o financiamento compartilhados.

A seguir, são apresentados e discutidos, brevemente, cada um dos mecanismos adotados em Mato Grosso no processo de organização regional e a conformação dos consórcios intermunicipais de saúde. A implantação e a evolução de cada mecanismo tiveram tempo e dinâmica diferentes. No entanto, foi possível estabelecer uma vinculação entre eles, no que diz respeito à confluência dos resultados para a organização regional da atenção e do espaço regional de decisão. Esse aspecto ficou evidente na reorganização dos polos regionais e, por isto, será visto em tópico separado, depois da abordagem dos mecanismos. Também será abordado, no contexto da constituição dos consórcios, que, por estar relacionada ao núcleo da pesquisa, será apresentada com maior detalhe.

4.1. Reestruturação do órgão estadual gestor da saúde

Para realizar as mudanças pretendidas na condução do processo de descentralização da gestão, o go-verno do Estado redefiniu as funções e a estrutura organizacional da SES/MT. A gestão estadual operou mudanças nas funções, de modo a redirecionar as suas atividades de coordenação, cooperação, re-distribuição, oferta especializada. As funções que passou a assumir foram de (i) formulação, coorde-nação e fomento da política estadual de saúde; (ii) cooperação para a municipalização e organização dos sistemas municipais; (iii) formação e desenvolvimento de recursos humanos; (iv) redistribuição regional de recursos financeiros com critérios equitativos; (v) condução do processo de construção de novos modelos, que dão prioridade às ações de promoção da saúde e de prevenção, com reorienta-ção da assistência ambulatorial e hospitalar; (vi) garantia da oferta de serviços terciários de referência

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regional e estadual; (vii) controle e avaliação da prestação de serviços públicos e privados; (viii) apoio e realização de pesquisas operacionais e desenvolvimento de tecnologias para a implantação do SUS/MT (SES/MT, 2000f). Assim, foram estruturadas cinco coordenadorias: (i) técnica, (ii) vigilância sanitária e epidemiológica, (iii) planejamento, (iv) administração hospitalar e ambulatorial e (v) ad-ministração financeira (SES/MT, 2000b).

As mudanças no órgão gestor da saúde em MT foram incorporadas ao organograma oficial da SES, a partir da estrutura estabelecida em 1993 (Decreto No 2923) e revista em 1997 (Decreto No 1476), o qual incluiu novos cargos e funções de assessoria ao gabinete e criou a área de planejamento e audi-toria. Em 1998, o Regimento Interno da SES/MT foi aprovado (Decreto No 2636), o qual descrevia as funções dos organismos da estrutura, demonstrando a articulação interna para além da estrutura formal de organogramas. Um ano depois, em 1999, a estrutura da SES/MT foi alterada de forma mais profunda (Decreto No 7236), organizando as funções por processos e incorporando as transfor-mações instituídas pelo Regimento Interno. Além dessa mudança, a organização regional da assistên-cia em processo espelha-se na estrutura da SES, mediante a ampliação da estrutura de administração dos hospitais regionais, com a inclusão das unidades de Cáceres e Rondonópolis às já existentes (de Sorriso e de Colíder). Finalmente, em 2000, é conferida, formalmente, autonomia financeira à SES (Decreto No 1129), com a inclusão do Fundo Estadual de Saúde (FES) no organograma e formaliza também as estruturas dos Polos Regionais de Saúde de Cuiabá, Alta Floresta, Juara, Peixoto Azevedo e Água Boa, totalizando 13 polos (SES/MT, 2000b).26

4.2. Criação das Comissões Intergestores Bipartites Regionais (CIBR)

Com a reestruturação do órgão gestor da saúde em processo, era necessário encaminhar acordos com os governos municipais para pôr em prática as mudanças contidas na política de saúde e, assim, efetivar a descentralização pela via da regionalização.27

Em Mato Grosso, a SES ativou a função desse fórum, estabelecendo seu Regimento Interno e corre-lacionando sua atuação aos temas correspondentes ao desenvolvimento da política estadual (Portaria SES/MT No 085/93; SES/MT, 2000d) e, em seguida, começa a estimular a constituição dessas ins-tâncias de negociação no âmbito regional. A opção de organização de CIB regionais, à semelhança de outros Estados, tinha o intuito de viabilizar a construção de consensos em espaços mais próximos ao municipal e facilitar a descentralização frente à grande extensão territorial. Discutidas nesse fórum, as propostas são assumidas como pactos entre os governos e transformadas em resoluções, isto é, formalizadas por ato específico (entrevista com assessores da SES/MT).

26 No ano de 2000, novo Plano de Carreira da SES/MT – Plano dos Profissionais do SUS – (Lei N.º 7360) sintetiza as dimensões da Política de Recursos Humanos Estadual, institucionalizando mudanças implementadas desde 1995. Entre as quais, admissão por concursos públicos; regularização do quadro de pessoal (em 1995, 65% dos servidores da saúde estavam contratados sem concurso público); capacitação de profissionais; a implantação do Projeto Xamã, de formação de auxiliares de enfermagem indígenas; criação da residência em Saúde da Família: e implantação da Escola de Saúde Pública.27 Desde a NOB/93, Comissões Intergestores foram definidas como espaços privilegiados de formação de consensos para a operacionalização dos sistemas. Formalizadas na NOB/93, foram reforçadas na NOB/96, como organismos colegiados de negociação entre gestores, nos âmbitos federal e estadual. No federal, é constituída, de forma paritária, por representantes do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems), do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e do Ministério da Saúde. No âmbito estadual, é integrada por igual número de representantes do Conselho de Secretários Municipais de Saúde (Cosems) e da SES, em cada Estado da federação. A principal característica desse tipo de fórum é a participação de gestores do sistema de saúde dos respectivos níveis e, portanto, a possibilidade de discussão e de pactuação de aspectos operacionais para a implantação da política de saúde.

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Esse foi o segundo mecanismo utilizado pela gestão estadual, para proporcionar as condições téc-nicas e políticas necessárias. A Resolução CIB/MT No 003/95 deu início ao processo regionalizado de programação, controle e avaliação, no âmbito da atenção ambulatorial e hospitalar, e estabeleceu ainda que a regionalização deveria ser realizada de forma gradual, com a participação da CIB (SES/MT, 2000a). Tal decisão condicionou de forma favorável a pactuação e a participação da CIB/MT na organização regional. Com a aprovação desse modelo, os gestores mato-grossenses decidiam, em última instância, quanto à modalidade de funcionamento dos processos de planejamento, de progra-mação, de avaliação e de controle.

A reorganização da estrutura do órgão gestor estadual em curso e a constituição das CIB regionais consolidam-se no espaço regional, que é incrementado com a realização da programação integrada, a organização do sistema de referência, a execução do controle e avaliação, a reengenharia dos polos de saúde e os consórcios intermunicipais, conforme descrito à frente. Tais processos tanto impulsionam a organização municipal quanto condicionam a articulação intergovernamental nos consórcios e, por fim, favoreceram o avanço da descentralização.

4.3. Realização da Programação Pactuada e Integrada (PPI)

Mais lenta e complexa, a programação integrada da assistência ambulatorial e hospitalar foi o terceiro mecanismo que a SES/MT ativamente utilizou para estimular o processo de descentralização pela via da regionalização.28 No caso de Mato Grosso, a programação das ações ambulatoriais e hospitalares ocorreram em momentos distintos, devido tanto às informações disponíveis para dar base à progra-mação em si mesma, quanto à necessidade de definição e de acordo dos parâmetros para programar a atenção hospitalar e ambulatorial. Algumas características de concepção do Sistema de Informa-ção Ambulatorial do SUS (SIA/SUS), tais como o tipo e a extensão dos dados, a não identificação procedimento-usuário e o nível de agregação, retardaram e tornaram mais complexas, na prática, a eleição de parâmetros para esse nível de assistência.

Quando os parâmetros para a assistência ambulatorial no Estado foram aprovados, começou a ser realizada a programação das ações ambulatoriais no Município de Cuiabá e nas regionais de saúde (Resolução CIB/MT No 007/97). 29 Na CIB, também, os gestores acordaram que tais parâmetros seriam estabelecidos a partir da análise dos dados da produção, no período de setembro de 1995 a setembro de 1996, e com base na antiga Portaria/Inamps No 3046/82, considerando a capacidade instalada e os recursos humanos disponíveis. Como alguns consórcios já estavam atuando no interior do Estado, os gestores decidiram, na CIB/MT, que todos os serviços prestados passariam a constar da programação da assistência, com a indicação da população de referência (SES/MT, 2000a).

Quanto à organização da atenção hospitalar, o processo pareceu mais simples, visto que, apesar de envolver mais recursos financeiros, o Sistema de Informações Hospitalar do SUS (SIH/SUS) dispu-

28 A programação prevista desde a NOB/93 e reforçada na NOB/96 funcionou como um ícone que, ao ser adotado pelos gestores, daria racionalidade na alocação de recursos em face às necessidades (NOB/96, item 9). Coerente com a lógica universalista das normas, foi elaborado um modelo de programação denominado Programação Pactuada e Integrada (PPI), cujo formulário seria aprovado na CIT. Contudo, apesar de esforços de todos, decorridos quatro anos de vigência da NOB/96, não se logrou consenso quanto à forma desse instrumento. Contudo, o processo de programação avançou em vários Estados da federação, os quais desenvolveram instrumentos próprios e os utilizaram para o planejamento da assistência ambulatorial e hospitalar, bem como para a negociação da distribuição dos recursos financeiros federais e estaduais entre os municípios.29 Vale notar que no caput dessa Resolução, está referido que os parâmetros estabelecidos eram para a cobertura ambulatorial e, no Anexo I, constam parâmetros para a cobertura ambulatorial e hospitalar (SES/MT, 2000a).

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nha de acervo de dados sobre esse nível de assistência, favorecendo a discussão e o estabelecimento de parâmetros físicos (quantitativo de ações). No caso de Mato Grosso, já em 1996, foram definidas rotinas e fluxos de referência, mediante resolução da CIB, que dispunha sobre troca de laudos médi-cos por AIH. Essa gerência da atenção hospitalar era feita em âmbito regional com um instrumento precursor da câmara de compensação – embora existissem câmaras nos Polos Regionais de Rondonó-polis e de Cáceres, criadas pela Resolução CIB/MT No 009/95 –, com a participação as CIB e dos municípios que tinham a gerência das AIH, de acordo com a Resolução CIB/MT 002/96 (SES/MT, 2000a).30 Os parâmetros para esse nível de atendimento foram, assim, ajustes de séries históricas e decorreram das negociações e pactos do processo de regionalização da atenção, organização da refe-rência, constituição dos consórcios e definição de tetos.

A aprovação dos parâmetros da atenção ambulatorial e hospitalar forneceu os insumos para o pro-cesso de programação integrada e, no caso de Mato Grosso, a SES optou por realizá-la por meio de grupo técnico, integrado por representantes das CIB regionais, do Cosems/MT, da Fundação de Saúde de Cuiabá (Fusc) e da própria SES/MT.31 Esse grupo foi incumbido, ainda, de apresentar proposta de normalização da referência para a assistência de média e alta complexidade (Resolução CIB/MT No 015/97). No ano seguinte, em 1998, o Estado concluiu a programação da assistência.

O conjunto de resoluções relativas aos diversos mecanismos mostra, fundamentalmente, o dinamis-mo da CIB/MT. A programação é, todavia, um tema de intenso dinamismo e requer ajustes frequen-tes. Assim, a Resolução CIB/MT No 024/98 redefiniu os parâmetros da assistência ambulatorial, por município, com base na população estimada e contemplando a criação de novos municípios. A programação físico-orçamentária da assistência de média e alta complexidade, por sua vez, foi apro-vada pela CIB, que ainda incluiu os critérios para a ficha cadastral dos consórcios intermunicipais de saúde (Resolução CIB/MT No 030/98, de 20 de agosto de 1998). Naquele momento, em vários polos já estavam em operação as câmaras de compensação regionais (SES/MT, 2000a).

4.4. Conformação do Sistema de Referência Estadual (SER)

A programação ascendente e integrada é, potencialmente, um mecanismo que busca equalizar as necessidades dos usuários e a oferta de serviços, frente aos recursos financeiros transferidos pelo nível federal. No caso de Mato Grosso, a programação incluiu os recursos dos municípios e do Esta-do, inclusive as ações realizadas pelos consórcios faziam parte da programação integrada. Além de organizar a atenção ambulatorial e hospitalar, a programação reforçou o modelo de organização da atenção, cujos fundamentos foram a atenção básica assegurada pelos municípios e o atendimento de referência, assegurado de forma regional pelos consórcios.32

30 A gradualidade da implantação da descentralização no SUS permitiu a existência simultânea de situações variadas de gerência (administração) e gestão (política, administrativa e financeira) das cotas hospitalares por parte dos municípios, em decorrência de decisão acordada entre Estado e municípios na CIB. Em alguns casos, foi estabelecido que o município, independentemente da condição de gestão, teria a gerência da cota de AIH, o que significava o conhecimento, por parte de gestor municipal, do número dessas Autorizações destinado para a população municipal e a distribuição entre os prestadores de serviços do território, bem assim a cota de referência. Com respeito a essa última, ao gestor municipal era delegada a responsabilidade de autorizar a emissão da AIH de referência pelas regionais de saúde, a partir de laudos médicos. O processo era denominado gerência, porque não implicava no manejo dos recursos financeiros correspondentes.31 Para a gestão da saúde no Município de Cuiabá, foi constituída pelo governo municipal, há alguns anos, a Fundação de Serviços de Saúde (Fusc).32 A referência a partir dos consórcios tem funcionado ainda com algumas imperfeições, mas representa mudança significativa na busca de leitos de especialidades, na hierarquização e na integração da rede (entrevista com Diretora de Polo Regional).

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Para muitos municípios, a prestação da atenção básica é o nível máximo de escala possível de ser garantido, sendo que a resolução desse nível de atenção fica comprometida, se não há disponibilidade para a referência aos outros níveis mais complexos. Os consórcios encontram sua razão de ser na solução dessa dificuldade comum dos municípios e ocupam função de prover meios para a prestação de serviços mais complexos e especializados em uma região, de acordo com as necessidades definidas na PPI e acordadas na CIBR.33 Era urgente, então, definir fluxos entre os serviços e, para tanto, fazer operar um Sistema Estadual de Referência (SER). 34 O sistema de referência, no caso de MT, objetiva qualificar a prestação de serviços no SUS, mediante a organização do fluxo de pacientes na rede de serviços, interligando os sistemas municipais, regionais e estadual para realizar as ações de atenção básica e comunitária, de controle de enfermidades transmissíveis, de doenças crônico-degenerativas, de assistência especializada e de alta complexidade. As bases da organização da referência foram a programação pactuada e integrada e a sua implantação gradual (SES/MT, 1998 e 2000c).35

As informações da PPI, por sua vez, propiciaram a definição das unidades de referência, por níveis de complexidade, para suporte às prioridades da política estadual, a saber: programas estratégi-cos, enfermidades transmissíveis, enfermidades crônico-degenerativas, especialidades de média e alta complexidade. O Sistema Estadual de Referência (SER) dividiu o Estado em 15 microrregiões, acompanhando a regionalização dos consórcios, as afinidades geopolíticas e as condições de acesso. Em cada microrregião, existe um hospital de referência de natureza estadual, municipal ou filantró-pica, cuja unidade foi priorizada para investimentos, reformas, contratação de pessoal e capacitação, com o objetivo de ampliar a sua resolução e adequar as finalidades, integrando-a ao SER.

As bases institucionais e a criação do SER, com objetivos de reorganizar o fluxo de pacientes na rede de serviços e garantir o atendimento, foram aprovadas na CIB (Resolução CIB/MT No 021/98). Coordenado, controlado e avaliado pela SES e um grupo técnico interinstitucional (GTI), o SER realiza a conferência entre o que foi programado e o realizado – atividades programadas na PPI e a assistência efetivamente prestada – e propõe as correções necessárias para a superação de pro-blemas eventualmente identificados. A regulamentação dos fluxos internos está orientada pelo estabelecido na regulamentação da CIB e dos próprios serviços, sendo os municípios orientados a informar qualquer alteração (inclusão, fechamento ou implementação de serviços), com vistas à atualização permanente do sistema estadual de referência. Para agilizar, as comunicações são via internet (SES/MT, 2000a).

A expressiva redução de encaminhamentos para Cuiabá tem sido indicador positivo da ação do siste-ma de referência, embora existam dificuldades ainda não superadas para o seu pleno funcionamento

33 Os consórcios foram formalizados como instrumento de organização da assistência à saúde no interior do Estado pela Resolução CIB/MT No 021/98 (SES/MT, 2000a).34 Sistema de referência é um artifício decorrente do processo de programação em sistemas de saúde organizados de forma hierarquizada. No caso de Mato Grosso, significa a regulação do atendimento executado fora e dentro do território de origem do paciente para assegurar a atenção integral, os recursos e o pagamento dos custos previstos, mediante a identificação da origem, do serviço prestado e encaminhamento a serviço existente na sede de origem do usuário. O fundamento desse sistema é garantir que o conjunto de serviços de saúde funcione como redes, com porta de entrada e interconexões previamente definidas. As câmaras de compensação são complementares ao sistema de referência, pois a essas compete transferir recursos financeiros entre municípios, após a realização da assistência a usuários, enquanto o sistema de referência normaliza o f luxo de pacientes ou trajetos de recursos para a assistência.35 As referências prioritárias foram: o atendimento de transplantes renais, urgência e emergência, gestante de alto risco e programas específicos da SES/MT (SES/MT, 1998 e SES/MT, 2000c).

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fora da região respectiva.36 Os consórcios de saúde funcionam como centrais de marcação de consultas e de regulação de fluxos em decorrência do sistema de referência, fator que imprime uma lógica hie-rarquizada na organização regional, com definições claras de porta de entrada nos municípios, por intermédio da atenção básica e, na rede estadual, via consórcios (SES/MT, 2000c). Essas definições favorecem a redução de custos, inclusive sociais, porque distribui a demanda de acordo com dispo-nibilidades mais racionais e indica a necessidade de melhorar o grau de resolução de cada região.37

Centrais de marcação e de regulação são formas de controle do uso e da vaga de leitos de referên-cia, bem como da disponibilidade de agenda de consultas e exames especializados, de acordo com o programado e o pactuado entre os gestores. Nas centrais, existe algum tipo de tecnologia (internet, telefone, intranet, rádio), que permite agendar previamente os serviços necessários ao usuário (exa-mes, consultas especializadas ou ocupar leitos). Funcionam como regulação, porque estão sediadas em unidade de maior complexidade regional e controlam a indicação e a oportunidade dos encami-nhamentos para outras unidades mais complexas fora da região, interligando serviços em rede. No caso de Mato Grosso, as unidades dos consórcios exercem esse papel.38

Já a câmara de compensação integra o sistema de referência como instrumento de realocação dos re-cursos financeiros ou para apoiar a organização da atenção regional, porque funciona como meca-nismo de controle financeiro do fluxo de pacientes entre municípios. 39 No caso de Mato Grosso, a câmara de compensação estadual foi criada por resolução da CIB e constituída de parte das cotas municipais, programadas para cobrir atendimentos fora do município de origem; à semelhança da central de marcação, era gerenciada pelo consórcio de saúde, de acordo com a Resolução CIB/MT No 001/98 (SES/MT, 2000a).40 Segundo o estabelecido nessa Resolução, as cotas de internação

36 Um dos fatores de dificuldade apontados foi o limite do número de AIH’s programadas, implantado a partir de 1996, por resoluções da CIB/MT, em atendimento às decisões federais. Impostos de forma gradativa, tais limites forçaram tanto os municípios quanto as unidades aos ajustes às necessidades e à ampliação do grau de resolução de unidades que referenciam pacientes. A busca por maior grau de resolução dos níveis básico e intermediário, aliada ao mecanismo de compensações entre sistemas regionais, foi um meio de alcance do atendimento da necessidade estimada regional. Para isso, o pacto entre municípios e Estado foi um dos instrumentos adotados.37 A central de regulação da referência ambulatorial e hospitalar mais importante é a da rede de serviços próprios, conveniados e contratados de Cuiabá. Criada pela Resolução 31/99, de 16 de agosto de 1999, essa central visa ao acompanhamento e à avaliação permanentes da PPI. Objetiva também controlar a oferta de vagas de leitos, exames e consultas, para integrar as atividades ambulatoriais e hospitalares e atender aos tratamentos fora de domicílio (TFD). Por se tratar de mecanismo para garantir o funcionamento da referência do interior para a capital, a gestão dessa central é compartilhada entre a SES/MT, o Cosems/MT e a Fundação de Saúde de Cuiabá (Fusc) (SES/MT, 2000a).38 Central de marcação, de regulação, de leitos ou de vagas não é um mecanismo previsto em normas do Ministério da Saúde, mas muitos municípios e Estados organizaram a referência dos atendimentos do interior para os centros e polos, utilizando esse mecanismo. Na central, existem listas atualizadas da disponibilidade dos serviços estimados como necessários à população de referência, utilizados no momento de encaminhar pacientes, dispensando, assim, a negociação caso a caso. Na prática, a central regula o encaminhamento de paciente, que passa a ser feito serviço-serviço, com base na programação prévia e disponibilidade atual e não mais na busca espontânea ou errática do usuário.39 Ainda que não estabelecida nas Normas de descentralização, a câmara de compensação foi criada pelos próprios gestores e está presente em vários Estados, respondendo à demanda de regulação dos atendimentos de referência, gerador de copiosos custos sociais. São compostas de cotas de atendimento, que se originam de parte da programação integrada – geralmente aquela correspondente à atenção de média e alta complexidade hospitalar e ambulatorial – que não é atendida no município de origem. Cada cota é trocada na câmara por laudo médico dos municípios de origem e o atendimento prestado é compensado com os recursos previstos nos tetos municipais dos municípios de origem, para cobrir esses tipos de atendimento. Acordos prévios podem definir que parte da cota de referência seja incorporada na programação ao montante do município de atendimento. O conjunto de cotas dos municípios da região compõe, finalmente, a câmara de compensação regional e objetivava garantir o acesso daquelas populações aos atendimentos mais escassos sem necessitar negociação caso a caso. A agenda era via central de vagas e a compensação, posterior ao serviço prestado.40 Resolução CIB/MT No 010/00 dispõe sobre a ampliação da competência dessas Câmaras para a Compensação de Consultas Especializadas, Serviços de Apoio Diagnóstico e Terapia (SADT), órteses, próteses e medicamentos de alto custo, definidos na PPI (SES/MT, 2000a).

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correspondentes aos municípios teriam gerenciamento variado, a depender da disponibilidade de unidade hospitalar no município, do seu grau de resolução e da presença de consórcio.41 A auto-rização de tratamento fora de domicílio (TFD), para fora do Estado, no entanto, seria sempre via câmara de compensação; o controle de fluxo de internação de indígenas, por seu turno, seria es-tabelecido pela Funai e, posteriormente, informado à SES/MT, conforme estabeleceu a Resolução CIB/MT No 003/96 (SES/MT, 2000a).42

4.5. Organização de Câmaras de Auditorias Regionais (CAR)

O Sistema Estadual de Auditoria (SEA) de Mato Grosso foi criado em 1997 e manteve estrutura organizacional e de funcionamento bastante similar às do Sistema Nacional de Auditoria, com fluxos e documentos já instituídos na regulação anterior.43 A Resolução CIB/MT No 006/97 dispõe sobre a implantação das câmaras de auditoria regionais, em municípios ainda sem condições de executar ações de controle, avaliação e auditoria nos serviços de seu território (SES/MT, 2000a). Essas câ-maras seriam compostas por dois representantes da SES e dois do Cosems, mais um suplente de cada uma dessas instâncias, que executam as atividades (quando comprovadas irregularidades na aplicação de recursos, encaminhavam à CIBR para apuração). A SEA, quando constatava a malversação dos recursos públicos, aplicava as sanções previstas em lei. A Resolução CIB/MT No 008/97 define as competências do SEA e da auditoria municipal (SES/MT, 2000a).

4.6. Implantação dos cinco mecanismos: morfologia do espaço regional

A conjunção dos mecanismos vistos acima – reestruturação do organismo gestor, implantação das Comissões Intergestores Bipartites Regionais, elaboração da programação pactuada e integrada, a definição do sistema estadual de referência, a constituição das câmaras de auditoria regional – foram instrumentos facilitadores da reengenharia dos polos regionais de saúde, no processo de organização regional. Essa reengenharia significou tornar os polos atuantes nas novas funções de assessoria, planejamento, gerenciamento, controle e avaliação, como estruturas desconcentradas da SES/MT existentes nas regiões. Para tanto, houve investimento por parte da SES/MT no fortalecimento da capacidade das equipes técnicas, de modo que pudessem prestar cooperação aos municípios, o que propiciou ao Estado o exercício de papel coordenador regional de ações desenvolvidas em conjunto com os muni-cípios, bem como a prática dos incentivos para a descentralização.

Nos polos regionais, foram organizadas pelos municípios, com a assessoria da SES/MT, as Comissões Intergestores Bipartites Regionais. Essas viabilizaram a negociação e a pactuação, que resultaram na discussão e na definição da programação integrada, na implantação das centrais de regulação e das câmaras de compensação, para regular o fluxo regional de pacientes entre os serviços e na organi-zação da câmara regional de auditoria, para a avaliação e o controle dos serviços regionais. Os mu-nicípios de um polo ou microrregião foram ainda estimulados a organizar consórcio em saúde, para,

41 Outra Resolução, CIB/MT No 006/00, dispõe sobre a definição do teto físico do SIH/SUS por municípios em MT, estabelecendo que o teto municipal anual será composto por 7% da população residente, gerenciado pelo município; 1,5% da população residente, gerenciado pela câmara de compensação regional; 0,5% da população residente, gerenciado pela câmara de compensação estadual (SES/MT, 2000a).42 A Resolução CIB/MT No 039/99 estabeleceu as unidades de referência para o atendimento aos indígenas (SES/MT, 2000a).43 Decreto Estadual No. 1473, de 12 de maio de 1997, institui o Sistema Estadual de Auditoria do Sistema Único de Saúde e aprova o regimento de sua atuação junto ao Sistema Nacional de Auditoria do SUS.

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mediante a cooperação, gerar benefícios a todos. Os incentivos foram financeiros, implantação de projetos prioritários, redirecionamento de investimentos e descentralização de recursos. Ademais, a capacitação e o apoio político da SES/MT.

A implantação dos mecanismos para a consecução da política de saúde resultou, em última instância, na construção de novas relações dos municípios entre si, desses com o Estado, com os prestadores e com a sociedade. A Figura 1 busca ilustrar alguns espaços institucionais de negociação, controle e pacto setoriais existentes em uma região, com os respectivos agentes integrantes. A transferência de decisões para espaços regionais pode ser vislumbrada como a possibilidade de ampliar a participação de atores e ativar estruturas de articulação e negociação previstas no SUS, entre outras. As estrutu-ras formais têm composição e função distintas, embora, em muitos casos, sejam os mesmos atores ou combinações diferentes desses. O conselho de saúde segue configurando-se como a instância com representação mais ampliada de segmentos de governo, sociedade e prestadores. A complexidade da negociação regional parece refletir a necessidade crescente de aprofundamento da discussão e da decisão, que a cooperação entre os governos vai impondo.

Figura 1 - Atores e âmbitos de negociação em Saúde, em Mato Grosso, 2000

Finalmente, o funcionamento integrado, no polo regional, dos cinco mecanismos abordados ante-riormente, gerou duas transformações políticas fundamentais no Estado de Mato Grosso: consensos regionais prévios às demandas encaminhadas à gestão estadual e a gerência cooperativa de sistemas. Tais transformações decorrem do fato de que a edição dos mecanismos possibilitaram que os mu-nicípios tivessem espaços reais de discussão e de construção de consensos, para orientar e articular suas demandas à gestão estadual. Desse modo, afastaram, formalmente, a possibilidade de adoção de soluções atomizadas ou isoladas, as quais fragmentam os investimentos no sistema estadual de saúde (Mendes, 1999a).

A gerência cooperativa da atenção de referência pelo conjunto de municípios consorciados resultou em uma forma de regulação interna ao sistema, que se expressou na formalização de compromisso entre os governos. A partir do modelo pactuado, os municípios passam a comprometer-se a garantir,

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no mínimo, a atenção básica em seu território e, em contrapartida, teriam a referência de atendimen-to especializado, definida e garantida pelo consórcio.44 A demanda de cada município por serviços de referência regional indicava, em certa medida, o grau de organização da atenção básica. Como a as-sistência prestada pelo consórcio é previamente programada e custeada pelo conjunto de municípios, o compromisso de cada governo municipal frente ao conjunto de municípios é permanentemente checado, segundo o princípio implícito na cooperação de controle mútuo.45

As transformações geradas com a implantação dos mecanismos descritos implicaram, por fim, na re-composição do tipo e da amplitude das decisões entre os atores local, regional e estadual (Quadro 1). Com a reorganização regional, a discussão, a negociação e a decisão quanto a uma série de atividades foram transferidas para o espaço regional, vindo a conferir mais autonomia e efetividade à descentra-lização. Na representação do Quadro 1, por espaço regional foi entendido o conjunto de municípios junto com o Estado, a SES/MT. Nos cinco aspectos destacados, referentes à organização regional da atenção, observa-se que a maior autonomia de decisão está no âmbito regional.

QUADRO 1 - Autonomia dos Espaços de Decisão, em Mato Grosso, 2000

Fonte: Elaborado com inspiração em Bossert (1998).

Observações: os graus revelam diferenças na extensão da transferência de atributos de decisão em cada ação.

+ Baixa: decide sobre os interesses individuais e necessidades

++ Média: decide sobre aspectos especiais que impliquem o conjunto de necessidades

+++ Alta: decide todos os aspectos referentes a maioria das necessidades.

44 Todos os municípios de Mato Grosso têm Pacs e 89 deles, equipes de saúde da família (ESF); considerando que, de acordo com a população, a maioria dos municípios de Mato Grosso não possui viabilidade para serviços de maior complexidade (Levcovitz, 1997), é esperado que a questão da referência para esse atendimento seja mobilizadora da cooperação intermunicipal.45 A cooperação ocorre, quando agentes se empenham em empreendimento conjunto, para o qual são necessárias ações definidas de cada um, estabelecidas previamente em espécie de contrato, embora o conjunto de regras e acordos possa desenvolver-se no decorrer da interação cooperativa. Em certo sentido, a cooperação leva à monitoração entre os agentes cooperadores das ações, uns dos outros, porque o resultado da cooperação envolve a execução da parte de cada um no contrato. A ação cooperativa inclui, portanto, certo grau de risco e de fragilidade, em que a confiança no cumprimento da regra do jogo pelo outro seria o ingrediente fundamental para contrapor às incertezas. A complexidade sociológica do tema da cooperação, todavia, é ressaltada com a inclusão da questão da confiança. No campo das ciências econômicas, por sua vez, a confiança é equiparada a um recurso, escasso e não reproduzível à vontade. Outras correntes contestam essa posição e demonstram que a confiança não seria como os demais recursos, porque, ao contrário, se esgota se não for usada, e pode ser produzida. Cooperação e confiança interagem permanentemente de variadas formas no cotidiano; contudo, para se obter cooperação, a confiança mútua sempre está implícita. Ainda que a cooperação possa ocorrer sem a confiança, no fim, influencia de modo positivo a confiança. Entre outros motivadores da cooperação está o cálculo, pelos agentes, das perdas, no fracasso da cooperação, nas interações presentes e futuras. (Segundo verbete confiança e cooperação, do Dicionário do Pensamento Social do Século XX Editado por W.Outhwaite e T.Bottomore, Jorge Zahar Editores, RJ, 119 e 120).

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5. Reengenharia dos polos regionais: regionalização da atenção especializada

A proposta política do Estado de Mato Grosso para a implantação da descentralização teve, então, como fundamento, a morfologia (organização) do sistema de saúde, de acordo com os marcos con-tidos na NOB/96, e utilizou mecanismos previstos no SUS, como os consórcios e as instâncias de pactuação, controle e avaliação, para criar alianças em espaços regionais (CIB Regional, PPI, SER e CAR). Ao transferir o planejamento, a regulação e a monitoria do sistema para o âmbito regional, a proposta ativou estruturas promotoras de consensos intergovernamentais e desses, com os presta-dores e a sociedade (CIBR, conselhos municipais e consórcio). A arquitetura dos polos regionais de saúde, por sua vez, teve dois eixos estruturais: a organização da atenção básica, a ser desenvolvida pelo município, e a organização da atenção especializada, a ser compartilhada entre um conjunto de municípios e o Estado, nos consórcios. Cada município, dentro dos marcos do novo modelo, res-ponsabilizar-se-ia pela atenção básica de sua população, valendo-se, para tanto, de programas como o PACS e o PSF. Com a demanda de atenção básica organizada e atendida, restava a organização da referência da atenção especializada - de escala econômica distinta - a qual carecia da cooperação in-tergovernamental e, na modalidade proposta, o instrumento foi o consórcio. Para promover a adesão dos municípios a esses eixos, o Estado destinou incentivos financeiros às prefeituras e conferiu prio-ridade aos investimentos em regiões que abrigavam consórcios.

Se os eixos deram os traços de conformação dos polos, os mecanismos utilizados para fomentar a or-ganização da atenção básica e de referência, tratados anteriormente, forneceram o seu conteúdo. Cria-dos em 1992, por Decreto Estadual, os nove polos existentes até o ano de 2000 atuavam como entes desconcentrados, exercendo funções restritas à distribuição de medicamentos e de vacinas. Até 1995, portanto, os polos não executavam atividades de cooperação técnica com os municípios ou atuavam na organização da atenção à saúde, ainda que estivessem presentes em todo o interior do Estado.46

A transformação desses polos em espaço de decisão concertada, aqui denominada reengenharia, foi um processo ocorrido a partir de 1995, decorrente da implantação da política de saúde estadual, de descentralização pela via da regionalização. Na prática, significou que estruturas desconcentradas do governo estadual fossem reatualizadas com finalidades de supervisão, coordenação e assessoria aos serviços de saúde existentes na região de abrangência. Os polos regionais passaram então a funcionar como sede da articulação e integração intergovernamental (SES/MT, 1998).47

46 A partir de 1995, portanto, para albergar o desenvolvimento da política de saúde, a estrutura dos polos regionais foi revista em face às prioridades de descentralização da gestão assumidas pelo governo, buscando caracterizá-los como instâncias de operacionalização da cooperação para a mudança no sistema. Com a transformação, os polos passavam a assumir, em âmbito regional, atribuições coerentes com a execução e a coordenação de funções da gestão estadual, tais como: (i) a identificação de necessidades de profissionais e realização de capacitação e desenvolvimento de recursos humanos, (ii) a detecção de necessidades de geração de informações para avaliação de desempenho e crítica das ações, (iii) a elaboração de relatórios técnicos e gerenciais, (v) a assessoria para a implantação de consórcios, (vi) a assessoria para a implantação e a implementação de conselhos municipais de saúde, (vii) a participação ativa nas câmaras regionais de compensação de AIH; (viii) e a participação na CIB regional (SES/MT, 1998).47 A SES/MT realizou investimentos para capacitação permanente de equipes lotadas nos polos, para atender, em nível regional, demandas dos municípios, à medida em que assumiam responsabilidades. A partir do polo, a capacitação foi estendida aos governos municipais, consoante à Resolução CIB/MT No 002/97 (SES/MT, 2000a). No mesmo período, foram capacitados conselheiros municipais de saúde e realizada a formação, na lógica de território regional, de auxiliares de enfermagem e outros profissionais de saúde. De acordo com a IV Oficina para Avaliar Prioridades e Repactuar Compromissos Rumo à Gestão Plena da Saúde, realizada pela SES/MT, em abril de 2000, no Projeto de Capacitação de Conselhos de Saúde e Sociedade Civil, foram capacitados 1.642 conselheiros, oriundos de mais de 90% dos municípios de MT (SES/MT, 2000c).

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ARRETCHE, M. T. S. Políticas Sociais no Brasil: descentralização em um Estado federativo. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 14(40):111–141, 1999.

BRASIL. Ministério da Saúde. Relatório Final da 11ª Conferência Nacional de Saúde, Brasília: s/ ed, 2000.

BRASIL. Ministério da Saúde, 1996. Portaria MS/GM 2203 – Norma Operacional Básica do SUS 01/96. Gestão plena com responsabilidade pela gestão do cidadão, 1996.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Assistência à Saúde. Assistência Hospitalar no SUS 1995/1999, Brasília: s/ Ed, 2000.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Assistência à Saúde. Segundo Relatório sobre o Processo de Organização da Gestão da Assistência à Saúde, 1995. mimeo.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Assistência à Saúde. Terceiro Relatório Sobre o Processo de Organização da Gestão da Assistência à Saúde: a Programação Hospitalar Integrada, 1995(a), mimeo.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Assistência à Saúde. Consulta Pública Nº 1 de 08 de dezembro de 2000(c), mimeo.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Assistência à Saúde. Dados da Habilitação NOB/93, 1997. mimeo.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Gestão Estadual do SUS – Tendências e Perspectivas. Relatório Final do Seminário realizado em Brasília, outubro, 1999. mimeo.

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GAZETA MERCANTIL. Balanço Anual, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, novembro de 2000, ano III, N° 3, 2000.

GIOVANELLA, L., LOBATO, L. de V.C., CARVALHO, A. I. de, CONILL, E.M. & CUNHA, E. M. da. Integralidade da Atenção em Sistemas Municipais de Saúde: metodologia de avaliação e intervenção. Relatório de Pesquisa, Programa de Pesquisa Estratégica – Papes – Enp, Fiocruz, Rio de Janeiro, 2000.

GOVERNO DO ESTADO DE MATO GROSSO. Curriculum do Governador Dante Martins de Oliveira disponível em www.mt.gov.br, consultado em março de 2001.

LAVRAS, C. C. C. Relatório Referente às Atividades de Consultoria Desenvolvidas junto à Secretaria de Estado da Saúde de Mato Grosso–Brasil. Projeto Apoio à Reforma do Sistema Único de Saúde Componente Federal, 1999, mimeo.

LEVCOVITZ, E. Transição x consolidação: o dilema estratégico da construção do SUS–um estudo das reformas da política nacional 1974–1996. Tese de Doutorado, Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 1997.

MENDES, E. V. Uma Agenda para a Saúde. São Paulo: Editora Hucitec, 2a edição, 1999(a).

OUTHWAITE, W. e BOTTOMORE, T.. Dicionário do Pensamento Social do Século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1996.

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SECRETARIA DE ESTADO DE SAÚDE DE MATO GROSSO. Avaliação da Política de Saúde do Estado de Mato Grosso–1995/1998, Cuiabá, 2000(c), mimeo.

SECRETARIA DE ESTADO DE SAÚDE DE MATO GROSSO. Plano Estadual de Saúde 2000-2003, Cuiabá: s/ Ed, 2000(d).

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SECRETARIA DE ESTADO DE SAÚDE DE MATO GROSSO. Projeto para a Implementação do Sistema de Microrregionalização de Ações e Serviços de Saúde no Estado de Mato Grosso, 2000, mimeo.

SOUSA, M. F. de. Gestão da Atenção Básica: redefinindo contexto e possibilidades. Divulgação em Saúde para Debate, Número 21:7-14, 2000.

UNIVERSIDADE DE CAMPINAS. Caracterização e tendências da rede urbana do Brasil. Instituto de Economia, Universidade Estadual de Campinas, Coleção Pesquisas 3, v. 1-2, Campinas: s/ed, 1999.

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Para saber mais(Bibliografia complementar)

1. MARTINS, Paulo Henrique. Repensando sociologicamente a noção linear de determinantes sociais. In: PINHEIRO, Roseni; MARTINS, Paulo Henrique (Org.). Avaliação em saúde na perspectiva do usuário: abordagem multicêntrica. Rio de Janeiro: Cepesc, 2009. p. 53-60.

2. ANDRADE, Luis Odorico Monteiro de. Evolução das políticas de saúde no Brasil: do nascimento da saúde pública ao movimento pré-SUS. In: ANDRADE, Luis Odorico Monteiro de. SUS passo a passo: história, regulamentação, financiamento, políticas nacionais. São Paulo: Hucitec, 2007

3. LEVCOVITZ, Eduardo; LIMA, Luciana Dias de; MACHADO, Cristiani Vieira. Política de saúde nos anos 90: relações intergovernamentais e o papel das Normas Operacionais Básicas. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 6, n. 2, p. 269-291, 2001.

4. SCATENA, João Henrique G.; TANAKA, Oswaldo Yoshimi. A descentralização da Saúde no Estado de Mato Grosso, Brasil: financiamento e modelo de atenção. Revista Panamericana de Salud Publica, n. 8, v. 4, p. 242-249, 2000.

5. BRASIL. Ministério da Saúde. Diretrizes operacionais dos Pactos pela Vida, em Defesa do SUS e de Gestão. In: BRASIL. Ministério da Saúde. Pactos pela Saúde 2006. Brasília: MS, 2009. (Coletânea, CD 01: v. 1)

6. BRASIL. Ministério da Saúde. Regulamento dos Pactos pela Vida e de Gestão. In: BRASIL. Ministério da Saúde. Pactos pela Saúde 2006. Brasília: MS, 2009. (Coletânea, CD 01: v. 2)

7. BRASIL. Ministério da Saúde. Regionalização solidária e cooperativa: orientações para sua implementação no SUS. In: BRASIL. Ministério da Saúde. Pactos pela Saúde 2006. Brasília: MS, 2009. (Coletânea, CD 01: v. 3)

8. MATO GROSSO. Secretaria de Estado de Saúde. Leis e Decretos: organização do SUS. Mato Grosso: SES, 2000. (Série Legislação da Saúde em Mato Grosso, 1)

9. BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria/GM n. 399, de 22 de Fevereiro de 2006. Divulga o Pacto pela Saúde 2006 – Consolidação do SUS e aprova as diretrizes operacionais do referido pacto. Brasília: MS, 2006.

10. BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Promoção da Saúde. In: BRASIL. Ministério da Saúde. Pactos pela Saúde 2006. Brasília: MS, 2009. (Coletânea, CD 01: v. 7)

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MÓDULO 2: POLÍTICA E GESTÃO DA SAÚDE NO MUNICÍPIO: A AVALIAÇÃO NA PERSPECTIVA DO

USUÁRIO, TRABALHADOR E GESTOR

2.1 A história viva da saúde no município�� Contextualização e debate sobre a saúde pública no município a partir da década de 1990: aspecto político-

-institucional, legislação da saúde e gestão do sistema municipal de saúde.

�� Construção do mosaico e da história viva a partir da contribuição de informantes-chave.

2.2 Avaliação da gestão municipal na perspectiva do usuário�� A história de vida, saúde e doença de um usuário do SUS de Mato Grosso e como os serviços de saúde do mu-

nicípio se organizam para atender às necessidades/vulneralibilidades vivenciadas. Essa perspectiva do usuário é construída a partir do referencial teórico do Itinerário Terapêutico.

2.3 Avaliação na perspectiva da gestão municipal e dos trabalhadores�� Capacidade institucional das secretarias de saúde para coordenar as funções de planejamento, controle social,

gestão do trabalho e do financiamento da saúde na organização dos serviços de saúde para atender às necessi-dades/vulnerabilidades vivenciadas.

�� Planejamento em saúde: principais conceitos, utilização da Epidemiologia, a programação no nível local e os instrumentos de planejamento e gestão.

�� Política e gestão do trabalho e da educação na saúde: pacto de gestão e as estratégias para implementar mu-danças.

�� Política e gestão do financiamento da saúde: a natureza dos gastos em saúde no Brasil, a regulamentação da Emenda Constitucional n. 29, fontes de financiamento.

�� Participação social na política e gestão da saúde municipal: as origens históricas, o papel político-institucional dos fóruns de conselhos e conferências no contexto da reforma sanitária e como espaço de processamento das demandas populares, promoção do acesso da população às informações e as decisões que configuram a política de saúde.

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TEXTOS BÁSICOS

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ITINERÁRIOS TERAPÊUTICOS DE FAMÍLIAS E REDES PARA O CUIDADO NA CONDIÇÃO CRÔNICA: ALGUMAS EXPERIÊNCIAS1

LAURA FILOMENA SANTOS DE ARAÚJOROSENEY BELLATO

MARILENE HILLER

Neste capítulo apresentamos os conceitos de visibilidade, participação social e aces sibilidade apreen-didos a partir da experiência de adoecimento de pessoas e famílias que vivenciam a condição crônica, por meio de suas narrativas revisitadas do “banco de dados” das pesquisas2 sobre Itinerários Terapêu-ticos (ITs) no contexto do Sistema Único de Saúde (SUS) no Estado de Mato Grosso.

Propomos o Itinerário Terapêutico como tecnologia avaliativa em saúde que permite explicitar as trajetórias de busca, produção e gerenciamento do cuidado para a saúde, empreendidas por pessoas e famílias (BELLATO; ARAÚJO; CASTRO, 2008). A partir dessas trajetórias, pudemos compreen-der as implicações da condição crônica para aqueles que a vivenciam, dando especial destaque para a família como unidade cuidadora, mas também como unidade que demanda cuidado, bem como as diferentes temporalidades dessa condição. É a partir dessas dimensões que discutimos os conceitos orientadores desta obra, quais sejam, a visibilidade, participação social e acessibilidade.

Justificamos a eleição da condição crônica como objeto privilegiado de estudo consideran do que a Organização Mundial da Saúde (OMS, 2002) prevê que, em 2020, essa condição será a primeira causa de incapacidade no mundo e o problema de saúde mais dispendioso para todos os sistemas

1 Publicado originalmente em: ARAÚJO, Laura Filomena Santos de; BELLATO, Roseney; HILLER, Marilene. Itinerários terapêuticos de famílias e redes para o cuidado na condição crônica: algumas experiências. In: PINHEIRO, Roseni; MARTINS, Paulo Henrique. (Org.). Avaliação em saúde na perspectiva do usuário: abordagem Multicêntrica. Rio de Janeiro: CEPESC/IMS-UERJ; Recife: UFPE; São Paulo: ABRASCO, 2009. p. 203-214. Texto resultante da discussão coletiva do Grupo de Pesquisa Enfermagem Saúde e Cidadania no âmbito das pesquisas “BR 163” e “PPSUS” e das reflexões oriundas dos diversos trabalhos nelas produzidos - dissertações de mestrado, trabalhos de conclusão de curso de graduação em Enfermagem, Trabalhos de Conclusão de Bloco de Ensino de Graduação em Enfermagem e Relatórios de Iniciação Científica - acerca dos itinerários terapêuticos de pessoas e famílias que vivenciam a experiência de adoecimento e de cuidado em saúde.2 Pesquisa “Desafios e perspectivas do SUS na atenção à saúde em municípios da área de abrangência da BR 163 no Estado de Mato Grosso”, Edital/CNPq nº 402866/2005-3; e Pesquisa “Avaliação dos múltiplos custos em saúde na perspectiva dos itinerários terapêuticos de famílias e da produção do cuidado em saúde em municípios de Mato Grosso”, Edital PPSUS-MT 2006/FAPEMAT – nº. 010/2006, de “Apoio a projetos de pesquisa para o SUS”. Estas pesquisas foram desenvolvidas pelo “Grupo de Pesquisa Enfermagem, Saúde e Cidadania” (GPESC) da Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal de Mato Grosso (FAEN/UFMT).

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de saúde. Essa situação tende a se agravar ao considerarmos que esses sistemas foram organizados para dar conta dos casos agudos e das necessidades imediatas, o que exige sua urgente reorganiza-ção para atender a essa realidade.

Mattos (2008) diferencia doença crônica e condição crônica, enfatizando que a primeira nos re-mete aos agravos que possuem características de temporalidade, perma nência, incapacidade e dependência; já a segunda, definida no âmbito da OMS, remete a um leque vasto de agravos, nem sempre relacionados entre si, abarcando problemas de saúde persistentes no tempo que reque-rem algum grau de gerenciamento. Para a autora, esta última definição expressa a amplitude do significado do adoecimento para a família, pois, além do cuidado prolongado e a dependência de outro, há a necessida de dos enfrentamentos que a cronicidade impõe. Figueiredo (2009) também distingue estes termos, enfatizando que a doença crônica está mais voltada para uma patologia, à doença propriamente, enquanto condição crônica remete aos aspectos sociais, familiares, dentre outros, para além da doença.

Detemo-nos em estudos do contexto de vida e saúde que priorizem o modo como pessoas e famílias vivenciam o adoecimento e a necessidade de cuidado continuado e prolongado nela implicada. Dessa forma, adotamos o termo condição crônica por enten der que, tendo sua evolução dilatada no tempo ou sendo permanente, essas pessoas que vivenciam tal condição necessitam de cuidado continuado e prolongado, pois ao longo do adoecimento alternam-se, com frequência, períodos de agudização, nomeados como crise por estas pessoas, e períodos de silenciamento da doença, no qual certa es-tabilidade cotidiana se instaura. Entendemos, então, que diferentes temporalidades se configuram nessa experiência, sendo que estes períodos, apresentando-se de forma mais ou menos recorrente, são sempre comprometedores da vida dessas pessoas, dependendo da maneira como as mesmas são acompanhadas e cuidadas pelos profissionais de saúde, bem como do modo como elas mesmas e suas famílias podem gerenciar suas vidas e as dificuldades advindas do adoecimento, produção e ge-renciamento do cuidado cotidiano. Concordamos com Souza (2006), quando afirma que há que se considerar os cuidados específicos que cada agravo requer, sem contudo desconsiderar a existência de um conjunto de proble mas comuns apresentados pelas pessoas em condição crônica, de maneira a implementar políticas de saúde que de fato atendam a suas necessidades.

A análise das implicações da condição crônica permite duas perspectivas: uma ma cro, do sistema de saúde, em termos de como o mesmo se organiza e disponibiliza os seus recursos; outra micro, da dimensão cotidiana das famílias que necessitam geren ciar o cuidado e que empreendem, nesta experiência, itinerários terapêuticos próprios. Entendendo que a primeira perspectiva tem sido mais amplamente foco de estudos, nossa eleição por esta última perspectiva encontra respaldo em Cecílio (2006), quando afirma ser importante analisar como o “micro” e o “macro” se implicam mutuamente e, mais do que um recurso teórico, estas dimensões têm repercussões na organização de nossas práti-cas, no que se refere ao campo da micropolítica, assim como em suas articulações, fluxos e circuitos com a esfera da organização do processo de trabalho, gestão, planejamento e construção de novos saberes e práticas em saúde – componentes da macropolítica em saúde.

Nossos estudos, ao empregarem a abordagem da História de Vida Focal (HVF), operacionalizada pela Entrevista em Profundidade, têm-nos permitido compreender as implicações de diferentes or-dens que a experiência de adoecimento por condição crônica tem para a família, visto a mesma ser a principal gerenciadora dos cuidados requeridos.

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Itinerários terapêuticos de famílias e redes para o

cuidado na condição crônica: algumas experiências

Laura Filomena Santos de A

raujo, Roseney Bellato, Marilene H

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Família como unidade cuidadora e como unidade a ser cuidada na condição crônica

Temos evidenciado a necessidade de dar visibilidade à família como unidade cuida dora primária, para a qual convergem os esforços da busca, produção e gerenciamento do cuidado cotidiano na experiên-cia de adoecimento por condição crônica, bem como os múltiplos custos implicados nesta experiên-cia, tal como vivenciado por Sr. Cravo,3 pai de um jovem com transtorno mental por esquizofrenia:

Óia, eu mais lamento de tudo, de tudo, tudo, eu criei nove filhos e esse aí é o maior problema que vem dando até hoje, porque não há tranquilidade aqui em casa. Do jeito que tá aqui eu e ele sozinho, ele tá ali, porque eu já fui espancado por ele aqui dentro, entendeu? É um perigo que corre, isso aí... [...] É que não há cura, até hoje a medicina num descobriu cura. Então, o que vai se fazer? Hã? [...] Tem que tá pronto toda hora pra nos proteger, a ele, nós aqui o restante da casa [Entrevistadora: O problema que o senhor fala é essa falta de tranquilidade?] É, essa ai não tem a menor dúvida, porque não há isso aí, a gente preocupa demais, demais... Demais da conta. (Banco de Dados Pesquisa PP-SUS, 2008 – entrevista com o Sr. Cravo)

Também consideramos a necessidade de dar visibilidade à família como unidade a ser cuidada, visto que para ela devam convergir os recursos em saúde, não limitados a insumos e serviços, mas que sejam organizadas práticas em redes cuidadoras, com apoios de diferentes ordens ou maté-rias, que possam oferecer certo amparo para que a família seja potente na produção e gestão do cuidado continuado e prolongado que a condição crônica lhe requer. O relato que segue é da mãe deste mesmo jovem acima citado, evidenciando que ela desconhecia o transtorno mental do filho, embora este fosse acompanhado em serviços de saúde, com diversas internações e em tratamento medicamentoso há vários anos, demonstrando carência de apoio à família, no caso, pela falta da informação básica sobre sua doença.

Aí ele [o médico], no dia, ele chamo pra dá alta. Aí deu alta, passou os medicamento. Aí, tudo bem, veio embora. Na terceira vez eu fiquei curiosa, cum que que meu filho tava tratando e eu num sabia que que era. Aí ele, passo os medicamento, cunverso cum a gente. Aí dipois ele levanto e falo: “Tá decidido.” Eu falei: “Dotor, eu quero falar com o senhor” [...] Aí que eu perguntei ele. Falei prele da gestação dele, e tal. Que ele nasceu em casa, que foi, que ele foi um menino que, da turma, ele ando mais depressa, assim, novinho demais. E era um minino dirigente. Mas... nessa idade, na, na sexta série, ele já num quis mais estudá. E eu num sabia porque, que mutivo que era que tinha ni meu filho. Aí que ele foi... foi riscando (ela fazia com o dedo um desenho em “caracol”). E aí falo pra mim: “Olha, o seu filho, ele é esquizofrênico. Ele já nasceu com isso, com esse, esse, pobrema; e mais, os criadores não descobrem enquanto criança, só quando entra na puberdade.” (Banco de Dados Pesquisa PPSUS, 2007 – entrevista com a Sra. Rosa)

O transtorno mental, dentre outras condições que se prolongam no tempo, requer cuidado continu-ado e prolongado; contudo, as narrativas evidenciam que este cuidado, embora também seja ofertado pelo subsistema de cuidado profissional, o é pontualmente. No entanto, o cuidado é cotidianamente desenvolvido pelas próprias pessoas, suas famílias e outros que dele participam de alguma forma, constituindo suas redes para o cuidado nos diferentes subsistemas de cuidado. No sentido de buscar respostas aos problemas de saúde de Nicolas, jovem em condição crônica há mais de um ano por aci-dente motoci clístico, Ágata, sua esposa, evidencia algumas pessoas que participam das redes tecidas por sua família, para atender a demandas de cuidado de diversas ordens:

3 Todos os nomes de pessoas aqui empregados são fictícios, de modo a preservar o anonimato das mesmas.

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[...] Teve a mãe dele também que não podia ficar né, com ele lá no hospital, mas sempre mandava alguém, às vezes ela vinha pra dormir aqui também [...] Sempre quando precisava minha mãe vinha pra cá, então ela teve que largar a casa dela lá e ficar aqui todos os dias comigo, aí imagina pra ela ter que me largar aqui sozinha [...] A sorte que eu tenho uma amiga que o pai dela trabalha numa indústria farmacêutica ele é representante, ele conse guiu bastante medicamento pra gente. [...] Daí o que eles fizeram, eles fizeram uma rifa, arrecadaram dinheiro pra ajudar a gente a comprar remédio, pra gente fazer exame. Um amigo tem a mulher que trabalhava no laboratório, ele sempre disse no que eu precisasse né... dava conta... então tudo isso... ajudou [...] O pastor, ele ia lá, levava muitas palavras mesmo, que acabavam animando ele, né [...] ele sempre deu esse apoio [...] tanto que depois que a gente saiu do hospital, né [...] ele vinha, buscava a gente levava na igreja, quando ele não podia também mandava algum irmão da igreja vir buscar, então isso ajudou bastante mesmo [...] Na igreja a gente fez muito amigos, tem um casal, que eles moram aqui no bairro, eles sempre vêm aqui em casa, ajuda bastante, o Carlos, que é o esposo da Andreia ficou muito amigo do Nicolas, já é casado, tem filho, né, ele dá muito conselho pro Nicolas. (Banco de Dados Pesquisa PPSUS, 2008 – entrevista com a Sra. Ágata)

A narrativa mostra que as redes para o cuidado são “vividas” e movimentadas de acordo com a ne-cessidade do momento, não sendo fixas, mas mutáveis em sua configu ração, demonstrando os movi-mentos mais individuais, reticulados, que acontecem “den tro” e “entre” redes próprias e próximas, são mais efetivos para dar potência ao cuidado familiar. Propomos, assim, que a noção de redes para o cuidado possa vir a ampliar o conceito de participação e movimento social ainda como ideias muito formalizadas, pois desconsideram estes movimentos reticulados que ocorrem no cotidiano das famí-lias em prol de um sujeito coletivo, idealizado e a ser emancipado.

[...] Ajudam, ajudam. Eles ajuda. Meu filho, inclusive, o [refere-se ao filho mais velho], ele todo mês traz a compra pra casa. A compra grossa, como se fala, né. É, compra de mês. Ele traz a compra pra gente, a gente fala o que ta faltando, pra num dexá compra muita coisa. Ele traz. E, e o [refere-se ao outro filho], assumiu a carne [...] A mistura, a mistura. É assim. Aqui é tudo controlado... prá num te...Graças a Deus, eu do muito graças a Deus por isso. Agradeço muito a meu pai por ele me, me, me coloca dessa maneira. Porque eu trabalhava cum Avon, só, só pra mim ir vê minha mãe. E hoje, só é que ajuda... porque muita gente diz assim: ah, mas, mas isso aí é, é uma merreca, num, num, num dá pra ninguém [...] Mas ajuda muito. Que hoje me ajuda a ir vê minha mãe. Que minha mãe mora, perto de Porto Seguro. Eu viajo três dia pra chegar lá. Dia e noite. Eu saio daqui hoje, no tercero dia eu chego lá, viajando dia e noite. E aí, já me ajuda muito, né. (Banco de Dados Pesquisa PPSUS, 2008 – entrevista com a Sra. Rosa)

Redes de sustentação e de apoio para o cuidado, pormenorizadamente discutidas no primeiro capí-tulo de nossa autoria neste livro, mostram em seu desenho a presença de “pessoas-chave”, por nós denominadas “mediadores de redes para o cuidado”, podendo ser profissionais de saúde, pessoas de uma comunidade, ou membros da família. Atuam como “chave” ao abrir os fluxos ou possibilitar acessos ao subsistema de cuidado pro fissional, ou como aqueles que disponibilizam condições para o cuidado, dando certa organicidade à rede de sustentação para o cuidado. Estes diferentes mediadores de redes são apresentados na narrativa da esposa do Sr. Gabriel, na qual familiares e amigos se mobi-lizaram frente ao agravamento de sua condição crônica, para sua transferência do interior do Estado de Mato Grosso e sua intervenção cirúrgica imediata na capital:

[...] assim que eu tenho conhecimento, fiquei sabendo depois... que teve os médicos que tava en-trando em contato com o município, com o prefeito [...] aí a tardezinha eu tive a informação que a prefeitura... inclusive muita gente tava lá batalhando. Não tinha condições e sim que ia solicitar encaminhamento pelo SUS. Que foi o processo que ocorreu aqui dentro [...] foi assim que passamos as 24 horas... estamos passando. Vim atrás de socorro, só isso. (Banco de Dados Pesquisa PPSUS, 2008 – Entrevista à esposa do Sr. Gabriel)

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A narrativa do Sr. Pedro, pessoa em condição crônica com complicação renal e vascular por diabetes mellitus, mostra alguns mediadores, tanto aquele que faz sua ligação com a rede formal de cuidado, como aquele que participa da cotidianidade do cuidado:

[a casa] fica perto do posto. Não fica muito longe não. Fica perto da igrejinha [...] A agente de saúde vai lá [...] É a Francisca que vai avisa todo o mês [...] Todo dia quase ela tá passando. Ela passando lá. Que a Francisca que avisa nós lá. Para nós irmos para a reunião. Ir para lá [E além do seu primo, do seu sobrinho, e a da dona Salete, o senhor tinha mais alguma outra pessoa que te ajudava quando o senhor não estava bem?]. Tinha. Tinha o pessoal lá. Os meus amigos lá que moram lá perto de casa. Muita gente. Os colegas da gente que mora lá perto. O bairro ali é do pessoal que morava ali perto, no bairro da gente. A gente, somos unidos, lá. Eles iam lá ajudar a gente [...] Ajudar, assim, chegar para levar para o hospital, né? Porque a gente não podia, ia, eles arrumavam um carro, arrumava umas coisas para levar para o hospital [...] É meu primo que está lá. Olhando o apartamentinho, um quartinho assim [...] É, ele está olhando lá. Eles ficam olhando lá [...] É ele que fica olhando. Ele que olha lá. Quando ele sai, eu fico olhando o dele também, né? [...] É ele que fica olhando e eu fico olhando o dele. E ele fica olhando o meu também. E as minhas coisas estão tudo lá. A geladeira, essas coisinhas. (Banco de Dados Pesquisa BR 163, 2007 – entrevista com o Sr. Pedro)

Famílias em experiência de adoecimento por condição crônica apresentam necessidades de cuidado para a saúde que extrapolam o recorte “problemas de saúde”, discutido no primeiro capítulo de nossa autoria nesta obra, demandando cuidados de natureza ampla e diversificada. Gerenciar e suprir estas necessidades são exigências cotidianas que se impõem à família, pois ela necessita prover recursos de diversas naturezas que possam compor o cuidado produzido neste lugar. Contudo, neste movimento de busca, custos múltiplos dessas exigências têm incidido sobre as pessoas e famílias, e em geral não se tornam visíveis, pois as análises econômicas do setor saúde são historicamente pautadas no próprio sistema e com base monetária. Entendemos que os múltiplos custos do cui dado familiar na condição crônica extrapolam esta perspectiva de análise, abrangendo as dimensões familiar, profissional, so-cial, afetiva, dentre outras, tais como apontadas por Moisés, adulto jovem em tratamento por hemo-diálise decorrente de insuficiência renal crônica por diabetes mellitus:

[...] Existem várias ópticas né nessa... neste contexto. A primeira é o que é o correto e a outra é o que realmente a gente pode fazer... na época eu consultei com um dos melhores endocrinologistas [...] como todos, que de lá pra cá passaram, e foram vários, eles parecem que têm uma receita, né. Então eles pegam lá, você não pode fazer isso, você não pode fazer aquilo, você não pode fazer aquilo, entrega para o paciente aquele receita pronta, xerocada, certo?! E isso não é certo, e eu comprovei por que cada organismo é um organismo, o meu organismo que às vezes é parecido com o seu, mas não é igual. Então às vezes um pode comer brócolis e outro não pode, você entendeu? [...] E o que aconteceu, passou aquela lista xerocada, eu trabalhava na polícia e você sabe que a polícia é instituição que não te dá tanta liberdade para você fazer as coisas. Então não adiantava alimentação, não adiantava horários determinados. Aí você tem que se alimentar, tem que comer x coisas devagar, beber água nesse período [...] Lá não dava de você fazer nada disso. Mal e mal, mal e mal [...] eles liberavam para eu vir e tomar insulina, também não era o horário certo que eu tinha que tomar, era quando desse. Se eu tava numa ocorrência de homicídio eu não podia sair pra ir vim tomar insulina, mesmo que aquilo ali prejudicasse a minha saúde, né? E eu acho que agravou mais a minha saúde [...] e que acontece, alimentação nesse período era péssima não era ruim, era péssimo o cardápio todos os dias era feijão com perna de boi e arroz... se você quisesse comer beleza, se não você tinha que comprar sua comida! E como que a gente vai comprar comidas todos os dias. (Banco de Dados Pesquisa PPSUS, 2008 – entrevista com o Sr. Moisés)

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A Organização Pan-Americana da Saúde define que necessidades de saúde podem ser “necessidades percebidas”, correspondendo àquelas que se expressam como demanda espontânea por bens ou ser-viços de saúde, bem como “necessidades não percebidas”, ou aquelas que correspondem às definições da autoridade sanitária e, entretanto, não expressas em demanda espontânea por bens ou serviços (OPAS, 2003). Consideramos que existem “necessidades experienciadas” por pessoas e famílias em experiência de adoecimento por condição crônica nem sempre “percebidas” pelos serviços de saúde, pois estes não dispõem de tecnologias/ferramentas sensíveis para perceber, captar e tornar visíveis tais necessidades, dada a racionalidade presente nas suas práticas, saberes e produções que não per-mitem o alcance destas dimensões. Temos, assim, o fenômeno da exclusão que tem lugar no recorte parcial, pela autoridade sanitária, das necessidades das pessoas, o que faz com que se definam estraté-gias de resolutividade também parciais, fragmentares e apenas setorializadas no sistema saúde. Desta forma, os princípios da integralidade e resolutividade deixam de ser atendidos.

A doença, sintetizada na taxonomia “CID-10” da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde, constitui-se como o principal modo de visibilidade das pessoas em experiência de adoecimento para os serviços e seus sistemas de informação, bem como para a medicina, sendo utilizado não apenas para nomear, mas direcionar o olhar profissional à doença e não necessaria-mente à pessoa. Trata-se, então, de estabelecer um recorte clínico às necessidades de saúde, conferindo-lhe uma linguagem que é, ao mesmo tempo, autoexplicativa e sintética, e que não consegue expressar o adoecimento como experiência vivida com uma gama de necessidades cons tantemente renovadas.

As propostas terapêuticas são em geral norteadas pelo CID, e na falta do mesmo, o cuidado profis-sional fica “em suspenso”, mostrando a fragilidade de se construir cuidado em saúde sob a égide de tecnologias com as quais se leem apenas os corpos doentes. Como demonstra a narrativa da família de uma idosa em sofrimento por Alzheimer, e embora haja muitas incertezas em torno dessa doença, o mero recorte clínico não tem contribuído de modo efetivo para a diminuição do sofrimento dessa idosa e sua família.

[...] Paguei pra uma doutora que era especialista. E o diagnóstico foi daí, começou a diagnosticar como Alzheimer. Falo: “ó, sua mãe tem Alzheimer, é, o quadro...” aí junto, fez com a junta médica tal e chegou-se à conclusão de que era Alzheimer. Clinicamente. Segundo eles, é, é, não tem como faze isso, né, um exame de Alzheimer [...] ela foi mora com essa outra irmã minha [...] porque tro-cava muito de médico, muito de psiquiatra, de geriatra. Teve um geriatra que desistiu dela, não sabia o que ela tinha, desistiu dela. Os outros médicos, você chegava, o médico olhava assim: “como vai, dona Ana?” (Banco de Dados Pesquisa PPSUS, 2009 – entrevista com a Sra. Ivete)

E, aí ela, voltando ao processo depressivo, a gente procurou, quando meu pai morreu em 2004 ela já tava com um psiquiatra, ela tomava remédio, nós trocamos de psiquiatra várias vezes, fomos em [...] uns oito psiquiatras aqui [...] dez psiquiatras. É, sempre diagnosticado como depressão. Assim, num sei, se o, se faltou atenção, acho que faltou até mais atenção dos psiquiatras em olha clinicamente, olha é, profissionalmente ali o paciente. (silêncio) E, a gente sempre trocava remédio, sempre troca-va de remédio, trocava de remédio, resolvia uma semana, começava de novo; resolvia uma semana, começava de novo [...] (Banco de Dados Pesquisa PPSUS, 2009 – entrevista com o Sr. Felipe)

Experiência de adoecimento nas diferentes temporalidades da condição crônica – crise e estabilidade/normalidade

A condição crônica transita por diferentes temporalidades, com períodos de agudização e silencia-mento da doença. Os períodos de agudização são, em geral, expressos nas narrativas como “crises”,

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para os quais os esforços familiares não são mais suficientes para gerenciar, na cotidianidade do cui-dado, as manifestações da doença. Estes momentos de crises são relacionados por Dona Rosa, mãe do jovem com transtorno mental:

É, eu ponho, eu coloco lá num copo, tem lá, você pode ver todos os remédios. Eu coloco lá a quanti-nha, ele já sabe, ele já sabe a quantidade certinha. Ele toma, é de manhã e á noite [...] deixa separado, ele que chega, panha e toma. Mas eu tô olhando ele tomá [...] Fico de olho, é. Mas ele, ele conscientizo, que teve uma época que ele num tava conscientizado de toma os remédio [...] É, quando ele arruinava, eu pudia ir vê, que o remédio tava sobrano ou que tava vazano. É porque ele, dexo de tomá. Então ele arruinava [...] Já, que ele priciso volta lá pro hospital, teve que leva correno pra lá [...] A crise dele é saí andando. Um dia ele saiu aqui que eu, sumiu [...] ele já teve várias agressividade [...] depois a gente ia lá, dizia, você num tá tomando remédio. Pois então ele levava ou então fazia toma. Aí ele, calmava mais [...] (Banco de Dados Pesquisa PPSUS, 2008 – entrevista com a Sra. Rosa)

Diversos Itinerários Terapêuticos demonstram que, nesses tempos de “crises”, pessoas e famílias im-primem um ritmo frenético às suas trajetórias de busca por cuidado no subsistema profissional, pois a doença se exacerba em sua manifestação sintomática e requer intervenção profissional.

Particularmente no transtorno mental, esses momentos de crise repetidamente fogem do âmbito da instituição saúde, e nas narrativas de familiares, outros setores, como a polícia, são acionados nem sempre pela própria família. Dada a representação social de periculo sidade que estes doentes têm e a inabilidade para o cuidado por parte dos profissionais, geralmente o cuidado se reduz às medidas de contensão, medicamentosa ou por força bruta. A representação social de perigo desses doentes leva à indistinção com a margina lidade. Essa situação é mostrada, de modo dramático, na narrativa do filho de dona Ana, idosa com Alzheimer que, durante uma das crises de sua mãe, nos relata o diálogo tenso travado por ele com profissionais de saúde e policiais, ao tentar acalmá-la em seu delírio, ao mesmo que tempo em que impede as medidas costumeiras de contenção:

Aí foi domando ela, deitei ela no sofá aí fico lá, comecei fazer carinho nela, ela chorando ia acalman-do, mas deitada ali, calma, comigo. Abraçada comigo. E eu tô lá e nisso a polícia chegou: “Não, nós viemos aqui num sei o quê”. Chegou junto já com o SAMU. A menina: “Aí, que que tá acontecendo, que que tá acontecendo? Chamaram porque ela teve uma crise...” Né, nem lembro o termo que ela usou lá. Aí já chegou: “A senhora tomou o remedinho da senhora hoje? A senhora já tomou o remé-dio?” Eu disse: “Olha, ela já tomou o remédio dela tá”. Aí o policial viu que num era nada daquilo, foi embora. Falou: “Não, porque chamaram a gente pra, acharam que tava batendo aí”. O senhor pode olhar aí e ver que num tem nada. O senhor tá dispensado. Aí a menina do SAMU queria leva, né, falou: “Chamou, tal, houve um chamado... Eu vou aplica um remédio nela agora na veia”. Falei: “Não, cê num vai aplicá nada!”. Falei: “porque que cê vai aplicá? O que que cê vai aplicá?”. “Não, é um remédio pra ela acalmá”. “Tá, mas que remédio?”. “Não, é um remédio pra ela acalmá”. Ela não quis me fala o nome. Falei: “Não, cê num vai aplicá nada!”. “Que que é? É um diazepam, lorazepam? Se for isso aí, num adianta! Cê vai dopa minha mãe pra ela fica mais calma, isso aqui eu já tô fazendo! Só que eu tô fazendo do meu jeito! Aqui ó, ela já tá acalmando! Cê num vai aplicá nada nela não!”. “Ah, mas é porque eu tenho que aplicar porque aí eu ia levar ela aí...”. Falei: “não, tudo bem, mas aí cê vai leva ela para onde?”. “Ah, vai pro [hospital psiquiátrico público]. [...] Falei pra ela: “oh, cê vai me desculpá, mas cê num vai levá um psiquiatra no [hospital psiquiátrico público] [...] cê vai querer deixá ela lá internada num vai adiantá nada. Então deixa que eu vô ficá com ela aqui abraçado com ela aqui, acalma ela e depois eu vô vê o que nós vamos fazer”. (Banco de Dados Pesquisa PPSUS, 2009 – entrevista com o filho da Sra. Ana)

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Já os períodos de estabilidade da doença crônica são expressos como “silenciamento” ou “normali-dade”, traduzidos como períodos em que os esforços de busca por serviços de saúde e/ou cuidados profissionais se tornam mais esporádicos e, quando ocorrem, são rotineiramente realizados de acor-do com o modo de organização da oferta de insumos pelos serviços de saúde, tais como a medicação mensal, imprimindo ritmo de rotina a esta busca.

Ser uma pessoa normal eu acho que... é poder fazer tudo sem... sem ter o tempo definido pra você parar. Você... um exemplo clássico é você pode viajar, se você quiser sair, viajar, amanhã você sai, e depois que a gente começa a [hemodiálise], você não pode sai assim [aumenta entonação da voz] você tem um tempo certo para você vim, entrar na máquina, sai da máquina, então de repente a normalidade é você pode fazer é... é o que você quiser e na hora que você quiser, mesmo... mesmo sendo diabético, diabético e insulinodependente, eu só tenho horário de tomar insulina, mas você pode carregar a insulina no bolso [aumenta entonação da voz]. Então você pode viajar e a hora que for o horário da insulina você para, tira do bolso, aplica, quer dizer, por ser diabético e insulino-dependente não é que tira um pouco a liberdade. Na verdade é... é tira a...a privacidade, né, mas liberdade você tem, agora quando você é renal crônico e tem que ter a... a hemodiálise, tal, tem que vim para a máquina, você já predetermina o horário que você tem que ficar ali, então você tem que viver em função daquilo. Então eu acho que isso pra mim que era ser normal, mesmo sendo diabético, eu podia fazer o que eu queria, na hora que eu queria, podia viajar, podia é... sair com os amigos, a qualquer hora, né, e a qualquer dia e depois que eu comecei a fazer diálise eu tenho que só fazer essas coisas limitadamente quando não estiver na máquina. (Banco de Dados Pesquisa PPSUS, 2008 – entrevista com o Sr. Moisés)

O relato nos mostra que, para o Sr. Moisés, a “doença”, como uma entidade mórbida tratável, existe quando ela promove restrição na sua vida cotidiana, da mesma forma que a “dor”, como sofrimento físico, é mais intensamente sentida quando esta restrição também se faz presente. Senão, a doença parece “entrar no rol dos sofrimentos próprios do viver e do estar vivo”.

As diferentes temporalidades da doença crônica expressam exigências diferenciadas de produção do cuidado pelos serviços de saúde e pela família. Parece-nos que, nos períodos de “normalidade”, a busca por cuidado profissional se faz em ritmo mais esporádico e/ou rotineiro; já o cuidado é exigido da família de modo continuado e prolongado, sendo incorporado à cotidianidade marcando os ritmos familiares. Esta normalidade é rompida por algo novo, “a crise”, que exige novos fluxos de esforços que, embora possam ser temporários, levam à necessidade de uma profunda reordenação da coti-dianidade familiar para que novos ritmos e modos de cuidado sejam realizados (BELLATO, 2001).

Neste momento, também se intensificam as trajetórias de busca fora do subsistema familiar de cui-dado. Estas diferentes temporalidades da condição crônica trazem impli cações ao modo como as pessoas e famílias buscam, produzem e gerenciam o cuidado, bem como ao modo como o sistema de saúde organiza e disponibiliza a atenção.

Para o sistema de saúde, a fase de agudização é voltada ao evento doença, tal como na crise cetoacidó-tica da pessoa com diabetes, para a qual a dimensão da integração dos serviços é essencial no alcance do princípio da integralidade. Práticas devem ser organizadas para que as intervenções profissionais sejam acessadas nos diferentes níveis da atenção, montando um eficiente sistema de regulação que gerencie estes momentos de crise. Entendemos que a resolutividade, nesta situação, é da ordem da responsabilidade de gestão em sua capacidade de organizar uma linha de produção de cuidados, não so mente de intervenções profissionais, seja inter ou intra-institucional, tal como apontado por Fi-gueiredo (2009) e Almeida et al (2009).

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Na fase de silenciamento/normalidade, a experiência de adoecer, produzir e gerenciar cuidado é co-tidianamente engendrada pela própria pessoa e sua família, sustentada e/ou apoiada pelas redes que são capazes de tecer. Nesse período, a integralidade da atenção parece estar pautada na possibilidade dos serviços de produzirem e disponibilizarem práticas profissionais cuidadoras, ainda que mais fo-calizadas (CECÍLIO, 2006), mas que tenham como finalidade o apoio à família em seu “empreendi-mento” do cuidado continuado e prolongado, sendo este cuidado familiar da mais variada natureza. A resolutividade se apoia em práticas cuidadoras que não podem ser padronizadas ou protocolares, pois construídas “no” e “do” encontro profissional-sujeito do cuidado, a partir do reconhecimento do modo da família de produzir e gerenciar cuidado em seus rituais próprios.

Em momentos de crise, as pessoas, ao buscarem o subsistema profissional de cuida do, recortam ne-cessidades que são de natureza eminentemente clínico-biológica e, nesta situação, a acessibilidade se mostra, ainda, de forte cunho clínico, pois sendo esta a natureza da necessidade também recortada pelos profissionais, suas ações são em geral protocolares, definidas clinicamente. Em momentos de silenciamento/normalidade, a acessibilidade deve ser garantida não apenas com o objetivo de ob-ter insumos como, por exemplo, a dispensação da medicação mensal, mas também com ações que apoiem a manutenção do cuidado pessoal e familiar. A centralidade na terapêutica medicamentosa e especialidades médicas é narrada pelo Sr. Pedro, pessoa com diabetes mellitus que tem seu IT marca-do por complicações da doença, talvez decorrentes dessa centralidade.

Ela [agente comunitária de saúde] me encaminhava para o médico. E o médico ia e me mandava ir para o posto, lá. Lá no posto lá para pegar remédio. Pegar insulina. Pegar os remedinhos de saúde [...] O outro pega no Regional [hospital público], porque lá aonde a gente está não tem insulina. É pegar a insulina no posto central. Rapaz! Eles só fizeram só olhavam, olhavam, olhavam o meu pé, tudinho e direitinho, mas não conseguiram nada ainda. Não conseguiram nada. Aí que eles me mandaram para eu vir cá. Fizeram exames e me mandaram vir para cá sobre o pé e o problema de rins. Fui pro hospital regional. Passei cinco dias lá [...] Passei cinco dias lá. E cinco dias. Cinco dias e uma noite. Fui uma noite que eu fui para lá. E aí eles, o japonês [médico] não resolveu nada. É porque lá não tem especialista. Tem que pegar especialista aqui [capital do Estado] para problema de osso, aí, né? E lá não tem. Lá no Regional, lá não tem especialista para osso. (Banco de Dados Pesquisa BR 163, 2007 – entrevista com o Sr. Pedro)

Nessas diferentes temporalidades da condição crônica, os estudos de ITs evidenciam a importância de serviços e profissionais saúde virem a fazer parte da rede de apoio que estas pessoas tecem, por meio da capacidade de estabelecerem o vínculo com a família, acolhendo suas demandas para poderem produzir e gerenciar o cuidado continuado e prolongado para o cuidado familiar. Em nossa compre-ensão, a acessibilidade constrói-se nesta tessitura de rede de apoio, da qual os profissionais devem fazer trazendo elementos qualificadores e facilitadores do cuidado familiar.

Como apontado na discussão teórica feita por nós, o conceito de resolutividade, ainda que de forte cunho profissional-centrado, precisa ser ampliado para a ideia de “resolução” que as pessoas e famí-lias trazem, por incorporar os momentos de crise e normalidade da condição crônica, bem como os diferentes cuidados e empreendimentos de buscas que marcam suas trajetórias pelos subsistemas de cuidado. Para essas pessoas, a resolutividade do cuidado profissional vai sendo construída ao longo de sua experiên cia de adoecimento, não como um produto final, mas focalizada em cada percurso que compõe sua trajetória. Consideramos que a resolutividade das respostas que estas pessoas vão obtendo para seus problemas de saúde podem ser analisadas no modo como cada serviço/profissional de saúde possibilitou ou não, e em que medida.

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A análise do IT de pessoas e famílias em experiência de adoecimento tem possibilitado este “mape-amento da resolutividade focalizada”, bem como captar o movimento dessas pessoas na intrincada rede hierarquizada e formalizada do SUS e o modo como ela pode ser capilarizada no desenho das redes para o cuidado, quanto a seus estrangulamentos que emperram fluxos e impedem a integrali-dade e resolutividade em saúde.

O (des)apoio por parte dos serviços e profissionais de saúde, assim como a ausência de sua resoluti-vidade, intensificam os desgastes e dispêndios das pessoas e famílias em experiência de adoecimento por condição crônica, gerando desperdícios de seu potencial cuidador, decorrentes das exigências e sofrimento do próprio adoecimento e, especial mente, por tudo aquilo que passa a ser “mal susten-tado”. Ao empreenderem trajetórias de busca por cuidado, as pessoas e famílias almejam ter saúde, como um bem no sen tido de um valor inalienável, agregador de outros bens para a vida, constituin-do-se em direito de cidadania.

Considerações finais

Temos defendido a ideia da centralidade da família na experiência de adoecimento por condição crônica de um ou mais de seus membros, por entendermos que, na maioria das vezes, o cuidado não é individualmente produzido, mas engendrado no coletivo, seja este formado por pessoas com laços consanguíneos e/ou afetivos, ou com proximidade física que a coabitação permite. Desta forma, privilegiamos a vivência do cuidado familiar, segundo a perspectiva de compreensão das pessoas adoecidas e daquelas que compartilham essa experiência. Não nos detivemos a definir “família”, visto não ser este nosso objetivo, mas pudemos apreendê-la em conformações e dinamicidades próprias, mutáveis no tem po e espaço, ao longo da experiência de adoecimento e cuidado. Especialmente quando esta experiência envolve certa permanência, como é o caso da condição crônica, impõe à pessoa adoecida e sua família graus diversos de dependência do cuidado de outrem, sejam esses “ou-tros” a própria família, os vizinhos, a comunidade, os serviços de saúde e seus profissionais, dentre as redes tecidas para buscar, produzir e gerenciar o cuidado em saúde, tal como temos evidenciado nos estudos sobre Itinerários Terapêuticos.

