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REVISTA ACADÊMICA DE MÚSICA volume 23 janeiro/junho - 2011 ISSN: 1517-7599

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REVISTA ACADÊMICA DE MÚSICA

volume 23janeiro/junho - 2011

ISSN: 1517-7599

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Editorial

Este volume 23 de Per Musi - Revista Acadêmica de Música, juntamente com o volume 22, são volumes temáticos de-dicados ao estudo da música popular, uma das sub-áreas que mais tem crescido no meio acadêmico brasileiro, finalmente refletindo uma das mais fortes vocações musicais deste país. O grande número de textos selecionados – 38, incluindo três partituras inéditas - permitiu alguns agrupamentos temáticos (como o hibridismo na música popular brasileira), manifes-tações tradicionais (como o lundu, choro, samba, canções, bossa-nova, baião, repente, ragtime, jazz moderno e musicais) ou mais recentes (como o axé, o mangue beat, música infantil e a nova música instrumental brasileira) e personalidades referenciais (como Ernesto Nazareth, Pixinguinha, K-Ximbinho, Gnattali, Guerra-Peixe, Tom Jobim, Hermeto Pascoal, Baden Powell, Egberto Gismonti, Victor Assis Brasil e o grupo UAKTI).

O texto seminal do etnomusicólogo inglês Philip Tagg , em tradução de Fausto Borém, sobre o ensino da análise musical para iletrados em música, traz original e importante contribuição para inclusão do grande público de diletantes que fazem música no processo de compreendê-la e usufruí-la em níveis mais profundos do que o simples entretenimento.

Para tratar da nueva canción e das relações entre e liberade de expressão e censura durante a ditadura na Argentina, a musicóloga argentina Silvina Luz Mansilla apresenta um estudo focado na música Hermano composta e interpretada por seus conterrâneos, o compositor Carlos Guastavino, o poeta Hamlet Lima Quintana e a cantora Mercedes Sosa.

Leonardo Barreto Linhares e Fausto Borém revelam o hibridismo composicional e de práticas de performance entre dois gêneros populares - o baião brasileiro e o bebop norte-americano - na música Pro Zeca do saxofonista, compositor e arranjador Victor Assis Brasil.

A música Pro Zeca de Victor Assis Brasil é apresentada em uma edição de performance, que inclui a introdução, o tema e os improvisos da performance original do próprio compositor-instrumentista, a partir da transcrição de Leonardo Barreto Linhares e da edição de Leonardo Barreto Linhares e Fausto Borém.

Marco Túlio de Paula Pinto discute a influência estilísticas do third stream, do jazz e da música brasileira no desenvol-vimento estilístico do saxofonista, compositor e arranjador Victor Assis Brasil, especialmente no seu período de formação nos Estados Unidos, na Berklee School of Music.

Carlos Palombini discute preconceito racial e poder no começo do século XX, a partir da gravação de The Laughing Song do cantor ex-escravo norte-americano George Washington Johnson e sua derivação brasileira na cançoneta Gargalhada (pega na chaleira) de Eduardo das Neves.

César Albino e Sonia R. Albano de Lima avaliam o papel da improvisação e da tradição oral na consolidação de dois gêneros populares nas Américas no começo do séulo XX - o ragtime norte-americano e o choro brasileiro - e suas opções por caminhos de tradição ou renovação.

Adriana Costa mergulha na história do surgimento do jazz na França e aborda práticas de performance do ragtime na interpretação do Le Quintette du Hot Club de France e de suas estrelas mais reconhecidas: o violonista Django Reinhardt e o violinista Stephane Grappelli.

Per Musi traz uma partitura inédita de Tiger Rag, um dos mais conhecidos ragtimes da Original Dixieland Jazz Band, editada por Adriana Costa com base na gravação do Le Quintet du Hot Club de France, incluindo, além do tema, os solos improvisados de Django Reinhardt e Stephanne Grapelli.

Por meio de um estudo comparativo iconográfico e de gravações das obras Um a zero e Segura ele, Nilton Antônio Mo-reira Júnior e Fausto Borém discutem a influência do ragtime no estilo composicional (elementos formais, harmônicos e motívicos) e nas práticas de performance (instrumentação, realização rítmica, divulgação junto ao público) do choro do compositor-intérprete Pixinguinha.

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Fausto BorémFundador e Editor Científico de Per Musi

Acácio Piedade propõe os conceitos de hibridismo homeostático – em que há uma fusão de musicalidades - e hibridismo contrastivo - em que há uma fricção de musicalidades – para ilustrar, em seguida, com exemplos de traços característicos da música brasileira que chama de tópicas “brejeiro”, época-de-ouro“ e “nordestina”.

Estudando o segundo movimento da Suíte Retratos para bandolim, cordas e regional de Radamés Gnattali, Luciano Chagas Lima revela reflexos rítmicos, melódicos e harmônicos da valsa Expansiva de Ernesto Nazareth nesta música erudito-popular escrita em sua homenagem.

Pablo Garcia da Costa e Beatriz Magalhães Castro discutem elementos extra-musicais na obra de K-ximbinho a partir de uma leitura iconográfica de fotos e textos em capas de discos, cartazes e jornais no período de 1950 a 1960. As aná-lises revelam um jogo de negociações entre duas culturas e uma mediação entre tradição e inovação, como na ressigni-ficação de K-Ximbinho no contexto da inserção da cultura do jazz no Brasil.

Revisando a literatura sobre a carreira de Guerra-Peixe, Bruno Renato Lacerda descobre evidências de que, trabalhando como arranjador de orquestras de rádio, conseguiu se firmar profissionalmente na área e se aproximar da música popular, seja incorporando elementos populares nos seus processos criativos, seja atuando na formação de importantes nomes da música popular brasileira.

A partir do conceito de ordem musical de John Blacking e da observação de grupos da cena musical de Brasília, Ivaldo Gadelha de Lara Filho, Gabriela Tunes da Silva e Ricardo Dourado Freire analisam o contexto das rodas de choro.

Considerando as diferenças entre duas gerações na abordagem de improvisação no choro, Paula Veneziano Valente revela a preferência pela improvisação vertical por Pixinguinha e pela improvisação horizontal por K-Ximbinho.

Artur Andrés e Fausto Borém descrevem a trajetória do Uakti, grupo instrumental único por manter por mais de três décadas um sistema de produção musical autônomo e integrado em todos os sentidos criativos: luteria, composição, interpretação, arranjo e veiculação comercial de sua música.

Na seção Pega na Chaleira, apresentamos três resenhas. Maurilio Andrade Rocha nos guia pela coletânea Music, words and voice: a reader [Leituras sobre música, as palavras e a voz]. Organizada por Martin Clayton, este abrangente livro inclui trinta e cinco artigos e excertos escritos por autores desde o século dezoito até os dias de hoje e apresen-tados em cinco áreas temáticas: a fala e a canção, significado das palavras nas canções, o canto no contexto social, o canto em rituais sagrados ou profanos, a construção de narrativas nas canções. Rodrigo Cantos Savelli Gomes nos apresenta o livro César Guerra-Peixe: Estudos de Folclore e Música Popular Urbana, cujos 44 artigos e 4 esboços foram gerados pela pouco conhecida faceta etnomusicológica de um dos nossos maiores compositores, e minuciosamente escavados e organizados por Samuel Araújo, a partir de acervos do Diário de Pernambuco, da Revista Brasileira de Folclore e de jornais diversos. Gabriel Ferrão Moreira discorre sobre o livro Cavalo-Marinho pernambucano em que o etnomusicólogo norte-americano John Patrick Murphy discute a relação entre as práticas culturais e as relações de trabalho nas diferentes versões deste gênero nordestino.

Lembramos que todos os conteúdos e capas de Per Musi, desde janeiro de 2000 até o presente volume estão dis-poníveis para download ou impressão gratuitamente no site de Per Musi Online, no endereço www.musica.ufmg.br/permusi. As versões impressas de quase todos os números da revista ainda podem ser adquiridas através do e-mail [email protected].

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PER MUSI: Revista Acadêmica de Música - n. 23, janeiro/junho, 2011 -Belo Horizonte: Escola de Música da UFMG, 2011 –

n.: il.; 29,7x21,5 cm.SemestralISSN: 1517-7599

1. Música – Periódicos. 2. Música Brasileira – Periódicos. I. Escola de Música da UFMG

Fundador e Editor CientíficoFausto Borém (UFMG, Belo Horizonte)

Corpo Editorial Internacional Aaron Williamon (Royal College of Music, Londres, Inglaterra)Anthony Seeger (University of California, Los Angeles, EUA)Eric Clarke (Oxford University, Oxford, Inglaterra)Denise Pelusch (University of Colorado, Boulder, EUA)Florian Pertzborn (Instituto Politécnico do Porto, Portugal)Jean-Jacques Nattiez (Université de Montreal, Canadá)João Pardal Barreiros (Universidade de Lisboa, Portugal)Jose Bowen (Southern Methodist University, Dallas, EUA)Lewis Nielson (Oberlin Conservatory, Oberlin, EUA)Lucy Green (University of London, Institute of Education, Londres, Inglaterra)Marc Leman (Ghent University, Ghent, Bélgica)Melanie Plesch (University of Melbourne, Melbourne, Austrália)Nicholas Cook (Royal Holloway, Eghan, Inglaterra)Silvina Luz Mansilla (Univ. Católica, Univ. de Buenos Aires, Argentina)Xosé Crisanto Gándara (Universidade da Coruña, Corunha, Espanha)Thomas Garcia (Miami University, Miami, EUA)

Corpo Editorial no BrasilAcácio Tadeu de Camargo Piedade (UDESC, Florianópolis)Adriana Giarola Kayama (UNICAMP, Campinas)André Cavazotti (UFMG, Belo Horizonte)André Cardoso (UFRJ, Rio de Janeiro)Ângelo Dias (UFG, Goiânia)Arnon Sávio (UEMG, Belo Horizonte)Beatriz Magalhães Castro (UNB, Brasília)Cíntia Macedo Albrecht (UNICAMP, Campinas)Cristina Capparelli Gerling (UFGRS, Porto Alegre)Diana Santiago (UFBA, Salvador)Eduardo Augusto Östergren (UNICAMP, Campinas)Fabiano Araújo (UFES, Vitória)Fernando Iazetta (USP, São Paulo)Flávio Apro (UNESP, São Paulo)Guilherme Menezes Lage (FUMEC, Belo Horizonte)José Augusto Mannis (UNICAMP, Campinas)José Vianey dos Santos (UFPB, João Pessoa)Lea Ligia Soares (EMBAP, Curitiba)Lincoln Andrade (UFMG, Belo Horizonte)Lucia Barrenechea (UNIRIO, Rio de Janeiro)Luciana Del Ben (UFRGS, Porto Alegre)Manoel Câmara Rasslan (UFMS, Campo Grande)Maurício Alves Loureiro (UFMG, Belo Horizonte)Maurílio Nunes Vieira (UFMG, Belo Horizonte)Norton Dudeque (UFPR, Curitiba)Pablo Sotuyo (UFBA, Salvador)Patrícia Furst Santiago (UFMG, Belo Horizonte)Rafael dos Santos (UNICAMP, Campinas)Rosane Cardoso de Araújo (UFPR, Curitiba)Salomea Gandelman (UNIRIO, Rio de Janeiro)Sônia Ray (UFG, Goiânia)Vanda Freire (UFRJ, Rio de Janeiro)Vladimir Silva (UFPI, Teresina)

O Corpo de Pareceristas de Per Musi e seus pareceres são sigilosos

Revisão Geral Fausto BorémMaria Inêz Lucas MachadoAssistente EditorialSandra Pugliese

PER MUSI - Revista Acadêmica de Música (ISSN 1517-7599) é um espaço democrático para a reflexão intelectual na área de música, onde a diversidade e o debate são bem-vindos. As idéias aqui expressas não refletem a opinião do Editor ou dos Corpos Editoriais. PER MUSI está indexada nas bases do Scielo, RILM Abstracts of Music Literature, The Music Index, EBSCO e Bibliografia da Música Brasileira da ABM (Academia Brasileira de Música).

Universidade Federal de Minas GeraisReitor Clélio Campolina DinizVice-Reitora Rocksane de Carvalho NortonPró-Reitor de Pós-Graduação Ricardo Santiago GomezPró-Reitora Adj. de Pós-Graduação Andréa Gazzinelli Correa de OliveiraPró-Reitor de Pesquisa Renato Lima dos Santos

Escola de Música da UFMGDiretor Maurício Freire Garcia

Programa de Pós-Graduação em Música da UFMGCoord. Sérgio FreireSub-Coord. Flávio BarbeitasSec. Geralda Martins MoreiraSec. Alan Antunes Gomes

Planejamento e Produção Isabela Scarioli - Cedecom/UFMGCamila Rodrigues (estagiária) – Cedecom/UFMG

Projeto GráficoCapa e miolo: Sérgio Lemos - Cedecom/UFMGDiagramação: Romero Morais - Cedecom/UFMG

Tiragem100 exemplares

Acesso gratuito na internetwww.musica.ufmg.br/permusi

Endereço para correspondênciaUFMG - Escola de Música - Revista Per Musi Av. Antônio Carlos 6627 - Campus PampulhaBelo Horizonte, MG, Brasil - 31.270 - 090Fone: (31) 3409-4717 ou 3409-4747Fax: (31) 3409-4720e-mail: [email protected] [email protected]

ABM

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SumárioARTIGoS CIEnTíFICoSAnálise musical para “não-musos”: percepção popular como base para a compreensão de estruturas e significados musicais ..................................................7Music analysis for ‘non-musos’: popular perception as a basis for understanding musical structure and significationPhilip Tagg (Tradução de Fausto Borém)

Un aporte de Carlos Guastavino y Lima Quintana al mundo de la nueva Canción argentina .....................................................................................19Carlos Guastavino and Lima Quintana’s contribution to the world of the Argentinean New SongSilvina Luz Mansilla

A composição e interpretação de Victor Assis Brasil em Pro Zeca: hibridismo entre o baião e o bebop ...............................................................................................28The composition and interpretation by Victor Assis Brasil in Pro Zeca: hybridism between the Brazilian baião and bebop

Leonardo Barreto LinharesFausto Borém

Pro Zeca na performance de Victor Assis Brasil ..........................................................................39Pro Zeca performed by Victor Assis BrasilVictor Assis Brasil (Transcrição de Leonardo Barreto)

Victor Assis Brasil: a importância do período na Berklee School of Music (1969-1974) em seu estilo composicional ............................................................................................................45Victor Assis Brasil: the importance of the Berklee School of Music period (1969-1974) on his compositional styleMarco Túlio de Paula Pinto

Fonograma 108.077: o lundu de George W. Johnson ..................................................................58Phonogram 108.077 (Brazilian Odeon): George W. Johnson’s lundumCarlos Palombini

o percurso histórico da improvisação no ragtime e no choro ....................................................71The historical path of improvisation in the ragtime and choroCésar Albino Sonia R. Albano de Lima

Tiger Rag na interpretação do Le Quintette du Hot Club de France: história, análise e práticas de performance ................................................................................82Tiger Rag as performed by the Quintet of the Hot Club of France: history, analysis and performance practicesAdriana Costa

Tiger Rag (1917) na performance do Le Quintette du Hot Club de France (1934) .................89Tiger Rag (1917) as performed by Le Quintette du Hot Club de France (1934)original Dixieland Jazz Band (Transcrição de Adriana Costa)

Traços do ragtime no choro Segura ele de Pixinguinha: composição, performance e iconografia após a viagem a Paris em 1922 ..................................................................................93Ragtime traces in the choro Segura ele [Hold him!] by Pixinguinha: composition, performance and iconography after the trip to Paris in 1922nilton Antônio Moreira JúniorFausto Borém

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Perseguindo fios da meada: pensamentos sobre hibridismo, musicalidade e tópicas ...................................................................................................................103Pursuing clues to the puzzle: thoughts on hybridism, musicality and tópicasAcácio Piedade

Ernesto nazareth e a valsa da Suíte Retratos de Radamés Gnattali ........................................113Ernesto Nazareth and the waltz from Radamés Gnattali’s Suíte RetratosLuciano Chagas Lima

Elementos extra-musicais na obra de K-ximbinho: questões sobre iconografia musical em suas capas de disco entre 1950 e 1960 ............................................................................... 124Extra-musical elements in the work of K-Ximbinho: questions about musical iconography in their record covers between 1950s and 1960sPablo Garcia da Costa Beatriz Magalhães Castro

Guerra-Peixe: arranjador de orquestras de rádio ....................................................................... 138Guerra-Peixe: an arranger of radio orchestrasBruno Renato Lacerda

Análise do contexto da Roda de Choro com base no conceito de ordem musical de John Blacking ................................................................................................................................. 148A contextual analysis of the Brazilian Roda de Choro based on John Blacking´s concept of musical orderIvaldo Gadelha de Lara FilhoGabriela Tunes da SilvaRicardo Dourado Freire

Horizontalidade e verticalidade: os modelos de improvisação de Pixinguinha e K-Ximbinho no choro brasileiro ................................................................................................... 162Horizontal and vertical structures: Pixinguinha and K-Ximbinho’s models of improvisation in Brazilian MusicPaula Veneziano Valente

o grupo UAKTI: três décadas de música instrumental e de novos instrumentos musicais acústicos ........................................................................................170The Brazilian UAKTI group: three decades of instrumental music and new acoustical musical instrumentsArtur AndrésFausto Borém

SEÇÃo DE RESEnHAS – “PEGA nA CHALEIRA”Leituras sobre música, as palavras e a voz .................................................................................. 185Music, words and voice: a reader Maurilio Andrade Rocha

num velho exemplo, diferentes maneiras de fazer musicologia: uma resenha do livro César Guerra-Peixe: Estudos de Folclore e Música Popular Urbana ......188In an old example, different ways of doing musicology: a review of the book César Guerra-Peixe: Estudos de Folclore e Música Popular UrbanaRodrigo Cantos Savelli Gomes

o livro Cavalo-Marinho pernambucano de John Patrick Murphy .............................................191The book Cavalo-Marinho pernambucano by John Patrick Murphy Gabriel Ferrão Moreira

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TAGG, P. Análise musical para “não-musos”: a percepção popular... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.7-18.

Recebido em: 15/10/2009 - Aprovado em: 20/06/2010

Análise musical para “não-musos”: a percepção popular como base para a compreensão de estruturas e significados musicaisPhilip Tagg (Faculté de Musique, Université de Montréal, Canadá)[email protected]

Tradução de Fausto Borém (UFMG, Belo Horizonte, MG)[email protected]

Resumo: Estudo sobre o desenvolvimento de métodos de análise da música popular, especialmente daquela voltada para ““não-musos””, ou seja, os musicalmente iletrados, a partir de referenciais semiológicos, como denotação (e conotação) poïética e estésica. Palavras-chave: análise da música popular; análise musemática; música para leigos.

Music analysis for “non-musos”: popular perception as a basis for understanding musical struc-ture and signification

Abstract: Study about the development of methods of popular music analysis, especially that addressed to “non-musos”, i.e. the illiterate in music, departing from semiotics references such as aesthesic and poïetic denotation (and connota-tion).Keywords: analysis of popular music, musematic analysis; music for non-majors.

1 - IntroduçãoEste artigo é dividido em duas partes.1 Na primeira, dis-cuto problemas básicos de conceituação em análise mu-sical; na segunda, descrevo métodos de ensino de análi-se musical que desenvolvi para alunos sem treinamento formal em música – que chamo de ““não-musos”” 2 – e defendo sua abordagem enquanto desenvolvimento dos métodos analíticos em música.

1 - Encarando o problema1.1 - Cinco contradiçõesOs problemas básicos de conceituação em análise mu-sical aos quais me refiro têm suas origens em uma série de pelo menos cinco contradições inter-relacionadas que tratam de noções sobre música em nossa sociedade.

1.1.1 – Valor social e status institucionalA primeira contradição coloca o valor social da música empiricamente verificável em um extremo e seu status institucional no outro. Por um lado, há poucas dúvidas que música, em nossa cultura, é o mais ubíquo dos siste-mas simbólicos. Sua importância em termos monetários e

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temporais é inegável. Nossos cérebros registram uma mé-dia de 3 horas e meia de música por dia – quase 25% do tempo de vida que passamos acordados. E 90% do tempo das rádios consistem de música, ao passo que metade da programação de TV apresenta música na tela ou como música de fundo. Na verdade, muito pouca gente gasta mais tempo lendo, escrevendo e escutando do que falan-do, dançando ou olhando para pinturas e esculturas etc.

O outro lado desta contradição é que a maioria das ins-tituições de educação musical e pesquisa ainda tende a deixar música no fundo deste amontoado que é o currícu-lo acadêmico. A fatia de tempo e de dinheiro que a músi-ca recebe no currículo escolar e nos salários dos professo-res e conteúdo não guarda nenhuma ou quase nenhuma relação com sua importância extracurricular em termos financeiros ou de distribuição de carga horária. Esta dis-paridade entre os valores reais da música hoje e o status baixo que ocupa na hierarquia da educação pública pode ser observada também na política cultural, assim como na educação superior e na pesquisa.3

Em memória de János Maróthy, musicólogo e humanista

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TAGG, P. Análise musical para “não-musos”: a percepção popular... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.7-18.

