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Museu, Memória e Cidadania.Juliana Monteiro e
Valdemar de Assis Lima1
“Toda a pessoa tem direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir das artes e de participar do progresso científico e de seus benefícios”. (Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1947, Artigo XXVII parágrafo 1).
Na atualidade, muito se tem falado sobre os museus, a cidadania e a memória:
são vários os enfoques dados a esses temas, e muitos estudiosos têm
contribuindo no sentido de trazer novos dados e metodologias para sua
interpretação.
Contudo, o que nos interessa aqui é tratar da relação possível entre essa
instituição, o museu – que tantos desafios e práticas apresenta – e o que se
entende por cidadania e por memória. Como primeiro passo, é importante dizer
que essa relação será construída a partir de referenciais da Museologia. E será
ela, portanto, que nos guiará ao longo dessa jornada.
Para Ana Gregorová, uma importante teórica da área, a Museologia é
compreendida como:
“[...] a ciência que estuda a relação específica do homem com a realidade, que consiste na coleção e conservação intencional e sistemática de objetos selecionados, quer sejam inanimados, materiais, móveis e principalmente objetos tridimensionais, documentando assim o desenvolvimento da natureza e da sociedade, e deles fazendo uso científico, cultural e educacional”. (GREGOROVÁ apud VAN MENSCH, 1994, p.12).
Vale ressaltar que esta relação entre o ser humano e o real pode ser mediada
em vários espaços sócio-culturais, dentre eles o museu – entendendo aqui o
museu como o lócus onde as pessoas podem encontrar e (re)conhecer valores,
símbolos, teorias, entretenimento, etc., através do que está exposto ou mesmo
do que é produzido e realizado como atividades de extensão. Nesse sentido, a
instituição-museu pode ser o lugar onde o visitante pode se ver representado,
de algum modo, por exemplo, pelo patrimônio ali preservado. Esta
representatividade pode criar vínculos entre o que está sendo exposto e as 1 Museólogos e membros fundadores do Movimento Museologia Marginal.
lembranças pessoais, as próprias experiências de vida de cada um, permitindo
que se estabeleçam conexões com a memória afetiva.
Mas o que isso tem a ver com a cidadania? Ou, o que os museus têm a ver
com a formação holística do ser humano?
Os museus, como grandes laboratórios para as diversas formas de experiência
humana, podem contribuir significativamente para o desenvolvimento da
sociedade, criando estratégias que expandam suas ações para além de seus
muros. E ao trabalhar com as diferentes memórias existentes nessa sociedade
– seja ela a étnica, a política, a histórica, etc. – pode auxiliar na promoção do
sentimento de pertencimento de um cidadão a um lugar, um grupo.
No que tange ao processo de formação de conceitos do indivíduo, há que se
contemplar as relações entre pensamento e linguagem; a questão cultural no
processo de construção de significados pelos indivíduos; o processo de
internalização e o papel da escola na transição de conhecimento, que é de
natureza diferente daqueles aprendidos na vida cotidiana. Partindo do
pressuposto da indissociabilidade da relação entre educação e cultura,
entendemos que o acesso à cultura pode ser um importante catalisador do
processo de formação do ser humano cônscio de seus direitos e deveres em
sociedade, enquanto ator e autor social. Com efeito, esse é o fio condutor que
nos convida a uma reflexão sobre o papel dos museus no processo de
valorização da cidadania.
A cidadania, portanto, diz respeito aqui não só aos direitos sociais, jurídicos e
políticos que alguém pode ter ao nascer em um país e pertencer a uma nação.
Ela é também o direito ao patrimônio, o direito ao acesso efetivo aos museus, o
direito a ver e se apropriar de sua história, da história de seu grupo ou lugar
reconhecidos como bens culturais. E o cidadão é justamente “[...] um ser
político, ou seja, ele é responsável, individual e coletivamente, por seu presente
e por seu futuro. Para isso, precisa reconhecer, respeitar e utilizar o patrimônio
que o define em sua diferença e o inscreve numa continuidade”.(VARINE,
2000, p.7)
Desse modo, pode-se compreender que os museus possuem um papel
fundamental de fomentador desse sentimento de pertencimento e
responsabilidade sociocultural. Eles devem desenvolver uma política de
atuação (ou mesmo uma política cultural), cujos objetivos digam respeito à
concretização do seu papel lúdico, criativo e educativo. Enquanto instituições
destinadas ao fim de preservação, pesquisa, conservação, difusão e exposição
do patrimônio cultural, os museus tornam-se importantes espaços de inclusão
para a concretização da formação cidadã, latu sensu. Entende-se que os
espaços museais possuem, assim, uma força de mobilização e liderança
social.