Estas redes para o cuidado em saúde podem ser apreendidas a partir do Itinerário Terapêutico, como tecnologia que permite dar visibilidade à experiência de adoecimento e cuidado familiar, através de seus desenhos analisadores – das trajetórias de busca por cuidado, do genograma e do ecomapa – que expressam a composição, a dinamicidade e os rearranjos dessas redes, bem como seus mediadores nessa tessitura.

Nossos estudos sobre a experiência de adoecimento e, nela, a exigência do cuidado continuado e prolongado, indicam a necessidade de rediscutirmos o próprio conceito de integralidade, a partir de uma perspectiva centrada no usuário para outra que consiga abarcar as redes para o cuidado, sendo a família o núcleo cuidador mais próximo.

Referências ALMEIDA, Karla G. de A. Linha de Produção de Intervenções (LPI) - uma tecnologia avaliativa em saúde sob a perspectiva da integralidade da atenção. In: SEMINÁRIO NACIONAL DE PESQUISA EM EN FERMAGEM, 15., 2009, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: ABEN, 2009. 1 CD-ROM.

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cuidado na condição crônica: algumas experiências

Laura Filomena Santos de A

raujo, Roseney Bellato, Marilene H

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BELLATO, Roseney; ARAUJO, Laura F. S.; CASTRO, Phaedra. O itinerário terapêutico como uma tec nologia avaliativa da integralidade em saúde. In: PINHEIRO, R.; SILVA JÚNIOR, A. G.; MATTOS, R. A. de. (orgs.). Atenção básica e integralidade: contribuições para estudos de práticas avaliativas em saúde. 1ª ed. Rio de Janeiro: Cepesc, 2008. p. 167-185.

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MATTOS, Magda. A experiência em família pelo adoecimento por diabetes mellitus e doença renal crônica em tratamento por hemodiálise. 2008. 170p. Dissertação (Mestrado em Enfermagem) – Curso de Pós-Graduação em Enfermagem. Universidade Federal de Mato Grosso, Faculdade de Enfermagem, Cuiabá. 2008.

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ITINERÁRIOS TERAPÊUTICOS DE FAMÍLIAS E REDES PARA O CUIDADO NA CONDIÇÃO CRÔNICA: ALGUNS PRESSUPOSTOS 1

ROSENEY BELLATOLAURA FILOMENA SANTOS DE ARAÚJO

ANA PAULA SILVA DE FARIAALDENAN LIMA RIBEIRO CORREA DA COSTA

SONIA AYAKO TAO MARUYAMA

O Grupo de Pesquisa “Enfermagem, Saúde e Cidadania” (GPESC) da Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal de Mato Grosso (FAEN/UFMT) vem realizando estudos e pesquisas sobre a experiência de adoecimento e busca por cuidados para saúde de pessoas e famílias no contexto do Sistema Único de Saúde (SUS) no Estado de Mato Grosso. Nessas pesquisas, desenvolvemos dife-rentes abordagens teórico-metodológicas em torno da concepção de pessoas e famílias como agentes qualificadores das práticas em saúde, dentre as quais o desenho de Itinerários Terapêuticos (ITs), que descrevem a expe riência de adoecimento e os percursos de busca por cuidados para a saúde empre-endidos por essas pessoas nos diferentes subsistemas de cuidado, com ênfase na rede de serviços de saúde do SUS em Mato Grosso/Brasil e no adoecimento por condição crônica.

Partindo da definição de “condição crônica” trazida pela Organização Mundial da Saúde (OMS, 2002) ao tratar dos cuidados inovadores, nossos estudos, com base na vivência de adoecimento, mos-tram características próprias desta condição que precisam ser consideradas. Nossa proposição acerca da condição crônica tem como base a pers pectiva da vivência da mesma por pessoas e famílias, e de como isto afeta suas vidas, entendendo que são elas que podem trazer sentidos a esta noção. Temos evidenciado que a condição crônica exige cuidado continuado e prolongado e que esse cuidado é, via de regra, produzido e gerenciado pela família e as rede para o cuidado tecidas por elas, sendo que os serviços e profissionais de saúde participam dessa experiência de modo mais pontual e em momen-tos específicos, particularmente naqueles em que a doença se manifesta em exacerbação de sinais e sintomas, marcando o que as pessoas denominam de “crise”, e que os profissionais evidenciam como

1 Publicado originalmente em: BELLATO, Roseney; ARAÚJO, Laura Filomena Santos de; FARIA, Ana Paula Silva de; COSTA, Aldenan Lima Ribeiro Correa da; MARUYAMA, Sonia Ayako Tao. Itinerários terapêuticos de famílias e redes para o cuidado na condição crônica: alguns pressupostos. In: PINHEIRO, Roseni; MARTINS, Paulo Henrique (Orgs.). Avaliação em saúde na perspectiva do usuário: abordagem multicêntrica. Rio de Janeiro: CEPESC/IMS-UERJ; Recife: UFPE; São Paulo: ABRASCO, 2009. p. 187-194. Pesquisa “Desafios e perspectivas do SUS na atenção à saúde em municípios da área de abrangência da BR163 no Estado de Mato Grosso”, Edital/CNPq nº 402866/2005-3; e Pesquisa “Avaliação dos múltiplos custos em saúde na perspectiva dos itinerários terapêuticos de famílias e da produção do cuidado em saúde em municípios de Mato Grosso”, Edital PPSUS-MT 2006/FAPEMAT – Nº. 010/2006, de “Apoio a projetos de pesquisa para o SUS”.

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agudização. Mas, em seu movimento, a condição crônica também comporta períodos de “silencia-mento”, ou “normalidade”, como afirmam as pessoas, nos quais certa estabilidade parece ser viven-ciada. Nesses períodos, com buscas por serviços e profissionais menos intensas, o cuidado familiar é central e demanda acompanhamento à pessoa adoecida, instaurando no cotidiano outros modos de andar a vida nem sempre fáceis.

Cuidados para saúde são, aqui, tomados como cuidados de modo amplo, uma vez que as trajetórias empreendidas por pessoas e famílias têm sido motivadas por necessidades de saúde das mais variadas naturezas. Esses cuidados são buscados onde elas possam encontrar resolução para suas necessidades, empreendendo buscas que não se restringem a um “dado lugar institucional” formalizado, no caso, pelo SUS/MT. Sendo assim, cuidados “para a saúde” são todos aqueles que expressam uma finalida-de, ou têm, como termo, a saúde em sua promoção, prevenção, preservação e recuperação.

Diferenciamos problema de saúde como um recorte no âmbito das necessidades de saúde, sendo este segundo termo tudo aquilo que é vivenciado, por pessoas e famílias, como “falta” ou “carência” – de condições, de meios, de instrumentos – nem sempre identificável, no sentido de pontuada por elas, para que possam cuidar de sua saúde a partir de sua lógica. Tais necessidades nem sempre são visi-bilizadas pelo subsistema de cuidado profissional ou constituinte de demanda. “Problema de saúde” parece ser um recorte, a partir das neces sidades, feito pelas pessoas ao demandarem o sistema de cuidado profissional, com base no reconhecimento daquilo que o serviço de saúde organiza e dispo-nibiliza como oferta de atenção. Assim, “problema de saúde” encontra certa reciprocidade de senti-dos entre usuários e profissionais, sendo estes sentidos cunhados nas práticas cotidianas profissionais, bem como na capacidade de resolutividade dos serviços de saúde.

O IT é definido por nós como trajetórias de busca, produção e gerenciamento do cuidado para saúde, empreendidas por pessoas e famílias seguindo uma lógica própria, tecida nas múltiplas redes para o cuidado em saúde, de sustentação e de apoio, que pos sam lhes dar certa sustentabilidade na experi-ência de adoecimento. Comporta, também, como os serviços de saúde produzem e disponibilizam cuidados, segundo sua própria lógica, e atendem, em certo modo e medida, às necessidades de saúde destas pessoas e famílias (BELLATO; ARAÚJO; CASTRO, 2008).

O IT é um analisador das trajetórias do cuidado para saúde, permitindo observar em quais espaços do SUS o usuário encontrou a resolução buscada, bem como apreen der a produção de sentidos na ex-periência de adoecimento de pessoas e famílias. Neste sentido, possibilita compreender como se deu o processo de adoecimento e a busca por cuidados, como a experiência foi interpretada pela própria pessoa e família, o significado que o evento tem em suas vidas, uma vez que a vivência do evento tem por referência os contextos socioculturais que compartilham no seu processo de socialização, bem como as perspectivas de vida delineadas por elas.

O IT tem sido por nós considerado uma tecnologia avaliativa em saúde (BELLATO; ARAUJO; CAS-TRO, 2008) que privilegia a experiência de adoecimento e busca por cuidados de pessoas e famílias, na perspectiva de sua lógica nesta experiência e busca, bem como o modo de os serviços de saúde disponibilizarem a produção de cuidados a estas. No âmbito das discussões fomentadas pelo LAPPIS, o IT é tido como tecnologia avaliativa “centrada no usuário”, pois é sustentado por metodologias que privilegiam a apreensão das vivências e lógicas das pessoas e famílias em experiência de adoecimento e cuidado, permitindo emergir suas interpretações e sentidos tecidos nesse processo. Embora comparti-lhem valores e crenças socialmente construídas, é muito singular a “teia” de significados tecida, pois es-

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cuidado na condição crônica: alguns pressupostosRoseney Bellato et al.

ses são constantemente ressignificados ao longo da experiência de adoecimento. São metodologias que permitem, também, apreender o modo como os serviços de saúde produzem respostas mais ou menos resolutivas e integrais às suas necessidades de saúde, tendo como referência os sentidos atribuídos pelas pessoas e famílias à atenção em saúde recebida em cada instituição. Como tecnologia avaliativa centrada no usuário, o IT permite avançar na compreensão dos sentidos da integralidade e resolutividade no SUS, a partir de quem vivencia a necessidade de saúde, gerenciando ao mesmo tempo seu cuidado.

Utilizamos os termos “pessoas” e “famílias” ao conceituar IT, pois em nossos estudos a família tem-se apresentado como elemento central na busca, produção e gerenciamento do cuidado. Além disso, as trajetórias empreendidas para que o cuidado se concreti ze acontecem em diferentes subsistemas de cuidado – profissional, popular e familiar (Kleinman, 1988 apud NABÃO 2008), nos quais a designa-ção “pessoa” parece-nos mais adequada, pois, nesta perspectiva, o cuidado integra contextos sociais e culturais, os quais não podem ser dissociados da experiência de adoecimento, e pode ser visualizado quando utilizamos o IT. Já o termo “usuário” é utilizado para especificar o IT como tecnologia avaliativa do sistema formal SUS, na perspectiva de seus “usuários”, trazendo a lógica destes como olhar privile-giado para compreendermos a produção e disponibilização da oferta da atenção profissional em saúde.

Dentre as diversas possibilidades avaliativas do IT, está sua capacidade de mostrar as trajetórias de usuários pelas diversas instituições e serviços do Estado e município(s) nos diferentes níveis de aten-ção, os profissionais de saúde que os atenderam e a capacidade de resolutividade em cada um. Revela, assim, o movimento desses usuários nos espaços cotidianos e formais do SUS onde buscam resolução para suas necessidades de saúde, neles constituindo redes para o cuidado em saúde.

Entendemos que lógicas diferenciadas constroem a noção de resolução e resolutivida de, pois en-quanto as pessoas buscam resolução para suas necessidades (ato ou efeito de resolver), o serviço/profissional oferece certa capacidade de resolutividade para necessi dades, ainda que recortadas como “problema de saúde”. Como exemplo, reportamo-nos à situação de um usuário com diabetes mellitus (FARIA, 2007) para o qual, devido a um processo de necrose em hálux, foi realizada amputação parcial de seu pé. Tal am putação demonstra a resolutividade como capacidade do serviço de saúde em realizar uma cirurgia; contudo, para o usuário, embora tenha resolvido certo problema (a ne crose em seu hálux), a própria intervenção (amputação) gerou em sua vida, a partir de então, necessidades de diversas ordens, tal como dificuldade de locomoção para retirar a insulina que é dispensada em outra unidade de saúde distante de seu domicílio e da unidade de referência. Estas, porém, já não fazem parte do rol daquilo que os serviços recortam como problema de saúde e, a partir desse não-reconhecimento, não há práticas profissionais que possam ser ofertadas para este usuário, ameni-zando suas necessidades. Se a intervenção de amputação demonstrou a capacidade de resolutividade dos serviços, ao mesmo tempo essa resolutividade se encerra no ato da cirurgia, e nela somente se configura numa resolutividade parcial; não ganham visibilidade as repercussões deste ato, bem como seus desdobramentos em novas necessidades na vida dessa pessoa.

As noções “resolução e resolutividade” são, desta forma, (re)criadas à medida que as necessidades de saúde de pessoas e famílias são, ou não, e de certo modo, apreendidas pelo subsistema profissional de cuidado. E, à medida que as respostas do serviço de saúde são parciais e/ou que as pessoas não obte-nham a resolução necessária para seus problemas, esta não-resolução se torna o motor “propulsor” para empreendimentos de outras trajetórias de busca por cuidados, trazendo a lógica que as direcio-naram. Assim, as trajetórias são empreendidas segundo escolhas possíveis diante dos enfrentamentos

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cotidianos que pessoas e famílias vivenciam e, neste movimento, desvelam esforços e empenhos para obtenção de uma resolução para seu problema. Essas trajetórias são, muitas vezes, marcadas por sofrimentos pela busca empreendida, que pode, na condição crônica, ser intensificada; e ainda, pela baixa capacidade de resolutividade dos serviços e seus profissionais. Nas trajetórias, sentimentos de positividade também podem ser ex pressos e parecem estar vinculados à capacidade de tessitura de relações sociais marcantes e benéficas na experiência de adoecimento.

O IT permite a análise de Redes Sociais, com destaque às Redes para o Cuidado em Saúde, que são tecidas pela pessoa e sua família na experiência de adoecimento, evidenciando, nas trajetórias nos di-ferentes subsistemas de cuidado, o modo como vão se constituindo, quem delas participa, a qualidade de suas relações, os sentidos impressos em sua tessitura, dentre outros elementos.

Em estudos sobre ITs vinculados às nossas pesquisas (FIGUEIREDO, 2009; MAT TOS, 2008; OLI-VEIRA, 2009), a família tem-se apresentado como elemento central do cuidado na experiência de adoecimento em seu cotidiano. Temos nos detido na compreensão dessa experiência familiar, pois é a família que busca, produz e gerencia o cuidado, muitas vezes para mais de um de seus membros. É con-siderada, por nós, unidade produtora do cuidado (unidade cuidadora), mas também unidade que neces-sita de cuidados (unidade a ser cuidada) dos serviços e profissionais de saúde, o que demandaria a garan-tia e a efetivação de políticas públicas para que tenha condições de cuidar e de ser cuidada, como lugar de crescimento e desenvolvimento, sendo que seus membros estão em constante processo de interação.

Compreender a lógica de famílias nesta experiência, perceber sua dinâmica e dina micidade no tempo e espaço, sua forma de buscar, produzir e gerenciar o cuidado na condição crônica, dentre outros, pode contribuir para a construção de um cuidar pro fissional ético, que resgate o cuidado a partir do outro, que valorize suas experiências e que promova, proteja e preserve esta unidade produtora e gerenciadora do cuidado. Assim, longe da ideia da família como executora das ações formuladas e prescritas pelos profissionais de saúde, o que temos observado é que ela (re)interpreta a concepção de saúde e de cuidado a partir do mundo de significados que cada um de seus membros acumula ao longo da vida, sendo o cuidado familiar embasado num amálgama de saberes populares, técnicos e científicos.

Para Heidegger (2001), se quisermos entender o ser humano, é necessário nos base armos no cui-dado, pois seus valores, atitudes e comportamento no cotidiano expressam constantemente a preo-cupação com o cuidado. No campo da saúde, Zoboli (2007) compreende o cuidado como proposta ética, sendo a própria razão de ser da atenção à saúde, ou seja, o cuidado é seu eixo norteador, seu modo propulsor.

Tomar a integralidade como princípio orientador das práticas remete mais à noção de cuidado do que à de intervenção, já que, em seu campo de atravessamentos e construção, os procedimentos e técnicas se tornam secundários às relações engendradas: cuidar requer a aceitação de outro sujeito (AYRES, 2001). O cuidado, entendido por esse autor como uma dimensão da integralidade, deve permear as práticas de saúde e não se restringir às competências e tarefas técnicas.

Envolver o outro, pessoas e famílias, como seres do cuidado, requer lançar o olhar a partir da inte-gralidade, valorizando as relações, com base na afetividade, nos encon tros e serviços de saúde. Em termos de valoração, é necessário tornar visível o cuidado humano que, no nosso entendimento, é aquele que se edifica na cotidianidade da vida das pessoas e famílias, e é deste lugar que nossos es-tudos tratam, do modo como a experiência familiar de adoecimento se realiza, particularmente ao produzir e gerenciar o cuidado continuado e prolongado que a condição crônica exige.

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cuidado na condição crônica: alguns pressupostosRoseney Bellato et al.

Redes para o cuidado em saúde na condição crônica

O cuidado na condição crônica demanda a organização de uma rede articulada de serviços de saúde, com práticas profissionais cuidadoras, menos intervencionistas, tendo por foco as necessidades da pessoa e sua família.

Ao analisarmos ITs, constatamos que as famílias empreendem trajetórias que são muitas vezes defi-nidas em função dessa capacidade dos serviços de se organizarem em redes de atenção. No entanto evidenciamos, sobretudo, que as famílias tecem redes próprias que lhes permitem sustentação e/ou apoio para os cuidados requeridos a suas necessidades. Estas costumam ser tanto ou mais potentes, à medida que as redes formais de saúde forem menos resolutivas e, nesta situação, as pessoas adoecidas e suas famílias mobilizam outros recursos e pessoas, vinculadas a elas das formas mais variadas.

É relevante compreendermos, no estudo de ITs, os movimentos das pessoas e famílias na tessitura de redes próximas e próprias para o cuidado, particularmente na condição crônica, e evidenciarmos o modo como reconstroem os fluxos do SUS, através de suas trajetórias de busca, nas quais as redes para o cuidado em saúde e seus mediadores são essenciais. Na experiência de cuidado, elas produzem conhecimentos sobre a rede de atenção e, a partir desses conhecimentos, empreendem movimentos que escapam aos traçados de fluxos formais no SUS, constituindo movimentos invisíveis ao sistema e suas metodologias tradicionais avaliativas.

Nosso objetivo é compreender como as Redes para o cuidado em saúde são tecidas por pessoas e famílias ao vivenciarem o adoecimento por condição crônica, bem como os elementos qualitativos que as conformam em experiências de cuidado familiar. Elas tecem, no sentido de “urdir, engendrar, produzir, gerar”, múltiplas redes que possam lhes dar certa sustentação e apoio no processo de bus-car, produzir e gerenciar o cuidado.

Rede de Sustentação para o cuidado é aquela vinculada à pessoa adoecida de forma mais constante, configurando um núcleo de permanência na biografia e na produção do cuidado familiar, e que se mantém no tempo e espaço de forma mais perene. Constitui-se por relações mais próximas e ínti-mas, construídas com base na afetividade, ou naquilo que seja “afetual”, como diria Maffesoli (2004), visto serem engendradas na experiência vivida em comum, configurando o sentido de pertencimento e compartilhamento dessa experiência. Essa rede comporta a noção de ser “sustentáculo, manuten-ção e conservação” ao longo da experiência de adoecimento e cuidado.

Diferentemente, Rede de Apoio para o cuidado é aquela conformada com sentido de “ajuda ou assistên-cia vinda do exterior”, composta por pessoas que colaboram em momen tos específicos e mais pontuais dessa experiência e envolvendo geralmente relações mais formais e de menor densidade afetiva (BELLA-TO, et al., 2008). Apesar dessa distinção, reafirmamos as potências diferenciadas dessas redes, uma vez que elas se reforçam e se convergem ao longo da experiência de adoecimento e cuidado familiar.

Os núcleos de permanência da rede de sustentação são construídos e mantidos pelas pessoas que partilham a experiência de “ser família” numa configuração própria de espaço, tempo e relações que conferem movimentos a esta rede, dando-lhe o caráter de transitivi dade que constitui sua reversibili-dade (MAFFESOLI, 2004). Tal reversibilidade se expressa em termos de espacialidade, uma vez que as relações deste núcleo de permanência não se limitam ao espaço geográfico, mas à noção de “lugar” como o meio no qual comparti lhamos experiências com o outro (MAFESSOLI, 2004). Expressa-se, também, em termos de temporalidade que diz respeito à experiência temporal cotidiana que

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é biográfica, pois é vivida por cada pessoa e família; e ainda, aos diferentes “tempos” da condição crônica, que intercalam períodos de agudização e de normalidade ou silenciamento da doença (AN-JOS; BELLATO; CASTRO, 2008) e, neles, variadas intensidades de experiências, proporcionando a percepção de duração no adoecimento (BACHELARD, 1988). Expressa-se, finalmente, em termos dos vínculos, pois estes são construídos, mantidos e desfeitos ao longo da experiência biográfica do cuidado pessoal e familiar.

Em nossos estudos de ITs evidenciamos, nas redes para o cuidado, “pessoas-chave”, ou mediado-res de redes, que possibilitam, ou facilitam, o acesso da pessoa e família ao subsistema de cuidado profissional, fazendo links entre essas pessoas que necessitam de cuidado e os serviços de saúde que disponibilizam a atenção. Eles não necessariamente integram o corpo profissional da instituição de saúde e, na função mediação, têm dife rentes níveis de intervenção ou influência, podendo disponibi-lizar as condições para o cuidado, intermediar o acesso à atenção em saúde e/ou ser, ele próprio, um profissional que intervém pela pessoa e família junto aos outros profissionais.

Martins (2009) denomina “mediadores colaboradores” às pessoas de confiança acionadas com vistas à resolução de problemas e conflitos e situa, dentre eles, aqueles que possibi litam o acesso aos servi-ços de saúde. Salientamos a atuação do mediador no subsistema de cuidado profissional como “chave para o acesso”, tornando-se importante elemento da acessibilidade ao fluxo formalizado pelo SUS. Parece-nos que, nos subsistemas de cuidado popular e familiar, o mediador tem outras funções ou atributos, de apoio emocional e de cuidado, dando certa organicidade à rede de sustentação para o cuidado. Desta forma, a mediação se efetiva relacionada mais ao âmbito das condições para a produ-ção do cuidado, uma vez que a circulação das pessoas nestes subsistemas parece ser menos problemá-tica, por se tratar de espaços mais abertos, com acessos mais franqueados.

Brandão (2008), ao analisar o IT de um adolescente com síndrome nefrótica, evi dencia esta atuação de mediadores, tanto para o acesso aos serviços de saúde como para a produção do cuidado familiar na condição de vulnerabilidade da família do estudo, através de uma “rede de mediadores” da comu-nidade que não necessariamente se reco nhecia como mediadora, nem como rede. Assim, as redes para o cuidado em saúde, de sustentação e de apoio, configuram-se de modo muito próprio ao longo da biografia da pessoa/família. Através de sua tessitura, podemos analisar sua potência e qualidade para o cuidado, em sua dinâmica, e o modo como as redes formais participam do cuidado.

Entendemos que estes desenhos diferenciados de redes podem se constituir como ferramentas ana-lisadoras: das possibilidades, ou potencial, das famílias, de gerenciar a experiência de adoecimento, bem como de buscar e produzir o cuidado continuado e prolongado requerido na condição crônica, tecendo e articulando redes. E ainda, da ca pacidade do subsistema de cuidado profissional de pro-duzir e gerenciar redes cuidadoras, na perspectiva da integralidade e da resolutividade, com práticas de atenção e gestão que sejam capazes de acolher as necessidades dessas famílias. Compreendemos a sustentabili dade para o cuidado da pessoa adoecida como resultante das possibilidades de tessitura de redes para o cuidado pela família e da capacidade de gestão em redes do SUS.

A compreensão dos ITs de pessoas e famílias em experiência de adoecimento e, neles, a formação de redes para o cuidado em saúde, pode oferecer elementos para a eleição de indicadores da qualidade da atenção em saúde que sejam centrados nesta experiência.

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Itinerários terapêuticos de famílias e redes para o

cuidado na condição crônica: alguns pressupostosRoseney Bellato et al.

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PLANEJAMENTO, EPIDEMIOLOGIA E PROGRAMAÇÃO COMO INSTRUMENTO DE GESTÃO1

GISELE O’DWYER2 MARISMARY HORSTH DE SETA3

SÉRGIO PACHECO DE OLIVEIRA4

1. Introdução

Em nossa atividade gerencial nos serviços de saúde, nos deparamos com um número de problemas urgentes que tumultuam nossa agenda decisória e não nos vemos com tempo para planejar. Sentimo--nos desconfortáveis nessa situação e, entre nós, nos definimos como “bombeiros”, já que gastamos a maior parte do nosso tempo “apagando incêndios”. Se entendermos por que isto acontece será um grande passo para que adotemos o planejamento como uma ferramenta indispensável para a gestão. Quais são os aportes de que precisamos para planejar os serviços de saúde, ou de que podemos nos valer para que nosso planejamento seja eficaz?

Em uma época em que as empresas se voltam para a diferenciação de seus produtos, procuram colo-car seu “foco no cliente” e em que a produção em massa entra em declínio, como poderemos planejar os serviços públicos de saúde sem que conheçamos a nossa clientela e o ambiente em que atuamos? Algu-mas respostas a essas questões podem ser dadas pela epidemiologia.

Esta disciplina, a epidemiologia, representa uma forma científica de conhecer a realidade sanitária que os serviços de saúde buscam enfrentar. A utilização das informações e do raciocínio epidemioló-gico pode nos ajudar, e muito. Mas, nem sempre as informações estão disponíveis... Por outro lado, sabemos que o gerente hospitalar não trabalha exclusivamente com base em informações e que estas,

1 Publicado originalmente em: O'DWYER, G.; DE SETA, M. H.; OLIVEIRA, S. P. de. Planejamento, epidemiologia e programação como instrumentos de gestão. In: BRASIL. Ministério da Saúde. GESTHOS: gestão hospitalar. Modulo II. Gestão Contemporânea nas organizações de Saúde, P. 27-77. Brasília: Ministério da Saúde, 2002.2 Mestre em Ciências em Saúde da Mulher pela Fiocruz; Especialista em Vigilância Sanitária de Serviços de Saúde, Tecnologista sênior da Fundação Oswaldo Cruz.3 Mestre em Saúde Coletiva pela UERJ; Tecnologista sênior e professora do Departamento de Administração e Planejamento em Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz; Professora convidada do Curso de Especialização em Administração Hospitalar da UERJ.4 Mestre em Ciências e Engenharia Biomédica pela COPPE/UFRJ; Especialista em Administração Hospitalar e em Análise de Sistemas; Professor do Departamento de Administração e Planejamento da Escola Nacional de Saúde Pública; Consultor para desenvolvimento de Sistemas de Informação Hospitalares.

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mesmo que muito atualizadas, sempre se referem ao passado. E o gerente/planejador precisa pensar o futuro... Mas, se temos informação ou se podemos gerá-la, por que não a utilizamos para fazer nosso planejamento e nossa programação?

A programação em saúde é muito importante para organizar a rede de serviços e mesmo os serviços de saúde, internamente. A lógica da programação deve contemplar critérios de qualidade. Instalar serviços de saúde e/ou reorganizar os que já funcionam não é tarefa simples. É preciso que sejamos muito estratégicos... Afinal, (re)programar serviços na área social, em que se inclui a saúde, é traba-lhar com muitas incertezas...

2. Planejamento

Suponhamos que temos que resolver um problema, aproveitar uma oportunidade ou transformar uma realidade, seja ela qual for. Como parte do processo de reflexão, surge uma série de perguntas. Algumas deles podem ser:

1. O que queremos?

2. Só depende de nós?

3. Quem ou o que pode nos ajudar ou atrapalhar?

4. De quem ou do que precisaremos para conseguir o que queremos?

5. O que pode mudar, nos criando dificuldades ou facilidades?

6. O que deveremos fazer se as coisas mudarem?

7. Por onde começar? Qual é a melhor sequência para agir?

As perguntas de 1 a 7 podem ser resumidas em: Qual é o nosso plano?

A pergunta “Qual é o nosso plano?” nos coloca diante da necessidade de definir planejamento, que é um processo que norteia a ação humana, tanto na vida pessoal quanto na atividade gerencial. Trata-remos aqui apenas da sua aplicação ao campo da atividade gerencial nos serviços de saúde. As abor-dagens administrativas ou teorias administrativas, em especial a Teoria Neoclássica da Administração, definem o planejamento como uma das funções do processo administrativo.

O destaque anterior enfatiza o caráter de definição antecipada da ação e dos objetivos a serem atingi-dos. Os objetivos mais amplos a serem alcançados, ou onde queremos chegar com a nossa gestão na organização, eram chamados, até pouco tempo atrás, de imagem-objetivo. Ultimamente vêm sendo chamados de Visão.

Voltemos ao nosso “plano”. Se respondemos afirmativamente à pergunta 2 (“Só depende de nós?”), definiremos o que deve ser feito, os objetivos a alcançar, os recursos necessários, os prazos e os res-ponsáveis por cada ação. Fazendo tudo de maneira correta, o nosso planejamento poderá ser classifi-cado como um bem elaborado planejamento normativo. Acompanharemos a execução do nosso plano e poderemos obter os resultados que desejamos.

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Mas, a partir da definição citada, podemos dizer que o planejamento é caracterizado pela incerteza por ser uma escolha de curso de ação, de caminhos, de opções, que se adota antecipadamente. Trata--se de agir desde já, no tempo presente, para alcançar os objetivos pretendidos ou para construir o fu-turo. Ocorre que o futuro é sempre incerto, indeterminado, porque não estamos sozinhos no mundo construindo o futuro. Existem outros, pessoas e grupos, que tem projetos iguais, semelhantes ou totalmente diferentes dos nossos. E eles também planejam para obter o que desejam. Ao mesmo tempo que o planejamento é caracterizado pela incerteza, ele é um instrumento que busca reduzi-la mediante um processo sistemático, de maior ou menor intensidade. Dizer que ele é mais sistemático significa que, pelo menos, as perguntas 3 a 7 são tratadas metodicamente, o que caracteriza um pro-cesso de planejamento estratégico.

O que significa estratégia? E o caráter estratégico do planejamento?

Embora, por vezes, as organizações de saúde pareçam um campo de batalha, ficaremos com a segun-da acepção da palavra estratégia, já que o caráter estratégico do planejamento refere-se à aplicação dos meios disponíveis e à criação de condições favoráveis ao bom desenvolvimento do plano. Mas não desprezaremos a primeira acepção pelo que ela nos aporta para compreensão de ganhar ou manter posições, de acumular forças, de executar movimentos considerando os movimentos dos outros.

Precisaremos responder às perguntas 3 e 4 (“Quem ou o que pode nos ajudar ou atrapalhar?” e “De quem ou do que precisaremos para conseguir o que queremos?”) para:

�� identificar quem tem interesses e posições favoráveis (aliados) ou contrários ao nosso plano (opo-nentes);

�� entender quais são as motivações para que eles assumam esses posicionamentos.

Nosso plano precisa ser exequível, viável. Para isto, os meios disponíveis podem ser insuficientes. Te-remos, então, que criar as condições favoráveis para que a viabilidade do plano aumente. É entender a motivação dos nossos oponentes pode nos ajudar a encontrar modos de aumentar os apoios, diminuir as resistências ou neutralizar a ação dos nossos oponentes.

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Responder às perguntas 5 e 6 (“O que pode mudar, nos criando dificuldades ou facilidades?” e “O que deveremos fazer se as coisas mudarem?”) implica explorarmos a conjuntura atual para identificar as variáveis de mudanças, positivas ou negativas, que têm relação com o nosso plano ou com o pro-blema a ser enfrentado. Ao identificar essas variáveis e analisar seus possíveis comportamentos num futuro próximo, estamos fazendo um exercício de construir os cenários nos quais o nosso plano irá se desenvolver. Buscaremos formular um plano para cada cenário, ou, pelo menos, formularemos mais do que um único plano para não sermos surpreendidos por uma mudança absolutamente inesperada.

A resposta à pergunta 7 (“Por onde começar? Qual é a melhor sequência para agir?”) deve sempre considerar que, como resultado de algumas das nossas ações, acumulamos forças ou desgaste e que, para enfrentarmos algo muito difícil ou desgastante, precisamos estar fortalecidos. Assim, a trajetória estratégica a ser definida poderá contemplar inicialmente as ações menos conflitivas ou, se for o caso, aquelas que mesmo envolvendo algum conflito potencial têm um alto custo de postergação, o que quer dizer, aquelas que, se não forem enfrentadas em tempo hábil, causarão um grande desgaste. O custo pode ser político (perder poder), econômico-financeiro (perder recursos), social (perder vidas ou aumentar o sofrimento humano).

Para as finalidades deste estudo, o planejamento estratégico pode ser classificado em corporativo ou situacional.

O planejamento estratégico corporativo busca realizar uma análise da organização à luz de sua con-corrência, identificando os fatores-chave de sucesso e as Debilidades, Oportunidades, Fortalezas e Ameaças (DOFA). Ele tem estreita relação com as modernas técnicas de marketing e teremos de visitar esses conceitos no Módulo IV – Gestão para Qualidade em Saúde.

Trataremos nesta Unidade do chamado Planejamento Estratégico Situacional (PES), não na sua di-mensão de método, mas como uma abordagem de planejamento que incorpora conceitos importan-tes para se pensar o planejamento e a gestão em saúde.

Observação: sem a pretensão de querer ensinar um método de planejamento por problemas, como é o PES, apresentamos, o final do tema, um roteiro que pode auxiliá-lo no levantamento, identifi-cação, seleção e priorização de problemas do seu hospital, bem como na implementação do plano.

Se você quiser saber sobre o PES como método de planejamento, ver Artmann et al. (1977) e Rivera (1989).

O Planejamento Estratégico Situacional (PES) trabalha com recursos de vários tipos:

�� cognitivos (relativos ao conhecimento, à capacidade de saber e de saber fazer);

�� organizativos (que dizem respeito à forma com que a organização se estrutura);

�� econômicos (que incluem tudo o que pode ser contabilizado: dos recursos financeiros ao quadro de pessoal, que também pode ter seu custo monetarizado);

�� políticos (poder).

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Esse enfoque de planejamento é predominantemente político, visto que a categoria central é o poder, que é entendido como capacidade de ação, de produzir fatos, de mobilização, de representatividade. Entendido desta forma, o poder no planejamento estratégico não se restringe ao poder organizacio-nal decorrente do cargo (poder administrativo) nem ao poder que emana do domínio dos recursos econômicos (poder econômico). Além de todos esses, há também o poder técnico, área de domínio dos profissionais de saúde e da gestão. E, ainda, não há um único sujeito do planejamento: todos pla-nejam para alcançar seus objetivos. Planejar é um cálculo de probabilidades e, portanto, o ponto de chegada não pode ser determinado a priori. A avaliação e a reavaliação devem ser constantes, como num jogo de xadrez.

Podemos dizer que o PES é um método de planejamento baseado em problemas. O fato que cria a necessidade do planejamento na atividade gerencial é um problema ou uma oportunidade.

O que é um problema ou uma oportunidade quando falamos de gestão e planejamento?

Para o planejamento estratégico, portanto, problema é algo que nos leva a agir, buscando a sua supe-ração e não um mal-estar, um desconforto vago e impreciso. É claro que o que se julga ideal, deseja-do ou possível não é igual para todas as pessoas e depende do ponto de vista, dos valores, da situação em que cada pessoa se encontra. Da mesma forma, o que é problema para alguém pode não ser para outrem. Por isto se diz que problema ou oportunidade, para o planejamento estratégico, é sempre referido a alguém, ou melhor, a um ator social, cujo conceito veremos adiante.

Mas antes, precisamos saber melhor que os problemas são de vários tipos e que, na área social onde a saúde se inclui, os problemas nunca irão se acabar. O que um bom planejador vai buscar é o que Carlos Matus chama de “intercâmbio favorável de problemas”, quer dizer, “atacar e resolver” um problema mais dramático a se deparar com um novo problema que, esperamos, seja menos grave.

Um exemplo, a expectativa de vida ao nascer de uma dada população é de 40 anos: as taxas de mortalida-de infantil (por desnutrição, por doenças imunopreveníveis e por causas ligadas a atenção ao parto) e por acidentes fatais de trabalho com adultos jovens são excessivamente altas. Suponhamos que o pro-blema – “baixa expectativa de vida ao nascer” – seja enfrentado por meio da melhoria das condições de saneamento, de uma boa cobertura de programa de imunização, da melhoria da atenção à gravidez e ao parto e por um programa de redução de acidentes de trabalho, teremos, então, um aumento da expectativa de vida, que levará ao crescimento da importância relativa da mortalidade por doenças crônico-degenerativas, já que a população viverá mais. Mas, quem consegue transformar esse dado (expectativa de vida de 40 anos) em um problema a ser resolvido? Certamente é um ator social com força e poder para transformar esse dado escandaloso em um problema a ser enfrentado.

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Agora tomemos como exemplo um fato imaginário, a publicação no Correio da Tarde sobre a Materni-dade A, onde, no mesmo mês, morreram três mulheres e dez bebês. As mulheres morreram de parto e os bebês, após contraírem infecção no berçário por falta de lavatório, sabão e toalhas de papel para a lavagem das mãos. Consideremos quais são os problemas contidos neste exemplo:

Para o diretor da maternidade o problema que deve importar é a ocorrência dos óbitos. É um pro-blema finalístico, que compreende o resultado, a qualidade da assistência prestada pela maternidade. Por mais que a notícia publicada no Correio da Tarde possa afetar, e afeta, a imagem da maternidade, esse é um problema que decorreu dos óbitos evitáveis, portanto, representa um problema secundário, aquele que é consequência de outro. Para melhorar a imagem da organização a simples estratégia de divulgação de outros bons resultados organizacionais é insuficiente. O gerente precisa trabalhar para que tal tipo de óbito não mais ocorra. Ou seja, ele deve atuar sobre as causas dessas mortes. Não basta atuar sobre a consequência (ou problema secundário).

E a falta de lavatório, sabão e toalhas de papel?

São problemas importantes porque é consenso que os bebês são mais propensos a contrair infecção e que a lavagem das mãos, isoladamente, é o modo mais eficaz de prevenir as infecções hospitalares. A falta de lavatório e de material certamente contribui para que os bebês tenham contraído infecção, causando impacto negativo nos resultados da assistência.

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A solução para esse problema é conhecida: há que se dispor de lavatório e de material de consumo para a lavagem das mãos. Se esse é um problema de solução conhecida e consensual, podemos dizer que ele é um problema bem estruturado. Esse problema deve estar na esfera de preocupação dos técnicos do berçário (lavatórios e material), do pessoal da arquitetura hospitalar (lavatórios) e do pessoal do setor de compras e almoxarifado (material). Senão, o diretor-geral nunca vai conseguir pensar no futuro da organização... E vai se sentir um “bombeiro”.

Dos dois problemas apresentados (baixa expectativa de vida e mortes na Maternidade X) podemos tirar algumas conclusões e inferir algumas questões sobre a tipologia dos problemas.

�� Concluímos que existem problemas de solução conhecida e universalmente aceita, que são os bem estruturados. Inferimos que deve existir uma outra classificação para os que não são bem estrutu-rados. São os chamados problemas mal estruturados.

�� Concluímos que existem problemas finalísticos que têm impacto direto sobre os resultados organi-zacionais. Inferimos que deve existir uma outra classificação para os problemas que se relacionam indiretamente com os resultados organizacionais. São os chamados problemas intermediários. De modo geral, os problemas relacionados aos processos administrativos internos da organização são problemas intermediários (por exemplo, os baixos salários do pessoal do hospital).

�� Sabemos que alguns problemas se apresentam hoje e que outros surgirão futuramente, nem que seja como resultado do chamado “intercâmbio favorável de problemas”. São problemas potenciais, que é estratégico enfrentar.

Então, quais são as categorias de problemas que se apresentam e que devem ser enfrentadas com os diferentes tipos de planejamento?

�� Bem estruturados ou mal estruturados.

�� Finalísticos ou intermediários.

�� Atuais ou potenciais.

Essas categorias de problemas podem ser combinadas entre si, segundo o quadro abaixo:

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É claro que a vida organizacional, principalmente no campo sanitário, não se molda em um quadro rígido como o anterior. O Quadro serve apenas como recurso didático. Até porque os problemas bem estruturados que identificamos no campo do planejamento e da gerência em saúde costumam ser a ponta de um iceberg de um problema mal estruturado mais amplo...

Para identificarmos problemas em nosso hospital podemos utilizar os dados epidemiológicos, nossa capacidade de observação e experiência e as informações da nossa clientela. Se quisermos trabalhar de uma forma participativa podemos utilizar, por exemplo, a técnica de brainstorming ou “tempestade de ideias”, com um grupo selecionado de profissionais. Chegaremos a uma listagem de problemas. Essa listagem pode ser desmembrada em grupos de problemas (no diagrama de afinidades ou mesmo no diagrama de Ishikawa, também chamado de diagrama de causa-efeito ou espinha de peixe). Mui-tas técnicas ou ferramentas são comuns ao planejamento e à gestão da qualidade...

Mas, lembremo-nos que planejar é, também, definir prioridades. Como alguns problemas serão mais graves que outros, teremos que colocá-los em uma ordem de prioridades. Isto pode ser feito também coletivamente, utilizando a Técnica do Grupo Nominal ou mesmo mediante uma matriz de seleção de pro-blemas. Selecionado o problema a ser prioritariamente enfrentado, trataremos então de “explicá-lo”.

1. Porque partimos do princípio de que um problema a ser enfrentado com planejamento estratégico não é um problema simples, com uma causa única. Anteriormente apresentamos o exemplo dos óbitos dos dez bebês por infecção hospitalar por falta de equipamento e material para lavagem das mãos apenas para simplificar, didaticamente. Na realidade, sabemos que a infecção hospitalar é um problema com várias causas... Para explicarmos um problema é necessário que façamos, sucessi-vamente, uma série de perguntas do tipo “Qual é a causa disto?” ou “Por quê?”. Assim, poderemos eleger causas que sejam importantes na geração do problema em vez de ficarmos atuando sobre fatos ou consequências.

2. Porque, em se tratando de problemas no campo da gestão em saúde, nenhum diagnóstico “cien-tífico” é neutro. Ele vai estar sempre referido à situação do ator e impregnado pela sua visão de mundo. Então, nossa explicação do problema precisa considerar a explicação de outros atores sociais envolvidos ou a se envolverem com o problema.

Trabalhar com a explicação do problema representa o esforço de incorporar a explicação de outros atores importantes na geração e/ou na solução do problema em questão.

Por fim, restam uns conceitos importantes de planejamento estratégico a tratar:

�� governabilidade;

�� capacidade de governo;

�� projeto de governo

Esses três conceitos estão intimamente relacionados. Já ouvimos falar muito de governabilidade: “há uma crise de governabilidade...”

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Quanto melhor a qualidade de um plano, maior a governabilidade de um dado valor social para a execução de seu projeto. Quanto maior a capacidade de governo, maior a governabilidade, visto que há um maior domínio dos recursos, por exemplo, cognitivos. Para representar graficamente essa estreita relação e o seu dinamismo, Carlos Matus utilizou o chamado Triângulo de governo.

No diagrama anterior, Eu e Tu, interligados por setas de duas pontas, representam as interações existentes entre os vários atores sociais que planejam. As setas que compõem os lados do triângulo representam as interações entre governabilidade, capacidade de governo e projeto, ou seja, elas enfa-tizam o caráter dinâmico dessas interações.

Na prática, quando aplicamos os conceitos de governabilidade e de capacidade de governo às organi-zações hospitalares, eles se fundem para representar as capacidades e competências que a organização possui para dar conta de sua missão. Nesta unidade, a missão da organização não é uma definição mobilizadora expressa em um ou mais parágrafos; ela se encontra refletida no perfil assistencial do hospital. Por sua vez, o perfil assistencial do hospital é condicionado pelos recursos físicos; humanos e tecnológicos de que ele dispões para dar conta da sua missão. Os recursos do hospital integram as capacidades e competências e são organizados de uma certa forma. A forma de organização dos recursos reflete o processo de divisão do trabalho e representa a estrutura organizacional do hospital, que não deve ser reduzida ao seu organograma.

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A missão do hospital e os problemas que a afetam devem-se refletir na agenda do dirigente, que deve ser prioritariamente voltada para enfrentar os problemas estratégicos da organização. Uma agenda repleta de urgências e “incêndios” denota a precariedade do processo de planejamento e/ou a exces-siva centralização do processo decisório no hospital.

Carlus Matus apresenta um modelo de análise organizacional em que missão, estrutura organiza-cional (como o trabalho é dividido e coordenado) e governabilidade (capacidades e competências) interagem e representam três das quatro regras básicas da organização, que contribuem para a sua estruturação. A quarta regra é a responsabilidade em relação aos resultados organizacionais, que pode ser avaliada como alta, média ou baixa. O grau de responsabilidade se expressa, em grande parte, pela existência (ou inexistência) de mecanismos de petição e prestação de contas relativas ao que:

�� cada parte da organização produz, com que nível de qualidade e em que prazos;

�� cada parte da organização realiza, com os recursos de que dispõe;

�� o conjunto de organização realiza em relação ao objetivos preestabelecidos.

Para o planejamento, pouco adianta tratar de declarações genéricas sobre o que uma organização deve ou não deve fazer e como deve fazer. Quanto mais claros e de conhecimento geral forem os obje-tivos a serem alcançados e mais alta a responsabilidade com os resultados organizacionais, maior será a demanda por planejamento na organização. Em resumo, uma organização que não demanda por planejamento, provavelmente não apresentará uma alta responsabilidade com os resultados organiza-cionais. Permanecerá atendendo demandas, que tendem a ser crescentes, sem planejar o seu futuro.

Até agora abordamos os tipos de planejamento e buscamos justificar a pertinência da aplicação dos princípios e conceitos de planejamento estratégico ao campo da saúde, área com muitos problemas complexos e multicausados. Fizemos isto mediante a exploração das sete perguntas formuladas no início deste estudo e da necessidade de abordá-las todas no processo de planejamento. Mas, o estudo sobre planejamento não termina aqui e o nosso assunto é planejamento em saúde... Tratemos em seguida da epidemiologia, que deve subsidiar a programação em saúde. Por enquanto, afirmaremos que Programar também é Planejar.

Se você estiver interessado no debate sobre o planejamento em saúde, as diferentes escolas e métodos na América Latina e no Brasil, ver Rivera (1989); Artmann et al. (1997) e Matus (1993).

2.1. Roteiro Básico para elaboração de um plano

Propomos, a título de exemplo, um roteiro que lhe permitirá desenvolver um processo participativo de planejamento. Se ele será normativo ou estratégico, isto poderá ser visto pelo seu conteúdo e pelas análises que serão feitas ao longo do processo. Adiantamos que planejar de forma participativa não é tarefa fácil, visto que exige o domínio de alguns instrumentos, que poderão ser encontrados na Caixa de Instrumentos do Módulo IV – Gestão para Qualidade em Saúde – bem como que sejam assumidas coletivamente as responsabilidades.

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2.1.1. Identificando, selecionando e priorizando os problemas

Identifique os profissionais que conheçam bem o seu hospital e tenham um bom grau de dedicação e compromisso institucional, ou convoque sua equipe de direção. O número de pessoas deve ser limitado em torno de dez a 15 e, preferencialmente, procure que esse grupo tenha uma composição multiprofissional e seja bastante representativo.

O levantamento de problemas inicia-se com um brainstorming, para o qual deve ser apresentada uma pergunta previamente formulada. Essa formulação deve ser objeto de cuidado, visto que, se for mal formulada, as respostas dos participantes serão pouco úteis. Um exemplo de pergunta pode ser: “Quais são os problemas que afetam a qualidade da assistência prestada no nosso hospital?” ou “Quais são os principais problemas que devemos enfrentar?

Findo o brainstorming, vocês obterão uma listagem de problemas e terão três caminhos a seguir, que não são, necessariamente, excludentes:

�� aplicar a Técnica do Grupo Nominal, se a listagem for muito extensa. Como esta é uma técnica de geração de consenso que abrange discussão e votação anônima (atribuição de um valor de 9 a 0 ou de 5 a 0 aos problemas), após a sua aplicação vocês terão um menor número de problemas (os problemas semelhantes serão agrupados e alguns eliminados, desde que todos concordem durante a fase de discussão) segundo uma hierarquia de importância – do que obteve maior valor para o que obteve menor valor. Deste processo resultará uma listagem hierarquizada por ordem de importância. Chamamos aqui a atenção para o fato de que essa listagem poderá ser diferente, se a composição do grupo for diversa;

�� agrupar os problemas segundo as afinidades que eles apresentam entre si (diagrama de afinidades), se a listagem for muito extensa. Os critérios para o agrupamento podem/devem ser construí-dos coletivamente pelo grupo. Caso você queira, os problemas podem ser agrupados conforme o exemplo dado na Caixa de Instrumentos do Módulo IV – Gestão para Qualidade em Saúde -: mão de obra, material, método, maquinaria ou equipamentos, etc.);

�� aplicar uma matriz de seleção de problemas, depois de discutir e depurar a listagem de proble-mas. Apresentamos abaixo uma matriz de seleção de problemas, mas outros critérios de avaliação podem/devem ser utilizados. Como exemplo, num contexto de escassez de recursos financeiros, pode ser introduzido o critério consumo de recursos financeiros. Cada critério será aplicado a cada problema (no sentido horizontal da tabela). Quando da análise para seleção do(s) problema(s) a ser(em) enfrentado(s), a matriz deve ser estudada globalmente.

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Algumas observações sobre esses critérios.

�� Valor: estimado em alto, médio ou baixo.

�� Governabilidade do ator sobre o problema: considerar o controle que o ator tem sobre os recursos necessários para atacar o problema. Estimada em alta, média ou baixa.

�� Resposta de outros atores com governabilidade: esses atores podem ser indiferentes, favoráveis ou contrários.

�� Custo de postergação da solução: o custo pode ser econômico, político, social, etc. Estimado em alto, médio ou baixo.

�� Tempo de maturação dos resultados: pode ser dentro ou fora do período de mandato. Para um ator que se mova estrategicamente para acumular forças ou ganhar posições, pode não ser interessante atacar um problema de alto valor se os resultados aparecerem fora do período de sua gestão. Isto não é desejável mas pode/costuma ocorrer.

2.1.2. Descrevendo o problema

Uma vez selecionado o problema a ser atacado, quanto mais precisamente nós o enunciarmos e o des-crevermos, mais facilidade nós teremos para pensar o que fazer (as operações e ações) e para avaliar o impacto de nosso plano. Descrever o problema é caracterizá-lo, mostrar objetivamente, mediante indicadores qualitativos e/ou quantitativos como ele se expressa e indicar as fontes de verificação de onde esses dados procedem. Outro objetivo da descrição do problema é evitar que ele tenha mais de uma interpretação (isto ocorre com frequência quando se lê só o enunciado do problema). Um princí-pio deve ser seguido: não deve haver relação causal entre os descritores.

Vejamos um exemplo:

O contexto

Um hospital geral do Ministério da Saúde, com emergência e vários centros de trata-mento intensivo (UTI, Unidade Coronariana, Centro de Queimados), foi municipalizado recentemente e lhe foi imposta uma realidade gerencial e administrativa substancialmente diferente da que gozava anteriormente, com perda significativa da autonomia. Como hos-pital público, está sujeito à legislação em vigor sobre compras e contratações de pessoal e serviços. Com a integração à rede municipal, o hospital reduziu suas barreiras à entrada, entre outras coisas, tornou mais flexível a triagem de pacientes que fazia para a emergên-cia (para adequar-se à forma de funcionamento do restante da rede municipal). Reunida a equipe, foram listados os problemas e resultou a escolha de um problema a ser enfrentado.

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O problema

Incapacidade de atender à demanda com nível adequado de qualidade, principalmente no serviço de emergência.

Descritores iniciais do problema�� Média de permanência elevada, tanto nas clínicas cirúrgicas quanto nas clínicas médicas.

�� 95% dos atendimentos realizados na emergência não consistiam em urgência/emergência.

�� Taxa de infecção hospitalar alta – maior que 20%.

�� Tempo de espera elevado para o atendimento na emergência.

�� Ocorrência de óbitos evitáveis (n óbitos evitáveis no período X).

Fontes de verificação

Prontuários dos pacientes, relatórios de enfermagem e das comissões de controle de in-fecção hospitalar e de revisão de óbitos; estatísticas do SAME e boletins de atendimento da emergência.

2.1.3. Explicando o problema e definindo a intervenção

Para explicar o problema são identificadas, inicialmente, as causas dos descritores. Segue-se uma série de perguntas do tipo: “Qual é a causa disto?” ou “O que causa isto?” À medida que você vai pro-cedendo assim, vai identificando as causas dos problemas. Sua explicação será tanto melhor quanto mais abrangente ela for. Essas causas podem ser agrupadas em um diagrama de causa-efeito, confor-me apresentado na Caixa de Instrumentos.

Se são muitas as causas, você não conseguirá atacá-las todas de uma vez. Como algumas causas, cer-tamente, são mais importantes que outras na determinação dos problemas e dos descritores, você vai precisar identificar aquelas sobre as quais você vai atuar. São os chamados “nós críticos”. Para escolher um nó crítico (que é uma causa importante), é preciso utilizar três critérios que devem ser satisfeitos simultaneamente.

�� alto impacto sobre os descritores do problema, ou seja, se atuarmos sobre essa causa os descritores do problema serão modificados;

�� ser um centro prático de ação, ou seja, ser possível atuar sobre ele;

�� ser um centro oportuno de ação política durante o período do plano, ou seja, é necessário analisar o cus-to político da intervenção (em termos políticos, o que se perde e o que se ganha com essa intervenção).

2.1.4. Identificando o que fazer (as operações necessárias) para enfrentar o problema

A definição de um problema costuma trazer implícita a sua solução, ou o que se imagina seja a sua so-lução. Todavia, é desejável que seja feito um esforço sistemático para pensar o que fazer. O processo de identificação do que fazer (as operações) pode se basear também em um brainstorming, se você de-seja identificar operações criativas. Mas, de todo modo, para cada operação devem ser identificados os recursos necessários, os prazos, os responsáveis e devem ser apontados os resultados desejados.

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Algumas operações podem contrariar algum ator. São as chamadas operações conflitivas ou conflituo-sas. Neste caso, deve ser analisado o peso político do ator que terá seu interesse contrariado e escolhidas as estratégias para se trabalhar nessa situação (persuasão, negociação, confronto, cooptação etc.).

2.1.5. Acompanhando a execução do plano

Definido o que fazer, é necessário monitorar a execução do plano. Esse monitoramento precisa ser feito levando-se em conta:

�� o desenvolvimento de cada operação. Mesmo estando definidos o responsável, os recursos e os prazos isto pode não ser suficiente para um adequado cumprimento do plano;

�� o alcance dos resultados. Há que se pensar que há resultados intermediários que podem ser alcan-çados ao longo da execução do plano.

Anteriormente dissemos que a mudança dos descritores servem como parâmetro ou indicador para a avaliação, mas, para o acompanhamento sistemático do plano outros indicadores também podem ser pensados. Monitorar a execução representa a possibilidade de redirecionar as ações e adequar o conteúdo do próprio plano. Deixar a avaliação para o final pode não ter grande utilidade prática.

SÍNTESE

Segundo a Teoria Neoclássica da Administração, o planejamento é uma fun-ção administrativa. Com ele buscamos construir o futuro mediante uma ação que se inicia no presente.

A demanda por planejamento é maior quando a organização se defronta com problemas ou oportunidades e quando é alta a sua responsabilidade com os resultados organizacionais.

O planejamento pode ser normativo ou estratégico. Este pode ser classificado como corporativo ou estratégico situacional (PES). Na área social, onde a saúde se inclui, os problemas são complexos e mal estruturados, daí a necessidade de se conhecer e aplicar os conceitos do PES, que é um enfoque predominantemen-te político, visto que a categoria central é o poder. Este não se restringe ao poder econômico nem ao poder administrativo, mas, para o PES, o poder também se expressa como capacidade de ação, de mobilização, de produção de fatos.

O PES não trabalha com o conceito de diagnóstico e sim com o de explicação situacional. O primeiro relaciona-se com o raciocínio médico no sentido de identificar a causa e propor a ação corretiva (ou paliativa). A explicação si-tuacional busca ser mais abrangente, incorporando as explicações dos vários atores sociais envolvidos na geração, manutenção ou resolução do problema. Para o planejamento estratégico situacional, o que se busca é um intercâmbio favorável de problemas, ou seja, resolver um problema grave e defrontar-se com outros menos grave que o primeiro.

Em última instância, o que se quer do planejamento em saúde? Que se resolvam problemas ou necessidades de saúde. Então, para que o planejamento em saúde seja estratégico é necessário, também, recorrer à epidemiologia. A discussão sobre o planejamento não se esgota aqui. Vamos ver mais em Programação.

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3. A epidemiologia como ferramenta para a gestão de serviços de saúde

A epidemiologia ocupa-se fundamentalmente do processo saúde-doença, que já foi abordado no Mó-dulo I. Buscaremos nesta Unidade compreender a utilidade da epidemiologia para a gestão e plane-jamento dos serviços, mediante a discussão do seu significado, dos seus usos e de alguns dos seus conceitos. Algumas perguntas que podemos fazer no início deste estudo são:

1. Como e em que a epidemiologia pode nos ajudar no processo de planejamento e gestão do nosso hospital?

2. Para que nós, gerentes e planejadores, precisamos conhecer o perfil dos atendimentos realizados?

3. Quais informações de cunho epidemiológico podem nos auxiliar na programação e na avaliação dos serviços de saúde, especialmente no meu hospital?

Tentaremos responder estas e outras perguntas com este estudo.

3.1. A Epidemiologia como disciplina e os seus usos

Nesse sentido, podemos estudar uma doença, um fator de proteção, o uso de algum medicamento, a exposição a certas substâncias etc. Podemos estudar um fator isoladamente (por exemplo, número de casos de dengue no Rio de Janeiro, em 2001), ou tentar estabelecer uma relação causal entre duas ou mais variáveis (por exemplo, fumar e câncer de pulmão).

Segundo Pereira (2000), são dez os usos da epidemiologia:

�� Diagnóstico da situação de saúde;

�� Investigação etiológica;

�� Determinação de riscos;

�� Aprimoramento na descrição do quadro clínico;

�� Determinação do prognóstico;

�� Identificação de síndromes e classificação de doenças;

�� Verificação dos procedimentos diagnósticos;

�� Planejamento e organização de serviços;

�� Avaliação de tecnologias, programas ou serviços;

�� Análise crítica de trabalhos científicos.

Dos dez usos identificados por Pereira (2000), abordaremos apenas três neste estudo. São eles: o diagnóstico da situação de saúde, a determinação dos riscos e planejamento e organização de servi-ços. Os demais, embora muito importantes, ultrapassam o escopo deste estudo.

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Tomemos o diagnóstico da situação de saúde de uma dada população. Ele representa o uso funda-mental da epidemiologia e subsidia os demais. Trata-se da atividade de gerar dados quantitativos sobre o estado de saúde da população, por meio de registros rotineiros ou de investigações especiais (inquéritos de morbidade, por exemplo). As estatísticas vitais (registros de nascimentos – nascidos vivos e mortos e óbitos) são fontes de dados.

Como registros rotineiros de morbidade temos aqueles que decorrem da demanda por assistência à saúde, seja através do uso dos serviços ou dos resultados clínicos. Como registros especiais temos os de câncer e malformações congênitas. Podemos, também, obtê-los nos sistemas de informação em saúde (SIS), que serão abordados no Módulo III.

Quanto à abrangência, o diagnóstico da situação de saúde de uma população pode estar referido a uma única doença ou agravo, a um fator de risco, ao uso de um serviço, a uma característica da po-pulação ou a um grupo de doenças (cardiovasculares ou infecciosas); ou ser mais abrangente, como é o diagnóstico de saúde de uma comunidade.

De todo modo, para descrever a situação ou estado de saúde de uma dada população, a epidemiologia recorre ao uso de indicadores de saúde que retratem essa situação. Geralmente os indicadores utilizados são os de morbidade e mortalidade. Os indicadores de saúde serão tratados no tópico seguinte.

Se você quiser saber mais sobre indicadores de saúde, inclusive sobre alguns indicadores “positivos”, tais como qualidade de vida, consulte as referências sobre epidemiologia, no final da Unidade.

Para que abordemos o uso da epidemiologia na determinação de riscos, inicialmente precisaremos enfocar o conceito epidemiológico de risco.

Vejamos o exemplo de câncer mamário de pulmão. Mesmo sem fumar, uma pessoa pode desenvolver câncer pulmonar. Se ela fuma, a probabilidade de contrair câncer pulmonar é alta. E se, também, ela trabalha com asbesto, a probabilidade é maior ainda. Desse exemplo extraímos tanto a noção de que o risco pode ser aumentado pela exposição da pessoa ao cigarro e ao asbesto, quanto a noção de fatores de risco. Se, em vem de uma pessoa, temos um grupo de pessoas com esses comportamentos (fumar, fumar e trabalhar com asbesto) é o caso de se buscar construir os conceitos de risco absoluto, relativo e atribuível.

No exemplo anterior, há um risco absoluto de que os dois grupos (fumantes e fumantes que trabalham com asbesto) contraiam câncer de pulmão. Esse risco absoluto pode ser medido como taxa de incidên-cia (número de casos novos no grupo de fumantes, em um dado período; número de casos novos no

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grupo de fumantes que trabalham com asbesto, no mesmo período). Vemos, então que os valores nu-méricos da taxa de incidência são diferentes para os dois grupos. O risco relativo é a razão entre essas duas taxas e a sua interpretação seria a seguinte: o risco de contrair câncer de pulmão é Y vezes maior no grupo de fumantes que trabalham com asbesto, quando comparado com o grupo de fumantes que não trabalham com asbesto. Já o risco atribuível é a diferença entre as duas taxas e a sua interpretação seria a seguinte: ocorreram Z óbitos em excesso, atribuíveis ao asbesto, no grupo considerado.

Pensemos no caso das infecções hospitalares. São vários os fatores de risco para a infecção hospitalar. Ela é inevitável em muitas situações em que o indivíduo mais suscetível (prematuros, idosos, desnu-tridos etc.) é submetido a procedimentos invasivos e exposto ao ambiente hospitalar, onde existem microorganismos muito mais resistentes do que os existentes na comunidade.

Então, é esperado que haja uma determinada taxa de infecção hospitalar. Mas há riscos evitáveis. Evi-tá-los ou minimizá-los significa reduzir o tempo de permanência do paciente, economizar recursos (por exemplo, antibióticos e exames complementares). Enfim, baixar os custos hospitalares e sociais.

Tomemos agora o uso da epidemiologia que Pereira (2000) denomina “Planejamento e Organização de Serviços”. Enquanto o que resulta do processo de planejamento é um plano, há uma forma do planejamento que é a programação. Dela resulta um programa de ação para enfrentar necessidades de saúde ou problemas de saúde. Essas necessidades, do ponto de vista técnico-científico, são informadas pela epidemiologia ou pela clínica.

Mas, não são apenas os profissionais de saúde, informados pela epidemiologia, pela clínica, ou por ambas, que definem as necessidades ou problemas de saúde. Eles podem ser identificados pelas au-toridades sanitárias, por outros atores sociais, pelo próprio paciente e/ou por seus familiares. Uma parte das necessidades identificadas pelos pacientes transforma-se em demanda para os serviços de saúde. Essa demanda pode ser atendida ou reprimida. À demanda atendida chamamos de utilização de serviços de saúde.

A representação gráfica desse fluxo pode ser linear:

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Ou, como preferimos:

O diagrama de círculos concêntricos evidencia que há uma parte das necessidades de saúde e da demanda que não se transforma em utilização de serviços de saúde. Em parte isto é explicado pelo fato de existirem necessidades não percebidas. De outra parte, pela existência de uma demanda repri-mida nos serviços de saúde. Quanto à demanda reprimida, podemos adiantar que a oferta de serviços de saúde condiciona a sua utilização, bem como o acesso aos serviços. Um serviço não ofertado não pode ser consumido.

Dever (1988) relaciona uma série de fatores que influenciam a utilização dos serviços de saúde. Agrupa--os em fatores socioculturais, organizacionais, relacionados com o consumidor e com o prestador.

Entre os fatores socioculturais encontram-se os valores da própria sociedade e a tecnologia emprega-da. Por exemplo, em algumas culturas, o nascimento é um evento predominantemente social e me-nos um evento médico; em uma sociedade em que o parto é, na maioria das vezes, realizado em casa, como na Holanda, a utilização de hospitais pelas parturientes é muito baixa. Outro exemplo: nos grandes centros urbanos do Brasil, nascer e morrer são eventos predominantemente hospitalares, ao contrário de pequenas vilas brasileiras, onde não existe hospital. Nessas vilas, é “normal” que os familiares, amigos e até crianças participem da agonia, da morte e do velório. Este exemplo ilustra, também, além dos fatores culturais, o fato de a oferta condicionar a utilização.

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O uso da tecnologia influencia a utilização de serviços de saúde. Um exemplo: com o desenvolvi-mento da tecnologia para o tratamento da tuberculose, este tratamento deixou de ser ofertado em regime de internação. Hospitais construídos para essa finalidade foram desativados ou reorganizados. Algumas tecnologias “definitivas” reduzem a utilização de serviços de saúde, como por exemplo, as vacinas e os antibióticos. Outras tecnologias “paliativas” aumentam o consumo de serviços.

Como fatores organizacionais que condicionam a utilização dos serviços de saúde, Dever (1988) relaciona:

�� a disponibilidade de recursos, ou seja, o fato de os serviços necessários existirem ou não;

�� a acessibilidade geográfica, que é geralmente medida em termos de distância/tempo de viagem/custo;

�� a acessibilidade temporal, que representa o período de tempo em que os recursos estão funcionando;

�� a acessibilidade social, que é o reflexo da aceitabilidade por parte do paciente e da sua disponibi-lidade financeira;

�� as características da estrutura e processo de atendimento que envolvem tanto as chamadas “barrei-ras ao acesso”, que incluem a cobrança pelo serviço e o próprio sistema de remuneração. Quanto ao processo de atendimento, podemos citar, como exemplo, a existência de mecanismos restriti-vos de triagem de pacientes.

Existem outros fatores relacionados com a clientela e com o prestador, que condicionam a utilização de serviços de saúde. Entre os fatores relacionados com a clientela podemos citar: idade, sexo, nível social e de instrução e as atitudes e convicções. Entre os relacionados com o prestador, encontram--se: a composição da equipe, as inovações tecnológicas de que o prestador dispõe e o preço cobrado (ou não) pelo serviço.

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Todos os fatores que influenciam a utilização dos serviços têm que ser considerados quando se pro-grama ou se avalia um serviço de saúde. Existem predisposições diferentes por parte da clientela para procurar serviços mais distantes de sua casa ou local de trabalho, ou mesmo para maior aceitabilidade do tratamento por parte da clientela, se o problema de saúde é percebido como mais ou menos grave.

4. Indicadores de saúde

Um indicador de saúde, ou melhor, um conjunto de indicadores de saúde serve para revelar a situação de saúde de um indivíduo ou de uma população. Um indicador pode ser expresso sob a forma de um número absoluto (frequência) ou como um número relativo (coeficiente ou índice).

�� Coeficiente é a relação entre o número de eventos que de fato aconteceram (eventos reais) e o nú-mero de eventos que poderiam acontecer. Por exemplo, digamos que um coeficiente é 0,00010. Isto significa que esse coeficiente é igual a 10/100.000. Ou seja, ocorreram dez eventos, mas po-deriam ter ocorrido 100 mil. Se dez se refere a óbitos por câncer de próstata no mês na capital Y no ano X, e 100 mil corresponde ao número de habitantes homens daquela capital, podemos dizer que o coeficiente de óbitos por câncer de próstata naquela localidade é de 10/100.000.

�� Índice é a relação entre a frequência (número absoluto) de eventos e a frequência de eventos que contêm, também, aqueles eventos registrados no numerador. Ou seja, o numerador está contido no denominador. Por exemplo, digamos que um índice é de 0,35. Isto significa que esse índice é igual a 35%. Ou seja, 35 eventos daquele tipo ocorrem no total de 100 eventos gerais. Imaginemos agora que 0,35 corresponde ao índice de mortalidade infantil proporcional no mês na capital Y no ano X, significa que o numerador corresponde ao total de óbitos de menores de um ano e o denomi-nador corresponde ao total de óbitos na mesma localidade, no mesmo período.

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Existem indicadores de uso mais frequente. Abordaremos em seguida alguns deles:

�� mortalidade;

�� letalidade;

�� morbidade;

�� incidência;

�� prevalência;

�� evento-sentinela.

A mortalidade é um dos indicadores mais utilizados em epidemiologia, principalmente por ser de mais fácil obtenção. Indica o número de óbitos ocorridos na população, num determinado período de tempo. A mortalidade geral refere-se ao total de óbitos ocorridos em um dado local, durante um dado período. A mortalidade pode ser específica por causas, por idade, por sexo.

Como exemplos de indicadores específicos de mortalidade podemos citar a mortalidade infantil, ne-onatal, materna e a mortalidade proporcional por causas (representa a relação entre o número de óbitos por uma determinada causa – por exemplo, os óbitos por tuberculose – e o total de óbitos). À semelhança do que se faz para a população em geral, é possível calcular a mortalidade de um dado hospital ou serviço.

Estudar um serviço usando como indicador a mortalidade exige uma contextualização do mesmo. Serviços que prestam atendimento de alto risco, como Unidade de Tratamento Intensivo ou emer-gência, terão resultados diferenciados. Se o pronto-socorro passar a atender menos acidentados e mais quadros gripais, a mortalidade será diferente. Ao mesmo tempo teremos reflexo na mortalidade se atendermos mal aos acidentados.

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Enquanto a mortalidade trata de uma população, mesmo quando analisa a mortalidade por uma causa específica, a letalidade refere-se à morte por uma doença específica no grupo populacional com aquela doença.

Entre os indicadores de morbidade, destacamos a incidência e a prevalência. A primeira refere-se ao nú-mero de casos novos de uma dada doença, complicações ou agravos e reflete a dinâmica com que casos novos aparecem no grupo populacional, num determinado período de tempo. Já a prevalência refere-se a casos existentes, num determinado instante no tempo, independentemente de quando se iniciaram.

Vejamos o exemplo da infecção hospitalar, ao qual se aplica a vigilância epidemiológica. Os casos novos em um dado período representam a incidência. Em um dado momento, o somatório de todos os casos existentes (novos e antigos) representa a prevalência momentânea.

�� Exemplo I: no caso de cirurgia ortopédica eletiva, geralmente, não é esperado ocorrer infecção pós-operatória. Já nas cirurgias ortopédicas de urgência a incidência de infecção pós-operatória é maior. Portanto, neste caso, não podemos comparar a incidência de infecções pós-operatórias sem saber, no mínimo, se as cirurgias em questão são de urgência.

�� Exemplo 2: a prevalência de infecção hospitalar, analisada isoladamente em um berçário de alto risco, pode manter-se estável quando há aumento da incidência e da mortalidade, concomitan-temente. Neste caso haveria uma necessidade de intervenção, já que a estabilidade do indicador (prevalência) não corresponde a uma estabilidade dos níveis de infecção hospitalar (incidência).

Além dos indicadores citados, temos que discutir o conceito de evento-sentinela. Evento-sentinela é a ocorrência de um fato não desejado e potencialmente evitável. Ele nos alerta para que adotemos estratégias de avaliação e medidas de controle. Por exemplo, a ocorrência de tétano neonatal é um problema sério, não desejado e evitável, se as rotinas de cuidados forem adequadas. Seu aparecimento configura-se como evento-sentinela, sinalizando problemas nos cuidados à gestante e ao recém-nato. Outro exemplo de evento-sentinela são as mortes maternas ocorridas em um dado hospital.

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Partindo desse panorama, pense:

A resposta é simples e prática: a sua utilidade é para monitorar situações de saúde-doença e propor ações que modifiquem essa situação.

Embora não seja um indicador que possa ser calculado como os outros citados anteriormente, o acesso é outro fator que deve ser considerado. Ele representa a habilidade da população para obter serviços de saúde disponíveis. O acesso pode ter grande impacto nos indicadores de morbidade e de mortalidade. Tomemos como exemplo a dificuldade de acesso a serviços de emergência por falta de atendimento pré-hospitalar ou transporte apropriado: poderíamos supor um aumento na mortalida-de por trauma, devido à demora no atendimento.

Para responder a essa pergunta, temos que conhecer o perfil de agravos à saúde prevalecentes na região que é atendida pelos serviços de saúde e como é o perfil da demanda atendida. Esta é uma premissa para a adequada provisão de serviços e recursos em saúde. Outra qualidade importante do serviço é que ele deve ser acessível à clientela, não só do ponto de vista das distâncias, mas também dos horários de funcionamento. De maneira geral, além de estarem adequadamente distribuídos e serem acessíveis, os serviços de uma região devem ter resolutividade.

Como exemplo de resolutividade usando apenas indicadores expressos em frequências (números ab-solutos), o Ministério da Saúde incentiva a implantação do Programa de Saúde da Família, para pro-ver serviços de atenção primária acessíveis, adequados e resolutivos.

Pode-se avaliar o acesso a esses serviços, por exemplo, através do indicador número de gestantes cadastradas no atendimento pré-natal. A adequação do serviço pode ser avaliada mediante o uso do indicador número de gestantes que receberam vacina antitetânica ou que fizeram o exame de sangue para sífilis (VDRL). Pode-se avaliar a resolutividade do serviço através do número de bebês nascidos com sífilis congênita.

Uma estratégia importante nos estudos de acesso é o que chamamos genericamente de sistemas de informação geográfica, onde dados epidemiológicos, demográficos e outros são utilizados em con-junto com mapas. O sistema de Informação Geográfica facilita muito o entendimento das questões ligadas à localização dos serviços de saúde, distância dos pacientes até esses serviços, vias de acesso, localização de emissões de poluentes etc.

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Uma ideia implícita para se planejar, monitorar ou avaliar um serviço ou ação de saúde é a necessi-dade de informação. Ou seja, a informação é fundamental no processo decisório. E a epidemiologia pode ajudar nesse sentido.

SÍNTESE

A epidemiologia é fundamental para o planejamento e para a programação de ações e serviços de saúde. Afinal, mesmo em se tratando de um hospital privado, a lógica não pode ser exclusivamente mercadológica. Pensemos que a utilização de serviços de saúde por parte da população, se de um lado pode contribuir para melhorar seu estado de saúde, por outro a expõe aos riscos presentes no ambiente. Entre estes riscos encontra-se a infecção hospitalar, para não falarmos do risco de iatrogenia.

Conhecer o perfil epidemiológico da região em que se localiza o hospital e o perfil dos atendimentos nele realizados significa buscar uma maior adequa-ção às necessidades da clientela, pelo menos em relação àquelas necessidades que a epidemiologia pode ajudar a definir. E uma das formas de se caracteri-zar a boa qualidade de um serviço de saúde seria pela sua adequação.

Os dados epidemiológicos relativos à demanda atendida pelo hospital (utiliza-ção) subsidiam a avaliação da qualidade da atenção nele prestada. Na avalia-ção do hospital é necessário considerar o seu papel no sistema de saúde local, ou seja, quais as suas relações com as outras unidades de saúde eventualmente existentes na região.

5. Programação

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Tentaremos responder essas e outras perguntas com este estudo, mas antes precisamos adiantar que a programação se utiliza de normas. É por isso que alguns planejadores a consideram uma atividade menor, um planejamento meramente normativo. Todavia, a programação é um potente instrumento para manutenção ou para a alteração da organização dos serviços, proporcionando melhoria da sua qualidade. Ademais, ela se utiliza de indicadores que, guardadas as devidas proporções, podem ser-vir, também, para a avaliação dos serviços de saúde.

As Normas Operacionais do Ministério da Saúde revalorizaram a programação, pela instituição da Pro-gramação Pactuada e Integrada (PPI). A PPI abrange atividades de assistência ambulatorial e hospi-talar, de vigilância sanitária e de epidemiologia e controle de doenças, constituindo um instrumento essencial de reorganização do modelo de atenção e da gestão do SUS, de alocação dos recursos e de explicitação do pacto estabelecido entre as três esferas de governo.

Essa programação traduz as responsabilidades de cada município com a garantia de acesso da popu-lação aos serviços de saúde, quer pela oferta existente no próprio município, quer pelo encaminha-mento a outros municípios, sempre por intermédio de relações entre gestores municipais, mediadas pelo gestor estadual.

Seu processo de elaboração deve respeitar a autonomia de cada gestor:

�� o município elabora sua própria programação, aprovando-a no Conselho Municipal de Saúde;

�� o estado harmoniza e compatibiliza as programações municipais, incorporando as ações sob sua responsabilidade direta, mediante negociação na Comissão Intergestores Bipartite, cujo resultado é deliberado pelo Conselho Estadual de Saúde;

�� a União define normas, critérios, instrumentos e prazos, aprova a programação de ações sob seu con-trole – inscritas na programação pelo estado e seus municípios –, incorpora as ações sob sua responsabi-lidade direta e aloca os recursos disponíveis, segundo os valores apurados na programação e negociados na Comissão Intergestores Tripartite, cujo resultado é deliberado pelo Conselho Nacional de Saúde.

É claro que esse processo não é somente técnico, mas, também, político.

Portanto, como vimos acima, a programação pode ser feita para um município ou estado. Mas ela pode também ser feita para um serviço de saúde. Nos dois primeiros casos, chamamos de programa-ção regional. A ênfase no nosso estudo, em função da composição da clientela, será na programação de serviços. Nosso primeiro passo agora é buscar definir programação.

5.1. Definindo programação e buscando entender a sua lógica

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Por que dizemos que a programação é um “cálculo de aproximações sucessivas”? Por várias razões, entre elas:

�� em saúde, os recursos são e tendem a continuar sendo escassos. Nosso país investe relativamente pouco em saúde (o gasto público em saúde no Brasil corresponde a 3,17% do PIB – dado relativo a 1996, o mais recente). Além disso, não se pode dizer que os recursos sejam empregados com eficiência. Mesmo em países que investem mais em saúde, a alta incorporação de tecnologia gera custos crescentes. Se os recursos são escassos, a programação feita hoje precisará ser avaliada e, possivelmente, redirecionada;

�� as informações e dados disponíveis para se programar são insuficientes. Nem sempre dispomos de informação de base epidemiológica para procedermos ao enfrentamento de todos os problemas de saúde;

�� a programação se utiliza de normas. Elas são construídas com base em revisão bibliográfica, em busca de evidências científicas para subsidiar a elaboração de rotinas e protocolos clínicos; opinião de experts com ou sem utilização de métodos Delphi e Grupo Nominal, buscando-se consenso; ou, mais frequentemente, pela observação sistemática de experiências e de processos, que incluem estudos de utilização e séries históricas. E isto pode trazer consequências, tais como a aplicação mecânica de normas geradas em um momento, em uma determinada realidade, para outra com-pletamente diferente. Por sua vez, o emprego de estudos de utilização para a construção de nor-mas para programação pode reproduzir a realidade que precisamos modificar. Então, não existe a norma infalível, aplicável a todas as realidades, em todos os momentos.

A programação dos serviços de saúde visa o aumento de eficiência, assegurando-se uma boa quali-dade, a partir da melhor utilização dos recursos. Com a programação se define o que o serviço de saúde vai oferecer, quais as ações, e como ele será organizado e disponibilizado para a população. No processo de programação em saúde, segundo Taveira (2000), busca-se “articular três eixos princi-pais. São eles:

�� o da saúde, em que se analisa o estado de saúde atual de um determinado grupo populacional e se define o estado de saúde considerado desejável (futuro planejado), em determinado espaço de tempo;

�� o dos serviços, em que se precisa identificar e avaliar os serviços atualmente prestados (presente) e os serviços necessários (futuro planejado) para modificar o estado de saúde atual;

�� o dos recursos, em que se precisa identificar e avaliar os recursos atualmente disponíveis (presen-te) e os que serão necessários (futuro planejado) para executar os serviços propostos.”

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5.2. As normas e a programação

Vimos anteriormente como são geradas as normas utilizadas para programar um serviço ou uma rede de serviços de saúde. As normas são de dois tipos:

�� normas duras, que representam um amplo consenso de boa prática ou uma evidência científica. Sobre elas não há o que se discutir. Como exemplos, o número de dose de vacina Sabin para imu-nizar crianças contra paralisia infantil (poliomielite) e a obrigatoriedade de se lavar as mãos entre o cuidado de um e de outro paciente;

�� normas brandas, sobre estas é possível o debate e, às vezes, há uma certa margem de negociação. Como exemplos, o número considerado mais adequado de leitos por habitante e quantas consultas devem ser realizadas pelo médico em uma hora de trabalho.

5.3. Construindo os modelos de programação

Vamos utilizar cinco exemplos, sob a forma de problemas de fácil resolução, para construirmos jun-tos os chamados “modelos de programação”.

Problema 1

Temos uma população de mil crianças de zero a quatro anos. Todas elas precisam ser protegidas con-tra a poliomielite. Todas as crianças até quatro anos de idade receberão três doses de vacina e mais uma de reforço. Este é um problema simples de programação de atividades.