1.1.2 – Análise críticaA segunda contradição deriva diretamente da primeira, porque, embora a música seja claramente importante na nossa cultura, ainda temos que desenvolver meios viáveis para compreender como toda essa música na mí-dia afeta as pessoas de fato. A contradição aqui é que, enquanto, por exemplo, a leitura crítica, ou a habilida-de de ver abaixo da superfície dos comerciais e outras formas de propaganda4 são corretamente consideradas como essenciais para uma postura de pensamento in-dependente (embora essas habilidades sejam ampla-mente ensinadas na literatura ou em estudos culturais), a habilidade de analisar mensagens musicais não o é. Uma razão para isto é, como acabei de mencionar, que ainda temos de desenvolver um método analítico capaz de lidar com toda a música disseminada por meio da mídia de massa e consumida diariamente por milhões de pessoas.

1.1.3 – nomenclatura estruturalA terceira contradição é, na verdade, apenas um outro aspecto da segunda, mas de fato explica parcialmen-te porque a musicologia dos meios de comunicação em massa é tão vagarosa para se desenvolver. Esta contra-dição enfatiza a disparidade entre a metalinguagem analítica da música no mundo ocidental e a de outros sistemas simbólicos; mais especificamente, que têm a ver com as peculiaridades na derivação de padrões de termos que denotam elementos estruturais em música quando se compara com práticas denotativas aplicadas na linguística e nas artes visuais.

Para esclarecer esta contradição vou recorrer à polari-dade conceitual pöiético-estésico. 5 Neste texto, pöiéti-co qualifica termos que denotam elementos estruturais do ponto de vista de sua construção (poïésis). Esses ter-mos derivam basicamente das técnicas e/ou materiais utilizados para produzir esses elementos (por exemplo, con sordino, glissando, acorde de sétima da dominante, equivalente a um string pad [um sample sintetizado do naipe das cordas orquestrais], phasing, pentatonicismo não tonal). Estésico, por outro lado, qualifica termos que denotam elementos estruturais basicamente do ponto de vista do efeito de sua percepção (estesis), ou seja, o efeito ou conotação recebidos (por exemplo, “allegro”, “legato”, “Scotch snap” 6, “acorde de espionagem”, “re-verberação cavernosa”). 7

Parece que, nas análises das artes visuais, pelo menos do ponto de vista do cidadão comum, é corriqueiro, na iden-tificação dos elementos estruturais, derivá-los de noções de representação icônicas ou de um simbolismo cultural como conceitos de materiais ou técnicas de produção. Por exemplo, descritores estruturais como “guache” ou “pin-celadas largas”, são claramente derivados de aspetos da técnica de produção e são, por isso, pöiéticos, enquanto que a representação icônica de um cachorro em uma obra de arte figurativa seria chamada de “cachorro” – um ter-mo estésico – e não uma descrição técnica de como a fi-

gura representando aquele cachorro foi produzida. Além disso, “o cachorro” no famoso retrato de Van Eyck do ca-samento de Arnolfini 8 poderia também ser considerado um elemento estrutural baseado em símbolo ao invés de ícone, se fosse estabelecido que aquele “cachorro” seria consistentemente interpretado de uma maneira seme-lhante àquela por uma dada população de apreciadores em um dado contexto social e histórico. Por exemplo, o cachorro, enquanto símbolo recorrente de fidelidade – ou seja, um termo estésico, desta vez em um modo semió-tico diferente. É claro que um descritor estrutural como “perspectiva central” é pöiético e estésico ao mesmo tempo, pois denota ambas (1) as técnicas de representa-ção em três dimensões em uma superfície bidimensional e (2) a maneira com que aquela superfície é percebida como tridimensional pelo observador.

Na linguística parece haver também uma rica mistura de descritores pöiéticos e estésicos de estruturas. Por exem-plo, o termo fonético “fricativo palato-alveloar falado” é pöiético porque especifica o som /Z/ (GIMSON,1967, p.33), denotando como é produzido ou construído, e não como é geralmente percebido ou compreendido. Por outro lado, termos como “finalizado” e “não finalizado”, utilizados para qualificar o contorno de alturas da fala, são ambos estésico e pöiético, ao passo que conceitos fundamentais da linguística como “fonema” e “morfema” funcionam tanto pöiética quanto estesicamente, ao de-signar estruturas de acordo com sua habilidade de signi-ficar algo tanto do ponto de vista de quem fala quanto de quem escuta. /Z/, por exemplo, entendido como um fonema, e não como um “fricativo paloto-alveloar fala-do”, denota o elemento estrutural que permite ambos o falante e o ouvinte distinguir, no inglês britânico, entre :lEZ (leisure [lazer]) e :lEs (lesser [menos]) ou :lEt (let-ter [letra]).

Dentro da perspectiva apresentada, não é um exagero dizer que, comparado com o estudo das artes visuais e da linguagem falada, a análise musical convencional na Europa Ocidental mostra uma clara predileção pela ter-minologia poïética, algumas vezes ao ponto de excluir totalmente as categorias estésicas do seu vocabulário. 9 As complexas razões históricas e ideológicas por trás deste preconceito têm sido discutidas ampla e frequen-temente (TAGG e CLARIDA, 2003, p.9-92) e, embora não sejam tratadas aqui, um de seus aspetos constitui nossa próxima contradição.

1.1.4 – Competência simbólicaA habilidade de compreender tanto a palavra escrita quan-to a falada (habilidades estésicas) é geralmente conside-rada tão importante quanto falar e escrever (habilidades poïéticas). Na música e nas artes visuais, entretanto, a competência estésica não tem o mesmo peso. Por exemplo, adolescentes capazes de compreender referências visuais intertextuais bastante sofisticadas em vídeos de música, não são considerados artísticos, nem recebem créditos pela cultura visual que claramente possuem. Da mesma

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TAGG, P. Análise musical para “não-musos”: a percepção popular... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.7-18.

forma, a habilidade amplamente difundida e verificável empiricamente de distinguir entre, vamos dizer, entre dois tipos diferentes de estórias de detetive após ouvir não mais do que dois segundos de um trecho de música instrumen-tal, aparentemente não nos permite qualificar a maioria da população como musical. De fato, “artístico”, na esfera das artes visuais, geralmente parece qualificar apenas as habilidades poïéticas e “musicalidade” parece se aplicar somente àqueles que se apresentam como cantores ou que tocam um instrumento, ou podem decifrar a notação mu-sical. É como se a competência musical da maioria “não-musa” da população não contasse. Isto é claramente an-tidemocrático. A quinta e última contradição dá algumas pistas para remediar esta situação.

1.1.5 – A institucionalização do conhecimento musicalA contradição final é, claramente, um conjunto de ano-malias. A tabela no Ex.1 divide o conhecimento musical em duas subcategorias: MÚSICA COMO CONHECIMENTO e CONHECIMENTO SOBRE MÚSICA. A primeira significa conhecimento diretamente relacionado com o discur-so musical, o qual é, ao mesmo tempo, intrinsecamente musical e culturalmente específico. Esse tipo de conhe-cimento musical pode ser dividido em dois subtipos: a competência poïética, ou seja, a habilidade de fazer mú-

sica (compor, arranjar, tocar); e a competência estésica, ou seja, a habilidade de perceber e compreender músi-ca (lembrar, reconhecer, distinguir sons musicais, assim como suas conotações e funções culturalmente especí-ficas). Nem a competência poïética nem a competência estésica se baseiam em qualquer tipo de notação verbal, e ambas são mais comumente consideradas habilidades ou competências, ao invés de conhecimento.

CONHECIMENTO SOBRE MÚSICA, por outro lado, é meta-musical por definição e sempre carrega consigo uma de-notação verbal. Entretanto, da mesma forma que a MÚ-SICA COMO CONHECIMENTO, o CONHECIMENTO SOBRE MÚSICA é culturalmente específico e pode também ser subdividido em duas subcategorias. O metadiscurso musi-cal, mostrado na tabela do Ex.1, engloba análise musical, “teoria musical” e qualquer outra atividade que requer a habilidade de identificar e nomear elementos e padrões da estrutura musical. Metadiscurso contextual, por ou-tro lado, demanda explicar como as práticas musicais se relacionam com a cultura e sociedade que as produz e as quais são afetadas por ela. Este quarto aspecto do co-nhecimento musical cobre aspectos de muitas disciplinas, desde semiologia da música até acústica, desde estudos econômicos até psicologia, sociologia, antropologia, es-tudos culturais etc. 10

Tipo Explicação onde se aprende

1 - Música como conhecimento (conhecimento de música)

1a. Competência poïéticacriação, concepção, produção, com-posição, arranjo, performance etc.

Conservatórios, escolas de música

2a. Competência estésica

lembrança, reconhecimento, distin-ção de sons musicais, assim como suas conotações e funções cultural-mente específicas

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2 - Conhecimento Metamusical (conhecimento sobre música)

2a. Metadiscurso musical

“teoria musical”, análise musi-cal, identificação e nomeação de elementos e padrões da estrutura musical

Departamentos de música (musico-logia), conservatórios, escolas livres de música

2b. Metadiscurso contextual

Explicação de como as práticas mu-sicais se relacionam com a cultura e a sociedade, incluindo abordagens da semiótica, acústica, negócios em música, psicologia, sociologia, antro-pologia, estudos culturais.

Departamentos de ciências sociais, estudos de literatura e mídia, “estu-dos em música popular”

Ex.1 – Tipos de conhecimento musical

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TAGG, P. Análise musical para “não-musos”: a percepção popular... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.7-18.

Os fundamentos institucionais desta divisão entre estes quatro tipos de conhecimento musical estão solidamente ancorados. Na educação superior, por exemplo, o primei-ro tipo – competência poïética – é geralmente ensinado em cursos de graduação especiais, conservatórios, escolas de arte etc. O terceiro – metadiscurso musical – é ensi-nado em departamentos de música ou musicologia, bem como em conservatórios ou universidades. O quarto tipo – metadiscurso contextual – é ensinado em praticamente qualquer departamento de humanidades ou ciências so-ciais, embora menos em departamentos de musicologia tradicionais e, menos ainda, em departamentos de per-formance (música, teatro, dança).

O segundo tipo de conhecimento, a competência esté-sica, está faltando no parágrafo anterior e, na tabela acima, não vê onde seria aprendido. A omissão é inten-cional, porque a habilidade de distinguir, sem recorremos às palavras e sons musicais, assim com suas conotações culturais específicas e funções sociais – o que é a mais difundida e popular forma de competência musical – é, com a exceção de ocorrências isoladas em treinamento auditivo e algumas formas de “apreciação musical”, ge-ralmente ausentes das instituições de ensino. Em outras palavras, a competência estésica parece ser um assunto extracurricular e não-acadêmico.

1.1.6 – Sumariando as contradiçõesAs cinco contradições apresentadas deixam claro que:

1- O status da música na educação musical e na pesquisa não é equiparável à sua importância social, econômica e cultural;

2- Os alunos são estimulados a analisar criticamente as mensagens verbais e visuais, mas a música é raramente ensinada como se comunicasse algo substancial;

3- Termos que denotam elementos estruturais da lingua-gem e das artes visuais são ambos pöiético e estésico, en-quanto os que denotam elementos estruturais da música são predominantemente pöiéticos.

4- As competências poïética e estésica geralmente rece-bem o mesmo valor na linguagem, enquanto que na mú-sica e nas artes visuais, aparentemente, “competência” diz respeito apenas às habilidades poïéticas.

5- A competência poïética em música e o conhecimento do metadiscurso musical são abrigados em instituições de ensino para experts em música, enquanto que o me-tadiscurso contextual é visto como um espaço reservado de outras disciplinas; já a competência estésica é rara na esfera da educação e da pesquisa públicas.

Uma bagunça! Tentarei, em seguida, organizar um pouco tudo isso. Partirei do pressuposto de que todos nós con-cordamos que a música é um sistema simbólico e que seu poder de comunicação é tão dependente da competência estésica da maioria “não-musa” quanto da competência

poïética da minoria de musos. Por isso, se pensarmos que a todas as pessoas deveriam ser dado o direito de en-tender como a música afeta suas ideias, atitudes e com-portamento, e se seguirmos as diretrizes educacionais básicas que dizem que os processos de aprendizagem são mais efetivos quando calcados na experiência de nossos alunos, então deveríamos incluir e utilizar sua ampla competência estésica no nosso ensino de música. Esta inclusão traz sérias implicações para a análise musical.

1.2 – o impacto na análise musicalDe acordo com a tabela de tipos de conhecimento mu-sical (Ex.1 acima), a análise pertence à categoria do conhecimento musical 2a, o qual é baseado na deno-tação verbal de elementos estruturais da música. Como já apontamos, ao discutir a terceira contradição (1.1.3 acima), a análise convencional de música no Ocidente mostra uma predileção por descritores pöiéticos desses elementos estruturais. Esta predileção é, obviamente, um problema para a maioria de “não-musos” com sua relativa falta de competência poïética. Precisamos en-contrar meios alternativos para identificar e denotar es-truturas musicais de um ponto de partida estésico.

Como músicos, somos conscientes que muitos elementos denotados pöieticamente podem carregar um sentido co-notativo, por exemplo, o acorde menor com nona maior enquanto acorde de sonoridade “de detetive” ou “de es-pião”. 11 Entretanto, muitos outros acordes (e acordes são elementos musicais denotados pöieticamente, se for o caso), para que carreguem qualquer significado, depen-dem ou de sua posição sintática ou da linguagem na qual ocorrem. Por exemplo, o acorde de décima terceira com função cadencial de dominante ao final de uma canção de salão poderia prover um ápice de tensão dramática, mas o mesmo acorde utilizado como tônica alterada ou como acorde de dominante dupla como substituição de trítono em uma performance de jazz não teria mais efeito do que um mero indicador do estilo bebop (TAGG, 2001c, p.113). O problema é claro: não devemos esperar uma li-gação unívoca entre uma estrutura pöieticamente deno-tada e o significado conotativo desta estrutura, porque o valor semiológico de elementos pöieticamente deno-tados é sensível ao contexto em termos de uma sintaxe tanto dentro da obra (por exemplo, os dois “significados” distintos do mesmo encadeamento de trítono na música Fernando do grupo ABBA; veja TAGG, 2001d, p.50-59), quanto da linguagem musical (como exemplificado pelo acorde de décima terceira, descrito na frase anterior). 12

Outro problema com descritores pöiéticos que já toca-mos: eles não carregam necessariamente um valor sim-bólico. Por exemplo, ao investigar IOCMs 13 para um loop de acordes em uma sequência de quatro compassos em uma faixa de dança moderna (The Source, 1997), em meio a uma discussão em uma classe de Análise de Música Popular musical em setembro de 2001, me vi tendo de to-car, junto com o CD, com uma armadura de seis susteni-dos: {4/4 G#m7 | F#/A# B | C# | C#}. 14 Antes de agarrar

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àquela tarefa no teclado, eu estava certo de que estava ouvindo uma progressão que lembrava o shuttle15 básico de acordes de canções como My sweet Lord (George Har-rison, 1971), He’s so fine (Chiffons, 1963) ou Oh Happy day (Edwin Hawkins Singers, 1969). No teclado, entretanto, tive de forçar minhas mãos em formas que não senti cor-responderem com os padrões musicais daquelas canções que são em tonalidades muito mais fáceis. Quando parei o toca-CDs e continuei tocando o teclado exatamente como o shuttle G#m7 ↔ C# sem os demais acordes intermedi-ários, meus alunos logo identificaram My sweet Lord ou Oh Happy day, mesmo que meus pensamentos estivessem ocupados em ter de ajustar meus dedos em formas inco-muns para produzir os sons corretos. A questão aqui é que a mudança estrutural de Sol Menor ou Lá Menor para Sol # Menor, insignificante tanto para um violonista utilizan-do pestanas quanto para uma percepção estésica, foi al-tamente significante para mim, instrumentista de teclado, porque tive de construir o que os ouvintes escutam como “a mesma coisa” de uma maneira radicalmente diferente.

Muitas mudanças significativas da construção tonal equivalem a mudanças significativas da recepção, por exemplo, cantar o Hino Nacional do Reino Unido no modo Hijjaz com um Dó # como pedal, ao invés de usar a tradi-cional harmonia de tríades a quatro vozes em Sol Maior. Mas uma outra mudança poïética, como o exercício em Sol # Menor, descrito acima, já não mostra correspondên-cia. Por outro lado, pequenas mudanças da estrutura tonal denotadas em termos pöiéticos, como substituir a nota Mi natural por Mi bemol em uma tríade que tenha a nota Dó como fundamental, pode ter efeitos consideráveis na recepção. Feitas estas observações, devo esclarecer que não estou, de modo algum, advogando o abandono das considerações tonais na análise da música popular.

Entretanto, um desafio ainda maior ao desenvolvimento da análise da música popular é o fato de que grande parte da música circulando em nossos meios de comunicação em massa contém muitos elementos estruturais, porém, com a exceção da nomenclatura convencional dos instrumentos, faltam descritores pöiéticos estabelecidos, os quais, apesar disso, se relacionam claramente com fenômenos paramu-sicais. Não surpreende o fato de que a maioria dos elemen-tos estruturais desse tipo só podem ser pöieticamente de-terminados somente se parâmetros de expressão que não podem ser notados são considerados. Falamos de parâme-tros como textura, timbre, volume, acústica de palco etc., nenhum dos quais pode ser separado significativamente – se, de fato, puderem – na notação musical ocidental. Con-sequentemente, muito poucos destes são sistematizados na análise musical convencional com seu preconceito que favorece parâmetros tonais passíveis de notação. Diversos colegas já contribuíram para o desenvolvimento de uma análise da música popular que confronta essas questões,16 mas a comunidade da análise da música popular (se é que ela existe) ainda está muito longe de estabelecer uma abordagem coerente que possa ser amplamente aplicada na educação de musos e “não-musos”.

2 – Análise musical para “não-musos”2.1 – Fontes de descritores “populares”Sugiro, nesta segunda parte do presente artigo, que po-demos encontrar um rico vocabulário de descritores es-truturais no uso comum da música popular. Alguns des-ses descritores podem ser pöiéticos, mas, se compararmos com a terminologia da análise musical convencional, des-cobriremos que uma porção maior será ou estésica ou uma mistura dos dois tipos denotativos. Exemplifico, a seguir, as quatro categorias de utilização musical e a ma-neira de registrar o vocabulário popular.

1 - Diálogos coloquiais sobre estruturas musicais podem ser coletados tanto etnograficamente quanto por meio de: (a) realização de testes de recepção; (b) anotação de IOCMs e PMFCs 17 de alunos em aulas de análise.

2 – Descritores de timbres eletronicamente produzidos podem ser reunidos por meio do estudo de: (a) nomen-claturas pré-determinadas de sons que aparecem de ma-neira semelhante em diferentes sintetizadores; (b) rótulos dados a samples, loops etc. específicos, que aparecem em softwares disponíveis em pacotes ou online.

3 – Descritores de parâmetros de tratamento de som (re-verb, delay, phasing, distorção, etc.), que podem ser cole-tados e combinados, a partir da nomenclatura de templa-tes de equipamentos que produzem estes efeitos.

4 – Descritores conotativos abundantes nos catálogos de música. Ao se estudar padrões regulares de correlação entre estas conotações escritas e elementos estruturais recorrentes em entradas bibliográficas catalogadas de maneira semelhante em diferentes bibliotecas, seria pos-sível tanto ampliar quanto refinar o leque de descritores estésicos do analista.

Em nenhuma das quatro categorias acima é necessário ao usuário ser fluente na descrição poïética de elementos es-truturais: ninguém precisa saber o que são sétimas dimi-nutas ou quartas aumentadas; ou entender ou reconhecer o que uma progressão no círculo da quintas ou um modo mixolídio. Afinal, os alunos da categoria 1 acima podem ser tanto do Departamento de Comunicação quanto do Depar-tamento de Música, ao passo que os usuários das categorias 2 e 3 podem ter adquirido seus sintetizadores ou softwa-res de gravação sem um treinamento de música formal. Da mesma forma, descritores de acervos de música são formu-lados geralmente por um membro “não-muso” da equipe da gravadora, para produtores de mídia estressados, geralmen-te “não-musos” também, que precisam encontrar a música correta com o clima correto tão rápido quanto possível. 18

Infelizmente, não podemos discutir aqui mais do que uma dessas quatro fontes de descritores estruturais. Por ques-tões de espaço, devo colocar as categorias 2, 3 e 4 no banco de espera de “pesquisas futuras” e focar brevemen-te em como a categoria 1, apenas, pode ajudar a resolver alguns dos problemas do analista da música popular.

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2.2 – Análise musical para “não-musos”Leciono análise musical para “não-musos” desde 1993. Durante sete destes anos, ensinei “Análise semiótica da música popular” em um programa de Mestrado da Universidade de Liverpool. 19 Em média, pouco mais da metade dos alunos que optaram por aquele curso eram “não-musos” no sentido de que eram iletrados em ter-mos de notação musical e não tinham a menor ideia do que uma sétima diminuta ou um modo mixolídio po-deria ser. Nem considerei como prioridade ensiná-los o que significavam aqueles termos. Na verdade, um dos pré-requisitos do curso dizia:

“Embora o treinamento formal em música não seja pré-requisito, um interesse apurado em música e suas funções socioculturais é absolutamente essencial. Você não precisa saber ler partitura.”