A comunicação entre os museus e o público - ou mesmo entre os museus e as
comunidades – é um dos primeiros passos para que o museu se transforme em
um instrumento de valorização da vida. Conforme explica Varine (2000, p.10.
Grifo do autor), o museu como um todo deve trabalhar no sentido de “[...] fazer
o patrimônio falar, com uma linguagem acessível para todos”. Para isso, o
museu deve, portanto, “[...] ser portador de uma dinâmica, de um processo”.
Nos projetos culturais dos museus, ou em qualquer plano de ação – sempre
em parceria com a comunidade – a equipe de profissionais envolvida deve
estar cônscia de que a sua atuação deve ser efetivamente um produto das
discussões junto à comunidade e da atuação transdisciplinar. Se a ação
museal pretende produzir uma exposição, por exemplo, a sensibilidade e a
competência formal dos profissionais envolvidos devem movê-los a
problematizar as mensagens propostas pela exposição e construir participativa
e interativamente novas significações a partir das mesmas, sempre priorizando
os interesses da comunidade que, de fato, legitima a ação museológica.
O mesmo se dá no âmbito das outras ações como a documentação, a
conservação, a pesquisa e as atividades educativo-culturais.
A política museal deve sempre priorizar o respeito à diversidade, a preservação
das especificidades das instituições e a busca de uma reflexão séria e
responsável acerca da relevância do museu nas ações dos sujeitos
construtores e reconstrutores da sua identidade cultural.
Nesse respeito, Maria de Lourdes P. Horta (2000, p.21) ressalta que:
“A importância da análise e do conhecimento do Patrimônio Cultural para o exercício da cidadania é a ampliação do sentido de comunidade, a percepção do valor e do significado das experiências e vivências compartilhadas, a consciência da participação de cada indivíduo no processo cultural e político de sua coletividade, o domínio dos códigos sociais vigentes, o diálogo com base em uma linguagem comum, compreendida por todos, a responsabilidade por uma herança cultural que é privilégio de todos.” É pertinente destacar ainda que o papel do museu na construção e
reconstrução identitária compreende o processo da aprendizagem do ser
humano, e esta interação pode ser entendida nos termos em que propôs
Vigostsky (1988) para o qual, a cultura e a educação caminham sempre juntas,
complementando-se, sendo a cultura o importante conjunto de elementos que
concorre para a (re)elaboração de significantes, significados e conceitos pelos
indivíduos.
Como se sabe, o museu não quer ocupar o papel da escola ou servir-lhe de
apêndice propedêutico. Não obstante, também tem um relevante papel
educativo, valendo-se de recursos e discursos próprios, específicos, naquilo
que se propõe. Nesse contexto, a cultura fornece aos indivíduos os sistemas
simbólicos de representação da realidade, ou seja, o universo de significações
que permitem construir a interpretação do mundo real.
Precisamos, evidentemente, construir mecanismos de inclusão social mais
efetivos, que contemplem a reflexão sobre como, para que e para quem os
museus e os profissionais de museus trabalham; principalmente na época em
que vivemos, em que tantos indivíduos parecem cada vez mais à beira da
exclusão extrema da vida em sociedade. Época em que é “comum” assistirmos
à proliferação de diversas formas de violência como a pobreza, o racismo, a
fome, a impunidade, a falta de respeito ao próximo e à natureza. É claro que
estas são apenas algumas das muitas questões referentes ao temário proposto
no início de nossa discussão.
Os museus e os profissionais da cultura entendem que ainda há muito o que se
fazer, individualmente e como grupo, no enfrentamento desse grande desafio
imposto pela atual conjuntura do mundo moderno: tornar acessível ao maior
número possível de pessoas, o direito à cultura, a valorização da vida e o
respeito á dignidade humana.
Na atual conjuntura, a política de ação cultural e educativa dos museus amplia
seu raio de atuação no processo de desenvolvimento social para que cada vez
mais pessoas conheçam, compreendam, valorizem e se apropriem do seu
direito de acesso ao museu, a memória e a cidadania.
__________________________________________________________ Referências GREGOROVÁ, Ana. ICOM: Museological Working Papers (MUWOP) n.1. HORTA, Maria de Lourdes Parreiras. Patrimônio Cultural e Cidadania. In: Museologia social. Porto Alegre: Secretaria Municipal de Cultura, 2000. VAN MENSCH, Peter. O Objeto de Estudo da Museologia. In: Pretextos museológicos. Rio de Janeiro: UNIRIO/Universidade Gama Filho, 1994. VARINE, Hugues de. Patrimônio e Cidadania. In: Museologia social. Porto Alegre: Secretaria Municipal de Cultura, 2000. VYGOTSKY, Leontiev, Luria. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo, Icone, 1988.