Faremos o seguinte raciocínio:

�� População = mil crianças.

�� Temos que vacinar todas. Vacinar todas as crianças de zero a quatro anos corresponde a vacinar 100% das crianças até quatro anos. Então, 100% é a norma de cobertura.

�� Multiplicando a população pela norma de cobertura, chegaremos à população-alvo.

�� No caso, a população-alvo é de mil crianças.

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�� Cada criança deve receber, até os quatro anos de idade, as quatro doses de Sabin. Então, quatro doses é a norma de concentração.

�� Multiplicando a população-alvo pela norma de concentração, teremos o número total de doses de Sabin a serem aplicadas.

Deste exemplo extraímos os seguintes conceitos:

Expressando o nosso raciocínio em uma fórmula:

número de atividades = população x norma de cobertura x norma de concentração.

Problema 2

Temos uma população de 400 gestantes em um ano na localidade X. Imaginemos que 80% delas precisam fazer consultas pré-natais na nossa rede de serviços. Cada gestante deve receber seis consultas de pré-natal.

Fazendo uma analogia com o exemplo anterior concluímos que:

�� a população é de 400 gestantes no ano;

�� a norma de cobertura é de 80%;

�� a população-alvo é de 320 gestantes no ano;

�� a norma de concentração é de seis consultas/gestante;

�� o total de consultas de pré-natal para essa população, utilizando esses parâmetros, é de 1.920 consultas anuais.

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Problema 3

Temos uma população de 15 mil adultos e precisamos programar o número de internações no ano X. Não é possível calcular a cobertura nem a concentração.

O que fazer?

Vamos revisar a literatura em busca de algum parâmetro que possa nos ajudar. Encontramos que:

�� em alguns países, cerca de 12,2% da população se internam a cada ano (Previdência Social – INAMPS em Dados, 1980) ;

�� o parâmetro brasileiro apresentado na Portaria nº 3.046 é que 10% da população se internam a cada ano.

Multiplicaremos o total da população pela taxa de utilização e obteremos o número de internações no ano X, que é de 1.500 internações.

Problema 4

Temos que oferecer atendimentos de urgência/emergência para uma população de 25 mil pessoas.

O que fazer?

A única coisa que soubemos com a nossa busca é que 15% das consultas totais no ano correspondem a atendimentos de urgência e de emergência. E que a norma de concentração é de duas consultas por habitante no ano.

Problema 5

Temos um hospital para colocar em funcionamento. Os pacientes precisarão de roupa limpa para uso.

O que fazer?

Procuramos na biblioteca e encontramos um Manual de lavanderia do Ministério da Saúde. Nele são apresentados alguns padrões de consumo de roupa limpa (ou geração de roupa suja) por leito hospi-talar nas 24 horas.

Ao chegarmos a este ponto do nosso raciocínio vamos sistematizar nossos achados em uma planilha.

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Analisando a planilha anterior, verificamos que:

�� para calcular imunização Sabin e consultas de pré-natal utilizamos o mesmo raciocínio. Ele se apro-xima muito das necessidades desses grupos populacionais, em relação a essas atividades específicas. Podemos dizer, então, que esse modelo de cálculo corresponde a uma programação por necessidades;

�� para calcular as internações recorremos a uma taxa de utilização;

�� para calcular a atividade lavagem de roupas recorremos a um padrão de consumo;

�� para calcular os atendimentos de urgência/emergência recorremos a um parâmetro (estimativa). Não sabemos quantos atendimentos serão de emergência e quantos serão de urgência... É claro que vamos levantar o perfil de morbimortalidade dessa população... De todo modo, para estruturar um serviço de emergência nessa localidade, faremos uma programação para oferecer “recursos mínimos indispensáveis”. Estamos, então, diante de um modelo de programação por oferta. Veri-ficaremos a utilização desse serviço e o adequaremos à demanda. Esse modelo de cálculo podemos chamar de oferta/demanda.

A programação não se encerra com a determinação de um certo número de atividades. O próximo passo é determinar quais são os recursos necessários. Esses recursos podem ser físicos, humanos, financeiros etc.

Extrairemos da planilha anterior os dados relativos a consultas de pré-natal e de internações e ire-mos programar recursos físicos para o desenvolvimento das ações. Para as consultas o recurso físico indispensável é o consultório e para as internações, o leito hospitalar. Nesse processo precisaremos saber o rendimento de um recurso (consultório ou leito), ou seja, quantas ações podem ser realizadas com um consultório ou um leito, em um ano. Seguindo o raciocínio lógico-matemático, dividiremos o total de atividades a serem realizadas pelo rendimento de uma unidade de medida (consultório ou leito) e saberemos a necessidade total de recursos físicos.

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A - Vamos calcular o número de consultórios necessários, passo a passo.

�� Qual é o rendimento anual de um consultório? Ou seja, quantas consultas, em média, podem ser realizadas em um consultório, em um ano? Ora, é possível realizar três a quatro consultas pré-natais por hora. Vamos trabalhar com quatro consultas/hora. Sabendo que o consultório funciona durante quatro horas por turno de atendimento e que são oferecidos dois turnos diários durante 20 dias úteis em cada mês, e que são 12 os meses do ano, temos:

Rendimento anual de um consultório = 4 consultas/hora x 8 horas/dia x 20 dias úteis x 12 meses

Rendimento anual de um consultório = 7.680 consultas anuais.

�� Temos que prestar 1.920 consultas de pré-natal em um ano.

Número de consultórios = 1.920 consultas anuais/7.680 consultas

Número de consultórios = 0,25 consultório, ou seja, ¼ do funcionamento de um consultório.

Os consultórios de pré-natal precisam ter sanitário anexo, os de ginecologia e proctologia também. Então, em vez de termos consultórios ociosos em ¾ do tempo, por que não dividimos os turnos de fun-cionamento, no mínimo, com a ginecologia? Afinal, ginecologia e obstetrícia são especialidades afins.

B - Agora vamos calcular o número de leitos necessários para realizarmos as 1.500 in-ternações anuais, passo a passo.

�� Qual é o rendimento anual de um leito hospitalar? Ou seja, quantas internações, em média, podem ser realizadas em um leito hospitalar, em um ano? Quanto um leito vai “render” depende do Tempo Médio de Permanência (TMP) e do percentual de tempo em que ele vai estar ocupado, ou seja, de sua Taxa de Ocupação (TO). Tempo médio de permanência, taxa de ocupação e o número de dias em que o leito está disponível para uso, ou sendo usado no ano, consistem nas chamadas normas de funcionamento, no nosso exemplo, do leito hospitalar. Vamos trabalhar com as seguintes normas de funcionamento: TMP = 7 dias; T= 80%; NF = 365 dias no ano. Então, temos:

Rendimento anual de um leito hospitalar = 365 x 0,80/7 = 41 internações/leito/ano.

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�� Temos que realizar 1.500 internações no ano. Cada leito apresenta o rendimento de 41 internações anuais.

Número de leitos = 1.500 internações anuais/41 internações anuais/leito

Número de leitos necessários: aproximadamente 37 leitos.

Sabemos que é relativamente rara a oportunidade de colocarmos um hospital novo em funcionamento.

A lógica empregada na programação aplica-se também aos serviços que já se encontram em funcio-namento.Para isto, o cálculo pode ser feito, também, em sentido inverso, ou seja, dos recursos exis-tentes para o número de atividades, a fim de avaliarmos a eficiência na utilização dos recursos físicos.

Vamos consolidar os nossos achados em uma planilha:

Uma questão fundamental no processo de programação é relativa ao balanço entre recursos neces-sários e existentes e aos ajustes que precisarão ser feitos para melhorar a utilização dos recursos, do

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acesso aos mesmos e da sua qualidade. Retornaremos ao balanço entre recursos necessários e exis-tentes, após sistematizarmos os dois modelos de programação.

Podemos dizer, a essa altura, que existem dois modelos de programação, ou seja, dois modos básicos de se fazer programação: por necessidades ou problemas de saúde e por oferta/demanda. Esses mo-delos serão representados graficamente, para que possamos entender o processo de programação de uma forma mais global.

Modelo de programação por necessidades Modelo de programação por oferta/demanda

Sobre os dois quadros anteriores, podemos dizer que:

�� os pontos de partida dos dois modelos são diferentes. Enquanto no primeiro quadro partimos das necessidades ou dos problemas de saúde, no segundo partimos da oferta ou da demanda;

�� o ponto de chegada dos dois modelos também é diferente. Após o balanço entre recursos neces-sários e disponíveis e procedendo-se aos ajustes (que podem significar, por exemplo, criação, redução ou expansão do número de leitos) incide-se no primeiro modelo sobre as necessidades de saúde e, no segundo, sobre a oferta/demanda;

�� o modelo de programação expresso no primeiro quadro é potencialmente mais efetivo que o se-gundo. Com ele busca-se modificar as necessidades ou problemas de saúde. Se temos dados epide-miológicos para subsidiar a nossa programação, teremos mais facilidade para avaliar os resultados (impacto);

�� nos dois quadros, o resultado do balanço entre recursos necessários e disponíveis (existentes) pode ser positivo (sobram recursos) ou, mais frequentemente, negativo (faltam recursos). Sendo negati-vo, há que se proceder a um ajuste para mais. Esse ajuste pode ser pelo remanejamento de outros recursos existentes. Ou pelo acréscimo de novos recursos. De todo modo, o raciocínio estratégico precisará ser empregado. Afinal, trata-se de criar viabilidade para a programação executada. Por-tanto, como o planejamento, a racionalidade da programação é técnico-política. Caso contrário, torna-se apenas um exercício de cálculo.

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No hospital, sempre que programamos um aumento de um recurso ou de uma atividade, precisamos levar em conta a interdependência existente entre os setores/atividades. E esta é uma das formas de aumentar a coerência e a viabilidade da programação. Por exemplo, se aumentarmos o número de leitos da clínica médica ou da pediatria precisamos levar em conta as repercussões para os outros serviços dos quais elas recebem produtos ou serviços, ou para os quais gerem demandas.

Os pacientes que ocuparão os leitos a serem ampliados consumirão mais:

�� refeições;

�� roupas lavadas;

�� horas de cuidado de enfermagem;

�� horas de atenção médica;

�� medicamentos;

�� exames complementares etc.

Teremos que analisar, no mínimo, o impacto dessa ampliação para o centro cirúrgico, central de esterilização, serviço de anestesiologia etc. E assim por diante...

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5.4. As estatísticas e os indicadores hospitalares de produção

A estatística hospitalar engloba a aplicação das técnicas estatísticas na análise dos dados hospitalares. Os indicadores hospitalares são habitualmente produzidos pelo Serviço de Arquivo Médico e Estatística (SAME), ou Serviço de Documentação Médica e Estatística do Hospital, sendo imprescindível a adequada organização desse serviço.

Porque, além de produzir estatísticas e indicadores hospitalares, esse serviço é responsável pela ma-nutenção, guarda, conservação e circulação dos prontuários no hospital. Os prontuários constituem--se em fonte primária das informações em saúde, para alimentação dos sistemas nacionais de informação ou bases de dados nacionais, tais como o SIM, SINASC, SIH/SUS, que serão apresentadas no Módu-lo III – Gestão de Recursos nas Organizações de Saúde. Mas, além, de ser fonte primária para essas bases de dados, a função primordial do prontuário é promover a integração dos registros feitos pelos vários profissionais da assistência, contribuindo para a continuidade do cuidado ao paciente. E essa continuidade é um atributo da assistência de boa qualidade.

Os hospitais podem, também, obter dados mediante a implantação de um sistema de informações de âmbito hospitalar.

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Esse sistema pode ser informatizado. O Sistema Informatizado de Informações Hospitalares pode variar de módulos independentes, que tratem de funções do hospital, tais como controle de estoques, pessoal etc., até um sistema integrado, que tenha por base o Prontuário Eletrônico do Paciente. Os dados de um sistema informatizado de informações hospitalares podem agilizar a avaliação da pro-dutividade, dos resultados, análise de custos, simulações e outros, subsidiando a tomada de decisão.

Em resumo, o SIG constitui-se em:

�p ferramenta de gestão que permite tomar decisões;

�p fonte de informação objetiva, pertinente, confiável.

Espera-se que o Sistema de Informação Gerencial (SIG), independentemente da tecnologia empre-gada, sirva para:

�� gerar a informação necessária para o conhecimento e apoio nas diferentes áreas funcionais do hos-pital: assistencial, orçamentária-financeira, recursos humanos, abastecimento e outras;

�� potencializar a capacidade e a eficiência dos serviços do hospital, dado que facilita o planejamento e o controle dos processos e dos resultados;

�� induzir a melhoria na organização do hospital;

�� potencializar o grau de coerência do conjunto do hospital, quando o sistema de informação é abrangente, integrado e homogêneo;

�� contribuir para a melhoria da comunicação interdepartamental e, por consequência, para a coor-denação entre as atividades do hospital.

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Como a maior parte dos hospitais brasileiros não possui sistemas gerenciais informatizados, vamos considerar o SAME, que costuma produzir suas estatísticas a partir do censo diário. Abordaremos uma situação muito frequente: um hospital em que o censo não está informatizado.

Exemplo:

Nesse hospital convencionou-se que a enfermagem, todos os dias, no mesmo horário, por exemplo às 24h, verifica todos os doentes internados, confere os registros de entradas e saídas do dia no Livro de Relatório de Enfermagem, confere, também, a identificação dos pacientes e a que consta nos prontuários e contabiliza os pacientes existentes. Está tudo certo, toda a movimentação de pacientes está corretamente anotada. Em seguida, ela faz uma anotação (na Folha do Censo e/ou no Livro de Ocorrências) que dá conta do movimento diário daquela unidade. Isto é feito clínica por clínica. Em resumo, essa anotação gera o seguinte balanço, na clínica cirúrgica:

�� capacidade instalada: 30 leitos (uma enfermaria de cinco leitos está desativada);

�� leitos disponíveis: 25 leitos;

�� existiam: 20 pacientes (à meia-noite do dia anterior);

�� altas: 2 (esses dois pacientes entraram e saíram no mesmo dia, visto que se submeteram à cirurgia para correção de hérnia e eram jovens);

�� óbitos: 0;

�� transferências: 1;

�� transferidos: 1;

�� admitidos: 6;

�� existem: 24 pacientes.

Qual a utilidade desse procedimento?

Porque:

�� o paciente que entrou e saiu no mesmo dia consumiu recursos: roupa de cama, material estéril, alimentação, energia etc. Se considerarmos só os pacientes que existem à meia-noite nosso hospi-tal vai “quebrar” ou vai faltar algum insumo importante para o processo de atenção;

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�� a maior parte dos indicadores hospitalares de produção/produtividade é calculada a partir do nú-mero de pacientes-dia e do número de leitos-dia.

Então, o Serviço de Arquivo Médico e Estatística desse hospital anota a cada dia do mês em uma folha grande, ou num livro, o número de pacientes-dia e de leitos-dia, naquele dia, naquela clínica, no espaço correspondente (a folha tem espaço suficiente para as anotações de todo o mês). No início do próximo mês é feita a estatística mensal e o cálculo dos indicadores, clínica por clínica. Podemos também proceder ao cálculo por trimestre.

5.5. Calculando os indicadores da internação

Calcularemos os seguintes indicadores: taxa de ocupação; média de permanência; rotatividade do leito; intervalo de substituição. Mas, antes de iniciar o cálculo dos indicadores, precisamos lembrar que:

�� o número de pacientes-dia refere-se à soma do número de pacientes que passam para o dia seguinte mais o número de pacientes que entraram e saíram no mesmo dia;

�� o número de leitos-dia de um período refere-se à soma do número de leitos disponíveis em cada dia do período;

�� na contagem do número de leitos incluem-se apenas os leitos disponíveis, incubadoras e leitos para prematuros. Excluem-se aqueles utilizados para trabalho de parto, recuperação, cuidados intensi-vos, emergência e para RN normais.

A seguir, buscamos algumas normas ou parâmetros para subsidiar o nosso cálculo. Vamos trabalhar com os seguintes:

�� taxa de ocupação ideal:

�p hospital geral: 85%;

�p hospital de longa permanência: 95%;

�� média de permanência:

�p clínica médica: 6,5 dias;

�p clínica cirúrgica: 5,8 dias;

�p clínica obstétrica: 3,7 dias;

�p clínica psiquiátrica: 36,5 dias;

�p clínica pediátrica: 6,5 dias;

�� taxa de mortalidade hospitalar:

�p hospital geral: máximo de 3,4%;

�� taxa de infecções:

�pmáximo de 3%.

Vamos agora ao cálculo dos indicadores, às suas definições e aplicações?

A - Taxa de ocupação hospitalar: expressa o número médio de leitos que estiveram ocupados diariamente, durante um determinado período, em porcentagem. É um dos indicadores mais utili-zados, que orienta sobre o grau de uso do recurso “leito hospitalar”.

TO = total de pacientes/dia do período x 100

total de leitos/dia do período

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Exemplo: A enfermaria de clínica médica do Hospital Y apresentou um total de 1.489 pacientes-dia no primeiro trimestre de 2001 e de 1.840 leitos/dia, no mesmo período. A taxa de ocupação da clínica médica foi, então, de 80,9%. Ou seja, 80,9% dos leitos disponíveis na clínica médica do Hospital Y, no primeiro trimestre de 2001, estiveram ocupados.

Vamos comparar com a norma que nós elegemos.

Em relação à norma que elegemos, a taxa de ocupação da clínica médica do Hospital Y está um pouco baixa. Será que nós escolhemos a norma adequada? Afinal, é admissível uma taxa de ocupação de 80%.

B - Média de permanência ou tempo médio de permanência: expressa o número de dias que cada paciente, em média, ficou internado. Para o cálculo, podemos utilizar duas formas:

A primeira fórmula é mais utilizada, pela facilidade de obtenção dos valores das variáveis. Porém, costuma representar apenas um número aproximado do real e não deve ser utilizada para estabeleci-mentos de longa permanência.

Exemplo: No Hospital B constatou-se que, em janeiro de 2001, saíram 59 pacientes, de um total de 1.067 pacientes-dia. A média de permanência de cada paciente foi de 18,08 dias. Ou seja, cada paciente do Hospital B permaneceu internado 18,08 dias, em média, em janeiro de 2001.

De que nos serve comparar com a norma que nós elegemos?

Ora, não sabemos qual é o perfil assistencial do Hospital B. Se ele for de psiquiatria, podemos di-zer que o tempo médio de ocupação está diminuído em relação à norma que nós elegemos e que, provavelmente, este hospital está internando muitos casos agudos de doença psiquiátrica. Sendo de psiquiatria, no mínimo, a internação se divide em internação masculina e feminina.

Neste caso, não seria mais interessante calcular o tempo médio de permanência nessas enfermarias?

Acerca do exemplo utilizado para o cálculo do tempo médio de permanência podemos dizer que:

�� é necessário saber a que especialidade médica o indicador está referido, visto que há uma grande variação do seu valor nas diversas especialidades;

�� dependendo da especialidade e/ou da organização das enfermarias dos hospital, os indicadores de-vem ser calculados por clínica ou mesmo por enfermaria (no caso, masculina e feminina) porque os valores dos indicadores podem ser substancialmente diferentes;

�� dependendo do nível gerencial que vai analisar o indicador, o grau de agregação dos dados (por hospital, por clínica, ou por enfermaria) pode ser satisfatório ou não.

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C - Rotatividade do leito ou índice de renovação: expressa o número de pacientes saídos por cada leito, em média, durante o período considerado.

Exemplo: No primeiro trimestre de 2001, 78 pacientes saíram da Clínica C. Esta clínica teve 30 leitos durante o período. A rotatividade de cada leito foi, em média, de 2,6 pacientes/leito. Ou seja, cada leito da Clínica C gerou 2,6 saídas (em média), no primeiro trimestre de 2001.

D - Intervalo de substituição: expressa o número de dias em que cada leito permaneceu desocu-pado, em média, entre uma saída e a próxima admissão, num determinado período.

Exemplo: A clínica médica do Hospital Z totalizou 2.100 leitos-dia no mês de janeiro de 2001 e 1.962 pacientes-dia. Nesse mesmo período teve 98 pacientes saídos. Vamos utilizar a primeira fórmula, já que temos o valor das três variáveis. O intervalo de substituição foi de 1,4 dia. Ou seja, cada leito da clínica médica do Hospital Z ficou vazio durante 1,4 dia, em média, entre uma saída e a admissão seguinte, em janeiro de 2001. Podemos dizer que, comparado com a literatura nacional, esse é um intervalo de substituição bastante satisfatório. Mas, ele sozinho, não informa muito sobre o que acontece na clínica médica do Hospital Z...

Vamos utilizar os dados apresentados nesse exemplo para calcular outros indicadores.

Já vimos anteriormente que, para calcular a taxa de ocupação, precisamos do total de leitos-dia e de pacientes-dia no período. Vamos calcular a taxa de ocupação da clínica médica do Hospital Z, em janeiro de 2001?

TO = 1962 x 100 = 93,42%

2100

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Temos, nesse exemplo, o total de saídas. Vamos calcular o tempo médio de permanência da clínica médica do Hospital Z, em janeiro de 2001?

TMP = 1962 = 20 dias

98

Do exemplo anterior e da forma como procedemos, podemos concluir que:

�� cada um desses indicadores hospitalares, isoladamente, informa pouco sobre o que realmente ocorreu na clínica médica do Hospital Z, em janeiro de 2001. Isoladamente, só é possível compa-rá-los com as normas;

�� o tempo médio de permanência é muito elevado para a clínica médica. É necessário analisar se os pacientes têm acesso aos recursos diagnósticos e terapêuticos necessários e qual é o tempo de espera para que eles sejam realizados. É necessário, também, considerar que tipo de paciente está sendo internado (idosos, com doenças crônicas ou com graus elevados de gravidade);

�� o intervalo de substituição é relativamente pequeno. Como será a fila de espera para internação? Consideremos que, geralmente, se interna pouco à noite, em hospitais que não têm serviço de emergência; como serão as normas e rotinas do hospital em que se localiza essa clínica médica? Será que esse hospital tem emergência?

�� a taxa de ocupação é elevada para um hospital geral e aproxima-se da taxa esperada para hospitais de longa permanência, que internam pacientes crônicos. Será que são poucos os pacientes agudos internados nessa clínica?

Quando não dispomos de censo hospitalar recorremos a alguns artifícios, porém, temos que saber que podemos estar incorrendo em grandes erros. Os dados de produção são mais confiáveis quando derivam de um censo bem-feito, do que quando decorrem dos artifícios que serão abordados em seguida.

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5.6. A programação, o monitoramento e a avaliação da qualidade

Nos serviços assistenciais de saúde, os indicadores abordados aqui, em “Programação”, e em “A epidemiologia como ferramenta...” devem ser considerados para o monitoramento do hospital. Este consiste na análise rotineira de:

�� indicadores relativos ao perfil de morbimortalidade da localidade em que se encontra o hospital, pois seu perfil assistencial precisa manter alguma correspondência, pelo menos, com os problemas de saúde mais prevalecentes. Principalmente se ele for o único na região;

�� indicadores relativos ao perfil de mortalidade e morbidade da demanda atendida;

�� indicadores de produção;

�� outros indicadores de desempenho, que incluem custo e indicadores de qualidade.

Nessa análise, precisamos contextualizar os dados e informações tanto quanto a que tipo de serviço e a que período de tempo se referem, e ao que eles expressam. Tomando como exemplo um dado de realidade: a elevada frequência de pacientes com “pé diabético” nos hospitais e o agravamento das situações de amputação. Este é um problema de qualidade originado no hospital? Não, ele é gerado pela deficiência do programa de diabetes no município. Ou seja, ele é consequência da baixa resolu-tividade da rede de atenção básica do município. Mas, já no hospital, a amputação foi mais extensa porque o paciente esperou demasiadamente por ela? Então, há um problema relacionado à qualidade da assistência prestada pelo hospital.

Cada indicador deve ser considerado no seu contexto; por exemplo, não podemos julgar se um tempo médio de permanência de sete dias é alto ou baixo, se não soubermos que tipo de problema de saúde é atendido naquele hospital. Vimos anteriormente que o grau de agregação do dado é importante para quem de direito decidir e agir. Por outro lado, esse conhecimento só, não basta, pois temos que analisar os resultados desta unidade com outras, com o mesmo tipo de atendimento, ou com dados da literatura. Uma das fontes importantes de dados sobre atendimentos é a página do DATASUS <www.datasus.gov.br>.

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Olhemos com certas precauções a comparação dos resultados da assistência. Eles são influenciados pela sazonalidade, pela gravidade dos casos atendidos e pela disponibilidade das tecnologias necessá-rias ao bom atendimento. Caso você queira comparar os dados de seu hospital com os de outro, pode ser necessário recorrer à padronização dos dados, antes de se fazer a comparação.

Se não dispomos de um sanitarista ou epidemiologista, mas precisamos fazer comparações, que tal compararmos os resultados de uma certa clínica em um determinado período de tempo, com os resultados obtidos pela mesma clínica em outros períodos de tempo? Se a clientela não mudou subs-tantivamente, o erro não será grande. Se for um Centro de Tratamento Intensivo, por exemplo, a possibilidade de erro é menor ainda, visto que existe uma escala de classificação de risco e de gravi-dade da doença, o APACHE, que tem duas aplicações:

�� avaliar o prognóstico de um dado paciente;

�� facilitar a comparação dos resultados de um, com os de outros centros de tratamento intensivo.

Avaliação implica um julgamento. Mas é difícil definir o que é qualidade em saúde. Até porque, múl-tiplos julgamentos podem ser feitos pelos gestores, pelos profissionais da assistência, pelos clientes...

Um autor chamado Donabedian propôs três dimensões de avaliação em um serviço:

�� estrutura;

�� processo;

�� resultado.

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A estrutura refere-se ao espaço físico e às suas condições; ao número e composição da equipe de saú-de, incluindo seu grau de qualificação; à existência de normas organizacionais e rotinas de serviços e processos; aos recursos financeiros, humanos e materiais.

Citemos alguns exemplos de indicadores para avaliação da estrutura:

�� quanto aos recursos humanos: número de médicos ou de médicos com certa qualificação; número de médicos por habitante ou por leito;

�� quanto aos recursos materiais e área física: m2 por leito, equipamentos de diagnóstico disponíveis;

�� quanto às normas e rotinas: existência e nº de rotinas escritas (por exemplo, de alta, admissão e óbito); existência de protocolos clínicos;

�� quanto aos recursos organizacionais: além das formas de pagamento; a existência de comissões de Prontuários, de Óbitos e de Controle de Infecção Hospitalar.

Processo pode ser explicado como fluxo, movimento, transformação. No caso da assistência à saúde, processo refere-se ao conjunto de atividades desenvolvidas pelos profissionais na assistência prestada ao paciente ou cliente.

A avaliação do processo inclui aspectos relacionados à qualidade técnica do atendimento (adequa-ção, continuidade e oportunidade) e às características da relação interpessoal entre os profissionais e o paciente. Não é fácil avaliar o processo assistencial. Geralmente, se recorre à observação direta ou aos registros do prontuário. Vamos a alguns exemplos:

�� em relação à qualidade técnica:

O medicamento prescrito é o mais adequado para uma determinada situação?

�� quanto à relação interpessoal:

Houve atenção e respeito no atendimento prestado?

�� quanto à organização do atendimento:

O tempo de espera para consulta é adequado?

Podemos trabalhar, também, com alguns dos indicadores hospitalares anteriormente abordados para inferirmos sobre a qualidade do processo. Por exemplo, taxa de ocupação e tempo de permanência.

�� uma elevada taxa de ocupação pode nos levar a avaliar o processo para ver se os atendimentos estão sendo adequados (exemplo: em caso de superlotação em UTI Neonatal, geralmente, os profissio-nais não lavam corretamente as mãos entre o cuidado de um e outro bebê);

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�� para a programação, utilizamos o Tempo Médio de Permanência (TMP). À primeira vista, uma determinada clínica médica pode ter um TMP adequado. Mas, a média pode encobrir uma diver-sidade de situações. Imaginemos que alguns pacientes ficaram internados durante dois dias e que outros permaneceram internados durante 18 dias para compor um TMP de sete dias. Então, numa avaliação de processo, é necessário que olhemos, no mínimo, os tempos de permanência (e não a média de permanência) desses dois grupos de pacientes.

Resultado é a alteração da condição de saúde decorrente do cuidado prestado. Em outras palavras, resultado é efetividade, é impacto nas condições de saúde. Os resultados do processo de atenção podem ser positivos ou negativos. A melhora clínica após um tratamento é um resultado desejado. A infecção hospitalar é um resultado não desejado. Um resultado que vem sendo cada vez mais va-lorizado, apesar das dificuldades metodológicas para a sua verificação, é a satisfação do usuário. Um óbito evitável é um mau resultado. A erradicação da poliomielite é um ótimo resultado do Programa Nacional de Imunização (PNI).

Vamos utilizar o exemplo das comissões para compreendermos melhor essa classificação.

A classificação proposta por Donabedian é mais uma ferramenta metodológica que uma divisão absoluta.

�� A existência dessas comissões qualifica o hospital, são recursos organizacionais de que ele dispõe. Portanto, são consideradas estrutura.

�� A forma como essas comissões funcionam refere-se ao processo. A CCIH realmente assessora a direção do hospital e procede adequadamente à investigação epidemiológica dos casos de infecção hospitalar?

�� Por último, o fruto do trabalho dessas comissões gera um resultado a ser avaliado. A taxa de in-fecção hospitalar foi reduzida? A qualidade dos prontuários melhorou?

Há uma relação entre os atributos estrutura, processo e resultado, mas a qualidade de um deles não garante a qualidade de outro. Ou seja, uma estrutura adequada não garante um processo adequado que, por sua vez, não garante um bom resultado. Uma boa estrutura é, sim, uma condição facilitadora de um bom processo que, por sua vez, facilita, mas não determina, a obtenção de um bom resultado.

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6. A programação e a produtividade

Mesmo nos países desenvolvidos, que investem muito mais em saúde do que o Brasil, o crescimento dos custos com assistência médica supera em muito a inflação. Não é à toa que a produtividade dos serviços de saúde tem recebido tanta atenção. E a programação, por objetivar a alocação eficiente de recursos, mantém estreita relação com a produtividade.

Produtividade, neste estudo, representa a relação entre a produção obtida (por exemplo, número de altas ou de consultas) por uma dada unidade produtiva (por exemplo, clínica médica), num dado tempo, e os insumos utilizados para essa produção (leito hospitalar, consultório). O indicador de produtividade pode ser expresso em unidades de produção por unidade do insumo utilizado (por exemplo, altas/leito da clínica médica no mês de janeiro de 2001).

Até meados da década de 50, mesmo na área industrial, o conceito de produtividade limitava-se à razão entre o produto e a hora trabalhada (produtividade dos recursos humanos). Tal como hoje é entendida na área industrial, a produtividade, ou melhor, o seu indicador é constituído pela divisão de um produ-to/serviço pelos fatores de produção. O indicador de produtividade pode ser parcial ou global.

�� É parcial quando se refere a apenas um insumo (mão-de-obra ou capital), que seja significativo e re-presentativo. Em relação à mão-de-obra, podem ser empregados horas-homem ou número de funcio-nários. No caso dos hospitais públicos, como os custos com pessoal representam, em média, segundo Bittar (1994), 50 a 60% dos custos totais, esse é um insumo significativo. Esse percentual também é válido, segundo o mesmo autor, para os hospitais privados, se considerados os salários e benefícios.

�� A mensuração da produtividade global do hospital requereria um indicador que identificasse a contri-buição de cada fator de produção, da tecnologia que sobre ele se aplique e do tempo de sua utilização. Na área hospitalar, devido à diversidade dos produtos/serviços oferecidos, isto é muito inviável.

Os equívocos mais frequentes ocorrem em relação a outros indicadores de desempenho, especial-mente à rentabilidade, que é afetada pelas “questões de mercado” (aumento nas margens de lucro, expansão ou retração de mercado e por aspectos regulatórios). Mas o equívoco mais grave é que as variações na produção sejam tomadas como produtividade. Então, modificações no produto ou cor-tes nos fatores de produção podem ou não ter efeito sobre a produtividade.

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A produtividade no campo da assistência à saúde encontra maiores dificuldades que na área indus-trial, em parte por características comuns a toda a área de prestação de serviços, mas também por características peculiares:

�� os serviços não são tangíveis e só são apropriados pela clientela no momento em que são prestados;

�� a atividade de produção é muito sensível às variações da demanda;

�� o envolvimento com o cliente é relativamente forte. Vimos que a qualidade da relação entre pro-fissionais de saúde e pacientes aumenta a aceitabilidade ao tratamento e é, também, um aspecto importante na avaliação da qualidade do processo;

�� a expectativa da clientela, geralmente, é diferente do produto que o serviço de saúde propicia. O serviço de saúde produz vacinações, consultas, cirurgias, porém o que a sua clientela espera é diminuir o risco de determinada doença e/ou melhorar o seu estado de saúde;

�� o cálculo de qualquer índice de produtividade deve refletir a correspondência entre produção e insumos. Ou seja, não se deve incluir na produção qualquer parcela relativa a insumos que não estejam no denominador. O raciocínio é igual ao apresentado no tema “A epidemiologia como ferramenta para a gestão...” para a construção de índices;

�� não é simples e automática a comparação entre unidades prestadoras de serviço. Essa comparação será mais pertinente quando o tamanho das unidades, a composição dos seus serviços e os ambientes em que elas operam forem mais semelhantes. Mas, no caso dos hospitais, mesmo que eles sejam iguais em tamanho, tenham as mesmas clínicas e atendam às mesmas patologias, ainda assim será difícil compará-los, devido à clientela atendida apresentar graus de gravidade da doença bastante variáveis.

Os objetivos dos programas de produtividade, geralmente, estão relacionados à necessidade de me-lhor gerenciamento (avaliação de desempenho e de impacto) e apresentam-se como uma forma de redução de despesas em um contexto de crise fiscal do Estado, que afeta a provisão de serviços pú-blicos. É, portanto, indispensável explicitar o que desejamos com o incremento da produtividade: aumento da eficiência, da eficácia ou da efetividade.

Desejamos o melhor dos mundos porque queremos, ao mesmo tempo, aumento da:

�� eficiência, porque, como já dissemos, os recursos para a atenção à saúde são escassos;

�� eficácia, tanto no sentido gerencial, quanto em relação à qualidade dos insumos utilizados;

�� efetividade, porque temos muitos problemas graves e necessidades de saúde a enfrentar.

Dependendo da natureza do serviço há facilidades de medir os processos (ou atividades) e produtos ou resultados. Muitos produtos hospitalares, particularmente os intermediários (refeições produzidas, exames laboratoriais realizados, quilos de roupa lavada, unidades de sangue transfundidas etc.), são de fácil mensuração. Muitos produtos finais ou atividades (consultas, altas hospitalares etc.) também o são.

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Bittar (1994) num estudo sobre a produtividade, que abrangeu oito hospitais gerais de grande porte, localizados em São Paulo (seis privados e dois estatais de regime jurídico autárquico), concluiu que, em face da complexidade do hospital e da diversificação das áreas de produção, torna-se impossível a utilização de um único indicador para medir a produtividade e propôs o uso dos seguintes indicado-res para avaliar a produtividade dos hospitais. São eles:

�� índice de produção/funcionários da área, que é a relação entre a produção (pacientes-dia, consul-tas de ambulatório e de emergência, número de exames etc.) dividida pelo número de funcionários da área (unidade de internação, do ambulatório);

�� média de permanência;

�� índice de renovação;

�� intervalo de substituição;

�� relação de funcionários por leito.

Bittar encontrou os seguintes valores para alguns dos indicadores acima referidos:

�� a relação funcionários por leito variou de quatro a nove, ressaltando-se que nem sempre são con-tabilizados serviços contratados a terceiros;

�� para o índice de renovação (ou giro de rotatividade) dos oito hospitais obteve-se uma média de cinco, sendo que a amplitude variou de 3,7 a 6,6 utilizações no mês;

�� para o índice intervalo de substituição, que mede a ociosidade do leito, obteve-se uma média de 1,5 dia, com um valor mínimo de 1,2 e máximo de 2,7 dias.

Estes valores poderiam ser utilizados como normas para programação, em uma primeira aproximação.

Resta um problema não resolvido quanto à produtividade dos hospitais...

É a necessidade de uma certa qualidade do produto para se comparar à produtividade.

Os indicadores de produtividade propostos por Bittar correspondem ao “processo”, ou seja, referem-se ao fluxo da produção. A única exceção fica por conta da relação funcionários por leito, que correspon-de a um indicador de estrutura. E já dissemos anteriormente que um bom processo facilita, mas não garante um bom resultado. Precisaríamos agregar indicadores de resultado aos propostos por Bittar.

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Por fim, devemos atentar que, para um programa de melhoria de produtividade ter êxito, é necessá-rio que se estabeleça uma parceria entre prestadores – profissionais de saúde – e gerência, tanto para a construção de indicadores relevantes quanto para a sua implementação, que deve-se dar de forma pactuada. Afinal, o elemento humano exerce uma influência inegável na qualidade dos serviços pres-tados e é importante frisar que as medidas de produtividade, isoladamente, não espelham essa qua-lidade. Sem que se atente para isso, as medidas de produtividade podem se constituir em um mero exercício numérico para tecnocratas e a programação perde seu caráter estratégico, de possibilidade de transformação da realidade dos serviços de saúde.

SÍNTESE

Planejamento, programação, epidemiologia e avaliação da produ-tividade e da qualidade: ferramentas da gestão

O exercício da gestão nas unidades hospitalares exige a articulação perma-nente do planejamento e da programação, bem como a identificação de prio-ridades na busca de maior eficiência, eficácia e efetividade das ações, visando reduzir os problemas de saúde da população. Na saúde os problemas são com-plexos e exigem uma abordagem estratégica de planejamento.

A programação é um cálculo que dá conteúdo ao planejamento em saúde. Ela também deve ter um caráter estratégico, visto que com ela desejamos modi-ficar, e não perpetuar, a nossa realidade sanitária perversa. A programação deve, preferencialmente, ser de base local. Afinal, quem está mais próximo costuma conhecer melhor os problemas e necessidades sanitárias em um país tão cheio de disparidades. Ela pode e deve envolver a negociação das normas brandas, em vez de ser imposta. Todo avanço no sentido de estabelecer com-promissos de melhorias com os profissionais é bem-vindo.

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A epidemiologia subsidia a programação das ações e serviços de saúde, tanto pela sua base metodológica, que propicia a análise da situação de saúde da região em que se insere o hospital e da demanda atendida pelo mesmo, quan-to pelo enfoque epidemiológico aplicado à avaliação de ações, programas e serviços de saúde.

A (re)programação de recursos e atividades hospitalares deve levar em con-ta as prováveis repercussões nos outros serviços/setores do hospital. As or-ganizações complexas, como os hospitais, caracterizam-se pela divisão do trabalho, grande necessidade de coordenação, diferenciação das atividades e produtos e pela elevada interdependência entre suas atividades, sejam elas finalísticas ou intermediárias.

Os indicadores permitem identificar, delimitar e descrever um problema. A compreensão do problema permite planejar e programar tendo como meta o uso eficiente do recurso. Ou seja, o uso da informação deve estar orientado para melhorar o desempenho e capacidade gerencial dos serviços, visto que a avaliação é parte do processo de planejamento. A avaliação deve contemplar, também, o grau de alcance dos objetivos e metas programados. O monitora-mento da qualidade da assistência prestada e da execução das ações progra-madas deve ser feito permanentemente pelos gerentes.

A preocupação com a produtividade não pode se restringir à busca da efici-ência. Manter uma boa qualidade, ou elevar seu nível, é fundamental devido à escassez de recursos e às necessidades de saúde da população. Atentar para os produtos intermediários e finais dos hospitais, e para os processos com a preocupação de melhoria de produtividade é um grande passo no sentido de imprimir à gestão uma maior racionalidade.

Mas essa racionalidade além de técnica é, também, política. Os processos de planejamento, programação e gestão devem ser flexíveis, incorporando uma avaliação cuidadosa da viabilidade para uma ação transformadora da realidade. A programação precisa considerar, ao mesmo tempo, os meios disponíveis para se obter os melhores resultados possíveis em cada realidade, mas também, precisa reconhecer e contemplar diferentes atores sociais, con-siderados estratégicos às propostas de mudança.

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O DESAFIO DA GESTÃO DO TRABALHO NO SUS1

1. O campo do trabalho em saúde

Durante um longo período que se inicia nos anos 1950 e se estende até meados dos anos 1980, a pre-ocupação dos gestores públicos na área da Saúde estava restrita ao financiamento, estrutura da rede e organização dos serviços.

A questão de recursos humanos, na forma em que se organizava a produção, era abordada como um dos insumos necessários: recursos humanos, recursos materiais e recursos financeiros.

A discussão sobre um novo paradigma do trabalho nas sociedades pós-industriais, que se origina nas décadas de 1980 e 1990 a partir da reestruturação produtiva,2 recoloca a centralidade do trabalhador no processo produtivo, ampliando a discussão sobre a gestão do trabalho, o que inclui repensar os processos de planejamento e qualificação do trabalho e do trabalhador, colocando assim uma nova agenda para os gestores.

A realidade do trabalho evidencia uma transformação significativa, caracterizada por uma transição entre o modelo taylorista/fordista — que vigorou entre os anos 1950 e 1970, no qual a organiza-ção do trabalho se caracterizava pela dominância do trabalho prescrito, com poucas possibilidades de intervenção nos processos produtivos e com pouca autonomia por parte dos trabalhadores — e um modelo tecnológico baseado na intelectualização do trabalho cujas principais referências passam a ser o conhecimento técnico e a qualificação profissional.

1 Publicado originalmente em: BRASIL. Conselho Nacional de Secretários de Saúde. O desafio da gestão do trabalho no SUS. In: BRASIL. CONASS. SUS: avanços e desafios. Brasília: CONASS, 2006. p. 129-151. (Coleção Progestores).2 Reestruturação produtiva é o termo que engloba o grande processo de mudanças ocorridas nas empresas e principalmente na organização do trabalho industrial nos últimos tempos, via introdução de inovações tanto tecnológicas como organizacionais e de gestão, buscando-se alcançar uma organização do trabalho integrada e flexível. Dentre as mudanças organizacionais destacam-se a redução substancial dos níveis hierárquicos, a polivalência e multifuncionalidade do trabalhador, o trabalho em grupos, mão-de-obra com maior capacitação e disposta a participar, a aprendizagem, a autonomia, a cooperação, diferenciando-se da lógica da especialização intensiva do trabalho (Garay, 2006).

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Para alguns, trata-se de uma estratégia “moderna” para responder às novas formas de organização do trabalho, decorrentes do processo de reestruturação produtiva e da incorporação tecnológica, enquanto para outros é uma estratégia “antiga”, capaz de submeter o processo de qualificação às exigências do mercado.

Nessa conjuntura, novas competências são requeridas dos trabalhadores: o aumento de escolaridade exigida, exigência de conhecimentos gerais, capacidade de planejar, capacidade de comunicação, tra-balho em equipe, flexibilidade, acesso a mais informações, capacidade de decisão frente a problemas complexos, valorização de traços de personalidade (como responsabilidade, criatividade, iniciativa e espírito crítico). Essas novas competências implicam redefinir as formas de formar, recrutar, selecio-nar, qualificar e manter os profissionais em suas respectivas atividades, criando novas alternativas de incorporação, e a remuneração da força de trabalho, cada vez mais especializada, como um instru-mento gerencial essencial à Gestão de Recursos Humanos.

No Brasil dos anos 1980, em decorrência da crise econômica mais geral que se instala nesse contexto, inicia-se um processo de desregulação do mercado de trabalho, marcado nessa primeira etapa por um movimento contraditório: de um lado, ocorre uma desregulação impulsio-nada pela tendência de desestruturação do mercado de trabalho; de outro, ocorre uma tentativa de regulação3 motivada pela regulamentação desse mesmo mercado pela Constituição de 1988.

Para Nogueira (2004), os anos de 1980 e 1990 são marcados por mudanças profundas nas formas em que o mundo do trabalho é organizado em sua estrutura, funcionamento e distribuição no espaço. Segundo esse autor, a desregulamentação dos mercados de capitais e do trabalho, liberação de con-troles e de fronteiras para os fluxos de capitais e diminuição do poder de intervenção do Estado sobre a economia são alguns dos fenômenos mais proeminentes das décadas recentes.

Por outro lado, as políticas públicas têm reconhecido que tais mudanças acarretaram consequências negativas para as condições de vida e de trabalho dos assalariados. “Este processo é mais evidencia-do nos setores produtivos, mas também já vem sendo notado nos setores de serviços, dentre eles, a Saúde. Entretanto, uma das contradições evidentes no setor Saúde é o fato de que a flexibilização e a precariedade do trabalho parecem manifestar-se devido a fatores que não o maciço desemprego, na medida em que em alguns países detecta-se que este setor, tanto no segmento público quanto no privado, comporta-se como um forte indutor de emprego, como é o caso do Sistema Único de Saúde no Brasil.” (Nogueira, 2004).

O conceito de trabalho precário não tem obtido consenso entre os diferentes atores mais dire-tamente envolvidos na implementação do sistema público de saúde, seja entre trabalhadores e gesto-res, seja entre os gestores das diferentes esferas de governo.

Três principais conceituações de precariedade e informalidade do trabalho são encontradas entre os autores:

3 A regulação do trabalho pode ser entendida como a síntese de dois fatores determinantes. Um é a estruturação do mercado de trabalho, que está relacionada ao desenvolvimento econômico do país e ao avanço das relações de produção e tem implicações na oferta de empregos e distribuição espacial dos empregos, bem como à qualificação exigida para os tais, dependendo, portanto, do padrão de desenvolvimento que se instala na sociedade. O outro é a regulamentação do mercado de trabalho, que depende do grau de organização política e social da nação e se apresenta como um conjunto de instituições públicas (estatais e civis) e normas legais que visam fornecer os parâmetros mínimos de demarcação e funcionamento do mercado de trabalho, notadamente no que diz respeito ao uso do trabalho (regulamentação das condições de contratação, demissão e da jornada de trabalho), sua remuneração (regulamentação das políticas e reajustes salariais em geral e do salário-mínimo) e proteção ou assistência social aos ocupados e desem pregados (regulamentação dos direitos sociais e trabalhistas, da política previdenciária, das práticas de formação e qualificação profissional, da ação sindical e da Justiça do Trabalho) (Cardoso, 2001).

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1. caracteriza uma situação de déficit ou ausência de direitos de proteção social;

2. decorre de uma instabilidade do vínculo, do ponto de vista dos interesses dos trabalhadores;

3. está associada a condições de trabalho de determinados setores da economia que criam vulnerabi-lidade social para os trabalhadores aí inseridos4.

A heterogeneidade de vínculos, portanto, é outro dado importante que compõe esse conjunto de transformações. As novas formas de contrato mudam radicalmente os mecanismos de ingresso e manutenção do trabalhador, estabelecendo novas relações de trabalho, definindo também a ne-cessidade de adquirir competências que habilitem trabalhadores e gestores como negociadores das condições de trabalho.

Nessa conjuntura, as instituições deveriam estar preparadas para realizar negociações e preservar a harmonização dos diferentes vínculos, função antes mediada pelos sindicatos e por outras enti-dades da sociedade civil na direção do trabalho decente que é o conceito criado pela Organi-zação Internacional do Trabalho (OIT) para um trabalho adequadamente remunerado, exercido em condições de liberdade, equidade e segurança, capaz de garantir uma vida digna, segundo os padrões de cada sociedade.

Trazer essa discussão para o campo da Saúde é um desafio, na medida em que:

a. essa é uma área multi e interdisciplinar que compreende um largo espectro de atividades de pro-dução e de serviços que abrangem desde a indústria de equipamentos e medicamentos até a presta-ção de serviços médicos, em nível hospitalar, ambulatorial ou de unidades de saúde, passando pela produção de conhecimento e informação;

b. o foco principal dessas atividades são pessoas e, portanto, o processo de trabalho é pautado no contato humano e na relação entre as pessoas.

Por outro lado, as tendências do trabalho em Saúde apontam para uma formação mais polivalente, gerando a necessidade de revisão das atuais habilitações de nível médio, o que ao mesmo tempo causa resistências do ponto de vista corporativo e ameaça a construção de uma identidade profissional.

Em síntese, essa discussão nos permite afirmar que:

�� as mudanças tecnológicas estão se processando, de fato, no campo do trabalho em Saúde, embora de forma assimétrica e em diferentes tempos e espaços, expressando-se em tecnologias materiais e imateriais;

�� as mudanças têm impacto na vida das pessoas, no seu estado de saúde e no seu trabalho; as mu-danças ocorrem em função e a partir de mudanças na dinâmica social, sendo ao mesmo tempo determinantes e determinadas por novos comportamentos sociais;

�� na base dessas mudanças estão o desenvolvimento do campo científico e tecnológico e a forma de organização da produção;

�� a relação entre processos cognitivos; e

�� o uso de modernas tecnologias está para além do problema de ensino e formação e deve ser anali-sada no contexto das mudanças na base técnica, organizacional e administrativa do trabalho.

4 Esse último é o conceito de informalidade do trabalho adotado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT). Nesse caso, a vulnerabilidade do trabalhador não é definida em termos da inexistência de proteção social ou da limitada duração do contrato de trabalho, mas pelo fato de que esses empregos são facilmente destruídos pela falta de vigor e competitividade do setor econômico que os gera (Nogueira, Almeida, 2004).

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2. A gestão do trabalho no SUS

As reformas no setor Saúde na década de 1990 foram pautadas pela implantação do sistema único de saúde com ênfase na descentralização das ações e serviços de saúde, sobretudo a municipalização. Hou-ve uma grande expansão de serviços municipais e foram priorizados novos modelos de atenção voltados para a atenção primária da saúde, tendo como proposta estruturante o programa de saúde da família.

A mudança do modelo de atenção exige estratégias de grande abrangência e de realização em curto prazo. Essa expansão acelerada e em grande escala dos serviços ocasionou mudanças significa-tivas na composição e estruturação da força de trabalho em Saúde, com concentração nas esferas de governo estaduais e municipais. Ademais, coube a essas esferas governamentais a maior res-ponsabilidade pela implementação das políticas sociais na nova ordem democrática advinda a partir da nova Constituição, arcando com todo o peso financeiro, administrativo e de pessoal dos aparelhos de segurança, educacional, de saúde, de saneamento básico e de assistência social. A possibilidade de garantir os direitos sociais inscritos na Constituição é tarefa dos entes descentrali-zados do Estado brasileiro.

A descentralização das ações e dos serviços sociais e de saúde tem um lado perverso, o da “des-responsabilização” da esfera federal em relação à manutenção dessa força de trabalho respon-sável pelas políticas sociais, fato agravado pela política fiscal e tributária que privilegia a União. Uma evidência dessa assertiva é a indefinição adotada pela gestão federal do SUS em relação à reposição dos servidores descentralizados (para Estados e municípios) do antigo Inamps – em 2002, aproxi-madamente 50 mil servidores, com custo estimado de um bilhão de reais/ano – e da Funasa – 26 mil estimados –, porque, como se sabe, uma outra razão para a “precarização” da força de trabalho na Saúde está exatamente nas dificuldades encontradas pelos Estados e municípios para a reposição desse importante contingente de trabalhadores em processo de aposentadoria (CONASS, 2002).

Essa questão se agrava com as restrições orçamentárias impostas pela Lei de Responsa-bilidade Fiscal, que limita os gastos com pessoal, frente a necessidade de incorporação de pessoal para atender às novas demandas trazidas pelas políticas de saúde. Para fazer frente a esses problemas os gestores do SUS, nas três esferas, vêm lançando mão de estratégias de gestão de pessoal diferenciadas, que incluem:

�� contratação temporária;

�� terceirização por meio de empresas ou cooperativas;

�� contratos por órgãos internacionais;

�� contratos através de serviços prestados;

�� bolsas de trabalho; estágios;

�� triangulações por meio de empresas privadas;

�� contratos com entidades privadas não lucrativas;

�� contratos de gestão com organizações sociais;

�� convênios com Organizações Sociais de Interesse Público – OSCIPs.

A utilização desses mecanismos tem auxiliado a gestão do SUS a dar respostas mais rápidas às demandas por novos serviços, ou pela ampliação dos existentes, mas também tem levado a pro-blemas de ordem legal e gerencial, gerando conflitos e impasses na implementação do SUS.

A gestão do trabalho no SUS é parte da gestão do trabalho na administração pública em geral e está

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relacionada ao contexto político e econômico e sua repercussão no campo do trabalho. Pode ser compreendida por três grandes eixos:

�� a mudança no modelo de Estado, que passa de um modelo provedor para um modelo regulador;

�� a reestruturação produtiva, que traz novas formas de relação de trabalho; e

�� a incorporação tecnológica que introduz novas práticas e novos processos de trabalho.

A Constituição de 1988 instituiu o Regime Jurídico Único (RJU), estabelecendo as novas regras que deveriam orientar, no âmbito da administração pública, as contratações de serviços e de pessoal para o Estado que foram regulamentadas através da Lei n. 8.666/1993.

Para fazer frente às novas demandas que se colocavam nesse campo e na busca da consolidação de um modelo de Estado gerencial, tem início, nos anos 1990, um processo de reforma adminis-trativa, institucionalizado por meio da Emenda n. 19, de julho de 1998. O processo de aprovação da emenda pelo Congresso Nacional suprimiu algumas propostas de flexibilização, frustrando a possibi-lidade de adoção do emprego público como forma alternativa de contratação no setor público. Nesse aspecto da reforma estabeleceu-se um impasse pelas dificuldades de acordo político com relação ao processo de demissão nesse tipo de vínculo. Dessa forma, o modelo de reforma foi parcialmente im-plantado, mantendo-se o Regime Jurídico Único como forma exclusiva de incorporação de servido-res na administração pública, nos diferentes níveis de governo, adotando-se de forma complementar a contratação de serviços pela via da terceirização.

A administração pública federal, estadual e municipal vem se estruturando com uma vasta utiliza-ção dos contratos de serviços pela via da terceirização, alternando com a abertura de concursos para incorporação de funcionários pelo RJU. Entretanto, são evidentes as dificuldades no campo da gestão do trabalho pela ausência de alguns marcos legais nessa área que favoreçam a estruturação de modelos gerenciais mais compatíveis com a lógica que orienta a organização do trabalho, influen-ciando formas de absorção e manutenção dos trabalhadores. Há ainda o debate sobre a legitimidade e a legalidade da terceirização. No campo da Saúde, o ponto de vista adotado por alguns segmentos de trabalhadores do SUS é que qualquer terceirização de serviços implica precariedade de vínculos, na medida em que não houve concurso público para a contratação do trabalhador. Nessa lógica, quem não estiver incorporado ao regime jurídico único tem vínculo precário. Os gestores estaduais e municipais, diferentemente, defendem que todo vínculo de trabalho, seja direto ou indireto, deve assegurar os direitos trabalhistas e previdenciários dos trabalhadores e, desse modo, não há que se falar em precariedade se essas condições estão dadas nos vínculos indiretos ou terceirizados.

Do ponto de vista legal, a multiplicidade de vínculos utilizados nem sempre cumpre o que a legislação brasileira estabelece como padrão de proteção ao trabalhador e os gestores têm assumido compromissos e adotado medidas para enfrentar o problema. Além disso, essa situação tem ocasio-nado inúmeras ações judiciais para cumprimento desses dispositivos legais. O Ministério Público brasileiro tem sido vigilante e exigente em relação a essa questão.

Do ponto de vista gerencial, os gestores se deparam com múltiplas formas de gestão de contra-tos, mobilizando mudanças na lógica de gestão interna dos órgãos públicos e enfrentando conflitos diversos, pelo tratamento desigual conferido por cada ente contratado, na relação com os trabalha-dores envolvidos nas tarefas contratadas pelo Estado.

Uma outra área cinzenta, tomada de conflitos e incertezas, é a relação do Estado com a re-gulação das profissões em Saúde. A regulação das profissões tem obedecido muito mais às

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regras estabelecidas pelo mercado do que propriamente às ações efetivas do governo. Estimula-se o processo da autorregulação das corporações por meio de regras emitidas pelos próprios conselhos de fiscalização do exercício profissional. Vê-se que as iniciativas legislativas reproduzem, na maioria das vezes, resoluções internas desses órgãos que fiscalizam o exercício profissional, sem que haja, na maioria das vezes, um debate aprofundado sobre as implicações para a sociedade e o interesse públi-co. A análise dessa situação permite identificar uma característica básica do atual regime regulatório brasileiro: a existência de uma legislação que preserva “monopólios” de regulação do trabalho, os quais, muitas vezes, extrapolam os seus próprios limites de atuação, disseminando conflitos que alimentam a competição entre corporações regulamentadas, ou suas especialidades, ou, ainda, entre estas e as em vias de regulamentação.

Embora a Constituição Federal estabeleça competência privativa à União para legislar sobre a orga-nização do sistema nacional de emprego e condições para o exercício das profissões, essa atribuição que lhe é conferida não está sendo exercida plenamente. Ao mesmo tempo, os conflitos entre os diversos conselhos profissionais – ou mesmo entre as especialidades subordinadas a um mesmo conselho –, em torno dos limites e das competências de cada especialidade, são cotidianos, acarretando graves prejuízos para o interesse público (Ministério da Saúde, 2005).

É visão corrente que os profissionais de saúde não têm sido formados com os conheci-mentos, habilidades, atitudes e valores suficientes para o adequado desempenho nos serviços públicos. Inúmeros estudos e trabalhos assinalam a crise na formação e no desenvolvi-mento dos recursos humanos em saúde, decorrente tanto de determinantes externos quanto inter-nos. Relacionam-se entre os primeiros as mudanças do processo produtivo e aspectos relativos ao mercado de trabalho e à organização dos serviços. Quanto aos internos ao processo educacional, são enfatizados a especialização exagerada, a desarticulação ensino-serviço, e a desintegração de aspec-tos biológico-social, básico-profissional, individual-coletivo.

Também é patente a desigualdade da oferta do mercado educacional para a formação dos profissionais de saúde no Brasil, tanto geográfica (regional) quanto qualitativa, revelada a partir do processo de avaliação em curso no país desde a década passada.

No cenário acima descrito, dentre os problemas mais comuns que vêm impactando e dificultan-do a gestão do trabalho no Sistema Único de Saúde destacam-se velhos e novos problemas:

�� a pouca flexibilidade do Regime Jurídico Único para a gestão do trabalho;

�� a indefinição quanto à regulamentação do Regime Celetista para o setor público;

�� trabalho desregulado e desprotegido;

�� regulação corporativa das profissões de saúde;

�� formação inadequada dos profissionais de saúde para desempenho nos serviços públicos;

�� inexistência de um processo institucionalizado de educação permanente para os trabalhadores do SUS;

�� a gestão do trabalho não ocupa lugar destacado na agenda política de pactuação entre os gestores;

�� baixa institucionalização do processo de planejamento de recursos humanos;

�� baixa capacidade gerencial para o monitoramento e a avaliação do sistema de recursos humanos e sobre os gastos com pessoal;

�� baixa eficácia, qualidade e efetividade dos serviços;

�� a atuação das auditorias por Órgãos de Controle Internos e Externos, com questionamentos às

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múltiplas interpretações da lei que se expressam em contratos efetuados com problemas de múl-tiplas naturezas;

�� Termos de Ajuste de Conduta (TACs) realizados com o foco na questão trabalhista, como deter-minante, mas nem sempre exequível pelos gestores, sem constrangimentos de outras despesas também necessárias ao bom funcionamento do SUS;

�� insatisfação dos trabalhadores com mobilização de suas representações.

3. A situação nos estados e municípios

Essas questões se reproduzem e se multiplicam em todas as esferas de governo, nos diferentes setores da administração pública, comprometendo a capacidade gestora do Estado na garantia dos direitos de cidadania assegurados na Constituição.

A Pesquisa realizada pelo CONASS em 2003, e publicada em 2004, acerca da estrutu-ração da área de Recursos Humanos (RH) nas Secretarias de Saúde dos Estados e do Distrito Federal (CONASS, 2004a) buscou analisar os principais problemas desse campo. O es-tudo teve por objetivo elaborar diagnóstico da situação de contratação de pessoal e da organização, da estrutura e das ações das áreas de Recursos Humanos das Secretarias de Saúde após a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS). Pode-se ter uma visão geral dos servidores estaduais: quantos eram, sua formação, sua distribuição nos Estados e regiões do país, os gastos com pessoal ativo e inativo, por fonte de recursos, e as características dos vínculos segundo o tipo de administração – direta e indireta – bem como identificar como eram a estrutura, e o pro-cesso de organização e quais a ações desenvolvidas pela área de Gestão de Pessoas.

Os resultados do estudo indicaram um gasto mensal com recursos do tesouro estadual, no paga-mento de folha de trabalhadores de saúde, ativos e inativos, de R$ 445 milhões/mês (R$ 5,3 bilhões/ano) para um quantitativo geral de 457.123 trabalhadores de saúde, o que representava, à época, 52,5% do total das despesas com saúde.

Uma informação importante e que contribuiu para revelar a situação das relações de trabalho foi a referente ao vínculo dos trabalhadores nas SES, que apontou na administração dire-ta a predominância do Regime Jurídico Único (RJU), com 262.669 trabalhadores de saúde ativos (76,2% do total), seguido da contratação por tempo determinado (8,6%), CLT (5,3%) e cargos em comissão (4,2%). A contratação por meio de cooperativas demonstrou ser uma modalidade de vinculação com pouca importância na administração direta estadual, 1,20% do total dos contratos informados. Na administração indireta, onde foram informados 53.308 contratados, as fundações concentravam 47,4% do total desses contratos (sendo mais de 60% deles admitidos através de con-curso público) e as autarquias 37,8%.

As modalidades de vínculos passíveis de serem classificadas como precárias (aquelas onde os dire-tos sociais e trabalhistas não são atendidos integralmente) não são as formas hegemônicas de vín-culos, mas o contrário. Entretanto, não se deve desprezar o fato que quase 10% dos trabalhadores de saúde, vinculados às secretarias de saúde em 2003, estavam nessa situação, a grande maioria como “contratos temporários”.

Os trabalhadores de saúde vinculados à administração direta tam bém foram analisados quanto ao nível de formação, sendo 32,1% dos profissionais de nível superior, 39,8% de nível médio, e

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26,5% de elementar. Foram identificadas, ainda, particularidades características de algumas regiões tais como a forte predominância de contratos de nível médio nos Estados da Região Norte.

No campo da identificação dos problemas, enquanto para os Secretários de Estado a maio-ria dos problemas situava-se no campo de gestão do trabalho – os dois principais problemas aponta-dos pelos Gestores foram a necessidade de contratação de pessoal/quantidade defasada e as diversas modalidades de contratos temporários, respectivamente –, para os dirigentes de RH o maior problema foi apontado nas áreas de RH das SES, sua estrutura e hierarquia, com maior ou menor proximidade do eixo decisório, uma vez que em 14 SES essas áreas eram subordinadas à gestão ad-ministrativa, financeira e patrimonial, ou seja, não participavam da equipe dirigente, o que pode apontar para dificuldades na priorização das ações da área.

Na gestão do trabalho, muito embora todos os Estados tivessem planos de cargos, apenas 10 Es-tados relataram a existência de Plano de Cargos, Carreiras e Salários (PCCS) específico da área de Saúde e, desses, somente 5 eram posteriores ao ano 2000, o que evidencia a fragilidade da gestão das carreiras nas SES. Foram identificadas também a baixa capacidade de planejamento, um espaço res-trito de articulação política, limitada autonomia gerencial e um sistema de informação insuficiente (falta de acesso à informação e à tecnologia da informação em 10 das 27 estruturas de RH nos Estados e um sistema precário na maioria das que possuíam).

Finalmente, ficou evidenciado que as SES estão desempenhando um papel importante no desenvol-vimento de atividades de formação, associando iniciativas de qualificação técnica com aquelas voltadas para a integração ensino/serviço, apesar de que as iniciativas nessa área carecem de uma proposta estratégica que visualize as necessidades estruturais do SUS.

Outra conclusão importante foi que as SES que apresentam os maiores gastos com saúde foram justamente aquelas que têm contingente expressivo de trabalhadores de saúde, com remuneração média significativa.

A situação nos municípios é ainda mais difícil. Publicação do Conselho Nacional de Secre-tários Municipais de Saúde (CONASEMS, 2006)5 analisa a evolução da situação do emprego no Brasil, com base nos dados da pesquisa Assistência Médico Sanitária (AMS/IBGE), de 2003, e revela a profunda transformação ocorrida no país nas duas últimas décadas: de 1980 até 2003; o número de empregos na área da Saúde nos municípios saltou de 43.086 (16,2% do total de empregos públi-cos) para 791.397 (66,3%) enquanto o número de empregos na área Federal diminuiu de 113.297 (42,6%) para 96.064 (8,1%), aqui incluídos os servidores do ex-Inamps e da Funasa transferidos para os Estados e municípios. Apesar de os empregos nos Estados terem aumentado 200% nesse período, o seu peso relativo no conjunto do emprego público diminuiu, de 41,2% para 25,6%, em decorrência do explosivo aumento na esfera municipal (1.740%). Cada novo programa implantado no sistema público de saúde ou cada nova expansão do programa de saúde da família, por exemplo, impacta fortemente esses números.

Uma das consequências desse fenômeno é o aumento de vínculos precários de traba-lho, como mostra o estudo “Monitoramento da Implementação e do Funcionamento das Equipes de Saúde da Família”, realizado em 2001-2002, pelo Departamento de Atenção Básica (DAB) do

5 Conasems, 2006.

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Ministério da Saúde:6 20% a 30% de todos os trabalhadores inseridos nessa estratégia apresentaram vínculos precários de trabalho, contribuindo para a alta rotatividade e a insatisfação profissional.

O caso dos agentes comunitários de saúde (ACS) é ainda mais complexo, pois a maioria dos 190 mil trabalhadores em atividade no país apresenta inserção precária no sistema e está desprotegida em relação a legislação trabalhista. Mesmo com todas as ações judiciais por iniciativa do Ministério Público do Trabalho e todas as alterações da legislação em 2005-2006, o problema continua quase inalterado.

Em estudo a respeito de Recursos Humanos em Municípios com população superior a 100 mil habitantes, realizado sob coordenação do Instituto de Medicina Social/UERJ,7 por inicia-tiva da Rede Observatório de Recursos Humanos, detectou-se que:

�� apenas 19 (dezenove) gestores de recursos humanos, entre os 206 municípios que responderam à pesquisa, detêm qualificação formal por especializações relacionadas ao exercício de suas funções;

�� esses gestores possuem baixa ou nenhuma autonomia com relação a questões como aquelas que envolvem a utilização de recursos orçamentários ou contratação de pessoal;

�� o planejamento das ações não está plenamente incorporado à prática dos dirigentes da área;

�� a folha de pagamentos constitui-se como principal fonte de dados, não sendo utilizados outros sistemas de informações de recursos humanos como ferramenta de planejamento e gestão.

O referido estudo também destaca que a maior parte dos dirigentes de recursos humanos pertence aos quadros próprios das Secretarias Municipais de Saúde e apresentam tendência de baixa reno-vação no cargo, com tempo médio de permanência de 48 meses.

4. Gestão do trabalho no SUS como função estratégica e integrada

Se hoje há um consenso no âmbito do SUS é o de que a questão do trabalho e da formação e qualifi-cação dos trabalhadores de saúde é um desafio do tamanho do SUS.

Partindo do diagnóstico e da análise de situação no setor Saúde, e situando-o no cenário e no contex-to descritos, é imprescindível destacar algumas dimensões e aspectos que poderão contribuir para o desenvolvimento de uma política consistente e sustentável na área.

É importante insistir que o processo de descentralização da Saúde ocorrido na década de 1990 é determinante para a transformação da gestão do trabalho em uma função estratégica e complexa. Para apresentar resultados, ela precisa da explícita e permanente definição de priori-dade política dos governantes e dos gestores do sistema, das 3 esferas de governo, e do envolvimento e compromisso com os valores do sistema único de saúde, por parte do conjunto dos trabalhadores e não apenas de suas lideranças.

A governabilidade dos gestores do setor Saúde na questão da gestão do trabalho é pequena, tal qual na definição dos recursos financeiros para o setor: conjunturalmente, estão na dependência do governante (prefeito, governador, presidente), e estruturalmente, na dependência da própria configuração da gestão do trabalho na administração pública em geral, com todo seu arca-bouço legal e normativo. Daí a necessidade de compromisso do detentor do mandato, do governante.

Uma outra dificuldade é que o SUS, mesmo sendo constituído por três esferas autônomas de gover-

6 Ministério da Saúde, 2005.7 PIERANTONI, 2004.

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no, com governo e legislação própria, exige soluções integradas; não se pode pensar soluções isoladas, de um município ou Estado, ou mesmo do conjunto dos servidores fede rais, por exemplo. A gestão do trabalho no SUS além de função estratégica é uma função integrada: só há alternativas reais de mudanças se se tratar de projetos solidários, entre gestores e entre gestores e trabalhadores.

O Pacto pela Saúde, celebrado de modo tripartite pelos três gestores do SUS em 2006, configu-ra um ganho importante ao incorporar a questão da gestão do trabalho na agenda de pactuação, mas não se deve ter ilusões quanto ao alcance da iniciativa, insuficiente para enfrentar os grandes desafios hoje encontrados na gestão do trabalho no SUS.

A seguir, para exposição mais clara do tema, agrupou-se as principais ações da gestão do trabalho no SUS em três grandes conjuntos de atividades: a gestão das relações de tra-balho, o planejamento e o gerenciamento e a gestão da educação do trabalhador em Saúde.

4.1. Gestão das relações de trabalho

Trata-se de superar os velhos modelos de “administração de recursos humanos”, normativos, bu-rocráticos e estáticos, pela gestão participativa, colegiada e pactuada com os trabalhadores e seus representantes, tanto nos aspectos das relações individuais – contrato, salário –, quanto naqueles das relações coletivas – representação, greve, negociação. As mesas de negociação permanente do SUS são bons exemplos de instrumentos institucionalizados com essa finalidade.

A negociação é necessária para o enfrentamento adequado dos conflitos que o trabalho em Saúde inevitavelmente produz nas relações entre gestores e trabalhadores, principalmente face a tantas transformações estruturais e a tantos novos ordenamentos de trabalho requeridos. Dentro das pró-prias instituições de saúde, onde ainda persistem processos segmentados mas interdependentes, esta-belecer acordos e parcerias internas é fundamental para o adequado desempenho do trabalho.

Como essa negociação passa a ser um requisito indispensável na gestão da relação do trabalho - tanto para gestores como para trabalhadores, já que não deve obedecer apenas a uma disputa política, mas ser orientada pela busca da equidade, da resolutividade e da qualidade da atenção - a competência para discutir e tomar decisões com base em informações e avaliar resultados de ações e de políticas.

Os vínculos precários também são alguns dos problemas mais relevantes a serem debatidos e enfren-tados na gestão integrada das relações de trabalho. Apesar das diversas iniciativas no âmbito das três esferas de gestão, ainda não se observam grandes alterações no quadro descrito. O Ministério da Saúde criou o Comitê Nacional de Desprecarização do Trabalho, com participação de vários atores, gestores e trabalhadores. O comitê definiu a condução do processo por etapas e, como prioridade inicial procurar soluções para a situação dos agentes comunitários.

O CONASS (2004b) realizou uma oficina de trabalho em 2004 quando os gestores estaduais definiram vários consensos para a gestão do trabalho, entre eles propor a regulamentação do Programa Saúde da Família (PSF) por meio de um projeto de lei ao Congresso Nacional que garanta o repasse dos incentivos aos municípios de modo permanente a fim de diminuir a inse-gurança dos gestores municipais no que se refere à garantia de continuidade no pagamento dos incen-tivos e com isso estimular soluções duradouras para a incorporação dos trabalhadores do programa.

Nessa oportunidade também foi consenso a adoção de medidas integradas e solidárias para o enfrentamento das relações precárias do trabalho na gestão descentralizada do SUS, como:

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�� apoiar a regularização da situação de precariedade dos vínculos nos Estados e municípios e em relação à situação das equipes de saúde da família;

�� apoiar as secretarias municipais de saúde na realização de seus concursos, seja pela realização de concursos de bases locais de acordo com as diferentes realidades dos Estados ou, ainda, aplicando as provas para os municípios menores que assim quiserem.

A luta pela regulamentação do dispositivo da excepcionalidade, proposta pela Lei de Responsabilidade Fiscal para a Saúde e a Educação, no cômputo dos limites estipulados pela Lei, pode ser um outro item da agenda da política da gestão do trabalho no SUS.

O Conasems adotou medidas na mesma direção (CONASEMS, 2006), ao definir critérios rígidos para seleção, contratação, monitoramento, prestação de contas e avaliação dos resultados contemplados no contrato de gestão quando do estabelecimento de parcerias para o provimento da força de trabalho para o PSF. Apesar da boa vontade demonstrada pelas propostas e iniciativas dos gestores das 3 esferas de gestão do SUS, o problema dos vínculos precários permanece como um desafio a ser vencido.

4.2. Planejamento e gerenciamento

O planejamento implica a estimativa quantitativa das necessidades, como se faz tradicional e infruti-feramente e, sobretudo, na determinação das competências e perfis da força de trabalho, sendo mui-to importante sua articulação com o processo de formação e desenvolvimento educacional, baseado nas competências profissionais.

Abrange, portanto, aspectos quantitativos e qualitativos. A institucionalização de um siste-ma de planejamento de recursos humanos, orientado pelas metas e objetivos institucionais, constitui um instrumento importante de gestão e regulação da força de trabalho. Planejar recursos humanos significa incluir essa temática no planejamento dos órgãos federais, estaduais e municipais e trazer para os fóruns de decisão política do SUS, os conselhos e os órgãos colegiados, tripartite e bipartites, questões estratégicas como o financiamento dirigido à contratação da força de trabalho, qualificação dos trabalhadores e programas de proteção à saúde do trabalhador.

O planejamento e a gerência de informações estão entre as áreas menos desenvolvidas na gestão do trabalho do SUS, como evidenciado pelos estudos supracitados e corroborado pela avaliação das funções essenciais da Saúde Pública realizada em seis Secretarias Estaduais de Saúde, em 2005-2006 (Müller Neto JS et al., 2006).

Uma das causas da baixa capacidade gerencial na área de Recursos Humanos é a ausência de in-formações básicas referentes ao conjunto de sua força de trabalho e a outros dados necessários à gestão do trabalho pelos seus órgãos de gestão. Observa-se que, na sua ausência, a folha de pagamento ainda predomina, em muitos casos, como única fonte de informações em relação aos servidores (efetivos e cargos comissionados) e trabalhadores ligados a contratos de terceirização, deixando um vazio em relação a um necessário sistema de controle sobre a lotação real dos trabalha-dores, sua qualificação e seu desempenho. Os sistemas de informações gerenciais são instrumentos essenciais à gestão do trabalho contribuindo para os processos de planejamento, monitoramento, desenvolvimento e avaliação da força de trabalho.

Contudo, a baixa capacidade gerencial e de planejamento, nas Secretarias Estaduais de Saúde, não

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se limita à área de Gestão de Informação, como os estudos citados mostraram: a área de Gestão de Recursos Humanos está situada no terceiro escalão da estrutura organizacional, subordinando-se à área administrativa e financeira e, na maioria dos casos, não passa de um pequeno e acanhado DP (departamento de pessoal).

Nas secretarias municipais, mesmo esse setor acanhado existe apenas nos municípios maiores e nas capitais, enquanto na imensa maioria dos demais municípios a gestão do trabalho é indiferencia-da, comum ao conjunto dos servidores municipais.

Não há registro da existência de um lócus institucional para a formulação das políticas de re-cursos humanos na imensa maioria das secretarias estaduais e municipais, assim como se observa a ausência de um processo sistemático de planejamento e programação da área.

A área de Gestão do Trabalho é separada da área de Educação assim como as duas são pou-co articuladas com as áreas programáticas e finalísticas.

Enfim, há um descompasso imenso entre a importância do tema – as despesas com pes-soal são a maior parte dos gastos em Saúde – e a sua pouca prioridade na agenda da política de saúde. São ínfimos os investimentos na área da Gestão do Trabalho e na qualificação do pessoal encarregado dessas atividades nas três esferas de gestão do SUS.

Do ponto de vista técnico, a institucionalização do planejamento de recursos humanos no cenário atual, por parte dos órgãos gestores do SUS, no que tange à sua força de trabalho, pressupõe a capacitação de pessoal nessa área, de forma a garantir o aporte de conhecimentos específicos de planejamento e gestão da força de trabalho inerentes ao desenvolvimento dessa proposta. A insti-tucionalização do planejamento pressupõe sistema gerencial de informação que permita conhecer a composição, a estrutura, o perfil, o gasto e as necessidades futuras com a força de trabalho, por unidade e por esfera de governo. Além disso, é necessário dotar o setor de gestão do trabalho nos órgãos gestores do SUS da necessária infraestrutura e de capacidade institucional.

Algumas diretrizes com essa finalidade foram formuladas em 2004 pelos secretários estaduais:

�� reforma administrativa para colocar os responsáveis pelo setor compondo a equipe de condução estratégica da instituição;

�� a formulação de plano de recursos humanos articulado com o Plano Plurianual de Saúde, incluindo o diagnóstico de necessidades;

�� o aumento do orçamento próprio para a área de Gestão e Educação de RH; o aumento do quadro de servidores e especialistas do setor e sua qualificação por meio de um processo de educação permanente;

�� a integração da área de gestão de pessoas com área de desenvolvimento e formação;

�� a modernização administrativa da gerência de RH, incluindo a sua completa informatização; e

�� um programa de cooperação permanente para a gestão do trabalho entre as instâncias gestoras (CONASS, 2004b ).

Um sistema estratégico e integrado de planejamento e gerenciamento do trabalho em um sistema público universal implica ademais pensar o conjunto dos trabalhadores, públicos – de todas as esferas de governo naquele âmbito de gestão – e privados, dos serviços contratados.

A definição das funções típicas de Estado – quais atividades terceirizar, quais as modali-

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dades de incorporação de pessoal a serem adotadas – devem orientar a relação do Estado com o mercado de trabalho.

É evidente que operação de tamanha envergadura somente terá possibilidade de ser viabilizada e construída mediante a prioridade política absoluta do tema, a negociação permanente com os trabalhadores da Saúde e o trabalho integrado e intensivo de cooperação entre União, Estados e municípios.

O lançamento, pelo Ministério da Saúde, no segundo semestre de 2006, do Programa de Qualifi-cação e Estruturação da Gestão do Trabalho no SUS, o Progesus, que estabelece a cooperação entre os gestores do SUS – em um primeiro momento, apenas com os Estados e os municípios maiores – nas áreas de infraestrutura (equipamentos de informática), implantação de sistemas de informação e qualificação de pessoal para a gestão do trabalho, é um primeiro passo importante, mesmo sendo ínfimo o montante de recursos destinados inicialmente para a iniciativa.

Finalmente, outro desafio para a gestão do trabalho em Saúde e o desenvolvimento gerencial dos serviços é a definição das carreiras próprias de Estado e dos critérios de:

�� mobilidade;

�� ascensão e desenvolvimento na carreira;

�� remunerações e incentivos;

�� gestão do desempenho, e

�� gerenciamento do impacto orçamentário-financeiro do plano de cargos, carreira e salários no orçamento da Saúde.

Um modelo de gestão integrada prevê um processo de gestão e desenvolvimento institucional voltado para resultados institucionais, organizacionais e individuais e, portanto, abrigando a possi-bilidade de institucionalizar mecanismos de remuneração variável, gratificações por desempenho, localização e qualificação.

As diretrizes nacionais para elaboração de planos de carreira, cargos e salários no Sistema Único de Saúde, aprovadas também no segundo semestre de 2006, é uma iniciativa para estabelecer uma política de recursos humanos articulada e integrada entre as esferas gestoras do sis-tema. A proposta, que não tem poder impositivo devido à autonomia dos entes federados, contempla alguns princípios como o da equivalência dos cargos ou empregos, compreendendo a correspondên-cia deles em todas as esferas de governo, e o da mobilidade, entendida como garantia de trânsito do trabalhador do SUS pelas diversas esferas de governo sem perda de direitos ou da possibilidade de desenvolvimento na carreira.

Para além de princípios e diretrizes idealizados, a viabilização da proposta choca-se com:

�� a realidade do financiamento hoje existente;

�� o profundo desequilíbrio federativo, em que a União tem a maior parte da receita e os municípios e Estados a maior parte dos encargos, sobretudo de pessoal.

Apenas metade dos Estados tem planos de carreira, cargos e salários exclusivos do SUS enquanto a outra metade tem PCCSs comuns ao conjunto da administração estadual.

A realidade municipal é ainda mais complexa, pois se observa que a quase totalidade dos pe-quenos municípios, além de não ter planos de carreira exclusivos do SUS, não tem um quantitativo

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de pessoal da Saúde com escala para propor um plano exclusivo do SUS. Além disso, muitos enfren-tam dificuldades para a incorporação e a permanência de profissionais e especialistas.

Mantida a situação atual, é remota a possibilidade de implementar planos de carreira do SUS, no conjunto do país, sobretudo nos pequenos municípios, a menos que haja o cofinancia-mento por parte da União, ou o financiamento indireto, por meio da criação de uma Carreira Nacio-nal com Base Local para o SUS, com o objetivo de responder a uma fração importante de municípios que, hoje, enfrentam dificuldades severas na inserção e fixação de profissionais.