Além disso, os objetivos daquele módulo incluíam:

“Ampliar a compreensão sistemática das relações entre aspectos estruturais da música (texto) e suas qualidades psicológicas, so-ciais, culturais e ideológicas (contexto).”

“Desenvolver habilidades de escuta musical e aumentar a consci-ência de escuta em geral”.

“Estimular as habilidades de pensamento paralelo e conotativo” [e] “relacionar habilidades de pensamento paralelo e conotativo aos modos mais racionais do discurso”.

Durante a primeira terça parte do Modulo 1, apresentei e exemplifiquei o tipo de abordagem à análise da música popular que havia apresentado em diversas publicações (TAGG, 1982, 1987, 1995, 1999). Estes eram os tópicos-chave, conceitos e ferramentas metodológicas que abordei:

“Teorias e definições da semiótica. Tradições de estudos em música e sua relação com a semiótica. Definições de música. Discussão sobre as funções musicais... Conotação e denotação. Modelos de comunicação, insuficiência de códigos e interferência de códigos. Semiose e relatividade cultural”“Análise musemática: comparação inter-objetiva e substituição hipotética. Inter-subjetividade e campos paramusicais de cono-tação. Tipologia dos signos musicais: anáfonas, sinédoques de gênero, marcadores de episódio, indicadores de estilo. Música e paisagem sonora. O dualismo melodia-acompanhamento. Parâme-tros da expressão musical e paramusical”

Este curso, que mais tarde adaptei às necessidades de alunos de pós-graduação em musica e outras áreas em Montreal, 20 começa com a apresentação das ferramentas conceituais e metodológicas que os alunos precisam para realizar suas próprias tarefas (veja abaixo). Geralmente, começo apresentando uma análise, com uma versão “ao vivo” de meu livro sobre a música Fernando do ABBA (TAGG, 2001d). Até a quarta semana do curso, cada aluno escolheu, com minha ajuda e dos outros participantes do seminário, uma peça de música para analisar.

A segunda terça parte do curso é preenchida com sessões de feedback nas quais cada aluno

“. . . toca sua música para os participantes e recebe um feedba-ck deles. . . o objetivo destas sessões é obter informações sobre as qualidades percebidas na peça (associações, reações, descrições, avaliações etc.). O feedback dos participantes do seminário, na for-

ma de observações estruturais ou conotativas, devem se levadas em consideração pelo aluno no seu trabalho de análise subsequente”.

A terça parte final do curso é dedicada às apresentações das análises por cada participante e ao estímulo a comen-tários que podem ajudar cada um a melhorar sua análise. Para demonstrar que tipo de processo mental os alunos estão sujeitos neste módulo, vale a pena citar um, longo trecho de instruções para a realização dos trabalhos. 21

“VOCUBULÁRIO METAMUSICAL. Uma das grandes dificuldades em falar ou escrever sobre música é conhecer quais palavras usar quando tratamos dos diversos sons, de maneira que, não importa a pessoa a quem você se dirige, ela saberá o que você quer dizer. Obviamente que alguns rótulos como “música clássica europeia” ou “blues” podem ser úteis para comunicar aos seus ouvintes uma ideia geral dos tipos de som aos quais você está se referindo. Entretanto, a ideia é ser não mais do que isto – uma ideia geral – e qualquer refinamento da precisão da nomenclatura de estilo, por exemplo, “rococó” ou “blues de Menphis”, provavelmente não será compreen-dida pela maioria. Mesmo assim, um nome para descrição estilística não permite que você aponte sons específicos dentro daquele estilo, e muito menos em uma peça de música específica”.

“. . . músicos tem desenvolvido um amplo espectro de termos que denotam particularidades do som musical. Infelizmente, há dois problemas neste estoque de palavras: um é que há tantos con-juntos de vocabulários que se referem às estruturas musicais em todo o mundo quanto há diferentes estilos musicais; o outro é que muito do que os músicos falam sobre música é incompreensível para a maioria das pessoas nas culturas em que convivem.”

“Infelizmente, problemas semelhantes de incompreensão são encontrados em porções significativas do discurso musical, es-pecialmente nas regiões tipicamente europeias de designação de alturas, ou seja, em conexão com a harmonia, o contraponto, o vocabulário tonal e, de certa forma, ritmo e métrica. Entretanto, expressões qualificando volume, timbre, espaço, velocidade, ata-que, contorno melódico etc. podem ser usados por quaisquer pes-soas que dominem sua língua pátria. Podem, mesmo, compreender inteiramente termos mais especializados como polimétrico, po-lirítmico, polifônico, monofônico, heterofônico, legato, staccato, pizzicato, glissando, crescendo, diminuendo, pedal, pedal harmô-nico, pentatônico, anacruse, distorção, phasing, panning, etc., etc.

“De maneira semelhante, muitos sons instrumentais e tipos vo-cais podem ser fácil e corretamente identificados por qualquer um com uma audição razoável e uma pequena experiência de escu-tar música em um estilo relevante. Apesar disso, muitos dos sons musicais os quais você precisa se referir não podem ser satisfato-riamente denotados, mesmo se equipado com o pequeno arsenal de termos acima mencionados. Esta dificuldade persistente pode ser própria e eficientemente circunavegada de duas maneiras, as quais precisam ser empregadas conjuntamente: (i) denotação es-tésica 22 e (ii) disposição cronométrica inequívoca em uma série anotada de eventos musicais”

“DENOTAÇAO ESTÉSICA é a identificação verbal de certas qualida-des percebidas que conotam o som a ser identificado. Esta expres-são pode ser baseada na comparação inter-objetiva, por exemplo, “o arpejo de Bach”, “o som do gongo final no gamelão”, “a progres-são harmônica de Hey Jude” – ou nos próprios campos paramu-sicais de associação do objeto de análise, ou seja, conotações do som específico fornecido pelos seus respondentes, incluindo você mesmo – por exemplo, esfumaçado, coaxar de sapos, som-de-bruxa, borbulhante, como o nascer do sol.”

“Entretanto, embora este tipo de exercício permita referir concisa-mente a um som particular em sua peça de análise, esta referência não será inequívoca porque outros sons que pareçam com – diga-mos, arpejos de Bach, gongos de gamelão, ou a progressão har-mônica de Hey Jude, ou sons que possivelmente são qualificáveis como esfumaçado, coaxar de sapos, som-de-bruxa, borbulhante,

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como o nascer do sol etc. quase certamente existem em muitas outras peças, provavelmente com uma parecença sônica ligeira-mente diferente daquele ocorrendo na sua peça. Por essa razão, a disposição cronométrica inequívoca é essencial”

“DISPOSIÇÃO CRONOMÉTRICA INEQUÍVOCA, em uma série de eventos sonoros gravados, são os pontos inicial e final do som que você deseja identificar. . . Infelizmente, para esta tarefa (e fe-lizmente para a música em geral),a música consiste de diferentes tipos de som (ou aspectos do mesmo som) ocorrendo ao mesmo tempo. Assim, para tornar inequívoca a disposição cronométrica, geralmente é necessário qualificar o som que você deseja identifi-car em relação aos outros sons concorrentes (a figura do bumbo da bateria em 1:33 ou o som estridente sintetizado em 0:21 ou a pa-lavra “amo” no terceiro “Eu te amo” da Estrofe 2). É claro que este passo necessário na identificação de um som particular pressupõe que você observou o quanto dentro da peça este (e outros) eventos de fato ocorrem. Para isto, é essencial que seu trabalho inclua uma partitura gráfica dos eventos de sua peça”.

“PARTITURA GRÁFICA. . . se você desejar, pode tentar transcrever sua peça de análise na forma de notação musical. Entretanto, isto geralmente é uma tarefa árdua e não necessária à análise. Se você optar em transcrever parte ou o todo de sua peça, por favor, lem-bre-se que as habilidades notacionais não são um pré-requisito neste módulo e que sua apresentação pode se tornar incompreen-sível para alguns participantes”

“A apresentação gráfica deve incluir as seguintes linhas paralelas: (i) uma Linha do Tempo; (ii) uma Linha da Forma; (iii) uma Linha de Eventos Paramusicais (se for o caso); (iv) uma Linha de Ocorrências Musemáticas. Idealmente, esta partitura gráfica deve ser propor-cionalmente cronométrica, de forma que durações iguais de tempo ocupem quantidades iguais do espaço horizontal”

“A LINHA DO TEMPO consiste de uma linha horizontal na qual você marca o timing de eventos musicais significativos ao longo da peça (por exemplo, 0:44 = 44 segundos do início da peça; 3:01 = três minutos e um segundo do início da peça). . . ”

“A LINHA DA FORMA indica onde, em relação à Linha do Tempo, as várias seções da peça começam e terminam (por exemplo, Intro-dução, Estrofe 1, Chorus 2 etc.)”.“A LINHA DE EVENTOS PARAMUSICAIS contém eventos como letra da canção, descrição (ou desenhos) de aspectos visuais”.

“A LINHA DE OCORRÊNCIAS MUSEMÁTICAS contém tantas linhas horizontais paralelas quanto as camadas de som significativas que você identificar separadamente na sua peça. O início e o final de cada musema deve ser claramente visível na sua apresentação.”

Todas as tarefas e processos acima mencionados deveriam focar sua atenção nos elementos significativos consti-tuintes da música em discussão. Entretanto, eles também funcionam com uma série de exercícios de construção da autoconfiança. Primeiro, ao construir linhas cronométri-cas para sua peça de análise – uma tarefa simples que pode se feita com contadores digitais de tempo-real tan-to em playbacks de hardware quanto software -, alunos com pouca ou nenhuma experiência anterior em análi-se musical podem separar e, irrefutavelmente, indicar a existência objetiva de sons específicos. Segundo, o grau de concordância inter-subjetiva nas sessões de feedback, tanto em relação à “sensação geral” quanto em relação às conotações de sons específicos, geralmente é maior do que os alunos esperam. 23 Animados com a confiança crescente na sua habilidade de inequivocamente denotar os sons dentro de uma gravação e descrevê-los de acordo com uma concordância inter-sujetiva, os alunos tendem

a nomear estes sons estesicamente, menos constrangidos de não serem capazes de fazê-lo pöieticamente. Descrito-res como o acorde de sintetizador da década de 1980 que começa a faixa do disco pode, então, receber um nome mais abreviado (por exemplo, acorde sint. dos anos 80). Aí, os alunos podem começar a escrever suas análises.

É principalmente durante as sessões de feedback que descritores estésicos potencialmente úteis aparecem. Por exemplo, os nomes de dois musemas na minha análise de Fernando do ABBA (TAGG, 2000d, p.36-38) derivam parcialmente da contribuição de alunos: (1) o baixo na ponta dos pés – a figura arpegiada leggiera que ocupa apenas metade de cada compasso das es-trofes; (2) o motivo do nascer do sol – o motivo “para fora e para cima” que lembra a figura immer breiter [cada vez mais amplo] notada no início de Assim falou Zaratustra de Richard Strauss. Mesmo simples sequen-cias de acordes encontradas em canções pop bastante conhecidas são, alguma vezes, reconhecidas por “não-musos” como “soando com La Bamba” (ou Guantana-mera ou Twist and Shout) e nomeadas corretamente. Já em um curso recente sobre música de cinema, os alunos “não-musos” se referiam às estruturas das mú-sicas apresentadas como o “trechinho do Vivaldi” (uma figura arpegiada em “moto perpétuo” no violino após vários acordes descendentes ao redor do círculo das quintas) ou “um som do tipo Carmina Burana” (unísso-no de vozes masculinas cantando semínimas regulares e acentuadas em fortissimo no registro médio-grave e acompanhado de pontuações dos metais e madeiras). 24 Os alunos são, em outras palavras, capazes de suge-rir descritores estésicos bastante relevantes, seja com base em gestos, tato, movimento, sons paramusicais e conotações (por exemplo, “avassalador”, “pontiagudo”, “áspero”, “delicado”, “louco”, “tenso”, “bem anos 80”, “tipo detetive”, ou seja, PMFCs) ou em relação às mú-sicas que eles já conhecem (por exemplo, “sons como Bach”, “bem Per Shop Boys”, “como o tema de James Bond”, “meio industrial”, ou seja, IOCMs).

Se o nosso objetivo é uma análise constrita e inflexí-vel, então é óbvio que teremos problemas com o tipo de descritores estésicos que acabei de mencionar. A maior dificuldade é que eles significariam algo substancial so-mente para aqueles com um acesso auditivo ou memória às gravações nas quais as estruturas nomeadas ocorrem no ponto exato em que o aluno detectou. Outro proble-ma é que os descritores estésicos vernaculares são mui-to mais improváveis de serem compreendidos fora do relativamente restrito círculo cultural no qual eles ad-quiriram certo grau de senso inter-objetivo do que os ti-pos de vocabulário mais centralmente estabelecidos. Por exemplo, se é comum chamar o efeito reverb de “mo-lhado” (“wet” em inglês) quando seus sinais secundários criarem um “wash” (tempo de decay longo) constante e forte o suficiente, a mesma expressão italiana - un eco umido ou un eco bagnato - traduzida para o próprio ita-liano, não faria sentido. Quando perguntado como “um

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reverb muito molhado” seria em italiano, Franco Fabbri respondeu: “un eco di Madonna”, cuja tradução literal - “um eco de Nossa Senhora” - faria muito pouco sentido, ou nenhum, para músicos que falam português (ou que falam inglês: “an echo of Our Lady”)!

As especificidades culturais dos descritores estésicos leigos não precisam ser vistas como um grande obstá-culo para o desenvolvimento dos métodos de análise musical. Como sugerido antes, os descritores podem ser coletados e modificados: é possível encontrar padrões de similaridade inter-culturais e estabelecer alguns de-nominadores comuns. Se descritores estésicos como “le-gato” e “allegro” são compreendidos além das fronteiras linguísticas e culturais na esfera da música erudita eu-ropeia, não há nenhuma razão para acharmos que ter-mos como “repique médio”, “batida de break”, “acorde tipo detetive” não podem adquirir status inter-cultural semelhante no mundo da música popular.

Entretanto, há uma barreira que os “não-musos” rara-mente conseguem atravessar: a de denotar estruturas tonais, especialmente aquelas de harmonia, tonalidade, modo etc. É verdade que algumas harmonias parecem ter traços conotativos razoavelmente claros – o famoso “acorde tipo detetive”, a “meia-cadência cowboy” 25 ao passo que, como mencionado antes, outras harmonias comuns podem ser referenciadas pelo nome de canções pop conhecidas onde ocorrem – a “progressão de La Bamba”, “os acordes de My Sweet Lady” etc. Entretan-to, o número destes descritores não chega nem perto da quantidade de harmonias conotativamente significati-vas que encontramos na nossa música comercial. Assim, os “não-musos” incapazes de identificar estruturalmen-te o que acontece com harmonias que fazem a dife-rença, semioticamente, terão de perguntar aos experts - os musos - e dar os créditos aos seus irmãos e irmãs pöiéticos nas notas de rodapé. 26

2.3 – Persona vocal – “Está na voz”A parte final deste artigo, baseada em 18 anos de ensi-no de análise de música popular, foca em uma área da estruturação musical à qual os “não-musos” parecem es-tar atentos: timbre vocal e inflexão. “Está na voz” é um comentário recorrente. Incapaz de prover descritores pöi-éticos de técnicas de produção vocal (respiração, regis-tro, vibrato, tremolo, técnicas de microfonagem, tensão laríngea, utilização da cavidade bucal, diafragma etc.), os alunos inicialmente tendem a se esquivar e não descrever o que “está na voz” e que lhes parece tão importante. Uma saída para esse impasse é perguntar aos alunos “que tipo de pessoa, e com qual predisposição, utilizaria aquele tipo de voz?” Quando exortados a falar as palavras de uma linha vocal específica, emulando aproximadamente as alturas, dinâmica, timbre, duração, acentuação e ritmo, os alunos rapidamente sugerem palavras que descrevem a persona vocal. Os tipos de persona vocal que ouço nos cursos de análise que ministro tendem a incluir epítetos vernacu-lares como: “garotinha”, “cara legal”, “megera completa”,

“bastardo total”, “rebelde desesperado”, “machista idiota”, “murmúrio sexy”, “mulher confiante”, “criança encapeta-da”, “homem preocupado”, “voz da morte”, “voz de Satã”, “vilão dos infernos”, “adolescente nervosa com soluço”, “estudante suicida”, “grito de raiva”, “harpia esganiçada”, “reclamação frustrada”, “cantor de voz grave e intimis-ta”, “torcedor fanático”, “amigo e confidente”, “cansado e frouxo”, “resignado”, “deprimido”, “desmoralizado”, “cínico”, “histérico”, “sem fôlego”,“estressado” etc. Esta lista parece virtualmente interminável e a concordância inter-subjetiva sobre os traços conotativos do vocalista e da linha vocal em questão, entre os alunos nas aulas de análise, geralmente é grande. 27

Dada a simultaneidade entre a ampla variedade e a valida-de inter-subjetiva sem controvérsias dos tipos de voz ima-ginados pelos alunos, recomendo enfaticamernte adotar a noção de persona vocal no desenvolvimento dos métodos de análise musical. Também sugiro que seria proveitoso es-tudar em profundidade a relação entre a técnica vocal e a persona vocal, bem como entre a persona vocal e a forma-ção da subjetividade em nossas culturas como um todo.

Por exemplo, no final da década de 1990, eu estava preo-cupado com uma aparente fixação na “voz feminina in-fantil” na pop comercial inglesa centrada nas cantoras. De-parei-me com as seguintes questões: Será que não querem soar como mulheres? Se não, por quê? Será que os ouvin-tes do sexo masculino realmente querem tantas princesas com voz de criança? Será que eles têm medo de mulheres de verdade? Será que as meninas que as ouvem querem continuar a ser garotinhas quando crescerem? Será que estão emulando jovens púberes por causa das indústrias da moda e da “beleza”? Enquanto vocalistas adultas, não estão danificando suas cordas vocais por cantarem com “voz feminina infantil” o tempo todo? Que técnicas estão sendo utilizadas para soar como “infantil” se já passaram dos vinte anos? Existem tipos de letras específicas mais co-muns nessas canções cantadas por “vozes femininas infan-tis” do que em outras? Qual é a relação entre performance no palco, figurinos, imagem do artista e a “voz feminina infantil”? Como será que estas questões se relacionam, se é que se relacionam, ao processo de crescimento das crian-ças no mundo do capitalismo voraz de hoje?

A gravidade destas questões bateu à minha porta, e de for-ma surpreendentemente clara, por meio de uma amiga de minha filha. Em julho de 2001, ela disse que, alguns anos antes, haviam lhe oferecido um contrato de gravação de mais de 100.000 libras esterlinas e que havia sido levada ao shopping pelo consultor de modas da gravadora para gas-tar mais de 1.000 libras em minúsculos e inadequados tops e outras peças do típico vestuário de “menininha”. Então, ela descobriu que, de todas as faixas que ela havia gravado, a gravadora tinha a intenção de lançar apenas umas pou-cas nas quais ela havia sido instruída para cantar com “voz feminina infantil” do começo ao fim. Desconfiada de como ela seria promovida na mídia, ela desistiu do contrato e voltou à profissão de enfermeira. 28

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TAGG, P. Análise musical para “não-musos”: a percepção popular... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.7-18.

Talvez tenhamos chegado ao final do artigo antes da hora, pois o parágrafo epitomisa o que espero que se torne um tema de pesquisa e que torne a análise musi-cal mais útil. Este tipo de pesquisa pode se materializar ou não, mas o que importa no presente artigo é mostrar que “não-musos” e seus descritores estésicos têm um potencial considerável para o desenvolvimento de con-ceitos e métodos de análise que possam ajudar as pes-

soas, tanto musos quanto “não-musos”, a compreender as mensagens circulando nos meios de comunicação em massa. Quem sabe? Talvez devamos ser capazes de aju-dar a colocar a música em uma posição na educação e na pesquisa comparável à sua importância fora do insti-tucionalizado mundo da aprendizagem. Oxalá fôssemos pelo menos capazes de diminuir a distância entre estas duas esferas de nosso próprio trabalho.

Glossário: Para uma lista completa de termos e abreviaturas da análise musemática, veja www.tagg.org/articles/ptgloss.html

Para uma lista de termos e abreviaturas de harmonia veja p.27-30 do Tagg’s Har mony Handout em www.abretagg.org/articles/xpdfs/harmonyhandout.pdf

Acordes vai-e-vem (chord shuttle): neologismo criado por Phillip Tagg em 1993 para descrever a oscilação entre dois acordes, por exemplo, entre as tríades de Si Menor e Sol Maior no início da Marche funèbre de Chopin, também conhecido como “pêndulo eólio” (BJÖRNBERG, 1989).

Campo Paramusical de Conotação: veja PMFC.

Comparação interobjetiva (Interobjective comparison): Neologismo criado por Phillip Tagg em 1979 para descrever a comparação musical de intertextos de um ou mais elementos estruturais de uma obra musical com outra.

Estésico: Do francês esthésique (Molino, via Nattiez), é um adjetivo relacionado à aesthesis, ou seja, à percepção da música, ao invés da produção/construção/criação/realização musical. Basicamente, o mesmo que recepcional e o oposto de constru-cional ou pöiético. Na música, busca descrever um elemento da estrutura do ponto de vista de suas qualidades conotativas percebidas, ao invés de sua construção, por exemplo, “delicado”, “som de detetive”, “allegro” ao invés de “con sordino”, “acorde menor com sétima maior”, “quarta aumentada”, “pentatonicismo” etc.