4.3 A gestão da educação do trabalhador da Saúde

O trabalho na Saúde faz-se através dos seus trabalhadores, portanto, por gente, com gen-te e para gente. Os trabalhadores de saúde, todos aqueles que se inserem direta ou indiretamente na prestação de serviços de saúde ou em atividades de saúde, são trabalhadores do conhecimento, interpretam e aplicam saber e informação para criar e proporcionar soluções aos problemas. Para isso devem ter acesso a condições de trabalho e organizacionais que lhes permitam adquirir e aplicar conhecimento teórico e prático, desenvolver hábitos de aprendizagem permanente e seguir sendo competentes e produtivos. A reestruturação do processo produtivo, a permanente mudança dos sistemas de saúde, as novas exigências do mercado de trabalho, entre outros aspectos, são desa-fios para a formação e desenvolvimento dos recursos humanos em Saúde e exigem novo enfoque e novas abordagens.

O enfoque de competências desenvolve projetos e planos educacionais a partir das necessidades, problemas e desafios do trabalho. Esse enfoque também permite enfrentar os desafios para a formação e desenvolvimento, decorrentes da natureza complexa e em permanente mudança dos sistemas de saúde. Ele é o substrato do conceito de educação permanente em Saúde, que se caracteriza por: aprendizagem no trabalho, onde se configuram as necessidades e demandas educativas; utiliza princípios da aprendizagem de adultos, vinculando o conhecimento com pro-blemas reais por meio da pedagogia de problematização; adoção do construtivismo cognitivo que postula a centralidade do sujeito, quem estrutura ativamente o conhecimento, integrando e reinter-pretando a informação.

A visão integral da política de formação e desenvolvimento dos recursos humanos na Saúde deve ter como norte um plano de desenvolvimento dos trabalhadores baseado em com-petências (conhecimentos, habilidades, atitudes e valores); na regulação dos processos educativos e laborais do campo da Saúde; na reorientação e melhoria da qualidade da formação, na pré e na pós-graduação; na qualificação técnico-profissional e em um programa de educação permanente.

Nessa perspectiva, os princípios para formar e desenvolver os recursos humanos na Saúde passam pela incorporação de valores de um sistema de saúde solidário, público, universal e equitativo, e de-vem ser capazes de propiciar mudanças de práticas de saúde e do processo de trabalho que ajudem a configuração dos novos perfis ocupacionais e profissionais dos trabalhadores e das equipes que estão sendo exigidos no novo cenário do mundo do trabalho e no contexto do SUS.

Como avaliar e promover o desenvolvimento dessas novas competências nos espaços de trabalho e como garantir uma uniformidade nesse processo de qualificação, de forma a permitir mobilidade e circulação dos trabalhadores no mercado de trabalho setorial, são questões que se colocam, para os formuladores e gestores de políticas, no campo da Saúde e da Educação.

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Uma das condições estratégicas para esse desenvolvimento é, justamente, melhorar a comunica-ção e a articulação entre o aparelho formador e os serviços e todas as diversas instituições que, na sociedade e no Estado, tenham competências e responsabilidades com a saúde da população.

O art. 200 da Constituição de 1988 confere aos gestores do SUS atribuição para contribuir na formação e no desenvolvimento dos recursos humanos.

Por que o gestor da Saúde deve se preocupar com as questões relativas à formação e desenvolvimento de recursos humanos?

A lógica é que a orientação da formação e desenvolvimento de pessoal deve dar aquele que está en-frentando o problema e sentindo as dificuldades da operação do sistema público. Evidentemente, desde que se saiba de que tipo de qualificação o trabalhador precisa ou a que tipo de problema essa qualificação se propõe a resolver. Os gestores podem demandar e, com frequência, desenvolver es-tratégias educacionais que, junto a outras políticas associadas, contribuam para resolver a questão. Entretanto, os gestores não só não conhecem todos os problemas de saúde que afligem o sistema de saúde, como também não detêm todas as competências e capacidades específicas para o desenvolvi-mento adequado das propostas de intervenção. Portanto esse mandato constitucional de intervir no processo de formação dos trabalhadores da Saúde é um mandato compartilhado, tanto por outras esferas de governo dentro do próprio setor Saúde – gestores federais, estaduais e municipais – como fora do próprio setor Saúde, principalmente pelo Ministério da Educação, o principal agente regula-dor do processo de qualificação profissional no país.

A gestão da educação do trabalhador de saúde não é tarefa simples. As ações mais difundidas do processo de gestão da educação do trabalhador da Saúde têm-se dado na área da formação, da qualificação técnico-profissional e na educação permanente.

Na formação, no nível da graduação, foram aprovadas pelo Conselho Nacional de Educação, em 2001, as denominadas diretrizes curriculares que definem as competências e perfis das profis-sões da Saúde a serem perseguidas pelos respectivos cursos. Apesar disso, poucas mudanças foram observadas nesses cursos no período e, desde 2005, instituiu-se um programa nacional visando pro-mover e financiar mudanças na graduação por meio da maior integração ensino-serviço, com foco nos cursos de medicina, enfermagem e odontologia. Ainda na graduação, tem-se adotado medidas de regulação com dois eixos principais: um processo sistemático de avaliação dos cursos e a utilização de critérios para abertura de novos cursos, ambos os processos prenhes de conflitos e leituras diversas pelos diferentes atores, aguardando avaliações consistentes.

Na pós-graduação, duas iniciativas recentes merecem ser destacadas pela relevância dos seus obje-tivos mais que por seus resultados: a criação da residência multiprofissional em Saúde, que estende às demais profissões de saúde, além da medicina, a especialização em serviço, e a residência em medici-na familiar e comunitária, voltada à formação de profissional médico mais adequado às necessidades da população e do sistema público de saúde.

A qualificação técnico-profissional teve um significativo avanço com a execução do programa de profissionalização dos trabalhadores na área de enfermagem (Profae), que no período 2000-2005 formou 323.513 técnicos de enfermagem, envolvendo 319 escolas, públicas e privadas, em todo o país, além de ter formado como especialistas cerca de 13.000 professores. O Profae é hoje uma refe-rência internacional na área da Educação Profissional e os seus resultados devem-se em boa medida ao papel desempenhado pelas Escolas Técnicas do SUS, ligadas às secretarias de saúde estaduais,

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cuja atuação descentralizada garantiu a capilaridade do programa, atingindo até mesmo os municí-pios mais remotos e de difícil acesso. O modelo operacional do Profae orienta o atual processo de qualificação técnica dos agentes comunitários de saúde em todo o país, que pretende atingir 170 mil trabalhadores, e inspira uma nova proposta, o projeto de formação na área profissional de saúde, o Profaps, que pretende formar 700 mil trabalhadores, com recursos do Banco Mundial, técnicos nas seguintes áreas: vigilância à saúde, higiene dental, biodiagnóstico, radiologia, manutenção de equi-pamentos, prótese dentária e agente comunitário de saúde. Não há dúvida de que um projeto desse porte, se implantado, terá profundo impacto na qualidade e integralidade das ações e serviços de públicos de saúde. Apesar dos números significativos apresentados pela área da Educação Profissio-nal de nível técnico, ela apresenta algumas características preocupantes como o fato da formação do pessoal técnico da área assistencial estar ocorrendo predominantemente no setor privado (80% dos estabelecimentos), sem que haja nenhum tipo de regulação por parte do SUS, gerando indagações: a competência e o perfil desses trabalhadores atende ao sistema público de saúde? Outro aspecto é o desequilíbrio regional na oferta de vagas com carências conhecidas das regiões norte, nordeste e centro-oeste. Finalmente, as escolas técnicas precisam ser fortalecidas para poderem vir a ser verda-deiros centros de referência regional/estadual para a formação técnica em Saúde.

ReferênciasGaray ABS. Reestruturação produtiva e desafios de qualificação: algumas considerações críticas. Disponível em: <http://read.adm.ufrgs.br/read05/artigo/garay.htm>.

Cardoso Jr JC. Crise e desregulação do trabalho no Brasil. Brasília: IPEA; ago 2001. Texto Para Discussão n. 814.

Nogueira RPB, Almeida SRV de. Limites críticos das noções de precariedade e desprecarização do trabalho na administração pública. 2004. Disponível em: <www.observar.org.br>.

CONASS. Estudo sobre a reposição dos servidores federais descentralizados no SUS. Brasília: CONASS; 2002.

Ministério da Saúde. Agenda positiva do Departamento de Gestão e de Regulação do Trabalho em Saúde. SGTES. Brasília: Ministério da Saúde; 2005.

CONASS. Estruturação da área de recursos humanos nas Secretarias Estaduais de Saúde dos Estados e Distrito Federal. CONASS Documenta. 2004a;1.

CONASEMS. Núcleo de Gestão do Trabalho e da Educação em Saúde. Brasília: CONASEMS; 2006.

Pierantoni C, coordenador. Capacidade gestora de recursos humanos em instâncias locais de saúde em municípios com população superior a 100 mil habitantes: relatório final. Rio de Janeiro: UERJ: IMS; 2004.

CONASS. Recursos humanos: um desafio do tamanho do SUS. CONASS Documenta. 2004b:4.

Müller Neto JS et al. Avaliação e fortalecimento da gestão estadual do SUS com base nas funções essenciais da saúde pública. In: Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva 8, Congresso Mundial de Saúde Pública 11. Rio de Janeiro; 2006. Disponível em: <http://www.abrasco.org.br>.

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A EMENDA CONSTITUCIONAL N. 29, DE 13 DE SETEMBRO DE 20001

1. Introdução

O Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS) elaborou um Manifesto com 14 itens que foi entregue aos candidatos à Presidência da República que expressa as propostas prioritárias para o fortalecimento do SUS. Uma delas refere-se a necessidade de regulamentação da Emenda Constitucional n. 29 (EC 29).

Apesar de enormes resistências, fundadas no raciocínio de poderosas correntes econômicas contrá-rias à vinculação de recursos orçamentários, a Emenda Constitucional n. 29 (EC n. 29) foi aprovada em 2000 e ainda não foi regulamentada. A falta de definição precisa sobre o que são ações e serviços de saúde tem levado à introdução nos orçamentos públicos uma série de ações e serviços que são questionáveis.

O resultado são menos recursos para o financiamento do SUS. Desse modo, a luta política por mais recursos públicos para a saúde deve centrar-se, em curto prazo, na regulamentação, pelo Congresso Nacional, da Emenda Constitucional n. 29. Tal regu lamentação será fundamental para orientar os respectivos Tribunais de Contas no pro cesso de fiscalização do seu cumprimento.

No livro SUS: avanços e desafios, lançado em 13 de dezembro de 2006, o CONASS analisa os avanços do sistema e aponta seis desafios para a continuação da construção do SUS, sendo que no item refe-rente ao financiamento e a regulamentação da Emenda Constitucional n. 29 afirma que:

...a luta política por mais recursos públicos para a Saúde deve centrar-se, em curto prazo, na regu-lamentação, pelo Congresso Nacional, da EC n. 29.

... Essa regulamentação só será aprovada se for feito um amplo movimento de mobilização social pelo SUS que chegue ao interior do Congresso Nacional.

Neste capítulo, apresentaremos os principais pontos da EC n. 29, a Resolução do Conselho Nacio-nal de Saúde n. 322/2003 que tenta definir as bases de cálculo, ações e serviços públicos de saúde,

1 Publicado originalmente em: BRASIL. Conselho Nacional de Secretários de Saúde. A Emenda Constitucional n. 29, de 13 de setembro de 2000. In: BRASIL. CONASS. O financiamento da saúde. Brasília: CONASS, 2007. p. 60-75. (Coleção Progestores – Para Entender a Gestão do SUS, 3)

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instrumentos de acompanhamento, fiscalização e controle, a Portaria GM/MS n. 2.047/2002 e considerações do CONASS a seu respeito, o acompanhamento da EC n. 29, sua regulamentação, e o Sistema de Informação de Orçamentos Públicos em Saúde (Siops).

2. A Emenda Constitucional n. 29/2000 e seus principais pontos

A Emenda Constitucional n. 292 (EC n. 29) promulgada em 13 de setembro de 2000, assegurou o financiamento das ações e serviços públicos de saúde estabelecendo que as três esferas de governo aportem anualmente recursos mínimos proveniente da aplicação de percentuais das receitas e deter-minando as suas bases de cálculo. Portanto, vinculou recursos para o setor saúde.

Seus principais pontos são os seguintes:

a. acrescenta (Art. 1º e 2º), nos artigos 34 e 35 da Constituição Federal, a possibilidade de interven-ção da União nos estados, Distrito Federal e municípios, e do estado em seus municípios, no caso da não aplicação, em ações e serviços públicos de saúde, do mínimo previsto de suas receitas;

b. acrescenta (Art. 3º) dispositivo ao § 1º do Art. 156 da CF, permitindo aos municípios estabelecer progressividade na cobrança do IPTU em função do valor do imóvel e ter alíquotas diferenciadas de acordo com a localização e uso do imóvel;

c. condiciona (Art. 4º), no art. 160 da CF, a entrega dos recursos transferidos pela União e pelos estados ao atendimento da vinculação definida pela emenda;

d. permite, no art. 167 da CF, a vinculação de receita de impostos às ações e aos serviços de saúde;

e. determina (art. 5º), como regra permanente, no art. 198 da CF, que a União, os estados, o Distri-to Federal e os municípios apliquem, anualmente, em ações e serviços públicos de saúde, recursos mínimos. No caso dos estados, do Distrito Federal e dos municípios,3 os percentuais serão calcu-lados sobre a arrecadação de impostos e as transferências constitucionais. No caso da União, na forma como for definida em lei complementar;

f. prevê (Art. 6º) a promulgação de Lei Complementar, em que essas medidas serão reavaliadas pelo menos a cada cinco anos, tanto para estabelecer os percentuais mínimos de aplicação quanto para definir critérios de rateio dos recursos transferidos pela União aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios, e pelos estados aos seus municípios. A lei complementar também deverá estabelecer: (i) os critérios de rateio para a distribuição dos recursos, objetivando a progressiva redução das dispari-dades regionais; (ii) as normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas com saúde nas esferas federal, estadual e municipal; (iii) as normas de cálculo do montante a ser aplicado pela União;

g. insere (Art. 7º) um novo artigo no ADCT (Art. 77) estabelecendo regras para a aplicação dos dis-positivos da emenda, enquanto não entrar em vigor a lei complementar que definirá os percentuais de vinculação;

h. define (art. 77, § 1º) que, no caso da União, no ano 2000, o total de recursos mínimos a ser aplicado em ações e serviços de saúde será equivalente ao montante empenhado no exercício fi-

2 Altera os artigos 34, 35, 156, 160, 167 e 198 da Constituição Federal e acrescenta artigo ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para assegurar os recursos mínimos para o financiamento das ações e serviços públicos de saúde.3 No caso dos estados e do Distrito Federal, a vinculação incide sobre o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 155 e dos recursos de que tratam os artigos 157 e 159, Inciso I a e II da CF, deduzidas as parcelas que forem transferidas aos respectivos municípios. No caso dos municípios e do Distrito Federal, incide sobre o produto da arrecadação de impostos a que se refere o art. 156 e dos recursos de que tratam os artigos 158 e 159, inciso I, b e parágrafo 3º da CF.

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nanceiro de 1999 acrescido de, no mínimo, 5%. Do ano 2001 ao ano 2004, o valor mínimo será aquele apurado no ano anterior, corrigido pela variação nominal do PIB. No caso dos estados e do Distrito Federal, os recursos mínimos serão equivalentes a 12% da arrecadação de impostos e das transferências constitucionais, deduzidas as parcelas que forem transferidas aos municípios. No caso dos municípios, os recursos mínimos corresponderão a 15% da arrecadação de impostos e dos recursos de transferências constitucionais;

i. estabelece, para o caso dos estados, Distrito Federal e municípios que aplicam menos que os per-centuais previstos, a obrigação de elevarem progressivamente suas aplicações até 2004, na razão de pelo menos um quinto por ano;

j. define que a partir de 2000 as aplicações de estados, Distrito Federal e municípios serão de pelo menos 7%;

k. obriga a aplicação pelos municípios de no mínimo 15% dos recursos federais vinculados ao setor, em ações e serviços básicos de saúde. A lei complementar disporá sobre o assunto, incluindo o rateio desses recursos segundo o critério populacional;

l. determina que os recursos das três esferas de governo sejam aplicados por meio dos Fundos de Saúde – que serão acompanhados e fiscalizados pelos Conselhos de Saúde;

m.mantém as regras do art. 77 (ADCT), a partir de 2005, caso não seja criada a lei complementar referida no art. 198, parágrafo 3º.

Os primeiros efeitos positivos da EC n. 29 logo se fizeram sentir, e em 2001 o gasto público em saúde já apresentou um crescimento real de 10% em relação ao ano anterior e de 35% entre 2000 e 2004. Os efeitos só não foram maiores por duas razões básicas:

�� possíveis dificuldades de alguns entes subnacionais sobretudo os mais endividados;

�� o fato da EC n. 29 não ter definido, para efeito do seu cumprimento, o que são ações e serviços públicos de saúde. Sem resolver essa última controvérsia continuarão proliferando protestos na demonstração do cumprimento da Lei, além de fazer prevalecer entendimentos díspares a critério de cada Tribunal de Contas.

3. A Resolução n. 322, de 8 de maio de 2003 (antiga Resolução n. 316, de abril de 2002) do Conselho Nacional de Saúde

Com a promulgação da Emenda Constitucional n. 29, em 13 de setembro de 2000, o Conselho Nacional de Saúde entendeu que seus dispositivos eram autoaplicáveis e se fazia necessário o escla-recimento conceitual e operacional do texto constitucional, visando garantir eficácia e viabilizar sua perfeita aplicação pelos agentes públicos, até a aprovação da Lei Complementar a que se refere o § 3º do artigo 198 da Constituição Federal.

A Resolução n. 322/2003 aprova dez diretrizes acerca da aplicação da EC n. 29/00 divididas em quatro temas:

1. da base de cálculo para a definição dos recursos mínimos a serem aplicados em saúde (primeira diretriz);

2. dos recursos mínimos a serem aplicados em saúde (segunda, terceira e quarta diretrizes);

3. das ações e serviços públicos de saúde (quinta, sexta e sétima diretrizes);

4. dos instrumentos de acompanhamento, fiscalização e controle (oitava, nona e décima diretrizes).

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3.1 Base de cálculo para a definição dos recursos mínimos a serem aplicados em saúde

No caso da União e para o ano de 2000, a EC n. 29 definiu a base de cálculo como equivalente ao montante empenhado em ações e serviços de saúde no exercício financeiro de 1999, acrescido de, no mínimo, 5%. De 2001 até o ano de 2004, a base de cálculo corresponderá ao montante efetivamente empenhado em ações e serviços públicos de saúde no ano imediatamente anterior ao da apuração da nova base de cálculo.

Para os estados, a base de cálculo é a sua receita própria, calculada da seguinte forma:

Total das Receitas de Impostos de Natureza Estadual

(ICMS+ IPVA+ITCMD)

(+) Receitas de Transferências da União:

Quota-Parte do Fundo de Participação dos estados - FPE

Cota-Parte do IPI – Exportação

Transferências da Lei Complementar n. 87/96 (Lei Kandir)

(+) Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF)

(+) Outras receitas correntes:

Receita da Dívida Ativa Tributária de Impostos, Multas, Juros de Mora e Correção Monetária

(-) Transferências Financeiras Constitucionais e Legais aos Municípios:

25% do ICMS

50% do IPVA

25% do IPI – Exportação

(=) Receita Própria do estado = Base de Cálculo Estadual

De forma semelhante, para os municípios, a base de cálculo é a sua receita própria, assim calculada:

Total das Receitas de Impostos Municipais

(ISS, IPTU, ITBI)

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(+) Receitas de Transferências da União

Quota-Parte do FPM

Quota-Parte do ITR

Quota-Parte da Lei Complementar n. 87/96 (Lei Kandir)

(+) Imposto de Renda Retido na Fonte – IRRF

(+) Receitas de Transferências do Estado:

Quota-Parte do ICMS

Quota-Parte do IPVA

Quota-Parte do IPI – Exportação

(+) Outras Receitas Correntes:

Receita da Dívida Ativa Tributária de Impostos, Multas, Juros de Mora e Correção Monetária

(=) Receita Própria do município = Base de Cálculo Municipal

3.2 Recursos mínimos a serem aplicados em saúde

Segundo a EC n. 29, no caso da União, os recursos mínimos a serem aplicados em ações e serviços públicos de saúde, no período de 2001 até 2004, correspondem ao valor efetivamente empenhado pela União em ações e serviços públicos de saúde no ano imediatamente anterior, corrigido pela va-riação nominal do Produto Interno Bruto (PIB) do ano em que se elabora a proposta orçamentária.

Para os estados e os municípios, até o exercício financeiro de 2004, deveria ser observada a seguinte regra:

a. Os estados e municípios, cujo percentual aplicado em 2000 tiver sido inferior a sete por cento, deve-riam aumentá-lo progressivamente de modo a atingir o mínimo previsto para os anos subsequentes.

b. O caso do Distrito Federal é especial. As receitas orçamentárias dessa instância da Federação possuem componentes que são típicos das receitas estaduais e também das municipais. Assim, segundo a correspondência desses componentes, aplica-se o percentual mínimo de vinculação dos estados ou dos municípios.

c. Os estados e os municípios, que em 2000 já aplicavam percentuais superiores a sete por cento, não poderiam reduzi-lo de imediato. A diferença entre o percentual efetivamente aplicado e o final estipulado no texto constitucional poderia ser reduzida pelo estado ou município na razão mínima de um quinto ao ano, até 2003, sendo que em 2004 o percentual deveria ser, no mínimo, de 12% e 15%, respectivamente.

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3.3. Definição do que são ações e serviços públicos de saúde

Para efeito da aplicação da EC n. 29, considera-se despesas com ações e serviços públicos de saúde aquelas com pessoal ativo e outras despesas de custeio e de capital, financiadas pelas três esferas de governo, conforme o disposto nos artigos 196 e 198, § 2º, da Constituição Federal e na Lei n. 8.080/90, relacionadas a programas finalísticos e de apoio (inclusive administrativos), que atendam, simultaneamente, aos seguintes critérios:

a) sejam destinadas às ações e aos serviços de acesso universal, igualitário e gratuito;

b) estejam em conformidade com objetivos e metas explicitados nos Planos de Saúde de cada ente federativo;

c) sejam de responsabilidade específica do setor de saúde, não se confundindo com despesas relacio-nadas a outras políticas públicas que atuam sobre determinantes sociais e econômicos, ainda que com reflexos sobre as condições de saúde.

Além de atender a esses critérios, as despesas com ações e serviços de saúde realizadas pelos estados, Distrito Federal e municípios deverão ser financiadas com recursos alocados por meio dos respecti-vos Fundos de Saúde, nos termos do Art. 77, § 3º do ADCT (EC n. 29).

Atendidos esses critérios, para efeito da aplicação dessa Emenda, são consideradas despesas com ações e serviços públicos de saúde as relativas à promoção, proteção, recuperação e reabilitação da saúde, incluindo:

�� Vigilância Epidemiológica e controle de doenças.

�� Vigilância Sanitária.

�� Vigilância nutricional, controle de deficiências nutricionais, orientação alimentar, e a segurança alimentar promovida no âmbito do SUS.

�� Educação para a saúde.

�� Saúde do trabalhador.

�� Assistência à saúde em todos os níveis de complexidade.

�� Assistência farmacêutica.

�� Atenção à saúde dos povos indígenas.

�� Capacitação de recursos humanos do SUS.

�� Pesquisa e desenvolvimento científico e tecnológico em saúde, promovidos por entidades do SUS.

�� Produção, aquisição e distribuição de insumos setoriais específicos, tais como medicamentos, imunobiológicos, sangue e hemoderivados e equipamentos.

�� Saneamento básico e do meio ambiente, desde que associado diretamente ao controle de vetores, a ações próprias de pequenas comunidades ou em nível domiciliar, ou aos Distritos Sanitários Es-peciais Indígenas (DSEI), e outras ações de saneamento a critério do Conselho Nacional de Saúde.

�� Serviços de saúde penitenciários, desde que firmado Termo de Cooperação específico entre os órgãos de saúde e os órgãos responsáveis pela prestação dos referidos serviços.

�� Atenção especial aos portadores de deficiência.

�� Ações administrativas realizadas pelos órgãos de saúde no âmbito do SUS e indispensáveis para a execução das ações indicadas nos itens anteriores.

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Nesse mesmo contexto legal, para efeito da aplicação da EC n. 29, a Resolução do CNS não considera como despesas com ações e serviços públicos de saúde as relativas a:

a. pagamento de aposentadorias e pensões;

b. assistência à saúde que não atenda ao princípio da universalidade (clientela fechada);

c. merenda escolar;

d. saneamento básico, mesmo o previsto no primeiro item do tópico anterior, realizado com recur-sos provenientes de taxas ou tarifas e do Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza, ainda que excepcionalmente executado pelo Ministério da Saúde, pela Secretaria de Saúde ou por entes a ela vinculados;

e. limpeza urbana e remoção de resíduos sólidos (lixo);

f. preservação e correção do meio ambiente, realizadas pelos órgãos de meio ambiente dos entes federativos e por entidades não governamentais;

g. ações de assistência social não vinculadas diretamente a execução das ações e serviços de saúde e não promovidas pelos órgãos de saúde do SUS;

h. ações e serviços públicos de saúde custeadas com recursos que não os especificados nas bases de cálculos das receitas próprias de estados e municípios.

3.4 Instrumentos de acompanhamento, fiscalização e controle

Segundo a referida Resolução a referência para o acompanhamento, a fiscalização e o controle da aplicação dos recursos vinculados em ações e serviços públicos de saúde é o Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde do Ministério da Saúde (Siops).

A Resolução n. 322, do Conselho Nacional de Saúde, orienta o Siops a divulgar as informações relati-vas ao cumprimento da EC n. 29 aos diversos órgãos de fiscalização e controle, tais como o Conselho Nacional de Saúde, os Conselhos Estaduais e Municipais de Saúde, o Ministério Público Federal e Esta-dual, os Tribunais de Contas da União, dos estados e municípios, o Senado Federal, a Câmara dos De-putados, as Assembleias Legislativas, a Câmara Legislativa do Distrito Federal e as Câmaras Municipais.

4. A Portaria GM/MS n. 2.047 de 5 de novembro de 2002

O Ministério da Saúde, considerando sua competência na condição de órgão de direção nacional do Sistema Único de Saúde (SUS) de estabelecer normas operacionais para o funcionamento do Sistema, e a aprovação da Resolução n° 316, pelo Plenário do Conselho Nacional de Saúde, editou a Portaria GM/MS n. 2.047, de 05 de novembro de 2002, aprovando as Diretrizes Operacionais para a Aplicação da EC n. 29.

O anexo desta portaria apresenta os mesmos quatro temas da Resolução n. 322/2003.

À época, a Diretoria do CONASS encaminhou ao ministro da Saúde, Barjas Negri, ofício CONASS n. 291, de 7 de novembro de 2002, com as observações da entidade em relação à referida portaria. O CONASS, no documento, destacava o seu compromisso com o cumprimento da EC n. 29, e reafir-mava que considerava como caminho mais adequado para que isto acontecesse a sua regulamentação por Lei Complementar.

Entre os pontos abordados no expediente ao ministro citamos:

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�� O entendimento do CONASS quanto a regra de evolução progressiva, no caso dos estados, de aplicação dos percentuais mínimos de vinculação (2001-8,25%; 2002 – 9,50%; 2003 – 10,75%; 2004 – 12%).

�� O questionamento se os critérios de evolução podem ser objeto de regulamentação por Resolução de CNS ou portaria do MS.

�� A inclusão de que os recursos aplicados em ações e serviços públicos de saúde, em cada ente fede-rado, serão calculados pela “soma das despesas liquidadas com essas ações...”. Cabe lembrar que a Resolução n. 316 do CNS, em sua primeira diretriz, quando cita a questão da base de cálculo, se refere, por exemplo, no caso da União, em “montante efetivamente empenhado”.

�� O artigo sexto da seção que trata das “ações e serviços públicos de saúde” considera como despesas em ações e serviços públicos de saúde aquelas de custeio e capital que “sejam de responsabilidade es-pecífica do setor saúde, não se confundindo com despesas relacionadas a outras políticas públicas que atuam sobre determinantes sociais e econômicos, ainda que incidentes sobre as condições de saúde” e “deverão ser financiadas com recursos alocados por meio dos respectivos Fundos de Saúde”. Este conceito deixa de fora gastos em saúde realizados em outros setores governamentais. O artigo oitavo desta mesma seção define as situações não consideradas como despesas com ações e serviços públicos de saúde, listadas conforme descrito na Resolução n. 316 do CNS. Sobre esta questão persiste a polê-mica, visto que o conceito constitucional de saúde abrange algumas das ações deste artigo.

�� Sobre a questão dos instrumentos de acompanhamento, fiscalização e controle do cumprimento da EC n. 29: o Siops é um sistema de informação utilizado para o acompanhamento dos gastos em saúde, sendo que o seu preenchimento tem efeitos internos ao SUS e na relação com o Ministério da Saúde, devendo ser observadas as respectivas competências dos órgãos de controle externo responsáveis pelo controle da aplicação dos recursos, entre outros aspectos.

�� A atuação do Denasus é feita no âmbito dos recursos federais, não cabendo a este órgão atuar sobre o cumprimento da EC n. 29.

Vários desses questionamentos permanecem atuais e sem resposta.

5. O acompanhamento da Emenda Constitucional n. 29

A cada final de exercício, ou na elaboração da proposta orçamentária, sempre surge o tema sobre o cumprimento da Emenda Constitucional n. 29 pelas três esferas de governo, isto é, o volume míni-mo de recursos determinado pela EC n. 29 foi aplicado em ações e serviços públicos de saúde?

Parece uma pergunta fácil de responder se as informações estiverem disponíveis para uma análise da execução orçamentária, mas se torna difícil, pois existem diversas interpretações sobre quais gastos podem ser considerados como Ações e Serviços Públicos de Saúde, e qual a base de cálculo a ser utilizada para a previsão mínima de recursos, o embate base fixa versus base móvel do governo federal.

Ao determinar que um patamar mínimo de recursos – calculado aplicando-se a variação nominal do PIB sobre os gastos federais em saúde ano a ano – seria destinado obriga toriamente a “ações e serviços públicos de saúde”, a EC n. 29 não determinou quais ações governamentais seriam consi-deradas para tal. Ao não expressar explicitamente, por exemplo, que apenas os gastos com ações do SUS seriam legítimos para o aten dimento de metas definidas na EC n. 29, foi aberto muito espaço para dúvidas, tais como o que fazer com as despesas de saneamento; com os inativos do setor saúde; com os gastos das políticas de alimentação; e com os gastos do setor público com serviços de saúde de clientela fechada, como os planos de saúde dos servidores públicos. É es sencial, portanto, que se estabeleça o que são “ações e serviços públicos de saúde”, aos quais os recursos foram vinculados, para que não ocorram interpretações diferenciadas a cada ano. (...)

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A “outra questão referente à interpretação e à implementação da EC n. 29, que tem gerado debate constante, consiste na contraposição entre os critérios de “base móvel” “base fixa”. Por meio do artigo 77, adicionado ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a EC n. 29 definiu como ponto de partida o exercício de 1999, uma vez que estabeleceu como patamar mínimo de recursos da União para Ações e Serviços Pú blicos em Saúde no ano 2000 “o montante empenhado em ações e serviços públicos de saúde no exercício financeiro de 1999 acrescido de, no mínimo, cinco por cento”. (...)

A primeira interpretação defende que o termo apurado deve ser entendido como em penhado, à se-melhança do que foi definido pela Emenda para o ano 2000. Este en tendimento é conhecido como critério de base móvel, porque dessa forma a base de cálculo sempre será o volume de recursos efetivamente aplicado no ano anterior, exceto quando esse for inferior ao respectivo piso mínimo calculado – o que configuraria uma situação de desrespeito à emenda. Essa interpretação é com-partilhada pelo Ministério da Saúde, pelo Conselho Nacional de Saúde e pelo Tribunal de Contas da União (TCU), entre outros. A segunda defende que o termo apurado deve ser entendido como calcu lado, ou seja, o valor mínimo para determinado ano será o valor mínimo calculado para o ano anterior, corrigido pela variação nominal do PIB. Essa interpretação é conhecida como critério de base fixa, pois ao considerar como base de cálculo não a execução efetiva do ano imediatamente an-terior, mas sim o piso calculado, os recursos previstos para Ações e Serviços Públicos de Saúde são, em cada ano, sempre correspondentes ao valor empenhado em 1999, acrescido de 5% e corrigido pela variação nominal do PIB acumulada no período. Tal entendimento é defendido, fundamental-mente, pelo Minis tério da Fazenda, pela Advocacia Geral da União (AGU) e pelo Ministério do Planeja mento, Orçamento e Gestão, esse último particularmente importante na medida em que orienta os vetos presidenciais à LDO e à Lei Orçamentária (Ipea 2005 – Políticas Sociais – Acom-panhamento e Análise, n. 10).

A Tabela 17, extraída do Boletim do Ipea de Políticas Sociais – Acompanhamento e Análise, número 12, página 71, demonstra as duas ordens de problemas.

Em primeiro lugar, ao confrontar a execução orçamentária, segundo o entendimen to da LDO – coluna (a) –, com o piso exigido pela Emenda, conforme o critério de base fixa – coluna (c) –, a conclusão seria pelo adequado cumprimento da emenda pelo governo federal. Entretanto, se o critério utilizado para o cálculo do piso for de base móvel – coluna (d) –, a EC n. 29 só teria sido cumprida nos anos de 2000 e 2004. Para o ano de 2006, o conflito permanece: a dotação inicial seria adequada de acordo com o critério de base fixa, mas insuficiente para o critério de base móvel. (Ipea 2005 - Políticas Sociais – Acompanhamento e Análise, n 12).

Tabela 17 – Execução orçamentária em ações e serviços públicos de saúde. Ministério da Saúde, 2000 a 2005 e estimativa para 2006. Em R$ bilhões correntes

Fonte: SIAFI/SIDOR

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1. Segundo a definição das LDOs: Gastos Totais do Ministério da Saúde, excetuando-se as despesas com Inativos

e Pen sionistas, Juros e Amortizações de Dívida, bem como as despesas financiadas pelo Fundo de Combate e

Erradicação da Pobreza.

2. Além das exclusões previstas na LDO, excluiu-se também nesta coluna as despesas com programas de transferência

direta de renda.

3. Sob o enfoque de “Base Fixa”, o percentual de variação do PIB nominal é aplicado sobre o valor mínimo de recursos

calculado para o ano anterior.

4. Sob o enfoque de “Base Móvel”, o percentual de variação do PIB nominal é aplicado sobre o volume de recursos ex-

ecutado no ano anterior, exceto quando este for inferior ao piso mínimo calculado .

5. Dados da Execução para 2006 correspondem à Dotação Inicial. Variação Nominal do PIB para 2005 estimada

prelimi narmente em 8,9%.

Quanto aos governos estaduais, os questionamentos existentes também são de duas ordens de problemas:

�� Em relação às receitas, exclusão de algumas receitas de impostos, bem como, o Fundef (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério) e outros mais;

�� Em relação às despesas, idêntica a das outras esferas, a inclusão de itens de despesas em ações e serviços de saúde que não seriam consideradas para tal.

Para que essas controvérsias acabem, se faz necessária a regulamentação da Emenda Constitucional n. 29 que desde 2003, tem projeto de lei tramitando no Congresso Nacional propondo sua regula-mentação

6. O Sistema de Informação de Orçamentos Públicos em Saúde (Siops)O Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde (Siops) é um banco de dados cujo objetivo é coletar informações sobre as receitas totais e despesas com ações e serviços públicos de saúde das três esferas de governo.

A Portaria Interministerial n. 529 do Ministério da Saúde e da Procuradoria Geral da República, de 30 de abril de 1999, designou uma equipe para desenvolver o projeto de implantação do Siops.

Essa equipe iniciou a coleta de dados através de um sistema informatizado desenvolvido pelo Depar-tamento de Informática do SUS (Datasus), possibilitando a transmissão dos dados pela Internet. Os dados transmitidos estão disponibilizados na Internet, por municípios, por UF, por porte populacio-nal ou qualquer outro a ser escolhido pelo usuário, a partir do ano-base 1998.

O preenchimento de dados do Siops, como o imposto de renda, tem natureza declaratória. Atual-mente, o Siops possui duas versões sendo uma semestral (a partir de 2002) e outra anual.

O Departamento de Economia da Saúde (DES), da SCTIE/MS, coordena nacionalmente o Siops e conta com o auxílio de uma Câmara Técnica de Orientação e Avaliação (CT/Siops), multi-institu-cional composta por dezenove (19) membros.

Foram constituídos Núcleos Estaduais de Apoio ao Siops, com funções, de estimular a adesão de mu-nicípios ao Siops, proporcionando-lhes apoio técnico necessário para que alimentem o Sistema; zelar pelas informações dos estados ao Sistema, analisar as informações geradas pelo Sistema, subsidiando os processos de planejamento e gestão do SUS no estado; e contribuir para o controle social sobre as políticas de financiamento da saúde.

Resumindo, o Siops é um sistema de informação que reúne dados declarados pelos estados e pelos municípios sobre financiamento (receita) e despesa com ações e serviços públicos de saúde. Os dados referentes à União ainda não são informados nesse sistema.

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CONFERÊNCIAS DE SAÚDE E FORMULAÇÃO DE POLÍTICAS EM 16 MUNICÍPIOS DE MATO GROSSO, 2003-20051

JÚLIO STRUBING MÜLLER NETO2 FÁTIMA TICIANEL SCHADER3

MARIA JOSÉ VIEIRA DA SILVA PEREIRA4 ILVA FÉLIX DO NASCIMENTO5

LYDIA BOCAIÚVA TAVARES6

ALINE PAULA MOTTA 7

Este artigo faz parte de um estudo mais amplo que analisou a incorporação das demandas populares às políticas municipais de saúde, e identificou elementos e estratégias para a qualificação da gestão participativa no Sistema Único de Saúde (SUS) em municípios de Mato Grosso. Sua realização deu-se no contexto das práticas e experiências dos gestores, conselheiros, profissionais de saúde e vereado-res e do compromisso das instituições envolvidas na luta pelo direito à saúde no Brasil.

O campo de análise da pesquisa compreendeu as conferências municipais de saúde (CMS) realizadas em 2003, etapa municipal da 12ª Conferência Nacional de Saúde (CNS), o contexto político-insti-tucional das secretarias municipais de saúde e seus processos de gestão e planejamento, o Conselho Municipal de Saúde, o Legislativo e as relações dessas instituições entre si e com os atores sociais. Na medida que os conselhos e as conferências são espaços públicos com legitimidade para influenciar nas políticas de saúde, o principal objetivo foi analisar se as demandas e as diretrizes aprovadas nas confe-rências municipais de saúde estavam sendo priorizadas pelos próprios conselhos e pela equipe gesto-ra, responsáveis pelo processo de formulação e planejamento, implementação e avaliação da política de saúde. Partiu-se do pressuposto de que a CMS devia ser o espaço institucional para a aprovação da agenda de prioridades, os planos deviam incorporar as prioridades aprovadas nas conferências e os relatórios de gestão deveriam referir-se às mesmas prioridades.

1 Este artigo, adaptado para a presente coletânea, foi publicado originalmente em: MÜLLER NETO, Júlio Strubing et al. Conferências de saúde e formulação de políticas em 16 municípios de Mato Grosso, 2003-2005. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 30, n. 73/74, p. 248-274, maio/dez. 2006.2 Médico sanitarista e psiquiatra; professor do ISC/UFMT. Núcleo de Desenvolvimento em Saúde; Instituto de Saúde Coletiva; Universidade Federal de Mato Grosso. [email protected] Enfermeira; mestre em Saúde Pública; assessora técnica NDS/ISC/UFMT. [email protected] Enfermeira; especialista em Saúde Pública; assessora técnica do Grupo de Saúde Popular (GSP). [email protected] Assistente social; especialista em Saúde Pública; assessora técnica GSP. [email protected] 6 Médica; mestre em Saúde Ambiental; assessora técnica NDS/ISC/UFMT. [email protected] 7 Apoio técnico administrativo NDS/ISC/UFMT. [email protected]

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O estudo foi realizado em 16 municípios do estado de Mato Grosso, das diferentes regiões de saúde e portes populacionais, incluindo a capital, Cuiabá, oito municípios polos regionais de saúde e sete mu-nicípios não polos regionais. Foi desenvolvido pelo Grupo de Saúde Popular (GSP)8, em parceria com o Núcleo de Desenvolvimento da Saúde (NDS) do Instituto de Saúde Coletiva/UFMT e o Conselho de Secretários Municipais de Saúde de Mato Grosso (COSEMS/MT), com apoio financeiro do Ministério da Saúde, por meio da Secretaria de Gestão Participativa. Procura-se, neste artigo, apresentar aspectos metodológicos e alguns dos resultados do estudo, com foco nas conferências municipais de saúde: o pro-cesso de organização, a representatividade e as características das deliberações aprovadas nas mesmas; a análise comparativa dessas demandas com as ações incluídas no plano municipal de saúde e aquelas ações implementadas, conforme relatório de gestão do ano seguinte à realização das mesmas.

As principais questões que nortearam o desenho da pesquisa foram: 1) os atores/sujeitos sociais re-presentados nas conferências estão conseguindo ou não influenciar a construção da agenda da política municipal de saúde?; 2) o processo de construção da agenda é democrático e permite a participação social?; 3) a agenda de saúde é determinada pela agenda nacional ou há um espaço para sua elaboração no interior do município, a partir das demandas sociais locais?; 4) os instrumentos de planejamento e gestão do SUS estão contribuindo ou não para a incorporação das demandas sociais à política de saúde?

A construção metodológica

Quanto ao desenho metodológico, optou-se pelo estudo de casos múltiplos, utilizando material e método da pesquisa quantitativa e qualitativa, cujas estratégias desenvolvidas contemplaram:

�� Constituição do grupo de pesquisa do nível central, seleção e treinamento dos pesquisadores de campo, sendo alunos do I e II Cursos de Especialização em Gestão de Sistemas e Serviços de Saúde realizados pelo Instituto de Saúde Coletiva (ISC/UFMT) e COSEMS, como estratégia de forma-ção da rede de cooperação e educação permanente do SUS no estado;

�� Pesquisa exploratória no campo teórico metodológico para a construção do desenho do estudo, sua dimensões e variáveis;

�� Seleção da amostra de municípios, considerando a distribuição regional e o porte populacional;

�� Seminário para discussão e nivelamento teórico-conceitual e apresentação do projeto com o en-volvimento dos professores e alunos do ISC/UFMT, profissionais de saúde, conselheiros de saúde e gestores;

�� Caracterização dos 16 municípios da pesquisa por meio de análise documental em fontes de dados primários e secundários;

�� Análise dos relatórios da etapa municipal da 12ª CNS, dos Planos Municipais de Saúde ou Planos Operativos Anuais e dos Relatórios de Gestão do ano subsequente à realização das conferências municipais;

�� Entrevistas semiestruturadas com os atores do período da realização da conferência e atual, in-cluindo gestores, conselheiros municipais de saúde e vereadores;

8 O Grupo de Saúde Popular (GPS) é uma Organização Não Governamental, fundada em 1986, que tem atuado, historicamente, em projetos de fortalecimento da participação popular para efetivação do SUS, sobretudo na capacitação de conselheiros da saúde. A parceria do GSP com o Movimento Popular de Saúde (MOPS) e outros movimentos sociais, com a Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e o Conselho de Secretarias Municipais de Saúde de Mato Grosso (COSEMS) é uma prática histórica e propiciou eventos significativos, como os dois cursos de capacitação de conselheiros, realizados com apoio da gestão estadual de saúde, no período de 1996 a 2002 (RADIS, 2001).

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Conferências de Saúde e Formulação de

Políticas em 16 m

unicípios de Mato G

rosso, 2003-20

05Júlio Strubing M

üller Neto et al.

�� Sistematização dos dados, análise e produção dos relatórios de cada município;

�� Análise dos dados de acordo com os eixos: 1)Determinantes socioeconômicos e políticos; 2) Ca-racterização institucional; 3) Processo decisório; 4) Percepções e valores dos atores institucionais; 5) Conteúdo das agendas. Cada eixo compreendeu diversas variáveis e seus respectivos indicadores e a análise foi feita no âmbito das três instituições objetos do estudo: a Secretaria e o Conselho de Saúde e o Legislativo Municipal.

As deliberações aprovadas constantes dos relatórios finais das conferências municipais e as ações incluí-das nos planos e nos relatórios de gestão foram classificadas de acordo com os termos de referência dos dez eixos temáticos da 12ª CNS (BRASIL, 2004), independente da classificação dada no relatório da conferência municipal e do recorte do plano. Foram elaborados protocolos de consenso para a classifi-cação das deliberações e das ações, assim como para a análise dos planos de saúde e relatórios de gestão.

O tema da 12ª CNS foi “Saúde: Um direito de todos e dever do Estado – A Saúde que temos, o SUS que queremos” (BRASIL, 2004), subdividido em dez eixos temáticos: 1) Direito à Saúde; 2) A segu-ridade social e a Saúde; 3) A intersetorialidade das Ações de Saúde; 4) As três esferas de governo e a construção do SUS; 5) A organização da Atenção à Saúde; 6) Controle social e gestão participativa; 7) O trabalho na Saúde; 8) Ciência e Tecnologia e a Saúde; 9) O financiamento da Saúde; 10) Comu-nicação e Informação em Saúde.

Como previa a metodologia, a devolução dos resultados aos municípios e a discussão dos mesmos com os sujeitos locais ocorreram em dois momentos: primeiramente, no 13º Encontro de Secretarias Municipais de Saúde de Mato Grosso, organizado pelo COSEMS/MT e realizado em Cuiabá, em 30/06/2007, com a participação de secretários municipais de saúde, membros da Comissão Inter-gestores Bipartite (CIB), estadual e regionais, do Conselho Estadual de Saúde, do polo de educação permanente e da Rede de Apoio SUS-COSEMS-MT, ocasião em que também foi repassado um con-junto de subsídios e recomendações para preparação da etapa municipal da 13ª CNS; posteriormente, em cada um dos 16 municípios estudados, durante a realização das conferências municipais de saúde, etapa municipal da 13ª CNS, no período de junho a agosto de 2007, com debate e apresentação de sugestões para o fortalecimento da gestão do SUS e da participação social na formulação e implemen-tação das políticas municipais de saúde.

Algumas ressalvas devem ser feitas: a análise dos planos e relatórios refere-se apenas ao primeiro ano após a realização das conferências; a análise dos planos considerou a diversidade de modelos encon-trados; não se pretendeu estabelecer a intencionalidade das ações, ou seja, afirmar que as ações idên-ticas ou equivalentes encontradas nos planos e relatórios de gestão foram incluídas ou implementadas em função das deliberações ocorridas nas conferências. Para a elaboração do artigo, ainda foram feitos alguns recortes de análise: os municípios não foram comparados por porte e região, não foram incorporados todos os eixos de análise, como também não foi analisado o papel dos conselhos e do legislativo referentes à conferências municipais de saúde.

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Referencial teórico e definições legais

A descentralização e a democratização: princípios que materializam a participação popular no SUS

A gestão democrática no âmbito do SUS é uma luta da sociedade brasileira, concebida por meio do movimento da Reforma Sanitária, como processo social e político permanente, movimento que in-fluenciou a organização da 8ª CNS, e a formulação do anteprojeto do setor saúde, aprovado no texto da Constituição de 1988.

A formulação do SUS como política de Estado reafirmou a saúde como direito e a necessidade de fortalecer o processo de descentralização, já iniciado antes, para garantir a equidade e a universali-dade do acesso. A Constituição avança também na definição das competências da gestão dos sistemas de saúde das três esferas de governo, ficando o município como principal executor das ações e dos serviços (CÔRTES, 2006).

A municipalização da saúde foi a principal estratégia adotada para o desenvolvimento da descentra-lização da saúde ao longo da década de 1990, propiciando maior responsabilização dos prefeitos e secretários municipais de saúde, no gerenciamento do sistema local (VIANA, 1998).

Em período mais recente, observou-se o esgotamento das normas operacionais como instrumento de operacionalização do sistema de saúde. Os Pactos em Defesa da Vida, do SUS e de Gestão, for-malizados em 2006 pelos gestores do SUS, estabelecem diretrizes orientadas para a construção de modelos de gestão mais democráticos e flexíveis, sensíveis à diversidade e às diferentes realidades do país (BRASIL, 2006).

No contexto geral da descentralização e do aperfeiçoamento do SUS, a participação popular teve um espaço importante na agenda da política de saúde. O cadastro nacional de Conselhos de Saúde, elaborado pela Secretaria de Gestão Participativa (MS), contabilizou a existência de 5.559 Conselhos Municipais de Saúde no país no ano de 2005 (BRASIL, 2005; LABRA, 2005). O número de dele-gados presentes nas conferências de saúde também cresceu: dos mil delegados presentes na 8ª CNS, subiu para quatro mil delegados na 12ª CNS (ESCOREL; BLOCH, 2005).

Estes dados revelam que a existência dos conselhos de saúde e a mobilização em torno das conferên-cias colocaram no cenário numerosos atores sociais, que contribuíram para a formação de um tecido social de reflexão, negociação e de formação de opinião. Espaços políticos de democracia direta e de manifestação de interesses divergentes e conflitos (CÔRTES, 2006).

Conferências e Conselhos de Saúde como espaços públicos de processamento das demandas populares: limites e desafios

A relação entre a descentralização e a participação social no país tem sido abordada por vários auto-res. Gohn (2005, p.30) define: “participação social como o processo de vivência que imprime sentido e significado a um grupo ou movimento social, tornando-o protagonista de sua história”.

Gohn (2003) assinala a mudança ocorrida nos processos de participação social no Brasil: nos anos 1970-80, o movimento popular adotava posição antagônica e externa ao Estado, enquanto na década de 1990 prevalece a tendência à inserção ativa dos movimentos sociais nos processos de formulação e implementação das políticas públicas. Constitui-se outro campo, no âmbito da esfera pública, em que

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se articulam diferentes atores sociais, criando redes e um novo tipo de associativismo. São diferentes tipos de conselhos; redes locais, nacionais ou internacionais; fóruns temáticos; assembleias organiza-das pela sociedade civil. O termo ‘participação popular’ tem sido usado em contraposição a outras expressões de participação social, como forma de participação que enfatiza a expressão política de grupos representativos da sociedade civil junto a espaços de definição de políticas públicas de cunho social (ACIOLI, 2005). Acioli enfatiza, a partir deste conceito, a relação que se estabelece entre par-ticipação popular e disputa por espaços de poder, incluindo a disputa por controle das verbas públicas e sua importância na construção do processo democrático.

Na mesma linha, Santos Junior, Azevedo e Ribeiro (2004) chamam de ‘governança democrática’ os padrões de interação entre as instituições governamentais, agentes do mercado e atores sociais que realizam a coordenação e, simultaneamente, promovem ações de inclusão social e asseguram a participação social na formulação de políticas e nos processos decisórios. Tal padrão entre governo e sociedade se expressa em canais ou arenas, institucionalizadas ou não, de intermediação entre as instituições governamentais e atores sociais. Os autores referidos apontam a riqueza da experiência dos conselhos municipais nas regiões metropolitanas, com base em extensa pesquisa empírica, e afir-mam ser os conselhos municipais espaços institucionais com potencial de se transformarem em ins-trumentos da constituição da governança democrática dos municípios. Enfatizam vários aspectos do funcionamento dos conselhos, em especial, a evidência de que eles estão se constituindo em arenas de interação entre governo e sociedades, nos quais os diferentes interesses são expressos. Há o reco-nhecimento e legitimação dos atores sociais e a permissão para a criação de uma agenda legitimada de problemas, objetivos e demandas, que passa a exercer uma ‘pressão moral’ sobre os governantes. Mas, para isso, ressaltam, seria necessário tanto o investimento nesse modelo participativo, como uma política de incentivo à associação cívica, no sentido atribuído por Putnam (2000), para superar os limites dos conselhos, assinalados por eles, enquanto canais de democratização da gestão muni-cipal: um conjunto significativo de segmentos sociais, sobretudo os mais vulneráveis, não tendo sua agenda de demandas representadas nessa arena pública; a abertura dos canais de participação seria mais fruto de políticas do governo federal, das políticas públicas descentralizadoras, que do governo e da sociedade local; capacidade decisória insuficiente e dependente; desigualdade econômico-social entre os municípios, o que ocasionaria diferentes respostas às demandas.

Também Fleury (2004, p. 44) afirma que a atual complexidade da sociedade brasileira, com a emer-gência de numerosos movimentos de base popular,

permite a introdução de novos temas na agenda pública, vocaliza as demandas sociais emergentes e constitui-se em recurso organizacional que produz o adensamento da sociedade civil e o aumento do capital social.

Côrtes (2006) analisa diferentes concepções na literatura em relação à questão do impacto de fóruns participativos sobre gestão e implementação de políticas públicas, principalmente no Brasil, relação entre participação e governança, na articulação entre gestores e burocracia governamentais e os interesses dos usuários, trabalhadores. Alguns autores são céticos em relação às possibilidades de os fóruns participativos contribuírem para a democratização da gestão pública e o aprimoramento de políticas. Outros respondem a esta questão de forma esperançosa.

No campo da saúde, Labra (2005, p. 379) destaca que os conselhos de saúde constituem uma “inova-ção política, institucional e cultural da maior relevância para o avanço da democracia e uma singula-ridade no contexto latino-americano”. (LABRA, 2005, p. 379)

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Carvalho (1995), em trabalho pioneiro, conclui que os conselhos emergentes assumiram, ao lado de atribuições de planejamento e controle das políticas de saúde, um papel de proteção dos direitos e aperfeiçoamento de políticas sociais universalistas, com forte indução legal e administrativa origina-da na esfera federal.

Entretanto, como assinala Viana (1998), os Conselhos têm seu funcionamento limitado e condiciona-do pela realidade concreta das instituições e da cultura política dos municípios brasileiros, de modo que a característica da gestão local pode interferir na dinâmica do funcionamento do Conselho. A gestão centralizada não favorece a dinâmica autônoma dos conselhos, que na maioria das vezes passa a existir como instância burocrática. O impacto do poder de direcionamento do executivo municipal pode ser minorado pelas formas de organização e grau de desenvolvimento das estruturas adminis-trativas das Secretarias de Saúde Municipais. Quanto mais autonomia administrativa e financeira, gestão e organização descentralizada dos serviços tiverem as Secretarias Municipais, maior é a in-fluência dos conselhos existentes na política local de saúde e novas modalidades de participação de usuários e profissionais de saúde podem surgir, afirma a autora, para quem o conselho é um espelho da política local e da representação dos interesses políticos.

Apesar do reconhecimento dos aspectos positivos e inovadores da participação em instâncias de decisão do sistema de saúde, é preciso ter claras as possibilidades concretas de participação dos usu-ários no controle dos serviços de saúde. A participação dos usuários constitui numa tarefa complexa (PINHEIRO; DAL POZ, 1998). Para eles, essa complexidade é dada, primeiramente, pela responsa-bilidade do conselho na formulação de estratégias e no controle da execução da política de saúde; se-gundo, pela diversidade de temas, problemas e conflitos relacionados à organização do sistema e dos serviços; terceiro, pela diversidade dos atores e interesses envolvidos na composição dos conselhos.

Outros mecanismos formais de controle social foram incorporados ao SUS na defesa do direito à saúde, tais como, ouvidorias e disque-denúncia, criando novas formas de expressão e de defesa dos interesses dos indivíduos, grupos e comunidade. O voto sufragado na escolha dos governan-tes (executivos e legislativos), plebiscito, projeto de lei de iniciativa popular, Ministério Público, órgãos de defesa do consumidor, mobilização popular, e a mídia em geral são outras formas de controle social (MATTOS, 2005).

Decorridos 17 anos de implantação do SUS, os conselhos de saúde resistem, acumulam cultura de gestão e democracia e são sujeitos políticos na política local. De acordo com Costa e Barros (2000), a realização de seus fins pressupõe a existência de sujeitos políticos e sociais dotados de representati-vidade e de legitimidade, pois a ação individual ainda não é suficiente para a ação política. Na opinião de Barros (1994), o reconhecimento da representação confere legitimidade e poder. A representa-ção só pode exercitar o poder que lhe é facultado. Para Dallari (1994), a legitimidade se manifesta na permeabilidade que o Conselho adota às questões que são colocadas pelos diversos segmentos sociais representados, em especial, os usuários dos serviços de saúde. Apesar da íntima relação com o conceito de participação, as questões de legitimidade e representatividade política dos conselhos e de seus membros, participantes do processo do controle social, têm sido pouco aprofundadas nas análises teóricas e nos estudos empíricos. A representação pressupõe um conjunto de direitos políti-cos (liberdade de expressão, de associação etc.), que permite a formação e manifestação da vontade política dos representados, e constitui um fenômeno complexo, cujo núcleo consiste num processo de escolha de governantes (ou representantes de segmentos sociais) e de controle sobre sua ação por meio de eleições competitivas. Segundo Urbinati (2006), a representação política é um processo

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circular (suscetível ao atrito) entre instituições estatais e as práticas sociais. Argumenta que, a repre-sentação não pertence apenas aos agentes ou instituições governamentais, mas designa uma forma de processo político que é estruturada nos termos da circularidade entre as instituições e a sociedade, e não é confinada à deliberação e decisão na assembleia. Também, de acordo com ela, a definição mais próxima dos princípios democráticos pertence à Hannah Pitkin: “a representação aqui significa agir no interesse dos representados, de uma maneira responsiva a eles” (URBINATI, 2006, p. 202 apud PITKIN, 1967, p. 209). Sua natureza ambivalente – social e política, particular e geral – determina a ligação inevitável com a participação. O funcionamento da representação beneficia-se de uma cultura democrática de participação. Do mesmo modo, a legitimidade desses novos espaços públicos de par-ticipação social está ancorada, de um lado, no próprio processo participativo e sua representatividade política, e, de outro, na crença dos sujeitos de que são legais as normas do Estado (ou do regime) e seus aparelhos, assim como o direito de comando delas derivado.

A maioria dos trabalhos sobre os novos espaços de participação social na saúde tem como objeto os Conselhos de Saúde. Entretanto, um trabalho recente de Escorel e Bloch (2005) enfatiza a análise das conferências de saúde e sustenta que as conferências e os conselhos de saúde materializam e qualifi-cam o princípio e o valor da democracia no projeto da Reforma Sanitária e, portanto, integram um mesmo componente de análise. São fóruns nos quais se identificam alterações no padrão de recep-ção e processamento de demandas na área da saúde. As autoras ressaltam, porém, que os conselhos são fóruns permanentes e com atribuições bem definidas e ampliadas, enquanto as conferências são fóruns pontuais, com atribuições pouco claras e cujos resultados são, sistematicamente, desconsi-derados. As conferências de saúde vêm ocorrendo na maioria dos municípios, embora por indução nacional. Cresce o número de delegados presentes na etapa nacional e é cada vez maior o número de etapas municipais, configurando espaços próprios de debate e formulação de políticas, com direito à participação dos usuários.

As conferências nacionais de saúde fazem parte da história oficial da política de saúde brasileira desde 1937, com a Lei 378, de 13/01/1937, que instituiu a Conferência Nacional de Saúde e Educação. No Brasil foram realizadas 12 conferências até 2003, sendo a 8ª CNS considerada como marco de transformação que estabeleceu a nova dinâmica e alterou a composição dos delegados, incorporando a participação da sociedade civil organizada e uma nova institucionalidade e vida própria às confe-rências (ESCOREL; BLOCH, 2005). Para estas autoras, as conferências são fóruns que conformam espaços de formação de opinião e vontade política e atuam na tematização da agenda pública. Uma forma de organização inovadora que trabalha com conflitos e interesses. Fórum de negociação polí-tica e de democracia direta, de manifestação de interesses divergentes e conflitos, que possibilitam a ampla divulgação de temários para discussão na sociedade em geral e interferem no rumo da política. A conferência é um espaço de trocas de informação, experiência, cooperação e apoio mútuo, um tecido social comunicativo, como mencionado por Luz (2005).

Para além dos conselhos e conferências, muitos espaços são criados e reformulados no cotidiano da vida das comunidades – seja de reflexão, autoajuda, resistência, solidariedade, reivindicação e mo-bilização em torno de necessidades concretas da população. Essas iniciativas formam uma expressão viva da sociedade civil em torno das relações sociais, do cotidiano e da cultura e atuam para além dos espaços institucionais de participação popular, no micro-espaço de poder local, inclusive nos servi-ços de saúde (LACERDA et al., 2006).

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Planejamento e gestão do SUS: O que os conselhos e as conferências têm a ver com isto?

A construção da gestão democrática dá-se no cotidiano da gestão, na relação Estado/sociedade. É re-sultante de troca de saberes e pressupõe a existência de conflitos de interesses, um campo de diversi-dade de opinião e percepção quanto ao modelo de sociedade e do sistema de saúde. Este caminho cria possibilidades para se construir novas metodologias de planejamento e avaliação, diálogos, pactos e articulações entre os diferentes atores e redes sociais de relacionamento que poderão influenciar na implementação do SUS e incorporar as demandas da população e suas necessidades biológicas, sociais e culturais (PINHEIRO; MATTOS, 2006).

Para os autores citados, no processo de gestão democrática valorizam-se também os espaços já esta-belecidos de controle social no SUS, sobretudo os conselhos e conferências, incorporando linhas de prioridade para seu fortalecimento, enquanto espaços públicos de formulação da política, avaliação e acompanhamento. Isso requer o uso de tecnologias de comunicação, informação para a formação da consciência crítica da população, enquanto sujeitos desta construção, e metodologias de educação permanente, para promover o relacionamento entre os indivíduos e os grupos de diferentes ideolo-gias e interesses, capaz de diminuir as desigualdades existentes entre eles, referentes ao domínio do conhecimento e das tecnologias de saúde.

Bordin (2002) enfatiza a complexidade do processo de planejamento e gestão em saúde e sua relação com a participação dos conselhos municipais, o que favorece a identificação de múltiplas necessidades e problemas no interior do sistema, como recursos escassos, mal utilizados e mal distribuídos. Reafirma a necessidade de processos decisórios, com base na informação, na epidemiologia e na avaliação.

Para Merhy, Cecílio e Nogueira Filho (1991), o modelo de gestão democrática deve se basear em metodologia do planejamento e de administração que alie agilidade gerencial com a participação dos interessados. Isto só pode acontecer se houver capacitação dos dirigentes, organização de um proces-so democrático e informação ampla e disponível.

O planejamento constitui campo de investigação da saúde coletiva e uma função da gestão, que inclui a formulação, execução e avaliação da política de saúde (LEVCOVITZ et al., 2003; SCHRAIBER et al., 1999; TEIXEIRA; MOLESINI,2002). O plano de saúde é o principal instrumento de gestão e expressa a responsabilidade municipal com a saúde da população, a síntese de um processo de decisão sobre o que fazer diante de problemas e disponibilidade de recursos (TEIXEIRA, 2001). A coordenação do planejamento e avaliação do sistema de saúde é uma atribuição do gestor público, do dirigente municipal (TEIXEIRA; MOLESINI, 2002), cabendo à conferência analisar a situação de saúde e propor as diretrizes para a formulação da política e, ao conselho, atuar na formulação de estratégias e no controle da execução da política (BRASIL, 2001a). Independente da obrigatoriedade definida na legislação, o planejamento, a avaliação e a prestação de contas são necessidades de qual-quer instituição pública, como as Secretarias de Saúde.

A Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 2006, p.39) definiu que “[...] as ações e serviços públicos de saúde integram uma rede de serviços e constituem um sistema único com participação da comunidade”.

A Lei 8.080/90, no artigo 15º, definiu como competência de cada nível de direção do SUS a ela-boração e atualização periódica do plano de saúde e a articulação política para sua viabilização. Assim, os planos de saúde se tornaram os instrumentos de programação e orçamento de cada nível de direção do SUS (BRASIL, 2001a). O artigo 36 da Lei 8.080/90 regulamentou o processo de planejamento e orçamento do SUS como ascendente, do nível local até o federal, ouvidos seus

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órgãos deliberativos, compatibilizando-se as necessidades da política com a disponibilidade de recursos em planos de saúde (BRASIL, 2001a).

A Lei 8.142/90 regulamentou a participação da comunidade na gestão do SUS, por meio da realiza-ção da Conferência Nacional de Saúde, a cada quatro anos, para avaliar a situação de saúde e propor diretrizes para a formulação da política e instituiu o Conselho de Saúde como órgão colegiado, em caráter permanente e deliberativo, com composição paritária entre representantes dos usuários e dos demais segmentos, para atuar na formulação de estratégias e no controle da execução da política de saúde na instância correspondente (BRASIL, 2001a). A referida lei condicionou a transferência de recursos da União aos municípios ao cumprimento de requisitos como a criação do Fundo de Saúde e do Conselho de Saúde, a existência de plano de saúde e relatório de gestão, e a comissão de elabo-ração do Plano de Carreira, Cargos e Salários (PCCS).

A Norma Operacional NOB 01/96, instrumento de regulação do SUS, acelerou a municipalização da saúde e reforçou a importância do planejamento e da programação pactuada integrada (PPI) nos três níveis de gestão, sobretudo a integração das programações dos sistemas municipais e estaduais, como responsabilidades e requisitos para a habilitação dos municípios em Gestão Plena do Sistema Municipal (BRASIL, 2001a; VIANA, 2000). Posteriormente, a Norma Operacional da Assistência (NOAS 01/02) atualizou os requisitos para a habilitação dos municípios e estabeleceu o processo de regionalização da saúde no âmbito do SUS. Introduziu a agenda municipal e o quadro de metas, como parte do plano municipal de saúde, em consonância com as agendas nacional e estadual, e o acompa-nhamento dos relatórios de gestão, a ser efetuado com base no quadro de metas (BRASIL, 2001a). O sistema de planejamento do SUS deve compor o sistema nacional de planejamento, federativo, que responde às exigências constitucionais e legais, entre as quais a elaboração dos planos plurianuais (PPA), das leis de diretrizes orçamentárias (LDO) e do orçamento (LO), além de outras ações.

A Portaria 548/GM de 12/04/01 veio orientar o processo de elaboração e a aplicação da agenda e do plano de saúde, dos quadros de metas, e do relatório de gestão (BRASIL, 2001b). De acordo com a referida portaria, o plano municipal de saúde ou plano plurianual da saúde resulta do processo de planejamento no âmbito do sistema municipal de saúde, realizado de quatro em quatro anos, con-tendo a análise da situação de saúde da população, as políticas e as diretrizes do sistema, as ações prioritárias e as estratégias de implantação, bem como o orçamento previsto para a execução das ações propostas no âmbito do SUS municipal. Deve estar em consonância com o plano plurianual do governo. O quadro de metas ou plano de trabalho anual é parte integrante dos planos de saúde, base para a elaboração dos relatórios de gestão. O relatório de gestão deve avaliar o cumprimento dos objetivos e das metas explicitadas no quadro de metas, bem como da aplicação dos recursos, e ser disponível aos órgãos de controle social como legislativo, ministério público e a sociedade como um todo (BRASIL, 2001b).

Em 2006 foram firmados os Pactos pela Saúde, pela Vida e de Gestão, que incluíram o processo de planejamento como atividade relevante no aprimoramento do SUS. A Portaria 699/2006, que regu-lamentou os pactos, estabeleceu o sistema de planejamento do SUS – PlanejaSUS – e definiu vários instrumentos para operá-lo, nas três esferas de governo.

O Conselho Nacional de Saúde, por meio da Resolução n. 333/03 definiu que os conselhos de Saúde e o poder executivo deveriam acolher as demandas da população, consubstanciadas nas conferências de saúde, e aprovar proposta de operacionalização das diretrizes definidas nas conferências e as dire-trizes para elaboração dos planos de saúde (BRASIL, 2003).

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Como observado, o arcabouço jurídico institucional do SUS estabeleceu um modelo democrático de gestão e colocou as representações da sociedade no campo das instituições com poder e responsabilida-de na formulação e o acompanhamento da política de saúde. Os conselhos e as conferências passaram a constituir espaços de recepção e processamento das demandas populares e, portanto, potencialmente capazes de influenciar a definição de prioridades na construção da agenda da política da saúde.

Resultados e discussão

Mato Grosso é um estado com grande dimensão territorial, baixa densidade demográfica, com eco-nomia baseada na agropecuária, sobretudo na produção de soja, algodão, arroz, carne, madeira, sendo exportador desses produtos. A atividade econômica concentradora de renda, as grandes distâncias e a precariedade da infraestrutura de comunicação e transporte, somados à insuficiente estrutura urbana das suas cidades, assim como a insuficiência de serviços essenciais na área da educação, saúde e seguran-ça pública, sérios problemas ambientais e de violência, configuram um quadro de extrema desigualdade social e regional. Esse quadro é consequência de um modelo de crescimento econômico implantado a partir da década de 1970, durante o regime militar, o que estimulou a migração, sobretudo dos estados do sul do país, com a política de ocupação de fronteiras, por meio da colonização. Atualmente, mais da metade da população do estado é constituída de migrantes. Possui 141 municípios (IBGE, 1996), dos quais apenas três possuem mais de cem mil habitantes. O estado tem 17 regiões de saúde.

Os 16 municípios da pesquisa estão localizados em 16 diferentes regiões de saúde do estado, oito são sedes de polo regional. A maioria dos municípios pesquisados é de pequeno ou médio porte (Quadro 1). A atividade econômica primária com base na agropecuária é predominante nestes municípios. Em apenas dois predominam os serviços e o comércio.

A taxa de urbanização está abaixo de 60% em quatro municípios; entre 60 e 80% em sete; e acima de 80% em cinco, evidenciando um equilíbrio entre municípios mais e menos urbanizados. A eman-cipação de 11 municípios é recente, entre 20 e 30 anos: um na década de 1990, sete na década de 1980 e três na década de 1970. Dos outros quatro, dois têm mais de 200 anos, um entre 100-200 anos e outro entre 50 e 100 anos.

QUADRO 1 – Municípios pesquisados segundo porte populacional. Mato Grosso, 2006

Fonte: IBGE, estimativa 2006.

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Capacidade institucional de planejamento e gestão das Secretarias Municipais de Saúde

As Secretarias Municipais de Saúde (SMS) também são relativamente recentes, metade é da década de 1990, período pós-SUS; sete da década de 1980; e uma da década de 1970.

Para análise da autonomia do órgão gestor da saúde foi considerada a condição de habilitação do mu-nicípio às normas operacionais do SUS, a gestão do fundo municipal de saúde e de pessoas (Tabela 1). A maioria dos municípios (68,7%) está habilitada na condição de Gestão Plena da Atenção Básica e (31,3%) na Gestão Plena do Sistema, conforme requisitos da NOB/SUS 01/96. A gestão integral do fundo de saúde ocorre em 40% dos municípios, e de pessoas, em 33,3%, caracterizando um quadro de autonomia limitado do órgão da saúde.

Em relação à capacidade institucional de planejamento, todas as Secretarias de Saúde elaboraram os principais instrumentos de planejamento do SUS, plano municipal e relatório de gestão, referentes ao período analisado, sendo que metade delas apresentou o plano plurianual de saúde que, em todos os casos, guarda relação com o plano plurianual do governo (PPA). O plano operativo ou plano de trabalho anual foi elaborado por 75% delas. O plano de saúde dos 16 municípios foi aprovado em seu respectivo conselho de saúde, cumprindo os requisitos legais do SUS. Observou-se que apenas sete conselhos de saúde definem as diretrizes para a elaboração do plano e apenas seis realizam seu monitoramento, conforme determina a Lei 8142/90.

Quando analisada a estrutura dos planos de saúde, apenas dois estavam adequados à portaria do Mi-nistério da Saúde GM n. 548/01, incluindo introdução, diagnóstico situacional, prioridade, estraté-gias, análise estratégica, programação, quadro de metas e conclusão. Os planos de saúde analisados, de maneira geral, descrevem de modo superficial a situação de saúde do município, por meio de alguns indicadores epidemiológicos e de produção de serviços, a capacidade instalada dos serviços e a previsão orçamentária. A diversidade de modelos foi a regra encontrada.

Em relação à definição de metas, ações e programação de atividades, verificou-se em todos os planos analisados a ausência de análise situacional, que orienta a definição das prioridades, assim como dos responsáveis pela execução dos objetivos e das ações programadas. Por serem escritos em linguagem excessivamente técnica, apresentaram relativa dificuldade para a identificação das deliberações das conferências que estariam contempladas entre as ações priorizadas. Nenhum plano fez referência ao relatório final da conferência. Também não se encontrou em nenhum dos planos referências a estra-tégias ou medidas com vistas a integrá-lo ao processo de planejamento municipal e ao processo de participação social das conferências e conselhos de saúde.

Sete Secretarias de Saúde apresentaram estrutura administrativa de planejamento em seus orga-nogramas. Os técnicos do nível central participaram na elaboração do planejamento em 68,75% dos municípios, os profissionais das unidades de saúde em 81,2% e uma comissão ou membros do conselho municipal de saúde em 75%, evidenciando, em alguma medida, processos e metodologias participativas. Quanto à existência no órgão gestor da saúde de estruturas e mecanismos de fortaleci-mento do controle social e da gestão participativa, unicamente uma secretaria contava com ouvidoria e conselhos gestores funcionando. Já a participação do secretário de saúde na Comissão Intergestores Bipartite regional (CIB) é prática corrente em todos eles.

Os relatórios de gestão referentes ao período do estudo apresentaram um modelo padrão que foi orientado pela Secretaria de Estado de Saúde de Mato Grosso (SES), ainda em 2001, com um diag-nóstico da situação geral e de saúde, como no plano municipal de saúde, as metas alcançadas do pacto

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de atenção básica e das vigilâncias em saúde (exigências da habilitação), a produção de serviços e, sobretudo, o demonstrativo contábil da execução financeira e algumas atividades administrativas. Relacionavam as atividades realizadas durante o ano, mas não apresentavam uma análise que permi-tiria a comparação direta entre o previsto no plano e o realizado efetivamente, a correlação entre as metas, os resultados e a aplicação de recursos. Tampouco assinalam os problemas e dificuldades da gestão. As exceções foram os relatórios de dois municípios, que apesar de utilizar o modelo proposto, acrescentaram informações que facilitaram a comparação entre o programado e as ações executadas.

Partindo do pressuposto de que o relatório de gestão deveria ser o instrumento do processo de pla-nejamento destinado a avaliar o cumprimento dos objetivos, das metas e das ações, bem como da aplicação dos recursos, de acordo com a portaria 548/01 (BRASIL, 2001), constatou-se que 14 dos municípios cumpriam o aspecto formal e as exigências das outras esferas de gestão, deixando em segundo plano a avaliação do cumprimento das prioridades da gestão municipal. Nenhum dos relató-rios analisados fez referência direta às deliberações das conferências ou resoluções dos conselhos de saúde. Em síntese, pode-se afirmar que os relatórios de gestão foram de pouca utilidade para avaliar a implementação das ações prioritárias e das deliberações aprovadas nas conferências de saúde.

TABELA 1 – Capacidade institucional de planejamento e autonomia de gestão nas 16 Secretarias Municipais de Saúde. Mato Grosso, 2005

* Apenas 15 Municípios informaram.

Fonte: Relatório da Pesquisa “Incorporação das Demandas Populares às Políticas de Saúde em Municípios de Mato Grosso”. Mato Grosso, 2007.

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O processo decisório das Conferências Municipais de Saúde

As conferências de saúde, etapa municipal da 12ª CNS, foram realizadas em 2003 em 15 municípios analisados, à exceção de um, que a realizou em 2004, seguindo calendário próprio, bianual. Nos demais, as conferências vinham ocorrendo, via de regra, a cada quatro anos, conforme calendário da nacional, mas 12 deles organizaram três ou menos CMS (Gráfico 1). Nota-se que, apesar de a lei orgânica municipal normalizar o prazo da realização das conferências a cada dois anos, em alguns municípios este prazo não foi cumprido. Assim, a influência da conferência nacional tem sido deter-minante para desencadear as conferências municipais.

A maioria dos municípios organizou a conferência em dois dias, totalizando 2.486 participantes e 807 deliberações aprovadas. O processo de organização da conferência pela gestão, com apoio dos conselhos de saúde envolveu recursos de logística, pessoal, articulação e divulgação, conforme o Gráfico 1.

GRÁFICO 1 – Conferências de saúde realizadas em 16 municípios de Mato Grosso, 1990-2004

Fonte: Relatório da Pesquisa “Incorporação das Demandas Populares às Políticas de Saúde em Municípios de Mato Grosso”. Mato Grosso, 2007.

Na Tabela 2, destacam-se algumas características da organização e do processo decisório que ocorre-ram antes, durante e após a realização das conferências. A formalização da conferência por meio de ato legal de convocação e de instituição da comissão organizadora ocorreu em todos os municípios, e a aprovação do regimento da conferência no conselho de saúde em apenas dez. A divulgação foi prática em todos os municípios, de forma mais ampla, por meio de rádio e carro de som em 14, e mais restrita, por meio de cartaz e fôlderes em dois.

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TABELA 2 – Caracterização do Processo Decisório em 16 Conferências Municipais de Saúde. Mato Grosso, 2003-2004

* Apenas 15 Municípios informaram.

Fonte: Relatório da Pesquisa “Incorporação das Demandas Populares às Políticas de Saúde em Municípios de Mato Grosso”. Mato Grosso, 2007.

No entanto, a realização de pré-conferência ou fóruns de segmentos dos usuários e trabalhadores para preparação dos temas e eleição prévia de delegados às conferências só ocorreu em dois muni-cípios, e é fato preocupante. As regras e os processos de preparação da conferência, o critério de escolha, indicação ou eleição de delegados não foram registrados nos relatórios das conferências mu-nicipais em nenhum dos municípios analisados.

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A representatividade dos delegados às conferências, com base no critério de paridade entre o seg-mento de usuários (50%) e os demais segmentos, trabalhadores (25%) e governo e prestadores (25%) – conforme resolução n. 333 do CNS, que determina a organização dos Conselhos de Saúde – ocor-reu em apenas cinco conferências e como apresenta o Gráfico 2, a proporção de delegados eleitos representou apenas 16,56%, predominando a forma de representação de delegados por indicação (47,69%) seguido de delegados natos (29,50%).

GRÁFICO 2 – Modalidade de escolha dos delegados às 16 Conferências Municipais de Saúde. Mato Grosso, 2003-2004

Fonte: Relatório da Pesquisa “Incorporação das Demandas Populares às Políticas de Saúde em Municípios de Mato Grosso”. Mato Grosso, 2007.

A gestão municipal e os conselhos empenharam-se em cumprir as obrigações legais e normativas, como evidencia a Tabela 2. Por outro lado, o processo de escolha de delegados e a representatividade aparecem como o maior problema das conferências analisadas, tanto pelo descumprimento da nor-ma da paridade, como pela predominância de formas de representação de delegados por indicação, comprometendo o processo democrático defendido no modelo institucional de gestão do SUS, e a legitimidade do processo decisório das conferências. Por fim, outro dado que merece ser destacado é a quase inexistência de registro do processo de organização prévia e do próprio transcurso das conferências municipais.

Influência da agenda nacional nas conferências locais

A agenda local das conferências foi fortemente influenciada pela agenda nacional, sendo que 15 mu-nicípios utilizaram o tema central da 12ª CNS: “O SUS que temos e o SUS que queremos” (CON-FERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE, 2004). No entanto, na composição dos relatórios finais, as disposições das deliberações das conferências não seguiram obrigatoriamente os dez eixos temáticos

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da nacional. Em apenas dois municípios (Tabela 2) houve deliberação com base nos eixos, e ainda assim, de modo parcial.

A cooperação técnica para a realização das conferências ocorreu em todos os municípios, sendo a mais frequente proveniente da SES/MT e do Conselho Estadual de Saúde (46,1 %), seguida do Con-selho Nacional de Saúde e dos órgãos de representação de secretários municipais estadual (COSEMS) e nacional (CONASEMS) (15,3%).

Outro aspecto que demonstrou a influência do processo de organização da Conferência Nacional de Saúde foi o destino dado aos relatórios das conferências municipais, todos eles enviados como subsí-dios à etapa estadual. Em contrapartida, quando foram analisados os processos de decisão do órgão gestor da saúde em relação à formalização dos resultados das conferências (Tabela 2), observou-se que o ato legal de aprovação do relatório ocorreu em apenas seis municípios, sendo cinco de respon-sabilidade dos conselhos e um da secretaria. A divulgação local dos relatórios por meio impresso também foi incipiente e ocorreu em seis municípios (37,6 %), indicando circulação e divulgação limitadas das deliberações das conferências, para dentro e para fora da gestão municipal, e, conse-quentemente, baixo grau de institucionalização dos resultados no processo de gestão e formulação da política de saúde. Indicou, ainda, o acesso restrito da população em geral às informações, além da dificuldade de monitoramento de seus encaminhamentos por parte dos órgãos de controle social, incluindo o próprio conselho, o Legislativo e o Ministério Público.

Reafirma-se a importância da agenda nacional na tematização das conferências municipais e da coo-peração das instâncias estaduais e nacionais de gestão e do controle social na indução das mesmas, na orientação dos conteúdos e dos processos de organização, modelos de regimento, atos legais, entre outros. Entretanto, percebe-se um desequilíbrio na relação, como se as CMS fossem apenas mais uma etapa da nacional, valorizando-se pouco a agenda política e os interesses dos atores locais. Essa falta de sintonia fica patente também na definição do calendário: as conferências municipais ocorre-ram em 2003, enquanto os planos plurianuais municipais (PPA) foram elaborados em 2002.

Mapa das demandas

Dentre as demandas deliberadas nas CMS dos 16 municípios, 809 foram transformadas em deli-berações. Nas Conferências as demandas apareceram, majoritariamente, como reivindicações não estruturadas e pontuais, e os relatórios finais das CMS refletiram esse quadro: as deliberações apro-vadas são em sua maioria expressão de necessidades, refletindo problemas percebidos pelos sujeitos e respondendo aos interesses de numerosos atores. Mais que diretrizes, quase todas as deliberações das CMS foram reivindicações.

Demandas deliberadas nas conferências municipais de saúde

A classificação das deliberações das conferências municipais foi realizada com base nos dez eixos te-máticos da 12ª CNS e por subeixo para o eixo 5, demandas relativas à atenção básica e às de média e alta complexidade, e para o eixo 7, demandas relativas às reivindicações trabalhistas e às da educação na saúde.

Em relação às 807 deliberações das conferências analisadas, os resultados indicam, conforme a Tabela 3,

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maior concentração das demandas do eixo 5, relativas à organização da atenção à saúde (40%), seguida das demandas do eixo 7 (17%) referentes à gestão do trabalho na saúde, do eixo 3 (13%), intersetoriali-dade das ações de saúde, e do eixo 4 (11%), as três esferas de poder e a construção do SUS.

As demandas relacionadas ao eixo 6, controle social e gestão participativa e ao eixo 10, comunicação e informação em saúde, somaram 14% do total das deliberações. Os eixos temáticos que apresenta-ram menor número de demandas foram aqueles relativos ao direito à saúde, à ciência e tecnologia e seguridade social, caracterizando um perfil de reivindicações muito mais próximo do cotidiano das pessoas e pouco orientado para a formulação de princípios e diretrizes.

TABELA 3 – Classificação por eixo temático das deliberações das 16 CMS. Mato Grosso, 2003-2004

Fonte: Relatório da Pesquisa “Incorporação das Demandas Populares às Políticas de Saúde em Municípios de Mato Grosso”. Mato Grosso, 2007.

Quando analisados os subeixos da organização da atenção à saúde (Tabela 4), as deliberações de mé-dia e alta complexidade representaram 36% do total e a atenção básica 29%. As outras deliberações deste eixo (34%) incluem ações de assistência farmacêutica, vigilâncias, saúde do trabalhador, rela-ção público-privado, entre outras.

Nos subeixos do trabalho na saúde (Tabela 4) as deliberações relativas às reivindicações trabalhis-tas representaram 50% do total deste eixo e as relativas à educação na saúde 50%. Esta contempla deliberações de capacitação e qualificação do profissional da saúde, entre outras. As reivindicações trabalhistas incluem PCCS, condições de trabalho, estabilidade, previdência social, entre outras.

Estes resultados sinalizam a importância dada pelos representantes dos usuários e trabalhadores da saúde na organização da atenção à saúde no SUS, incluindo atenção básica e média e alta complexi-dade, confirmando a insuficiência destes recursos tecnológicos no SUS, principalmente de média complexidade, e a importância da estratégia da regionalização da saúde para superação das deficiên-cias nas diversas regiões. A política de qualificação e valorização dos profissionais e trabalhadores de saúde também é incentivada nas conferências municipais.

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Destaca-se ainda a existência de algum tipo de deliberação, focada na intersetorialidade na maioria dos municípios, com destaque para os municípios F e G e N, destacando a importância destas políticas na garantia do direito à saúde. Observa-se também a significação do eixo relacionado às três esferas de governo e à construção do SUS (eixo 4), que também teve deliberações na maioria dos municípios, principalmente B, F, G, A, P e N, todos municípios sede de polos regionais, indicando a necessidade de maior presença das esferas estadual e federal na gestão destes municípios e regiões de saúde.

TABELA 4 – Classificação por subeixo temático das ações do Plano de Saúde e do Relatório de Gestão relacionadas às deliberações das 16 CMS. Mato Grosso, 2003-2005

Fonte: Relatório da Pesquisa “Incorporação das Demandas Populares às Políticas de Saúde em Municípios de Mato Grosso”. Mato Grosso, 2007.

Comparação das ações constantes nos planos municipais de saúde com as deliberações das conferências

A classificação das ações constantes dos planos de saúde em relação às deliberações aprovadas nas conferências (Tabela 5) foi realizada por meio de análise comparativa entre elas, o que revelou a existência de 197 ações idênticas ou equivalentes às aprovadas nas conferências. O eixo da atenção à saúde apresentou o maior número de ações, enfatizando sua predominância na agenda de prioridades da gestão municipal (47%). Em segundo lugar destacam-se as ações do eixo do trabalho na saúde (18%), na terceira posição o eixo da comunicação em saúde (13%) e na quarta, o eixo referente à intersetorialidade das ações de saúde, com 11% do total de ações constantes nos planos.

Quando analisados os subeixos da organização da atenção à saúde (Tabela 4), as ações de atenção básica representaram 44% e as de média e alta complexidade 27% do total das ações. Este resultado aponta uma inversão em relação ao resultado das conferências que apresentaram maior número de deliberações de média e alta complexidade, referidas à média complexidade.

Nos subeixos do trabalho na saúde (Tabela 4) as ações relativas à educação na saúde representaram 32% e as reivindicações trabalhistas apenas 4% do total do eixo, resultados que assinalam a impor-tância dada pela gestão municipal às ações de capacitação dos trabalhadores e profissionais de saúde. A pouca inclusão de ações referentes às reivindicações trabalhistas nos planos de saúde pode estar relacionada à autonomia restrita das secretarias municipais de saúde neste setor da gestão.

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TABELA 5 – Classificação das ações dos planos de saúde, presentes nas deliberações das 16 CMS. Mato Grosso, 2004-2005

Fonte: Relatório da Pesquisa “Incorporação das Demandas Populares às Políticas de Saúde em Municípios de Mato Grosso”. Mato Grosso, 2007.

Comparação das ações constantes nos relatórios de gestão com as deliberações das conferências municipais de saúde

A classificação das ações constantes nos relatórios de gestão relativas às deliberações das conferências (Tabela 6) foi realizada com o auxílio da análise comparativa entre elas e revelou a existência de 52 ações idênticas ou equivalentes às deliberações das conferências. A disposição das ações implemen-tadas constantes nos relatórios de gestão indica a tendência apresentada em relação às deliberações e as ações dos planos, ou seja, predominância das ações de organização da atenção à saúde (63%), e do trabalho na saúde (13%).

TABELA 6 – Classificação das ações realizadas, constantes nos relatórios de gestão e relacionadas às deliberações das 16 CMS. Mato Grosso, 2004-2005

Fonte: Relatório da Pesquisa “Incorporação das Demandas Populares às Políticas de Saúde em Municípios de Mato Grosso”. Mato Grosso, 2007.

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Finalmente, na Tabela 7, verifica-se a comparação do percentual das ações contidas nos planos com equivalência às deliberações das conferências (24,4%) e ao relatório de gestão (6,45%).

A opção metodológica de utilizar o relatório de gestão como referencial para esta análise deparou-se com os limites e insuficiências dos mesmos, já referidos, de modo que os resultados encontrados devem ser tomados com o devido cuidado e considerados como indicações ou tendências.

TABELA 7 – Percentual das ações do Plano de Saúde e do Relatório de Gestão, relacionados às deliberações das 16 CMS. Mato Grosso, 2003-2005

Fonte: Relatório da Pesquisa “Incorporação das Demandas Populares às Políticas de Saúde em Municípios de Mato Grosso”. Mato Grosso, 2007.

Conclusão e recomendação

Os resultados confirmaram a importância das conferências na luta pela democratização do SUS, como espaço de participação social e representação política dos diversos segmentos nelas repre-sentados, mobilizando centenas de pessoas, mesmo em pequenos municípios do interior, como se observou nos municípios estudados. Apesar disso, há pouca literatura e raros trabalhos empíricos sobre o tema, constituindo um campo a ser investigado que envolve diferentes conhecimentos e sa-beres, práticas sociais de participação e de gestão, a relação governo e sociedade e as possibilidades da governança democrática.

Nas conferências municipais de saúde as demandas apareceram, majoritariamente, como reivindica-ções não estruturadas, não sistematizadas, muitas vezes pontuais e localizadas, reflexos dos proble-mas percebidos pelos sujeitos e respostas aos interesses dos numerosos atores. A análise dos relatórios finais das 16 CMS demonstrou que a maior parte das deliberações das conferências foram reivindica-ções e não diretrizes. Os relatórios finais são pré-agendas, que incorporaram um temário composto de reivindicações muito mais próximas do cotidiano das pessoas e pouco orientado para a formulação de princípios e diretrizes da política de saúde municipal, entretanto, sem desconsiderá-los. A análise de conteúdo das deliberações mostrou uma frequência muito maior daquelas que tratam da atenção à saúde e, em menor proporção, daquelas referentes à gestão do trabalho e às políticas intersetoriais, temas relevantes de interesse local.

O processo decisório nas conferências estudadas mostrou-se adequado às normas legais, mas também evidenciou limitações em relação aos aspectos da representatividade e da escolha democrática dos delegados enquanto representantes de segmentos e grupos sociais.

Observou-se um baixo grau de institucionalização dos resultados das conferências: a formalização, a publicidade e a divulgação dos relatórios não são práticas rotineiras nos municípios estudados, o que

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contribui para as dificuldades de recepção das deliberações por parte da gestão municipal, fragiliza o controle social e impede o acesso da população às informações de seu interesse. Por outro lado, os relatórios das conferências de todos os municípios foram encaminhados ao Conselho Estadual de Saúde como subsídio à etapa estadual.

Os municípios, em sua maioria, seguiram o calendário da conferência nacional e foram muito influen-ciados pelas instâncias estadual e nacional do controle social quanto ao tema, às normas, aos processos de organização e modelos de regimento, e relegaram a agenda política e os interesses dos atores locais, como, por exemplo, na definição do calendário: as conferências municipais ocorreram em 2003 en-quanto os planos plurianuais municipais (PPA) entraram em vigência em 2002. Apenas um, dentre os municípios pesquisados, tinha calendário próprio e realizava suas conferências com autonomia.

A totalidade dos municípios analisados possuía planos de saúde e relatórios de gestão. Os planos de saúde eram utilizados como instrumentos de análise da situação da saúde e de definição de prioridades de governo, portanto, uma agenda governamental. Dos relatórios de gestão analisados, em apenas dois municípios observou-se uma relação do seu conteúdo com as prioridades elencadas nos respectivos planos de saúde. Os relatórios de gestão foram de pouca utilidade para determinar o cumprimento das prioridades da gestão municipal da saúde e, por extensão, para o objeto da pesquisa.

Nas secretarias municipais de saúde existe capacidade institucional de gestão e planejamento, mas elas ainda estão muito limitadas ao cumprimento das exigências formais do SUS. A autonomia de gestão na maioria das secretarias de saúde é restrita no que se refere à gestão financeira e de pessoas, o que, seguramente, afeta seu desempenho. No planejamento das secretarias, não há compatibiliza-ção entre o processamento das deliberações das conferências e os momentos de elaboração dos planos de saúde, tempos e linguagens diferentes, o que pode contribuir também para a pequena proporção em que as deliberações são incorporadas ou incluídas como prioridades de governo.

A baixa frequência de incorporação das deliberações das conferências municipais de saúde às agen-das de prioridades dos governos municipais estudados está relacionada a um conjunto complexo de determinações, como a ação dos conselhos e do legislativo, que precisam ser desvendadas para que, com base nesse conhecimento, as práticas sociais de participação possam ser melhores articuladas às práticas da gestão.

Os resultados do estudo de caso de cada município foram apresentados durante a realização das res-pectivas conferências municipais de saúde, no período de julho a agosto de 2007, com sugestões e recomendações, entre as quais:

1. Realizar pré-conferência ou fóruns por segmentos, para escolha dos seus representantes (delegados);

2. Estimular o conselho de saúde a deliberar sobre as políticas de saúde com base no relatório da conferência para elaboração dos planos municipais, em cumprimento do art. 37 da Lei 8.080/90;

3. Sugerir ao gestor municipal da saúde a apresentação, no início da conferência de saúde, a análise da situação de saúde do município e o relatório contendo o grau de cumprimento das deliberações da conferência anterior;

4. Integrar mecanismos de gestão participativa ao processo de planejamento, fortalecendo a partici-pação dos técnicos, trabalhadores de saúde e usuários, propondo a criação de comissão municipal, eleita na conferência, com as atribuições: levar o debate com os resultados da conferência ao con-selho, ao legislativo e ao executivo; fazer o monitoramento dos seus encaminhamentos; participar com outros órgãos de governo no debate das ações intersetoriais;

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5. Sugerir ao prefeito municipal encaminhar ao legislativo o relatório final da conferência para ser apresentado à sociedade e debatido em audiência pública;

6. Dar publicidade ao relatório da conferência, publicando em órgãos de comunicação oficial e outros meios de divulgação local;

7. Fazer a conferência coincidir com os momentos de elaboração do Plano de Saúde e o Plurianual (PPA), garantindo a incorporação das deliberações às políticas de Saúde. Exemplo: 2009 quando vai ser elaborado o PPA – primeiro ano da nova gestão;

8. Sugerir a criação de calendário bianual para as conferências municipais de saúde para que, a cada quatro anos, os temários priorizados sejam, de modo alternativo, nacional e local.

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CONSTRUINDO A POSSIBILIDADE DA PARTICIPAÇÃO DOS USUÁRIOS: CONSELHOS E CONFERÊNCIAS NO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE1

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Este artigo se propõe, inicialmente, a discutir algumas afirmações presentes na literatura interna-cional sobre a questão da participação no contexto do processo de reforma setorial em países em de-senvolvimento, marcadamente no setor saúde. De acordo com os autores (Grindle e Thomas, 1991; Ugalde, 1985), seria muito difícil criar canais participatórios nos chamados países em desenvolvi-mento, em geral e na América Latina em particular, devido às características de suas instituições po-líticas. Supõe-se que estas seriam dominadas por pactos e acertos informais elitistas e apresentariam sociedades civis fracas (Grindle e Thomas, 1991). Na área da saúde as iniciativas para promover a participação teriam resultado em manipulação dos participantes e na destruição de formas popula-res de organização (Ugalde, 1985). A experiência brasileira, com os conselhos e as conferências de saúde, não confirma integralmente tais afirmações. Estudos revelam que, em alguns casos e em de-terminadas conjunturas, esses fóruns têm participado do processo decisório no setor e têm contado com a participação de representantes dos usuários de serviços de saúde (Carvalheiro e outros, 1992; Cortes, 1995, Cortes, 2000). Daí advém o questionamento sobre as origens e o papel institucional e político desses fóruns no contexto da reforma do sistema de saúde brasileiro, bem como sobre as condições que viabilizariam o eixo de tais experiências participatórias. A segunda e terceira partes do artigo procuram responder a essas indagações.

Para que a discussão aqui promovida seja inteligível, é necessário fazer dois esclarecimentos iniciais. Em primeiro lugar, a literatura sobre o tema tem tratado como participantes em potencial a comuni-dade, o consumidor, as classes populares (participação popular), o cidadão e o usuário. A utilização de um ou outro conceito de participante depende principalmente da orientação política e ideológica de quem o empregar. Neste artigo é mais frequente o uso do conceito participação dos usuários. Ele se refere àqueles que utilizam determinados serviços em uma dada área territorial. Embora tenha al-

1 Publicado originalmente em: CORTES, Soraya Maria Vargas. Construindo a possibilidade da participação dos usuários: conselhos e conferências no sistema único de saúde. Sociologias, Porto Alegre, n. 7, p. 18-49, jan.-jun. 2002.2 Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa em Saúde Coletiva (NIPESC).

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guma similaridade com o conceito de participação do consumidor, ele não se restringe à perspectiva mercantil e incorpora a noção de direito social que o conceito de cidadania normalmente pressupõe. Além disso, desde a segunda metade da década passada, o termo participação do usuário tem sido o mais empregado por estudiosos do tema e pelos documentos oficiais brasileiros. Em segundo lugar, a literatura trabalha com diferentes modalidades ou gradações do que seria participação (Arnstein, 1969; Cortes, 1996(a); Ham, 1980; Lee e Mills, 1985; Paul, 1987). As formas de envolvimento dos participantes podem ser qualificadas como manipulação, consulta, negociação ou até mesmo parti-cipação. Neste artigo, considera-se que há participação quando o envolvido tomar parte no processo de decisão política (Lee e Mills, 1985; Paul, 1987).

Consolidação de canais participatórios no Brasil, na área de saúde: improvável, mas possível

Durante as duas últimas décadas, nos países desenvolvidos, a institucionalização de mecanismos par-ticipatórios tem sido vista como um complemento ou como uma alternativa às formas tradicionais de representação política nas democracias liberais. No mesmo período, as agências internacionais têm preconizado que nos países em desenvolvimento sejam promovidas a auto-sustentação econômica e a participação comunitária, vistas como meios para atingir o desenvolvimento. Os cuidados primários de saúde seriam uma das principais estratégias para melhorar as condições de saúde nesses países. Uma de suas diretrizes centrais consiste no estímulo à participação comunitária. Tem sido questio-nada, no entanto, a possibilidade de serem criados mecanismos que permitam a participação dos setores populares no processo de decisão política em países em desenvolvimento e, particularmente, em países latino-americanos.

Desde os anos trinta, dirigentes políticos e acadêmicos consideravam que o Estado deveria ser o con-dutor do crescimento econômico e o promotor do bem estar social (Grindle e Thomas, 1991, p. 2). Os governos centrais seriam os impulsionadores do progresso, particularmente, nos países em desen-volvimento. Neles, a grande distância entre os objetivos propostos e a realidade, marcada por enormes problemas sociais e econômicos, parecia justificar a defesa do planejamento e execução centralizada. Nos anos oitenta, o agravamento da crise econômica internacional e a ascensão ao poder de políticos conservadores em países centrais da economia internacional determinaram uma mudança de enfoque. Os dirigentes políticos desses países passaram a defender ideias inspiradas no pensamento da nova direi-ta, influenciando as agências internacionais a proporem o “ajustamento estrutural” das economias dos países em desenvolvimento, através de políticas que reduzissem drasticamente o tamanho do aparelho estatal. As agências internacionais passaram a recomendar reformas baseadas em teorias econômicas neoclássicas, desafiando a ideia do Estado indutor do crescimento econômico e do bem estar social. Ad-vogava-se uma maior distribuição de poder, na qual a privatização e a devolução de funções e recursos nos níveis subnacionais de governo tornaram-se noções chaves (Grindle e Thomas, 1991, p. 2). A nova concepção de desenvolvimento, combinada com a ideia de cuidados primários de saúde, teve influência profunda na reforma do sistema brasileiro de saúde iniciada nos anos oitenta.

A estratégia de cuidados primários de saúde criticava a concentração de investimentos em poucas uni-dades complexas de saúde, principalmente hospitais, em geral localizados em alguns centros urbanos de larga densidade populacional (Walt, 1994, p. 5, 24). Os recursos deveriam ser usados racionalmente, enfatizando a aplicação de tecnologias simplificadas através de uma rede de serviços hierarquizada que cobriria toda a população, embora tivesse como alvo prioritário os setores sociais mais pobres. Nos

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países em desenvolvimento, a implantação de políticas inspiradas nessa estratégia frequentemente resultaram na extensão da cobertura dos serviços de saúde a regiões rurais e a áreas urbanas que concentravam populações de baixa renda (Paim, 1989, p. 19; Walt. 1994, p. 5). A administração da rede de serviços deveria ser descentralizada e contaria com a participação da comunidade.

A noção de participação, tal como fora inicialmente concebida pelos defensores dos cuidados primá-rios de saúde, era muito vaga, e seu significado variava conforme as peculiaridades da organização so-cial e política de cada país, ou do posicionamento político-ideológico do ator político que abraçava a ideia. Segundo Grindle e Thomas (1991, p. 43-69), nos países em desenvolvimento, os tipos de rela-ções, que normalmente se estabelecem entre instituições políticas e sociedades civil, dificultariam a constituição de mecanismos participatórios. Uma das características desses países seria a fraqueza ou ausência de sociedade civil organizada capaz de contrabalançar o poder político das elites econômicas e militares em aliança com a burocracia estatal. Particularmente na América Latina, o processo de tomada de decisões políticas teria sido tradicionalmente conduzido através de canais informais, nos quais os interesses empresariais e militares estariam diretamente representados dentro da estrutura burocrática do Estado (Cardoso, 1975, p. 165-86). Nos países latino-americanos os interesses não dominantes – tais como os dos sindicatos, dos trabalhadores rurais, dos moradores urbanos pobres – seriam sistematicamente excluídos dos canais decisórios. Suas demandas seriam filtradas por relações estabelecidas por funcionários públicos com líderes obsequiosos e clientes individuais.

Embora essa caracterização seja apropriada para a maior parte da história republicana brasileira, ela é apenas parcialmente adequada para retratar a vida política brasileira, durante os anos oitenta. As prescrições das agências internacionais, defendendo a redução do papel do governo federal – como provedor de bens e de serviços – e propondo a participação comunitária, dirigiam-se a um país cuja economia praticamente parara de crescer. Os anos oitenta foram conhecidos como a “década” perdida”, principalmente porque se caracterizaram pela combinação de altas taxas de inflação com crescimento econômico negativo ou muito baixo. O declínio da atividade econômica virtualmente neutralizara o governo central como agente indutor do desenvolvimento econômico. No entanto, concomitantemente, a sociedade civil demonstrava uma capacidade de organização sem precedentes, ao mesmo tempo em que se liberalizava a vida política.

No final dos anos setenta, intensificavam-se a mobilização e a organização da sociedade civil brasi-leira. O “novo movimento sindical” demandava ativamente aumentos salariais e liberdade de organi-zação enquanto se opunha abertamente à ditadura militar (Almeida, 1984, p. 191-214; Keck, 1989, p. 252-96). Pela primeira vez, desde o começo dos anos sessenta, sindicatos de trabalhadores rurais e o movimento dos sem terra exigiam reforma agrária e a extensão de benefícios previdenciários a trabalhadores rurais (Grzybowski, 1987; Hall, 1990, p. 187-232). Nas áreas urbanas, associações de moradores promoviam campanhas demandando melhores serviços ou mesmo, por vezes, ocupando conjuntos residenciais vazios e prédios públicos (Baierle, 1992; Martes, 1990). Novas organizações sociais eram criadas, tais como associações ecológicas e grupos feministas. Esses movimentos e orga-nizações tinham como ponto comum a oposição ao governo militar.

O clímax da liberalização política, durante os anos oitenta, deu-se com o fim da ditadura militar e a promulgação da Constituição em 1988. A Constituição instituiu “um regime competitivo liberal de oligarquias”, no qual todos os brasileiros eram formalmente considerados cidadãos (Weffort, 1988, p. 16). Ela criou mecanismos de envolvimento das classes populares na administração pública – como o referendum, o plebiscito, a iniciativa popular – e estabeleceu que deveria haver participação popu-lar, particularmente na área da saúde (Moisés, 1990, p. 33; Brasil, 1988, art. 194/VII).

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A organização da sociedade civil e a liberalização política ocorrida não têm sido incorporadas a muitas análises dos processos recentes de reforma social e de mudança nas instituições políticas latino-americanas. Grindle e Thomas (1991, p. 63) afirmaram que na maior parte dos países em desenvolvimento grandes parcelas da população – camponeses e moradores urbanos favelados – não são organizadas de modo a sustentar atividades políticas regulares. Os interesses sociais seriam fre-quentemente representados através de processos informais, ao invés de formas públicas de pressão. Esse era o caso do Brasil, particularmente durante as décadas de sessenta e setenta, quando se com-binavam a ausência de democracia política e a exclusão de milhões de pessoas do acesso a bens e serviços básicos, disponíveis para outros através da rápida industrialização e modernização. Para os anos oitenta e início dos anos noventa, entretanto, essa caracterização torna-se imprecisa, na medida em que retrata apenas parcialmente a dinâmica social e política do país. Em várias cidades, espe-cialmente na área da saúde, setores dos movimentos sociais urbano, rural e sindical mobilizavam-se e, inicialmente, apresentavam suas reivindicações diretamente a gestores e políticos. A partir da segunda metade da década de oitenta, esses movimentos passaram a canalizar suas demandas para as comissões interinstitucionais municipais de saúde, e depois, para os conselhos e as conferências de saúde. Através desses canais participatórios, eram apresentadas formal e publicamente as demandas daqueles setores sociais recorrentemente excluídos dos processos decisórios. Para que isso ocorresse, de forma sistemática e continuada, seriam necessárias algumas precondições.

Em primeiro lugar, o estabelecimento desses canais de efetiva participação, requereria a existência de organizações da sociedade civil, que pudessem sustentar e legitimar aqueles que representassem os inte-resses dos setores sociais que elas aglutinavam (Marmor, 1983, p. 92). Em segundo lugar, seria necessário contar com uma policy community interessada na construção de canais participatórios. Policy community é entendida como uma comunidade orgânica de atores políticos organizados em torno de um projeto co-mum de política social (Jordan e Richardson, 1982, p. 83). Um importante ator dessa comunidade é a elite política setorial, composta por profissionais e acadêmicos que colaboram decisivamente para a elabo-ração de projetos reformistas (Grindle e Thomas, 1991, p. 20). No caso da reforma do sistema brasileiro de saúde, havia os ativistas dos movimentos sociais, ansiosos por influenciar a formulação e implementação das políticas do setor. Havia, também, uma elite de reformadores tentando criar alianças e coalizões para influenciar o processo de tomada de decisões dentro do governo (Melo, 1993, p. 130-136).

Grindle e Thomas (1991, p. 32-4) relacionaram a fraqueza dos mecanismos de representação de interesses coletivos, nos países em desenvolvimento, ao forte papel que assumiriam as elites polí-ticas setoriais na formulação e na implementação de reformas, independente de articulações com organizações da sociedade civil. No entanto, a elite de reformadores do sistema brasileiro de saúde constituiu-se apenas em um dos componentes da policy community que defendia a reforma. Por um lado, a elite de reformadores atraiu lideranças populares e sindicais para que esses se envolvessem nos fóruns públicos de representação política que eram criados. Por outro, tomaram parte ativa no desenho de políticas e de estratégias que impulsionassem o processo reformista. Ao invés de tomar decisões através de um processo informal de consulta a uma sociedade civil debilmente organizada, eles promoveram a normalização de mecanismos de representação de interesses coletivos no setor saúde, tendo como pressuposto a existência de movimentos popular e sindical, suficientemente orga-nizados para garantir a continuidade e a consistência desse processo de representação.

Embora, durante os anos oitenta, tenha havido intensa mobilização da sociedade civil no Brasil, a estrutura organizativa daí resultante varia de acordo com a região do país, com o estado e com as ca-

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racterísticas demográficas, econômicas e políticas das cidades. A força de instituições políticas e dos movimentos popular e sindical em cidades grandes, por exemplo, tende a tornar viável a participação de grupos de pressão, determinando o tipo de envolvimento que os usuários teriam nos conselhos e nas conferências de saúde (Carvalhos e outros, 1992; Cortes, 1995; IBAM e outros, 1991; IBAM e outros, 1993; L’Abbate, 1990; Martes, 1990). Clientelismo e paternalismo ainda são características marcantes nas relações entre governo e grupos de interesse no Brasil, especialmente nas pequenas cidades e nas áreas rurais menos industrializadas do país. Embora a existência desses fóruns possa co-laborar para a consolidação de formas mais democráticas de representação de interesses, eles têm seu funcionamento limitado e condicionado pela realidade concreta das instituições e da cultura política dos municípios brasileiros. Mesmo levando em conta tais restrições, nos níveis federal, estadual e em municípios onde os movimentos popular e sindical são mais organizados, tem havido envolvimento constante de representantes dos usuários nos espaços públicos dos conselhos e das conferências de saúde (Carvalheiro e outros, 1992; Cortes, 2000; Vargas e outros, 1985).

Não só as afirmações de Grindle e Thomas sobre a fraqueza da sociedade civil e a informalidade do processo de representação de interesses na América Latina são incompletas, as de Ugalde também o são. Ele (1985, p. 43) afirmou que, na América latina, as experiências de participação inspiradas pe-los princípios dos cuidados de saúde teriam contribuído pra aumentar a exploração do pobre através da utilização de seu trabalho gratuito. Elas teriam contribuído para a sua descaracterização cultural, ao mesmo tempo em que acentuavam a violência política pela exclusão ou supressão de líderes e pela destruição de organizações de base. Os conselhos e as conferências de saúde não são “experiências de participação”. Eles são fóruns institucionalizados, similares aos encontrados na Inglaterra, Itália, Estados Unidos ou Canadá (Cortes, 1996 (b)). No entanto, uma fonte de inspiração para a sua cria-ção foi a proposta de participação comunitária preconizada pelos cuidados primários de saúde. As afirmações de Ugalde podem ser consideradas como parcialmente adequadas para caracterizar expe-riências participatórias que tiveram lugar, durante as duas últimas décadas, em projetos de extensão de cobertura de cuidados de saúde, no interior e em áreas urbanas pobres do Brasil. Não se aplicam, porém, aos conselhos e às conferências de saúde.

São inadequadas, portanto, as afirmações de Grindle e Thomas e de Ugalde, que subestimam a pos-sibilidade de participação de setores populares em processos reformistas ou em ações inspiradas pela estratégia de atenção primária à saúde na América Latina e, por conseguinte, no Brasil. As circuns-tâncias que cercam e as características que confirmaram o processo de criação dos conselhos e das conferências de saúde e sua consolidação legal e política demonstram essa inadequação.

Antecedentes históricos da criação de fóruns participatórios na área de saúde

No Brasil, até a década de setenta, existiram mecanismos participatórios institucionalizados unicamen-te na área previdenciária. A previdência social oferecia benefícios e serviços aos trabalhadores inseridos no mercado formal de trabalho, que pagavam contribuições. Entre esses serviços estava a assistência ambulatorial e hospitalar individual. Durante o regime militar, que se estendeu de 1964 a 1985, houve a supressão de qualquer tipo de participação de representantes de trabalhadores contribuintes em órgãos decisórios ou consultivos da previdência social. Entretanto, a partir de 1974 foram tomadas iniciativas no sentido de estimular o envolvimento da “comunidade” no setor saúde. As primeiras medidas nesse sentido, no entanto, foram implementadas na área de saúde pública, cujos serviços destinavam-se àquela parcela da população excluída do acesso a serviços de saúde previdenciários.

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Desde o início da previdência social brasileira, através da criação, em 1923, das Caixas de Aposenta-dorias e Pensões, havia eleição de representantes dos trabalhadores contribuintes em órgãos decisó-rios dessas instituições (Oliveira e Teixeira, 1986, p. 22). As caixas eram organizadas por empresas, como sociedades civis, nas quais a única participação estatal dava-se por meio da normatização de seu funcionamento feita através de lei federal, aprovada pelo Congresso Nacional. Elas atendiam marítimos e ferroviários e suas famílias, oferecendo aposentadorias, pensões, pecúlios e assistência ambulatorial e hospitalar em caso de cirurgia (Oliveira e Teixeira, 1986, p. 22). A participação de representantes de trabalhadores ocorria em seu principal órgão diretivo, o qual era composto por três membros designados pela empresa e dois do corpo de empregados, eleitos diretamente (Oliveira e Teixeira, 1986, p. 32-3).

Os Institutos de Aposentadorias e Pensões, criados a partir de 1933, também tinham mecanismos participatórios; careciam, no entanto, de autonomia em relação ao Estado. Os institutos previden-ciários eram autarquias vinculadas ao Ministério do Trabalho, que abrangiam categorias nacionais de trabalhadores urbanos, tais como marítimos, estivadores, industriários, bancários, comerciários, servidores públicos federais (Malloy, 1977, p. 46-7). Outras categorias de trabalhadores urbanos – domésticos, autônomos, servidores públicos municipais – e os da área rural não foram atingidos pelo sistema. O governo federal interferia na escolha dos representantes dos trabalhadores que tomavam parte em órgãos diretivos dos institutos (Oliveira e Teixeira, 1986, p. 118-131). Depois de 1945, a democratização política e o crescimento econômico industrial favoreceram o fortalecimento do movimento sindical, aumentando sua influência na escolha dos dirigentes dos institutos e, princi-palmente, na indicação dos representantes dos empregados que deveriam tomar parte nas instâncias colegiadas dos institutos previdenciários.

O regime autoritário militar, a partir de 1964, promoveu a centralização das instituições políticas e estimulou o crescimento da provisão privada de bens e serviços. A reforma fiscal, os Atos Institucio-nais, a Constituição outorgada, de 1967, e as emendas constitucionais, de 1969, concentravam poder político, competências e recursos financeiros nas mãos da União. Ao lado da centralização de poder, constituía-se um padrão autoritário de administração pública, que defendia o planejamento e a gestão baseados em decisões técnicas e a supressão de canais abertos à manifestação pública de interesses seccionais. Nesse contexto, foram fechados os mecanismos de participação dos trabalhadores em órgãos decisórios e consultivos da previdência social.

A partir de 1974, no entanto, o governo passa a demonstrar maior preocupação com a promoção de políticas que levassem a expansão da provisão de ações e serviços de saúde. Ao mesmo tempo em que diminuía o ritmo do crescimento econômico, que caracterizara o chamado “milagre econômico bra-sileiro”, o regime militar sofria o enfraquecimento de suas bases sociais de apoio. O novo presidente militar, empossado naquele ano, propunha a gradual liberalização política e um novo discurso social, consubstanciado no II Plano Nacional de Desenvolvimento (Paim, 1989, p. 19). O plano propugnava a implementação de novas estratégias de planejamento social e a racionalização do sistema de saúde. De acordo com novas diretrizes, foram criados os planos de extensão de cobertura, planejados e executa-dos verticalmente pelo governo federal e impostos aos estados e municípios. As ações mais inovadoras foram aquelas que visaram estender a cobertura a parcelas da população até então excluídas de qualquer tipo de acesso a serviços de saúde. A proposta mais ambiciosa foi a tentativa, em 1979, de implementar um Programa Nacional de Serviços Básicos de Saúde (PREVSAUDE). Embora a iniciativa não tenha tido sucesso, pela primeira vez discutia-se, nacionalmente, uma proposta que incorporava, entre seus elementos centrais, a noção de participação comunitária no setor (Paim, 1989, p. 20).

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Outro conjunto de iniciativas que visavam modificar os serviços de saúde pública tinha como prota-gonistas algumas secretarias municipais de saúde. No final da década de setenta, em municípios de pequeno e médio porte, em geral governados por opositores do regime militar, secretarias munici-pais de saúde implementaram políticas inspiradas pelos princípios dos cuidados primários de saúde. Além de oferecerem cuidados básicos para populações pobres, tinham como objetivo envolver usuá-rios em decisões tomadas nos serviços de saúde municipais. O grau desse envolvimento variou caso a caso, mas difundia-se, nessas localidades, a ideia de participação na área de saúde. Saliente-se que muitos profissionais de saúde participaram intensamente dessas experiências.

Até o início dos anos oitenta, o sistema brasileiro de saúde era dividido entre os subsetores de saúde previdenciária e de saúde pública, ambos atuando paralelamente, carecendo de integração no pla-nejamento e nas ações. O subsetor previdenciário detinha a maior parte dos recursos financeiros. Ele oferecia serviços de saúde ambulatoriais e hospitalares, acessíveis aos trabalhadores contribuin-tes, através de unidades próprias e, crescentemente, através de prestadores contratados. A crise econômica e os custos crescentes com a provisão de assistência à saúde fortaleciam as propostas de políticos, de administradores e de líderes dos movimentos popular e sindical, visando reorganizar o sistema para torná-lo universal, descentralizado e melhor integrado. A reorganização implicaria na transferência de poder político e de recursos financeiros do subsetor previdenciário para o de saúde pública e da esfera federal para as administrações estaduais e municipais. A democratização política, o fortalecimento dos níveis sub-nacionais de governo (Souza, 1994, p. 588-589) e as recomendações das agências internacionais, motivaram a implementação de políticas e a constituição de regramento legal que veio a universalizar o acesso, a integrar e a descentralizar o sistema público de saúde brasi-leiro. Para os que defendiam a redução do tamanho do estado e da proporção de gastos com proteção social pública, o objetivo principal era o corte de custos. Em contraste, aqueles que defendiam a democratização do acesso a serviços e a ampliação do controle estatal sobre os serviços financiados com recursos públicos, ressaltavam a importância de estimular a participação dos usuários.

Ao longo da década de setenta e na primeira metade dos anos oitenta, buscando liberalizar o re-gime, uma vez que a crise econômica havia reduzido sua legitimidade política, o governo militar tomou medidas procurando constituir novos canais de representação de interesses. Visava-se legi-timar o regime autoritário e ampliar as bases sociais de apoio através da implementação de políti-cas para aliviar pobreza e de expansão de cobertura previdenciária. Simultaneamente as relações corporativistas entre os interesses empresariais e a tecnocracia do setor público (Cardoso, 1975, p. 181-6) eram criticadas até mesmo pela burguesia, insatisfeita com o declínio nas atividades econômicas. Foram restabelecidas ou criadas formas democráticas de representação e expressão política, tais como eleições para cargos do poder executivo, liberdade de imprensa, de associação e de organização partidária. Projetos e programas governamentais previam a criação de comissões ou conselhos que deveriam ter entre seus componentes representantes da sociedade civil. Uma característica marcante da reforma do sistema de saúde brasileiro, durante os anos oitenta, foi a criação desse tipo de mecanismo participatório.

Criação de Fóruns Participatórios no contexto da reforma do sistema brasileiro de saúde

Na década de oitenta, dois programas do governo federal e um conjunto de provisões legais podem ser considerados como os fundamentos institucionais da reforma do sistema brasileiro de saúde. Eles foram os Programas das Ações Integradas de Saúde, de 1984, e as Leis Federais 8.080 e 8.142, de 1990.

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Os Programas das Ações Integradas de Saúde, criado em 1984, fazia parte da estratégia do regime militar para reduzir os custos do sistema previdenciário, que haviam crescido durante os anos seten-ta. Ele estabelecia que a previdência social transferiria recursos financeiros para governos estaduais e municipais que optassem por tomar parte no programa. O principal objetivo era melhorar a rede de serviços espalhada nos três níveis de governo, retendo a demanda por cuidados ambulatoriais e hos-pitalares financiados pela previdência social. Para facilitar a integração das ações dos provedores pú-blicos de serviços, foram criadas comissões interinstitucionais nos níveis federal, estadual, regional, municipal e local da administração pública. Essas comissões foram denominadas, respectivamente, Comissão Interinstitucional de Saúde (CIS), Comissão Regional Interinstitucional de Saúde (CRIS), Comissão Interinstitucional Municipal de Saúde (CIMS) e Comissão Local Interinstitucional de Saú-de (CLIS). As três primeiras comissões eram compostas por representantes dos prestadores de servi-ços e do governo, ao contrário das duas últimas que previam o envolvimento de entidades comunitárias, sindicais, gremiais, representativas da população local (Brasil. Ministério da Previdência e Assistência So-cial e outros, 1984, p. 8). À exceção das comissões regionais, as demais foram se institucionalizando como importantes fóruns de debate no setor. Além de auxiliarem a integração interinstitucional, os novos fóruns foram gradativamente se transformando em canais de representação política dentro da organização estatal.

As comissões municipais deveriam decidir sobre a alocação de recursos financeiros previdenciários transferidos para as municipalidades e monitorar o modo como eles eram gastos. Os cuidados de saú-de oferecidos diretamente pelas esferas federal, estadual e municipal, financiados com recursos dos orçamentos desses níveis da administração pública, não estavam incluídos nas agendas de discussão das comissões. Particularmente nas capitais e nas cidades de grande porte, com movimentos social e sindical fortes, grupos de interesse – tais como associações de moradores, sindicatos, organizações que representavam profissionais e trabalhadores de saúde – pressionavam pela ampliação da pauta de discussões. Eles viam no empowerment desses fóruns a abertura de possibilidades inéditas de participa-ção no processo de decisão política setorial (Carvalheiro e outros, 1992, p. 116-127).

Em agosto de 1987, o governo federal iniciou o Programa dos Sistemas Unificados Descentralizados de Saúde, com objetivo de universalizar o acesso e cuidados de saúde e, ao mesmo tempo, racionali-zar custos e o uso de recursos, através da unificação dos serviços de saúde dos subsetores previdenci-ário e de saúde pública. A proposta era de integração dos serviços de saúde da previdência à rede des-centralizada de unidades hospitalares e, principalmente, ambulatoriais do subsetor de saúde pública, pertencentes aos governos estaduais e municipais. Os governos estaduais assinavam convênios de adesão através dos quais a previdência social transferia aos estados recursos financeiros e funções de gerenciamento dos serviços próprios e de contratação de prestadores privados. O programa também estabelecia que as municipalidades que aderissem ao convênio estadual, poderiam receber recursos e assumir o gerenciamento de unidades ambulatoriais e hospitalares anteriormente federais, e também das estaduais, que se encontrassem em sua área territorial. O programa propunha integração, virtu-almente extinguindo o envolvimento direto da previdência social na provisão de cuidados de saúde e na compra de serviços. Havendo municipalização, as secretarias municipais de saúde se tornariam os gestores dos serviços existentes em seus territórios, exceção feita àqueles que, devido ao seu nível maior de complexidade, fossem referências para populações de mais de um município.

Os reformadores do sistema brasileiro de saúde consideravam como uma questão de princípio que a sociedade civil tivesse controle sobre o sistema. Ao mesmo tempo, os grupos de interesse mobiliza-

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dos através de fóruns de participação poderiam auxiliar para expandir os apoios políticos ao processo de reforma. O programa abriu as comissões interinstitucionais estaduais de saúde à participação popular e reforçou o papel de representantes da sociedade civil nas comissões municipais e locais. O Programa habilitou as comissões municipais a tomar parte nas decisões sobre serviços contratados, uma vez que houvesse ocorrido a municipalização.

A Constituição Federal do Brasil, promulgada em 1988 (Brasil, 1988), e as Leis 8.080 e 8.142 apro-vadas pelo Congresso Nacional, em 1990 (Brasil. Congresso, 1990 (a); Brasil. Congresso, 1990 (b)), foram influenciadas pela policy community de reformadores do sistema brasileiro de saúde em aliança com organizações que representavam os interesses dos usuários. A estratégia geral era construir um sistema universal e único de saúde, financiado com recursos da seguridade social – criada pela nova Constituição – e dos orçamentos federal, estaduais e municipais. A maior parte da provisão direta e da regulação dos serviços financiados com recursos públicos ficaria a cargo dos municípios. As esferas federal e estadual assumiam a responsabilidade pelo monitoramento e avaliação do sistema e pela provisão de serviços de maior complexidade que se constituíssem em referência para populações de mais de um município. Embora por lei a atenção à saúde tenha se tornado obrigação municipal, até meados da década de noventa, particularmente nas cidades de grande porte, a municipalização dependeu do sucesso de negociações complexas, muitas vezes conflituosas, entre autoridades de saúde municipais e estaduais. Debatia-se sobre como e quando os serviços passariam para a esfera administrativa municipal, quais deles seriam repassados e, principalmente, qual o acordo financeiro que viabilizaria ao município assumir os novos encargos.

A Lei 8.142/90 (Brasil. Congresso, 1990 (b)) ampliou ainda mais as possibilidades de envolvimento de usuários no processo de decisão setorial em comparação com o que havia sido proposto pelos pro-gramas anteriores. Deveriam ser constituídos conselhos de saúde permanentes, nos níveis federal, estadual e municipal da administração pública, os quais deveriam ser compostos por representantes do governo, de prestadores de saúde, de profissionais de saúde e de usuários. Metade do conselho seria formada por representantes dos usuários e a outra metade por conselheiros oriundos dos demais segmentos sociais. Um dos requisitos, para que as secretarias estaduais e municipais se habilitassem a receber recursos financeiros federais, era a existência de conselhos organizados de acordo com as determinações legais3. Esses fóruns deveriam participar do estabelecimento de estratégias, decidir sobre a alocação de recursos financeiros e monitorar a implementação de políticas. Como a provisão de serviços de saúde se tornara principalmente uma obrigação municipal, uma vez ocorrido o pro-cesso de municipalização, os conselhos municipais poderiam vir a ter controle sobre os cuidados de saúde, financiados com recursos públicos, dentro do território da cidade.

Mesmo considerando as dificuldades e as resistências para tornar realidade as propostas políticas e as determinações legais, até meados do ano 2000, 97,04% dos municípios do país (5.343 em 5.506) haviam municipalizado a rede ambulatorial básica pública e os serviços de vigilância em saúde (epi-demiológica e sanitária) existentes em seus territórios. No entanto, apenas 8,97% (494 em 5.506) haviam passado a ter controle também sobre todos os serviços financiados com recursos públicos – ambulatoriais, hospitalares, terapêuticos ou de apoio diagnóstico – inclusive aqueles contratados de prestadores privados (Brasil. Ministério da Saúde, 2000). As organizações que representam interes-

3 Para receber recursos financeiros federais, as secretarias de saúde estaduais e municipais deveriam ter: (1) fundo de saúde, (2) conselho de saúde, (3) plano de saúde, (4) relatório de gestão, (5) considerável contrapartida de recursos financeiros oriundos dos orçamentos próprios destinados à função saúde, (6) plano de carreira, cargos e salários.

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ses de usuários têm renovado esforços para aumentar sua influência nos conselhos de saúde nacionais, estaduais e municipais. Elas parecem reconhecer que, no novo desenho institucional, foi aberta a possibilidade para que os usuários participem do processo de decisão política setorial.

A mesma lei criava também as conferências de saúde, nos três níveis da administração pública, as quais deveriam ter a mesma composição dos conselhos e ocorrer a cada quatro anos. Elas deveriam avaliar a situação de saúde e propor diretrizes para a formulação da política de saúde nos níveis correspondentes. Embora tenham sido realizadas oito conferências nacionais de saúde anteriormente a 1990, apenas a última delas – a 8ª Conferência nacional de Saúde – teve participação popular marcante, possivelmente por ter sido realizada em 1986, no contexto da democratização política, dos conflitos e negociações que precederam o processo constitucional e de intensa discussão sobre os rumos da reforma do sistema de saúde. A partir de então realizaram-se duas conferências nacionais – em 1993 e em 1996 – precedidas pela organização de cerca de cinco mil conferências municipais e estaduais em todos os estados da fe-deração. A mobilização que elas provocaram pode ser atestada pelo processo de escolha de delegados, cercado, muitas vezes, de disputas acirradas entre diferentes entidades buscando garantir a presença de seus representantes no evento. Há indicações de que tem sido respeitada a exigência legal de paridade entre representantes de usuários, vis-a-vis demais segmentos sociais (Cortes, 2000).

A legislação criou os conselhos e as conferências nos níveis federal, estadual e municipal da adminis-tração pública, mas eles não foram instituídos a partir de um vazio institucional. Na maior parte dos casos, os conselhos originaram-se da adaptação das comissões interinstitucionais existentes, desde a segunda metade da década de oitenta, às novas exigências legais. A realização de conferências era tradição no setor, desde o início do século; a principal diferença introduzida foi o regramento em relação à periodicidade e ao envolvimento de representantes da sociedade civil.

Esses fóruns vêm modificando seu caráter dentro de um sistema de saúde em processo de mudança. Desde 1984, quando as autoridades de saúde federais deram prioridade à integração interinstitucio-nal e à descentralização, através do Programa das Ações Integradas de Saúde, os fóruns permanentes – inicialmente comissões depois conselhos – além de facilitarem a integração, estavam se tornando um espaço para o qual eram canalizadas demandas e conciliados os interesses de prestadores, de tra-balhadores e profissionais de saúde, de gestores públicos e de representantes do movimento popular e sindical (Cortes, 1995).

Estudos têm demonstrado, entretanto, que, desde o início dos anos noventa, os representantes da categoria médica e dos prestadores privados de serviços têm se retirado dos fóruns participatórios, marcadamente dos conselhos municipais (Cortes, 1995). Líderes desses setores argumentam que os conselhos são hostis aos médicos e aos prestadores privados de serviços. Eles estariam subrepresenta-dos nesses fóruns considerando sua importância no setor (Entrevista 16, 1992; Entrevista 21, 1992). Evidentemente tais grupos de interesse não foram excluídos do processo de decisão política setorial. Sua influência é exercida diretamente sobre os gestores, através de canais formais e informais de exercício de pressão política. Exemplos de canais formais seriam o legislativo, a mídia ou a apresenta-ção pública de demandas aos gestores. Os canais informais se constituiriam, principalmente, através de administradores públicos identificados com as demandas de médicos e prestadores privados de serviços de saúde. A identificação tem muitas vezes caráter corporativo, pois os gestores públicos frequentemente são médicos ou proprietários de hospitais ou de equipamentos de apoio diagnóstico ou terapêutico. Saliente-se que a legislação proíbe que proprietários de serviços exerçam posições de chefia no sistema público de saúde. No entanto, muitas vezes o médico, dono de hospital ou de outros

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equipamentos, abandona formalmente a direção daquela organização apenas durante o período em que exerce a função de gestor público, permanecendo sua identificação com os interesses da corpo-ração médica e dos prestadores privados de serviços.

Diferentemente do que ocorria na segunda metade dos anos oitenta, os conselhos e as conferências de saúde, na década de noventa, parecem ter deixado de ser o local principal de negociações e de mediação de interesses setoriais. Esses fóruns, entretanto, assumiram dois papéis institucionais fun-damentais. Em primeiro lugar, nos conselhos e durante as conferências de saúde, articulavam-se às forças sociais favoráveis ao aprofundamento do processo de reforma do sistema. Em segundo lugar, à medida que o processo de municipalização se consolidava, eles passaram a ser o lócus onde os repre-sentantes dos usuários – marcadamente dos moradores das regiões mais pobres das cidades – apre-sentavam suas demandas aos gestores públicos. A mediação entre projetos conflitantes para o setor parece estar ocorrendo, preferencialmente, nos gabinetes dos gestores públicos de saúde.

Os projetos em conflito são basicamente dois. De um lado, estão os reformistas do sistema brasileiro de saúde, que defendem a expansão da provisão pública de serviços, o aumento do controle estatal sobre o mercado de serviços de saúde e o acesso universal de todos os cidadãos ao sistema. A policy community de reformistas é liderada por gestores públicos, principalmente municipais, interessados em aprofundar a autonomia dos municípios e obter mais verbas para custear a rede de serviços sob sua responsabilidade. É liderada também por ativistas dos movimentos popular e sindical e por dirigentes de associações e sindicatos de profissionais e de trabalhadores de saúde interessados na expansão do acesso a serviços universais e em garantir a ampliação da provisão pública de cuidados de saúde. Especialmente nas capitais dos estados e nas cidades de grande porte, eles se articulam nos conselhos municipais e durante as conferências, apoiados pela legitimidade política e legal desses fó-runs, confrontando opositores, pressionando prefeitos, governadores e o governo federal para exigir, por exemplo, a destinação de mais verbas para o setor saúde.

De outro lado, estão os liberais que defendem a provisão privada de serviços para aqueles que podem pagar e a oferta de serviços financiados com recursos públicos apenas para as camadas mais pobres da população. Os principais líderes da resistência ao processo de reforma são os empresários médicos, a Federação Brasileira de Hospitais (FBH) e suas ramificações estaduais, a Associação Brasileira de Medicina de Grupo (ABRAMGE) que representa as health maintenance organizations4 brasileiras, o Conselho Federal de Medicina e suas ramificações estaduais, além de alguns sindicatos médicos. Para eles, os conselhos e as conferências de saúde são território inimigo.

Mesmo levando em conta que conselhos e conferências exerçam de modo limitado o papel de me-diadores de interesses no setor, a novidade é a formação gradual de um novo tipo de relacionamento na área da saúde no Brasil, n qual os interesses dos setores populares, tradicionalmente excluídos do processo de decisão política, vêm sendo representados formal e publicamente (Carvalheiro e outros, 1992; Cortes, 1998).

Determinantes da participação dos usuários

Constatou-se acima que os conselhos e as conferências de saúde têm sido um espaço público dentro do qual os interesses dos setores populares são representados e no qual os representantes desses setores têm participado do processo de tomada de decisão política que lá ocorre. Examina-se agora

4 Empresas que oferecem serviços ambulatoriais de saúde contratadas por empresas para oferecer assistência a seus trabalhadores.

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os determinantes da participação dos representantes dos usuários nestes fóruns. A sistematização da literatura sobre o tema (Cortes, 1995; Jacobi, 1993; Lee e Mills, 1985; Marmor, 1983; Martes, 1990; Vargas e outros, 1985) apontou os seguintes fatores como os mais influentes sobre esse pro-cesso participatório: (1) mudanças recentes na estrutura institucional do sistema brasileiro de saúde, (2) organização dos movimentos popular e sindical, (3) relacionamento entre profissionais de saúde pública e lideranças populares e sindicais, (4) posições das autoridades federais, estaduais e muni-cipais de saúde em relação a participação, (5) dinâmica de funcionamento dos fóruns. Duas obser-vações preliminares devem ser feitas para esclarecer a natureza desses determinantes. Em primeiro lugar, na realidade, todos eles se afetam mutuamente, compondo as partes de um todo integrado e conflituoso. Em segundo lugar, os dois primeiros fatores são os mais decisivos. Ou seja, os fóruns não existiriam não fosse a estrutura institucional que os criou e somente haverá participação se houver organização da sociedade civil. Em certos casos podem ocorrer resistências das autoridades munici-pais de saúde em relação à participação dos usuários e mesmo assim ela ocorrer em função da pressão dos movimentos sociais (Cortes, 1995, p. 135-137).

As transformações recentes na estrutura institucional do sistema brasileiro de saúde podem ser con-sideradas como o fator mais influente na determinação do processo participatório que ocorre nos conselhos e conferências de saúde. Essas mudanças formam o conjunto de programas e disposições legais, já mencionado, implementados durante a década de oitenta, acrescidos das normas opera-cionais do Ministério da Saúde, editadas em 1993 e 1996, as quais normatizaram e estimularam o processo de municipalização. Esse conjunto ofereceu as bases políticas e legais para que o sistema brasileiro de saúde se tornasse: (1) mais integrado, através da unificação do subsetor de saúde pública (Ministério da Saúde, Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde) com o subsetor de saúde previ-denciária (serviços próprios e contratados); (2) mais descentralizado, repassando funções e transfe-rindo equipamentos e recursos financeiros para as secretarias estaduais de saúde, e mais tarde, para os municípios; e (3) universalizado, formalmente oferecendo cobertura de cuidados de saúde a toda a população brasileira. Nesse contexto, desde o início dos anos noventa tem crescido a importância dos conselhos e das conferências de saúde, tanto como lócus de articulação das forças políticas favoráveis à reforma do sistema de saúde, quanto como canal formal e aberto de encaminhamento de demandas e proposições dos representantes dos setores populares, que são os usuários regulares dos serviços financiados com recursos públicos.

No entanto, a força dos movimentos popular e sindical é que determinará a ocorrência ou não de participação de representantes legítimos e autônomos dos setores populares nesses fóruns. Mais que isso, o padrão de organização dos movimentos sociais influencia o modo como os usuários se envol-vem nas atividades dos conselhos e das conferências. Se o padrão de organização for mais centrali-zado, a tendência é que os representantes dos usuários se envolvam diretamente nas atividades dos conselhos nacional, estaduais e municipais das cidades grandes. Se o padrão de organização for mais descentralizado, os representantes usuários chegarão a eles através de organizações locais, tais como os conselhos locais de saúde, clubes de mães, associações comunitárias ou de moradores, entre outras (Cortes, 1995). A importância dos movimentos sociais urbanos, especialmente nas cidades maiores, é decisiva porque os representantes do movimento sindical nos conselhos – excluídos os que repre-sentam trabalhadores de saúde – têm sido minoria. Isso possivelmente se explica pelo fato de os seto-res de trabalhadores mais mobilizados serem aqueles cujos membros já dispõem de seguros ou planos de saúde especiais, não contando unicamente com o sistema público para atender a suas necessidades. Em cidades pequenas, onde os sindicatos de trabalhadores rurais são fortes, eles se constituem na

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principal base de sustentação para a participação continuada de seus representantes junto aos conse-lhos municipais (Vargas e outros, 1985). Saliente-se que esses trabalhadores também dispõem apenas do sistema público para suprir suas necessidades de atenção à saúde. As possibilidades de envolvimen-to autônomo dos representantes de usuários nas conferências municipais, que escolhem os delegados que participarão das etapas estaduais e federal, dependem da consistência do envolvimento nos con-selhos municipais. O caráter episódico das conferências as transforma em momento culminante de um longo processo gestado ao longo dos quatro anos que antecedem a realização de cada uma delas.

Um terceiro fator que tem estimulado o envolvimento de usuários nos conselhos e nas conferências é a ação combinada dos reformadores do sistema brasileiro de saúde com a dos ativistas dos movi-mentos sociais urbano, rural e sindical (Cortes, 1995; Martes, 1990; Vargas e outros, 1985). A elite de reformadores tem atuado também junto ao executivo e legislativo, visando a introdução de modificações político-institucionais que viabilizem a participação dos usuários. Esses reformadores defendem a participação, porque eles acreditam na democratização do processo de decisão política estatal. Além disso, a aliança com os movimentos sociais oferece suporte político no enfrentamento de resistências dos grupos de interesse contrários às reformas e no confronto dentro do governo com outras áreas políticas, que competem com a de saúde pela obtenção de recursos escassos.

O interesse de setores dos movimentos social ou sindical em reivindicar a melhoria do acesso e da qua-lidade dos serviços de saúde não se traduz automaticamente na canalização de demandas para os conse-lhos e conferências de saúde. A elite de reformadores estimulou o envolvimento de lideranças populares e sindicais nos contatos que eles estabeleceram, enquanto profissionais de saúde pública em unidades ambulatoriais, localizadas em áreas urbanas pobres ou em regiões que concentravam trabalhadores rurais. Eles também favoreceram o envolvimento dos usuários nesses fóruns quando ocupavam cargos como gestores federais, estaduais e municipais de saúde. Em algumas áreas urbanas, como no Setor 4, em Porto Alegre (Cortes, 1995), na Zona Leste de São Paulo (Jacobi, 1993; Martes, 1990) ou em Ronda Alta no Rio Grande do Sul (Vargas e outros, 1985), a já existente intensa mobilização popular em torno das questões de saúde foi canalizada para esses fóruns. Em outras áreas onde também existia a predominância de populações pobres, mas a questão saúde não era tratada como prioridade pelos movi-mentos sociais locais, o encorajamento dos profissionais de saúde pública foi decisivo para o envolvimen-to de lideranças populares com as questões de saúde. Sem ele a mobilização para o encaminhamento de soluções para os problemas de saúde teria provavelmente sido menos intensa e a ação política desses segmentos da população não teria convergido, necessariamente, para os fóruns participatórios da área de saúde. A contrapartida para as lideranças dos movimentos sociais urbanos e do movimento sindical era o aumento de sua influência política sobre o processo de tomada de decisões no setor saúde. Através do acesso direto às autoridades de saúde nesses fóruns, eles exerciam pressão pela melhoria da qualidade dos serviços de saúde oferecidos às populações pobres que eles representam. Ao mesmo tempo, eles reforçavam a sua posição de liderança dentro das suas organizações.

Um quarto fator que contribui para a participação dos usuários nos conselhos e nas conferências de saúde, é a posição das autoridades municipais, estaduais e federais de saúde sobre a participação de usuários. A posição das autoridades de saúde pode ser considerada como decisiva, pois muitas vezes eles dirigem o conselho e a organização da conferência. Mesmo quando não é esse o caso, como ges-tores, eles influenciam diretamente: (1) na formação da agenda de discussão, (2) no funcionamento geral do fórum, (3) na possibilidade de cumprir as decisões ali tomadas e (4) na possibilidade de pressionar os demais gestores e os prestadores de serviços de saúde para o cumprimento das decisões.

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Saliente-se que, na medida em que avançar o processo de descentralização, mais importante se torna-rá o papel do gestor municipal no conjunto do sistema e sobre as possibilidades de haver participação dos usuários, enquanto que a influência das autoridades federais e estaduais declinará.

Um quinto determinante da participação é a dinâmica de funcionamento dos fóruns. Ela está ligada à forma de coordenação do fórum e à postura do gestor em relação à participação. Ela poderia explicar mudanças de curto prazo no envolvimento dos usuários (Cortes, 1995). Nos conselhos a sobrecarga de discussões detalhadas sobre despesas a serem realizadas, por exemplo, pode levar ao esvaziamento de reuniões de conselho (Cortes, 2000). A divisão clara de competências entre comissões técnicas, jurídicas ou similares pode ajudar a evitar esse tipo de problema, se a intenção for evitá-lo, caso con-trário pode se constituir numa estratégia para diminuir o poder deliberativo do conselho. Da mesma forma, ao limitar as questões que entram na pauta de discussão, o gestor pode fazer com que assuntos importantes para as políticas de saúde municipal, permaneçam como não-questões (Bachrach e Baratz, 1963). Estando fora da agenda de discussões, as decisões relativas a eles serão tomadas em gabinetes, longe, portanto, do escrutínio público.

Considerações finais

No Brasil, a partir dos anos oitenta, alguns setores da administração pública, marcadamente o de saú-de, têm sido permeáveis à representação de interesses daqueles setores sociais tradicionalmente alija-dos do processo político. É certo que essa novidade convive com a permanência de arranjos políticos elitistas e de práticas clientelísticas e paternalistas que dificultam a generalização dessa nova per-meabilidade. A crise econômica dos anos oitenta minou as bases do pacto autoritário que excluía as representações de trabalhadores e de outros setores sociais populares dos centros de decisão política. A liberalização política possibilitou a manifestação pública de uma sociedade civil que demonstrou capacidade de organização autônoma, pelo menos nos principais centros urbanos e nas áreas rurais que concentravam os mais ativos sindicatos de trabalhadores rurais. A consolidação dos conselhos e das conferências de saúde, como espaços para os quais foram canalizadas as demandas dos movimen-tos popular e sindical, teve sucesso onde formou-se uma “policy community” composta por uma elite de reformadores do sistema brasileiro de saúde em aliança com lideranças dos movimentos popular e sindical. A aliança que se solidificou nos conselhos de saúde tem se manifestado nas conferências de saúde. Assim, as afirmações de Grindle e Thomas e de Ugalde, que consideraram pouco provável a constituição de mecanismos formais e públicos de representação dos interesses das classes populares na América Latina, não retratam integralmente, nem valorizam, a novidade que constituem os con-selhos e as conferências de saúde para a vida político-institucional do país.

No entanto, a demora no processo de municipalização dos serviços de saúde, em muitos estados, tem limitado as possibilidades de extensão da agenda de discussões dos conselhos municipais. Enquanto o gerenciamento dos serviços de saúde nas cidades não estiver sob controle municipal, o poder de decisão política dos conselhos e das conferências municipais, dentro do processo decisório geral do setor, tenderá a ser limitado. Em outras palavras, sem a municipalização o aumento do controle dos usuários sobre esses fóruns não significará ampliação do controle sobre a gestão dos serviços de saúde da cidade. A municipalização apenas da atenção básica, como tem ocorrido na esmagadora maioria dos municípios brasileiros, faz com que o gestor municipal e, por conseguinte, os conselhos tenham influência limitada sobre o processo de decisão setorial.

Ressalve-se, ainda, que a assistência à saúde, no Brasil, está dividida entre os cuidados disponíveis

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para aqueles que dispõem de convênios especiais ou que podem comprar serviços privados direta-mente e aquela assistência acessível aos que somente podem recorrer aos serviços financiados com recursos públicos. Isso tem levado a que principalmente as populações mais pobres e os portadores de doenças crônicas – em menor proporção – se interessem em influir no processo de decisão polí-tica que tem lugar nos fóruns participatórios.

Mesmo considerando tais limitações, tem-se constatado que, em alguns casos e em certas conjun-turas, os conselhos e as conferências de saúde têm propiciado a representação pública dos interesses dos setores populares e os representantes desses setores têm participado no processo de tomada de decisão política que lá ocorre. Os principais determinantes da participação dos representantes dos usuários nos conselhos e conferências têm sido: (1) mudanças no sistema brasileiro de saúde, (2) características dos movimentos popular e sindical, (3) relacionamento entre profissionais de saúde pública e lideranças populares e sindicais, (4) posições dos gestores federais, estaduais e, principal-mente, municipais em relação à participação, e (5) dinâmica de funcionamento do fórum. Como foi visto, esses determinantes estão profundamente relacionados e se afetam mutuamente, embora os dois primeiros possam ser destacados como os mais decisivos.

Não se pode afirmar que a reforma do sistema brasileiro melhorou a qualidade dos cuidados oferecidos e que tornou os serviços mais acessíveis ou se ela, ao contrário, intensificou iniquidades territoriais e sociais que já existiam. Não há dúvida, no entanto, que ela criou, no nível municipal de governo, um fórum participativo que tem contribuído para a democratização do processo de tomada de decisões no setor saúde. Maior participação de usuários não garante a redução das iniquidades na promoção de cuidados de saúde para a população. No entanto, a consolidação de fóruns participativos pode auxiliar para a democratização das instituições brasileiras, dando voz a setores tradicionalmente ex-cluídos de representação direta no sistema político. Através deles, seus representantes podem influir na decisão sobre o destino de recursos públicos no setor saúde, podem obter informações, fiscalizar a qualidade dos serviços prestados e podem influenciar na formulação de políticas que favoreçam os setores sociais que eles representam.

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Curso de Desenvolvimento

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Construindo a possibilidade da participação dos usuários: conselhos e conferências no Sistem

a Único de Saúde

Soraya Maria Vargas Cortes

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Para saber mais(Bibliografia complementar)

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2. PIERANTONI, Célia Regina; VARELLA, Thereza Christina; FRANÇA, Tania. Recursos humanos e gestão do trabalho em saúde: da teoria para a prática. In: BRASIL. Ministério da Saúde. Observatório de recursos humanos em saúde no Brasil: estudos e análises. 2. vol. Brasília: MS, 2004. p. 51-70. (Série B. Textos Básicos de Saúde).

3. BRASIL. Conselho Nacional de Secretários de Saúde. O desafio do financiamento. In: BRASIL. CONASS. SUS: avanços e desafios. Brasília: CONASS, 2006. p. 63-94. (Coleção Progestores).

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6. GUIZARDI, Francini Lube; PINHEIRO, Roseni; MACHADO, Felipe Rangel S. Vozes da participação: espaços, resistências e o poder da informação. In: PINHEIRO, Roseni; MATTOS, Ruben Araújo de (Orgs.). Construção social da demanda: direito à saúde, trabalho em equipe, participação e espaços públicos. Rio de Janeiro: CEPESC/UERJ; ABRASCO, 2005. p. 225-238.

7. BRASIL. Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde. Participação social no SUS: olhar da gestão municipal. Brasília: CONASEMS, 2009. (Cartilha).

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MÓDULO 3: INFORMAÇÃO E PLANEJAMENTO EM SAÚDE

3.1 Planejamento em saúde no nível local�� Noções de planejamento em saúde.

�� Planeja SUS: regulamentação e principais instrumentos.

�� Principais conceitos do Planejamento Estratégico Situacional (PES): ator, situação, momentos PES.

�� Subsídios e metodologia para a construção da agenda de fortalecimento gerencial do SUS.

3.2 A importância e o papel da informação em saúde�� Produção de informação e de indicadores de saúde.

�� Análise da situação de saúde do município.

�� Principais sistemas de informações do SUS: conceitos instrumentos e gerenciamento da informação de saúde.

�� Pesquisa TabNet: informação de saúde.

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TEXTOS BÁSICOS

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O PLANEJAMENTO ESTRATÉGICO SITUACIONAL NO NÍVEL LOCAL: UM INSTRUMENTO A FAVOR DA VISÃO MULTISSETORIAL1

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1. IntroduçãoEntre as vertentes do planejamento estratégico que surgem na América Latina a partir dos anos 70, destaca-se o Planejamento Estratégico Situacional, de Carlos Matus.

O Planejamento Estratégico Situacional - PES foi idealizado por Matus, autor chileno, a partir de sua vivência como ministro da Economia do governo Allende, no período de 1970-73, e da análise de outras experiências de planejamento normativo ou tradicional na América Latina cujos fracassos e limites instigaram um profundo questionamento sobre os enfoques e métodos utilizados.

O enfoque do Planejamento Estratégico Situacional – PES (Matus, 1993, 1994a, 1994b) surge, en-tão, no âmbito mais geral do planejamento econômico-social e vem sendo crescentemente adaptado e utilizado em áreas como saúde, educação e planejamento urbano, por exemplo. Esse enfoque parte do reconhecimento da complexidade, da fragmentação e da incerteza que caracterizam os processos sociais, que se assemelham a um sistema de final aberto e probabilístico, onde os problemas se apre-sentam, em sua maioria, não estruturados e o poder se encontra compartido, ou seja, nenhum ator detém o controle total das variáveis que estão envolvidas na situação.

Embora o método tenha sido desenhado para ser utilizado no nível central, global, seu formato flexível possibilita a aplicação nos níveis regionais/locais ou mesmo setoriais, sem, contudo, deixar de situar os problemas num contexto global mais amplo, o que permite manter a qualidade da explicação situacional e a riqueza da análise de viabilidade e de possibilidades de intervenção na realidade. Para tanto, Matus desenvolve os conceitos de espaço do problema e espaço de governabilidade do ator, bem como propõe o desenho de um plano de intervenção em dois níveis: o plano de ação que abrange as causas dos proble-mas situadas dentro do espaço de governabilidade do ator e o plano de demandas que aborda as variáveis sob o controle de outros atores. Estes conceitos serão melhor abordados adiante.

1 Este artigo, adaptado para a presente coletânea, foi publicado originalmente em: ARTMANN, Elizabeth. O planejamento estratégico situacional no nível local: um instrumento a favor da visão multissetorial. Cadernos da Oficina Social, Rio de Janeiro, n. 3, p. 98-119. fev. 2000. 2 Pesquisadora do Departamento de Administração e Planejamento em Saúde da ENSP/FIOCRUZ, Doutoranda em Saúde Coletiva no Departamento de Medicina Preventiva da UNICAMP.

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Buscando ainda, enfrentar a questão da operacionalização de um método complexo e sofisticado no nível local, Matus propõe a trilogia PES, ZOPP (sigla em alemão de Zielorientierte Projektplanung - Planejamento por Projetos Orientado por Objetivos) e MAPP (Método Altadir de Planejamento Popular), desenhados, respectivamente, para os níveis central, intermediário e local/popular. O autor sugere a combinação desses métodos, segundo a hierarquia e a complexidade dos problemas abordados, destacando a coerência e identidade de concepção metodológica entre eles.

O PES, segundo Matus, é um método de alta complexidade e alta potência, apropriado para o nível diretivo de instituições de grande porte e com pessoal especializado. O ZOPP é um método de complexidade intermediária, com limitações para fazer análise estratégica e abordar determinados problemas que definem uma situação global (macroproblemas). É adequado para trabalhar em nível operacional específico e sofreu algumas modificações do original alemão para integrar o sistema PES. O MAPP constitui-se, para o autor, num bom método por problemas a ser operacionalizado no nível popular, associações de moradores e instituições de pequeno porte mas possui também limita-ções (ver crítica da trilogia de Matus em Artmann, 1993 e Sá & Artmann, 1994).

Concordamos com Matus que, muitas vezes, possa ser útil a combinação desses métodos. Chamamos a atenção, contudo, para o fato de que, nos níveis locais e intermediários também se apresentam proble-mas estratégicos, havendo necessidade, portanto, de uma análise de viabilidade mais aprofundada. Ao contrário do ZOPP que abandona as alternativas não viáveis na situação inicial, o PES propõe a constru-ção de viabilidade para o plano. Sendo o ZOPP e o MAPP bastante limitados nesse aspecto, propomos a operacionalização do PES mesmo no nível local, com as adaptações necessárias, tendo-se o cuidado de não simplificá-lo a ponto de perda de potência na abordagem global e estratégica dos problemas.

Optamos, portanto, para fins de elaboração deste texto, por apresentar os principais fundamentos teórico-metodológicos do PES com adaptações propostas, sendo algumas já adotadas e testadas em experiências de planejamento no nível local (Artmann, 1993; Rivera & Artmann, 1993; Artmann, Azevedo & Sá, 1997).

O PES é um método de planejamento por problemas e trata, principalmente, dos problemas mal es-truturados e complexos, para os quais não existe solução normativa ou previamente conhecida como no caso daqueles bem estrutrados. É importante destacar que, embora se possa partir de um campo ou setor específico, os problemas são sempre abordados em suas múltiplas dimensões - política, eco-nômica, social, cultural etc. e em sua multissetorialidade, pois suas causas não se limitam ao interior de um setor ou área específicos e sua solução depende, muitas vezes, de recursos extra-setoriais e da interação dos diversos atores envolvidos na situação.

2. Os conceitos fundamentais do PES

O conceito de planejamento

Um primeiro conceito a ser destacado é a própria noção de planejamento, como um cálculo que pre-cede e preside a ação. Este alargamento do planejamento para além do cálculo representa um avanço, na medida em que incorpora aspectos de gerência, aspectos organizacionais e a ênfase no momento tático-operacional, ou seja, no planejamento da conjuntura e na avaliação e atualização constante do plano. O planejamento passa a estar intrinsecamente vinculado à ação e aos resultados/impactos e não somente ao cálculo que antecede a ação.

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O ator e o problema

Para Matus, um problema não pode ser apenas um “mal-estar” ou uma necessidade sentida pela po-pulação. Um problema suscita à ação: é uma realidade insatisfatória superável que permite um inter-câmbio favorável com outra realidade. Este é um ponto muito importante na abordagem matusiana que significa que um problema nunca é “solucionado” definitivamente, mas uma intervenção eficaz na realidade deve produzir um intercâmbio positivo de problemas. Outro ponto fundamental é a neces-sidade de que seja definido e declarado como problema por um ator, disposto e capaz de enfrentá-lo.

O ator, para Matus (1994b) deve preencher três critérios:

�� Ter base organizativa

�� Ter um projeto definido

�� Controlar variáveis importantes para a situação.

O ator pode estar representado pela direção de um sindicato, de um partido político ou de uma asso-ciação de moradores, considerando-se vários subatores (por exemplo, o presidente do sindicato pode ter uma posição e outro membro importante outra) ou pode ser uma pessoa: o prefeito, o secretário de saúde ou de educação. Alguém deve sempre responder pelo plano, portanto não é correto nem útil dizer que a secretaria de saúde ou a prefeitura são os atores. Neste caso, o prefeito e o secretário de saúde seriam os atores. Matus (1994b) chama a atenção para o fato de que um assessor não é ator, podendo ser chamado de autor do plano. Portanto, um grupo responsabilizado pela elaboração de um projeto não pode ser considerado um ator; a autoridade que o instituiu é que representa o ator. É importante ter claro o ator que assina o plano. Este sempre controla pelo menos algumas variáveis relevantes na situação e, além do ator-eixo ou ator principal, os outros atores que controlem recursos ou variáveis importantes devem ser considerados.

Com base em Ian Mitroff, Matus (1987) formula uma primeira classificação dos problemas em: bem estruturados, quase-estruturados ou mal-estruturados. Os primeiros referem-se a problemas que respondem a leis ou regras claras, invariáveis e/ou comportamentos previamente conhecidos e cujas soluções podem ser normatizadas. Podem ser tratados, portanto, segundo modelos determinísticos de análise, pois se conhecem todas as variáveis intervenientes e suas formas de articulação. Já os últimos dizem respeito a situações problemáticas de incerteza nas quais não se podem enumerar todas as variáveis envolvidas e que só podem ser tratados a partir de modelos probabilísticos e de intervenções criativas. Matus (1987) enuncia as seguintes características para os problemas semi ou quase-estruturados:

�� fazem parte de problemáticas que mobilizam vários atores, leituras e propostas de intervenção às vezes divergentes ou simplesmente diferentes, configurando uma área não necessariamente con-sensual a priori;

�� ainda que tenham uma dimensão técnica, destaca-se o âmbito sócio-político, não sendo possível uma abordagem objetiva, o que não significa abandonar o rigor;

�� não são facilmente isoláveis, pois dependem na sua geração e no seu enfrentamento de outros pro-blemas, com os quais se entrelaçam; as fronteiras entre eles são, muitas vezes, difusas e a solução de um problema pode criar dificuldades à solução de outros;

�� dependem do contexto maior onde se inserem, do cenário constituído por uma série de circuns-tâncias não controladas que nele interferem, possuindo, portanto algum grau de incerteza;

�� supõem um enfoque de enfrentamento caracterizado pelo julgamento estratégico, reflexivo;

�� seu enfrentamento depende de uma abordagem multissetorial.

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Se tomarmos o âmbito da saúde da população, em seu conceito amplo, temos um exemplo de pro-blemática semiestruturada ou inestruturada, pois ela articula-se com âmbitos diversificados como saneamento básico, habitação, condições de urbanização e de trânsito, hábitos de vida das pessoas, nível de renda e educação, entre outros.

Os problemas podem ser ainda classificados em finais ou intermediários, e em atuais e potenciais.

Os problemas finais referem-se à missão institucional ou seja, àqueles vividos pela clientela, pela po-pulação que justifica a existência da organização. Os intermediários são aqueles problemas-meio que não se relacionam diretamente ao produto final mas seu enfrentamento é necessário para viabilizar a missão das organizações e dele depende também a qualidade dos produtos finais. Por exemplo, a missão de um posto de saúde ou de um hospital está relacionada à prestação de serviços de saúde à po-pulação, ainda que em diferentes níveis de complexidade. Para tanto é necessário enfrentar proble-mas intermediários como organizar a lavanderia do hospital ou contratar serviços terceirizados, re-solver o problema de gerência do ambulatório etc. Uma Associação de Moradores tem como missão defender os interesses de seus moradores e buscar soluções para problemas como segurança, água, entre outros, mas precisa enfrentar questões intermediárias como a necessidade de uma secretaria, a definição de um local para reuniões etc. Uma escola deve prestar ensino de qualidade às crianças de determinada faixa etária. Todos os problemas relacionados a esta missão, como alto índice de repetência e evasão escolar são finais. Os intermediários seriam os baixos salários dos professores ou rede física inadequada por exemplo, cujo enfrentamento se justifica na medida em que corrobora o alcance dos produtos finais.

Os problemas atuais são aqueles que se manifestam hoje, no presente. Os potenciais referem-se a processos tendenciais que levariam à expressão de problemas no futuro e para os quais é necessária uma atuação preventiva. Muitas vezes a identificação de problemas potenciais torna-se extrema-mente estratégica no sentido de evitar situações graves e também de economizar custos, sejam econômicos ou políticos.

O conceito de situação

Com este conceito Matus (1987) questiona, a partir de autores como Gadamer (1975) e Ortega y Gas-set (1936), a possibilidade de uma explicação objetiva e única da realidade por um sujeito que a olha como objeto desde fora. Na explicação situacional o ator analisa a realidade, os problemas, desde dentro da situação. A situação, enquanto um recorte problemático feito em função de um projeto de ação, está constituída pelo ator-eixo da explicação situacional, por outros atores, pelas suas ações e pelas estrutu-ras econômicas, políticas, ideológicas e culturais que condicionam os atores e suas ações.

A explicação situacional é sempre multidimensional e totalizante, ou seja, refere-se às múltiplas dimensões da realidade: política, econômica, ideológica, cultural, ecológica etc. Exige uma visão in-terdisciplinar e multissetorial e deve adaptar-se ao plano setorial sem abandonar as outras dimensões e espaços de explicação. É dinâmica, articulando passado, presente e futuro, através do desvenda-mento dos processos causais, da expressão atual e da análise das tendências futuras. É ativa, pois cada ator busca com a explicação fundamentar sua ação. A situação está sempre referida a um ator, à sua própria explicação da realidade, mas inclui a explicação, o ponto de vista dos outros atores envol-vidos. É, portanto, além de autorreferencial, também policêntrica. Deve ser rigorosa no sentido de buscar apreender as determinações essenciais, para além dos fenômenos aparentes e das causas ime-diatas e, para isso, não pode prescindir de um modelo teórico de leitura da realidade. Matus (1982) propõe como modelo de análise da realidade a Teoria da Produção Social.

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A apreciação situacional, ao contrário do diagnóstico tradicional, é um diálogo entre um ator e ou-tros atores cujo relato é assumido por um dos atores de maneira inteiramente consciente do texto e contexto situacional que o faz participante de uma realidade conflitiva que admite outros relatos.

3. A Teoria da Produção Social

A Teoria da Produção Social refere-se a um método de leitura da realidade que a explica para além dos fatos mais aparentes, através de três níveis: o nível dos fatos propriamente ditos ou fenoprodução (fatos de qualquer natureza), o nível das acumulações ou fenoestruturas (capacidades de produção de novos fatos) e o nível das regras ou leis básicas que regulam uma formação social. Os diferentes pro-cessos e fenômenos da realidade articulam-se dinamicamente, tanto no interior de cada um desses níveis, como entre eles, havendo uma maior determinação do último - as regras - sobre os demais. A aplicação concreta desta teoria se dá no momento da explicação de um problema, através da mon-tagem do Fluxograma Situacional, quando se localizam as causas nesses três níveis, estabelecendo-se uma rede de relações causais, o que contribui para uma visão mais ampla do problema explicado e, consequentemente, para uma atuação mais efetiva.

Matus utiliza a metáfora do jogo para elucidar a ação e a produção humana em geral: as jogadas seriam os fatos, produzidos pelos jogadores (atores) a partir de determinadas acumulações que es-tariam ancoradas em capacidades individuais, intelectuais, no conhecimento do jogo e suas regras e nas próprias acumulações geradas no processo de jogar. Uma diferença fundamental entre os ti-pos comuns de jogos e o Jogo Social estaria representada pelas regras, que, se na maioria dos jogos estão predefinidas e são imutáveis (xadrez, monopólio etc.), neste último, são construídas pelos homens e não são imutáveis. Matus chama a atenção, contudo, para o fato de que é preciso muito poder ou uma grande acumulação para se mudar as regras sociais que são desiguais, favorecendo mais a alguns atores em detrimento de outros.

4. A Teoria da Ação

A Teoria da Ação distingue entre uma forma de ação não interativa, instrumental ou comportamen-tal - própria do planejamento normativo e uma forma de ação interativa, referida ao espaço social e político, que fundamenta a necessidade do cálculo interativo ou raciocínio estratégico. Os diferentes tipos de ação são aplicáveis a distintos problemas: para aqueles bem estruturados aplica-se a ação normatizada; para os quase estruturados faz-se necessária a ação interativa e criativa, que considera a ação dos outros atores. Para Matus, os problemas bem estruturados são sempre parte de uma pro-blemática quase ou mal estruturada.