Harmonia de terças (tertial harmony): Neologismo criado por Phillip Tagg em 1998 para descrever harmonias baseadas na superposição de terças que se entrelaçam (por exemplo, tríades comuns, acordes de sétima, acordes de nona etc.), ao contrário da harmonia quartal, em que há a superposição de quartas.

IOCM: Abreviatura de Material de Comparação Interobjetiva (Interobjective Comparison Material), um neologismo criado por Phillip Tagg em 1979 para descrever intertextos musicais, ou seja, trechos de outras obras musicais nos quais pode se demonstrar semelhança com a obra musical que é objeto de análise.

Material de Comparação Interobjetiva: veja IOCM.

Musema: Menor unidade de significado musical. Para o conceito original, veja o artigo de Charles Seeger On the moods of a musical logic no Journal of the American Musicological Society, v.13, p.224-261 (SEEGER, 1960); re-publicado no livro Studies in Musicology 1935-1975 (Berkeley: University of California Press, 1977, p.64-88; musema é definido na p.76).

Paramusical: Qualidade de um elemento semiologicamente relacionado a um discurso musical específico sem ser estrutural-mente intrínseco àquele discurso. Neologismo criado por Phillip Tagg em 1983 que significa literalmente “ao lado da música”.

PMFC: Abreviatura de Campo Paramusical de Conotação (Paramusical Field of Connotation), um neologismo criado por Phillip Tagg em 1991 para descrever um campo semântico conotativamente identificável que se relaciona com estruturas musicais (ou um conjunto delas). De 1979 a 1990, foi denominando de EMFA (Extramusical Field of Comparison).

Pöiético: Do francês poïétique (Molino, via Nattiez), é um adjetivo relacionado à poïesis, ou seja, o fazer musical, ou invés da percepção musical. Basicamente, o mesmo que construcional e o oposto de estésico ou recepcional. Na música, busca descrever um elemento da estrutura musical do ponto de vista de sua construção, ao invés de suas qualidades conotati-vas percebidas, por exemplo, “con sordino”, “acorde menor com sétima maior”, “quarta aumentada”, “pentatonicismo” ao invés de “delicado”, “som de detetive”, “allegro” etc.

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TAGG, P. Análise musical para “não-musos”: a percepção popular... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.7-18.

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TAGG, P. Análise musical para “não-musos”: a percepção popular... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.7-18.

notas1 Este artigo foi originalmente preparado para a conferência sobre Análise sobre Música Popular, ministrada na University of Cardiff (País de

Gales) em 17 de novembro de 2001. Esta versão foi atualizada em Montreal em 10 de julho de 2009. Para termos e abreviatura especiais, veja o Glossário em www.tagg.org/articles/ptgloss.html.

2 “Muso” é uma gíria ligeiramente depreciativa que denota alguém preocupado em fazer música ou falar de música e relativamente desinteressado em qualquer outra coisa. Neste artigo o termo “muso” não é utilizado de forma depreciativa. É, simplesmente, um termo curto e conveniente para denotar alguém tanto com treinamento formal em música, quanto alguém que faz música profissional ou semi-profissionalmente, quanto aquele que se considera musicólogo, ao invés de sociólogo ou acadêmico de estudos culturais. “não-musos”, então, são todos aqueles que não se encaixam nas características descritas acima.

3 Por exemplo, embora os gastos do governo sueco com música no ano fiscal de 1980-1981 tenham sido 50 milhões de dólares, seus lucros em ações musicais na bolsa de valores foram de 150 milhões de dólares, um lucro de 300 %. Esses dados foram apresentados por K. Malm, editor da Fonogramutredningen (Stockholm, 1979), durante uma palestra na Musik i Väst, em Göteborg, Suécia, em novembro de 1981 e com base em informações da Veckans affärer e de relatórios financeiros da indústria da música. Discrepância semelhante também é visível quando sabemos que, embora existam uma associação internacional (IASPM - International Association for the Study of Popular Music) e um periódico (Popular Music) ambos dedicados seriamente ao estudo da música nos meios de comunicação em massa por mais de duas décadas, e tendo entre seus membros e leitores uma grande diversidade de áreas e profissões ligadas à música, as fronteiras entre os conhecimentos de área e o professo-rado ainda colocam obstáculos enormes àqueles que tentam dar à música o tipo de atenção que ela merece nos estudos culturais, estudos em comunicação de massa, estudos sobre cinema, sociologia, psicologia etc.

4 Alguns pesquisadores da área de comunicações alegam que propaganda ideológica [do inglês propaganda] e propaganda [do inglês advertising] são bastante diferentes. Derivo minha própria compreensão das notáveis semelhanças entre os dois conceitos a partir de uma afirmação do pioneiro da propaganda de consumo Edward Bernays. Entrevistado por Adam Curtis na rede de TV BBC para o documentário Century of the Self [O século do si mesmo], Bernays explica que o termo “relações públicas” teve de ser inventado porque “nós não poderíamos usar a palavra ‘propaganda’, uma vez que os alemães a utilizaram [durante a I Guerra Mundial]”.

5 A polaridade conceitual pöiético/estésico deriva de Molino, via Nattiez. Na versão original deste artigo (2001), utilizei os termos construcional (pöiético) e recepcional (estésico), que embora menos icônicos, eram mais conhecidos.

6 O Scotch snap ou Lombard rhythm (ritmo lombardo) é um ornamento comum na música barroca, derivado de danças folclóricas escocesas, geralmente caracterizado por uma semicolcheia seguida de colcheia pontuada, e cujo efeito é o contrário das notes inégales.

7 Na verdade, os dois últimos descritores, “acorde de espionagem” e “reverberação cavernosa”, contém os modos de denotação estésico (“espiona-gem” e “cavernosa”) e pöiético (“acorde” e “reverberação”).

8 O Casamento de Giovanni Arnolfini e Giovanna Cenami; 1434; óleo sobre madeira, 81.8 x 59.7 cm; National Gallery, Londres. Nicolas Pioch afir-mou que “o cachorro de estimação é visto como um símbolo de fidelidade e amor’ (1996, www.ibiblio.org/wm/paint/auth/eyck/arnolfini/).

9 É importante observar, por exemplo, que a denotação de elementos estruturais na tradição das ragas do norte da Índia é muito mais estésica do que na Europa Ocidental (veja MARTÍNEZ, 1996).

10 O tema metadiscurso contextual tem dominado os anais dos congressos da IASPM e as páginas do periódico Popular Music (Cambridge University Press). Discuti a disparidade institucional das competências musicais em relação aos Estudos em Música Popular em outras publicações (TAGG, 1998, 2000a).

11 Como o acorde Em Maj9, que é o acorde final de The James Bond Theme (Dr No) (NORMAN, 1962).12 Por outro lado, a consistência estrutural dos descritores estésicos está sujeita, como veremos, a variações radicais entre diferentes populações

de ouvintes em diferentes épocas e diferentes culturas.13 IOCM [interobjective comparison material] = material de comparação inter-objetiva. Veja explicação sobre este termo no glossário online em

[www.tagg.org/articles/ptgloss.html].14 Esta aula de análise aconteceu em 13 de novembro de 2001. A faixa musical foi You got the love da banda The Source (1997). Leo Hatton, que

escolheu a faixa para análise, revelou depois que ele tinha que afinar seu sintetizador um quarto de tom acima para poder tocar junto com o CD. Isto significa que o Steinway na sala devia estar desafinado um quarto de tom abaixo. Entretanto, nenhum destes ajustes microtonais diminuem a validade da argumentação que segue.

15 Shuttle chords (acordes “vai-e-vem”) é a harmonia não-direcional que fica alternando entre dois acordes.16 Alguns exemplos são o trabalho de MIDDLETON (1992) sobre o gesto [gesturality] e as discussões de Nicola DIBBEN (2001) sobre o Unison de

Björk e de John RICHARDSON (2001) sobre as similaridades da sonoridade das cordas em músicas de Bernard Herrmann, Beatles, Stevie Wonder e Coolio (ambas palestras não publicadas, mas apresentadas no congresso Análise sobre Música Popular da University of Cardiff, País de Gales, em 2001). Eu também procurei contribuir com o desenvolvimento nesta área (veja as entradas de TAGG nas referências). Veja também a prova musicológica de Garry Tamlyn, que baseado em análise exaustiva de padrões de bateria do rhythm and blues pré-1955, mostrou a necessidade de reescrever radicalmente a história do rock (TAMLYN, 1998), e a avaliação de Serge Lacasse sobre performance vocal em palcos nas gravações de pop e rock (LACASSE, 2000).

17 PMFC [paramusical field of connotation] = campo paramusical de conotação. Veja explicação sobre este termo no glossário online em [www.tagg.org/articles/ptgloss.html].

18 Veja entrevistas com produtores de bibliotecas de música em 1980 em [www.tagg.org/articles/intvws80v1.pdf], p.8, 24.19 As longas citações nas próximas páginas foram tiradas de materiais do meu curso online disponível em [www.tagg.org/teaching/analys/semioma.

html] e nos seus links de páginas relacionadas.20 Veja Analyse de la musique populaire em [www.tagg.org/udem/analyse/analmpop.htm].21 Para as instruções completas das tarefas, veja [www.tagg.org/teaching/analys/semiomaass.html].22 Antes de eu escrever este artigo, as instruções das tarefas falavam de denotação “fenomenológica” e não “estésica”. As razões desta mudança de

terminologia estão sumariadas na nota 5.23 Em sessões de feedback, é sempre necessário discutir as conotações de um ponto de vista “musocêntrico”, geralmente de um ponto de partida

gestual. Por exemplo, conotações ostensivamente disparatadas, como “cabelo longo”, “colinas suaves” e “a praia” tem pouco em comum em termos de tamanho físico, textura etc. Gestualmente, entretanto, o cair do cabelo longo, as curvas de colinas arredondadas e o varrer da areia na praia por suaves ondas, todas estas descrições tem denominadores comuns. Para saber mais sobre os princípios da “inter-conversação gestual” e música, veja a análise de The Dream of Olwen (TAGG e CLARIDA, 2003, p.231-266).

24 Esta aula aconteceu em 20 de novembro de 2001. Se me recordo corretamente, o “trechinho do Vivaldi” ocorreu na trilha sonora de Great expecta-tions (Direção de Alfonso Cuaron, 1998), “uma sonoridade tipo Carmina Burana” em uma cena de The Mummy (Direção de Stephen Sommers, 1999).

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TAGG, P. Análise musical para “não-musos”: a percepção popular... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.7-18.

25 O acorde menor com sétima (ou menor com nona), que é a sonoridade final do James Bond Theme (NORMAN, 1962) é geralmente ouvido como “acorde de detetive” ou “acorde de espião” (veja a nota de rodapé 10 e análise de Streetcar named desire em TAGG e CLARIDA, 2003). Para detalhes da “meia-cadência cowboy”, veja a análise de The Virginian em TAGG e CLARIDA (2003).

26 Tento persuadir os alunos que formular questões e encontrar respostas é a marca de bom pesquisador e que “não-saber” é um pré-requisito para formular as questões corretas. Além disso, estas questões ajudam a reestabelecer a autoconfiança entre os “musos” que possam estar na aula.

27 Para saber mais sobre os tipos de persona vocal, veja o Capítulo 9 de Music’s meanings, disponível em (www.tagg.org/bookxtrax/NonMuso/NonMuso.pdf).28 Não tenho a liberdade de revelar a identidade desta pessoa. Ela concordou, entretanto, em escrever suas experiências deste episódio de sua vida.

Philip Tagg é Professor de Musicologia na Faculté de Musique da Université de Montréal (Canadá). Co-fundador da In-ternational Association for the study of Popular Music (IASPM) e mentor da Encyclopedia of Popular Music of the World (EPMOW), publicou dezenas de artigos nos mais renomados periódicos. Foi professor do Institute of Popular Music da Uni-versity of Liverpool (Inglaterra), onde orientou mestrandos e doutorandos e desenvolveu cursos de musicologia, análise, harmonia e semiologia relacionados à música popular. Trabalhou também na University of Göteborg (Suécia) e Swedish Council for Research in the Humanities and Social Sciences (Suécia). É organista erudito e tecladista em bandas de rock e pop, entre elas Röda Kapellet. Como compositor, escreveu obras corais e canções populares. É autor e colaborador de diversos programas de rádio educacionais relacionados à música popular. Recebeu diversos prêmios nas áreas de com-posição, ensino e pesquisa. Seu site www.tagg.org é um dos sites de musicologia e etnomusicologia da música popular mais visitados em todo o mundo, no qual dispobiniliza gratuitamente significativa parte de sua extensa obra didática e de pesquisa.

Fausto Borém é Professor Titular da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde criou o Mestrado em Música e a Revista Per Musi. É pesquisador do CNPq desde 1994 e seus resultados de pesquisa incluem um livro, três capítulos de livro, dezenas de artigos sobre práticas de performance e suas interfaces (composição, análise, musicologia, etnomusicologia e educação musical) em periódicos nacionais e internacionais, dezenas de edições de partituras e apresentação de recitais nos principais eventos nacionais e internacionais do contrabaixo. Recebeu diversos prêmios no Brasil e no exterior como solista, teórico, compositor e professor. Acompanhou músicos eruditos como Yo-Yo Ma, Midori, Menahen Pressler, Yoel Levi, Fábio Mechetti, Luiz Otávio Santos, Arnaldo Cohen, Antônio Menezes e músicos populares como Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, Henry Mancini, Bill Mays, Kristin Korb, Grupo UAKTI, Toninho Horta, Juarez Moreira, Tavinho Moura, Roberto Corrêa, Maurício Tizumba e Túlio Mourão. Suas gravações incluem o CD Brazil-ian Music for the Double Bass, o CD e DVD O Aleph de Fabiano Araújo Costa, os CDs da Orquestra Barroca do Festival Internacional de Juiz de Fora de 2005 a 2009 (com Luiz Otávio Santos), a Suite for Flute and Jazz Piano de Claude Bolling (com Maurício Freire, Tânia Mara e Eduardo Campos) e No Sertão (com o violista Roberto Corrêa) e Cidades Invisíveis (com o saxofonista Daniel d´Olivier).

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MANSILLA, S. L. Un aporte de Carlos Guastavino y Lima Quintana al mundo de la Nueva Canción argentina. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.19-27.

Recebido em: 15/05/2009 - Aprovado em: 22/04/2010

Un aporte de Carlos Guastavino y Lima Quintana al mundo de la nueva Canción argentina

Silvina Luz Mansilla (Facultad de Filosofía y Letras, Universidad de Buenos Aires, Argentina)[email protected]

Resumen: El artículo se refiere a la canción Hermano compuesta por el músico Carlos Guastavino sobre una poesía de Hamlet Lima Quintana. Dedicada al editor Rómulo Lagos, fue grabada por Mercedes Sosa en 1966. Incluida como pista inicial del disco de la cantante tucumana al cual le dio su nombre, la canción constituye una evidencia de la simpatía del compositor con los postulados centrales del Nuevo Cancionero argentino. El trabajo comprende una aproximación a la temática del poema, el análisis musical de la partitura, la puesta en contexto de las circunstancias de composición y difusión y la descripción de la versión grabada por Mercedes Sosa. Aplicando la noción “mundos del arte” de Howard BECKER (1982), se interpreta la red de personas ligadas a la editorial Lagos como un tejido cooperativo que funcionó con eficacia hasta mediados de la década de 1970. Un esbozo del contexto posterior, signado por la censura, permite inferir algunos factores que incidieron en el quiebre de esa red de colaboraciones. Aunque respecto de Guastavino, se habla aquí de vinculación y no de pertenencia. Palabras clave: Carlos Guastavino, Nuevo cancionero, censura, Mercedes Sosa, canción popular.

Carlos Guastavino and Lima Quintana’s contribution to the world of the Argentinean new Song

Abstract: Study about the song Hermano by Argentinean composer Carlos Guastavino written after a poem by Hamlet Lima Quintana. Dedicated to the editor Rómulo Lagos, the song was recorded by the Argentinean singer Mercedes Sosa in 1966. Included as the first track in that record (to which it gave its name), the song constitutes an evidence of the composer’s sympathy with the central postulates of the Argentinean New Song. This paper’s perspective integrates the poem’s subject, the score’s musical analysis, the study of the context concerning with the composition and spreading circumstances and the description of the performance recorded by Mercedes Sosa. Applying the notion of “art worlds” by Howard BECKER (1982), we interpret the persons net connected with Lagos publishing, as a co-operative and in-terwoven fabric that effectively worked until the mid 1970s. A sketch of the following context, signed by the Argen-tinean censorship, reveals some factors that had influence on the crack of that collaborative net. Although it concerns Guastavino, our approach is concerned with connection and not to belonging.Keywords: Carlos Guastavino, Argentinean New Song, censorship, Mercedes Sosa, folk song.

1- Introducción1

El 23 de junio de 1966 la revista argentina Confirmado publicó una nota referida a la cantante tucumana Mer-cedes Sosa, bajo el título Folklore: ese camino difícil.2 Hacía poco tiempo -apenas algo más de un año- que ella protagonizaba el mayor éxito como la voz femenina del boom del folclore. Su momento clave de consagra-ción artística, ocurrido en enero de 1965 en el Festival de la localidad cordobesa de Cosquín, había consistido en unos pocos minutos de actuación –escasos pero glo-riosos– cedidos por Jorge Cafrune en el escenario mayor

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.23, 195 p., jan. - jul., 2011

(PORTORRICO, 2004, p.355). Ahora en cambio, faltaba poco tiempo, apenas días, para el comienzo de una fase nada gloriosa de la historia de Argentina: el 28 de junio de ese año asumiría la presidencia de la nación el Ge-neral Juan Carlos Onganía. Se iniciaría así una etapa, al decir de Luis Alberto ROMERO (2001), de shock autori-tario, en la que el rumbo de la Nueva Canción empren-dería en ese país un período de lucha por imponerse, emergiendo desde algunos espacios recoletos, a la som-bra de una persistente censura.3

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MANSILLA, S. L. Un aporte de Carlos Guastavino y Lima Quintana al mundo de la Nueva Canción argentina. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.19-27.

El segundo disco de Mercedes Sosa (1935-2009), titu-lado Hermano, apareció hacia fines de 1966.4 Postulo aquí que su primera pista, que contenía la canción ho-mónima de Hamlet Lima Quintana (1923-2002) y Carlos Guastavino (1912-2000), constituye una significativa evidencia de la simpatía del compositor santafesino con los postulados centrales del manifiesto del Nuevo Cancionero y por ende, con su línea de pensamiento. Interpreto las circunstancias relacionadas con la pro-ducción y circulación de la canción Hermano, dedicada al editor de música Rómulo Lagos. Si bien no se conoce que el músico haya adoptado públicamente actitudes comprometidas en el campo de la política, recrear aquel contexto en el que se movió durante la década de 1960 y conocer su manera de relacionarse con los integrantes del Nuevo Cancionero, ayuda a comprender la disminu-ción que se produce en la difusión de su música en los años de la última dictadura militar argentina.

El marco que encuentro apropiado para esta reflexión es la noción de mundos del arte de Howard BECKER (1982). Verdadera red de colaboración que conforma un tejido complejísimo de intereses de todo orden en el que se engloban no solo los artistas, sino también los consumidores, mecenas y críticos, el mundo de la Nue-va Canción, según mi análisis, aproximó a la música de Guastavino a los ámbitos de la militancia progresista.5

El trabajo comprende una aproximación a la temática del poema, el análisis musical de la partitura, la puesta en contexto de la versión grabada por Mercedes Sosa y un esbozo sobre algunos factores que pudieron incidir en la menor circulación durante fines de los años 70. Desde el punto de vista metodológico, apelo al contraste entre la información obtenida de algunas fuentes hemerográficas con aquella procedente de entrevistas cualitativas, en las que he empleado herramientas de historia oral.

2- Lima Quintana, Mercedes Sosa y Guas-tavinoLas fuentes orales consultadas confirmaron la sospecha inicial: fue el editor Rómulo Lagos quien, como en otros casos, concertó la presentación recíproca entre Carlos Guastavino y el poeta a musicalizar.6 A la primera colabo-ración de 1963, que aquí estudiamos, le siguieron después algo más de una decena de piezas en conjunto: El único camino en 1964, Pampamapa en 1965 y finalmente el ciclo de nueve canciones titulado Edad del asombro, en 1968, referido a la infancia y al pasaje del niño a la adolescencia.