5. A proposta metodológica: os quatro momentos do PES

O conceito de momento, formulado para superar a ideia de “etapas”, muito rígida, implica numa visão dinâmica do processo de planejamento, que se caracteriza pela permanente interação de suas fases ou momentos e pela constante retomada dos mesmos. O Método PES prevê quatro momentos (Matus, 1993, 1994) para o processamento técnico-político dos problemas: os momentos explicativo, norma-tivo, estratégico e tático-operacional. Cada um desses momentos possui suas ferramentas metodológicas específicas, que podem, no entanto, ser retomadas nos demais.

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O momento explicativo: selecionando e compreendendo o problema

Esse é o momento da seleção e análise dos problemas considerados relevantes para o ator social e sobre os quais este pretende intervir.

Se a seleção é feita por um grupo de pessoas, o uso de técnicas como “tempestade de ideias” utilizada pelo ZOPP, por exemplo, pode ser útil para a construção de uma primeira listagem de problemas que, depois de agrupados por afinidade, poderão passar por um protocolo simples de seleção que servirá para refletir sobre a relevância dos mesmos antes da seleção definitiva. Mesmo quando o ator tem claro quais os problemas que devem ser enfrentados, o protocolo é útil para confirmar (ou não) sua importância estratégica. O protocolo inclui alguns critérios como: valor do problema para o ator principal, para outros atores e para a população; custo econômico das soluções; custo político do enfrentamento ou postergação do problema; eficácia da intervenção, entre outros que podem ser acrescentados, dependendo do âmbito dos problemas. Por exemplo, para problemas de saúde pode-se acrescentar o critério “impacto na qualidade de saúde da comunidade ou população”.

Selecionados os problemas, passa-se à descrição dos mesmos através de indicadores ou descritores que os definam com clareza. Os descritores quantitativos ou qualitativos devem ser necessários e su-ficientes para expressar o problema sem confundi-lo com outros ou com suas próprias causas e con-sequências. A verificação desse critério de suficiência pode ser feita a partir da resposta afirmativa à pergunta: “eliminadas as cargas negativas expressas pelos descritores, fica eliminado o problema?” Caso contrário, é necessário rever os descritores. É importante assinalar a fonte de verificação do descritor ou seja, a procedência da informação. A descrição, quando bem feita resultará nos indica-dores que serão utilizados para avaliar os impactos do plano.

Nem sempre é possível usar somente descritores quantitativos. Às vezes é preciso contar apenas com descritores qualitativos. É importante lembrar que o descritor não explica o problema, mas o carac-teriza, o expressa através de “sintomas” que o definem.

Vejamos, a seguir, um exemplo de um problema processado pelos alunos do Curso de Gestão Hospi-talar de 1991 na Escola Nacional de Saúde Pública da FIOCRUZ/MS, e posteriormente enfrentado com sucesso pela gestão municipal de Angra dos Reis.

PROBLEMA: BAIXA QUALIDADE DA ASSISTÊNCIA HOSPITALAR EM ANGRA DOS REIS

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Após a descrição, os problemas devem ser analisados através da construção de uma rede de causalidade simplificada. Aqui optamos por não considerar a Teoria da Produção Social e a complexidade do fluxo-grama situacional do PES explicitamente, embora, a organização dos processos causais do problema pos-sa obedecer implicitamente a um esquema de hierarquização semelhante. Ao invés de ordenar as causas em colunas de fatos, acumulações e regras, pode-se hierarquizá-las segundo causas mais imediatas, causas intermediárias e causas “de fundo”. É importante considerar a noção de espaço de governabilidade o que significa que as causas devem ser corretamente colocadas dentro ou fora do espaço de governabilidade do ator. No espaço de governabilidade do ator estão situadas aquelas causas que estão sob o seu controle. Isto dá uma primeira ideia sobre o grau de governabilidade ou controle sobre o problema, o que pode ser considerado inclusive como um critério ou filtro de seleção. Mais adiante, no momento estratégico, esta questão poderá ser verificada com mais profundidade, apontando-se os atores que controlam as variáveis críticas (ou nós críticos) do problema e os recursos importantes para a intervenção.

MODELO DE FLUXOGRAMA SITUACIONAL

É importante chamar a atenção para a necessidade de se conhecer bem o problema para identificar corretamente os processos de causalidade. O método apenas ajuda a sistematização mas não substi-tui o conhecimento da realidade. Matus (1987) alerta para o risco da cegueira situacional que pode surgir de um olhar parcial. Para romper a cegueira situacional é preciso exercitar vários olhares, e buscar um conhecimento profundo do problema através de consultas a especialistas, de estudos exis-tentes e, se necessário, da realização de pesquisas específicas, quando o problema é pouco conhecido.

Com o fluxograma situacional bem realizado é possível identificar: as relações de determinação entre as causas e entre as causas e o problema tal como descrito sob a forma de indicadores (descritores); as cau-sas de maior poder de determinação; o grau de governabilidade sobre as causas, correspondendo aquelas situadas no espaço de governabilidade às causas controladas pelo ator do plano; as causas localizadas no espaço-fronteira que se referem às causas diretamente relacionadas com o problema, controladas por outros atores, e as causas situadas no espaço fora do problema as quais se relacionam a causas que condi-cionam o problema mas não fazem parte dele diretamente, sendo causas também de outros problemas.

Para Matus, os problemas estratégicos estão sempre entrelaçados com outros problemas, podendo--se identificar causas que são comuns a vários problemas que se manifestam inclusive em diferentes setores. Por isso, é fundamental a explicação intersetorial. As causas que dependem de outros setores (atores) estariam localizadas no espaço-fronteira e, às vezes, no espaço fora do problema.

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Dentre as várias causas do problema estão aquelas que serão os pontos de enfrentamento do mes-mo, os nós críticos, sobre as quais serão elaboradas as propostas de ação. Na seleção dos nós críticos, observam-se três critérios representados pelas seguintes perguntas que devem ser aplicadas a cada causa do problema:

a. A intervenção sobre esta causa trará um impacto representativo sobre os descritores do problema, no sentido de modificá-los positivamente?

b. A causa constitui-se num centro prático de ação, ou seja, há possibilidade de intervenção direta sobre este nó causal (mesmo que não seja pelo ator que explica)?

c. É oportuno politicamente intervir?

Quando todas as três questões são respondidas afirmativamente, o nó deve ser selecionado como crítico, ou seja, como ponto de enfrentamento.

A partir de então, os nós críticos que representem ainda problemas muito gerais, que dificultem a visão clara de uma intervenção, devem passar por um processo de descrição e análise nos mesmos moldes do problema principal. Os descritores e indicadores dos nós críticos servirão como nortea-dores da avaliação dos resultados. Devem ser indicados os atores que controlam as variáveis dos nós críticos o que ajudará a verificar o grau de governabilidade, da qual depende o plano de ação do ator-eixo e o plano de demandas.

Imaginemos o seguinte exemplo:

O chefe de um posto de saúde (A1) de um bairro, com sua equipe processa o problema: “Alta mor-talidade por diarreia infantil” e, ao explicá-lo, encontra vários nós críticos (NC1, NC2...) sendo que alguns se encontram dentro de seu espaço de governabilidade e outros fora.

Podemos considerar os dois primeiros dentro, ou parcialmente dentro do espaço de governabilidade de A1 (chefe do Posto de Saúde), o terceiro e o quarto nós situam-se no espaço fora do problema, pois fazem parte da cadeia causal de vários problemas.

O último, inclusive, é um problema bem complexo que envolve em sua explicação processos socio-econômicos mais amplos, como baixo nível de renda, desemprego, políticas sociais excludentes etc. Enfrentá-lo apenas no espaço singular do nível local pode significar a princípio ações paliativas. É ne-cessário envolver o maior número de atores possível buscando uma intervenção mais integrada com outros âmbitos e setores e demandar dos níveis governamentais políticas específicas em diferentes áreas.

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Cabe destacar que quando o nó crítico selecionado está dentro do espaço de governabilidade do ator, é mais fácil enfrentá-lo, pois este controla os principais recursos dos quais dependem sua solução. Mas pode ocorrer que uma causa seja um nó crítico, isto é, de seu enfrentamento depende a mo-dificação dos descritores do problema, mas a intervenção direta não está ao alcance do ator-eixo. Alguns autores que adaptam o PES para o nível local optam por selecionar somente os nós críticos dentro do espaço de governabilidade do ator, na linha mais simplificada de métodos como o ZOPP, por exemplo. Contudo, consideramos que um ponto altamente positivo na proposta do PES é a bus-ca e construção de soluções criativas que envolvem a negociação com outros atores que controlem variáveis importantes na situação problemática. Portanto, se a causa tem um alto impacto sobre o problema, se existe oportunidade política de atuação e é possível intervir sobre ela, mesmo que es-teja fora do espaço de governabilidade do ator, vale a pena selecioná-la. A intervenção sobre este nó poderá situar-se em um plano de demandas e dependerá da capacidade de negociação, da criatividade do ator(es) interessado(s).

O momento normativo: as propostas de ação em diferentes cenários

Este é o momento de desenhar o plano de intervenção, ou seja, de definir a situação objetivo ou situação futura desejada e as operações/ações concretas que visam resultados, tomando como referência os nós críticos selecionados.

A situação-objetivo é portanto a nova situação a ser atingida (com os problemas modificados positi-vamente) através do Plano por Operações. Pode ser desenhada transformando-se os descritores do problema em novos indicadores desejados, os indicadores de resultado. Cada descritor deverá ser transformado num resultado esperado, como decorrência das prováveis intervenções sobre o proble-ma. Assim teremos um VDR (vetor de descrição de resultados) correspondente aos resultados finais a serem atingidos pelo plano como um todo e os resultados intermediários ao vetor de descrição dos nós-críticos modificados a serem alcançados através de cada operação/ações. Às vezes, é necessário complementá-la com um texto.

Vejamos a situação-objetivo no caso de Angra dos Reis:

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As operações constituem meios de intervenção ou conjuntos de ações que empregam vários tipos de recursos: organizativos, políticos, econômicos, cognitivos etc., que geram produtos e resultados. Os produtos podem referir-se a bens e serviços produzidos, a fatos políticos, a conhecimentos gerados ou transferidos, a normas, leis ou regulações criadas, a organizações, sistemas, obras realizadas etc. Geralmente, em cada operação predomina um tipo de produto. Os resultados correspondem ao im-pacto produzido sobre os descritores do problema. Por exemplo, o produto de uma operação “campa-nha de vacinação contra o sarampo” deve ser “x crianças vacinadas” e deve gerar o resultado: “aumento da imunidade” medido através da diminuição do número de casos da doença. É importante buscar indicadores (quantitativos e/ou qualitativos) como forma de medir os resultados para que não se fique em hipóteses ou divagações. As operações constituem-se em compromissos de ação.

Para cada nó-crítico deverão ser elaboradas uma ou mais operações que correspondem às propostas de intervenção sobre o mesmo. A operações deverão ser enunciadas de forma sintética e deverão expressar uma proposta de intervenção, através de verbos que expressem ações concretas. Por exem-plo, sensibilizar não indica uma ação concreta mas o resultado de uma ação anterior como “realizar campanha educativa”.

Cada operação será então desagregada (detalhada) em ações, que expressem com maior precisão o seu conteúdo. Para elaborar as ações o grupo deverá tomar como referência os descritores do nó-crítico.

Cada operação desagregada em ações deve ter seus produtos e resultados determinados, os respon-sáveis pelas ações, os recursos predominantes empregados e o tempo de realização definidos, o que pode ser feito já considerando-se o contexto ou cenário do plano, pois é importante observar que a situação desejada não se configura somente a partir das ações do ator em pauta mas de inúmeras con-dições que podem ser consideradas, através de uma análise de tendências e a partir da ação de outros atores. Por isso, decidimos conservar em nossa proposta para o nível local, a análise de cenários, ainda que de maneira simplificada.

Os cenários correspondem às possibilidades futuras de conformação do contexto que envolve o Pla-no. Para a construção dos cenários deve-se:

1-Enumerar as variáveis simples importantes para o problema em pauta, isto é, aquelas cujo compor-tamento poderá interferir negativa ou positivamente na realização das operações e ações do plano. Essas variáveis encontram-se fora do controle do ator principal e podem ser de caráter econômico, político, cultural etc., de acordo com os diferentes aspectos da realidade à que se refiram.

2-Explorar o comportamento futuro de cada variável enumerada, considerando as três possibilida-des: otimista, central e pessimista.

Por exemplo, para um projeto que necessite aprovação da prefeitura para habitações populares:

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É importante lembrar que uma única variável não conforma um cenário, mas a combinação de di-versas variáveis relevantes que se influenciam mutuamente. Por exemplo, no caso acima um cenário determinado por uma variável econômica, de maior ou menor recessão com certeza terá influência sobre os resultados do plano de habitação popular.

3-Combinar as diferentes possibilidades de comportamento das variáveis e construir três cenários possíveis que poderão constituir o contexto do plano.

4-Identificar o cenário mais provável de realização do plano.

A situação objetivo deve ser repensada à luz do cenário mais provável para o plano. Cada descritor deverá ser transformado num resultado esperado, como decorrência das prováveis intervenções so-bre o problema.

Por fim, deve-se analisar as possibilidades de realização das operações/ações e redefinir a Situação Objetivo (somente o VDR) para os demais cenários.

Tomando como referência o cenário mais provável, é necessário definir os recursos, produtos e re-sultados esperados para as ações elaboradas anteriormente. Deve-se ainda identificar os responsáveis pelas operações/ações e o tempo necessário à sua realização.

Os recursos deverão ser definidos de forma bem específica, por exemplo:

�� recursos políticos: decisão sobre realização de convênio de cooperação técnica;

�� recursos econômicos: 3 microcomputadores 486 com valor monetário estimado;

�� recursos cognitivos: conhecimento sobre montagem e manutenção de sistemas em rede.

Os produtos, como já afirmado, correspondem aos efeitos imediatos esperados para cada operação e ação. Expressam bens e serviços produzidos, devendo ser bem precisos e de preferência quantificados.

Os resultados correspondem aos efeitos finalísticos das ações (impacto) na situação analisada, espe-rados como consequência dos produtos alcançados.

Uma observação se faz necessária: os produtos e resultados são categorias relativas, isto é, são definidas em uma determinada situação, com base na análise de um determinado problema e na perspectiva de um dado ator. Espera-se que os resultados das ações sejam relacionados com os descritores do problema.

Devido à complexidade e ao tempo que se leva na aplicação da técnica de “cenários alternativos” pode-se optar pela seleção de variantes simples e pela combinação das mesmas na caracterização de um único cenário - o mais provável - para o qual serão pensadas opções dentro do plano de ação.

Contudo, é necessária a contínua revisão destas variantes no sentido de confrontar o comportamento previsto com o real para que quando houver desajustes se possa refazer o cenário e remodelar o pla-no. Esse procedimento se faz necessário concretamente no momento da implementação do plano, ou seja, no momento tático-operacional.

Sugerimos que esse seja o procedimento normal, a não ser em casos específicos, onde seja impossível ou muito difícil imaginar o cenário mais provável, havendo necessidade de preparar um plano com antecedência para duas ou mais possibilidades de cenário.

Nesse caso deve-se estabelecer:

a. a dependência das operações em relação às principais variantes simples que constituem o contexto do plano; aquelas operações menos sensíveis aos cenários não precisam ser redesenhadas;

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b. o comportamento mais provável das variantes críticas;

c. o programa direcional ou plano de ação para esse cenário.

Podem ainda ser consideradas as surpresas ou eventos que teriam baixa probabilidade de acontecer, porém com um forte impacto sobre o plano. Com relação às surpresas de alta probabilidade (numa escala deslocada, é claro) e alto impacto deve-se analisar a possibilidade de construir planos de con-tingência, levando-se em conta custos e oportunidades.

Finalmente, quando o plano é exigente em recursos financeiros, às vezes, devido às exigências com relação à apresentação da proposta orçamentária, é necessário (principalmente num plano de deman-das) contemplá-la em separado, destacando aquelas ações que dependem desses recursos.

As intervenções sobre os problemas que estão sob a governabilidade do ator principal fazem parte do plano de intervenção direta, o plano de ação. As operações sobre problemas que fogem ao controle do ator e estão fora do seu espaço de governabilidade devem constituir um plano de demandas.

O momento estratégico: construindo a viabilidade do plano

Nesse momento é realizada a análise de viabilidade do plano nas suas várias dimensões: política, econômica, cognitiva, organizativa. No momento anterior já é feita uma pré-análise de viabilidade mas agora é necessário um cálculo mais profundo através da simulação. Cabe lembrar a importância de uma análise de viabilidade bem feita em situações em que o ator não controla todos os recursos necessários para a realização do plano.

Caso a análise de viabilidade resulte negativa, indicando operações não viáveis é necessário pensar na construção de estratégias que possam torná-las viáveis. A estratégia é necessária tanto para as ope-rações que exigem cooperação com outros atores como para as de oposição e confronto e a escolha da melhor estratégia depende do tipo das operações e da relação de forças, ou seja, dos recursos que cada ator pode mobilizar a seu favor.

A análise de viabilidade parte de dois níveis:

a. da análise da motivação dos atores frente às operações do plano, o que significa registrar o interes-se que os atores têm em relação àquelas e o valor que lhes atribuem. O interesse é marcado com os sinais: a favor (+); contra (–) e indiferente (0) e o valor pode ser Alto (A), Médio (M) ou Baixo (B). É importante registrar o valor porque um ator contrário a um projeto, cujo valor para ele é alto, estará muito mais disposto a mobilizar recursos para que o mesmo não se realize do que se o valorizasse pouco. Assim também, com relação ao apoio de atores aliados, o valor também pode indicar o quanto estão dispostos a investir, a cooperar;

b. da análise do grau de controle dos recursos necessários à implementação das operações e ações por parte do conjunto de atores que as apoiam e do bloco que as rejeitam. Essa análise é aplicada às operações de conflito, identificadas através do sinal (–). Basta que haja um único sinal negativo, ou seja, um único ator contrário, mas que controle algum recurso crítico, para que a operação seja considerada de conflito.

As operações de consenso podem mais facilmente ser viabilizadas. Em relação às operações de con-flito, a definição de sua viabilidade fica em suspenso e vai depender da análise da relação de forças, ou seja, da força política de quem as apoia versus a força de quem se coloca contrário à sua realização e das estratégias desenvolvidas.

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O estudo da correlação de forças pode ser feito a partir do modelo do PES que propõe comparar o grau de controle dos recursos de poder envolvidos especificamente em cada uma das operações, fazendo a distinção entre recursos de decisão e recursos de materialização. É importante esta dife-renciação porque o nível de decisão de uma operação exige determinados tipos e recursos, ao passo que o nível de operacionalização ou funcionamento da proposta pode exigir recursos diversos. No nível de decisão, geralmente o recurso envolvido é o político, a capacidade de decisão para aprovação de um projeto. É importante observar que, para Matus, o poder não é um conceito abstrato. É um recurso multidimensional, pois refere-se à capacidade de ação em geral e situacional. Um mesmo ator pode ter poder numa situação ou com relação a uma operação especificamente e não ter nenhum ou pouco em outras. É dinâmico e portanto, a análise de poder não pode cristalizar-se pois os atores acumulam ou desacumulam poder e é necessário acompanhar as mudanças. Matus chama essa fase de análise do Vetor Peso.

Nessa fase é necessário distinguir os recursos relevantes para cada operação (somente esses recursos entrarão na análise) e distribui-los proporcionalmente entre o conjunto dos atores que apoiam e os que rejeitam as operações numa escala de 0 a 100%. Os recursos podem ser os mais diversos e rece-bem um código como por exemplo x1, x2, x3 etc., sendo que x1 pode significar o controle dos recur-sos financeiros de uma secretaria municipal de saúde, x2 pode ser o controle dos votos da maioria na câmara de vereadores dos quais depende a decisão política sobre alguma operação, x3 o controle da capacidade instalada para atendimento em saúde (leitos, enfermarias etc.).

O resultado dessa análise permite distinguir as operações de conflito viáveis das não viáveis. Com relação às não viáveis é necessária a construção de estratégias, especialmente se tais operações têm um papel fundamental na viabilização do plano como um todo.

Vejamos quais seriam os possíveis meios estratégicos. O PES nos aponta cinco possibilidades.

1. A utilização de estratégias específicas que podem ser classificadas, segundo Matus (1994b), em:

a. Imposição: corresponde ao uso da autoridade em relação ao outro ator; pode ser utilizada quando o ator eixo encontra-se em situação hierárquica superior ao ator contrário.

b. Persuasão: compreende uma ação de convencimento, de sedução em relação ao outro ator na busca de seu apoio e adesão, sem que para isto o ator eixo tenha que fazer qualquer concessão em relação ao seu projeto.

c. Negociação cooperativa: implica na negociação onde existem interesses distintos, quando ambos os lados deverão estar predispostos a fazer concessões, sendo que o resultado deverá trazer ganhos positivos para os participantes.

d. Negociação conflitiva: implica na negociação onde existem interesses opostos e o resultado sempre trará perda para um ator e ganho para outro.

e. Confrontação: corresponde à medição de força entre os atores envolvidos (votação, por ex.).

2. A utilização das operações de consenso como “coringas”, em qualquer momento da trajetória do plano, de forma inteligente, visando acumulação de forças.

3. A construção de operações tático-processuais (K) que não fazem parte do plano propriamente dito mas cumprem o objetivo de construir a viabilidade das operações principais. Podem ser de vários tipos dependendo do efeito que produzem, como por exemplo, surpresa, distração, esclarecimen-to, intimidação e mobilização.

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4. A elaboração da operações em forma de módulos que se adaptem às mudanças do plano e do cená-rio, modificando-se determinados aspectos para atingir os objetivos previstos.

5. A trajetória ou ordenação temporal das operações. A melhor trajetória é a que respeita a prece-dência de determinadas operações e permite uma acumulação progressiva de poder que ajude na viabilização do plano.

As estratégias devem ser voltadas para os atores contrários à ação ou para aqueles indiferentes, vi-sando a busca de apoio. Pode ser empregado mais de um tipo de estratégia, como por exemplo, a de autoridade conjugada com uma estratégia de persuasão. Sempre que possível, segundo Matus, é preferível evitar a confrontação direta e o conflito aberto pelo alto desgaste que pode significar. Melhor é investir em estratégias de negociação e cooperação na busca de maior apoio e legitimação para os projetos.

A construção de um encadeamento lógico e estratégico das ações corresponde à montagem da traje-tória estratégica, o que permite ao ator eixo acumular poder ou evitar o desgaste político, facilitando o desenvolvimento de cada ação do plano. De forma prática, a trajetória busca combinar da melhor maneira possível, num dado horizonte temporal, operações consensuais e operações conflitivas de modo que as operações consensuais possam abrir caminho para as outras. É necessário definir um período de tempo para a realização do plano.

A trajetória poderá ser elaborada graficamente, utilizando-se apenas os símbolos que representam as operações interligadas por setas, onde “T” significa um período de tempo, no caso, de seis meses; OP = operação 1, 2 etc. e “a” refere-se às ações.

As estratégias utilizadas em relação aos atores podem mudar ao longo do tempo, o que deve ser ob-servado, atualizando-se a informação. Da mesma forma, a trajetória pode ser alterada.

O momento tático-operacional: a gestão do plano

Elaborado o plano (flexível e adaptável à conjuntura), feita a análise de viabilidade, chega-se ao mo-mento da ação, da implementação do plano. Lembremos que, na visão do PES, planejamento e gestão são inseparáveis, o plano não é o desenho no papel, mas um compromisso de ação que visa resulta-dos, impacto nos problemas selecionados, que se traduzem em novas situações mais favoráveis do que a situação inicial.

Para acompanhar a realização do plano de maneira a produzir impactos reais, são necessárias formas adequadas de gerenciamento e monitoramento.

Consideramos que os três principais sistemas que Matus apresenta ao discutir a Teoria das Macro-organizações e que conformam o “triângulo de ferro” são também fundamentais para o nível local (Artmann, 1993).

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1. A Agenda do Dirigente: em nível local o “dirigente” pode ser uma equipe de trabalho responsável pelo plano. Ela deve se preocupar com os problemas e questões importantes e delegar os demais. Não devemos esquecer que estamos tratando de planejamento estratégico, portanto o plano é sele-tivo, trata das questões estratégicas, sendo que todas as demais devem fazer parte da programação de atividades que é extensiva. As questões estratégicas e as questões de rotina devem ser tratadas de forma diferenciada. Se todos se preocupam com tudo com a mesma intensidade, no mínimo, não se alcançam soluções criativas. Essa questão é fundamental, pois é muito comum os dirigen-tes gastarem praticamente todo o tempo com urgências/emergências e negligenciarem o que é importante e estratégico. As questões urgentes sempre parecem importantes pela premência do tempo, mas, sem a concentração da atenção e do tempo nos problemas estratégicos, não é possível alcançar a situação objetivo.

2. Sistema de Petição de Prestação de Contas: em cada instituição local, em cada departamento, até no nível mais descentralizado deve imperar o hábito - como rotina formal - de pedir e prestar contas sobre cada atividade. Deve-se prestar contas regularmente do andamento das operações que compõem o plano. Para que a prestação de contas se efetive realmente, deve haver alguém que tenha a função de solicitar e pessoas concretamente responsáveis pelas operações e cada uma das ações do plano. Por isso a ênfase no momento normativo do desenho das operações na responsa-bilização pessoal pelas atividades.

3. Sistema de Gerência por Operações: deve constituir-se em um sistema recursivo, até os níveis mais operacionais (ações, subações) guiado pelo critério de eficácia, ou seja, como as operações e ações realizadas afetam o VDP dos problemas. Sem esta responsabilização, torna-se impossível a avaliação do grau de realização do plano e das necessidades de adaptação ou possível revisão me-diante mudanças na situação.

Ao lado desses, é fundamental o Sistema de Monitoramento ou Acompanhamento e Avaliação do Plano, o qual vai suprir as demandas de informação dos outros sistemas acima e permitir avaliar o desenvolvi-mento do plano tanto em relação aos seus resultados finais quanto aos seus processos intermediários.

Vale ressaltar que a informação, apoiada nos diversos sistemas de informações disponíveis não é im-portante apenas no momento tático-operacional mas em todo o processo de planejamento. A partir do momento explicativo, a informação apoia a seleção dos problemas estratégicos; no momento normativo fornece os parâmetros e normas para questões de saúde, por exemplo e no estratégico informa sobre a viabilidade econômica, organizativa, cognitiva etc. Pode funcionar como um recurso de conhecimento a ser utilizado estrategicamente.

Um princípio muito importante defendido por Matus e que deve necessariamente ser observado é o da redução da variedade de informações, ou seja, a necessidade de trabalhar com informação seletiva de forma inteligente para que o ator não se perca em milhares de dados inúteis. Isso vale tanto para sistemas in-formatizados que já se baseiam nesse princípio - como para a informação trabalhada em nível “manual”.

As variáveis a serem monitoradas, segundo o PES, são:

�� os descritores do problema;

�� os descritores dos nós-críticos;

�� a implementação das operações considerando recursos e produtos e o tempo;

�� os processos relacionados à aprovação e implementação das operações como aprovação de ações, alocações de recursos, designação de responsabilidades etc.;

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�� o comportamento das variantes (cenários) e a possibilidade de surpresas;

�� a evolução estratégica do plano através de verificação dos resultados das estratégias implementadas e a necessidade de modificações.

Apresentamos uma matriz como exemplo de monitoramento geral de um plano mas recomendamos que quando necessário, sejam desenhados formatos específicos para acompanhamento de variáveis estratégicas e para a prestação de contas.

Matriz indicadores de acompanhamento do plano

A matriz “Série Comparada” exige uma análise específica de cada descritor a partir da prestação de contas sistemática que permita a construção de uma série comparada. Essa lógica deve ser aplicada à análise do desenvolvimento das operações.

Nem sempre é possível trabalhar com sistemas informatizados e sofisticados. Devido ao alto custo na produção, distribuição e utilização de informações, muitas localidades do país ainda estão muito longe do acesso a esse tipo de sistemas. Contudo, sempre é necessário trabalhar com informações e a melhoria da qualidade dessas informações deve ser vista de forma prioritária em qualquer realidade. Na ausência do acesso a tecnologias mais avançadas, deve-se trabalhar a informação através de processos mais arte-sanais e buscar a produção principalmente daquelas necessárias ao acompanhamento do plano.

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6. Considerações finais

Numa realidade fragmentada e permeada por questões complexas, onde os problemas sociais se multiplicam, exigindo o posicionamento dos diferentes atores, inclusive da comunidade organizada no exercício de sua cidadania na busca de soluções mais integrais, torna-se necessário um enfoque de planejamento abrangente e participativo que possa dar conta dessa complexidade e que favoreça a articulação dos distintos setores no enfrentamento dos problemas.

Iniciativas como os Projetos Multissetoriais Integrados, do BNDES, entre outras, que ampliam a perspectiva com relação à abordagem das questões sociais representam um desafio e precisam ser apoiadas com metodologias e técnicas adequadas.

Procuramos ao longo do texto argumentar a favor de uma visão ampla e descentralizada da reali-dade problemática. Consideramos o PES como um enfoque capaz de proporcionar os instrumentos de análise dos problemas bem como ferramentas operacionais para o enfrentamento dos mesmos e destacamos as questões, a seguir.

A explicação situacional proporciona uma metodologia de análise da realidade que equivale a um enfoque multidisciplinar e que aponta para a necessidade de captar a problemática social como resul-tante de um entrelaçamento de setores e que não pode ser reduzida a um processo de departamen-talização analítica.

A técnica de análise de cenários e o desenho modular e flexível do plano favorecem uma adaptação frente às mudanças conjunturais. A análise e construção de viabilidade proposta pelo enfoque per-mite a identificação de recursos críticos e dos atores potencialmente envolvidos no plano de ação, os quais não se restringem necessariamente a órgãos governamentais, ampliando-se o foco de interven-ção. Diante da baixa governabilidade do ator principal, o PES não propõe o abandono do plano. Uma das possibilidades de ampliação da governabilidade sobre o plano é a busca de adesões, considerando tanto atores vinculados a órgãos de governo, como atores da sociedade civil, desde que relevantes para a situação problemática em pauta. Portanto, em situações aonde o controle das variáveis rele-vantes está distribuído entre vários atores, a capacidade de negociação e a ampliação dos processos comunicativos torna-se essencial.

Articulada à questão acima está a necessidade, portanto, de transitar entre a linguagem especializa-da e a linguagem comum, traduzir categorias e conceitos teóricos de maneira acessível, bem como tratar e interpretar com um certo rigor as questões trazidas pelos diferentes grupos/atores que par-ticipam do processo de planejamento. Observamos, ainda, que o PES, sendo um enfoque flexível, permite a utilização de outras técnicas ou enfoques que complementem a análise dos problemas bem como facilitem a construção de propostas participativas e a busca de adesão ao plano de ação.

Outra questão importante relaciona-se à dinamicidade da realidade e à consequente necessidade de não cristalizar a análise e as propostas de ação. A permanente avaliação dos impactos através de indicadores desenhados especificamente para acompanhar e monitorar o plano possibilita a sua atua-lização e correção para que não se desvie da situação objetivo.

Por último, reafirmamos que o maior ou menor sucesso do plano depende, além de variáveis não con-troláveis do cenário, da definição clara de responsabilidades, de mecanismos e dispositivos de prestação regular e sistemática de contas, da competência comunicativa e da flexibilidade frente às mudanças.

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ARTMANN, E., AZEVEDO, C.S. & SÁ, M.C., 1997. Possibilidades de aplicação do enfoque estratégico de planejamento no nível local de saúde: análise comparada de duas experiências. Rio de Janeiro: Cadernos de Saúde Pública, 13(4):723-740, out-dez, 1997.

GADAMER, 1975. Truth and Method apud Matus, C., 1987.

MATUS, C., 1982. Política y Plan. Caracas: Iveplan.

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DADOS E INFORMAÇÃO EM SAÚDE: PARA QUE SERVEM?1

SELMA MAFFEI DE ANDRADEDARLI ANTONIO SOARES

A informação é necessária para qualquer decisão que tomemos em nossa vida cotidiana. Afinal de contas, não seria bom acreditar na previsão do tempo de que vai chover, hoje, e levar o guarda-chuva?

Fazendo um paralelo com a área da saúde, informações também são imprescindíveis para que tome-mos as decisões corretas para melhorar o nível de saúde de uma determinada população. Esta po-pulação pode ser a do bairro no qual moramos ou trabalhamos, de uma cidade, de um país, de uma escola ou até de um presídio.

Para termos a informação necessária, precisamos de dados. No entender de alguns autores (LAU-RENTI et al., 1987; MORAES, 1994), os “dados” se diferenciam de “informação”, que por sua vez se diferencia de “indicadores”, isto é:

Dados: são a “matéria-prima” da informação, ou seja, são valores ainda não trabalhados. Uma relação de nascidos vivos segundo a idade materna e o peso ao nascer constitui-se um exemplo de “dados”.

1 Publicado originalmente em: ANDRADE, Selma Maffei de; SOARES, Darli Antonio. Dados e informação em saúde: para que servem? In: ANDRADE, Selma Maffei de; SOARES, Darli Antonio; CORDONI JUNIOR, Luiz. Bases da saúde coletiva. Londrina: UEL, 2001. p. 161-181.

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Informação: é a tradução dos dados, após estes serem trabalhados, de forma que permita alterar o conhecimento de outras pessoas. Faz o papel de “ponte” entre os dados e os usuários dessa infor-mação (MORAES, 1994). A informação refere-se à descrição de uma situação real associada a um referencial explicativo, ou seja, representa uma realidade com vistas a explicar ou entender situações e problemas, de forma a possibilitar intervenções (MOTA e CARVALHO, 1999). Evidentemente, as formas de explicar e entender as situações e problemas, tendo como base a informação, pode variar, dependendo da experiência e “visão de mundo” (juízo de valor) de cada um. Como exemplo, a infor-mação sobre a proporção de nascidos vivos com baixo peso ao nascer (inferior a 2500 gramas) pode revelar a problemática de gestantes em risco nutricional e contribuir para a implantação de serviços que visem à redução desses problemas de saúde (MOTA e CARVALHO, 1999).

Indicadores: são a quantificação da realidade, que permite comparar níveis de saúde entre diferen-tes populações, ou ao longo do tempo (MORAES, 1994). Os indicadores também derivam de dados e são um dos instrumentos para gerar informações.

Dessa forma, poderíamos esquematizar o “caminho” a ser percorrido desde a coleta dos dados até a ação necessária para corrigir uma determinada situação ou problema (ação), a qual, por sua vez, poderá levar a uma necessidade de maior detalhamento desses dados ou até mesmo de novos dados, num processo dinâmico:

Na área de saúde, geralmente, trabalhamos com “números” para avaliar o nível de saúde de uma população, produzindo os chamados “indicadores de saúde”. Quando os casos de doenças ou eventos acontecem, estes entram na contagem, inicialmente, como valores brutos (por exemplo 550 casos de dengue). Valores brutos, apesar de importantes para o planejamento de recursos a serem gastos com o tratamento/seguimento dos casos (consultas, medicamentos, leitos hospitalares, etc.), não permi-tem a realização de comparações com outros locais, entre grupos de pessoas ou em um mesmo local ao longo dos anos, pois a população exposta ao risco de adquirir a doença ou sofrer o agravo pode ser diferente em tamanho. Exemplificando: 100 casos de uma doença em Londrina é, proporcional-mente, mais preocupante do que 100 casos da mesma doença em São Paulo, porque a população de São Paulo é muito maior que a de Londrina.

Assim, usamos uma “padronização”, de forma que o valor numérico possa ser comparado. Dizemos: ocorreram “x” casos da doença por 100.000 habitantes. Os 100.000 habitantes correspondem à

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mesma quantidade em qualquer local. Dessa forma, os indicadores são construídos por meio de uma razão (frequência relativa), em forma de proporções ou coeficientes, representados a seguir.

Onde:

�� o numerador é representado por casos da doença, óbitos, nascidos vivos com baixo peso, etc. (evento que estamos estudando)

�� o denominador é, geralmente, representado pela população exposta ao risco de sofrer o evento descrito no numerador (quando se trata de coeficiente) ou o total de casos (quando for proporção).

�� 10n = dez elevado à potência 2, 3, 4, etc., resultando em 100, 1.000, 10.000 100.000, etc.; ser-ve, em geral, para que o resultado da divisão não seja um valor muito fracionado, principalmente quando é grande a diferença entre o numerador e o denominador (numerador com valor muito pequeno para um denominador com valor muito alto).

É importante ressaltar que o numerador e denominador devem se referir à mesma área geográfica (cidade, país, etc.) e ao mesmo período de tempo.

As proporções são bastante utilizadas na área de saúde, ainda que, geralmente, não estimem o “ris-co” da população exposta sofrer o evento do denominador (o que é feito por meio de coeficientes). São calculadas através de regra de três simples:

Exemplos de proporções utilizadas na área de saúde: mortalidade proporcional por determinada cau-sa, proporção de nascidos vivos com baixo peso ao nascer, mortalidade proporcional de menores de 1 ano, mortalidade proporcional de 50 anos ou mais (Indicador de Swaroop e Uemura), etc.

Por exemplo, se quisermos calcular o Indicador de Swaroop e Uemura (proporção de óbitos com idade igual ou maior a 50 anos), realizamos os cálculos da seguinte regra de três:

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Os coeficientes também são construídos em forma de razões e, geralmente, o denominador re-presenta a população exposta ao risco de sofrer o evento que está no numerador. Grande parte dos coeficientes necessita, no denominador, de dados sobre o número de habitantes. Esse número é, geralmente, obtido através dos recenseamentos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) ou através de estimativas nos anos entre os Censos. Para o cálculo, estima-se a população para o meio do ano (01 de julho), através de diferentes métodos, pressupondo que este valor médio é o que melhor representa a população exposta em todo o ano (LAURENTI et al., 1987).

Para calcular um coeficiente, basta saber qual o tipo de denominador (habitantes, nascidos vivos, mulheres em idade fértil, etc.) que será utilizado e que representa a população sob risco de sofrer o evento que está no numerador. Habitantes e nascidos vivos são os denominadores mais utiliza-dos para cálculo de coeficientes em nível da população.

Ao invés de usarmos a fórmula, podemos também calcular por regra de três simples. Se numa popu-lação de 50.000 habitantes temos 10 óbitos por diarreia infecciosa, podemos calcular o coeficiente de mortalidade específico por diarreia infecciosa, nessa população, utilizando o padrão de 10n (no presente caso, 100.000 habitantes):

Observe que os 100.000 habitantes tornam-se a base para que possamos fazer comparação entre lo-cais com diferentes tamanhos de população e representam o 10n colocado na fórmula de proporções e coeficientes, sendo que, no presente caso, foi 105.

Como referido, o 10n é utilizado, em geral, para que o valor do resultado da divisão entre o numera-dor/denominador não seja muito fracionado (pequeno), mas o valor do “n” também pode ser usado para evitar que esse resultado seja muito grande (200, por exemplo). No caso do coeficiente de mor-talidade específico por diarreia infecciosa, cujo resultado deu 20,0 por 100.000 habitantes, se não multiplicássemos por 100.000 (105), o resultado seria 0,0002 (10 dividido por 50.000). Esse valor (0,0002) é muito mais difícil de ser comparado do que 20,0 por 100.000 habitantes.

Imaginemos agora duas situações: uma doença que tem baixa incidência na população (raiva humana) e outra que tem alta prevalência (verminose). Imaginemos que numa população de 7.000.000 de habitantes ocorreram 7 casos de raiva humana e que 3.500.000 tinham verminose. As formas de apresentação dessas informações (todas corretas) estão descritas no Quadro 1:

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QUADRO 1 – Coeficientes de incidência da raiva humana e de prevalência da verminose em uma dada população, em determinado ano, em diferentes formas de apresentação

As opções assinaladas com o asterisco (*) são as mais convenientes para utilização: no caso da raiva humana, cuja diferença entre numerador e denominador é muito grande, usamos um valor maior para multiplicação e, no caso da verminose, cuja relação entre numerador e denominador é menor, usamos um valor mais baixo de multiplicação.

Em alguns coeficientes, não podemos alterar este valor de 10n, pois, por convenção internacional, este valor é fixo. Por exemplo, no caso do coeficiente de mortalidade infantil está estabele-cido, internacionalmente, que o valor do parâmetro de comparação é por 1.000 nascidos vivos.

Exemplos de alguns coeficientes utilizados na área de saúde: coeficiente de mortalidade infantil, coeficien-te de mortalidade por determinadas causas (suicídios, infarto do miocárdio, câncer de pulmão, etc.), coeficiente de mortalidade materna, coeficiente de incidência, coeficiente de prevalência, etc.

É importante destacar, todavia, que nem toda informação em saúde provém de dados quantificáveis. Dados de natureza qualitativa (opiniões, percepções e relatos) são também importantes para o co-nhecimento de uma dada realidade (MOTA e CARVALHO, 1999).

Por outro lado, por problemas diversos, nem todos os dados se transformam em informação útil. Entre esses problemas destacam-se o excesso de dados coletados (com pouca análise), a baixa qua-lidade desses dados, o atraso na análise e comunicação da informação, fazendo com que se percam oportunidades de intervenções apropriadas nos momentos certos (falta de oportunidade), além de, muitas vezes, não serem captados todos os eventos que acontecem (baixa cobertura). Nesse contexto, para uma adequada organização de dados na área específica da saúde, é imprescindível determinar que dados são necessários (priorizar) a fim de evitar muita coleta e pouca análise, e que esses dados tenham uma boa cobertura, qualidade e que sejam oportunos.

Como exemplo de “qualidade” da informação, poderíamos citar o exemplo da cidade de Londrina: de 1990 a 1993, as “causas mal definidas” de óbito se situavam em segundo ou terceiro lugar entre as principais causas. Como, então, usar a informação sobre mortalidade para tentar reduzir ou evitar as principais causas de morte (informação para ação) se a cidade não sabia do que muitos de seus ci-dadãos morriam? Depois disso, foi criado o Núcleo de Informação em Mortalidade (NIM), que vem checando as declarações de óbito e realizando investigação, sempre que necessário, para confirmar a verdadeira causa básica de óbito da pessoa que morreu. Observe a Figura 1, a seguir, e veja como as causas mal definidas ou ignoradas foram reduzidas em 1995, após a criação deste Núcleo.

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Já a “cobertura” dos problemas de saúde refere-se à proporção de casos ou eventos que se consegue captar em relação ao que realmente ocorre na população. Dessa forma, devemos lembrar que algu-mas doenças podem ter vários casos assintomáticos (um exemplo é a cólera). Assim, os casos com sintomas são apenas uma parcela do total de casos que realmente acontecem (casos sintomáticos e as-sintomáticos). Entre os casos sintomáticos, ainda, pode ser que vários não procurem ou não tenham acesso ao serviço para tratamento. Desses que chegam até o serviço, pode ser, ainda, que uma pro-porção não tenha o diagnóstico correto feito. E, mesmo entre aqueles que tiveram o diagnóstico cor-reto feito, podem ainda ocorrer casos não informados ao sistema de informação sobre aquela doença ou agravo. O que sobra (com diagnóstico e informados) representa, portanto, a “ponta de iceberg” do que acontece em termos de doença na população. A proporção de casos que não são notificados é conhecida como “subnotificação” e a proporção de casos em que o agravo não é registrado (por exemplo, um óbito de criança menor de um ano) é conhecida como “sub-registro”.

FIGURA 1 – Mortalidade proporcional por causas mal definidas, causas externas de tipo ignorado e neoplasias de tipo ignorado de residentes em Londrina, em 1992 e 1995.

Como exemplo de sub-registro, temos casos de existência de cemitérios clandestinos, em alguns lo-cais do Brasil, nos quais as pessoas são enterradas sem a exigência (que é estabelecida por legislação) do atestado de óbito. Outro exemplo de sub-registro é a criança que nasce viva e morre após alguns minutos. Muitos desses casos são classificados, erroneamente, como “nascidas mortas”, interferindo no cálculo do coeficiente de mortalidade infantil, um dos principais indicadores da área de saúde.

Com relação à oportunidade dos dados, como o próprio nome sugere, estes têm que ser conheci-dos por quem vai fazer a ação antes que seja muito tarde (intervenção em tempo hábil). Por exemplo, um caso de sarampo tem que ser imediatamente comunicado aos responsáveis pela Vigilância Epide-miológica da Unidade de Saúde ou da cidade, pois há necessidade de estabelecimento rápido de ações de controle (bloqueio da transmissão) para os comunicantes do caso.

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Levantamento de dados (tipos e fontes)

Os levantamentos de dados podem ser de três tipos: contínuos, periódicos e ocasionais (BERQUÓ et al., 1981).

�� Levantamentos contínuos: quando os dados vão sendo registrados à medida em que ocorrem. Exemplos: óbitos, nascimentos, casamentos, divórcios, doenças de notificação obrigatória.

�� Levantamentos periódicos: são aqueles que acontecem periodicamente. Exemplo: recensea-mento da população pelo IBGE, que é realizado, em geral, a cada 10 anos.

�� Levantamentos ocasionais: são realizados sem a preocupação de continuidade ou periodici-dade certa. Exemplos: pesquisas que geram dissertações de mestrado, inquéritos domiciliares, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD).

Tipos de dados

Com relação às fontes onde os dados podem ser obtidos, estes se dividem em:

�� Dados secundários (ou de fonte secundária): quando os dados já são existentes (arquivados, registrados, processados ou publicados). Por exemplo, ao estudar a incidência do sarampo com base nos casos registrados pelo serviço de saúde de um município, diz-se que está se trabalhando com dados secundários.

�� Dados primários (ou de fonte primária): são os dados que são levantados diretamente na po-pulação pesquisada. Por exemplo, um pesquisador vai coletar sangue na população para verificar a prevalência de anemia ferropriva. Outro exemplo: levantamento de opiniões da população sobre o serviço de puericultura prestado na Unidade Básica de Saúde.

Atualmente, há consenso de que a informação em saúde não se refere somente à produzida pelo setor Saúde.

“Na prática, fica muito difícil delimitar o campo de abrangência das informações em saúde.

Adotando o conceito ampliado de Saúde também devem ser entendidas e consideradas como informações em saúde, aquelas acerca de alimentação, moradia, saneamento, etc., ou seja, acerca das condições gerais de vida e trabalho.” (Moraes, 1994)

Dados relacionados à qualidade de vida (incluindo as desigualdades sociais), embora mais difíceis de serem obtidos, são também importantes para avaliação do nível de saúde. Nestes se incluem as condições demográficas, alimentação, educação, condições de trabalho e emprego, transporte, condições de moradia e saneamento, lazer e segurança, acesso aos serviços de saúde, entre outros,

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enfim, condições que se relacionam às políticas de desenvolvimento social e econômico e às políticas de saúde (LAURENTI et al., 1987; MORAES, 1994; MOTA e CARVALHO, 1999).

Sistemas de informação em saúde

Uma das definições do dicionário “Aurélio” (FERREIRA, 1986) diz que sistema é a “disposição das partes ou dos elementos de um todo, coordenados entre si, e que funcionam como estrutura orga-nizada” e, outra, refere que é um “conjunto ordenado de meios de ação ou de ideias, tendente a um resultado; plano; método”. Dessa forma, um sistema de informação em saúde pode ser considerado como “um conjunto de componentes que atuam integrada e articuladamente e que têm como propó-sito obter e selecionar dados e transformá-los em informação” (MOTA e CARVALHO, 1999). Mo-raes (1994) complementa que essa informação deveria ser a “necessária para o processo de decisões, próprio das organizações e indivíduos que planejam, financiam, administram, proveem, medem e avaliam os serviços de saúde”.

Essas definições nos remetem, primeiramente, à necessidade de articulação entre os diferentes níveis do sistema de saúde (municipal, estadual e federal) na organização e funcionamento de um sistema nacional de informação em saúde. Evidentemente, a parte que vai ser responsável por coletar e, se possível, aprimorar os dados em saúde será o nível municipal, dado que é no município que os even-tos acontecem e os dados são coletados, muitas vezes processados (digitados), e encaminhados, pos-teriormente, ao nível estadual que, por sua vez, os encaminhará para o nível federal, para comporem o quadro geral de informações no país.

Em segundo lugar, mas não menos importante, a informação deve ser utilizada, também, por todos os indivíduos envolvidos no planejamento, gestão (administração) e avaliação dos serviços de saúde, pois a informação não é um fim em si mesma, mas um meio para, em última instância, melhorar o nível de saúde das populações para as quais essas informações são produzidas.

Não devemos nos esquecer, neste contexto, que a informação sobre a avaliação da situação de saúde deve ser disponibilizada aos próprios usuários dos serviços de saúde, os quais, por meio de instâncias de controle social (como o Conselho Municipal de Saúde), podem interferir mais efetivamente nas decisões setoriais a serem tomadas. Apesar de parecer óbvia esta afirmação, é importante ressaltar que na época da ditadura militar, no Brasil, houve, durante muito tempo (meses), proibição de veicu-lação de informação sobre a ocorrência de casos de meningite meningocócica em São Paulo, no início da década de 1970. Ainda hoje, alguns dirigentes da área de saúde (secretários municipais ou esta-duais) obstaculizam ou até impedem a divulgação correta de dados sobre seu município ou estado.

Outro aspecto que deve ser mencionado é o “retorno” da informação para aqueles que a produzem (quem atende o paciente e registra a informação), pois somente assim essa informação será realmente valorizada e aprimorada. Assim, para quem registra ou coleta os dados brutos, que serão transforma-dos posteriormente em informação, além da necessidade de estar claro como coletar a informação, deveriam estar claras, também, as respostas a duas perguntas que nos faz MORAES (1994): “Por que se registra esta informação?” “Para que será utilizada?” [grifo nosso].

As Nações Unidas (apud MORAES, 1994, p. 30) recomendam, dessa forma, para um adequado fun-cionamento de um sistema de informação em saúde, que:

1. os procedimentos de coleta [dos dados] devem estar convenientemente normatizados;

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2. os manuais de operação devem prever todas as situações possíveis;

3. as pessoas responsáveis pelas atividades devem conhecer a importância do que fazem, em relação a todo o sistema;

4. deve haver supervisão e assessoria adequadas.

A Figura 2, extraída de Moraes (1994), ilustra o fluxo geral para a produção de informações, desde a origem dos dados (coleta) até as opções de decisão, com consequente retorno para a origem dos dados, redefinindo-os, se necessário.

No Brasil, há diversos sistemas de informação de interesse à saúde coordenados por órgãos do gover-no federal, como os sobre população: os censos demográficos (coletados e consolidados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE), a pesquisa nacional de amostra de domicílios (PNAD) realizada periodicamente, os levantamentos sobre assistência médico-sanitária (AMS), entre outros (MOTA e CARVALHO, 1999). Há, ainda, outros órgãos de abrangência nacional que consolidam informações importantes para a área da saúde: o IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), o Ministério da Previdência e Assistência Social, e outros.

FIGURA 2 – Fluxo dos dados para a produção de informação

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O Sistema Único de Saúde (SUS) conta com sistemas específicos, gerenciados pelo Ministério da Saúde. Entre estes se destacam o sistema de informação sobre mortalidade (SIM), sobre nascidos vivos (SINASC), sobre agravos de notificação obrigatória (SINAN), sobre serviços e atendimentos ambulatoriais (SIA) e sobre internações hospitalares (SIH) (MOTA e CARVALHO, 1999).

Três dos sistemas específicos da área de saúde (o SIM, SINASC e SINAN) são gerenciados, em nível nacional, pelo Centro Nacional de Epidemiologia (CENEPI) e dois (SIA e SIH) pela Secretaria de As-sistência à Saúde, ambos órgãos do Ministério da Saúde. O desenvolvimento da tecnologia e suporte aos programas de computador são feitos pelo Departamento de Informática do SUS, mais conhecido como DATASUS (MOTA e CARVALHO, 1999).

O Quadro 2 representa os sistemas nacionais específicos de informação em saúde, com as suas res-pectivas referências, fonte dos dados e origem.

QUADRO 2 – Sistemas Nacionais de Informação em Saúde, Brasil: referência, fonte e origem dos dados*

O Sistema mais antigo, criado em 1975, é o Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), sendo um dos mais utilizados para avaliação do nível de saúde. Origina-se da declaração de óbito e uma das variáveis mais importantes é a causa básica do óbito. O conhecimento da causa básica é importante para fins de prevenção, pois a causa básica significa, para mortes por causa natural, “a doença ou lesão que iniciou a cadeia de acontecimentos patológicos que conduziram diretamente à morte” ou, para mortes por causas não naturais, também chamadas de causas externas, “as circunstâncias do acidente ou violência que produziu a lesão fatal” (OMS, 1993) [grifos nossos].

Assim, se soubermos qual a doença ou evento que começou todo o processo que levou ao óbito, poderemos tentar intervir precocemente nessa cadeia de eventos, prevenindo a causa inicial e, conse-quentemente, os processos decorrentes dessa causa que acabam por ocasionar a morte. Um exemplo é um caso de sarampo que complicou, levando a uma broncopneumonia e, depois, insuficiência res-piratória, causa final que ocasionou o óbito de uma criança. Nossa meta, portanto, deve ser prevenir o sarampo (que é a causa básica), para evitar os dois processos posteriores (broncopneumonia e insuficiência respiratória). Outro exemplo (de causa não natural, ou causa externa) é o pedestre que

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foi atropelado por caminhão, teve traumatismo craniano e hemorragia cerebral. A causa básica será, portanto, as circunstâncias do acidente (pedestre atropelado por caminhão), sendo as demais causas (traumatismo intracraniano e hemorragia cerebral) decorrentes desse acidente.

Para classificar a causa básica e demais causas de óbito informadas numa declaração de óbito, antes desses dados entrarem no sistema de informações, faz-se necessário o uso de uma codificação que seja internacional, a fim de proporcionar consistência e comparabilidade. Para isso, usamos a Classi-ficação Internacional de Doenças (CID).

A primeira classificação de doenças de uso internacional foi aprovada em 1893 e, desde essa época, vem sendo revista periodicamente (LAURENTI, 1991), seja no sentido de detalhar mais as doenças, seja para incorporar novas doenças antes desconhecidas, como aconteceu, recentemente, com o caso da Aids.

A última revisão internacional (a décima), conhecida como CID-10 (OMS, 1993), foi aprovada em 1989 e entrou em vigor, para uso de codificação dos dados de mortalidade, no Brasil, em 1996. A atual CID-10 contém um total de 2.032 categorias de doenças, causas externas e motivos de contatos com serviços de saúde (contra apenas 179 da primeira versão de 1893) (LAURENTI, 1991), com códigos alfanuméricos (por exemplo: tétano neonatal = código A33), sendo estes classificados em 21 capítulos (agrupamentos de causas), conforme apresentados no Quadro 3. No exemplo dado (tétano neonatal), este se inclui no capítulo das doenças infecciosas e parasitárias (Capítulo I), juntamente com outras do-enças infecciosas e parasitárias (toxoplasmose, diarréias infecciosas, Aids, tuberculose, hepatites, etc.).

QUADRO 3 – Capítulos da Classificação Internacional de Doenças, décima revisão (CID-10)*

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A CID-10 pode ser utilizada também para a codificação dos dados de doenças (morbidade) e por contatos com os serviços de saúde (para pré-natal ou vacinação, por exemplo), sendo já utilizada nas internações do SUS (Sistema de Informações Hospitalares – SIH) e até por convênios médicos, como a Unimed.

O Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (SINASC) foi implantado em 1990 no Brasil e, em Londrina, em 1 de setembro de 1993 (MELLO JORGE et al., 1997). Vem se constituindo em um importante instrumento de avaliação do perfil de nascidos vivos e para a vigilância de recém-nascidos que possam apresentar maior risco de adoecer ou morrer.

Em Londrina, as Declarações de Nascidos Vivos (DN) são recolhidas pelo Serviço Municipal de Saúde, nos próprios hospitais onde as crianças nascem, praticamente todos os dias. Posteriormente são codi-ficadas e digitadas na Diretoria de Informações em Saúde (DIS) e comunicadas as Unidades Básicas de Saúde (de forma online, por intermédio do sistema Hygia do Serviço Municipal de Saúde) sobre nasci-mentos de crianças “de risco” em suas áreas de abrangência, quando estes ocorrem, para agendamento de consulta precocemente e busca ativa da criança, se for o caso. Esses critérios de riscos foram esta-belecidos quando da implantação do SINASC em Londrina, sendo redefinidos recentemente, ficando, dessa forma, os seguintes critérios: crianças com peso ao nascer igual ou abaixo de 2700 gramas, de mães com 18 anos ou menos, nascidas prematuras, com Apgar no quinto minuto menor ou igual a 7, ou por algum outro critério definido pelo médico do hospital. Além disso, toda semana, é feita e encaminhada uma listagem de todos os nascidos vivos de cada área de abrangência das Unidades de Saúde, o que possibilita às Unidades estarem avaliando a cobertura de suas ações ao grupo de crianças menores de 1 ano (vacinação, puericultura, etc.), além de realizarem visita domiciliária para as crianças que não comparecem para vacinação.

O Sistema de Informação sobre Agravos de Notificação (SINAN) processa as informações sobre as doenças que são de notificação obrigatória (estabelecidas por legislação e portarias do Ministério da Saúde), sendo um instrumento importante para a vigilância epidemiológica dessas doenças. Permite cálculo de indicadores como incidência, prevalência e letalidade e, dessa forma, possibilita detectar áreas de maior risco para a ocorrência dessas doenças, além de tendências dos agravos ana-lisados (MOTA e CARVALHO, 1999).

A última portaria do Ministério da Saúde a respeito das doenças que devem ser notificadas (Portaria 1461, de 22 de dezembro de 1999), estabelece as seguintes doenças de notificação obrigatória em todo o território nacional: cólera, coqueluche, dengue, difteria, doença de Chagas (casos agudos), doença meningocócica e outras meningites, febre amarela, febre tifoide, hanseníase, hantaviroses, hepatite B, hepatite C, leishmaniose visceral, leptospirose, malária (em área não endêmica), meningite por Haemophilus influenzae, pes-te, poliomielite, paralisia flácida aguda, raiva humana, rubéola, síndrome da rubéola congênita, sarampo, sífilis congênita, síndrome da imunodeficiência adquirida (Aids), tétano e tuberculose (BRASIL, 2000a).

Os estados e municípios podem acrescentar outras doenças em seus sistemas de vigilância epidemio-lógica, desde que justificada sua importância. Em Londrina, o SINAN funciona desde 1997. Antes desse ano, existia o Registro de Doenças de Notificação Obrigatório (RDNO), que atuava de forma semelhante, sendo ainda mantido atualmente, pois nem todas as doenças que são notificadas no Para-ná e em Londrina são cobertas pelo SINAN. Exemplos de doenças que são notificadas em Londrina e não em nível nacional: hepatite A, diarreia aguda, conjuntivites, várias doenças sexualmente trans-missíveis, teníase e cisticercose, intoxicação por agrotóxicos, intoxicação alimentar, acidentes com animal peçonhento (aranha, cobra, taturana), etc.

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O Sistema de Informação Hospitalar (SIH) também vem se firmando como um importante sistema de informações para a área de saúde e utiliza a Autorização de Internação Hospitalar (AIH) como matéria-prima de informação. A AIH é preenchida para toda internação que é realizada com paga-mento pelo SUS; dessa forma, ainda que os dados não cubram a totalidade das internações que ocor-rem (excluem os pacientes particulares e os que possuem convênio ou plano de saúde), a cobertura desse sistema pode atingir até 90% das internações em alguns locais (LEBRÃO, 1997), pois o SUS ainda é o grande financiador do sistema de saúde brasileiro. Recentemente, Carvalho (2000) realizou um estudo (dissertação de mestrado) sobre as internações hospitalares ocorridas no Município de Londrina, coletando dados diretamente em todos os hospitais e mostrou que 63,3% das internações hospitalares gerais e 88,0% das psiquiátricas são financiadas pelo SUS.

O Sistema de Informação Ambulatorial (SIA) congrega os dados produzidos pelas unidades de saúde ambulatoriais cadastradas pelo SUS, porém não possibilita verificar a morbidade, pois não há codifi-cação da doença ou motivo que levou o usuário a procurar o serviço. Dessa forma, serve prioritaria-mente para as atividades de controle, auditoria, avaliação e planejamento em relação a procedimentos realizados (CARVALHO, 1997; MOTA e CARVALHO, 1999).

As informações desses sistemas (SIM, SINASC, SINAN, SIH e SIA) podem ser consultadas via Inter-net, no site do DATASUS (http://www.datasus.gov.br), possibilitando diversas tabulações, com níveis de desagregação que chegam até o município.

Além dos cinco grandes bancos de dados nacionais já mencionados, há, ainda, outros que traba-lham dados específicos e/ou não têm abrangência nacional, entre os quais se destacam (MOTA e CARVALHO, 1999):

�� o Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (SISVAN), que avalia, em alguns locais (nas Unidades Básicas de Saúde de Londrina, inclusive), a situação alimentar e nutricional de crianças e gestantes;

�� o Sistema de Informação da Atenção Básica (SIAB) – produz informação sobre a população ads-crita nos programas de Saúde da Família e atendida por profissionais do Programa Saúde da Famí-lia e por agentes comunitários de saúde (ACS);

�� o Sistema de Informação sobre Acidentes de Trabalho (SISCAT) – processa informações sobre pessoas que se acidentaram no local do trabalho ou no trajeto ida-volta para o trabalho e, ainda, que adoeceram em razão do processo de trabalho. Tem a CAT (Comunicação de Acidente de Tra-balho) como instrumento de alimentação do sistema;

�� o Sistema de Informação do Programa Nacional de Imunização (SI-PNI) – avalia a cobertura das diferentes vacinas em todos os municípios brasileiros.

Recentemente foi criada, por iniciativas do Ministério da Saúde e da Organização Panamericana da Saúde (OPAS), a RIPSA, que significa “Rede Interagencial de Informações para a Saúde”. Esta Rede tem como objetivos “subsidiar, com informações relevantes, os processos de formulação, estruturação e avaliação das políticas e ações públicas de importância estratégica para o sistema de saúde” (BRASIL, 2000b) e envolve várias instituições, atuando em parceria. Como produtos concretos dessa Rede, já foram disponi-bilizados, em formato impresso e na Internet (http://www.datasus. gov.br), os “Indicadores e Dados Básicos - Brasil” (IDB) de 1997, 1998 e 2000, mais conhecidos como IDB-97, IDB-98 e IDB-2000, contendo dados demográficos, socioeconômicos, de mortalidade, de morbidade, de fatores de risco, de recursos e cobertura de profissionais e serviços. Esse “retorno” da informação

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consolidada servirá, com certeza, para ampliar a utilização dos dados produzidos, contribuindo para aprimorá-los e, quem sabe, colaborar para o estabelecimento de políticas voltadas para a redução das desigualdades sociais e de saúde que hoje observamos em nosso país.

ReferênciasBERQUÓ, E.S. et al. Bioestatística. 1. ed. rev. São Paulo: E.P.U., 1981.

BRASIL. Ministério da Saúde. Fundação Nacional de Saúde. Lista nacional de doenças de notificação compulsória. Disponível em: <http://www.fns.gov.br/epi/epi01.htm>. Acesso em: 5 abr. 2000a.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva. Datasus. Indicadores e dados básicos Brasil/1997. Disponível em http://www.datasus.gov.br/cgi/idb97/ apresent.htm. Acesso em: 6 abr. 2000b.

CARVALHO, D.M. Grandes sistemas nacionais de informação em saúde: revisão e discussão da situação atual. Informe Epidemiológico do SUS, Brasília, ano VI, n. 4, p. 7-46, 1997.

CARVALHO, B.G. Internações hospitalares em Londrina: 1990 – 1998. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) – Centro de Ciências da Saúde, Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2000.

FERREIRA, A.B.H. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

LAURENTI, R. et al. Estatísticas de saúde. 2. ed. rev. São Paulo: E.P.U., 1987.

LAURENTI, R. Análise da informação em saúde: 1893-1993, cem anos da Classificação Internacional de Doenças. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 25, n. 6, p. 407-17, 1991.

LEBRÃO, M.L. Estudos de morbidade. São Paulo: Edusp, 1997.

MELLO JORGE, M.H.P.; GOTLIEB, S.L.D.; ANDRADE, S.M. Análise dos registros de nascimentos vivos em localidade urbana no Sul do Brasil. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 31, n. 1, p. 78-89, fev. 1997.

MORAES, I.H.S. Informações em saúde: da prática fragmentada ao exercício da cidadania. São Paulo: Hucitec; Rio de Janeiro: Abrasco, 1994.

MOTA, E.; CARVALHO, D.M. Sistemas de informação em saúde. In: ROUQUAYROL, M.Z.; ALMEIDA FILHO, N. Epidemiologia & Saúde. 5. ed. Rio de Janeiro: Medsi, 1999. Cap. 22, p. 505-21.

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (OMS). Manual de classificação estatística internacional de doenças e problemas relacionados à saúde. 10. rev. São Paulo: Centro Colaborador da OMS para Classificação de Doenças em Português, 1993. v.1.

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Para saber mais(Bibliografia complementar)

1. MATTOS, Ruben Araújo de. Pensando um pouco sobre planejamento: anotações sobre planejamento estratégico situacional. (Mimeo).

2. BRASIL. Ministério da Saúde. Sistema de Planejamento do SUS: uma construção coletiva – Instrumentos Básicos. Brasília: MS, 2006. (Série B. Textos Básicos de Saúde. Série Cadernos de Planejamento, v. 2).

3. BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS n. 493, de 13 de março de 2006. Aprova a relação de indicadores da atenção básica – 2006, cujos indicadores deverão ser pactuados entre municípios, estados e o Ministério da Saúde. Brasília: MS, 2006.

4. BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS n. 91, de 10 de janeiro de 2007. Regulamenta a unificação do processo de pactuação de indicadores e estabelece os indicadores do Pacto pela Saúde, a serem pactuados por municípios, estados e Distrito Federal. Brasília: MS, 2007.

5. BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS n. 91, de 10 de janeiro de 2007. Anexo I – Relatório de indicado-res de monitoramento e avaliação do Pacto Pela Saúde - 2007 (Adaptação SESAB, 2007). Brasília: MS, 2007.

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UNIDADE II

GERENCIAMENTO E ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA E SERVIÇOS DE SAÚDE: INTEGRALIDADE E DIREITO À SAÚDE

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Módulo 4: Modelos tecnoassistenciais em saúde e avaliação do cuidado

4.1. Modelos tecnoassistenciais em saúde e organização de redes integrais de serviços�� Principais conceitos, os diferentes modelos tecnoassistenciais, alternativas ao modelo hegemônico.

�� Construção dos modelos assistenciais do SUS: a estratégia da saúde da família.

�� Redes integradas de atenção à saúde.

4.2. Avaliação da Atenção Básica/Saúde da Família sob a ótica da integralidade�� Conceitos e sentidos da integralidade.

�� Os atributos e dispositivos da integralidade na atenção básica: acolhimento, vínculo, escuta e responsabiliza-

ção.

�� Dimensões do acolhimento e do vínculo.

�� Processos de trabalho envolvendo acolhimento.

�� Articulação dos conceitos de modelo de atenção e integralidade nos processos de trabalho.

�� Elaboração de caso a partir de entrevistas com usuários.

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TEXTOS BÁSICOS

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MODELOS ASSISTENCIAIS EM SAÚDE: DESAFIOS E PERSPECTIVAS1

ALUÍSIO GOMES DA SILVA JÚNIORCARLA ALMEIDA ALVES

O modelo assistencial diz respeito ao modo como são organizadas, em uma dada sociedade, as ações de atenção à saúde, envolvendo os aspectos tecnológicos e assistenciais. Ou seja, é uma forma de organização e articulação entre os diversos recursos físicos, tecnológicos e humanos disponíveis para enfrentar e resolver os problemas de saúde de uma coletividade.

Consideramos que no mundo existam diversos modelos assistenciais calcados na compreensão da saúde e da doença, nas tecnologias disponíveis em determinada época para intervir na saúde e na doen-ça e nas escolhas políticas e éticas que priorizam os problemas a serem enfrentados pela política de saúde. Por esse motivo, ressaltamos que não há modelos certos ou errados, ou receitas que, quando seguidas, dão certo. Observem o que nos diz Merhy sobre o assunto:

O tema de qualquer modelo de atenção à saúde, faz referência não a programas, mas ao modo de se construir a gestão de processos políticos, organizacionais e de trabalho que estejam comprometidos com a produção dos atos de cuidar do indivíduo, do coletivo, do social, dos meios, das coisas e dos lugares. E isto sempre será uma tarefa tecnológica, comprometida com necessidades enquanto valo-res de uso, enquanto utilidades para indivíduos e grupos. (Merhy, 2000:2)2

Os modelos historicamente construídos no Brasil

No Brasil, podemos relatar diversos modelos de saúde desenvolvidos em diferentes momentos da história. No início da República, por exemplo, sanitaristas, guardas sanitários e outros técnicos or-ganizaram campanhas para lutar contra as epidemias que assolavam o Brasil no início do século (febre amarela, varíola e peste). Esse tipo de campanha transformou-se em uma política de saúde pública importante para os interesses da economia agroexportadora daquela época e se mantém como moda-lidade de intervenção até os nossos dias no combate às endemias e epidemias.

1 Publicado originalmente em: SILVA JÚNIOR, Aluísio Gomes da; ALVES, Carla Almeida. Modelos assistenciais em saúde: desafios e perspectivas. In: MOROSINI, Márcia Valéria G. C.; CORBO, Anamaria D.Andrea (Orgs.). Modelos de atenção e a saúde da família. Rio de Janeiro: EPSJV/Fiocruz, 2007. p. 27-41.2 Modelo de atenção à saúde como contrato social - Texto apresentado na XI Conferência Nacional de Saúde.

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Na década de 1920, com o incremento da industrialização no país e o crescimento da massa de tra-balhadores urbanos, começaram as reivindicações por políticas previdenciárias e por assistência à saúde. Os trabalhadores organizaram, junto às suas empresas, as Caixas de Aposentadoria e Pensão (Caps), regulamentadas pelo Estado em 1923.

A partir da década de 1930, a política de saúde pública estabeleceu formas mais permanentes de atua-ção com a instalação de centros e postos de saúde para atender, de modo rotineiro, a determinados problemas. Para isso, foram criados alguns programas, como pré-natal, vacinação, puericultura, tuberculose, hanseníase, doenças sexualmente transmissíveis e outros.

Esses programas eram organizados com base nos saberes tradicionais da biologia e da velha epidemio-logia que determinavam o ‘bicho’ a ser atacado e o modo de organizar o ‘ataque’, sem levar em conta aspectos sociais ou mesmo a variedade de manifestações do estado de saúde de um ser de acordo com a região e/ou população e, por isso, denominamos Programa Vertical.

Neste modelo instituído a partir da década de 1930, em que se estruturaram as redes estaduais de saúde, a assistência era voltada para os segmentos mais pobres da população. Os segmentos mais abas-tados procuravam o cuidado de sua saúde nos consultórios médicos privados. Nesta década ainda, era de Getúlio Vargas, as Caps, criadas nos anos 1920, transformaram-se em Instituto de Aposenta-doria e Pensão (Iaps). O que antes era CAP de uma determinada empresa passou a ser um Instituto de Aposentadoria e Pensão de uma determinada categoria profissional (por exemplo: Iapi, Iapetec, IAPM etc). Cada instituto dispunha de uma rede de ambulatórios e hospitais para assistência à doença e recuperação da força de trabalho.

O modelo de medicina voltado para a assistência à doença em seus aspectos individuais e biológicos, centrado no hospital, nas especialidades médicas e no uso intensivo de tecnologia é chamado de me-dicina científica ou biomedicina ou modelo flexneriano, em homenagem a Flexner, cujo relatório, em 1911, fundamentou a reforma das faculdades de medicina nos EUA e Canadá. Esta concepção estruturou a assistência médica previdenciária na década de 1940, expandindo-se na década de 1950, orientando também a organização dos hospitais estaduais e universitários.

Nos anos 50, outras categorias profissionais aderiram ao modelo dos Iaps, formando novos institutos e, consequentemente, novos serviços foram inaugurados para assistir os respectivos trabalhadores e seus dependentes. A política de saúde pública reforçou o investimento em centros e postos de saúde com seus programas verticalizados.

A instauração do governo militar no ano de 1964 determinou novas mudanças. Unificou os Iaps no Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), mas manteve o foco na assistência à saúde individual, pois as ações de saúde pública eram de responsabilidade dos governos estaduais e do Ministério da Saúde. Além disso, expandiu o modelo biomédico de atendimento por meio do financiamento e compra de serviços aos hospitais privados – o que serviu para expandir o setor privado de clínicas e hospitais, assim como o consumo de equipamentos e medicamentos. Isto não garantiu a excelência na assistência à saúde.

Crise e críticas ao modelo hegemônico

Em 1975 definiu-se um Sistema Nacional de Saúde em que as atividades de saúde pública continuavam desarticuladas da assistência médica individual. Esta década foi marcada por evidências dos limites

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da biomedicina. Uma dessas evidências foi quanto a pouca efetividade da ação da biomedicina no enfrentamento dos problemas de saúde gerados pelo processo acelerado de urbanização. Esse foi um processo que ocorreu em vários países desenvolvidos concomitantemente. Doenças psicossomáticas, neoplasias, violência, doenças crônico-degenerativas e novas doenças infecciosas desafiavam a abor-dagem centrada em características individuais e biológicas do adoecer.

Podemos recorrer a uma brincadeira para enumerar as dores mais frequentes nas unidades de saúde. Primeiro a dor de cabeça, no início do mês, depois a de barriga, no meio do mês, e, a seguir, a ‘dor do bolso’, no final do mês. O que o sistema de saúde (ainda) faz com essas dores? Prescreve analgé-sicos para a primeira, vitaminas para a segunda e calmantes para a última. Não é por acaso que esses são os remédios mais vendidos no mundo!

O raciocínio clínico categórico, biomédico, de ‘lesões objetivadas’, teve de enfrentar indivíduos com sintomas difusos e descontextualizados, levando os profissionais de saúde a lançar mão frequente-mente, e sem crítica, de instrumentos e exames cada vez mais complexos e caros para diagnosticar doenças, em detrimento do cuidado aos doentes. Foi, portanto, vertiginosa a escalada dos custos dos Sistemas de Saúde, evidenciando, mais uma vez, os limites da biomedicina. Se compararmos as ações de atenção médica com ações em outros setores (saneamento, educação, emprego), veremos que os resultados obtidos pelas segundas, no que diz respeito ao aumento da expectativa de vida, é superior, com melhor relação custo/benefício.

A incorporação tecnológica em saúde, diferentemente de outros setores, não é substitutiva e nem poupadora de mão-de-obra. Cada novo equipamento lançado soma seus custos aos já existentes sem substituí-los ou baixar de preço pela disseminação de seu uso, como acontece com os demais apa-relhos eletroeletrônicos. Cada novo lançamento cria a necessidade de um especialista, um técnico e um auxiliar para fazer sua operação, o que aumenta os custos com mão-de-obra especializada. Há também as especulações tecnológicas,3 ou seja, produtos e medicamentos, muitas vezes sem utilida-de claramente definida, que substituem medicamentos tradicionais, aumentando o custo dos trata-mentos, sem vantagens adicionais. Não é à toa que a chamada inflação médica é cerca de quatro vezes maior que nos outros setores da economia. Isso não significa que devemos abandonar as tecnologias médicas, ao contrário, algumas tecnologias constituem importantes avanços para salvar e prolongar vidas, porém a racionalização de seu uso é imperativa.

Outro ponto que evidencia os limites da biomedicina é que quanto mais cara maior é a dificuldade de acesso para as populações com condições econômicas precárias, cujas demandas são as maiores dos serviços de saúde. Chamamos a isso de iniquidade na distribuição da oferta e dos benefícios do sistema de saúde.

Do ponto de vista tecnológico, ocorreu um predomínio no uso das chamadas tecnologias duras (de-pendem do uso de equipamentos) em detrimento das leves (relação profissional-paciente), ou seja, prima-se pelos exames diagnósticos e imagens fantásticas, mas não necessariamente cuida-se dos pacientes em seus sofrimentos. Entretanto, a biomedicina tornou-se o modelo hegemônico na pres-tação de serviços de saúde no Brasil e em muitos países do mundo.

3 Sobre o conceito de tecnologia empregada no processo de trabalho em saúde, ver Abrahão, texto 'Tecnologias: conceito e relações com o trabalho em saúde', no livro O Processo Histórico do Trabalho em Saúde, nesta coleção (N. E.).

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Propostas alternativas

Nesse contexto dos anos 70, estabeleceu-se, internacionalmente, um debate sobre modelos de as-sistência que levassem em conta as questões anteriormente mencionadas. Prevaleceram as propostas que enfatizavam a racionalização do uso das tecnologias na atenção médica e o gerenciamento eficien-te. A mais difundida foi a de atenção primária à saúde ou medicina comunitária.

Desde o início, porém, essa proposta foi alvo de uma polarização de debates. Havia os que desta-cavam os aspectos de simplificação e racionalização, caracterizando a medicina comunitária como ‘medicina pobre para os pobres’, e havia aqueles que viam a proposta como uma estratégia racionali-zadora, importando-se com o acesso de toda a população aos reais avanços tecnológicos na saúde. No Brasil, no final da década de 1970, essa proposta foi encarada por grupos de oposição ao governo mi-litar como estratégia para redemocratizar a política e levar assistência à saúde à população em geral.

A partir da década de 1980, várias experiências de governo originaram correntes tecno-políticas que contribuíram sobremaneira na avaliação do que vinha sendo feito e na sugestão de elementos impor-tantes na organização de modelos assistenciais coerentes com as escolhas técnicas, éticas e políticas daqueles que queriam a universalização da saúde.

Vários municípios organizaram redes de unidades de saúde para atenção primária com a ajuda das universidades, como Niterói, Londrina, Campinas, e outros. Essas experiências serviram de base para o Movimento de Reforma Sanitária que culminou na VIII Conferência Nacional de Saúde, em 1986. As diretrizes dessa Conferência ganharam forma de lei na Constituição de 1988 e na Lei Orgâ-nica de Saúde (8.080/90) e transformaram-se em objetivos a serem perseguidos pela reorganização de um Sistema Único de Saúde (SUS), tais como:

�� Atendimento universal. todo cidadão tem direito à atenção à saúde e é dever do Estado promovê-la.

�� A ‘Atenção à saúde deve ser integral’, ou seja, cada cidadão deve ser compreendido em suas di-mensões biológicas, psicológicas e sociais. As equipes de profissionais e a rede de serviços devem articular-se para garantir a oferta de intervenções em promoção de saúde, prevenção de doen-ças, cura e controle de agravos e reabilitação dos doentes. A rede hierarquizada de serviços deve oferecer tecnologias, complementares entre si, em diversos níveis de complexidade, conforme a necessidade dos usuários. Em uma dimensão política, os setores do governo e da sociedade devem articular-se intersetorialmente em políticas que promovam a saúde e previnam agravos. 4

�� Os ‘benefícios da política precisam ser distribuídos de forma a diminuir as desigualdades’, promo-vendo a saúde daqueles que apresentam mais necessidades (equidade).

�� Toda ‘essa organização, em seus diversos níveis, precisa ser discutida, acompanhada e avaliada no cumprimento de seus objetivos por estruturas de controle pela sociedade’. A lei 8.142, de 1990, ga-rante a existência de conselhos de saúde em níveis municipal, estadual e nacional. A organização da sociedade pode e deve participar de instâncias de decisão locais/regionais e nacional, para o exercício do controle social. Este controle também é exercido cotidianamente pelos cidadãos ao utilizarem e avaliarem os serviços e as ações políticas que interfiram na qualidade de vida da população.

Várias alternativas foram sendo construídas ao longo da implementação do SUS, nos anos 90, como a Ação Programática ou Programação em Saúde; a versão brasileira de Sistemas Locais de Saúde (Si-los); as Cidades Saudáveis ou Saudecidade e o Movimento em Defesa da Vida.

4 Sobre sentidos da integralidade ver Mattos (2001).

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Em relação às várias alternativas estudadas, verificamos certo consenso no que diz respeito à refor-mulação dos serviços de saúde:

�� A noção de território não é compreendida apenas do ponto de vista geográfico, mas como territó-rio-processo, onde a sociedade se estrutura e reproduz a vida, organiza a cultura, vive a história.5

�� A definição de problema de saúde é construída de maneira mais ampla que as doenças, por meio de uma sistematização de causas e consequências das situações que interferem na saúde da população, na programação de ações e na avaliação de seu impacto sobre problemas identificados.

�� Com a percepção das desigualdades regionais e microrregionais, são estabelecidas estratégias de forma que seja possível orientar propostas redistributivas de recursos visando à maior equidade.

�� A reorganização das práticas de saúde privilegiam uma abordagem interdisciplinar na qual a epi-demiologia, as ciências sociais, a clínica, a educação em saúde e a política setorial, entre outros conhecimentos, possam articular-se na compreensão da saúde e da doença em seus aspectos indi-viduais e coletivos.

�� A ampliação da percepção dos trabalhadores sobre os usuários, compreendendo-os nos seus aspec-tos biológicos, psíquicos e sociais, resulta no desenvolvimento de ações que articulam a promoção de saúde, a prevenção dos agravos, a cura e recuperação de indivíduos ou coletividades doentes e a vigilância à saúde (integralidade na abordagem).

�� A revisão dos conceitos clássicos de hierarquização de serviços, com base no reconhecimento da com-plexidade da atenção básica em suas relações com a população e seus problemas6 sanitários. O reco-nhecimento de que os problemas apresentados pelas populações, em especial na área urbana, reque-rem uma abordagem multiprofissional e uma articulação em rede (integralidade na rede de serviços).

�� A articulação do setor da saúde com os demais setores de governo na formulação de ‘políticas saudáveis’ para as cidades (intersetorialidade).