Hamlet Lima Quintana, poeta, cantor, autor y también, compositor,7 comenzó a tener difusión en el ámbito de la canción de raíz folclórica en Buenos Aires a principios de 1962, al grabar su zamba La amanecida, que había compuesto nueve años antes con Mario Arnedo Gallo. Conoció en 1963 a Armando Tejada Gómez y otros refe-rentes de la Nueva Canción argentina e inmediatamente comprendió que compartían similitud de temáticas, ob-jetivos y estilo literario.8

Ubicado en la década de 1960 en lo que Sergio Pu-jol denomina un “mundo poético coloquial y directo”, Lima Quintana encarnaba la imagen del juglar, que había vuelto a aparecer con fuerza y que se expresaba a través de un estilo poético de corte popular, deseo-so de sonido, de musicalización (PUJOL, 2002, p.133-135). Unos meses antes de la grabación de Hermano, se había dado a conocer su célebre Zamba para no mo-rir (con música de Norberto Ambrós y Néstor Rosales),9 en la voz de Mercedes Sosa. Incluida en su primer dis-co larga duración titulado Yo no canto por cantar, fue sin duda uno de las piezas consagratorias del poeta, y de la intérprete.10 No es difícil suponer entonces que el disco Hermano, separado por pocos meses del anterior, pasara algo opacado por el rápido reconocimiento del público que alcanzó la Zamba para no morir. Tampoco es antojadizo pensar que haya sido el género el que incidió en su mayor popularización, puesto que como se ha dicho, el “boom del folclore” fue en gran medida el “boom de la zamba”.11

La admiración de Lima Quintana por la voz de la cantante tucumana, ha quedado así descripta:

“[...] Mercedes no era entonces conocida. Era una ignorada can-tora que nos ponía la piel de gallina cuando largaba la voz. Re-cuerdo que yo bajaba la escalera [se refiere a la entrada de la peña El Hormiguero] cuando escuché: ‘Romperá la tarde mi voz/ hasta el eco de ayer...’ Bajé tres escalones más... y continuó: ‘Voy quedándome sola al final/ muerta de sed/ harta de andar/ pero sigo creciendo en el sol/ vivo…’ Recién cuando bajé el último escalón pude ver, sentados junto a una mesa, a Mercedes y al Monchito [Ramón Miérez] ensayando la Zamba para no morir. Era la primera vez que la escuchaba cantada. Todavía me duele la felicidad…” (LIMA QUINTANA, 1994, p.15)

3- Poesía, música e ideologíasEl texto de Hermano aparece ligado a la forma de ex-presión poética de corte popular cultivada en Argentina por esos años.12 (Ex.1) Sutilmente contestatario, con una métrica predominantemente octosílaba en las estrofas de cuatro versos, dice:

Fíjate hermano cómo vas cantando,Toda la tierra te escucha conmigo.

Del surco hasta el cañadón,Del viento hasta la madera,Del tiempo hasta la ternura

de la vida verdadera.

Porque es preciso tenerUn corazón derramadoJirones de sueños viejos

que van quedando olvidados.

Fíjate hermano cómo vas cantando,Toda la tierra te escucha conmigo.

Del grito hasta la oración,del fuego hasta la memoria

que el hombre en dolor vivientecanta sangre de su historia.

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Y cuando quede al finaltu corazón silencioso

serás un pueblo sintiendopor un cantor milagroso.

Fíjate hermano cómo vas cantando,Toda la tierra te escucha conmigo.

Ex.1. ‘Hermano’. Poema de Hamlet Lima Quintana.

Sugiere el poema la idea de una hermandad universal a la cual se podría acceder mediante el canto: el cantor, constituido en la arcilla o el elemento aglutinante de los pueblos, realizaría ese milagro al convertirse en el por-tavoz de sus necesidades, penas e historias.13 El conte-nido de este texto se podría encuadrar claramente en el tipo de canciones “políticas” “con sentido amplio y va-lórico,” como llama Eduardo CARRASCO PIRARD (1999, p.68) al nutrido repertorio con temáticas en las que se ponen en juego valores sociales en la música popular chilena de la misma década.

En relación con esto, Omar CORRADO (2001, p.18) ha su-gerido ya, levemente, una posible pertenencia de Guasta-vino a la izquierda, cuando expresa que “no es fortuito” que el compositor se interesara por musicalizar algunos poemas de Rafael Alberti, Pablo Neruda y Luis Cernuda. Por mi parte, de las numerosas comunicaciones persona-les y entrevistas mantenidas con él a lo largo de varios años, no emanó con precisión que hubiera adherido a alguno de los partidos políticos de esa tendencia o que hubiera estado formalmente afiliado. Era notable no obs-tante, como lo han resaltado también otras personas que lo conocieron y trataron, su denodada búsqueda por la valoración del hombre, su defensa de la libertad de expre-sión y su enorme sensibilidad para con los desposeídos.14

Entrevistados por Marcela GONZÁLEZ (1999, p.83), dos músicos argentinos muy allegados al compositor –el guitarrista Vicente Elías y la pianista Elsa Puppulo–re-frendaron estas ideas hacia fines de los 90. Elías afirmó que “[...] era una persona muy democrática, con gran sentido de la libertad y de valoración del ser humano [lo cual] en épocas pasadas [...] equivalía a ser comunista.” Puppulo, por su parte, dijo que “[...] se armó gran con-fusión con la gira que concretó por la antigua U.R.S.S. y China. Inmediatamente fue tildado de comunista [...]; bastó esa referencia para descalificarlo.”

Con respecto a Lima Quintana, afiliado al partido comu-nista hasta sus últimos días, resulta de interés rescatar aquí sus explicaciones en torno a la ligazón entre poesía y música. Escribió:

“No establezco diferencias cuando escribo una poesía para ser cantada, con la poesía que escribo para ser leída. Son dos formas diferentes con un mismo mensaje, una misma intención y un idén-tico fin: entablar el diálogo con los otros, los semejantes. Además, no se debe echar al olvido que la música es el vehículo natural de la poesía.” (LIMA QUINTANA, 1994, p.31)

Esta actitud de defensa, tanto de la posibilidad de acerca-miento a los otros a través de la poesía como de la exis-tencia de una conexión ‘natural’ entre música y poesía, permitió a Lima Quintana explicar la causa de su situa-ción de poeta ignorado por la elite literaria y por la crítica argentina. Según comenta en su libro, la calificación de ‘poeta marginal’ con que se lo rotuló en las cátedras uni-versitarias de literatura argentina durante la dictadura de Onganía, radicó en que escribía canciones. El resto de su producción, editada en libros, no fue tomada en cuenta.15

4- Aproximación analíticaLa partitura de Guastavino recurre a un entorno prove-niente de la cifra y de la milonga, posiblemente por la indicación de ‘canción al sur’ realizada por Lima Quinta-na, que refiere en forma rotunda al folclore sureño.16 La aparición del ritmo de milonga se da en las cuartetas oc-tosilábicas prefiriendo el músico para los dos versos que enmarcan simétricamente comienzo, mitad y cierre del poema, un pasaje enfático donde el canto, en ritmo casi libre, entona en el estilo de la cifra, el mensaje principal allí contenido “sin rigor, casi recitado” (Ex.2).17

Quasi improvisada, la introducción pianística tiene una textura de melodía acompañada que puede decir-se, evoca un fragmento guitarrístico, por la manera en que se articulan figuraciones con puntillo, en las que sobresalen saltos de terceras descendentes y acordes arpegiados que conducen primero a una semicadencia sobre el acorde de dominante y luego a una cadencia evitada al sexto grado.

El ambiente tonal elegido para este tempo andante que requiere la milonga campera, es típico del estilo guas-taviniano de raíz folclórica. Recurre una vez más a una tonalidad menor (Sol menor), alude muy brevemente a tonalidades vecinas como la subdominante (Do mayor) y “colorea” los giros cadenciales de dominante-tónica con la evocación clara del modo frigio, lo cual es caracte-rístico de la melódica criolla según lo estudiara Gerardo HUSEBY (2002-2003, p.97-114). (Ex.2, c.13-14)

La articulación de las ideas en las estrofas de cuatro versos se realiza cada dos compases, entrando cada una de ellas en forma anacrúsica o tética según lo requiere la adecua-da acentuación de las palabras. El ajuste texto-música, como en la milonga campera, es silábico. El acompaña-miento en estas estrofas, que el autor indica ejecutar en forma monótona, recurre a un ostinato de dos semicor-cheas-corchea sobre cada tiempo, asimilable totalmente a las convenciones de la milonga. Dispone además las estructuras acórdicas a la manera del acompañamiento guitarrístico que habitualmente sigue al punteo en ese género (Ex.3).18 Solo pierde su isocronía hacia el final de la segunda y de la cuarta cuartetas, cuando Guastavino desea remarcar el climax del trozo permitiéndole al can-to protagonizar, en tempo más rubato, los pasajes que permiten al oyente completar la audición de las frases, encontrando la simetría de las partes.

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5- La versión de Mercedes SosaLa revista Primera Plana recogió ideas muy claras de la can-tante tucumana respecto del contenido del disco Hermano. “El folklore de hoy debe dirigirse al hombre y no al paisaje.” “Hay que lograr la unión que la geografía obstaculiza.” “Eso no se logrará sino hablándole al hombre: la miseria y el dolor son los mismos en todas partes.” Frases enfáticas, cargadas de humanismo, permitieron al comentarista con-cluir, de cara al futuro, que Hermano “desmiente, de una

vez, que la tradición cantada sea una pieza de museo para exclusivo uso de investigadores y antropólogos”.

Sergio PUJOL (2002, p.286-287) afirma que es Mercedes Sosa quien sintetiza los aportes de la ola folclórica de los años 60 y quien con “su voz grave y despojada, se convirtió en el instrumento más virtuoso del boom.” Cierto es que fue una de las figuras que resultó más seguida y aclama-da por el público, pero resulta difícil afirmar sin pruebas

Ex.2. Lima Quintana-Guastavino, Hermano. C.5-14 (Warner Chappell Music).Elementos de la cifra: presencia del modo frigio

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fehacientes que su éxito haya sido más franco que los de Atahualpa Yupanqui o Eduardo Falú. De lo que sí no caben dudas, es que ha sido la voz femenina más solicitada.

Los momentos culminantes de la carrera de Mercedes Sosa en que se da la aparición del disco Hermano vienen encuadrados del siguiente modo: unos meses antes, la grabación del Romance de la muerte de Juan Lavalle (de Eduardo Falú y Ernesto Sábato) y la aparición del disco Yo no canto por cantar ya mencionado; unos meses después, la primera gira europea con Ariel Ramírez, Jaime Torres y Los Fronterizos, de la cual surgió la propuesta de Ramírez para ser la intérprete de su ciclo Mujeres Argentinas.

Hermano contiene doce canciones. La primera y la últi-ma pertenecen a Lima Quintana. Podría decirse de ma-

Ex.3. Lima Quintana-Guastavino, Hermano. C.15-19 (Warner Chappell Music). Elementos de la milonga.

nera aproximativa que las que más han perdurado de este álbum en cuanto a circulación hasta la actualidad, serían la segunda y la sexta de aquel disco. Véase el contenido completo en el Ex4.

Una recorrida rápida por el listado de personas citadas en la tabla, arroja hasta donde se ha podido indagar la siguiente posible red de cooperaciones, de ninguna ma-nera excluyente ni definitiva: Tejada Gómez, la intérpre-te y Matus son fundadores del Nuevo Cancionero.21 Lima Quintana se integra a ese movimiento al trasladarse los anteriores tres a Buenos Aires. Moncho Miérez estuvo ligado a la editorial Lagos y fue el guitarrista acompa-ñante de Mercedes Sosa durante los primeros años en que ella se estableció en Buenos Aires y quien le ense-

Pista Título Poeta Compositor

1 Hermano (Canción) Hamlet Lima Quintana Carlos Guastavino

2 Chacarera del 55 (Chacarera) José y Rafael Núñez José y Rafael Núñez

3 Para mañana (Zamba) José R. [Moncho] Miérez José R. [Moncho] Miérez

4 Pescadores de mi río Chacho Müller Chacho Müller

5 Coplera del viento (Canción) Armando Tejada Gómez Oscar Matus

6 Quiero ser luz (Zamba) Daniel Reguera Daniel Reguera

7 Zamba del chaguanaco Antonio Nella Castro Hilda Herrera

8 Tristeza (Tonada) José y Rafael Núñez José y Rafael Núñez

9 La bagualera (Baguala) Ariel Petrocelli Ariel Petrocelli

10 Palomita del valle (Vidalita) Ernesto Sábato Eduardo Falú

11 Monte chaqueño (Canción) Ángel [Kelo] Palacios Ángel [Kelo] Palacios

12 Esto azul (Cueca) Hamlet Lima Quintana Hamlet Lima Quintana

Ex.4.Contenido del disco Hermano. Mercedes Sosa. (Philips, 82122 PL.1966)

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ñó la Zamba para no morir.22 Eduardo Falú interpretó la música instrumental de Guastavino, adaptó y grabó al-gunas de sus canciones, compuso obras en colaboración con él, fue su alumno, asesor y amigo. Ariel Petrocelli, el autor de la popular Cuando tenga la tierra,23 publicó toda su obra en la editorial Lagos. Kelo Palacios fue du-rante nueve años el arreglador y guitarrista de Mercedes Sosa. Hilda Herrera, pianista cordobesa, publicó también su composiciones en la editorial Lagos.

El disco Hermano apareció a la venta en noviembre de 1966. En la revista Primera Plana se lo publicitaba junto a otras novedades discográficas de la música de raíz folcló-rica argentina como Bienvenido Falú, La Rioja en la sangre de Chito Zeballos y El grito macho de Horacio Guarany.24

El papel predominante de Mercedes Sosa en el ámbi-to de la canción popular en aquellos tiempos quedó claramente expresado en la calificación de “máxima sacerdotisa del cancionero de provincias” con que Pri-mera Plana describió su éxito en los días previos al Festival de Cosquín de 1967. En concordancia con los conceptos de Confirmado mencionados más arriba, el comentarista no pudo dejar de resaltar lo ‘difícil’ que resultaba, desde la recepción, ese repertorio. “Es difícil trabar amistad con ese grito duro y auténtico, con ese estilo que parece desmañado pero que proviene de una prolija maceración.”25

Acaso la voluntad de la cantante, y/o de sus asesores o empresarios, por querer desarrollar un estilo autorizado, válido, que sirviera “para decir cosas importantes”, haya tenido que ver con la elección de Hermano para dar nombre a su disco y con la ubicación de la canción en la pista inicial. No deja de ser probable que este ‘folclore’ arduo, que intentaba apartarse del “puro documento” –como dice el comentarista de Confirmado en el artícu-lo que se ha citado al comienzo de este trabajo– haya decidido recurrir a Guastavino por ser un creador con una trayectoria académica previa, como manera de con-validar su propio estilo.26

En cuanto a la versión que grabó Mercedes Sosa, se en-cuentra acompañada totalmente con guitarra. La guita-rra realiza una introducción de acordes arpegiados sobre ritmo de milonga que giran en torno a las funciones de tónica, dominante y dominantes secundarias arribando, hacia la entrada de la voz, al acorde de tónica y no hacia la cadencia rota que Guastavino escribió en la partitura pianística. Una melodía apenas esbozada, cómoda a las posiciones de esos arpegios en la guitarra, reemplaza a la original en la introducción. La solista recita, en vez de cantar, los dos primeros versos, sobre acordes arpe-giados en la guitarra. Canta a continuación, en forma casi libre, la repetición del segundo verso. Luego, en las cuartetas octosílabas, entona la melodía –acompañada por la guitarra– respetando la mayoría de las alturas y acentuaciones, pero ajustando la rítmica a su peculiar, atractiva, manera de expresión. Al terminar las cuarte-

tas, el guitarrista vuelve a intervenir con el mismo pasa-je introductorio, cantando esta vez la solista la melodía escrita, en vez de recitar el texto.27 Para finalizar, la gui-tarra agrega un brevísimo postludio individual solísti-co, antes del cierre de los dos versos finales y adiciona todavía dos compases y un acorde, luego que concluye el texto. La versión responde a todas las convenciones requeridas por el género.

6- Miedo, censura encubierta Iván Cosentino, conocido editor de discos en Argentina, sugirió una reducción en la circulación de la música de raíz folclórica desde mediados de la década de 1970.28 Sin duda, ello se enmarca en el ya bien estudiado contexto político-cultural de la última dictadura militar del siglo XX argentino que, como es sabido, sentó sus bases en métodos de censura de variados tonos e intensidades.

La época no fue propicia entonces ni para la difusión de la canción folclórica en general ni tampoco, para la difu-sión musical de Guastavino.29 La información recogida en las entrevistas revela que hubo un retraimiento obligado en quienes producían, interpretaban, editaban, grababan, distribuían y vendían los productos artísticos del repertorio de raíz folclórica. La autocensura debida al miedo, que bien puede entenderse como una censura encubierta, ocasio-nó lo que alguno de nuestros entrevistados calificó como un “desbande”, esto es, la desintegración de aquel mundo, de aquellas redes de cooperación que antes funcionaran de manera dinámica, creativa y eficaz. Lo sucedido con el mundo de la Nueva Canción en Argentina es lo que Hernán INVERNIZZI y Judith GOCIOL (2003. p.73) describen como una “falta de referencias, un desconcierto [que impide] ha-cer planes coherentes, dificulta las reacciones meditadas y solo puede producir miedo y autocensura”.30

En tal sentido, Hamlet Lima Quintana, Armando Teja-da Gómez, Norberto Ambrós, Horacio Guarany, Merce-des Sosa, luego de varias amenazas y algún atentado, debieron partir por varios años hacia el exilio.31 Ariel Petrocelli optó retraerse trasladándose, en las sombras de una situación casi de clandestinidad, a alguna pro-vincia argentina.32 Iván Cosentino soportó allanamien-tos y citaciones intimidatorias.33 Carlos Alonso, el artista plástico que ilustró varias portadas de la colección de partituras de Lagos denominada “Canción Estampa”, su-frió la desaparición de su hija y se exilió en España.34 Rómulo Lagos, por su parte, vio decaer su empresa ante la imposibilidad de ofrecer al público el material consi-derado “riesgoso”.35

7- Epílogo. Hacia las salas de conciertoGuastavino optó en aquellos años por el silencio. Un silencio explicable en una mentalidad como la suya, aunque se ha hablado aquí de vinculación y no de per-tenencia; un silencio que, de no ser por algunas esca-sas producciones posteriores de fines de la década de 1980 y principios de la siguiente, lo apartó ya definiti-vamente de la composición.

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Pero su silenciamiento local dio paso al progresivo es-parcimiento de su música por el resto del mundo. Redes-cubierta por cantantes del ámbito culto, Hermano cir-cula desde hace aproximadamente cinco lustros como canción de cámara, fiel en un alto porcentaje a la par-titura escrita por el autor y a la edición de Lagos, bajo las convenciones ahora, de la música académica. Perdió

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(provincia de Buenos Aires): Universidad Nacional de Quilmes, 2008. [Original: Art Worlds. Berkley: University of California Press, 1982].

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Sitio electrónicoSitio oficial de Mercedes Sosa: http://www.mercedessosa.com.ar. Último acceso: 10 de marzo de 2009.

así la cualidad primeramente militante, que le otorgara el timbre vocal inconfundible y la manera enfática de transmisión, propios del estilo interpretativo de Merce-des Sosa.36 Grabada por el barítono argentino Marcos Fink acompañado al piano por Luis Ascot circula, en los globalizados tiempos actuales, dentro de las convencio-nes venerables e institucionalizadas del lied.37

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Notas1 Agradezco especialmente a María Inés García, Esteban Buch, Emilio Portorrico, Omar Corrado y Melanie Plesch por los comentarios realizados en

diferentes momentos a este texto. A Ricardo Jeckel, por su ayuda técnica con los ejemplos musicales. Una primera versión de este trabajo fue leída en agosto de 2004 en Mendoza (Argentina), en el marco de la XVI Conferencia de la Asociación Ar-

gentina de Musicología, co-organizada con la Facultad de Artes y Diseño de la Universidad Nacional de Cuyo. Un desarrollo bastante mayor de esta temática, se encuentra contenido en el capítulo quinto de La obra musical de Carlos Guastavino. Circulación, recepción, mediaciones, libro de mi autoría (Gourmet Musical Ediciones, 2010). Agradezco especialmente a Leandro Donozo por autorizar la inclusión aquí de una parte de ese texto, al momento de la edición de esta revista, aún inédito.

2 Confirmado, 23-6-1966, p.57. El artículo no lleva firma.3 La expresión shock autoritario pertenece a Luis Alberto ROMERO. El historiador explica que se disolvieron los partidos políticos y se les confiscaron y

vendieron todos sus bienes como para confirmar que la clausura de la vida política era irreversible. Se combatió especialmente al comunismo, sobre todo en las universidades públicas. Sobrevino la llamada ‘Noche de lo Bastones Largos’ y las redes intelectuales y académicas debieron sobrevivir trabajosamente en espacios semi-ocultos, debido a la amplia extensión que alcanzó la censura. (ROMERO, 2001, p.170-171).

4 Fue un disco de larga duración, editado por el sello Philips bajo el nº 82.122.5 BECKER sostiene que todo trabajo artístico involucra la actividad conjunta de un número de gente y asigna importancia a la red de gente que co-

opera –y cuyos trabajos son esenciales– en pos de un resultado final de la obra. (BECKER, 1982). Sobre la aplicación del marco teórico a este objeto de estudio véase MANSILLA, 2010.

6 El guitarrista Ramón Miérez lo relata con toda claridad: “Lagos le propone a Hamlet musicalizar sus poemas con Guastavino” (Entrevista con la autora 5-10-2003). A la colección La verde rama, de Lagos, pertenece el libro Cuentos para no morir, de Hamlet Lima Quintana, con prólogo de Armando Tejada Gómez (LIMA QUINTANA, 1994, p.44).

7 Autor de los libros Mundo en el rostro, Pampamapa, en la huella en el sur, Sinfonía de la llanura, Situación personal, Cuentos para no morir, Calfucurá, Los estafados, Declaración de bienes, La breve palabra, Los referentes y El perfeccionista, entre otros. También escribió una biografía del famoso pianista y compositor de tango, Osvaldo Pugliese, en 1990. (PORTORRICO, 2004, p.232-233).

8 No puedo extenderme aquí sobre qué fue el Nuevo Cancionero, pero al menos una breve nota para explicarlo: su actividad, que comenzó a principios de la década de 1960, implicó un proceso de renovación de la canción popular basada en elementos folclóricos y propuso una búsqueda de integra-ción entre los distintos géneros musicales en un afán de innovación en la poesía y en la música. Fundado por los músicos Tito Francia, Juan Carlos Sedero y Manuel Oscar Matus, los poetas Armando Tejada Gómez y Pedro Horacio Tusoli, Mercedes Sosa y el bailarín Víctor Nieto, el movimiento presentó sus objetivos y postulados en un manifiesto que lanzó el 11 de febrero de 1963 a través del periódico Los Andes, en la ciudad argentina de Mendoza (Véase GARCÍA, 2009 y MANSILLA, 2010).

9 Norberto Ambrós, según Iván Cosentino, trabajó también un tiempo como pianista en la Editorial Lagos: “Venían los intérpretes, los cantantes, él tocaba. ¡Nos complementábamos muchísimo! éramos muy jóvenes ambos.” (Entrevista con la autora, 1-3-2004).

10 Este disco, de mayo-junio de 1966, es el primero editado por Philips. Además de la Zamba para no morir contiene: Canción del derrumbe indio (Figueredo-Iramain), Los inundados (Aizemberg-Ramírez), La solitaria (M. Miérez), Zamba azul (T. Gómez-Tito Francia), Tonada de Manuel Rodríguez (Neruda), Zamba del zafrero (T. Gómez-Matus), Quena (A. Aguirre), Mi canto es distancia (Matus-Paeta), Chayita del vidalero (R. Navarro), Canción para mi América (D. Viglietti) y Zamba del riego (T. Gómez-Matus). El título alude a una copla popular muy difundida con la cual comienza la canción Manifiesto de Víctor Jara, el canta-autor chileno torturado y asesinado después por la dictadura de Augusto Pinochet, en septiembre de 1973: “Yo no canto por cantar/ ni por tener buena voz/ canto porque la guitarra/ tiene sentido y razón.”

11 Coincido con esta afirmación de Pablo Vila, basada en datos estadísticos de ediciones de partituras (VILA, 1982, p.24-27). Hermano contiene un aire de milonga campera. A diferencia de la zamba, el género milonga requiere mayor destreza instrumental en el acompañamiento con guitarra, lo que no lo hace tan fácilmente accesible a cualquier aficionado.

12 Emilio Portorrico tuvo la gentileza de puntualizarme el hecho de que el poema Hermano es preexistente a la musicalización de Guastavino. Data de 1960 y según explica Lima Quintana, habría tenido antes una música de él, pues fue “cantado personalmente con música improvisada en Lima, Perú” (LIMA QUINTANA, 1986, p.24).

13 Diferente en cuanto a los propósitos poéticos de los artistas del Nuevo Cancionero pero en la misma línea temática, Horacio Guarany incursionó también en estos contenidos en su conocidísima y después muy censurada Si se calla el cantor. Sobre las alternativas que debió pasar durante los años de la dictadura militar, que abarcaron desde atentados directos a su casa, hasta prohibiciones, amenazas, llamadas telefónicas, recomendacio-nes y exilio, véase: GUARANY, 2002.

14 Dicha sensibilidad puede verse en la elección de la poesía “social” de Gabriela Mistral (Piececitos, por ejemplo: Piececitos de niño/ azulosos de frío/ ¿cómo os ven y no os cubren? Dios mío…). En cuanto a la defensa de la libertad de expresión, estuvo el caso de su opinión favorable a Ginastera cuando la prohibición de su ópera Bomarzo en el teatro Colón, expresada a la revista Gente, en pleno Onganiato (BUCH, 2003, p.128).

15 Lamentablemente no se explaya más, pero habla de “prohibiciones y censuras oficiales y otras no tanto”. Es un tópico que aún falta profundizar el de las censuras oficiales a sus libros. Comenta que el sello grabador “Azur”, dirigido por Virgilio Expósito y Jorge Montemurro, que difundía música folclórica, sufrió allanamientos durante el gobierno de Onganía, aunque salvó el material. (LIMA QUINTANA, 1994, p.32 y 36)

16 Se denomina así a la música practicada en las zonas rurales del sur de la región pampeana de Argentina.17 De la cifra tiene el ajuste silábico, la interpretación en estilo rubato con finalidad expresiva, y el diálogo entre canto y piano, que en ese género folclórico

se realiza con la guitarra (ARETZ, 1970, p.152-156). Agradezco a Ricardo Mansilla su sugerencia sobre la presencia de la cifra en esta canción.18 Guastavino adhiere así al primer estilo nacionalista, caracterizado por este tipo de referencias a la guitarra en obras pianísticas. Sobre el particular

véase PLESCH, 1996, p.57-68. 19 Primera Plana, nº 214, 31-1-1967, p.68.20 Como se sabe, este disco contiene canciones dedicadas a mujeres destacadas de la cultura argentina, entre otras, la célebre zamba Alfonsina y el

mar con texto de Félix Luna, en alusión a la trágica muerte de la escritora Alfonsina Storni. Sitio oficial de Mercedes Sosa: http://www.mercedessosa.com.ar/marcosmaster.htm. Último acceso: 10-3-2009.21 Oscar Matus, recuérdese, estaba entonces casado con Mercedes Sosa.22 La Zamba para no morir fue editada por Lagos en la colección “Canción Estampa”, con ilustración del pintor boliviano Raúl Lara.23 Una de las canciones muy censuradas durante la dictadura militar, según Moncho Miérez. Respecto del tema de las recomendaciones realizadas

durante el llamado Proceso de “Reorganización Nacional” acerca de la circulación de este repertorio, Alicia Lagos, hija del editor Rómulo Lagos, nos dijo: “en el ámbito musical, hubo listas... de intérpretes, de autores incluso… de temas, que no podían difundirse. Y algunos de esos eran los publicados por nuestra editorial.” (Entrevista con la autora, 10-10-2003).

24 Primera Plana, nº 204, 22-11-1966, p.87.25 Primera Plana, nº 214, 31-1-1967, p.68.

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26 Confirmado, 23-6-1966, p.57. Mercedes Sosa dice: “en el otro extremo […] están los que piensan que no importa cómo se diga, con tal de decir cosas que duelan: todos los días recibo canciones de tipo decididamente panfletario, sin ningún valor artístico, que no tengo más remedio que tirar al canasto”.

27 Aunque no aparece indicado, Miérez nos dijo que quien interpreta el acompañamiento guitarrístico en la canción Hermano, es él. (Entrevista citada).28 “Con la llegada de estos delincuentes, el género que más sufrió fue el folclore...”, nos dijo Cosentino (Entrevista citada).29 En un artículo aparecido en Clarín, Sergio PUJOL destaca este hecho, haciendo un poco de historia personal. Afirma que: “si bien la dictadura quemó

más libros que discos y persiguió más a la literatura que a la música, la censura y la intimidación sitiaron aquella producción musical que el régimen consideraba “disolvente”. El folclore, por ejemplo. [En Buenos Aires] los servicios rastrillaban las disquerías del centro y los barrios en busca de discos de Mercedes Sosa, el Dúo Salteño, Víctor Heredia, Horacio Guarany y Los Andariegos.” (18-3-2006, Revista “Ñ” del diario Clarín).

30 Véanse los fundamentos del General de Brigada José Antonio Vaquero expresados mediante nota, al Gral. de Brigada Eduardo Harguindegui: la solución “de fondo”, dice, está en combatir a la subversión en el ámbito cultural. (INVERNIZZI-GOCIOL, 2003, p.44; énfasis mío).

31 Lima Quintana, Tejada Gómez, Mercedes Sosa y Guarany estuvieron exiliados en España. Norberto Ambrós se radicó en EEUU. 32 No se pudo ubicarlo, pero Cosentino cree recordar que se había retirado a una estancia en las sierras cordobesas. (Entrevista citada)33 Cosentino comentó que hacia fines de los setenta, su sello discográfico Qualiton-Fonema, sufrió un allanamiento por la edición de un disco llamado

Canciones para hacer pensar a los chicos, que fue considerado inapropiado. La requisa, con claro carácter intimidatorio, fue realizada por la marina, durante las horas de la noche. Después, él debió asistir durante varias semanas, todos los días al Ministerio del Interior a dar explicaciones sobre su trabajo y sobre sus planes comerciales futuros: “Entonces... me hacían entrar allí [...] me tenían en un escritorio dos horas, sin hablarme, sin atenderme, ni nada. Después venía uno y me decía: “Y qué hizo Ud...?” “Yo?, nada que ver”, contestaba. Y era siempre lo mismo, siempre lo mismo.” Comentó que no fue obligado a cerrar, pero que la presión fue muy grande: “si nos evadíamos, nos buscaban por todos lados [...] No nos cerraron, ni nada. De hecho, trabajábamos. Pero claro, todos los días, iba allá Iván.... a ‘poner la carita’ [...]. No tenía nada para decir. No pertenecía a ninguna organización […]. No la pasamos muy bien. Secuestraron todos los discos ésos, de todas las casas de discos, los quemaron... solo pudimos salvar creo que 20...” (Vico Ciliberti, el autor del disco infantil, se exilió en Italia).

34 Alonso, muy ligado a la gente de la editorial Lagos y a los artistas del boom del folclore, perdió a su hija Paloma.35 Alicia Lagos expresó: “Yo no tengo noticias de que mi papá haya tenido problemas personalmente [...] sé que fue una época de mucho cuidado, de

un perfil muy bajo para trabajar [...] no se puso a disposición del público todo el material que se consideraba censurado. Se guardó. Armando Tejada Gómez, César Isella, Ariel Petrocelli, Horacio Guarany... Ésos eran nombres que había que ‘evitar’, de alguna manera.” (Entrevista citada).

36 Agradezco a Esteban Buch esta observación, que creo aguda y precisa.37 La grabación se realizó en Ginebra. Radicado desde mediados de la década de 1990 en Eslovenia, Fink incluye a menudo en sus recitales obras de

Guastavino. (CD VEL 1059- Cascavelle, Ginebra/ CH 1996). Una grabación reciente es la de Víctor Torres, acompañado por Dora Castro al piano. (IRCO y Universidad Nacional del Litoral, 2008. IRCO 337).

Silvina Luz Mansilla (Villa Mercedes, San Luis, Argentina, 1962). Doctora en Artes por la Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad de Buenos Aires. Licenciada y Profesora Superior de Música, especialidad Musicología por la Universi-dad Católica Argentina y Profesora de Piano, graduada del Conservatorio Nacional de Música “Carlos López Buchardo”. Docente en la cátedra “Música Latinoamericana y Argentina” de la Universidad de Buenos Aires, dicta también “Historia de la música argentina” en la Facultad de Artes y Ciencias Musicales de la Universidad Católica Argentina. Autora de artículos referidos a música académica argentina del siglo XX, tutora del equipo de investigación La música en la prensa periódica argentina (UBACyT F-831), ha sido becaria de la Dirección General de Relaciones Culturales y Científicas, de Es-paña (2000) y del Fondo Nacional de las Artes, de Argentina (2003). Colaboradora del Diccionario de la Música Española e Hispanoamericana, publicado en Madrid por la SGAE, ha obtenido subsidios del Fondo Metropolitano de Cultura del Gobierno de la ciudad de Buenos Aires (2005) y de la Fundación suiza Familie Vontolben (2007).

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Recebido em: 03/11/2009 - Aprovado em: 18/03/2010

A composição e interpretação de Victor Assis Brasil em Pro Zeca: hibridismo entre o baião e o bebop

Leonardo Barreto Linhares (Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix, Belo Horizonte, MG)[email protected]

Fausto Borém (UFMG, Belo Horizonte, MG)[email protected]

Resumo: Estudo sobre o reconhecimento de elementos composicionais e interpretativos característicos do baião e do bebop na Introdução e Tema da música Pro Zeca de Victor Assis Brasil (1945-1981), a partir de três fontes primárias: (1) a lead sheet editada que reproduz o manuscrito autógrafo do compositor (ASSIS BRASIL, sem data a), (2) uma lead sheet manuscrita de caligrafia anônima (ASSIS BRASIL, sem data b) e (3) a lead sheet editada da transcrição a partir da gravação do compositor (ASSIS BRASIL, 1974), incluindo sua improvisação, que está publicada às p.39-44 nesse volume de Per Musi. Fundamentada por referenciais históricos e teóricos das práticas de performance da música brasileira (GIF-FONI, 1997; SIQUEIRA, 1981; SÉVE, 1999) e do jazz (GRIDLEY, 2006; LAWN, 1995; HOBSBAWM, 1990, BAKER, 1987), esta análise comparativa revela um hibridismo entre elementos do bebop e do baião, no qual as características desses dois gêneros populares de países diferentes às vezes permanecem distintas e às vezes se entrelaçam em uma síntese.Palavras–chave: Victor Assis Brasil; hibridismo musical; baião; bebop; música popular; análise musical.

The composition and interpretation by Victor Assis Brasil in Pro Zeca: hybridism between the Brazilian baião and bebop

Abstract: Study about the recognition of compositional and intrepretive elements typical of bebop and baião in the In-troduction and Theme of Pro Zeca by Brazilian composer and saxophonist Victor Assis Brasil (1945-1981) departing from three primary sources: (1) the edited lead sheet that reproduces the composer’s autograph (ASSIS BRASIL, sem data a), (2) an anonymous lead sheet manuscript (ASSIS BRASIL, sem data b) and (3) the lead sheet of the transcription based on the composer’s recording (ASSIS BRASIL, 1974) included at the end of this article. Resorting to historical and theoretical references of performance practices in jazz (GRIDLEY, 2006; LAWN, 1995; HOBSBAWM, 1990, BAKER, 1987) and Brazilian music (GIFFONI, 1997; SIQUEIRA, 1981; SÉVE, 1999), this comparative analysis reveals hybridization between bebop and the Brazilian baião, in which the characteristics of these popular genres from two different countries sometimes remain separate and sometimes are interwoven into a synthesis.Keywords: Victor Assis Brasil; musical hybridism; Brazilian baião; bebop; popular music; music analysis.

1- IntroduçãoA música popular instrumental brasileira é considerada como uma das mais ricas do mundo no que diz respei-to à diversidade de estilos, tanto composicionais quanto de interpretação. Essa riqueza, que reflete a formação sócio-cultural brasileira, inclui aspectos rítmicos, meló-dicos, harmônicos e elementos estilísticos, tanto autóc-tones quanto estrangeiros, absorvidos e reutilizados por meio de citações, justaposições, transformações e sínte-ses. Muitos dos compositores e intérpretes populares que contribuíram para essa miscigenação cultural, ainda não são devidamente estudados. Muitos não são mesmo co-

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.23, 195 p., jan. - jul., 2011

nhecidos pelo público de hoje por terem caído no ostra-cismo, pela mudança de valores musicais ou tendências na mídia. O compositor e saxofonista Victor Assis Brasil exemplifica bem este quadro.

Ainda é emergente a pesquisa sobre a música instrumen-tal brasileira, especialmente se comparada ao volume de estudos sobre as canções brasileiras, que têm o atrativo do conteúdo de suas letras ou das relações texto-música. En-tre os trabalhos acadêmicos sobre Victor Assis Brasil, des-taca-se a dissertação de mestrado Improvisação em Victor

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Assis Brasil de Fernando Trocado MAURITY (2006), na qual o autor transcreve as partes improvisadas de saxofone e as cifras das músicas Blues for Mr. Saltzman (Victor Assis Brasil), O cantador (Dori Caymmi e Nelson Motta), Penedo (Victor Assis Brasil) e Nada será como antes (Milton Nas-cimento) para, em seguida, analisar o estilo improvisatório do compositor-instrumentista. Ele afirma que Victor Assis Brasil praticava uma “música transnacional” (MAURITY, 2006, p.80), tendo buscado uma sistemática interação es-tilística entre as músicas brasileira e a norte-americana, que inclui citações (por exemplo, trechos de Giant Steps de John Coltrane e de Chorinho pra ele de Hermeto Pas-coal na sua Blues for Mr. Saltzman) e misturas estilísticas, como jazz modal e bossa na canção de trabalho O can-tador, jazz e samba em Night em day de Cole Porter, jazz e baião em It’s all right with me, também de Cole Porter (MAURITY, 2006, p.48-52, 78-79).

Baseado na teoria da fricção interétnica do antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira, Acácio Piedade defendeu o conceito de fricção de musicalidades ao tratar do “jazz brasileiro”. Segundo essa abordagem, a interação entre a música instrumental brasileira e a norte-americana, ao contrário da perspectiva do também antropólogo Darcy Ribeiro em que haveria uma “. . . transmissão, aculturação ou assimilação. . .”, estaria mais propensa a envolver “Um sistema intersocietário que exibe, em seu cerne, uma desigualdade. . .” e que seria permeado por uma “luta de classes” (PIEDADE, 1985, p.199). Apesar de acreditar que a musicalidade brasileira usufrui e supe-ra o que chama de paradigma bebop,1 PIEDADE (1985, p.200) argumenta que essas “musicalidades dialogam mas não se misturam: as fronteiras musical-simbólicas não são atravessadas, mas são objetos de uma manipu-lação que reafirma as diferenças.”

No presente artigo, procuramos mostrar, ao analisarmos Pro Zeca de Victor Assis Brasil, que apesar de o embate en-tre a música norte-americana e a música brasileira existir nessa música, há também, e principalmente, uma imbri-cação estilística cuja síntese no tecido musical resulta em um hibridismo complexo e sofisticado. Mais do que isso, apesar de justamente colocar lado a lado os gêneros norte-americano do bebop e brasileiro do baião, acreditamos que a música de Victor Assis Brasil está longe de, sonoramente, refletir valores culturais superiores ou inferiores, ou mes-mo, uma “luta de classes”. Recentemente, buscando refinar o conceito de hibridação em música, o próprio PIEDADE (2011) propõe uma hibridação “homeostática” (em que a memória auditiva já reconheça as musicalidades como não concorrentes) e uma hibridação “contrastiva” (em que há uma fricção de musicalidades).

Após uma breve biografia de Victor Assis Brasil, o presen-te artigo apresenta uma análise descritiva e comparativa de elementos estilísticos contidos na Introdução e Tema de sua música Pro Zeca, a partir de três fontes primárias: (1) a lead sheet 2 que reproduz o manuscrito autógra-fo deixado pelo compositor (ASSIS BRASIL, sem data a),

editada no volume 1 da coleção denominada Victor Assis Brasil, organizada por seu irmão Paulo Assis Brasil, (2) uma lead sheet manuscrita de caligrafia anônima que tem sido bastante utilizada no meio da música popular (ASSIS BRASIL, sem data b), cedida a Fausto Borém pelo pianista e pesquisador Rafael dos Santos da UNICAMP e (3) a lead sheet preparada pelo primeiro autor do presente artigo a partir de sua transcrição da única gravação de Pro Zeca deixada pelo compositor, no disco ao vivo Victor Assis Brasil -1974 (ASSIS BRASIL, 1974). Os elementos desta última fonte primária predominam na edição final da lead sheet da música (veja às p.39-44 desse volume de Per Musi), uma vez que ela reflete diretamente as práticas de performance e considera, além da melodia e harmonias do Tema e de uma longa Introdução, elementos musicais não tradicionalmente codificados em lead sheets, como as convenções da seção rítmica do grupo, trechos relevantes da linha do baixo e práticas de performance específicas do saxofone, como inflexões, articulações, ocorrência de swing 3 e efeitos diversos.

O fato de a lead sheet autógrafa ser em Ré, e não em Sol como as outras duas, provavelmente reflete uma notação que favorece o registro mais grave do sax alto (afinado em Mi bemol), enquanto que a notação em Sol, favorece o sax soprano (afinado em Si bemol) mais agudo e utiliza-do na gravação. Exceto para o Ex.1 e o Ex.2, a numeração de compassos dos exemplos musicais segue a numeração de compassos da lead sheet da gravação (veja às p.39-44 desse volume de Per Musi). A análise de elementos de gêneros musicais específicos levou em consideração os referenciais teóricos de GRIDLEY (2006), HOBSBAWM (1990), BAKER (1987) e LAWN (1995) para o bebop, e de GIFFONI (1997), SIQUEIRA (1981), SÉVE (1999), ANDRA-DE (1928) e SANDRONI (2001) para o baião. Não foram consideradas nesse estudo outras gravações de Pro Zeca realizadas por outros músicos de renome como o guitar-rista Hélio Delmiro e o Trio Bonsai.