�� A gestão democratizada, tendo em vista a horizontalização dos organogramas e a construção de espaços coletivos de gestão, apontadas como alternativas para possibilitar maior participação dos trabalhadores e da população.

Existem, também, diferenças e lacunas, que podem ser evidenciadas se examinarmos os focos orga-nizativos e a escolha de prioridades de atenção nos diferentes modelos tecnoassistenciais propostos:

�� Programação em saúde: propõe uma análise da situação de saúde por meio dos padrões de adoeci-mento, vulnerabilidade e risco de morte por doenças e agravos. Isso evidencia um caráter prescritivo ou normativo para os serviços no seu encontro com os usuários, ofertando uma programação que interpreta a população pela sua ‘curva epidemiológica’. Esse saber é absolutamente necessário, mas, quando é utilizado para planejar o sistema de atenção e gestão, nos remete a uma atuação vertical e de produção de impactos sobre indicadores, enfraquecendo o olhar sobre a produção de acolhimento e escuta das pessoas em suas dificuldades pontuais ou difusas no modo de andar a vida.

�� Políticas intersetoriais: propõem uma análise da situação de saúde com base nas condições mais gerais de vida, destacando a necessidade das boas condições de acesso aos bens coletivos, ou seja, a tudo aquilo que entendemos como determinante da qualidade de saúde. Baseiam-se na proposta de promoção da saúde e enfatizam a necessidade de articulações intersetoriais, por exemplo, com as

5 Sobre a noção de território, ver Monken e Barcellos, texto 'O território na promoção e vigilância em saúde', no livro O Território e o Processo Saúde-Doença (N. E.).6 Sobre a noção de problemas de saúde, ver Silva, Batistella e Gomes, texto 'Problemas, necessidades e situação de saúde: uma revisão de abordagens para a reflexão e ação da Equipe Saúde da Família', no livro O Território e o Processo Saúde-Doença (N. E.).

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áreas de ambiente, educação, atividade física, urbanismo etc. Esse foco propõe aspectos essenciais para uma política de saúde, mas, quando utilizado para ordenar o sistema, oferece poucos elemen-tos para a organização das práticas de atenção e da rede de cuidados, visando à garantia de acesso a todos os recursos assistenciais de que venham a necessitar pessoas e populações.

�� Promoção da saúde:7 uma ampla conjugação do método epidemiológico com o de promoção da saúde, valorizando enormemente a educação em saúde como desenvolvimento da autonomia das pessoas e populações. Configura propostas que consideram os fatores determinantes ou condi-cionantes da qualidade de saúde, a necessidade de informações e conhecimentos para promover a autonomia e a necessidade de acesso às tecnologias do cuidado com produção de vínculo entre profissionais e equipes de saúde com os usuários.

�� Integralidade: uma construção mais aberta e, além do reconhecimento de todos os fatores refe-ridos aos demais desenhos (modelos), traz, como destaque, a necessidade de ter acesso a todas as tecnologias de saúde para a redução de danos e sofrimentos e prolongar a vida. Como integrali-dade, revela-se em defesa de que as tecnologias de saúde não sejam vistas como as de maior ou de menor importância e que não sejam hierarquizadas entre melhores e secundárias, mas vistas como recursos que precisam ser consumidos na hora certa e no espaço adequado, sejam as imunizações, os grupos com portadores de patologias, o diagnóstico por imagem ou laboratorial, as cirurgias ou os transplantes. Como se trata do sistema de saúde, o encontro com os usuários estende-se desde a participação no cuidado ao controle social sobre o setor.

A construção dos modelos assistenciais do SUS

Mais recentemente, em meados da década de 1990, após muitas relutâncias e até mesmo entraves governamentais ao processo de implantação do SUS, foi implantada uma estratégia para mudança do modelo hegemônico, a Estratégia de Saúde da Família (ESF), financiada pelo Ministério da Saúde. A disseminação desta estratégia e os investimentos na chamada rede básica de saúde ampliaram o debate em nível nacional e trouxeram novas questões para a reflexão.

Entre estas questões, destacamos a forma de organização e hierarquização das redes assistenciais, em que a ideia predominante envolve uma ‘imagem em pirâmide’ para a atenção à saúde, bem como a ideia da ‘complexidade crescente’ em direção ao topo. Hospital no topo e rede básica como porta de entrada do sistema de saúde.

Supõe-se que a pirâmide organiza a assistência em graus crescentes de complexidade, com a popula-ção fluindo de forma organizada entre os vários níveis por meio de mecanismos formais de referência e contrarreferência (normas de fluxos de usuários na busca de alternativas de assistência).

Na prática, essa é uma postura prescritiva, presa a uma racionalidade formal, que não leva em conta as necessidades e os fluxos reais das pessoas dentro do sistema e, por isso mesmo, termina não se concretizando jamais. Os serviços funcionam com lógicas muito diferentes, a articulação entre eles não acontece, não se assegura a resolução dos problemas e a população termina entrando no sistema por todas as portas.

E por que tem sido tão difícil articular os diferentes serviços do sistema de saúde? Por que não se consegue assegurar o fluxo das pessoas de acordo com suas necessidades?

7 Sobre promoção da saúde, ver Monken e Barcellos, texto 'O território na promoção e vigilância em saúde', no livro O Território e o Processo Saúde-Doença (N. E.).

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São várias as explicações. Por um lado, ao mesmo tempo em que se atribui um papel crítico à atenção básica, ela é desvalorizada. Segundo a noção formal da pirâmide, é possível organizar um sistema verticalizado, desenhado com uma base formada pela atenção básica e o topo pelos serviços de ‘alta densidade tecnológica’ (concentração de equipamentos e recursos técnicos).

De acordo com essa concepção, os serviços terciários são mais valorizados, considerados mais com-plexos e resolutivos, já que concentram equipamentos e procedimentos e atendem às situações com maior risco de vida. Nesse âmbito, têm grande valor os conhecimentos técnicos necessários, sobre-tudo ao enfrentamento dos aspectos biológicos da doença e dos agravos à saúde, que são valorizados como verdadeiramente científicos.

Como, em geral, não há risco de morte e são poucos os equipamentos utilizados, os serviços bási-cos são entendidos como simplificados, portanto desvalorizados. Na verdade, enfrentam-se desafios tecnológicos muito complexos para assegurar acolhimento e resolutividade aos problemas de vida inerentes ao contato com famílias, com grupos sociais, com a diversidade cultural e com problemas de vida (relações sociais, violência urbana, gravidez indesejada ou em adolescentes jovens etc.). Essa complexidade só pode ser enfrentada com a articulação dos conhecimentos biológicos com outros, advindos de campos como a psicologia, a sociologia, a antropologia, entre outros. No entanto, mui-tos admitem a possibilidade de que profissionais menos preparados sejam suficientes para dar conta dos problemas mais simples e para encaminhar os mais complicados. Não reconhecem a especificida-de nem a complexidade envolvida nesse trabalho.

Capacidade de reconhecer o contexto, capacidades de comunicação e acolhimento, capacidade de escuta e de compreender diferentes valores e culturas, capacidade de mobilizar soluções para situa-ções aparentemente sem saída. Uma formação mais ampla e contextualizada. O trabalho em equipe multiprofissional e a articulação com outros setores são fundamentais para tudo isso, mas há pouca ênfase no desenvolvimento de tecnologias para trabalhar estas questões.

Um outro aspecto importante é que não se assegura a retaguarda necessária para garantir à atenção bá-sica a capacidade de enfrentar efetivamente uma série de situações e agravos. Foi ampliada a cobertura da atenção básica, mas são sérias as limitações para exames laboratoriais e radiológicos ou para apoio nas áreas de reabilitação, saúde mental e outras, indispensáveis para a continuidade da atenção. Um serviço que não consegue assegurar esse tipo de apoio acaba se desmoralizando. Muitas pessoas preferem procu-rar diretamente os hospitais, pois sabem que o acesso a esse tipo de retaguarda será menos complicado.

Em contrapartida, os hospitais estão organizados de acordo com uma concepção restrita de saúde, que desconhece a subjetividade, o contexto e a história de vida das pessoas. Além disso, a atenção organizada por especialidades leva à fragmentação do cuidado e à desresponsabilização, já que cada qual cuida da sua parte e ninguém se responsabiliza pelo todo. Há, também, um profundo desconhe-cimento sobre a atenção básica e seu potencial de cuidado. Como consequência, descontinuidade da atenção, ambulatórios sobrecarregados, população cativa.

A atenção básica à saúde desempenha um papel estratégico no SUS, sendo o principal elo entre o sis-tema de saúde e a população. Mas não pode ser entendida apenas como porta de entrada do sistema, porque essa ideia caracteriza baixa capacidade de resolver problemas e implica desqualificação e isola-mento. Não pode ser a sua única porta de entrada, porque as necessidades das pessoas se manifestam de maneira variável e precisam ser acolhidas. Nem pode ser porta obrigatória porque isso burocratiza a relação das pessoas com o sistema. E não pode ser o único lugar de acolhimento, porque todas as partes do sistema precisam se responsabilizar pelo resultado das ações de saúde e pela vida das pessoas.

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De outra parte, o conjunto da rede de ações e de serviços de saúde precisa incorporar a noção de responsabilidade sobre a saúde da população. São necessários arranjos tecnoassistenciais que contri-buam para a mudança do olhar e a mobilização da escuta aos usuários e seus problemas de vida, como o acompanhamento horizontal, a familiaridade com os modos de andar a vida no local ou o contato com a cultura na rua, nos coletivos e redes sociais dos usuários dos serviços de saúde. Isso é indispen-sável para cumprir a promessa de um sistema único e organizado para a integralidade e humanização, que funcione como ‘malha de cuidado ininterrupto à saúde’, e não como um sistema burocrático e despersonalizado de encaminhamentos.

A maior parte das propostas tecnoassistencias desenvolvidas para o SUS centram-se na reorganiza-ção da atenção básica. Mas é fundamental que haja transformações no âmbito hospitalar e em outras partes do sistema de saúde. Uma mudança importante será desenvolver práticas humanizadas de aco-lhimento de pessoas na atenção hospitalar, tais como a incorporação da presença de acompanhantes e familiares na internação.

Outra mudança será visualizar os serviços básicos, os ambulatórios de especialidades e hospitais gerais ou especializados, formando um conjunto solidário, não hierarquizado e bem articulado de serviços, cujo objetivo seja garantir o melhor acolhimento possível e a responsabilização pelos pro-blemas de saúde das pessoas e das populações.

Por fim, obviamente, é necessário fortalecer a atenção básica como lugar do mais amplo acolhimento às necessidades de contato com as ações e os profissionais de saúde. No lugar formal e burocrático da pirâmide, podem ser desenhados os mais diversos diagramas, dependendo de quais serviços já se dispõe, de quais as características da população e quais as possibilidades de investimento e apoio.

A estrutura e os processos de gestão também se constituem em grandes desafios. Ainda são incipientes os mecanismos que favoreçam a construção coletiva de desenhos tecnoassistenciais. As instâncias for-mais de pactuação entre gestores8 (comissões intergestores), de participação dos trabalhadores (mesas de negociação) e de participação da população (conselhos de saúde) ainda se dedicam mais ao debate da organização e financiamento o sistema do que ao debate sobre a organização da atenção. Investimentos na capacidade de escuta às demandas, no processamento de problemas e na gestão compartilhada dos projetos de intervenção parecem oferecer maior capacidade de viabilizar gestões participativas.

Há uma carência de processos de avaliação que transcendam os aspectos normativos e quantitativos do cumprimento de metas e que possam avaliar, também, o desenvolvimento de políticas ou quali-tativo das práticas e dos resultados. Alguns autores têm proposto outras abordagens que levam em conta a integralidade, o processo de trabalho e a percepção da qualidade da atenção pelos usuários. Para que seja possível construir esse novo modo na gestão, atenção e controle social, precisamos de um outro perfil de trabalho e de trabalhadores.

Um problema de hipertensão arterial, por exemplo, tem de ser acolhido desde a orientação alimen-tar, com respeito às necessidades e possibilidades pessoais e dos locais de moradia, passando pela orientação e oportunidade de estar em grupo para abordar as questões subjetivas e do andar a vida até a cirurgia e recuperação de uma ponte de safena. Pensando nisto, alguns autores perceberam no espaço do cotidiano dos trabalhadores, em suas práticas e na organização dos processos de trabalho 9

8 Sobre as instâncias de pactuação no Sistema Único de Saúde, ver Machado, Lima e Baptista, texto 'Configuração institucional e o papel dos gestores no Sistema Único de Saúde', no livro Políticas de Saúde: a organização e a operacionalização do Sistema Único de Saúde (N. E.).9 Sobre processo de trabalho em saúde, ver Ribeiro, Pires e Blank, texto 'A temática do processo de trabalho em saúde como instrumental

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um potencial enorme de mudanças nos resultados das políticas de saúde. Na dimensão micropolítica da atenção à saúde é onde pode ocorrer, com mais efetividade, a reflexão sobre o ato de cuidar e a relação com a população usuária. Muitos estudos e experiências vêm-se acumulando neste sentido.

Considerações finais

Pouco a pouco parece surgir a possibilidade de trazer aos serviços e à própria lógica de gestão setorial o componente mais subjetivo dos usuários, aquilo que para as pessoas são necessidades de saúde, mas que não se enquadram no referencial técnico-científico hegemônico.

Novos modelos assistenciais precisam entrar em curso com referência na escuta aos usuários, na criação de dispositivos de escuta, decodificação e trabalho. Sabemos que hoje é possível falar em inte-gralidade, humanização e qualidade da atenção, segundo os valores de compromisso com a produção de atos de cuidar de indivíduos, coletivos, grupos sociais, meio, coisas e lugares. Embora muitas formas de modelagem permaneçam intactas, parece estar emergindo um novo modo de tematização das estratégias de atenção e gestão no SUS e de formação dos profissionais de saúde pela educação permanente em saúde, pelo menos no que diz respeito à modelagem dos ‘corações e mentes’.

Como as necessidades em saúde são extremamente dinâmicas, social e historicamente construídas, exigem, obviamente, que os serviços e a gestão em saúde sejam capazes de desenvolver estratégias também dinâmicas e extremamente sensíveis, capazes de passar dos arranjos rotineiros aos arranjos de risco, para escutar, retraduzir e trabalhar necessidades de saúde.

ReferênciasCAMPOS, G. W. S. Reforma de Reforma: repensando a saúde. São Paulo: Hucitec, 1992.

CAMPOS, G. W. S. A clínica do sujeito: por uma clínica reformulada e ampliada. In: CAMPOS, G. W. S. (Org.) Saúde Paidéia. São Paulo: Hucitec, 2003.

CECILIO, L. C. O. Modelos tecnicoassistenciais em saúde: da pirâmide ao círculo, uma possibilidade a ser explorada. Cadernos de Saúde Pública, 13(3): 469-478, jul.-set., 1997.

CECILIO, L. C. O. As necessidades de saúde como conceito estruturante na luta pela integralidade e equidade na atenção em saúde. In: PINHEIRO, R. & MATTOS, R. A. (Orgs.) Os Sentidos da Integralidade na Atenção e no Cuidado à Saúde. Rio de Janeiro: IMS, Uerj, 2001.

BRASIL. Unidade de aprendizagem: análise do contexto da gestão e das práticas de saúde. In: BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Departamento de Gestão da Educação na Saúde. Curso de Formação de Facilitadores de Educação Permanente em Saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2005.

MATTOS, R. A. Os sentidos da integralidade: algumas reflexões acerca de valores que merecem ser defendidos. In: PINHEIRO, R. & MATTOS, R. A. (Orgs.) Os Sentidos da Integralidade na Atenção e no Cuidado à Saúde. Rio de Janeiro: Uerj, IMS: Abrasco, 2001.

MERHY, E. E. Em busca do tempo perdido: a micropolítica do trabalho vivo e saúde. In: MERHY, E. E. & ONOKO, R. (Orgs.) Agir em Saúde: um desafio para o público. São Paulo: Hucitec, 1997.

MERHY, E. E. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. São Paulo: Hucitec, 2002.

PEDUZZI, M. & PALMA, J. J. L. A equipe de saúde. In: SCHRAIBER, L. B. (Org.) Saúde do Adulto: programas e ações na unidade básica. São Paulo: Hucitec, 1996.

PINHEIRO, R. & MATTOS, R. A. Cuidado: as fronteiras da integralidade. Rio de Janeiro: IMS, Uerj, 2004.

PINHEIRO, R. & MATTOS, R. A. Construção Social da Demanda: direito à saúde; trabalho em equipe; participação e espaços públicos. Rio de Janeiro: Cepesc, Uerj, 2005.

para análise do trabalho no Programa Saúde da Família', no livro O Processo Histórico do Trabalho em Saúde (N. E.).

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PINHEIRO, R.; FERLA, A. A. & SILVA JÚNIOR, A. G. A integralidade na atenção à saúde da população. In: MARINS, J. J. N. et al. (Orgs.) Educação Médica em Transformação: instrumentos para a construção de novas realidades. 1.ed. São Paulo: Hucitec, 2004.

SILVA JÚNIOR, A. G. Modelos Tecnoassistenciais em Saúde: o debate no campo da saúde coletiva. São Paulo: Hucitec, 1998.

SILVA JÚNIOR, A. G.; MERHY. E. E. & CARVALHO, L. C. Refletindo sobre o ato de cuidar da saúde. In: PINHEIRO, R. & MATTOS, R. A. (Orgs.) Construção da Integralidade: cotidiano, saberes e práticas em saúde. Rio de Janeiro: IMS, Uerj, 2003.

SILVA JÚNIOR, A. G. & MASCARENHAS, M. T. M. Avaliação da atenção básica em saúde sob a ótica da integralidade: aspectos conceituais e metodológicos. In: PINHEIRO, R. & MATTOS, R. (Orgs.) Cuidado: as fronteiras da integralidade. Rio de Janeiro: IMS, Uerj, 2004.

SILVA JÚNIOR, A. G.; ALVES, C. A. & ALVES, M. G. M. Entre tramas e redes: cuidado e integralidade. In: PINHEIRO, R. & MATTOS, R. A. (Orgs.) Construção Social da Demanda: direito à saúde; trabalho em equipe; participação e espaços públicos. Rio de Janeiro: Cepesc, Uerj, 2005.

SILVA JÚNIOR, A. G. et al. Avaliação de redes de atenção à saúde: contribuições da integralidade. In: PINHEIRO, R. & MATTOS, R. A. (Orgs.) Gestão em Redes: práticas de avaliação, formação e participação na saúde. Rio de Janeiro: IMS, Uerj, Cepesc, Abrasco, 2006.

STOTZ, E. N. Necessidades de Saúde: mediações de um conceito (contribuição das ciências sociais para a fundamentação teórica-metodológica de conceitos operacionais da área de planejamento em saúde), 1991. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz.

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AVALIAÇÃO DA ATENÇÃO BÁSICA EM SAÚDE SOB A ÓTICA DA INTEGRALIDADE: ASPECTOS CONCEITUAIS E METODOLÓGICOS 1

ALUISIO GOMES DA SILVA JUNIOR2

MÔNICA TEREZA MACHADO MASCARENHAS3

A reorganização do modelo tecnoassistencial do Sistema Único de Saúde (SUS), com base nos prin-cípios da universalidade, integralidade, equidade, resolubilidade, intersetorialidade, humanização do atendimento e participação social, ainda constitui um desafio para todos os atores sociais que militam no campo da Saúde Coletiva. Muitas propostas têm sido implementadas em âmbito muni-cipal, mas a partir da segunda metade da década de 90, esses esforços vêm se aglutinando em torno da reorganização da Atenção Básica em Saúde, orientada, principalmente, pelo Programa de Saúde da Família. A implementação desse programa, embora sob mesma orientação macropolítica, vem produzindo experiências qualitativamente diferentes e, em muitos casos, reproduzindo o modelo tradicional de assistência em novas embalagens, como já haviam alertado Silva Junior (1998, p. 125) e Franco e Merhy (2000).

O acompanhamento dessas experiências vem se dando por meio de metas de cobertura, produção de serviços e indicadores de impacto epidemiológico. Considerando que há uma diferença qualitativa nos resultados, decorrente da forma como são feitas as ações de saúde e o processo de trabalho das equipes envolvidas, como demonstrou Mascarenhas (2003), os aspectos relevantes na direcionalida-de das mudanças no modelo tecnoassistencial são pouco percebidos pela forma de acompanhamento do programa (avaliação normativa).

Essas questões, já apontadas por Hartz (2000, p. 29-35), nos remetem à necessidade de comple-mentar o processo de monitoramento com a abordagem da pesquisa avaliativa na busca de perceber

1 Publicado originalmente em: SILVA JÚNIOR, Aluísio Gomes da; MASCARENHAS, Mônica Tereza Machado. Avaliação da atenção básica em saúde sob a ótica da integralidade: aspectos conceituais e metodológicos. In: PINHEIRO, Roseni; MATTOS, Ruben Araújo de (Org.). Cuidado: as fronteiras da integralidade. Rio de Janeiro: CEPESC-UERJ/ABRASCO, 2005. p. 241-257.2 Doutor em Saúde Pública; professor do Instituto de Saúde da Comunidade da Universidade Federal Fluminense; pesquisador associado do LAPPIS.3 Doutora em Saúde Pública; professora do Instituto de Saúde da Comunidade da Universidade Federal Fluminense; pesquisadora associada do LAPPIS.

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os movimentos de mudança na qualidade da atenção no que se refere principalmente ao processo de trabalho das equipes, na relação com as populações adscritas e a integralidade da atenção à saúde.

Este trabalho visa a refletir sobre alguns conceitos e abordagens metodológicos que possam aumentar a capacidade analítica de atores envolvidos no processo de construção da Atenção Básica à Saúde e contribuir para sua direcionalidade aos princípios orientadores do SUS.

Considerações teóricas e conceituais

Propomos como ponto de partida a diretriz do Sistema Único de Saúde, a integralidade, como con-ceito abrangente, que instiga a organização de novos serviços de saúde, e na revisão das práticas sanitárias e seus processos de trabalho: “atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais” (Brasil, 1988, art. 198).

Mattos (2001) sugere organizar o princípio da integralidade em três grandes conjuntos de sentidos. O primeiro refere-se a atributos das práticas dos profissionais de saúde; nele a integralidade é exerci-da através da compreensão do conjunto de necessidades de ações e serviços de saúde que um paciente requer ao buscar a atenção do profissional. A integralidade não é vista apenas como um atributo da boa prática de biomedicina, mas um atributo que deveria permear a prática de todos os profissionais de saúde, independentemente de ela se dar no âmbito público ou privado. O segundo conjunto diz respeito à característica da organização dos serviços, na qual se critica a dissociação entre as práticas de saúde pública e as assistenciais. Os serviços de saúde organizados exclusivamente para dar conta de doenças de uma população tornaram-se inaceitáveis, e deveriam estar aptos a realizar uma apreensão ampliada das necessidades da população atendida. Assim,

a integralidade emerge como princípio de organização contínua do processo de trabalho nos ser-viços de saúde, que se caracterizaria pela busca também contínua de ampliar as possibilidades de apreensão das necessidades de saúde de um grupo populacional (Mattos, 2001, p. 57).

O terceiro conjunto de sentidos da integralidade aplica-se às respostas governamentais que são dadas aos problemas de saúde da população ou às necessidades de certos grupos específicos. Neste sentido, a integralidade é representada pela recusa dos formuladores de políticas públicas em reduzir a objetos descontextualizados os sujeitos sobre os quais tais políticas irão incidir. Por outro lado, se expressa na convicção de que a resposta do governo a certos problemas de saúde pública deve incorporar as possibilidades de promoção, prevenção de doenças, cura e reabilitação.

Dada a polissemia do termo “integralidade”, resolvemos tomá-lo como atributo das práticas pro-fissionais de saúde e da organização de serviço. Entendemos que alguns outros conceitos articu-lados traduzem a integralidade nos sentidos adotados: acolhimento, vínculo/responsabilização e qualidade da atenção.

Acolhimento é assim traduzido por Merhy (1997, p. 138):

uma relação humanizada, acolhedora, que os trabalhadores e o serviço, como um todo, têm que estabelecer com os diferentes tipos de usuários, alterando a relação fria, impessoal e distante que impera no trato cotidiano dos serviços de saúde.

Para Malta et al. (1998, p. 139):

é uma postura de escuta, compromisso de dar uma resposta às necessidades de saúde trazidas pelo usuário e um novo modo de organizar o processo de trabalho em saúde a partir de um efetivo tra-balho em equipe.

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Silva Júnior (2001, p. 91), em um esforço de síntese, define acolhimento como:

Tratar humanizadamente toda a demanda; dar respostas aos demandantes, individuais ou coletivos; discriminar riscos, as urgências e emergências, encaminhando os casos às opções de tecnologias de intervenção; gerar informação que possibilite a leitura e interpretação dos problemas e a oferta de novas opções tecnológicas de intervenção; pensar a possibilidade de construção de projetos terapêu-ticos individualizado.

Para esses autores, acolhimento é um dos dispositivos disparadores de reflexões e mudanças a respeito da forma como se organizam os serviços de saúde, de como os saberes vêm sendo ou deixando de ser utilizados para a melhoria da qualidade das ações de saúde. Significa a retomada da reflexão sobre a universalidade do acesso e sobre a dimensão de governabilidade das equipes locais diante das práticas de saúde. Representa o resgate do conhecimento técnico das equipes e ainda a reflexão sobre a humaniza-ção das relações em serviço, bem como o resgate do espaço de trabalho em termos de lugar de sujeitos.

Podemos pensar no acolhimento em três dimensões: como postura, como técnica e como princí-pio de reorientação de serviços. Como postura, o acolhimento pressupõe a atitude, por parte dos profissionais e da equipe de saúde, de receber, escutar e tratar humanizadamente os usuários e suas demandas. É estabelecida, assim, uma relação de mútuo interesse, confiança e apoio entre os profis-sionais e os usuários. A postura receptiva solidariza-se com o sofrimento ou problema trazido pelo usuário, abrindo perspectivas de diálogo e de escuta às suas demandas. A dimensão acolhimento, como postura, abrange ainda as relações intra-equipe e equipe-usuário.

A discussão sobre o acolhimento nas unidades e, mais especificamente, sobre a qualidade do acesso e a recepção aos usuários nos serviços mostra, segundo Teixeira (2003, p. 92), uma migração do foco de tensionamento para dentro do serviço ou, mais exatamente, para a relação com o outro que aí se estabelece. A relação médico-paciente é o caso mais emblemático, de acordo com o autor, que sinali-za haver uma ampliação da questão devido à existência de outros profissionais e de outras interações que também se dão no cotidiano dos serviços, o que vale falar em relação trabalhador-usuário. Daí a preocupação inovadora de Teixeira, em analisar o acolhimento no serviço de saúde entendido como uma rede de conversações.

Escuta, no campo da psicanálise, ocupa lugar privilegiado, por ser algo relacionado às palavras ditas ou silenciadas. Nesse contexto, a escuta não limita seu campo de entendimento apenas ao que é fa-lado, mas também às lacunas do discurso, que são fios de significados a serem trabalhados. Segundo Leitão (1995, p. 47):

São a essas lacunas que o analista dirige sua atenção, e escuta a trama dos movimentos imaginários que tentam se disfarçar e fantasiar. Essa trama, quando escutada, se desvanece e algo diferente se torna presente, revelando uma lógica até então encoberta; daí a importância em se ter uma escuta mais acolhedora e minuciosa nos serviços de saúde.

Escutar tem relação imediata com a fala, e em sua origem latina articula o escutado ao ato de ouvir e de montar guarda; situação na qual quem escuta cumpre o ofício de sentinela, vigia os sons pro-venientes de um campo diferente do seu próprio. Para escutar, também é imprescindível conhecer quem se escuta, quem está falando, como e sobre o que se fala. Por fim, exige-se do profissional de saúde uma reflexão sobre o usuário-paciente, enquanto sujeito portador de individualidade, para quem os serviços de saúde são oferecidos. Lembramos que usuário, segundo o dicionário Aurélio, “[é] o sujeito portador de uma individualidade, que tem a posse, o gozo de alguma coisa pelo direito de uso coletivo” (Ferreira, 1986, p. 1.774).

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A postura de acolhimento e escuta também é pensada na relação dos profissionais de equipe de saúde entre si e entre os níveis de hierarquia da gestão do serviço. Relações democráticas, que estimulam participação, autonomia e decisão coletiva, produzem sujeitos de novas práticas sanitárias.

Os trabalhadores de saúde incorporam a escuta e a conversa com o usuário como importantes instru-mentos de trabalho, e não como tempo e conversas desperdiçados. Segundo Peduzzi e Palma (1996, p. 247), esses trabalhadores “se defrontam com a necessidade de manter essa dimensão educativa e comunicacional como parte nobre da técnica, complementar à esfera clínica e de redobrar a qualida-de do registro do paciente”. Merhy et al. distinguem “ato de escuta de ato de bondade; o ato de escuta é um momento de construção de transferência” (2000, p. 25). Assim, o acolhimento requer que o trabalhador utilize seu saber para a construção de respostas às necessidades dos usuários.

O acolhimento, como técnica, instrumentaliza a geração de procedimentos e ações organizadas. Tais ações facilitam o atendimento na escuta, na análise, na discriminação do risco e na oferta acordada de soluções ou alternativas aos problemas demandados. O acolhimento representa, para Merhy e outros autores (2000, p. 22):

O resgate e a potenciação do conhecimento técnico das equipes, possibilitando o enriquecimento da intervenção dos vários profissionais da saúde na assistência. Torna possível, ainda, a reflexão sobre a humanização das relações em serviço e parte da lógica de poder contida no processo, contribuindo, assim, para uma mudança na concepção da saúde como direito.

Quanto ao trabalho de equipe, as mudanças da composição desta não dizem respeito apenas aos no-vos agentes incorporados, nem aos dados quantitativos dessa incorporação. Peduzzi e Palma (1996, p. 239) afirmam que:

São alterações no processo de trabalho, decorrentes das mudanças do modo de organização dos serviços. Assim, com estas mudanças se alteram os atributos técnicos requeridos dos trabalhadores, as suas relações com os demais elementos dos processos de trabalho (o objeto e os instrumentos e as próprias atividades), e as relações entre os diferentes profissionais que passam a lidar com novas formas de articulação dos respectivos e peculiares trabalhos.

A complexidade da equipe multiprofissional refere-se à articulação dos diferentes processos de tra-balho. Supera-se a fragmentação de saberes e a organização de serviços, o que as autoras destacam como justaposição alienada de trabalhos, em que cada parcela se apresenta como exercício autônomo e independente. Na busca de superação da fragmentação, a interdisciplinaridade vem contribuir para a construção de novos saberes apropriados às necessidades do trabalho em saúde, mediante criação de novas práticas. Portanto, os mesmos autores afirmam:

Os serviços necessitam dispor de meios que propiciem a integração dos novos agentes ao projeto institucional e do conjunto dos agentes a novos projetos. Espaços dialógicos, interculturais, que permitam a distinção e a recomposição dos trabalhos parcelares em totalidades nas quais cada tra-balhador possa reconhecer-se, simultaneamente, como agente do trabalho e sujeito histórico-social (Peduzzi e Palma, 1996, p. 241).

A equipe que acolhe tem como objetivos ampliar o acesso dos usuários, humanizar o atendimento e funcionar como dispositivo para a reorganização do processo de trabalho das equipes locais (Merhy, Bueno e Franco, 1999). O acolhimento, como reformulador do processo de trabalho ou da diretriz de serviço, pontua problemas e oferece soluções e respostas. Identificam-se as demandas dos usuários e, com isso, rearticula-se o serviço (Malta e Merhy, 2002, p. 80-83).

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Como a organização de serviços, o acolhimento detém uma proposta, um projeto institucional que deve nortear todo o trabalho realizado pelo conjunto dos agentes e a política de gerenciamento dos traba-lhadores e da equipe. A proposta de trabalho para o serviço orienta desde o padrão da composição de trabalho na equipe, o perfil dos agentes buscados no processo de seleção, de capacitação, os conteúdos programáticos e metodológicos dos treinamentos, até os conteúdos e as características operacionais da supervisão e da avaliação de pessoal. Nesse contexto, tem destaque a supervisão, considerada impor-tante no modo de organização de serviços no acompanhamento do cotidiano do trabalho. Esse quadro implica reflexão a respeito do próprio processo de trabalho e das necessidades de saúde.

Optamos também por incorporar a ideia de acessibilidade organizacional para complementar o con-ceito de acolhimento. No campo da saúde, acesso pode ser definido por aquelas dimensões que descrevem a entrada potencial ou real de dado grupo populacional em um sistema de prestação de cuidados de saúde. A acessibilidade é entendida como o conjunto de circunstâncias, de diversa na-tureza, que viabiliza a entrada de cada usuário ou paciente na rede de serviços, em seus diferentes níveis de complexidade e modalidade de atendimento. Representa as dificuldades ou facilidades em obter tratamento desejado, estando, portanto, intrinsecamente ligada às características da oferta e disponibilidade de recursos. É a possibilidade de obter serviços necessários em quantidade suficiente, sem obstáculos físicos e financeiros (Donabedian, 1984; Fekete, 1995, p. 180).

Vínculo, segundo definição encontrada no dicionário Aurélio, é “tudo o que ata, liga ou aperta; ligação moral; relação. O ato de vincular significa ligar ou prender com vínculo, ligar ou prender moralmen-te, unir, perpetuar uma relação” (Ferreira, 1986, p. 1.777). Chakkour (2001, p. 6), a partir de Pi-chon-Rivière (1982), conceituou vínculo como “o desenvolvimento de circularidade de afetos entre trabalhador e usuários, construindo a interação entre duas pessoas criando uma maneira particular de se relacionarem, a cada caso e a cada momento”. Criar vínculos, na visão de Merhy (1997), é ter relações tão próximas e tão claras que a equipe possa se sensibilizar com o sofrimento ou demanda dos usuários ou da população adstrita. Ou ainda:

é o profissional de saúde ter relações claras e próximas com o usuário, integrando-se com a comuni-dade em seu território, no serviço, no consultório, nos grupos e se tornar referência para o paciente, individual ou coletivo, que possa servir à construção de autonomia do usuário (Merhy, 1997, p. 138).

Assim, podemos pensar no vínculo em três dimensões: como afetividade, como relação terapêutica e como continuidade. Na primeira dimensão, Kloetzel (1999, p. 55) aponta que o médico deve gostar da sua profissão e interessar-se pela pessoa do paciente, construindo, assim, um vínculo firme e es-tável entre ambas as partes, o que se torna valioso instrumento de trabalho. A ideia de vínculo como uma relação terapêutica:

[que] se prende tanto à busca de maior eficácia (aumento do percentual de curas), como à noção que valoriza a constituição de espaços propícios à produção de sujeitos autônomos: profissionais e pacientes. Ou seja, para que haja vínculo entre dois sujeitos, exige-se a assunção do paciente à condição de sujeito que fala, deseja e julga, sem o que não se estabelecerão relações profissional-paciente adequadas (Campos, 1994, p. 53).

A palavra “terapêutica” apresenta sentido específico, relacionado com o ato de dar atenção. Logo, uma nova forma de cuidado, que, de acordo com Boff (1999, p. 33):

Se revele numa atitude de colocar atenção, mostrar interesse, compartilhar e estar com o outro com prazer; não numa atitude de sujeito-objeto, mas de sujeito-sujeito, numa relação não de domínio sobre, mas de com-vivência, não de intervenção, mas de interação.

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O autor destaca também:

cuidar é mais que um ato, é uma atitude. Portanto abrange mais que um momento de atenção, zelo e de desvelo. Representa uma atitude de ocupação, preocupação, de responsabilização e de envolvi-mento afetivo com o outro (Boff, 1999, p. 34).

Para que ocorra seu fortalecimento, essa relação deve, a princípio, constituir-se num processo de te-rapêutica, ou seja, por si só, já ser considerado instrumento de terapia. Uma relação satisfatória deve levar em consideração questões como a escuta, a divisão de responsabilidades, o autoconhecimento (ou conhecimento do outro, por parte do profissional) e os elementos de transferência e contratrans-ferência. A partir da proposta de se estabelecer uma relação efetiva e resolutiva quanto às demandas do paciente, é importante considerar a singularidade e a subjetividade de cada relacionamento entre profissional e paciente, o que pressupõe integração dinâmica de contextos diversificados, caracte-rísticas pessoais e expectativas, conscientes ou não, de ambas as partes. Por meio da escuta atenta, da aceitação incondicional em relação à pessoa do doente e da empatia – que é uma capacidade da esfera afetiva de se colocar no lugar do outro –, o profissional de saúde preenche grande parte das expectativas do doente.

Vários autores ligados à corrente da atenção centrada no paciente enfatizam a potência do vínculo na compreensão dos sofrimentos contextualizados na vivência do paciente, suas crenças, valores e expectativas (Stewart e Roter, 1989). Consideram fundamental a relação profissional-paciente para maior efetividade das intervenções propostas, proporcionando maior adesão à terapêutica e às me-didas promocionais e preventivas. Starfield (2002, p. 291-301) e Weston e Brown (1989, p. 77-85) também apontam a continuidade como fator de fortalecimento do vínculo e do mútuo conhecimen-to/confiança entre profissional e paciente.

Vínculo também implica responsabilização, que é o profissional assumir a responsabilidade pela vida e morte do paciente, dentro de uma dada possibilidade de intervenção, nem burocratizada nem impes-soal. O profissional assume a indicação e garantia dos caminhos a serem percorridos para a resolução do problema, não cabendo a transferência burocrática para outra instância decisória ou nível de aten-ção (Merhy, 1997, p. 138). É, assim, sem dúvida, uma mudança de paradigma, pois, ao implementar mudanças que resultem em novo processo de trabalho, tendo como foco o sujeito, a tendência é o resgate do espaço de trabalho como lugar de sujeitos.

Rollo (1997, p. 324) considera essas questões como centrais, que devem ser enfrentadas na recons-trução das práticas assistenciais em saúde. Recorre a Campos (1991) para abordar a questão da alie-nação dos profissionais de saúde em relação a seu trabalho, que contribui para o baixo grau de res-ponsabilização e criação de vínculo entre profissionais e usuários, revelando desapego em relação às condições de trabalho. Outro aspecto dessa alienação é a separação entre os membros da equipe de trabalho, em que cada um se ocupa de suas tarefas, havendo pouca integração entre as atividades. Impera, assim, a lógica da subordinação, ao invés da complementaridade na equipe multiprofissional.

No que concerne à qualidade da atenção, Donabedian, desde a década de 60, vem desenvolvendo estudos e pesquisas sobre a avaliação da qualidade dos serviços de saúde, que servem de paradigma nessa área (Vuori, 1991). Segundo Donabedian (1988), qualidade da atenção se define como o tratamento que é capaz de alcançar melhor equilíbrio entre os benefícios de saúde e os riscos. Fatores como custos mone-tários, assim como expectativas e valores do paciente, são considerados facilitadores ou obstáculos para alcançar o padrão de qualidade. Por outro lado, quatro componentes ou atributos da atenção prestada influenciam na qualidade: acesso, continuidade, coordenação e satisfação do paciente.

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Para Donabedian, a qualidade da atenção médica se baseia na conduta do profissional na sua relação com o paciente. A conduta do profissional refere-se, no processo saúde-doença, aos cuidados técni-cos (adequação do diagnóstico e da terapêutica), socioambientais (atenção aos fatores de risco sociais e ambientais, da família e do trabalho) e psicológicos. Tais cuidados se integralizam com a coordena-ção e em continuidade.

A relação paciente-profissional, como já vimos, engloba a congruência de expectativas entre ambos, a adaptação e a flexibilidade, o trato equitativo e a manutenção máxima possível da autonomia do pacien-te, bem como a participação ativa do mesmo. Qualidade de atenção à saúde, para Starfield, significa:

quando as necessidades de saúde, existentes ou potenciais, estão sendo atendidas de forma otimiza-da pelos serviços de saúde, dado o conhecimento atual a respeito da distribuição, reconhecimento, diagnóstico e manejo dos problemas e preocupações referentes à saúde (Starfield, 2002, p. 419).

O termo qualidade também tem sido empregado em sentido amplo, envolvendo também a qualifica-ção do pessoal, a segurança e a aparência agradável das unidades de saúde, bem como a adequação dos equipamentos que contribuem para a prestação de serviços. Starfield observa que a qualidade da atenção pode ser vista em duas perspectivas: clínica e populacional. Na perspectiva clínica, a preocu-pação está centrada no impacto das ações dos profissionais de saúde, individualmente ou em grupo, sobre a saúde do usuário. Do ponto de vista da população, avaliam-se o acesso aos serviços, a dispo-nibilidade da atenção e a capacidade de resolver ou contribuir para a solução de um amplo espectro de problemas, numa perspectiva integral da saúde.

Donabedian (1988) leva em conta que, para a avaliação da qualidade dos serviços de saúde, pode-se tomar todos ou alguns dos componentes que conformam um programa: a estrutura, o processo e os resultados. A estrutura corresponde ao que é relativamente estável no sistema, isto é, todos os atributos – materiais e organizacionais – que permitem que uma unidade proporcione atenção: dis-ponibilidade de instalações, equipamentos, recursos humanos. Deste modo, são classificados como estruturais todos os elementos relativos ao desenho institucional, à organização do sistema, ao elenco de ações ofertadas e à disponibilidade de recursos.

O processo refere-se ao conjunto de atividades e procedimentos empregados no manejo dos recur-sos, ou seja, à produção do profissional de saúde. Verifica-se contato da população com os trabalha-dores de saúde, o cuidado dos trabalhadores de saúde com o doente, desde a identificação de um problema, a formulação de um diagnóstico, o tratamento e o posterior controle para verificação se o problema foi resolvido. À população competiria a utilização do serviço, sua aceitação, adesão ao tratamento e participação.

Os resultados são vistos como aqueles da atenção prestada, em particular, às mudanças produzidas no estado de saúde dos indivíduos atendidos ou às mudanças de comportamento, conhecimento ou satisfação dos usuários dos serviços – ou seja, o impacto sobre o estado de saúde da população (Do-nabedian, 1984, 1990; Hartz, 1997; Starfield, 1992; Sala, 1990).

A qualidade do serviço pressupõe a referência a um modelo idealizado que leva em conta um conjunto articulado de ações com efetividade comprovada em determinadas situações de saúde e doença, desen-volvidas dentro de uma relação humanizada entre a equipe e os usuários, sendo percebida satisfatoria-mente por estes últimos, em termos de suas expectativas (Donabedian, 1984, 1988a, 1988b, 1990; Libério, 2001). A verificação de uma estrutura que garanta o funcionamento do serviço e os resultados epidemiológicos obtidos pelas ações desenvolvidas complementam a observação da qualidade na saúde.

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Os conceitos de acolhimento, vínculo-responsabilização e qualidade da atenção se articulam, como visualizado na Figura 1, na construção dos processos de trabalho e dos modelos tecnoassistenciais. Essa concepção nos permite pensar formas de operacionalizar a avaliação dos programas e serviços de saúde.

Considerações metodológicas

As definições da avaliação são numerosas e sua taxonomia extensa. Optamos pela definição de Con-tandriopoulos et al. (1997, p. 31):

Avaliar consiste fundamentalmente em fazer um julgamento de valor a respeito de uma intervenção ou sobre qualquer um de seus componentes, com o objetivo de ajudar na tomada de decisões. Esse julgamento pode ser resultado da aplicação de critérios e de normas (avaliação normativa) ou se elaborar a partir de um procedimento científico (pesquisa avaliativa).

A avaliação normativa, segundo Clemenhagen e Champagne (1986), é atividade comum numa orga-nização ou num programa e corresponde às funções de controle e acompanhamento, assim como aos programas de garantia de qualidade. Já a avaliação normativa é:

atividade que consiste em fazer um julgamento sobre uma intervenção, comparando os recursos empregados e sua organização (estrutura), os serviços ou os bens produzidos (processo) e, os resul-tados obtidos, com critérios e normas (Contandriopoulos et al., 1997, p. 34).

A avaliação normativa se apoia na construção de critérios e normas, que podem derivar dos resulta-dos da pesquisa avaliativa ou de outro tipo de pesquisa. Hartz (1997, p. 35) destaca que todas as ava-liações normativas se apoiam no postulado de que existe forte relação entre o respeito aos critérios e às normas escolhidas e os efeitos reais do programa ou da intervenção.

A construção e validação de critérios permitem a apreciação dos diversos componentes de um progra-ma. Trata-se de saber em que medida os serviços são adequados para atingir os resultados esperados. A apreciação do processo de uma intervenção, visando a oferecer serviços para determinada clientela, pode ser decomposta em três dimensões: a técnica, a das relações interpessoais e a organizacional. A dimensão técnica dos serviços focaliza sua adequação às necessidades dos clientes e a qualidade dos serviços; a dimensão das relações interpessoais observa a interação psicológica e social entre os clientes e os produtores de cuidados, no apoio aos pacientes e na satisfação destes; a dimensão organizacional do processo diz respeito à acessibilidade aos serviços e à extensão de cobertura dos serviços oferecidos.

A pesquisa avaliativa, de acordo com Contandriopoulos et al. (1997, p. 37), é um procedimento que consiste em fazer julgamento ex-post da intervenção, analisando a pertinência, os fundamentos teóricos, a produção, os efeitos e o rendimento de uma intervenção, assim como as relações entre a intervenção e o contexto, ajudando na tomada de decisões. Os autores afirmam que a pesquisa avaliativa consiste em usar várias estratégias e considerar as perspectivas dos diferentes atores envol-vidos na intervenção. A pesquisa avaliativa pode ser decomposta em seis tipos de análise: estratégica, de intervenção, de produtividade, dos efeitos, de rendimento e da implantação. Pode-se, portanto, realizar uma ou várias dessas análises.

Destacamos, como abordagem privilegiada desta pesquisa, entre os modelos avaliativos propostos por Contandriopoulos et al. (1997), a análise de implantação das intervenções. Esta exige que se estabeleça um julgamento de adequação e integridade do funcionamento do programa, obtido pelos indicadores de cobertura, da qualidade das estruturas e dos processos envolvidos, coerentes com os princípios de avaliação da qualidade.

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O estudo dos processos envolve abordagens múltiplas e em ambiente ambulatorial, como da Atenção Primária à Saúde. É dificultado pela relação mais esparsa entre usuários e profissionais e problemas de duração indeterminada, diferentemente da atenção hospitalar, em que o contato da equipe com o paciente é intenso e tem duração determinada.

Starfield apresenta várias abordagens metodológicas para avaliar o processo de atenção à saúde por equipes de atenção primária (2002, p. 428-452). Em grande parte dessas abordagens, utiliza-se a re-visão de prontuários como fonte de informação e avaliação da qualidade na prestação de serviços. Co-tejam-se as informações registradas nos prontuários com padrões preestabelecidos e avaliados como indicativos de boa atenção para alguns problemas selecionados. Observam-se algumas características da atenção nos problemas considerados importantes, especificamente para o controle dos mesmos, assim como outras características inespecíficas que são importantes para a atenção dos usuários em geral. Essa abordagem pode ser articulada com a abordagem dos traçadores, de Kessner et al.(1992).

Kessner et al. (1992) propõem que a avaliação seja restrita a certas condições ou patologias consi-deradas “representativas” (tracer conditions ou “traçadores”) das responsabilidades do sistema de as-sistência. A definição desses episódios incluiria todos os encontros para o manejo dos casos em que uma parte seja realizada por profissionais de saúde. O método possui a vantagem de poder combinar os elementos da avaliação do processo e do resultado da assistência. Para a escolha dos “traçadores representativos”, devemos considerar a prevalência do problema, a facilidade do diagnóstico e a dis-ponibilidade de tecnologia de eficácia reconhecida para prevenção e/ou tratamento.

Scochi (1996, p. 46) propõe uma adaptação, no sentido de se utilizar os traçadores para avaliação de programas. Procura identificar o cumprimento das normas consideradas adequadas para grupos especiais da população, ampliando o enfoque que se entende como possível para tratar não apenas patologias, mas ações de caráter preventivo. Nesse sentido, ampliam-se as possibilidades da proposta, bem como de avaliação de um maior número de atividades em relação ao cumprimento de normas e procedimentos.

A seleção de um ou mais programas, pela suposição de que o desempenho das outras atividades nas unidades de saúde é semelhante, permite identificar possíveis falhas nos serviços de saúde ofertados pela rede. Esse é um princípio geral que orienta a metodologia dos traçadores. A abordagem dos traçadores permite também analisar as situações do ponto de vista dos profissionais de saúde e da população.

A utilização de várias fontes, métodos e abordagens diferentes é exigência decorrente da complexida-de do processo de avaliação em saúde. O entendimento sobre a importância dessa “pluralidade meto-dológica” possibilita a utilização de informações obtidas através de diferentes abordagens e contribui para ampliar o poder explicativo da avaliação. Para se obter uma visão mais ampla e consistente do objeto de estudo, busca-se lançar mão da “triangulação”, que “consiste na combinação e cruzamento de múltiplos pontos de vistas, através do trabalho conjunto de vários pesquisadores, múltiplos infor-mantes e múltiplas técnicas de coleta de dados” (Minayo, 1999, p. 241).

Como exemplo, Mascarenhas (2003) utilizou, em estudos de caso de comunidades atendidas por modalidades distintas de Atenção Básica (unidade básica tradicional e módulo de médico de família): entrevistas com usuários portadores de condição traçadora (hipertensão arterial e pré-natal), en-trevista com os profissionais e análise de prontuários, buscando validar os achados qualitativos com aqueles obtidos pela análise de implantação4.

4 Nos quadros 1, 2 e 3, resumimos o conjunto de indagações sistematizadas sobre o processo de trabalho, envolvendo acolhimento,

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A execução da pesquisa avaliativa se processa com maior conforto e precisão de informações quando é feita por equipe de fora do cotidiano dos serviços avaliados. Entretanto, os métodos de coleta de in-formações, os conceitos que instrumentalizam a investigação e os resultados obtidos permitem uma apropriação, por parte das equipes locais, de ferramentas de avaliação de seu próprio trabalho, crian-do parâmetros para o acompanhamento e desenvolvimento de estratégias de qualificação da atenção à saúde. Exemplos disso são encontrados nas experiências do uso da ferramenta “fluxograma avaliador” proposta por Merhy et al. (1997) e operacionalizada por Menezes (1998) e Silva Júnior et al (2003).

Considerações finais

A possibilidade de usar os conceitos de acolhimento, vínculo-responsabilização e qualidade de aten-ção, articulados e operacionalizados através da indagação aos múltiplos atores envolvidos no processo de atenção à saúde, permitiria inferir sobre a integralidade nessa atenção e verificar a direcionalidade da construção do modelo tecnoassistencial em coerência com os princípios do SUS.

Mais do que uma intervenção pontual de caráter avaliativo, a pesquisa avaliativa acrescenta instru-mentos para pensar o cotidiano dos serviços, das práticas de seus profissionais e da relação com a população, numa visão autocrítica e estimulante de protagonismo desses atores.

FIGURA 1 – Articulação dos conceitos atenção

vínculo-responsabilização e qualidade da atenção.

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QUADRO 1 – Processo de trabalho: acolhimento

QUADRO 2 – Processo de trabalho: vínculo/responsabilização

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QUADRO 3 – Processo de trabalho: percepção sobre a qualidade da atenção

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Para saber mais(Bibliografia complementar)

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2. HARTZ, Zulmira M. de Araújo; CONTANDRIOPOULOS, André-Pierre. Integralidade da atenção e inte-gração de serviços de saúde: desafios para avaliar a implantação de um “sistema sem muros”. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, n. 20, sup. 2, p. s331-s336, 2004.

3. GIOVANELLA, Ligia; MENDONÇA, Maria Helena Magalhães de; ALMEIDA, Patty Fidelis de; ESCOREL, Sarah; SENNA, Mônica de Castro Maia; FAUSTO, Márcia Cristina Rodrigues; DELGADO, Mônica Men-donça; ANDRADE, Carla Lourenço Tavares de; CUNHA, Marcela Silva da; MARTINS, Maria Inês Carsa-lade; TEIXEIRA, Carina Pacheco. Saúde da família: limites e possibilidades para uma abordagem integral de atenção primária à saúde no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, n. 14, v. 3. p. 783-794, 2009.

4. LIMA, J. C.; RIVERA, F. J. U. Agir comunicativo, redes de conversação e coordenação em serviços de saú-de: uma perspectiva teórico-metodológica. Interface – Comunicação, Saúde, Educação, online 1807-5762. 2009.

5. TRAVASSOS, Cláudia; MARTINS, Mônica. Uma revisão sobre os conceitos de acesso e utilização de serviços de saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, n. 20, Sup. 2, p. S190-S198, 2004.

6. MENDES, Eugênio Vilaça. As redes de atenção à saúde. Belo Horizonte: ESP/MG, 2009.

7. BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS n. 648, de 28 de março de 2006. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica para o Programa Saúde da Família (PSF) e o Programa Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Brasília: MS, 2006.

8. BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Atenção Básica. In: BRASIL. Ministério da Saúde. Pactos pela Saúde 2006. Brasília: MS, 2009. (Coletânea, CD 01: v. 4)

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Módulo 5: Trabalho em Equipe

5.1. Trabalho em equipe�� Trabalho em equipe x responsabilização e compromisso.

�� A equipe como gestão coletiva.

�� Estudos de caso: relacionamento com os usuários, família e comunidade.

�� Produção de texto a partir da narrativa da experiência dos trabalhadores de saúde participantes do curso.

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TEXTO BÁSICO

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O TRABALHO EM EQUIPE COMO DISPOSITIVO DE INTEGRALIDADE: EXPERIÊNCIAS COTIDIANAS EM QUATRO LOCALIDADES BRASILEIRAS1

CRISTIANA BONALDIRAFAEL DA SILVEIRA GOMES

ANA PAULA FIGUEIREDO LOUZADAROSENI PINHEIRO

Os inúmeros debates e pesquisas acerca do tema da integralidade em saúde realizados nos últimos anos mostram que não podemos propor um único sentido para o termo. O que se percebe nesses estudos é que as práticas de integralidade são tão variáveis quanto as realidades dos locais onde se realizam os serviços – mais que isso, que essas práticas se transformam incessantemente. A tentativa de produzir definições a priori para um suposto conceito de integralidade sempre se dá sob o risco de restringir sua potência de transformação das práticas de saúde.

A integralidade se constitui como práticas que emergem em meio a um campo de forças e lutas formado por movimentos de usuários, trabalhadores e gestores, por propostas políticas, limitações de financiamento, programação e planejamento das três esferas governamentais, inseridos numa realidade sócio-histórica singular. As lutas por melhores condições de saúde e de trabalho emergem a partir das realidades dos serviços oferecidos à população. Os programas de governo, planejados mediante a imposição de “modelos ideais” (PINHEIRO; LUZ, 2006), sem levar em consideração o contexto local, com o qual sempre se deparam no momento de sua implementação, nos cotidianos dos sujeitos em suas práticas nos serviços de saúde. É no contato entre gestores, trabalhadores e usuários, num dado lugar, que se produzem práticas diversificadas de saúde.

No espaço político cotidiano onde se constroem as demandas, fruto de um interrelacionamento entre normas e práticas que orientam os diferentes atores envolvidos (indivíduos, profissionais e ins-tituições), são formuladas e implementadas políticas de saúde, seja de uma localidade, de um estado ou país (PINHEIRO, 2005). Com isso modifica-se a visão que localiza a oferta nas mãos dos gestores e profissionais e vincula a demanda somente aos usuários, focando-se na relação construída pelos atores de forma situada e contextualizada.

1 Publicado originalmente em: BONALDI, Cristiana; GOMES, Rafael da Silveira; LOUZADA, Ana Paula Figueiredo; PINHEIRO, Roseni. O trabalho em equipe como dispositivo de integralidade: experiências cotidianas em quatro localidades brasileiras. In: PINHEIRO, Roseni, MATTOS, Ruben Araújo de; BARROS, Maria Elizabeth Barros de (Orgs.). Trabalho em equipe sob o eixo da integralidade: valores, saberes e práticas. Rio de Janeiro: CEPESC-UERJ/ABRASCO, 2007. p. 53-72.

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O que se entende por saúde, o que se deseja em relação a ela, as necessidades de saúde, o que se es-pera dos serviços e a concepção de integralidade, tudo é construído nessas negociações constantes. Para entender a demanda em saúde e a produção de práticas de integralidade, é fundamental entender como as relações são travadas nos diversos serviços. Para tanto, surgem algumas perguntas iniciais: como se organizam os serviços? Como se estabelecem as relações dos diferentes profissionais da equi-pe? E destes com os usuários? Quais saberes e valores que direcionam suas práticas? Estes saberes e valores propiciam práticas de integralidade?

Partindo do entendimento de que a integralidade só se expressa nas práticas e que estas são pro-duzidas sempre a partir de relações entre os atores nos diferentes serviços, as pesquisas produzidas sobre o tema devem partir dos locais onde as práticas se corporificam, nos espaços onde as relações se estabelecem.

Nesse sentido, segunda fase do Projeto Integralidade foi realizada em quatro diferentes localidades: Aracaju, Piraí, Porto Alegre e Belo Horizonte. Esses serviços foram escolhidos por apresentarem práticas inovadoras e por serem espaços permanentes de formação de profissionais de saúde.2

Por entendermos a integralidade como expressões singulares do agir em saúde, não tivemos como objetivo comparar as diferentes experiências, ou ainda definir qual serviço é ou não integral; ao contrário, buscamos neste texto potencializar pistas, detalhes, indícios de práticas de integralidade que emergem nesses diferentes espaços, de formas e em momentos distintos. A partir da análise dos dados empíricos coletados nas quatro localidades estudadas, tornou-se possível delinear o trabalho em equipe como um dispositivo para efetivação da integralidade em saúde.

Para tanto, propomos duas rotas analíticas para apresentação a análise: a primeira, que concerne à busca de se superar as hierarquias existentes no trabalho em saúde, a partir das categorias de corpo da saúde e coletivo de trabalhadores; e a segunda, que se refere à necessidade de travar uma discus-são sobre a importância dos valores éticos no estabelecimento de uma responsabilidade coletiva na produção do cuidado em saúde, utilizando a metáfora da orquestra como signo de sua materialização.

Trabalho em Saúde – do “corpo da saúde” ao “coletivo de trabalhadores” – para além das hierarquias – a primeira rota analítica

Aqui não tem ninguém mais importante que o outro, porque, por exemplo, a viatura não roda sem o condutor. Também ela não roda sem o médico. A gente não vai fazer nada se não tiver o médico. No início só tinha o condutor. A gente começou sem enfermeiro, sem médico, era só o condutor. Mas também a gente não fazia nada, era, simplesmente era... Então, um SAMU com uma central de ambulâncias é diferente. Aí eu vejo que, por exemplo, quando a gente tem algumas reuniões, algumas coisas, a gente vê que essa pergunta que você fez “quem é mais importante” não existe. No nosso corpo quem é mais importante? O braço, a perna, a cabeça, o tronco? Quem é mais impor-tante? Um não anda sem o outro. (Chefe da Frota – SAMU Aracaju)

Cabe perguntar aos coletivos de trabalhadores quem é mais importante durante os processos de aten-ção/assistência à saúde? Ou mesmo antes, nos processos de trabalho, independentemente dos locais ou áreas de execução, é possível perguntar a quem executa a importância de seu trabalho? Há traba-lho que possa ser reduzido a um sujeito? Todo trabalho configura-se como um trabalho em equipe?

2 Sobre a pesquisa, ver a Introdução desta coletânea.

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Segundo o trabalhador em saúde entrevistado em Aracaju, chefe da frota das ambulâncias do SAMU, quem é mais importante no corpo: o braço, a perna, a cabeça, o tronco? Mas talvez haja um estra-nhamento inicial, ainda anterior a este: um condutor de ambulância compõe uma equipe em saúde? Quem são os atores que podem ser incluídos nessa categoria?

Esta pesquisa tem como eixo analisar práticas de integralidade em diferentes contextos, conforme já apontado. Especificamente, gostaríamos de trazer questões pertinentes que atravessam o fazer desses profissionais. Para isso, tomamos como referência:

�� todo trabalho atravessa um sujeito que nunca obedece apenas a prescrições;

�� esse trabalho nunca ocorre só, remete necessariamente a uma coletividade;

�� as equipes, conjunto de trabalhadores direta ou indiretamente envolvidos nos processos de atenção a saúde, podem compor um coletivo de trabalho.

A Ergologia, conforme texto de Louzada, Bonaldi e Barros, nesta coletânea, aponta para uma ur-gência de pensar o trabalho como campo dramático, como um processo de tomada de decisões constantes. É por essa via, a partir da perspectiva de gestão de um saber fazer comum, pautado num processo contínuo de tomadas de decisões, ao mesmo tempo individuais e coletivas, que gostaríamos de discutir a integralidade, como produções cotidianas de fazeres e saberes, em prol de uma ética, numa responsabilização coletiva de todos os atores envolvidos nos processos de saúde.

Pensar/viver a integralidade aponta para uma ruptura de valores tradicionais historicamente demar-cados no campo da saúde, como: hierarquia, distribuição de categorias profissionais, compartimen-talização de saber/fazer nessas categorias.

Durante longo tempo, foi como se o “corpo-trabalho” em saúde pudesse ser distribuído em funções, devidamente separadas e hierarquizadas, nas quais obviamente alguns tecidos e órgãos seriam mais im-portantes que outros. Neste artigo, para analisarmos as práticas de integralidade, partimos do princípio de que ao usarmos a metáfora do trabalho em saúde como “corpo”, entendemos esse corpo como algo da ordem do coletivo, e não como uma mera junção de partes. Não há órgão ou tecido mais importante que outros; ou melhor, um não funciona sem estar com o outro. Portanto, trabalhar em equipe pressu-põe mais do que diferentes categorias profissionais atuando no mesmo espaço, ou no mesmo “objeto”/alvo da intervenção: pressupõe a tessitura de um saber-fazer comum, um fazer com.

Dessa forma, a perspectiva da integralidade nos remete a superação das fragmentações e cisões pre-sentes nos cotidianos dos diversos serviços que compõem o Sistema Único de Saúde (SUS). O desafio se amplia quando pensamos na imensa heterogeneidade que caracteriza o SUS: diversidade de práti-cas, planejamentos, organização dos serviços, distinção na formação dos profissionais, nas experiên-cias de trabalho e desigualdade nas condições de vida.

No entanto, essa heterogeneidade aumenta o desafio diário de produzirmos práticas de integralidade. Como tecer em cada contexto específico de trabalho, com suas demandas diferenciadas e serviços tão diversos, uma prática que perpasse o cotidiano no sentido de promover a vida, promover o encon-tro, através desse saber-fazer comum? Como são acionados (deflagrados/produzidos) sentidos éticos nos enfrentamentos cotidianos dos trabalhadores, gestores e usuários em saúde em questão?

Na pesquisa não desejamos buscar uma homogeneização das práticas de integralidade, pois isso seria negar tudo o que vem sendo discutido sobre o tema, esquecendo a diversidade de atores e a variabilidade do meio em que os serviços acontecem. Isso vai de encontro à emergência de práticas

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de integralidade, que pressupõem a abertura a alteridade e a diferença, conforme apontado por Gomes, Silva e Pinheiro nesta coletânea.

O trabalho em equipe na saúde, objeto de análise deste texto, acontece na presença de diferentes atores, profissionais com distintas formações na área da saúde e delineia-se exatamente pela poten-cialidade, pelo desafio que a articulação desses diferentes profissionais, com diferentes saberes e práticas, têm de produzir saúde. As equipes de saúde possuem diferentes desenhos, com um número variável de profissionais e de formações e funções, de acordo com as características locais. Quando/como essas equipes começam a operar como coletivos?

Esses diferentes desenhos das equipes são elemento importante destacado pelos entrevistados, con-forme apontado a seguir:

A equipe é uma equipe multidisciplinar, que consta um enfermeiro obstetra que são durante o dia dois enfermeiros obstetras, tem dois médicos obstetras, um pediatra, um anestesista, um residente em anestesia, um acadêmico de medicina – que faz mais a parte de pediatria - tem psicólogo, fisio-terapeuta, tem a doula, tem a auxiliar, tem técnicos de enfermagem, tem secretária, tem o pessoal da recepção, tem a terapeuta ocupacional... (Enfermeira, Belo Horizonte)

Entretanto, a manutenção da divisão por categorias profissionais e a forte hierarquização ainda presente nas equipes impedem a articulação entre os profissionais e transformam esse espaço de produção de saúde potencial num espaço de desavenças, lutas corporativas e de desqualificação do outro. Como aponta uma técnica de enfermagem, em um nítido registro da hierarquização vivida no cotidiano da equipe:

Ah, da minha equipe, o importante é o médico. Porque ele é a base de tudo. (Técnico de Enferma-gem, USF Aracaju).

E o PSF não, ele tem essa possibilidade de formar esse vínculo. Então, por isso, que a base mesmo, nossa, do nosso trabalho no PSF, é o médico. A enfermeira é superimportante, em segundo lugar. O meu trabalho é superimportante, porque eu estou sempre com o vínculo, formando um vínculo com eles dois. E todos juntos com os agentes de saúde (Técnico de Enfermagem, USF Aracaju)

Percebemos que muitas vezes a marca da corporação nega os outros profissionais como parceiros, torna invisível sua atividade e reduz a equipe apenas aos diferentes especialistas de uma mesma cate-goria profissional.

[...] nós trabalhamos com os médicos plantonistas da maternidade, existem os plantonistas da anestesia, que são dois [...] Eles também fazem anestesia para cesarianas, e para revisões pós-parto quando necessário, né? Nós temos também os plantonistas do berçário, que são os pedia-tras, que tão presentes sempre na hora do parto também, e após o atendimento do nenê, que em outras épocas quem fazíamos éramos nós, em termos de entubar, oxigenar, coisas assim, quando havia necessidade. (Médico, Porto Alegre)

O entendimento ainda presente nos diferentes serviços, mas sobretudo nos ambientes hospitalares, é resultado histórico do modelo assistencial hospitalocêntrico, que ainda se faz presente significati-vamente nos serviços e nas diferentes formações profissionais do setor, não obstante a proposição do SUS da mudança de modelo. Tal posição entende a equipe multiprofissional como a simples justapo-sição de profissionais, não pressupõe a superação da fragmentação dos procedimentos e das relações com os demais trabalhadores, tornando-se um empecilho às práticas de integralidade. A simples jus-taposição dos diferentes profissionais, ao invés de garantir um atendimento integral, expõe e ressalta a fragmentação do cuidado, uma vez que não garante a continuidade dos processos.

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Essa hierarquia “dura” nega os diferentes saberes (“aqui trabalham médicos obstetras, pediatras, anestesistas”, sendo os outros profissionais simplesmente invisíveis), ou aponta para uma legitimidade menor (o importante na equipe é o médico), e a partir dessa negação ou ausência de legitimação, fragmenta e impede a ação coletiva. Entretanto, não gostaríamos de afirmar a necessidade de uma completa ruptura das hierarquias. O que estamos salientando é a necessidade de desfragmentar (inte-grar, enfim), os processos em equipe, e não equiparar – como iguais – os diferentes saberes e fazeres:

Não importa qual a função que você faça, que você tenha, o respeito aparece. Você é respeitado por aquilo que você faz. Você falou de hierarquia; aqui não hierarquia, mas isso está na legislação de en-fermagem, é que o auxiliar e o técnico de enfermagem estão sob a responsabilidade, o trabalho todo de enfermagem está sob responsabilidade do enfermeiro. A única hierarquia que tem é essa. Mas isso não implica assim, numa hierarquia de mando! De mando autoritário. (Enfermeira, Belo Horizonte)

Como aponta Campos (2000), ainda que a equipe multiprofissional seja recomendada como solu-ção milagrosa para superar os problemas da fragmentação e da desresponsabilização decorrente da especialização excessiva dos profissionais, a simples implementação não garante que se alcance esse objetivo. Dois modelos de trabalho em equipe devem ser superados: um que se fundamenta no sim-ples agrupamento de especialidades, a partir de uma articulação burocrática do trabalho, baseada em protocolos e programas normativos que tendem a fazer com que cada trabalhador se sinta responsável por fazer o que se restringe a sua área técnica; e outro, que se baliza numa falsa horizontalização em que “todos fariam tudo e ninguém seria pessoalmente responsável por nada em particular, já que a responsabilidade pelo projeto terapêutico seria sempre coletiva” (CAMPOS, 2000, p. 248).

Mais uma vez, a fala do condutor (ou seria essa fala um fio analítico condutor?):

A gente vê casos aqui, que é obrigação da enfermeira, mas a auxiliar sabe fazer e aí ela passa pra auxiliar fazer. Quando ela começa a cobrar, a gente vê, cada classe tem um representante, “não, mas não é o seu papel”. “A viatura está suja”. Não é obrigação do condutor lavar. Tem lavador pra lavar a viatura, mas tem condutores que não, assim, não tem esse negócio de dizer “não, eu não lavo. Eu lavo”. Por exemplo, checar uma UTI dessa. É obrigação da enfermeira. A auxiliar não tem essa obrigação, porque, por exemplo, ela (enfermeira) tem que saber onde estão todos os medicamentos. Porque na hora que acontece um acidente o médico pede a ela. Aí funciona a hierarquia. Dentro da UTI funciona a hierarquia. Ele não pede ao auxiliar, ele pede a enfermeira. “Enfermeira, tanto de adrenalina. Enfermeira, tanto de anestesia”. A enfermeira que tem que saber, está entendendo? E aí, o que acontece? Chega de manhã cedo, na troca de plantão, ela manda a auxiliar conferir. E aí às vezes a auxiliar confere, bota no papel, e aí a quantidade que ela colocou não é suficiente pra o caso. E aí quando chega lá, cadê? Aí é por isso que quando a gente tem reunião a gente tem que ver. Você já pensou se eu pedisse para um médico ir lá olhar o óleo do carro? Então, se cada um fizer a sua parte todo mundo é importante. (Chefe da frota, SAMU Aracaju)

Portanto, não se trata nem de uma responsabilização prescritiva, nem de uma horizontalização, pois esses dois modos de constituir as equipes em saúde não bastam, ou não dão conta das práticas em integralidade.

A transformação das práticas proposta pelo SUS, por meio de “modelos mais porosos aos contex-tos em que se inserem”, exige que o trabalho em equipe valorize a polifonia decorrente do efetivo exercício efetivo da multiprofissionalidade, a diversidade de vozes e discursos. As diferenças entre os saberes e práticas devem ser “harmonizadas3” e não negadas ou minimizadas, cada trabalhador deve saber o que vai fazer, quando e como de acordo com cada nova situação, e com a atuação dos demais membros da equipe. A atuação dos diferentes profissionais deve dar-se a partir da noção do

3 Compreendendo harmonia como “combinação de elementos diferentes e individualizados, mas ligados por uma relação de pertinência, que produz uma sensação agradável e de prazer” (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 1.506).

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agir em concerto, que se baseia no respeito às especificidades e responsabilidades de cada profissional, e na afirmação o trabalho em saúde não restringe, nem se encerra, no fazer de nenhum trabalhador especificamente (GOMES; GUIZARDI; PINHEIRO, 2005).

Então, na unidade básica a gente tem um condutor e um técnico de enfermagem, e eles dividem em partes o que um faz, o que o outro faz. Os dois têm que saber fazer a mesma coisa. Só que, por exemplo, pra você colocar um soro, ela é que coloca. É o papel dela. Da auxiliar ou do auxiliar. Do técnico que tiver lá. Aí não cabe ao condutor. A gente faz, por exemplo, uma imobilização. “Ah, tem que colocar o colar”. Um tem que segurar a cabeça, o outro tem que colocar o colar. “Ah, tem um braço quebrado com fratura exposta”. Um segura a tala, o outro... Então tem que trabalhar em conjunto. Já na USA, que é a Unidade de Saúde Avançada, a UTI móvel, aí a gente tem o condutor, que faz o mesmo papel. Ali tem um médico, que aí ele é o responsável, que aí é um caso mais avan-çado que vai para um tiro, uma facada. (Motorista SAMU, Aracaju)

A orquestração do trabalho em equipe: a diferença como valor ético para o estabelecimento de uma responsabilidade coletiva na produção do cuidado em saúde. Segunda rota analítica

A orquestração do trabalho em equipe é resultante dessa composição de forças, saberes e práticas, da harmonização das atuações profissionais, da afirmação das diferenças e do reconhecimento do saber do outro para a realização do trabalho. A orquestração do trabalho em saúde se baseia numa espé-cie de “humildade epistemológica” (SCHWARTZ, 2000), no reconhecimento de que os diferentes saberes profissionais possuem zonas de incultura e que a presença de trabalhadores com diferentes formações e funções permite reduzi-las.

Você tem que ter uma noção, por exemplo, eu tenho um acidente pra ir lá no Augusto Franco. Olha, daqui pro Augusto Franco você tira no máximo uns sete minutos. Então, quando o médico entra dentro dessa viatura ele já tem que pensar, já tem que estar no pensamento dele: por onde eu vou? Qual o lugar mais rápido pra eu chegar? Eu já tenho que estar de imediato pensando nisso. E olha aonde a adrenalina do cara vai. Porque, por exemplo, eu vou ter que andar numa alta velocidade, com sirene ligada, porque essa [viatura] daqui só sai pra casos complexos. Quer dizer, aí eu vou bo-tar um médico? Têm médicos que não sabem dirigir um carro desse. Mas eu também não sei operar. Tá entendendo? Então, coisas que eles têm que entender que o condutor é importante, que a auxiliar é importante, que a enfermeira é importante. (Chefe da Frota, SAMU Aracaju)

O sentimento de que os diferentes trabalhadores são fundamentais para a realização do serviço refor-ça a noção de pertencimento a equipe de saúde, produzindo uma outra forma de comprometimento que rompe as fronteiras de seu saber específico ou de um campo de atuação definido. O trabalhador entende que o cuidado não se restringe a sua ação e que ele é um dos responsáveis pelo serviço, tal qual o músico numa orquestra que, mesmo com o instrumento de sonoridade mais discreta, ou aque-le cuja participação se limita a alguns movimentos, se sente como parte fundamental para execução e obra executada.

Eu até estava brincando com um colega meu um dia desses e ele me viu com a camisa do resgate e disse “Ué, você trabalha dentro da ambulância agora?” e eu disse bem assim: “não, eu trabalho no setor de regulação” e ele falou “então porque você está com a camisa do resgate?” e eu disse: “olha, se você ligar pra lá e eu não te atender ou desligar o telefone o pessoal não vai, né?” (risos) Então eu faço parte do sistema, né? (Regulação - Aracaju)

Essa fala aponta para comprometimento, responsabilização das ações. Como a equipe de atendimen-to emergencial pode chegar ao usuário que naquele momento necessita de uma intervenção rápida, se

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o processo de escuta, de acolhimento e encaminhamento não for feito pelo atendente? Daí o trabalho como necessariamente compartilhado.

O comprometimento com o outro, junto ao sentimento de pertencimento à equipe, supera a desres-ponsabilização mencionada por Campos (2000); o sucesso ou fracasso passam a ser responsabilidade da equipe e não dos profissionais individualmente. A emergência da responsabilidade coletiva faz com que todos se sintam responsáveis pelo cuidado do usuário do serviço.

Eu acho que a minha responsabilidade na atuação com essa mãe é tão grande quanto a de um procedimento cirúrgico dentro de uma unidade, sabe? Acho que às vezes uma fala minha, uma intervenção minha inadequada, isso vai trazer tantas... Vai causar tanto mal para essa pessoa quanto às vezes um erro. Então, assim, acho que é tão difícil você hierarquizar, porque dentro da especificidade, dentro da atuação de cada um, o nível de responsabilidade é muito grande, de todos nós. (Enfermeira, Belo Horizonte)

A responsabilidade coletiva não se baseia numa noção de que ninguém é culpado pelo erro, ou mes-mo, que todos são culpados por todos os atos cometidos pelos diferentes profissionais. Como nos mostra Arendt (2004), não podemos falar de culpa coletiva, uma vez que não há uma culpa vicária, que pode ser outorgada a outrem; a culpa é sempre pessoal, uma vez que está estritamente ligada a um ato, e não a intenções ou possibilidades. Este seria um ponto fundamental da distinção entre cul-pa e responsabilidade: podemos falar de uma responsabilidade vicária, coletiva. “Em outras palavras há uma responsabilidade por coisas que não fizemos[...] mas não há um ser ou sentir-se culpado por coisas sem que se tenha participado ativamente dela”(ARENDT, 2004, p. 213). A responsabilidade coletiva, sempre política, estaria condicionada à responsabilização de alguém por algo que ele não tenha feito, mas por seu pertencimento ao grupo (coletivo) responsável; ele é responsável por coisas que não participou, mas que foram feitas em seu nome e nenhum ato pode dissolver. A única forma de escapar seria abandonando o grupo (coletivo) a que pertence.

Desta forma, cada trabalhador é responsável por todas as ações da equipe. A orquestração do tra-balho em saúde, ao harmonizar as diferentes práticas, ao produzir o sentimento de pertencimento à equipe e de comprometimento com o outro, ressalta essa dimensão política, a da responsabilidade por todas as ações.

Então não tem como falar, estou mais tranquila aqui porque a responsabilidade maior é desse pro-fissional, ele que está determinando a conduta, o medicamento, então se der erro, o erro que vai provocar uma morte, por exemplo, não é meu, porque eu não estou prescrevendo, não estou in-tervindo dessa forma. Mas eu não consigo me eximir dessa responsabilidade, porque acho que o dever de estar junto dessas pessoas, de auxiliar, o compromisso é tão grande que a responsa-bilidade, é difícil de... eu não consigo (Enfermeira, Belo Horizonte).

Assim, a responsabilidade coletiva afirma um compartilhar, um saber/fazer comum, no qual erros e acertos são processos acionados nos coletivos, conforme aponta a fala de uma técnica de enferma-gem, que nos instiga a pensar sobre isso:

Alguém deve ter saído chateado, não sei; não se identificou, não tem como a gente saber quem é quem [a entrevistada está fazendo referência à reclamação que fizeram sobre seu trabalho na ouvidoria]. Mas, o que eu passei para a minha gerente, na época, eu falei assim: “Olha, o que eu faço eu não faço só, eu faço em equipe”. Então, eu pegava as pessoas; perguntava quem era o primeiro; ouvia, fazia a escuta; verificava sinais vitais; se tivesse alguma intercorrência, eu encaminhava para o médi-co ou para a enfermeira. Então, se alguém deixou de ser atendido, não foi só por mim, foi por uma equipe. (Técnico de Enfermagem, Aracaju - grifo nosso)

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Talvez um dos grandes entraves para a compreensão dessa responsabilidade como da ordem de um coletivo seja que nossa ideia de responsabilidade aponta muito mais para uma responsabilização, muito próxima a uma atribuição de uma culpabilização, sempre individual. Ao traçarmos, conforme Arendt (2004), a noção de responsabilidade compartilhada nos/pelos coletivos, apresenta-se outra possibilida-de de análise fundamental para entendermos a equipe como gestão coletiva: a cooperação e a confiança.

Por realizar procedimentos, uma série de coisas, eu acho que a enfermagem, ela tem uma res-ponsabilidade muito grande, porque o médico prescreve, às vezes ele prescreve até errado, mas a enfermagem tem que conferir a prescrição. (Belo Horizonte -05)

E se essa confiança entre enfermagem e medicina não ocorre? Como se torna possível trabalhar? A ausência de confiança reduz o processo necessariamente em hierarquia e fragmentação, ou seja, não aponta para um fazer comum. A troca, um entendimento/confiança entre a equipe e entre os pro-cessos anteriores e posteriores ao seu trabalho, é fundamental:

Se estou atendendo uma gestante, eu tenho que saber que por trás dessa gestante tem uma agente comunitária que vai na casa, tem a médica que pode trabalhar junto comigo, tem os auxiliares de enfermagem, então assim, a gente envolve todo mundo, né? (Enfermeira, Piraí)

Essa construção da confiança demanda não só a “qualidade” da relação, mas antes disso, a possibili-dade que ela possa ser construída e compartilhada entre os atores. A rotatividade dos trabalhadores é um elemento importante a ser considerado:

Então, o médico não é aquele assim que eu posso confiar nele, porque ele tá aqui hoje, mas amanhã ele não está. Mas, ela não. Eu sei que ela continua. A enfermeira é muito difícil trocar. Então, eu conto mais com ela do quê com o médico [...]. Eu e a enfermeira a gente fica. Então, é ela que segura a peteca pra gente é ela. (Agente comunitária, Piraí)

Segundo Dejours (1993, s/p), a cooperação “são os laços que constroem entre si agentes em vias de realizar, voluntariamente, uma obra comum”. Laços que acionam processos de construção, de par-tilha de uma linguagem tornada coletiva. Esses laços não podem ser exteriores, isto é, não podem ser prescritos por protocolos, por divisões da organização do trabalho anteriores ao trabalho em ato.

O autor ainda afirma que, se a organização do trabalho não pode garantir os laços fundamentais para a cooperação, por outro lado, é exatamente por sua existência anterior, que os coletivos podem produzir a cooperação: “fixando os status, os papéis, os domínios de competência e de autoridade, as responsabi-lidades – de cada um – a organização do trabalho fornece um quadro de referência sem qual nenhuma cooperação seria possível” (DEJOURS, 1993, s/p), pois os laços de cooperação solicitam as iniciativas individuais para preencher as lacunas deixadas pelas prescrições anteriores ao trabalho.

Entretanto, para que as iniciativas individuais de preencher aquilo que ainda não está prescrito para ser feito, não está normatizado se tornem-se concretas e possam ser reconhecidas pelos outros que também recriam essas normas, é necessário que essas “subversões” – a favor do trabalho – possam ser visíveis, e a “visibilidade, isto é, o esforço para mostrar e tornar inteligível ao outro sua ação, supõe relações de confiança entre os agentes” (DEJOURS, 1993, s/p). Para que cada um deixe aparecer suas “subversões”, reinvenções, é necessário a produção de um fazer tornado comum, coletivizado, a partir da confiança. Assim, as condições para a construção de laços de cooperação se dão num debate de valores, na produção de sentidos éticos, sociais e políticos.