2 - Victor Assis BrasilO saxofonista e compositor Victor Assis Brasil nasceu em 28 de agosto de 1945 no Rio de Janeiro. Seu primei-ro instrumento foi a gaita. Aos 17 anos começou a tocar saxofone alto, tendo Paulo Moura como professor. Logo, começou a participar das jam sessions no Little Club no beco das garrafas em Copacabana e a realizar shows em faculdades e colégios da zona sul do Rio de Janeiro. Em 1965, tocando no Clube do jazz e da bossa, foi ouvido pelo maestro e pianista Friederich Gulda e convidado para participar de concursos internacionais de jazz. Ob-teve o Primeiro Lugar no festival de Berlim e um Terceiro Lugar no Concurso Internacional de Jazz de Viena. Em 1966, gravou seu primeiro disco, Desenhos, hoje raro de ser encontrado. Em 1969, voltou ao exterior graças a uma bolsa oferecida pela Berklee School of Music, em Boston, Estados Unidos. Nos cinco anos que ficou por lá, aprimorou sua técnica, estudou composição e arranjo e teve a oportunidade de tocar com grandes nomes do jazz norte-americano como o trompetista Dizzy Gillespie, o

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pianista Chick Correa e o contrabaixista Ron Carter. Em 1973, quando voltou ao Brasil, era um músico mais co-nhecido no exterior do que em seu próprio país. Iniciou uma fase de intensa agenda de shows ao lado de mú-sicos como o trompetista Márcio Montarroyos, o con-trabaixista Zeca Assumpção e o baterista Chico Batera entre outros, compondo e gravando. Victor deixou um legado de oito discos: Victor Assis Brasil ao vivo (1974); Desenhos (1966); Trajeto (1968); Victor Assis Brasil toca Antônio Carlos Jobim (1970); Esperanto (1970); Victor Assis Brasil Quinteto (1979); Pedrinho – Victor Assis Bra-sil Quarteto (1980); Luiz Eça e Victor Assis Brasil no mu-seu de arte moderna (1993). Deixou um bom número de composições em diversos estilos, para várias formações instrumentais, a maioria delas ainda inédita. Victor Assis Brasil morreu prematuramente em 14 de abril de 1981, aos 35 anos, em decorrência de problemas circulatórios causados por uma periartrite nodosa.

A música Pro Zeca, objeto de estudo do presente artigo e uma homenagem do compositor ao amigo contrabai-xista Zeca Assumpção, foi provavelmente composta em 1974 e faz parte do disco Victor Assis Brasil (1974), gra-vado ao vivo no Teatro da Galeria no Rio de Janeiro com os seguintes músicos: Victor Assis Brasil no saxofone soprano, Márcio Montarroyos no trompete, Paulo Russo no contrabaixo acústico, Lula na bateria e Alberto Farah nos teclados eletrônicos.

3 – Aspectos composicionais do baião e be-bop em Pro ZecaEm novembro de 1974, num depoimento a Tárik de Sou-za na Revista Veja (SOUZA, 1974), Victor Assis Brasil afirmou que seu estilo composicional misturava jazz e música brasileira. Para muitos amantes das músicas brasileira e norte-americana, uma primeira audição da

gravação de Pro Zeca por Victor Assis Brasil já é sufi-ciente para deixar no ouvido a sensação de uma mistura estilística entre os gêneros baião e bebop.

Uma das principais diferenças formais entre as três fontes primárias de Pro Zeca está na introdução que antecede a apresentação do Tema. A lead sheet de caligrafia anônima é em Sol e traz uma introdução simplificada: apenas uma levada do baixo por quatro compassos que se repete e deixa clara a atmosfera do baião (Ex.1).

O manuscrito de Victor Assis Brasil é em Ré (e não em Sol, como na gravação) e traz uma introdução de 12 com-passos (Ex.2), que se inicia com uma levada de baião por quatro compassos transposta para a clave de Sol. Este ostinato é seguido por um fragmento motívico derivado do Tema (c.5). O fragmento seguinte sugere o modo de Ré Mixolídio, modo bastante encontrado na música nor-destina (SIQUEIRA, 1981). Aqui se observa o típico arpejo que ascende da tônica à dominante e desce por semitom sobre o quarto grau alterado (Dó – Mi – Sol – Fá#, no c.7). Todo este material tipicamente brasileiro é seguido por uma sequência de sextinas de grande afinidade com o jazz, afinidade que é visível tanto pelo aspecto virtu-osístico das licks de caráter improvisatório quanto pelo cromatismo e notas outside4 nela contidos (c.7-8) que, só ao final, resolvem na tônica Ré (c.9).

A lead sheet baseada na gravação de Victor Assis Brasil (publicada integralmente neste volume de Per Musi) é em Sol e traz uma introdução ampliada, de 23 compassos (Ex.3), mais elaborada do que as outras do ponto vista formal, melódico e harmônico, constituindo uma seção autônoma. Essa introdução é dividida entre os dois esti-los: jazzístico nos 15 primeiros compassos e no estilo do baião nos 8 compassos finais. As progressões harmônicas

Ex.1 - Introdução simplificada de Pro Zeca de Victor Assis Brasil: lead sheet anônima.

Ex.2 - Introdução de Pro Zeca de Victor Assis Brasil: manuscrito do compositor.

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sofisticadas (como o IV grau na cadência subdominante-dominante no c.2: um acorde de Dó com nona e baixo em Sol por empréstimo modal de Sol Dórico) com notas longas precedidas de volate e a rítmica variada sugerindo improvisação são claramente jazzísticas. Essa ambienta-ção é subitamente interrompida por uma levada de baião no baixo por oito compassos (a mesma que aparece na lead sheet anônima), preparando a apresentação do Tema.

A métrica do Tema é no compasso binário 2/4, caracte-rística marcante do baião (GIFFONI, 1997; ALBIN, 2005; ROCCA, 1986), ao contrário da métrica quaternária que predomina no bebop (como mostram as diversas trans-crições das músicas do ícone do bebop Charlie Parker; AEBERSOLD e SLONE, 1978). A forma utilizada por Victor em Pro Zeca pode ser descrita como uma canção binária AAB coda, muito próxima da forma AB, típica do baião (diferindo pela repetição da Seção A e finalização com uma pequena coda). Mas haveria também uma proximi-dade com a forma canção ternária AABA, muito utilizada no jazz (GRIDLEY, p.13), se consideramos a coda como uma recapitulação abreviada da Seção A (afinal trata-se de material temático quase idêntico), o que nos daria a forma AABA´. Por outro lado, a forma de apresentação Tema – Improviso – Tema é ternária e mais caracte-rística do jazz norte-americano. Por questões de espaço, restringimos esta análise somente ao Tema de Pro Zeca, deixando a análise do Improviso para um próximo artigo. De toda maneira, percebe-se que o esquema formal da improvisação nesta gravação da música, dura seis choru-ses, sendo que cada um deles é dividido em duas partes assimétricas, tanto em número de compassos quanto em relação à linguagem harmônica. Primeiro, a improvisação acontece sobre 16 compassos de G7 (13)G2 , a mesma har-

monia da Seção A. Depois, a improvisação se dá sobre 12 compassos apenas, utilizando-se a progressão da Seção B, mas com apenas um acorde por compasso (procedi-mento comum no jazz, que visa facilitar a criação meló-dica no processo improvisatório).

Uma comparação entre as três lead sheets (a lead sheet autógrafa foi aqui transposta para Sol) mostra diferen-ças estilísticas na harmonização da Seção A do Tema de Pro Zeca (Ex.4). Na lead sheet anônima, observa-se a utilização dos acordes do Iº grau de Sol Mixolídio (G7), IVº grau de Sol Eólio (Cm/G) e o IIº grau de Sol Lídio (A/G). A escolha destes acordes reforça características harmônicas do baião, e faz alusão a uma progressão tí-pica citada por Guerra-Peixe (CASCUDO, 1984 p.97). A única diferença é que o IVº grau é menor em Pro Zeca, e não maior, devido a um empréstimo modal de Sol Eólio. Na lead sheet baseada no manuscrito autógrafo de Vic-tor Assis Brasil, o ritmo harmônico é o mesmo, porém a progressão tem uma natureza mais jazzística, pois parte da tônica (G7) para a o segundo grau (A7) e retorna cro-maticamente à tônica passando pela sexta napolitana (Ab7+). Finalmente, na lead sheet baseada na gravação, observa-se que os músicos optaram por um pedal com o acorde G7 (13)G2 em toda a sua extensão, caracterizando o modo de Sol Mixolídio e uma estaticidade harmônica recorrente na música nordestina, típica dos repentes e emboladas, mas também encontrável em baiões.

As notas alteradas do Tema de Pro Zeca - Dó # (c.46-47 e 52 no Ex.4 acima) e Mi b (c.48, prolongada no c.49 no Ex.4 acima) podem ter origem tanto no idioma harmônico jazzístico quanto do baião. Na lead sheet autógrafa, o Dó # é harmonizado com o acorde de A7,

Ex.3 - Introdução expandida de Pro Zeca de Victor Assis Brasil: lead sheet da gravação do compositor.

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mas em ambas lead sheets anônima e da gravação é harmonizado com acordes da tônica Sol, o que nos re-mete ao IVº grau alterado ascendentemente. Este Dó # pode, e deve, na verdade, ser compreendido como nota escalar do modo Lídio-Mixolídio em Sol. Esse modo foi chamado de Modo Nacional por SIQUEIRA (1981, p.3-4) e, no meio da música popular brasileira, é tido como o mais nordestino dos modos.

Na lead sheet anônima, o Mi bemol é harmonizado com Cm7, caracterizando-se como simples nota desse acorde. Na lead sheet autógrafa, o Mi bemol é harmonizado com Ab7+, que pode ser entendido como um acorde caracte-rístico do modo de Sol Frígio. Na lead sheet da gravação, o Mi bemol é harmonizado com G7 (13)G2 , podendo ser entendido como alteração do acorde (#5) ou como resul-tado de um empréstimo modal de Sol Eólio.

Em relação aos materiais escalares, a linha melódica do Tema baseia-se claramente nos dois modos mais comuns na música nordestina: o Mixolídio (em Sol) e o Lídio-Mixolídio (também em Sol), como mostram as frases dos c.40-43 e c.44-47 no Ex.4 acima. Aqui, pode-se pensar em uma in-terseção com o jazz, pois o modo Lídio-Mixolídio é também muito utilizado nas improvisações do bebop, sendo comu-mente chamado de Lídio b7 (Lídio com sétima menor).

A linha melódica do Tema de Pro Zeca tem nas semi-colcheias contínuas sua principal característica rítmica, gerando uma movimentação que não é comum nas li-nhas melódicas dos baiões tradicionais, mas sim no be-bop. Entretanto, do ponto de vista rítmico das linhas de acompanhamento, essa figuração pode ser uma referên-

Ex.4. Diferenças de harmonização da Seção A do Tema de Pro Zeca de Victor Assis Brasil nas três lead sheets da música

cia à atividade incessante de semicolcheias no triângulo do baião ou ao canto repetitivo das emboladas e re-pentes nordestinos. Em relação ao andamento, bastante rápido na gravação de Pro Zeca (semínima = 152 apro-ximadamente), Victor Assis Brasil se afasta do caráter dançante e mais relaxado do baião e reforça uma das principais características do bebop, ou seja, o virtuosis-mo instrumental. Entretanto, o “baião acelerado” ocorre em alguns exemplos históricos da música instrumental brasileira, como em O ovo, uma das mais conhecidas músicas do alagoano Hermeto Pascoal.

As sincopas são elementos rítmicos muito comuns aos dois gêneros musicais. Na Seção A de Pro Zeca, podemos perce-ber a ocorrência de síncopas comuns, bastante recorrentes no jazz, mas na Seção B, percebe-se nitidamente a função temática das chamadas síncopas brasileiras (ANDRADE, 1928; SANDRONI, 2001), que aparecem conectadas entre si formando uma longa sequência nos c.2-4 do Ex.5.

Do ponto de vista da harmonia, a utilização de acor-des com 4ª (diferentemente da 4ª suspensa, que resolve descendentemente) nos remete a um tipo de harmo-nização muito utilizada por músicos da era do pós-bebop, como os pianistas Bill Evans e Herbie Hanco-ck, e pelo próprio Victor Assis Brasil, como no acorde G7 (9)D4 que aparece nos c.83-87 e finaliza a Seção B de Pro Zeca (ver Ex.5 acima). Do ponto de vista meló-dico, notas de aproximação são um recurso cromático muito utilizado por Charlie Parker, tanto na apresen-tação de temas quanto nas improvisações, recurso do qual Victor Assis Brasil lança mão na melodia do Tema de Pro Zeca, como no c.10 do Ex.5 acima.

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O processo de transcrição das cifras de Pro Zeca interpre-tadas por Victor Assis Brasil revelou acordes com um nível de detalhamento maior e mais complexo do que aparece nas duas lead sheets até então disponíveis da música. Isto reflete incrementos harmônicos durante sua realização, o que é um procedimento característico tanto das práticas de performance do jazz quanto de alguns estilos da mú-sica popular brasileira. Assim, transcrevendo a gravação de Pro Zeca, encontramos acordes com extensões5 como E7(b10) na Introdução (c.5 do Ex.3 acima),G7 (13)G2 em toda a Seção A do Tema (Ex.4 acima), a progressão jazzís-tica típica incorporada pela bossa nova B7(13) indo para B7(b13) e o acorde G7 (9)G4# na Seção B do Tema (c.79-80 e c.87 do Ex.5 acima), cujas notações expressam melhor as progressões harmônicas escolhidas pelo pianista. A notação desses acordes com as extensões de 2ª maior e 4ª justa (que geralmente são escritas uma oitava acima, como 9ª e 11ª, e que resolvem descendentemente) visam explicitar a condução das vozes implícitas na progressão harmônica a que estão ligados (voicing).

A utilização de acordes sem a terça ou a quinta como o G7 (13)G2 em quase toda a duração do Tema (em toda a Se-ção A do Tema, Ex.4 acima) demonstra a prática comum do jazz de utilizar uma harmonia mais ”aberta”, deixando os instrumentos melódicos mais livres para adicionar ex-tensões à melodia, evitando-se assim choques harmôni-cos não desejáveis ou, para usar o jargão jazzístico, com “notas ruins” (bad notes).

O Tema de Pro Zeca apresenta o arpejamento ascendente do acorde de Io grau com sétima menor (c.44 do Ex.4 aci-ma), uma característica harmônico-melódica marcante do baião (tanto no modo Mixolídio quanto Lídio-Mixolídio), que tem origem na referência pioneira do tema de Baião

de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira de 1946, que popula-rizou o gênero nacionalmente. Por outro lado, arpejos são também utilizados nos temas e improvisações do bebop, mas geralmente estão associados a harmonizações com mais extensões e cadências.

Seguindo uma tradição composicional da música erudita que se tornou muito comum no jazz mais sofisticado, Victor Assis Brasil constrói a introdução com material temático que irá aparecer no Tema: as tríades arpejadas descende-mente (mostradas nas setas do Ex.6). Outro procedimento jazzístico que ocorre na comparação entre estas passagens é o procedimento de substituição de acordes (mostrados nos círculos do Ex.6): mais complexos para o andamento lento – os acordes C9/G, D/G, Bm7M(11) e E7(b10) na In-trodução e mais simples para o andamento rápido do Tema – os acordes Am7, D7, Bm7 e Em7.

Um procedimento harmônico muito recorrente na lingua-gem do jazz é a chamada progressão ii – V, que mui-tas vezes não se resolve na tônica esperada. Victor Assis Brasil lança mão de variações deste encadeamento (alte-rando a natureza maior e menor dos acordes, e às vezes, resolvendo-os) tanto na Introdução (c.2-3, 4-5, 6-7 e 13-14 no Ex.3 acima) quanto na Seção B do Tema (c.76 e 78 do Ex.6 acima; ocorrendo também nos c.81-82, não mostrados aqui).

Os c.73-74 ao final da Seção A funcionam como uma ponte para a Seção B do Tema e trazem dois elementos típicos dos temas e improvisações do bebop e alheios ao baião tradicional (Ex.7): a presença de uma blue note, o Si bemol sobre um acorde de Sol maior (com 2ª, 7ª e 13ª) e a utilização da escala pentatônica de Sol menor (um tipo de escala muito recorrente no jazz desde o surgimento

Ex.5 – Seção B do Tema de Pro Zeca (lead sheet da gravação) com sequência de síncopas brasileiras (c.76-78), progressões ii – V (c.76, 78, 82-83), acordes com 4ª (c.83-87) e nota de aproximação (Dó# no c.84).

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do blues e incorporada à virtuosidade do bebop especial-mente pela facilidade de execução em andamento rápido) para construir este fragmento melódico.

Um elemento de virtuosidade rítmica do bebop, bastante observável na música de Charlie Parker (como na música Parker´s Mood) é a utilização de quiálteras em tercinas, quintinas, sextinas etc., elemento que se tornou muito presente também na música de Victor Assis Brasil, como em alguns trechos da Introdução e nas Seções A e B do Tema de Pro Zeca (Ex.8).

4 – Aspectos interpretativos do baião e bebop em Pro ZecaUm dos primeiros aspectos da interpretação de Victor Assis Brasil na sua gravação de Pro Zeca a chamar a atenção é a instrumentação escolhida: o conjunto instrumental bá-sico dos chamados small combos do gênero bebop: tecla-do eletrônico (substituindo o piano), contrabaixo elétrico, bateria, saxofone soprano e trompete. A escolha dos an-

damentos também se relaciona diretamente com o jazz. Na Introdução, o andamento lento (semímina = 52 apro-ximadamente), o caráter ad libitum na realização rítmica e os glissandi criam uma atmosfera que nos remete ao cool jazz. Na apresentação do Tema, o andamento rápido (se-mínima = 152 aproximadamente) é característico do be-bop. Aqui, o swing típico das semicolcheias é mais sutil devido ao andamento, mas torna-se perceptível ao longo dos fraseados ligados e suas acentuações. Nesses frasea-dos observa-se que a articulação predominante é o legato típico do bebop (Ex.9), que proporciona maior agilidade e comodidade na construção das frases. Mas, esporadica-mente essa articulação é interrompida por notas curtas, cujo staccato remete à rítmica do baião, especialmente na interpretação da sequência de sincopas brasileira (Ex.9).

As fórmulas de acompanhamento do conjunto são exemplares do hibridismo entre o baião e o bebop em Pro Zeca. Por exemplo, nos c.42-45 da Seção A, obser-va-se lado a lado, a típica marcação rítmica da zabum-

Ex.6 – Utilização de material temático e substituição de acordes entre a Introdução e a Seção B do Tema de Pro Zeca (lead sheet da gravação)

Ex.7 - Blue note no final da Seção A de Pro Zeca (lead sheet da gravação)

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ba no baião e a rítmica evasiva típica do comping dos teclados no jazz (Ex.10).

Os padrões de acompanhamento do Tema na bateria apresentam uma complexidade rítmica maior, o que é mais característico da música popular brasileira do que do jazz (excetuando-se aqui, claro, as improvisações). Além da ocorrência de síncopas com diferentes desloca-mentos em relação à pulsação, observa-se a utilização sistemática de uma célula que imita a levada típica de semicolcheias contínuas do triângulo no baião: primeiro no prato de condução no início do Tema que é, depois, transferida para a caixa ao longo do acompanhamento.

5 - ConclusãoA música Pro Zeca do compositor e saxofonista carioca Victor Assis Brasil é exemplar do hibridismo na música instrumental brasileira. Composta em 1974, faz parte do processo de influências mútuas entre a nossa cultura musical e a música norte-americana, processo que se acentuou muito na década de 1960 com a exportação

Ex.8 – Quiálteras na música de Charlie Parker e em Pro Zeca de Victor Assis Brasil (lead sheet da gravação)

da bossa nova e consequente intercâmbio entre músicos dos dois países. Victor Assis Brasil, que estudou na Berk-lee School of Music, integra nessa música elementos harmônicos, melódicos, rítmicos e estilísticos de com-posição e de práticas de performance do baião e do jazz, especialmente do bebop.

Em Pro Zeca, pode-se observar os seguintes elementos estilísticos do baião: melodia baseada no arpejamento do modo Mixolídio (remanescente do tema de Luiz Gon-zaga na música Baião), acompanhamento com levadas e acentuações de baião no contrabaixo, teclado e bateria, síncopas brasileiras, articulação em staccato, harmonia simples ou estática comum em gêneros nordestinos.

Por outro lado, em Pro Zeca, pode-se observar os seguin-tes elementos estilísticos do bebop: formação instrumen-tal, introdução lenta de caráter improvisatório, tema e improvisação, andamento rápido, materiais melódicos virtuosísticos, utilização de sequências grupos de semi-colcheias, fraseados em legato e com swing, harmonias

Ex.9 – Articulação legato do bebop e staccato do baião em Pro Zeca (lead sheet da gravação)

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mais complexas com extensões, encadeamentos ii – V, acordes substitutos, notas de aproximação e cromatismo, acompanhamento de teclado no estilo comping, utiliza-ção de escala pentatônica, blue note e quiálteras.

Além disso, e reforçando a ideia de hibridismo, aparecem elementos comuns aos dois gêneros: uma forma que lem-bra tanto a forma binária do baião quanto a forma terná-ria do bebop, a utilização melódica e harmônica dos mo-dos Mixolídio e Lídio-Mixolídio, utilização de grupos de semicolcheias contínuas (temas virtuosísticos de bebop ou fraseados repetitivos dos repentes nordestinos), uma sessão rítmica provendo acompanhamento rítmico-har-mônico (alternância e simultaneidade do comping com levadas da música brasileira), alternância de acentuações do fraseado no tempo e fora do tempo, e utilização de arpejos em construções melódicas.