Porque é uma angústia, foi uma angústia muito grande da equipe, ainda mais porque a gente fazia 24 horas e essas usuárias tinha esse acesso a todas que queriam, de repente chegou um período não tem mais, isso nunca tinha acontecido... Até quando acabam os leitos aqui a gente cria leitos desse na casa

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de parto, teve várias situações que teve seis partos em 24 horas e eu sempre peço para elas estarem vindo, olha, os quartos estão lotados não tem mais jeito, a gente pode elas com consultório viram o lugar... Elas falam: “Não, eu faço tudo para ter aqui”. Então, ou monta o quarto com dois pós-partos, o que eu vejo muito grande é a solidariedade, elas concordam em dividir quartos. [...] eu lembro de um caso que tinha acabado as vagas, tinha uma gestante que vinha do distrito, já tinha conhecido a casa, era o terceiro filho, queria muito ganhar na casa de parto, ia filmar. Mas tinha acabado as vagas, não tinha jeito, já tinha tido seis partos, eu falei: não tenho onde arrumar. Aí o filhinho dela saiu lá da ma-ternidade, veio aqui e batia na porta, veio conversar comigo, “deixa minha mãe, pelo amor de Deus, ganhar aqui, ela sonhou muito com parto na água”. Aí eu tive que redimensionar e ela teve a criança aqui [...] Foi muito engraçado porque a casa inteira vivenciou o parto, até os outros usuários, porque eles viram os movimentos da família. Essas são as diferenças que, às vezes, num hospital devido às prá-ticas, as rotinas rígidas que a gente não consegue perceber muito isso. (Enfermeira, Belo Horizonte)

Essa enfermeira ultrapassa o cumprimento da norma (número de leitos, capacidade de atendimento, etc.), mas só o faz numa visibilidade da “subversão” tornada coletiva, gestionada pela cooperação, neste caso, da equipe de trabalhadores com os usuários.

Aliás, em saúde, os usuários são solicitados – ou ao menos deveriam ser – a participar dos procedi-mentos – cuidado à saúde. Na observação, durante uma visita para a pesquisa numa UTI neonatal, percebemos uma usuária, acompanhando o filho recém-nascido internado intervém junto à equipe quando a “mangueira” de soro dobra, solicitando a presença da auxiliar de enfermagem. Quando essa não consegue – por algum motivo além da competência – desdobrar, a mãe discretamente sai em busca da enfermeira, que por sua vez dá a volta e vem ajudar.

Assim, de acordo com Dejours (1993, s/p), não existe coletivo sem laço de cooperação, pois ela apre-senta como “o próprio centro de gravidade em torno do qual se organizam os laços entre os agentes, as regras de trabalho, as relações de reconhecimento e o sentido do trabalho”. A ausência desses laços seriam nefastas para a própria organização do trabalho, interferindo diretamente na qualidade desse.

O trabalho efetivamente realizado não se reduz jamais ao trabalho fixado previamente por prescri-ções. Ao realizar a prescrição, a tarefa normatizada e orientada, a priori, para objetivos específicos, o trabalhador enfrenta variabilidades, distorções, imprevisibilidades que inviabilizam o cumprimento da norma estrita e convidam (ou obrigam) o trabalhador a inventar formas de trabalhar capazes de responder ao instável, ao imprevisível.

Para Schwartz (2000), o meio é sempre mais ou menos infiel, nunca se sabe onde e em que propor-ções. Ele jamais se repete exatamente de um dia para o outro – ou de uma situação de trabalho a outra. É na enorme distância entre o trabalho prescrito e o efetivamente realizado que os trabalha-dores tecem, de forma coletiva, estratégias para dar conta da atividade concreta, do trabalho em ato, daquilo que não pode ser traduzido em regras, que escapa a qualquer tentativa de predeterminação.

Os trabalhadores criam coletiva e cotidianamente novas normas que permitem a realização do traba-lho em meio a um mundo de acidentes possíveis, em negociação com os usuários.

Então às vezes ela tá em trabalho de parto e ela quer tomar uma posição no meio parto, uma posição que é mais confortável pra ela, mas não é adequada pra mim como assistente. Eu tenho que manter com ela a posição que ela quiser. Ela quer muito que duas pessoas assistam o parto dela. A norma é uma pessoa por mulher, mas a gente extrapola as normas, coloca duas pessoas porque é a vontade dela. É o momento dela. Então o que a gente puder fazer para que aquele momento seja especial a gente tenta fazer. (Enfermeira, Belo Horizonte)

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Diante da necessidade de invenção dinâmica do trabalho vivo, os trabalhadores são convocados a gerir as variabilidades constituintes do processo de trabalho. Dessa forma, gestão e atividade de trabalho – apesar de o termo “gestão” ter sido mais comumente utilizado na contemporaneidade no lugar de gerência ou gerenciamento de recursos – são categorias inseparáveis. Trabalhar é gerir. Cha-mamos de gestão do trabalho a capacidade dos trabalhadores de gerir o processo que denominamos atividade de trabalho. Trabalhar exige gestão.

Nesse sentido, o trabalho em equipe na saúde requer a gestão de um saber comum orientado por valores éticos que norteiam escolhas coletivas e potências formativas (não isentas de conflitos) na efetivação da integralidade da atenção e do cuidado em saúde.

Portanto, ao gerir o trabalho, os trabalhadores são convocados a fazer escolhas. Estas escolhas se orientam em função de valores. O debate de normas e valores que se dá na atividade de trabalho é o que permite que a atividade se realize. A atividade não se restringe apenas a execução de uma de-terminada tarefa, ela sempre pressupõe um “uso”, a mobilização de cada trabalhador - com crenças, valores e história singular – frente à permanente variabilidade do meio. “É preciso que ele escolha, visto que as imposições ou as instruções são insuficientes! Então, é necessário que ele faça escolhas. É necessário que ele se atribua leis para preencher o que falta” (SCHWARTZ, 2000, s/p).

Trabalhar é escolher, negociar, inventar meios, arriscar-se. A esta dimensão do trabalho Schwartz atribui o nome de dramáticas do uso de si. Alguns valores que pautam este debate de normas po-dem ser chamados “valores sem dimensão” e envolvem valores não-mensuráveis, como “bem-estar”, “atendimento digno”, “acolhimento”. RUFFEIL (2005) dá um exemplo que pode nos ajudar a com-preender as dramáticas do uso de si4 no trabalho na área da saúde, quando os auxiliares de enferma-gem têm que escolher entre fazer a higiene do paciente ou ajudá-lo a resgatar sua autonomia. Essas escolhas infinitesimais ocorrem em meio aos valores do trabalhador, as exigências do trabalho, as relações com os usuários, trabalhadores e gestores.

Um gestor de Belo Horizonte fala do trabalho em equipe na saúde e dos valores que pautam o aten-dimento de um recém-nascido:

Para eu atender a essa família, que no caso, a gente também que é da neonatologia, a gente tem que ter em mente que o seu paciente, o seu cliente não é só o recém-nascido, que ele não vem desvin-culado da história da família e de todos, então para mim poder atendê-lo naquela hora eu tinha que articular outras coisas.

É em meio a esses debates, a essa dinâmica complexa, que os trabalhadores produzem conhecimentos na situação de trabalho. Os trabalhadores lançam mão destes saberes para dar conta, justamente, da distância existente entre o trabalho realizado e as prescrições.

Nessa mesma instituição de Belo Horizonte, pudemos ver de perto o modo como os trabalhadores lan-çam mão de saberes produzidos no cotidiano para lidar com situações inusitadas do trabalho. Estávamos conhecendo suas instalações quando, ao avistar uma mulher em trabalho de parto, a psicóloga começou a passear com ela pelo corredor e simultaneamente a fazer massagens em suas costas. Certamente as massagens não são prescrições do trabalho de uma psicóloga numa maternidade, porém, ao encontrar a usuária, a psicóloga, baseada no conhecimento produzido em anos de atividade na instituição, intervém por meio de massagens. O que certamente ajuda a equipe na rotina de trabalho, pois tranquilizam a usuária enquanto o restante da equipe prepara a sala de parto ou cuida de outras situações.

4 Conceito detalhado no texto de Louzada, Bonaldi e Barros (“Integralidade e trabalho em equipe no campo da saúde: entre normas antecedentes e recentradas”).

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Será que essa psicóloga se deu conta de que tocou na usuária? Ou esse toque é parte “incorporada” em seu fazer? Há no trabalho uma inteligência astuciosa, da ordem do corpo, que não passa necessa-riamente pela racionalidade.

De acordo com os profissionais entrevistados, assim também acontecia quando, ao perceber que as palestras, realizadas numa unidade de saúde da família de Aracaju, não estavam surtindo o efeito desejado, a equipe começou a organizar passeios, aumentando a adesão da população às atividades educativas da unidade:

A gente chegou, fez palestras, mas aí, os meninos, como a maioria daqui são mulheres, que frequen-tam mais o posto, porque os homens, a maioria, estão todos trabalhando; aí, quem frequenta mais os postos são as mulheres com as crianças. Então, quando a gente só ficava falando, falando, falan-do... uma criança estava agitada, a outra chorava... então, não tinha como eles prestarem atenção, eles não tinham paciência”. (Técnico de Enfermagem - USF, Aracaju)

A manifestação dessa inteligência é marcada pela história construída pelos coletivos de trabalho, pelo patrimônio de experiências produzido por estes coletivos. A expressão desses saberes é reforçada ou constrangida de acordo com as realidades do trabalho, mas sempre se faz presente, até mesmo nas atividades com menor autonomia dos trabalhadores. Daí a potência formativa do trabalho em equipe.

Trabalhar, pensar o trabalho, formar pelo trabalho. A emergência das práticas e integralidade: à guisa de conclusão

Os saberes produzidos nas atividades cotidianas alimentam o patrimônio, que por sua vez transforma os modos de agir dos trabalhadores que formam esse coletivo. O patrimônio estocado é formado por normas, prescrições, valores, regras formais e informais, saberes disciplinares e da experiên-cia, podem reforçar algumas práticas ou transformá-las, mantê-las ou questioná-las. É na produção e compartilhamento cotidiano dos saberes coemergentes ao fazer que o trabalho em equipe pode transformar o agir dos profissionais de saúde.

Esse é um ponto fundamental quando percebemos que a formação dos profissionais ainda se mantém vinculada ao modelo biomédico. Nas discussões recentes sobre a reforma sanitária há um reconheci-mento generalizado sobre a importância da instituição dessas novas formas de “fazer saúde” que diferem das formas de agir para que os profissionais vêm sendo formados nas últimas décadas (GIL, 2006). A distância existente entre a formação dos profissionais e as exigências do trabalho em saúde transforma os serviços em espaços privilegiados de formação de profissionais que atuem em direção à mudança de modelo, cujas práticas sejam pautadas na integralidade. Como aponta uma gestora de Piraí sobre as dificuldades de montar uma equipe de saúde da família e o tempo de preparação desses profissionais.

[...] nós temos dificuldade, até mesmo porque também a gente tem profissionais ainda desprepa-rados. Você tem que mudar essa cultura ainda no próprio profissional da saúde. Então, são dois trabalhos, né, porque ele entra no Programa de Saúde da Família, ele só vai, eu imagino ele pronto depois de uns dois anos de trabalho mesmo, de relação e de discussão, e dessa... Aí, existe a discus-são da equipe, isso existe, né, de trabalhar com protocolos, entendeu, de seguir esses protocolos, porque tudo isso ajuda, né, com que você racionalize as ações, com que você não entre nessa, só da especialidade. (Gestor, Piraí)

A construção integralidade como processo, da ordem do vivido, nos espaços das equipes de saúde, não se refere a algo tranquilo, mas ao contrário, de uma produção cotidiana que não se dá sem de tensões, embates e conflitos. Esses conflitos se configuram em vários planos. Por um lado, esses conflitos se dão

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num plano de gestão coletiva, da relação com trabalhadores, com usuários e com instituições formado-res que ainda pensam os serviços de saúde e suas práticas a partir de outro referencial.

O que eu identifico é o seguinte: eu acho que existe uma cultura medicalizadora muito forte na sociedade, nos profissionais de saúde, mas também na sociedade. E eu vejo esse conflito mais den-tro do saúde da família, porque o profissional, ele tenta fazer, né, o trabalho dele, aquela fala da prevenção mesmo, mas as pessoas não querem. Elas querem sair de lá, elas querem ter o exame, ela quer que encaminhe ela pro especialista; então, isso acaba gerando um conflito na relação. E o que desestimula muito o profissional também da área de saúde da família. (Gestor, Piraí)

Entretanto, esse processo reclama uma série de alterações posturais dos trabalhadores que podem pro-duzir resistência ou mudanças nas relações e práticas. Um médico de Porto Alegre relata a transforma-ção da relação com os usuários dos serviços, demonstrando o caráter processual da integralidade.

Na própria relação do médico com o paciente, vamos dizer assim, isso mudou muito desde que eu comecei a trabalhar, já faz bastante tempo. Naquele tempo a gente era meio que ditador assim... Ela precisa fazer esse remédio, esse exame, enfim, o sujeito não tinha muito espaço pra reclamar. Mas hoje isso tá muito mudado, né. Eu mesmo escuto a pessoa e dou muito valor para aquilo ela tá pensando ou pedindo... (Médico, Porto Alegre)

Como aponta a fala, até ele já está escutando a pessoa. Ele se tornou um profissional melhor agora? Estamos falando de profissionais melhores ou piores? O que o fez mudar sua postura? Como se deu esse processo?

Acreditamos que esse seja um ponto relevante para pensarmos a formação para integralidade. Como foi apontado em outro artigo desta coletânea,5 a forma como a relação com o outro se estabelece é um ingrediente fundamental para pensarmos as práticas de saúde. Na verdade, não podemos pensá-las separadas da rede de relações coemergente a prática em saúde. Desta maneira, analisar as relações estabelecidas pelos atores das instituições de saúde produz novas formas de trabalhar, produz novas formas de ação ou reforça as antigas.

Por exemplo, aqui nessa sala, eu tava conversando com uma colega, né, e não sei porque nós está-vamos falando do vínculo , que era importante o vínculo com o paciente e tal. Aí uma moça que era residente disse assim: “É, mas com os pacientes do SUS não é possível fazer vínculo, né?”. Nós dissemos – Pera lá... – Pra você ver... Ela aprendeu isso. Aprendeu aí na prática. Então não é assim... Então o que eu acho que tá faltando na coisa da residência médica, um espaço pra discussão dos problemas profissionais e da relação do médico/paciente e do médico/equipe, com a enfermagem e enfim, né? (Médico, Porto Alegre)

ReferênciasARENDT, H. Responsabilidade e julgamento. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

CAMPOS, G. W. S. Subjetividade e administração de pessoal: considerações sobre modos de gerenciar trabalho em equipes de saúde. In: MERHY, E. E.; ONOKO, H. T. (Org.). Agir em saúde: um desafio para o público. São Paulo: Hucitec, 2000.

DEJOURS, C. Cooperação e construção da identidade em situação de trabalho. Futur antérieur, v.16, p. 41-52, 1993.

GIL, C. R. R. Atenção primária, atenção básica e saúde da família: sinergias e singularidades do contexto brasileiro. Cad. Saúde Pública. [online], v. 22, n. 6, p. 1.171-1.181, 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2006000600006&lng=pt&nrm=iso>. Acessado em: 31 maio 2007.

GOMES, R. S.; PINHEIRO, R.; GUIZARDI, F. L. A orquestração do trabalho em saúde: um debate sobre a fragmentação

5 Gomes, Silva e Pinheiro: “Noções fuNdaNtes. Integralidade como princípio ético e formativo: um ensaio sobre os valores éticos para estudos sobre o trabalho em equipe na saúde”.

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das equipes. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R. A. (Org.). Construção social da demanda. Rio de Janeiro: Cepesc, 2005.

PINHEIRO, R.; LUZ, M. T. Práticas eficazes x modelos ideais: ação e pensamento na integralidade em saúde. In: Pinheiro, R.; MATTOS, R. A. Construção da integralidade: cotidiano, saberes e práticas na saúde. Rio de Janeiro: Cepesc, 2006. p. 7-34.

RUFFEIL, N. Pensando o trabalho, gestão e políticas públicas. IN: MESA-REDONDA NO CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA DO RIO DE JANEIRO, Rio de Janeiro, 27 ago. 2005. Mimeo.

SCHWARTZ, Y. Le paradigme ergologique ou un métier de Philosophe. Toulouse: Octarès, 2000.

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Para saber mais(Bibliografia complementar)

1. PEDUZZI, Marina. Trabalho em equipe de saúde no horizonte normativo da integralidade, do cuidado e da democratização das relações de trabalho. In: PINHEIRO, Roseni; MATTOS, Ruben Araújo de; BARROS, Maria Elizabeth Barros de (Orgs.). Trabalho em equipe sob o eixo da integralidade: valores, saberes e práticas. Rio de Janeiro: CEPESC-UERJ/ABRASCO, 2007. p. 161-177.

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Módulo 6: Gerência de Recursos na Unidade

6.1 Gerência de recursos na unidade�� Gerência de material: normalização, aquisição, controle e armazenamento.

�� Gerência de serviços gerais: manutenção, vigilância, limpeza, transporte e comunicação.

�� Gerência orçamentária e financeira: orçamento, suprimento de fundo e sistemas de custo.

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TEXTO BÁSICO

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A GERÊNCIA DOS MEIOS DE PRODUÇÃO NA UNIDADE DA REDE BÁSICA DE SAÚDE: UM ENFOQUE INTEGRADO DA ADMINISTRAÇÃO DE MATERIAIS, SERVIÇOS GERAIS E ORÇAMENTÁRIO-FINANCEIRA1

MARCOS JOSÉ MANDELLI2

1. Introdução

A intensidade e a velocidade com que vêm ocorrendo mudanças na ordem econômica e social e no ambiente cultural e tecnológico das organizações têm determinado profundas alterações na forma e na filosofia de gestão empresarial.

A flexibilidade administrativa é hoje uma exigência para o gestor comprometido com a melhoria da qualidade dos bens e serviços oferecidos.

Consciência da missão institucional; liderança; racionalização de custos; aperfeiçoamento constan-te dos sistemas de produção; capacitação permanente de pessoal no trabalho; eliminação de níveis hierárquicos, de slogans com exortações de mitos, de quotas de produção, de gerenciamento por ob-jetivos e de avaliação individual periódica são alguns dos enunciados básicos para a obtenção de uma nova atitude em relação ao trabalho e ao ambiente onde ele se dá.

A melhoria de qualidade passa a assumir a prioridade. O enfoque é o cliente e a visão gerencial se des-loca do produto para o processo; o horizonte de curto prazo é substituído pela visão de longo prazo; a competição dá lugar à cooperação. A estratégia é o trabalho de equipes — times — que integram pessoas para a realização de atividades, em torno de objetivos claramente definidos e de uma missão institucional entendida por todos.

Com esse enfoque são eliminados os fossos existentes entre as atividades desenvolvidas pelas áreas fim e as áreas meio ou de apoio. Ambas passam a trabalhar em função de um mesmo objetivo, apesar de desenvolverem distintos processos de trabalho.

A falta de conhecimento mútuo sobre os processos de trabalho de cada uma das áreas e setores de

1 Texto elaborado para a Bibliografia Básica do Projeto GERUS. Publicado originalmente em: MANDELLI, Marcos José. A gerência dos meios de produção na unidade da rede básica de saúde: um enfoque integrado da administração de materiais, serviços gerais e orçamentário-financeira. In: SANTANA, José Paranaguá de (Org.). Desenvolvimento gerencial de unidades básicas do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília: OPAS, 1997. p. 236-251.2 Administrador, gerente de projetos da Fundação Oswaldo Cruz.

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uma organização seguramente pode ser apontada como um dos maiores obstáculos à interação e à consequente melhoria da qualidade dos serviços. Na área da saúde e mais especificamente em unidades da rede básica de saúde, até pelos antecedentes históricos que apresentam, esse quadro pode ser facilmente identificado.

Com estas notas pretende-se tornar mais transparentes as formas de estruturação, organização e gerência dos meios de produção numa unidade de saúde, enquanto integrantes de um processo de produção de serviços que se volta para a melhoria da qualidade assistencial à sua clientela.

Para efeitos desse trabalho serão tratados como meios de produção as atividades e serviços tradicionalmente desenvolvidos pelas áreas de administração de materiais, serviços gerais e orçamentário-financeira.

As atividades dessas áreas são caracterizadas como sendo tipicamente de apoio às áreas-fim, o que implica em percebê-las como fornecedoras de serviços que têm como clientes prioritários os setores diretamente envolvidos com a prestação de serviços aos clientes externos.

A falta de clareza dos papéis por elas exercidos dentro da organização tem sido tradicionalmente apontada como uma das mais importantes causas do mau desempenho que apresentam. Não tendo a necessária compreensão sobre a missão e os objetivos da unidade, muitas vezes até porque não estão claramente definidos e explicitados, os setores responsáveis pelas áreas-meio acabam se percebendo como áreas-fim em si mesmas.

Se ocorre distanciamento da gerência dos meios de produção em relação às ações finalísticas, ob-jetivos e missão institucional, isso tem a ver, em parte, também com sua inserção em terceiros ou quartos escalões hierárquicos, em relação ao nível de tomada de decisões, tornando o diálogo com o usuário difícil ou inexistente e potencializando os déficits da área, já agravados pela falta de pessoal profissionalizado e pelos insuficientes esforços realizados para capacitar pessoal específico.

A desejável interação entre setores, para ser efetiva, requer de todos, o conhecimento e a compreen-são das relações entre seus pares, que tem a conformação de uma rede de clientes/usuários (internos ou externos) e fornecedores (internos ou externos).

Exemplificando: Os pacientes num ambulatório são clientes e os médicos fornecedores (de serviços). Esses médicos por sua vez são clientes da enfermagem, que é então seu fornecedor (de serviços). A enfermagem pode ser cliente da farmácia, que é seu fornecedor (de medicamentos ou outros insumos) ou do serviço de higienização, que por sua vez são clientes do almoxarifado, que é cliente do setor de compras e assim por diante.

Na tentativa de tornar clara a abordagem das relações da gerência dos meios de produção e a importância de sua interação no processo produtivo de uma unidade de saúde, este trabalho foi concebido deliberadamente de maneira simples para oferecer informações práticas para as neces-sidades rotineiras da unidade.

Trabalharemos com o conceito de sistemas que têm sob sua responsabilidade a coordenação de ati-vidades específicas, geralmente desenvolvidas por serviços, divisões ou departamentos, que se im-bricam e mantêm relações de interdependência com outros setores da organização e até mesmo fora dela, para a produção dos bens e serviços a eles demandados.

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2. A Gerência do Sistema de Material

A administração de materiais tem por objetivo suprir, em quantidade e qualidade, o mais próximo possível do momento em que se dá o uso e com o menor custo possível, os itens que os setores vol-tados para atender ao cliente externo requeiram para a produção de bens e serviços relacionados com a missão e com os objetivos da organização. Não se trata de materiais permanentes tais como equipamentos, móveis e veículos mas sim, itens estocáveis e de consumo imediato, tais como, numa unidade de saúde, medicamentos, gêneros alimentícios, produtos de escritório, de limpeza, de con-servação e reparos, material cirúrgico e radiológico, reagentes químicos, vidraria e outros.

Alguns autores têm citado que nos sistemas hospitalares, os materiais têm representado um gasto entre 15% e 25% das despesas correntes (ou de custeio) e, em sistemas de atendimento ambula-torial, entre 2 e 5%.

Os sistemas de materiais em organizações hospitalares movimentam entre 3 mil e 6 mil itens e nas de caráter ambulatorial esse movimento cai para uma escala entre 200 e 500 itens.

A complexidade do sistema de materiais, menos do que da quantidade e custo, depende mais das próprias características do processo de produção a que ele tem de atender. Por mais complexo que seja o processo no entanto, não se pode afirmar que o sistema de material vai ser de difícil operação. A administração de materiais dispõe de instrumental adequado para realizar suas funções. Porém se sua atuação, ocorrer de forma descontextualizada da missão e dos objetivos da organização há riscos de que isso não ocorra.

O que torna o sistema de material difícil de ser operado, na saúde, é a distância que culturalmente é estabelecida entre o processo produtivo que se volta para a consecução das atividades finalísticas, e os sistemas de suporte, ditas administrativas. O sistema de materiais tem que ser visto como um subsistema do sistema produtivo onde ele é meio para o alcance dos fins, dependente portanto, do processo de fixação de objetivos e metas organizacionais, para a fixação de suas atividades.

Administrar um sistema de materiais é coordenar e conciliar interesses de usuários, fornecedores e de outros sistemas-meio como o de administração orçamentário-financeira.

Para tanto opera com os seguintes subsistemas, relacionados com normalização, controle, aquisição e armazenamento.

a. Subsistema de normalização: seleção e padronização de itens para compras; especificação e classificação/codificação de materiais

Esse subsistema constitui-se no mais importante, do ponto de vista da eficácia do sistema, pois representa o elo de ligação entre o setor de produção e o sistema de suporte — entre a área-fim e a área-meio. Um bom esquema de comunicações entre eles é fundamental para desencadear pro-cessos que atendam, tanto às necessidades de produção quanto às do próprio sistema de suporte, para realizar seu trabalho.

b. Subsistema de controle: gestão e valoração de estoques

A gestão e valoração de estoque é também dependente do volume e da velocidade com que se dão as demandas, apesar de exercer em seu âmbito atividades técnicas específicas. Essa área é respon-sável pelas quantidades e tempos de reposição de estoques e pelos valores de entrada e saída de materiais, e para tanto são utilizadas técnicas específicas tais como a da Média Aritmética Móvel,

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do Estoque de Segurança, a Análise ABC e Valor (para estoques) de Estoque Mínimo e Estoque Máximo, de Custo Médio Ponderado, e de valoração — PEPS (o primeiro a entrar é o primeiro a sair) ou FIFO ( first in, first out) para entrada e UEPS (o último a entrar é o primeiro a sair) ou LIFO (last in, first out) para saída.

c. Subsistema de aquisição: aquisição (compra) e alienação (venda de materiais não utilizados ou inservíveis)

A função de compras busca atender às necessidades de materiais, dentro das qualificações e prazos exigidos pelo processo produtivo, selecionando fornecedores capazes e que ofereçam melhores preços e condições de pagamento, dentro dos prazos e especificações exigidos.

Todas essas condições devem ser vistas e cotejadas dentro do procedimento de compra, que ao mesmo tempo, por envolver o uso direto de recursos financeiros, deve também trabalhar em sin-tonia com os setores da administração responsáveis pela área orçamentária e financeira.

Na empresa privada várias são as formas mobilizadas para compras. No setor público existe uma padronização de procedimentos e princípios para o processo de compras — a licitação — que deveria ser utilizada para possibilitar a escolha da melhor proposta de seu interesse.

A licitação vincula esta escolha ao que foi divulgado como de interesse da administração (especi-ficado), garantida ainda aos fornecedores ou prestadores de serviço, participação em condições de igualdade e limitando a capacidade de arbítrio do agente da administração na realização da escolha.

Várias são as modalidades de licitação, determinadas em função do que se quer adquirir e, nor-malmente, quanto maior o volume de recursos mais complexo é o rito: convite, tomada de preço e concorrência.

O concurso é a modalidade escolhida quando se quer selecionar um trabalho técnico ou artístico predominantemente de criação intelectual. O leilão é a modalidade utilizada para venda ou aliena-ção de bens móveis ou permanentes.

As licitações no Brasil são regidas pela Lei n.º 8.666 de 21/06/93 e legislação suplementar à legis-lação federal baixada por alguns estados e municípios.

Um ponto importante em relação ao processo de compra refere-se às relações com os fornecedo-res externos. O tratamento tem que ser direto e respeitoso, baseado na lealdade e na confiança para que a relação seja duradoura e os fornece dores, como parceiros, possam ajudar na resolução dos problemas enfrentados nessa área pela organização. É o caso, por exemplo, da especificação de produtos para compra. Por mais detalhada que seja a especificação, sempre estará sujeita a alguma forma de interpretação. Um fornecedor, parceiro, pela experiência que tem no mercado, ao ajudar na especificação pode facilitar as comunicações entre o comprador e possíveis fornecedores, redu-zindo assim os tempos dos processos e os conflitos decorrentes de especificações mal elaboradas.

Sabe-se no entanto, que o estabelecimento de parcerias entre entes públicos e privados é de certa forma dificultado pela legislação que rege os serviços públicos. A responsabilização a que estão sujeitos os ‘compradores’ os tem tornado em certas ocasiões, ‘mais realistas que o rei’ na interpre-tação das leis, fazendo com que muitas medidas administrativas que podem ser tomadas para que efetivamente possam ser obtidos produtos em quantidade e qualidade, nos tempos requeridos e a preços compatíveis, sejam proteladas em nome do cumprimento da legislação em vigor.

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Em geral a gerência de unidades da rede básica de saúde tem pouca relação com o mercado forne-cedor. Normalmente a compra dos itens de maior importância é responsabilidade do nível central (Secretaria Municipal ou Estadual de Saúde), o que faz da unidade um cliente do nível central. Passam a ser válidas portanto, nessa relação, as mesmas premissas que norteiam as relações entre cliente e fornecedores externos.

Os estudos de Reengenharia que redefinem processos de trabalho como forma de melhorar a per-formance das organizações, têm apontado que a centralização excessiva causa mais males do que ajuda na racionalização e na redução de custos nos processos de compras. Alguns estudos apontam inclusive que substancial número de itens comprados de forma centralizada tem custos de pro-cesso superiores aos da aquisição do bem, o que torna urgente redefinir a sistemática adotada. A gerência de nível executivo, com a visão da complexidade do processo, tem a obrigação de propor mudanças no processo de trabalho, sempre que se evidenciarem distorções dessa natureza, ou seja, aos gerentes de unidades da rede básica de saúde cabe propor a aquisição direta, pela unidade, de itens atualmente demandados ao nível central ou regional e cuja simplicidade para a realização da compra, localmente, faz com que sejam reduzidos tempos e custos do processo.

d. Subsistema de Armazenamento: recebimento, incluindo a inspeção de qualidade, movimen-tação, transporte, armazenamento e distribuição de materiais

O subsistema de armazenamento que engloba as funções de controle de qualidade e recebimento, armazenagem e movimentação interna e distribuição, tem por objetivo o recebimento e a estocagem de materiais, constituindo suas saídas, em input dos sistemas de controle e de seleção e padronização.

De todas essas funções, o controle de qualidade e a distribuição talvez sejam as mais críticas em termos de suas relações com os usuários/clientes. A primeira por necessitar do apoio do cliente para que este, conhecedor dos produtos de seu interesse, apoie os trabalhos de análise da qualidade dos produtos recebidos. A segunda, pela interação natural e a forte relação fornecedor/cliente que se estabelece em seu trabalho, exige um balanceamento permanente entre o que é demandado e o que é distribuído.

No caso das unidades da rede básica de saúde, os fornecedores externos são substituídos, na maio-ria das vezes, pelo almoxarifado do nível central. Nessa relação entre cliente (a unidade) e forne-cedor (o nível central) é para o almoxarifado que devem ser encaminhadas as informações sobre a adequação ou inapropriação dos bens e produtos fornecidos à unidade, para, a partir daí serem melhorados os sistemas de seleção e padronização dos mesmos.

3. A Gerência dos Serviços Gerais

A Gerência dos Serviços Gerais tem a responsabilidade pela prestação de serviços às demais áreas da organização, caracterizando-se tipicamente como de apoio às atividades fim. Seus objetivos são definidos na medida em que se definem os objetivos da organização.

Englobam os serviços gerais, os sistemas de manutenção, limpeza, transportes, vigilância e controle de fluxos internos de documentos, cabendo-lhes ainda as atividades relacionadas com telefonia e som. Contemporaneamente, nas instituições de saúde, a manutenção e a limpeza têm sido retiradas desse conjunto, o que é explicado pela complexibilidade que engloba a manutenção de equipamentos de alta tecnologia e pela importância dos trabalhos de higienização no controle de infecções, o que vem lhes garantindo um status diversificado.

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a. Sistema de Manutenção

O sistema de manutenção ou de Engenharia de Manutenção tem por objetivo manter os equipamen-tos e instalações de uma organização em condições de operação adequadas e a custo razoável. Na medida em que se dá a incorporação de novas tecnologias, essa área tem sido cada vez mais chamada a participar do gerenciamento e aquisição de tecnologia, uma vez que nela são sentidos os maiores rebatimentos operacionais em termos da demanda por manutenção.

Um sistema eficiente de manutenção diferencia-se de um serviço convencional de manutenção pelo fato de iniciar-se no momento em que são definidos os objetivos da organização e os produtos do trabalho e que determinam os tipos de equipamentos e os demais insumos a serem utilizados.

No setor saúde tem sido difícil a montagem de equipes completas de manutenção em função da mul-tiplicidade de linhas tecnológicas que intentaram. Neste caso, a resolução de problemas de manuten-ção passa por uma grande capacidade de diálogo com os usuários e com os fornecedores externos.

Não sendo função perspícua de uma organização de saúde operar manutenção — ela tem caráter aces-sório — a decisão sobre a montagem de serviços próprios ou da contratação de terceiros poderá ser dada resolvendo-se questão de custos. Se adequados à solução desejada, serão próprios. Caso contrário, contratados. Mas, qualquer que seja a decisão, é preciso que haja capacidade de gerenciar recursos inter-nos e externos, daí constatar-se ser imprescindível garantir a profissionalização no sistema.

A tendência atualmente predominante é a terceirização dessas atividades, o que não descarta a neces-sidade da organização ter uma certa capacidade de diálogo técnico com os usuários e com o mercado, como forma de garantir a prestação de bens e serviços a partir de solicitações técnicas adequada-mente formuladas e da construção de relações de parceria e confiança com o prestador/fornecedor.

b. Sistema de Vigilância

O sistema de vigilância tem por objetivo zelar pela segurança patrimonial, seja evitando roubos e depredação do patrimônio, seja adotando medidas voltadas para a prevenção de sinistros tais como incêndios e inundações.

Estruturando-se para administrar problemas complexos como os roubos, tradicionalmente o faz adotan-do medidas ‘formais’ que minimizem o problema para dimensões e magnitudes aceitáveis. São instituídas rotinas pormenorizadas para movimentação de equipamentos, controle de entrada e saída de funcioná-rios e não funcionários, adotadas restrições para movimentação de equipamentos e acesso a determinadas áreas, realizada conferência periódica de bens estocados, conferências aleatórias de patrimônio etc.

A alocação de mão-de-obra para o sistema de vigilância pode se dar de três maneiras: 1) contratan-do pessoal de empresas especializadas mas gerenciadas pela própria organização; 2) contratando o sistema, inclusive seu gerenciamento; 3) utilizando exclusivamente mão-de-obra própria (pessoal e gerenciamento próprios).

A tendência nesta área, devido ao elevado turn over de seu pessoal é a terceirização.

A operação eficaz do sistema de vigilância no entanto, não está dada somente pela adoção das me-didas acima apontadas. Questões como roubo ou depredação têm a ver também com a cultura e a forma como a organização é percebida pelos seus funcionários. Se o sentido do coletivo predomina, o sistema não pode ser pensado separadamente das demais áreas e a função de zelar passa a ser de to-

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dos, com resultados certamente mais efetivos. Quanto mais participativas e interativas forem as áreas de uma organização, menores serão os problemas e as necessidades relacionadas com o sistema de vigilância que, assim, passa a dirigir suas ações prioritariamente para ações preventivas de segurança patrimonial, tais como incêndios, inundações e outros possíveis eventos indesejáveis.

c. Serviços de Limpeza

Responsável pela limpeza e assepsia das instalações da organização, na área de saúde a limpeza passou a ser chamada de serviço de higiene ou higienização, devido à sua importância na questão do controle de infecção.

Com a agregação de novas técnicas, produtos e controles desenvolvidos nos últimos anos e devido a esse aumento da consciência sobre sua importância na redução de índices da infecção ambulatorial e hospitalar, tem sido discutido o perfil profissional da gerência da área e sua subordinação adminis-trativa. A tendência em unidades de maior porte tem sido a de entregar a gerência da área a profis-sionais de enfermagem, com maior domínio sobre microbiologia e conhecimentos sobre a ação dos domissanitários normalmente empregados, embora continuem a subordiná-la hierarquicamente às unidades de administração.

O pessoal de limpeza costuma ser contratado junto a terceiros. Predomina a terceirização, onde o parceiro contratado é responsável pela mão-de-obra, pelo material, pelo treinamento e até pelo con-trole de qualidade. Mas é de fundamental importância, para o bom funcionamento dessa atividade, o relacionamento de seu pessoal com a área de enfermagem e a consciência dos profissionais que nela atuam sobre a importância do seu papel na produção de uma assistência de qualidade.

Um exemplo sobre a consciência do papel de um trabalhador da limpeza numa organização pode ser dado por um fato ocorrido na NASA, em 1969, por ocasião dos preparativos para a viagem de uma nave da missão Apolo. Perguntado sobre sua função, um funcionário da limpeza que se encontrava varrendo as proximidades da torre de lançamento, foi categórico em sua resposta: “eu estou ajudando a colocar o homem na Lua”.

d. Serviço de Transporte

Responsável pela operação da frota de veículos à disposição de uma organização, o serviço de trans-porte tem o seu encargo desde o planejamento da aquisição de veículos até sua utilização específica.

Para uma unidade de saúde, o transporte é um serviço de apoio cujas definições dependerão das exigências dos usuários e do modelo operacional proposto para atendê-los. Pode significar uma área de fundamental importância para as unidades de saúde de menor porte, com limitada capacidade re-solutiva, que utilizam o transporte como forma de propiciar ao paciente uma atenção mais complexa em outra unidade que disponha de mais recursos.

A interação desse serviço com as áreas fim da organização inicia-se no próprio planejamento de ati-vidades, pois essas vão determinar o tipo de veículo a ser adquirido e suas especificidades. No setor saúde, além das necessidades ditadas por serviços de natureza geral, existem necessidades específi-cas, como unidades volantes de atendimento médico e odontológico e de laboratórios para análise e controle de alimentos; veículos utilizados para apreensão de animais; e, veículos utilizados para atendimento de populações dispersas, podendo-se chegar até mesmo à necessidade de sua aquisição

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para transporte marítimo ou aéreo. Há ainda muitas necessidades relacionadas, entre outros casos, com o atendimento de urgências, emergências ou catástrofes em grandes centros urbanos.

O conhecimento e a consciência do papel exercido pelo serviço de transportes por parte de seus inte-grantes e de sua gerência é fundamental para que as prioridades fixadas quanto à utilização de veículos seja cumprida. Caso contrário será comum a ocorrência de desvios de utilização que poderão redun-dar em comprometimento da qualidade dos serviços prestados pela unidade de saúde.

A mão-de-obra que integra uma equipe na área dos transportes também vem, como tendência, sendo obtida através de terceiros, conseguindo-se dessa forma maior agilidade na sua reposição, que ocorre por exigência do elevado turn over verificado no setor.

Mas, qualquer que seja a forma de se estruturar, a preocupação com a capacitação do pessoal dessa área deverá ser permanente, seja aquele relacionado com questões específicas do transporte de pa-cientes, quanto aquele relacionado com a compreensão da missão e objetivos institucionais.

e. Serviço de Comunicações Administrativas

Também chamado de Protocolo, este serviço é responsável pela entrada, movimentação, controle, saída e guarda de todos os documentos dentro de uma organização.

Seu planejamento requer a integração dos diversos setores da organização, para que se torne possível definir sobre a importância de cada um dos tipos de documento produzidos e o tratamento a ser dado a eles: que documentos serão registrados? Em que caso haverá necessidade de abertura de processo? Quando e em que casos haverá necessidade de protocolá-los?

Realizando a comunicação física nos níveis inter e intraorganizacionais, é de fundamental importân-cia que os profissionais desta área tenham um amplo conhecimento das atividades fim da organiza-ção. A rápida velocidade de acesso a certos tipos de informações é, cada vez mais, fator determinante para uma correta decisão, e o desconhecimento sobre sua importância pode resultar num descom-passo entre a chegada da informação e sua efetiva disponibilidade.

Nos últimos anos as comunicações têm passado por um rápido processo de substituição de meios, em função dos avanços tecnológicos da área das telecomunicações, associados à informatização. A utilização convencional dos correios, enquanto veículo de comunicação, foi sendo substituída pelo telex, telefone e finalmente pelo fac-símile (fax), na busca de uma maior velocidade e de formas mais confiáveis de transmissão de informações.

Muitas organizações incorporaram esses novos mecanismos e instrumentos de informação, mas não alteraram as rotinas dos serviços de comunicações administrativas. É comum ainda hoje deparar-se com situações em que informações enviadas por fax são tratadas da mesma forma como é tratada a correspondência ordinária.

O risco de incompatibilidade entre equipamentos e processos operacionais dos serviços de comu-nicações administrativas é imenso, e especial atenção tem que ser dada à área, tanto em termos de capacitação de seu pessoal para operar novos equipamentos, quanto de redefinição dos processos de trabalho que eles determinam.

A guarda de documentos, também função típica dos serviços de comunicações administrativas re-quer estudos constantes sobre sua operação, devendo deles participar todos os setores da organi-

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zação. Existe uma legislação própria que trata de procedimentos a serem adotados para a guarda de documentos, segundo sua especificidade, que está normalmente relacionada com o período de tempo requerido de guarda, até sua eliminação. Mas, o mais importante é associar os procedimentos de guarda às necessidades da organização, como por exemplo, realizar a manutenção de arquivos permanentes que sejam úteis no atendimento da demanda por informações.

4. Administração orçamentária e financeira

Aos setores ou serviços de administração orçamentário-financeira é atribuída, convencionalmente, a res-ponsabilidade pelas atividades relacionadas com o processo de elaboração do orçamento e de programação financeira, bem como sua respectiva execução. Adicionalmente, nas instituições que dispõem de (ou bus-cam adquirir) capacidade para operações mais complexas, agregam-se as atividades de análise de custos.

Visando possibilitar uma visão sobre os processos de elaboração e execução orçamentária e financei-ra que têm relação com as atividades desenvolvidas pelas unidades da rede básica, as observações a seguir dizem respeito, exclusivamente, ao setor público.

a. Orçamento

O orçamento público é um plano de trabalho expresso em termos financeiros e aprovado por lei, onde são estimadas as receitas e fixadas as despesas para um exercício financeiro.

As receitas são estimadas em função do resultado das atividades econômicas dos governos, da arre-cadação de tributos e taxas e das transferências de capital previstas, tais como empréstimos e parti-cipação em fundos de recursos.

As despesas são fixadas em função das atividades programadas para um exercício financeiro (1.º de janeiro a 31 de dezembro) e obedecem a uma classificação, a mais operacionável delas denominada de ‘classificação econômica’ e que subdivide as despesas em dois blocos: despesas correntes, agrupando pessoal e encargos sociais, juros e encargos da dívida, transferências correntes e outras e; despesas de capital, agrupando investimentos, inversões financeiras, amortização de dívidas (pagamento de em-préstimos) e transferências de capital.

Se a definição das receitas é competência de setores específicos, (normalmente as Secretarias do Tesouro nos níveis federal, estadual e municipal), a estimativa das despesas a serem fixadas no orça-mento tem a participação de todos os órgãos de governo e de suas respectivas unidades.

Em última instância, o processo de elaboração do orçamento tem que contar com a contribuição da gerência do nível local, que deverá dispor das informações mais atualizadas e detalhadas sobre os problemas sanitários sob sua responsabilidade direta (no caso da rede de serviços de saúde), e propor as medidas para solucioná-los.

Essas medidas serão expressas, em outra etapa, na forma de recursos financeiros que, após aprova-dos, viabilizarão a realização das atividades propostas.

A gerência da unidade da rede básica, no que se refere às questões orçamentárias, deve promover medidas que garantam a inclusão dos recursos necessários ao desenvolvimento das atividades programadas para a unidade, no Orçamento, não permitindo que decisões sobre a matéria sejam tomadas sem sua partici-pação ou conhecimento. O momento de elaboração do orçamento, mais do que podem imaginar alguns

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gestores, é o grande momento da tomada de decisões estratégicas, pois, a partir daí as ações a serem empreendidas estarão dependentes da inclusão e da disponibilidade orçamentária para se efetivarem.

Aprovado o orçamento, cabe à gerência ou a quem estiver delegada a função, além de analisar proces-sos relacionados com a realização de gastos, acompanhar e controlar sua execução e manter um fluxo constante de informações com a unidade orçamentária ou o setor de orçamento a qual se vincule técnica ou administrativamente, com vistas a corrigir distorções verificadas na execução e, desta forma, contribuir para o seu aprimoramento.

b. Execução financeira

A realização de despesas está atrelada à disponibilidade dos recursos já aprovados no Orçamento. Normalmente a liberação dos recursos é realizada em parcelas duodecimais, mas podem levar em conta cronogramas que estabelecem previamente outra programação de gasto.

Recebidos os créditos, uma unidade gestora (na saúde, normalmente a Secretaria Municipal ou Es-tadual de Saúde) estará apta a realizar os repasses às unidades gestoras (centros de saúde, hospitais, etc.) e estas a realizar despesas.

A realização da despesa se inicia com o empenho, que nada mais é do que uma obrigação ou reserva de crédito para pagamento futuro. O empenho é formalizado mediante a emissão de uma Nota de Empenho da qual constam todas as informações necessárias ao controle da execução orçamentária e ao acompanhamento da programação financeira (o que tem que ser pago? quando? a quem? Justifi-cado de que forma?).

No momento em que se apura o direito adquirido do credor (um fornecedor ou prestador de servi-ços) e se comprova terem sido cumpridas as obrigações contratadas, inicia-se a liquidação da despesa. Na liquidação são apurados: a origem e o objeto do que deve ser pago; a importância exata a pagar; e a quem se deve pagar.

A liquidação da despesa ocorre após a realização de um fornecimento, da execução de uma obra, da prestação de serviços ou do encerramento de cada etapa de execução de um contrato, devendo processar-se em bases documentais. A partir daí pode ser realizado o pagamento.

O pagamento é o momento em que, já estando comprovado o direito adquirido pelo credor e ve-rificada a existência de recursos financeiros suficientes (saldos, normalmente em conta corrente bancária), efetiva-se o pagamento e extingue-se a obrigação. Para sua efetivação são utilizados instrumentos tais como a ordem bancária de crédito e a ordem bancária de pagamento, ou ainda a simples emissão de cheque.

As funções da gerência, relacionadas à execução financeira compreendem, entre outras, a elabo-ração e atualização da programação de desembolsos; o estabelecimento de planos de aplicação dos recursos alocados à unidade; o registro do movimento das dotações; o controle da disponibilidade dos recursos e dos saldos liberados sob a forma de suprimento de fundos; a elaboração de demons-trativos e relatórios sobre a posição financeira da unidade; o pagamento de despesas, pela emissão de notas de crédito, ordens bancárias, créditos para pagamentos ou cheques; a juntada de documentos e seu encaminhamento para escrituração; e a manutenção do registro e do credenciamento dos orde-nadores de despesa junto aos estabelecimentos bancários com os quais trabalha.

A complexidade de operação e escrituração de recursos financeiros de origem pública exige profis-

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sionais capacitados e de extrema confiança do gestor, razões pelas quais a área financeira é um centro nervoso nas organizações.

Talvez também até por isso, na maioria dos casos, as unidades básicas de saúde não são unidades orçamentárias, ou seja, não têm responsabilidades pela execução orçamentária e financeira, a qual fica atribuída ao nível regional ou central. Se essa situação cria por um lado uma maior dependência da unidade, a outros níveis do sistema de saúde, por outro a desobriga de uma série de encargos e responsabilidades, proporcionando à gerência, maior disponibilidade de tempo para o trato de ativi-dades mais voltadas para a área fim.

Resta à gerência da unidade, nesse aspecto, manter um bom relacionamento com os níveis dos quais passa a depender, na condição de cliente, e administrar os recursos financeiros que lhe são destinados sob a forma de suprimento de fundos, cujo funcionamento é detalhado a seguir.

O suprimento de fundos consiste na entrega de numerário a servidor, sempre precedida de empenho na dotação própria da despesa a realizar e que não possa subordinar-se ao processo normal de aplica-ção, assim considerada nos seguintes casos:

�� para serviços especiais que exijam pronto pagamento em espécie;

�� quando a despesa deva ser feita em caráter sigiloso, conforme se classificar em regulamento e constar do ato de concessão; ou

�� para atender despesa de pequeno vulto (critérios e entendimento sobre a que correspondem, varia de acordo com os diferentes âmbitos de governo e ainda, de Estado para Estado e de Município para Município).

O suprimento poderá ser concedido a servidor designado para a execução de serviço, a presidente de comissão ou de grupo de trabalho ou assemelhado, ou para servidor a quem se atribua o encargo do pagamento das despesas autorizadas pela autoridade ordenadora.

A fixação do valor do suprimento de fundos é determinada pelo Ordenador de Despesa.

A entrega do numerário, sempre precedida do empenho ordinário na dotação própria das despesas a realizar é feita, conforme o montante, mediante crédito em conta bancária em nome do suprido ou mediante ordem bancária de pagamento ou similar.

O suprimento de fundos não pode ser concedido:

�� a quem já é responsável por um suprimento;

�� a servidor que tenha a seu cargo a guarda ou a utilização de material a ser adquirido, salvo quando não houver na unidade em que trabalhe outro servidor apto para responsabilizar-se pelo mesmo;

�� a responsável por suprimento de fundos que não tenha prestado contas de sua aplicação nos prazos previstos; e

�� a servidor declarado em alcance ou que esteja respondendo a inquérito administrativo.

No ato em que autoriza a concessão de suprimento, a autoridade ordenadora fixa o prazo de aplicação dos recursos (normalmente não ultrapassa 90 dias) e o da prestação de contas (normalmente 30 dias). Esses prazos devem ainda considerar o término do exercício financeiro, que não deve ser ultrapassado.

O servidor que recebe suprimento de fundos fica obrigado a prestar conta de sua aplicação, que deve se dar mediante a apresentação dos seguintes documentos:

�� cópia do ato de concessão do suprimento;

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�� primeira via da Nota de Empenho da Despesa;

�� extrato da conta bancária, se for o caso;

�� demonstração de receitas e despesas; e

�� comprovantes em originais das despesas realizadas, devidamente atestados por outros servidores que tenham conhecimento da condição em que as despesas foram realizadas, emitidos em data igual ou posterior à da entrega do numerário e compreendida dentro do período fixado para apli-cação, em nome do órgão emissor do empenho (notas fiscais de venda de bens e materiais ou de prestação de serviços por pessoa jurídica; recibo comum ou de pagamento de autônomo, quando a prestação de serviços for feita por pessoa física);

�� comprovante de recolhimento de saldo, se for o caso.

Quando impugnada a prestação de contas, total ou parcialmente, deverá a autoridade ordenadora determinar imediatas providências administrativas para a apuração de responsabilidade e imposição das penalidades cabíveis.

c. Custos

As indagações quanto à produtividade, eficiência, eficácia e efetividade das ações e serviços de saúde, agregadas à crescente escassez de recursos alocados ao Setor, têm levado as instituições a analisar os custos dos serviços que prestam, até mesmo para estabelecer parâmetros comparativos.

Várias metodologias de apuração de custos são empregadas nas instituições de saúde. A mais utilizada delas é a que utiliza centros de custo, geralmente subunidades (centro cirúrgico, ambulatório, centro radiológico, serviço de nutrição e dietética, lavanderia, etc.). Nestas subunidades são apurados os gastos diretos e apropriados outros que lhes dizem respeito, obtendo-se como produto o custo de funcionamento de cada um desses centros. Outras formas de apurar custos são também empregadas, estando definidas em função dos objetivos da mesma: custo de diagnósticos, custo por patologias, custo por leito, custo por paciente atendido, etc.

O sistema de custo geralmente tem sua implantação entregue a uma empresa ou consultor contra-tado que, ao implementá-lo deve capacitar pessoal próprio da organização para operar sua rotina. Periodicamente o sistema tem que ser revisado para adequar-se às exigências impostas por mudanças nos processos de trabalho. Aí, mais uma vez, é útil a contratação de um especialista, caso a organi-zação ainda não tenha pessoal com domínio sobre o tema.

Apesar de ser visto quase que exclusivamente como um mecanismo utilizado para arrecadar receitas, a validade de sua implantação está em sua utilização como instrumento de gerência capaz de subsidiar os processos de decisão.

5. Considerações finais

Numa organização, o adequado funcionamento das atividades meio é requisito inquestionável para a produção de bens e serviços com qualidade e eficiência.

É importante numa organização, que os diversos setores reconheçam e identifiquem tanto os seus clien-tes externos (razão da existência da própria organização) quanto seus clientes ou fornecedores internos ou setores dentro da organização, para os quais produzem ou recebem algum bem ou serviço.

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A gerência dos m

eios de produção na unidade da rede básica de saúdeM

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Essa identificação, que tende a formar uma rede de clientes/fornecedores é extremamente útil para que o controle sobre a qualidade do trabalho seja exercido em cada fase do processo (o cliente con-trola a qualidade do bem ou serviço oferecido pelo fornecedor, podendo recusá-lo e oferecer soluções para melhorá-lo), fazendo com que, em última instância, o maior beneficiário seja o cliente externo.

Para que esse relacionamento entre cliente e fornecedor se efetive é necessária a criação de espaços integradores que possibilitem tornar explícita a determinação em realizar um trabalho de forma integrada e solidária. Com o cliente externo, esses espaços podem ser traduzidos na forma de caixa de sugestões, de criação de central de atendimento ao cliente/consumidor, e de criação de conselhos comunitários com a participação de representantes da sociedade civil e da comunidade de usuários entre outras. Com o cliente interno, esses espaços podem ser viabilizados na forma de reuniões periódi-cas, comunicações verbais diretas entre gerências, congraçamentos, visitas ou qualquer outra forma que melhore a compreensão sobre o trabalho das partes e permita que sugestões sejam propostas visando a melhoria dos respectivos processos.

Os objetivos fixados para a organização devem refletir as necessidades dos usuários. Esse enunciado altera de maneira substantiva o planejamento normativo que define previamente objetivos, serviços e produtos sem considerar as necessidades dos clientes. É a demanda definindo o perfil da oferta, e não o contrário.

A gerência dos meios de produção deverá dispor das condições mínimas para que possa prover o con-junto de recursos requeridos para cumprir os objetivos fixados pela organização. Para tanto deverá profissionalizar-se e isso significa, mais do que a capacidade para administrar conflitos, capacidade para criar as condições que viabilizem uma integração com as áreas fim, visando a execução harmô-nica dos processos produtivos na organização e onde o esforço de capacitação do pessoal envolvido é prioritário para este desiderato.

Não é tarefa fácil. Se o setor privado, com toda a autonomia que dispõe para gerir seus negócios, encontra dificuldades na redefinição de processos de trabalho, o setor público tem como fator com-plicador algumas limitações derivadas da adoção de leis, normas e instrumentos de gestão, restritivos à flexibilidade administrativa.

Mas é possível inovar. É possível perceber por exemplo, que procedimentos internos relacionados com a prestação de serviços, numa unidade de saúde, não podem ser padronizados quando têm características e natureza distintas, ou seja, não se pode querer adotar uma mesma sistemática de trabalho ou mobilizar os mesmos fatores de produção para realizar uma neurocirurgia de alto risco e para efetuar uma simples troca de curativo num corte superficial. Não se pode dar um mesmo tratamento processualístico para a aquisição de um tomógrafo e para a compra de um lote de lápis destinado ao setor de contabilidade.

É igualmente possível eliminar controles que não agregam valor ao produto, isto é, que não influen-ciam positivamente na melhoria da qualidade dos bens e serviços produzidos.

É importante ter em mente que num processo de compras, para citar mais um exemplo, os custos associados ao controle podem tornar-se mais altos do que a própria compra. Um sistema de manu-tenção que dependa da equipe do nível central para executar tarefas simples, como a mudança de um mero fusível, estará custando à organização e à sociedade um preço seguramente superior ao que ela se disporia a pagar, se consultada fosse.

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Mesmo as restrições já referidas anteriormente, impostas pela Lei n.º 8.666, que rege as licitações, podem ser minimizadas se interpretadas no sentido positivo que normalmente norteia a intenção do legislador.

Uma nova postura da gerência frente às questões anteriormente colocadas, que conduza à adoção de medidas consequentes e responsáveis e possibilite a coordenação dos distintos processos de trabalho envolvidos na atividade de prestação de serviços, é um requerimento indispensável para que todos os recursos sejam direcionados para os objetivos e a missão institucional.

Referências AGUAYO, R. Dr. Deming, o americano que ensinou qualidade total aos japoneses. Rio de Janeiro, Editora Campus, 1993.

HAMMER, M. & CHAMPY, J. Reengenharia: revolucionando a empresa em função dos clientes, da concorrência e das grandes mudanças da gerência. 3ª edição. Rio de Janeiro, Editora Campus, 1994.

ISHIKAWA, K. Controle de qualidade total à maneira japonesa. Rio de Janeiro, Editora Campus, 1993.

MANDELLI, M.J. Elaboração e execução do orçamento público: roteiro de apoio.

————— & FEKETE, M.C. Administração estratégica em unidade de saúde. In: Capacitação em Gerência de Unidades Básicas de Saúde do Distrito Sanitário.

MÉDICI, A.C. & SILVA, P.L.B. A administração flexível: uma introdução às novas filosofias de gestão. São Paulo, 1992. (Mimeo)

VECINA NETO, G. Os serviços gerais na gestão as unidades básicas do distrito sanitário.

—————. Administração de materiais para gerentes de silos.

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Para saber mais(Bibliografia complementar)

1. CAMARGO JÚNIOR, Kenneth Rochel de. MATTOS, Ruben Araújo de. Administração de recursos materiais. In: BRASIL. Ministério da Saúde. Gesthos. Módulo III. Gestão de Recursos nas Organizações de Saúde. Brasília: MS, 2002. p. 50-91.

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Módulo 7: Educação Permanente para Fortalecimento Gerencial

7.1 Política de Educação Permanente no SUS�� O que é Educação Permanente em Saúde: principais conceitos.

�� Política Nacional de Educação Permanente.

�� Gestão da Educação Permanente (Portaria MS/1996/07).

�� A proposta de municipalização para a Educação Permanente: construção da agenda para o fortalecimento gerencial.

7.2 Construção da Agenda de fortalecimento gerencial da SMS com base na Educação Permanente�� Revisão das redes explicativas construídas pelos alunos durante o curso e consolidação da agenda de fortale-

cimento gerencial.

�� Pactuação da agenda de fortalecimento gerencial em plenária final com a presença do Secretário Municipal de Saúde e equipe dirigente municipal.

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TEXTO BÁSICO

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EDUCAÇÃO PERMANENTE EM SAÚDE: DESAFIO AMBICIOSO E NECESSÁRIO1

RICARDO BURG CECCIM2

Assumo neste texto um caráter autoral, menos me importando com a revisão da literatura que com o destaque ao desafio de reconhecer no setor da saúde a exigência ético-política de um processo educativo incorporado ao cotidiano da produção setorial. Pretendo que o texto cumpra a função de estabelecer um debate, cujas sugestões/induções de pensamento – ou o despertar de pensamento – localizem mais o problema da necessidade da educação na saúde que os delineamentos pedagógicos da vertente que se pode identificar como Educação Permanente.

A identificação Educação Permanente em Saúde3 está carregando, então, a definição pedagó-gica para o processo educativo que coloca o cotidiano do trabalho – ou da formação – em saúde em análise, que se permeabiliza pelas relações concretas que operam realidades e que possibilita construir espaços coletivos para a reflexão e avaliação de sentido dos atos produzidos no cotidiano. A Educação Permanente em Saúde, ao mesmo tempo em que disputa pela atualização cotidiana das práticas segundo os mais recentes aportes teóricos, metodológicos, científicos e tecnológicos disponíveis, insere-se em uma necessária construção de relações e processos que vão do interior das equipes em atuação conjunta, – implicando seus agentes –, às práticas organizacionais, – im-plicando a instituição e/ou o setor da saúde –, e às práticas interinstitucionias e/ou intersetoriais, – implicando as políticas nas quais se inscrevem os atos de saúde.

1 Este artigo, adaptado para a presente coletânea, foi publicado originalmente em: CECCIM, Ricardo Burg. Educação permanente em saúde: desafio ambicioso e necessário. Interface – Comunicação, Saúde e Educação, Botucatu, v. 9, n. 16, p. 161-168, set.2004-fev.2005. 2 Professor, Programa de Pós-Graduação em Educação, Grupo Temático de Educação em Saúde, Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Departamento de Gestão da Educação na Saúde, Ministério da Saúde. <[email protected]>; <[email protected]>3 Faço a escolha pela designação Educação Permanente em Saúde e não apenas Educação Permanente porque, como vertente pedagógica, esta formulação ganhou o estatuto de política pública apenas na área da saúde. Este estatuto se deveu à difusão, pela Organização Pan-Americana da Saúde, da proposta de Educação Permanente do Pessoal de Saúde para alcançar o desenvolvimento dos sistemas de saúde na região com reconhecimento de que os serviços de saúde são organizações complexas em que somente a aprendizagem significativa será capaz da adesão dos trabalhadores aos processos de mudança no cotidiano. Ver, por exemplo, Maria Alice Roschke, Maria Cristina Davini e Jorge Haddad (Roschke et al., 1994), Maria Alice Roschke e Pedro Brito (Roschke & Brito, 2002) ou Mário Rovere (Rovere, 1996).

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A Educação Permanente em Saúde pode corresponder à Educação em Serviço, quando esta coloca a pertinência dos conteúdos, instrumentos e recursos para a formação técnica submetidos a um projeto de mudanças institucionais ou de mudança da orientação política das ações prestadas em dado tempo e lugar. Pode corresponder à Educação Continuada, quando esta pertence à construção objetiva de quadros institucionais e à investidura de carreiras por serviço em tempo e lugar específicos. Pode, também, corresponder à Educação Formal de Profissionais, quando esta se apresenta amplamente porosa às multiplicidades da realidade de vivências profissionais e coloca-se em aliança de projetos integrados entre o setor/mundo do trabalho e o setor/mundo do ensino.

Para muitos educadores, a Educação Permanente em Saúde configura um desdobramento da Educa-ção Popular ou da Educação de Jovens e Adultos, perfilando-se pelos princípios e/ou diretrizes de-sencadeados por Paulo Freire desde Educação e Conscientização/Educação como Prática da Liberda-de/Educação e Mudança, passando pela Pedagogia do Oprimido, Pedagogia da Esperança, Pedagogia da Cidade, Pedagogia da Autonomia e Pedagogia da Indignação4. De Paulo Freire provém a noção de aprendizagem significativa, por exemplo.

Para outros educadores, a Educação Permanente em Saúde configura um desdobramento do Movi-mento Institucionalista em Educação, caracterizada fundamentalmente pela produção de René Lou-rau e George Lapassade (Lourau, 1975; Lapassade, 1983 ou Lourau & Lapassade, 1972), que propu-seram alterar a noção de Recursos Humanos, proveniente da Administração e depois da Psicologia Organizacional, como o elemento humano nas organizações, para a noção de coletivos de produção, propondo a criação de dispositivos para que o coletivo se reúna e discuta, reconhecendo que a edu-cação se compõe necessariamente com a reformulação da estrutura e do processo produtivo em si nas formas singulares de cada tempo e lugar. Dos institucionalistas provém a noção de auto-análise e autogestão, por exemplo.

A Educação Permanente em Saúde configura, ainda, para outros educadores, o desdobramento, sem fi-liação, de vários movimentos de mudança na formação dos profissionais de saúde, resultando da análise das construções pedagógicas na educação em serviços de saúde, na educação continuada para o campo da saúde e na educação formal de profissionais de saúde. No caso brasileiro, em particular, verificamos, nos movimentos de mudança na atenção em saúde, a mais ampla intimidade cultural e analítica com Paulo Freire5; nos movimentos de mudança na gestão setorial, uma forte ligação e uma forte autonomia intelectual com origem ou passagem pelo movimento institucionalista6 e nos movimentos de mudança na educação de profissionais de saúde um intenso engajamento7, também com uma intensa produção original8. É deste reconhecimento nacional que tenho tangenciado, desde 2001 (Ceccim & Armani, 2001), a noção de Quadrilátero da Formação, organizada mais recentemente no trabalho intelectual, político e institucional com Laura Feuerwerker (Ceccim & Feuerwerker, 2004a).

4 A obra de Paulo Freire em Educação se estende de 1959 a 2000. Para identificar o período do primeiro bloco referido, pode-se indicar Educação como prática da liberdade, obra original de 1967 (Freire, 1989) e, para o segundo bloco, Pedagoy of the city, de 1993 (Freire, 1995).5 Pode-se citar Victor Valla, Eduardo Stotz (Valla & Stotz, 1993; 1994), Eymard Vasconcellos (Vasconcellos, 2001) e Sonia Acioli (Acioli, 2000), por exemplo.6 Pode-se citar Gastão Campos (Campos, 2003), Emerson Merhy (Merhy, 2002), Luiz Cecílio (Cecílio, 1994) e Solange L’Abbate (L’Abbate, 1997), por exemplo.7 Pode-se referir a rede de integração docente assistencial, os projetos UNI e a rede Unida, pode-se citar Roseni Sena (Sena-Chompré, 1998), Laura Feuerwerker (Feuerwerker, 2002), Regina Marsiglia (Marsiglia, 1995; 1998) e Márcio Almeida (Almeida, 1999), por exemplo.8 Pode-se referir a Comissão Nacional Interinstitucional de Avaliação do Ensino Médico (Cinaem), pode-se citar Regina Stella (Stella, 2001), Rogério Carvalho dos Santos, Roberto Piccini e Luiz Augusto Facchini (Santos et al., 2000) ou, ainda, Emerson Merhy (Merhy, 2002), por exemplo.

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Para fins deste debate, destaco que aquilo que deve ser realmente central à Educação Permanente em Saúde é sua porosidade à realidade mutável e mutante das ações e dos serviços de saúde; é sua ligação política com a formação de perfis profissionais e de serviços, a introdução de mecanismos, espaços e temas que geram autoanálise, autogestão, implicação, mudança institucional, enfim, pensamento (disruptura com instituídos, fórmulas ou modelos) e experimentação (em contexto, em afetividade – sendo afetado pela realidade/afecção).

Exercício da Educação Permanente em Saúde

Além da velocidade com que conhecimentos e saberes tecnológicos se renovam na área da saúde, a distribuição de profissionais e de serviços segundo o princípio da acessibilidade para o conjunto da população o mais próximo de sua moradia – ou de onde procuram por atendimento – faz com que se torne muito complexa a atualização permanente dos trabalhadores. Torna-se crucial o desenvolvi-mento de recursos tecnológicos de operação do trabalho perfilados pela noção de aprender a apren-der, de trabalhar em equipe, de construir cotidianos eles mesmos como objeto de aprendizagem individual, coletiva e institucional.

Não há saída, como não há romantismo nisso. Problemas como a baixa disponibilidade de profissionais, a distribuição irregular com grande concentração em centros urbanos e regiões mais desenvolvidas, a crescente especialização e suas consequências sobre os custos econômicos e dependência de tecnologias mais sofisticadas, o predomínio da formação hospitalar e centrada nos aspectos biológicos e tecnoló-gicos da assistência demandam ambiciosas iniciativas de transformação da formação de trabalhadores.

Assim, ou constituímos equipes multiprofissionais, coletivos de trabalho, lógicas apoiadoras e de fortalecimento e consistência de práticas uns dos outros nessa equipe, orientadas pela sempre maior resolutividade dos problemas de saúde das populações locais ou referidas ou colocamos em risco a qualidade de nosso trabalho, porque sempre seremos poucos, sempre estaremos desatualizados, nun-ca dominaremos tudo o que se requer em situações complexas de necessidades em/direitos à saúde.

A complexidade fica ainda maior em situações concretas, nas quais a presença de saberes tradicionais das culturas ou a produção de sentidos ligada ao processo saúde-doença-cuidado-qualidade de vida pertence a lógicas distintas do modelo racional científico vigente entre os profissionais de saúde, pois não será sem a mais justa e adequada composição de saberes que se alcançará uma clínica que fale da vida real, uma clínica com capacidade terapêutica.

Um dos entraves à concretização das metas de saúde tem sido a compreensão da gestão da formação como atividade meio, secundária à formulação de políticas de atenção à saúde. Nem é dirigida às po-líticas de gestão setorial ou das ações e dos serviços de saúde e nem é compreendida como atividade finalística da política setorial.

Tradicionalmente, falamos da formação como se os trabalhadores pudessem ser administrados como um dos componentes de um espectro de recursos, como os materiais, financeiros, infraestruturais etc. e como se fosse possível apenas “prescrever” habilidades, comportamentos e perfis aos trabalha-dores do setor para que as ações e os serviços sejam implementados com a qualidade desejada. As prescrições de trabalho, entretanto, não se traduzem em trabalho realizado/sob realização.

As reformas setoriais em saúde têm-se deparado regularmente com a necessidade de organizar ofer-tas políticas específicas ao segmento dos trabalhadores, a tal ponto que esse componente (o “Recur-

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A introdução da Educação Permanente em Saúde seria estratégia fundamental para a recomposição das práticas de formação, atenção, gestão, formulação de políticas e controle social no setor da saú-de, estabelecendo ações intersetoriais oficiais e regulares com o setor da educação, submetendo os processos de mudança na graduação, nas residências, na pós-graduação e na educação técnica à ampla permeabilidade das necessidades/direitos de saúde da população e da universalização e equidade das ações e dos serviços de saúde.

Uma ação organizada na direção de uma política da formação pode marcar estas concepções na gestão do sistema de saúde, mas também demarca uma relação com a população, entendida como cidadãos de direitos. Tal iniciativa pode fazer com que os cidadãos reconheçam tanto a preocupação com a macro-política de proteção à saúde, como com o desenvolvimento de práticas para a organização do cotidiano de cuidados às pessoas, registrando uma política da valorização do trabalho e do acolhimento oferecido aos usuários das ações e dos serviços de saúde, tendo em vista a construção da acessibilidade e resoluti-vidade da atenção e do sistema de saúde como um todo e o desenvolvimento da autonomia dos usuários diante do cuidado e da capacidade de gestão social das políticas públicas de saúde.

Formação para a Educação Permanente em Saúde

Tradicionalmente, o setor da saúde trabalha com a política de modo fragmentado: saúde coletiva separada da clínica, qualidade da clínica independente da qualidade da gestão, gestão separada da atenção, atenção separada da vigilância, vigilância separada da proteção aos agravos externos e cada um desses fragmentos divididos em tantas áreas técnicas quantos sejam os campos de saber especiali-zado. Essa fragmentação também tem gerado especialistas, intelectuais e consultores (expertises) com uma noção de concentração de saberes que terminam por se impor sobre os profissionais, os serviços e a sociedade e cujo resultado é a expropriação dos demais saberes e a anulação das realidades locais em nome do conhecimento/da expertise.

Cada área técnica sempre parte do máximo de conhecimentos acumulados em seu núcleo de saberes e de práticas e dos princípios políticos considerados mais avançados, segundo a erudição oriunda des-te núcleo de informações, para examinar os problemas de saúde do país. A partir dessas referências propõem “políticas específicas” ou, como tradicionalmente acontece, “programas de ação” ou “ações programáticas”, quase sempre assentadas na assistência individual, em particular sobre o atendimen-to médico, ou em macropolíticas de vigilância à saúde. Para a implementação de cada “programa de ação”, propõe-se uma linha de capacitações, isto é, uma linha de prescrições de trabalho aos profissionais. Essa linha de capacitações/prescrições substitui o papel das áreas técnicas e dos níveis centrais em definir princípios e diretrizes para as políticas em cada um dos núcleos específicos de acumulação em saúde e, a partir daí, em lugar de estabelecer apoio solidário às esferas gestoras ou de serviços nas quais se desdobram em atos políticos, desfiam cursos, treinamentos e protocolos. As áreas técnicas, tradicionalmente, sem nenhum pudor, se oferecem à prescrição do trabalho e negam sua oportunidade de assessoramento.

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Em geral, as áreas, os intelectuais especialistas e os consultores trabalham com dados gerais que possibilitam identificar a existência dos problemas e sugerir sua explicação, mas não permitem com-preender sua singularidade, sua vigência subjetiva, suas conexões de sentido local. O olhar, a es-cuta e o assessoramento que permitem compreender a especificidade da gênese de cada problema é necessariamente afetiva e local, portanto, é imprescindível que haja encontro entre intelectuais e consultorias docentes com a gestão de sistemas e serviços locais para a elaboração de estratégias adequadas ao enfrentamento efetivo dos problemas. Todos e cada um dos que trabalham nos serviços de saúde, na atenção e na gestão dos sistemas e serviços têm ideias, noções e compreensão acerca da saúde e de sua produção, do sistema de saúde e de sua operação e do papel que cada profissional ou cada unidade setorial deve cumprir na prestação das ações de saúde. É a partir dessas ideias, noções e compreensão que cada profissional se integra às equipes ou agrupamentos de profissionais em cada ponto do sistema. É a partir dessas concepções, mediadas pela organização dos serviços e do sistema, que cada profissional opera.

Ao analisarmos um problema institucional, regional ou nacional de maneira contextualizada, desco-brimos a complexidade de sua explicação e a necessidade de intervenções articuladas. As capacitações não se mostram eficazes para possibilitar a incorporação de novos conceitos e princípios às práticas estabelecidas – tanto de gestão, como de atenção e de controle social – por trabalharem de maneira descontextualizada e se basearem principalmente na transmissão de conhecimentos. A Educação Permanente em Saúde pode ser orientadora das iniciativas de desenvolvimento dos profissionais e das estratégias de transformação das práticas de saúde.

Condição indispensável para uma pessoa ou uma organização decidir mudar ou incorporar novos elementos a sua prática e a seus conceitos é a detecção e contato com os desconfortos experimentados no cotidiano do trabalho, a percepção de que a maneira vigente de fazer ou de pensar é insuficiente ou insatisfatória para dar conta dos desafios do trabalho. Esse desconforto ou percepção de abertura (incerteza) tem de ser intensamente admitido, vivido, percebido. Não se contata o desconforto me-diante aproximações discursivas externas. A vivência e/ou a reflexão sobre as práticas vividas é que podem produzir o contato com o desconforto e, depois, a disposição para produzir alternativas de práticas e de conceitos, para enfrentar o desafio de produzir transformações.

Para produzir mudanças de práticas de gestão e de atenção, é fundamental que sejamos capazes de dialogar com as práticas e concepções vigentes, que sejamos capazes de problematizá-las – não em abstrato, mas no concreto do trabalho de cada equipe – e de construir novos pactos de convivência e práticas, que aproximem os serviços de saúde dos conceitos da atenção integral, humanizada e de qualidade, da equidade e dos demais marcos dos processos de reforma do sistema brasileiro de saúde, pelo menos no nosso caso.

Cresce a importância de que as práticas educativas configurem dispositivos para a análise da(s) experiência(s) locais; da organização de ações em rede/em cadeia; das possibilidades de integração entre formação, desenvolvimento docente, mudanças na gestão e nas práticas de atenção à saúde, fortalecimento da participação popular e valorização dos saberes locais.

As consultorias, os apoios, as assessorias quando implementadas têm de ser capazes de organizar sua prática de modo que esta produção seja possível; elas precisam oferecer-se desde a pedagogia da Edu-cação Permanente em Saúde para que façam sentido na realidade e operem processos significativos nessa realidade.

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Novas abordagens, mais potentes para desfazer as dicotomias persistentes e sobre as quais foram cons-truídas as iniciativas anteriores de mudança (individual x coletivo, clínica x saúde pública, especialidade x generalidade, sofisticação tecnológica x abordagens simplificadas) tornam-se impostergáveis.

A Educação Permanente em Saúde opera o Quadrilátero da Formação

A interação entre os segmentos da formação, da atenção, da gestão e do controle social em saúde deveria permitir dignificar as características locais, valorizar as capacidades instaladas, desenvolver as poten-cialidades existentes em cada realidade, estabelecer a aprendizagem significativa e a efetiva e criativa capacidade de crítica, bem como produzir sentidos, autoanálise e autogestão9. Para tanto, teremos de pensar/providenciar subsídios para que se pense/providencie a Educação Permanente em Saúde.

Dentre os elementos analisadores para pensar/providenciar a Educação Permanente em Saúde estão os componentes do Quadrilátero da Formação:

a. análise da educação dos profissionais de saúde: mudar a concepção hegemônica tradi-cional (biologicista, mecanicista, centrada no professor e na transmissão) para uma concepção construtivista (interacionista, de problematização das práticas e dos saberes); mudar a concepção lógico-racionalista, elitista e concentradora da produção de conhecimento (por centros de ex-celência e segundo uma produção tecnicista) para o incentivo à produção de conhecimento dos serviços e à produção de conhecimento por argumentos de sensibilidade;

b. análise das práticas de atenção à saúde: construir novas práticas de saúde, tendo em vista os desafios da integralidade e da humanização e da inclusão da participação dos usuários no plane-jamento terapêutico;

c. análise da gestão setorial: configurar de modo criativo e original a rede de serviços, assegurar redes de atenção às necessidades em saúde e considerar na avaliação a satisfação dos usuários;

d. análise da organização social: verificar a presença dos movimentos sociais, dar guarida à vi-são ampliada das lutas por saúde e à construção do atendimento às necessidades sociais por saúde.

O papel das práticas educativas deve ser crítica e incisivamente revisto para que almeje a possibilidade de pertencer aos serviços/profissionais/estudantes a que se dirigem, de forma que os conhecimentos que veiculam alcancem significativo cruzamento entre os saberes formais previstos pelos estudiosos ou especialistas e os saberes operadores das realidades – detidos pelos profissionais em atuação – para que viabilizem autoanálise e principalmente autogestão. Os saberes formais devem estar implicados com movimentos de autoanálise e autogestão dos coletivos da realidade, pois são os atores do cotidia-no que devem ser protagonistas da mudança de realidade desejada pelas práticas educativas.

Uma questão à autoanálise e à autogestão dos coletivos é o trabalho com eixo na integralidade para superar a modelagem de serviços centrados em procedimentos, de usuários interpretados como pe-ças orgânicas ou como o simples território onde evoluem os quadros fisiopatológicos e de doenças enfrentadas como eventos biológicos (como se esse conhecimento fosse de ciências naturais)10 .

Dessa maneira, além de processos que permitam incorporar tecnologias e referenciais necessários, é preciso implementar espaços de discussão, análise e reflexão da prática no cotidiano do trabalho e dos referenciais que orientam essas práticas, com apoiadores matriciais de outras áreas, ativadores de processos de mudança institucional e facilitadores de coletivos organizados para a produção.

9 Pode-se sugerir a leitura da produção em colaboração de Ceccim & Feuerwerker, 2004a e b.10 Para compreender a integralidade, pode-se citar outros brasileiros: Ruben Mattos, Roseni Pinheiro (Pinheiro & Mattos, 2001; 2003; 2004), Kenneth Camargo Jr. (Camargo Jr., 2003) e Madel Luz (Luz, 1988), por exemplo.

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Tomar o cotidiano como lugar aberto à revisão permanente e gerar o desconforto com os lugares “como estão/como são”, deixar o conforto com as cenas “como estavam/como eram” e abrir os ser-viços como lugares de produção de subjetividade, tomar as relações como produção, como lugar de problematização, como abertura para a produção e não como conformação permite praticar contun-dentemente a Educação Permanente em Saúde.

Para ocupar o lugar ativo da Educação Permanente em Saúde precisamos abandonar (desaprender) o sujeito que somos, por isso mais que sermos sujeitos (assujeitados pelos modelos hegemônicos e/ou pelos papéis instituídos) precisamos ser produção de subjetividade: todo o tempo abrindo fronteiras, desterritorializando grades (gradis) de comportamento ou de gestão do processo de trabalho. Pre-cisamos, portanto, também trabalhar no deslocamento dos padrões de subjetividade hegemônicos: deixar de ser os sujeitos que vimos sendo, por exemplo, que se encaixam em modelos prévios de ser profissional, de ser estudante, de ser paciente (confortáveis nas cenas clássicas e duras da clínica tradicional, mecanicista, biologicista, procedimento-centrada e medicalizadora).

Se somos atores ativos das cenas de formação e trabalho (produtos e produtores das cenas, em ato), os eventos em cena nos produzem diferença, nos afetam, nos modificam, produzindo abalos em nosso “ser sujeito”, colocando-nos em permanente produção. O permanente é o aqui-e-agora, diante de problemas reais, pessoas reais e equipes reais.

A mudança na formação por si só ajuda, mas essa mudança como política se instaura em mais lugares, todos os do Quadrilátero, pois todos esses lugares estão conformados em acoplamento de captura da Educação Permanente em Saúde. Tanto a incorporação crítica de tecnologias materiais, como a eficácia da clínica produzida, os padrões de escuta, as relações estabelecidas com os usuários e entre os profis-sionais representam a captura da Educação Permanente em Saúde e, por conseguinte, dos processos de mudança. É por isso que a Educação Permanente em Saúde é um desafio ambicioso e necessário.

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Curso de Desenvolvimento Gerencialdo SUS

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3. BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Educação Permanente em Saúde. In: BRASIL. Ministério da Saúde. Pactos pela Saúde 2006. Brasília: MS, 2009. (Coletânea, CD 01: v. 9)

4. BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS n. 1996, de 20 de agosto de 2007. Dispõe sobre as diretrizes para a implementação da Política Nacional de Educação Permanente em Saúde e dá outras providências. Brasília: MS, 1996.

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Sobre o LivroFormato: 210x280 mm.

Mancha Gráfica: 174x220 mm.Tipologias utilizadas: Perpetua e Bauhaus

Papel: Sulfite 90g (miolo)e Papel Triplex 250g (capa)

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