A escuta desses elementos do baião e do bebop podem ocorrer simultânea ou separadamente, de forma que o hibridismo a que estão associados permite, às vezes, sua pronta identificação e às vezes requerem uma escuta mais analítica de suas partes constituintes. A improvi-sação que segue à apresentação do tema merece uma análise à parte, o que deverá, baseando-se em uma pri-meira escuta, confirmar os procedimentos composicio-nais e estilísticos utilizados.

Finalmente, pode-se constatar em um compositor bra-sileiro e sua música - Vitor Assis Brasil e Pro Zeca – uma característica marcante da nossa cultura: o jogo-de-cintura para, a partir de seus valores, dialogar com valores de culturas estrangeiras e dar mais um passo no que poderíamos chamar de formação continuada da música brasileira.

Ex.10 – Integração dos acompanhamentos típicos do baião e do bebop na Seção A de Pro Zeca (lead sheet da gravação)

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Leitura recomendada:ADOUR, Fábio da Câmara. Perfil conceitual de harmonia. Belo Horizonte: UFMG, 2007. (Tese de doutorado).LINHARES, Leonardo Barreto. Pro zeca de Victor Assis Brasil: aspectos do hibridismo na música instrumental brasileira.

Belo Horizonte: UFMG, 2005. (Dissertação de Mestrado).FABRIS, Bernardo Vescovi. Catita de K-Ximbinho e a interpretação do saxofonista Zé Bodega: aspectos híbridos entre o

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LINHARES, L. B.; BORÉM, F. A composição e interpretação de Victor Assis Brasil em Pro Zeca... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.28-38.

Discografia recomendada:BRASIL, Victor Assis. Victor Assis Brasil ao vivo. Rio de Janeiro: Companhia Industrial de Discos, 1974.______. Desenhos. Rio de Janeiro: Forma, 1966.______. Trajeto. Rio de Janeiro: Equipe, 1968.______.. Victor Assis Brasil toca Antônio Carlos Jobim. Rio de Janeiro: Quartin, 1970.______. Esperanto. Rio de Janeiro: Tapecar, 1970.______. Victor Assis Brasil Quinteto. Rio de Janeiro: EMI, 1979.______. Pedrinho – Victor Assis Brasil Quarteto. Rio de Janeiro: EMI, 1980.______. Luiz Eça e Victor Assis Brasil no museu de arte moderna. Rio de Janeiro: EMI, 1993.______. The Legacy. Rio de Janeiro: Atração, 1999.

notas1 PIEDADE (1985, p.199-200) define assim seu conceito de paradigma bebop: “. . .uma mesma musicalidade jazzística que torna possível o diálogo

entre um trompetista sueco, um pianista tailândês e seu público, numa jam session em Caracas; enfim, algo como uma língua comum.”2 Lead sheet é o tipo de partitura mais comum na música popular. Geralmente inclui apenas a melodia, os acordes anotados como cifras e, se for o

caso, a letra da música. Algumas vezes, inclui convenções rítmicas e instrumentação.3 Swing, em diversos estilos do jazz, denomina a prática de realização rítmica em que o primeiro de dois ritmos idênticos e consecutivos (geralmente

duas colcheias) é tocado mais longo e com mais ênfase do que o segundo, semelhante um grupo de tercinas com as duas primeiras notas ligadas. O termo swing é utilizado de uma forma abrasileirada, aplicado a qualquer estilo musical, significando “balanço” ou “ginga”. Pode significar também um estilo do jazz surgido em meados de 1930, quando surgiram grandes grupos instrumentais denominados big bands dirigidos por band leaders como Duke Elington e Count Basie.

4 O tremo “outside” ou “out”, especialmente no free jazz, significa improvisar com notas não harmônicas (ou harmonias fora do campo tonal) de forma que soem “modernas” e não “convencionais” ou “erradas” e pode também envolver rítmicas que sugerem aleatoriedade e aumento de tensão.

5 No vocabulário da harmonia popular, o termo “extensão”, que no Brasil também passou a ser conhecido pela corruptela “tensão”, significa uma nota dissonante adicionada a um acorde por motivos colorísticos ou para realizar uma função harmônica ou contrapontística.

6 O multi-instrumentista e compositor Hermeto Pascoal utiliza recurso semelhante na notação das cifras, que chama de cifragem universal, para explicitar a condução de vozes em sua harmonização. Veja sua utilização extensiva nas 366 peças do seu Calendário do som (Editora Senac, 2000).

Leonardo Barreto é saxofonista e flautista graduado pela Faculdade de Música da UFMG e mestre em performance pela mesma instituição. É professor em Tempo Integral da Faculdade de Música do Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix, onde também orienta dois projetos de extensão. É integrante do quarteto “Violões e Cia” e do trio de choro “3X0”, que vêm se apresentando em casas de Shows, teatros de Belo Horizonte e outras cidades. Atua como músico de estúdio e de palco, se apresentando e gravando ao lado de nomes como Elza Soares, Celso Adolfo, Gilvan de Oliveira, Serginho Silva, Trio Amaranto, Cléber Alves, Geraldo Vianna, Andersen Vianna e trilhas sonoras para o “Grupo Corpo”. Ministra cursos e Worshops sobre música popular com ênfase em improvisação e choro através da FUNARTE e outras instituições culturais. Lecionou na escola de música “Pró-Music” durante dois anos e atuou como professor de saxofone do curso de extensão da UFMG por quatro anos. Participou de cursos e workshops ministrados pelos músicos Vinícius Dorin, Guinga, Sérgio Santos, Proveta e Léo Gandelman.

Fausto Borém é Professor Titular da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde criou o Mestrado em Música e a Revista Per Musi. É pesquisador do CNPq desde 1994 e seus resultados de pesquisa incluem um livro, três capítulos de livro, dezenas de artigos sobre práticas de performance e suas interfaces (composição, análise, musicologia, etnomusicologia e educação musical) em periódicos nacionais e internacionais, dezenas de edições de partituras e apresentação de recitais nos principais eventos nacionais e internacionais do contrabaixo. Recebeu diversos prêmios no Brasil e no exterior como solista, teórico, compositor e professor. Acompanhou músicos eruditos como Yo-Yo Ma, Midori, Menahen Pressler, Yoel Levi, Fábio Mechetti, Luiz Otávio Santos, Arnaldo Cohen, Antônio Menezes e músicos populares como Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, Henry Mancini, Bill Mays, Kristin Korb, Grupo UAKTI, Toninho Horta, Juarez Moreira, Tavinho Moura, Roberto Corrêa, Maurício Tizumba e Túlio Mourão. Suas gravações incluem o CD Brazil-ian Music for the Double Bass, o CD e DVD O Aleph de Fabiano Araújo Costa, os CDs da Orquestra Barroca do Festival Internacional de Juiz de Fora de 2005 a 2009 (com Luiz Otávio Santos), a Suite for Flute and Jazz Piano de Claude Bolling (com Maurício Freire, Tânia Mara e Eduardo Campos) e No Sertão (com o violista Roberto Corrêa) e Cidades Invisíveis (com o saxofonista Daniel d´Olivier).

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ASSIS BRASIL, Victor. Partitura de Pro Zeca na performance de Victor Assis Brasil. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.39-44.

Recebido em: 23/02/2010 - Aprovado em: 18/06/2010PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.23, 195 p., jan. - jul., 2011

& 42Trumpete (ad libitum)

Transcrição de Leonardo Barretobaseada no disco Victor Assis Brasil (1974)

Edição de performance deLeonardo Barreto e Fausto Borém

Intro

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Pro Zecana performance de Victor Assis Brasil

Victor Assis Brasil

(dedicada ao contrabaixista Zeca Assunção)

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Saxofone soprano

G (13)72

TemaSeção A

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(mesma harmonia até o c.75)

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Seção B

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Chorus 1Improvisação

G (13)72

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(mesma harmonia até o c.103)

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(mesma harmonia até o c.131)

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Chorus 3G (13)

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(mesma harmonia até o c.187)

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(mesma harmonia até o c.215)

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ASSIS BRASIL, Victor. Partitura de Pro Zeca na performance de Victor Assis Brasil. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.39-44.

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Glossário de efeitos, acentos e articulações * em "Pro Zeca" de Victor Assis Brasil

* LAWN, Richard. The jazz ensemble director's manual: a handbook of pratical methods and materials for the educator. Oskaloosa, EUA: C.L. Barnhouse Company, 1995.

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Shake (vibrato curto com variação da afinação)

Heavy accent (pesado, o mais curto possível)

Lip trill (vibrato com os lábios, mais longo e lento)

Staccato (não pesado, curto)

Bend (tocar a nota, abaixar e voltar à afinação inicial)

Ghost note (nota com altura indefinida)

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Recebido em: 15/02/2010 - Aprovado em: 22/07/2010

Victor Assis Brasil: a importância do período na Berklee School of Music (1969-1974) em seu estilo composicional

Marco Túlio de Paula Pinto (UNIRIO, Rio de janeiro, RJ) [email protected]

Resumo: Discussão sobre o papel do ambiente musical de Boston, especialmente da Berklee School of Music entre 1969 e 1974, no desenvolvimento do estilo composicional e das habilidades como arranjador de Victor Assis Brasil (1945-1981) e seus reflexos na parcela de sua produção musical que apresenta a mistura de elementos de música clássica, jazz e música brasileira.Palavras-chave: jazz; composição; saxofone; Assis Brasil; Third Stream.

Victor Assis Brasil: the importance of the Berklee School of Music period (1969-1974) on his compositional style

Abstract: Discussion about the influence of the musical environment of Boston, especially that of the Berklee School of Music, between 1969 and 1974, on the development of the compositional style and arranging skills of Brazilian saxophone player and composer Victor Assis Brasil. (1945-1981), and its reflexes in his musical production which mixes elements from classical music, jazz and Brazilian popular music.keywords: jazz; composition; saxophone; Victor Assis Brasil; Third Stream.

1 - IntroduçãoEste ensaio é parte de uma pesquisa que tem por obje-tivo estudar as interseções entre elementos do jazz, da música clássica e música popular brasileira na produção musical do saxofonista e compositor Victor Assis Brasil, à semelhança do movimento Third Stream, concebido por Gunther Schuller, em meados dos anos 1950. A pro-posta original era centralizar o foco das atenções na sua composição Suíte para saxofone soprano e cordas, obra composta em 1973 e que teve sua estreia brasileira em 2 de maio de 1976, na Sala Cecília Meireles, tendo o au-tor como solista, acompanhado da Orquestra Sinfônica Nacional, sob a regência de Marlos Nobre. Entretanto, até o presente momento não se tem ideia do paradei-ro desta obra, que se pode considerar paradigmática da confluência de estilos e matrizes sonoras, seja na for-

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.23, 195 p., jan. - jul., 2011

ma de sua partitura, seja na forma de gravação. Após a consulta aos acervos particulares dos familiares e de arquivos das orquestras da região metropolitana do Rio de Janeiro e outros, como a Escola de Música da UFRJ, Rádio MEC, Museu da Imagem e do Som e Biblioteca Nacional não foi possível encontrar o manuscrito origi-nal ou algum tipo de cópia. Com o mesmo intuito, foram feitos alguns contatos com as bibliotecas das institui-ções norte-americanas Berklee College of Music, New England Conservatory e Boston Conservatory, igualmen-te sem êxito. Assim, devido à possibilidade de os esfor-ços desta pesquisa não darem conta da localização da obra, restou ampliar o escopo a outras obras do com-positor que também reúnam as mesmas características de fertilização mútua entre estilos musicais diversos.

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Victor Assis Brasil criou diversas composições que, em maior ou menor grau, estão a meio caminho entre o jazz e a música clássica. Escreveu para diversas formações: duos, trios, quartetos, big band, e essas obras demons-tram que o seu trabalho ultrapassou as fronteiras do jazz, estilo ao qual o músico é geralmente associado.

O presente texto discute as consequências do período compreendido entre 1969 a 1974, durante o qual o músico viveu em Boston, nos Estados Unidos da Amé-rica, no desenvolvimento de suas habilidades como compositor e arranjador. Não se pretende estabelecer um vínculo direto entre a produção musical de Victor Assis Brasil e os preceitos de SCHULLER (1989) e BLAKE (1981), embora possam ser encontradas em suas obras muitas características comuns com a chamada Third Stream. O artigo é baseado em depoimentos de mú-sicos que conviveram com o saxofonista, informações de encartes dos discos lançados, notas de programa e entrevistas do próprio artista.

2 - Fontes sobre Victor Assis BrasilUma das grandes dificuldades da pesquisa envolvendo Vic-tor Assis Brasil é a carência de fontes a seu respeito. Apesar do reconhecimento de sua importância na música instru-mental brasileira, há uma precariedade de informações so-bre seu trabalho. Em tempos mais recentes alguns textos acadêmicos, como MAURITY (2006) e BARRETO (2007), têm abordado aspectos de sua música, sobretudo envolvendo análises de suas improvisações. Porém, até pouco tempo havia apenas algumas entrevistas do músico em jornais e revistas e uns poucos textos na Internet que carecem de rigor científico. Por exemplo, em um artigo, José Domin-gos Rafaelli afirma: “Em 1976, foi convidado pelo regente Marlos Nobre a apresentar, em primeira audição no Bra-sil, sua composição Suíte Para Sax Soprano e Cordas com a Orquestra Sinfônica Brasileira, na Sala Cecília Meireles, do Rio de Janeiro”. A afirmação traz uma informação incorreta. Na realidade a orquestra que acompanhou Victor na oca-sião foi a Orquestra Sinfônica Nacional, da qual Nobre era diretor musical, fato este que pode ser comprovado pelo programa do concerto (Ex.1), que se encontra no arquivo da tradicional sala de concertos. Aliás, nesse documento a obra é referida como Suíte para Sax, Piano e Cordas.

Além disso, a ambiguidade do uso do pronome possessivo pode ter levado BEZERRA (2001), baseando-se presumi-velmente no artigo de Rafaelli, a cair na armadilha lin-guística e assumir uma incorreta interpretação do texto, creditando assim a Nobre a autoria da Suíte, em seu ar-tigo para um site especializado em música instrumental. A Internet é uma poderosa ferramenta dos tempos mo-dernos, possibilitando o livre acesso a uma enorme quan-tidade de informações. Entretanto, torna-se um campo perigosamente fértil para a disseminação de informa-ções incorretas ou imprecisas. MAURITY (2006), seja por basear-se no texto de BEZERRA, seja por também fazer uma interpretação incorreta do artigo de Rafaelli, acaba cometendo o mesmo equívoco.

A dissertação de MAURITY, intitulada A improvisação em Victor Assis Brasil propõe, através da transcrição e análise de solos, investigar a interação entre aspectos da música brasileira e do jazz na música do saxofonista. Para tal, o pesquisador faz um recorte sobre quatro temas dos dois últimos discos gravados por Victor. As canções escolhidas são: Blues for Mr. Saltzman e Penedo, de autoria de Victor Assis Brasil, Nada Será como antes, de Milton Nascimento e Fernando Brandt e O Cantador, de Dori Caymmi e Nel-son Motta. A justificativa para esta delimitação do foco se baseia em serem amostras da fase mais madura do músico, na qual se encontram mais consolidadas as suas características de síntese entre o jazz e a música brasilei-ra. O interesse de Maurity reside sobretudo na construção dos solos, as estratégias, técnicas e princípios utilizados no estilo do improvisador. O estudo funciona como um guia para músicos cuja prática musical faz uso recorrente da improvisação. Reconhece a importância de Victor no estabelecimento de uma linguagem brasileira na música instrumental, mesclando o idioma jazzístico com elemen-tos nacionais. Neste ponto o pesquisador reflete sobre os dilemas, as críticas sofridas ao optar por uma prática mu-sical considerada “americanizada” e o conflito entre suas múltiplas personalidades “de carioca, jazzman e músico universal” (MAURITY, 2006, p.10).

Já o trabalho de BARRETO (2007), intitulado Pro Zeca de Victor Assis Brasil: aspectos do hibridismo na música ins-trumental brasileira, analisa a manifestação simultânea de elementos de música brasileira e jazz, mais especificamen-

Ex.1 - Programa da estreia brasileira da Suíte para Saxofone Soprano

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te baião e bebop, na composição do saxofonista dedicada ao contrabaixista Zeca Assumpção. Sua fonte primária é o registro desta composição no LP Victor Assis Brasil, gra-vado ao vivo em 1974. O autor define esse processo como hibridação, ou hibridismo. No decorrer do texto descreve as características de cada estilo, demonstrando como es-tas se manifestam na composição em questão, concluindo que a hibridação, com a incorporação do idioma jazzístico a práticas vernaculares, tornou-se um traço marcante da música instrumental nos séculos XX e XXI.

Em sua tese Improvisação no Saxofone: A Prática da Im-provisação Melódica na Música Instrumental do Rio de Janeiro a partir de meados do século XX, FIGUEIREDO (2005) discute a utilização da improvisação no desen-volvimento de uma linguagem corrente no meio musical carioca, com a incorporação de elementos da linguagem jazzística. Um dos procedimentos da pesquisa é a da en-trevista com músicos proeminentes do cenário musical instrumental carioca. Diante da impossibilidade óbvia de entrevistar Victor Assis Brasil, falecido em 1981, presta-lhe um tributo, destinando algumas páginas de sua tese a traçar um perfil biográfico, aparentemente baseado nas parcas informações disponíveis citadas anteriormente. Por consequência, acaba cometendo o mesmo equívoco de MAURITY, ao divulgar informações incorretas sobre a autoria e estreia da Suíte para saxofone soprano e cordas. De qualquer forma, o trabalho reconhece a importância do trabalho do saxofonista no estabelecimento da práti-ca da improvisação no desenvolvimento da linguagem da música instrumental brasileira.

Como se pode perceber, os trabalhos mencionados dis-cutem e analisam o lado mais conhecido da obra de Vic-tor Assis Brasil: sua atuação como instrumentista, com destaque para suas habilidades como improvisador, além do fato de ser o músico, de certa maneira, um pioneiro e referência àqueles instrumentistas dedicados à prática da improvisação em sua atuação profissional. Esta pes-quisa, mesmo reconhecendo a relevância desses aspectos em sua carreira, procura investigar um outro lado de sua produção: as obras nas quais o arranjador e compositor ultrapassa os limites estilísticos, unindo música clássica, jazz e música popular brasileira, oferecendo subsídios para a interpretação desse repertório.

3 – o Movimento Third Stream e Victor Assis Brasil No início da década de 1960 o compositor Gunther Schuller cunhou a expressão Third Stream. Schuller ini-ciou sua carreira como trompista, tendo atuado tanto no jazz, notadamente no noneto comandado por Miles Davis e Gil Evans, quanto na música clássica, tendo to-cado na Cincinatti Symphony e posteriormente na Me-tropolitan Opera Orchestra. Como educador, atuou em importantes instituições de ensino musical, como Ma-nhattan School of Music, Yale University, Tanglewood Music Center e New England Conservatory, do qual foi presidente entre 1967 e 1977. Lá criou o departamento

de Third Stream, atualmente Contemporary Improvisa-tion Department.

O seu livre trânsito e sua admiração por ambas as esferas musicais contribuíram para sua concepção de uma mú-sica que reúne “a espontaneidade improvisacional e a vi-talidade rítmica do jazz com os procedimentos e técnicas composicionais adquiridas na música ocidental durante 700 anos de desenvolvimento.” (SCHULLER, 1986, p.115). Sua ideia inicial não era deflagrar um movimento ou criar um slogan, mas descrever um tipo de música que já exis-tia, e carecia de denominação. O compositor vislumbrava um cenário onde a música de concerto do século XX e o jazz seriam as duas principais correntes estilísticas cor-rendo paralelamente, e que em algum ponto começaria a haver uma troca mútua de elementos, daí nascendo a tal terceira corrente. De fato, este intercâmbio já pode ser notado em obras de Stravinsky, Milhaud, Copland, Ger-swhin e outros, que tiveram o jazz como fonte inspira-dora em muitas de suas obras. Por sua vez, os músicos de jazz demonstraram apreço e interesse pela música de concerto. Nomes como Coleman Hawkins (1904-1969), fundador de uma dinastia de grandes solistas no saxofone tenor, que se inspirava no violoncelo para obter sua so-noridade no instrumento, e que teria em sua coleção par-ticular apenas discos de música clássica (SEGELL, 2006). Ou como o cornetista Bix Beiderbecke (1903-1931), um dos grandes músicos de jazz dos anos 20. Uma de suas composições que chegaram até o nosso tempo, In a Mist apresenta uma “abstração melancólica e um movimento harmônico rarefeito” que “apontam para ambições além do mundo da canção popular e do jazz” (GIOIA, 1997, p.90). Isto sem falar em Benny Goodman (1909-1986) e Woody Herman (1913-1987), que encomendaram e to-caram obras clássicas1 de importantes compositores do século XX. E não se pode ainda esquecer a monumen-tal obra de Duke Ellington (1899-1974), que transcende qualquer classificação de estilos. De fato, essa miscige-nação estilística sempre esteve presente na música sendo potencializada no século XX. Para GIOIA

...a idade moderna é marcada pela tendência de estilos distintos se amalgamarem e se fertilizarem mutuamente. Na música, pure-za é um mito, embora resiliente. O historiador que espera poder vir a enfrentar as poderosas correntes de criatividade em tempos modernos deve aprender a lidar com estas complexas formas de arte em seus próprios termos ou de forma alguma Não há uma via expressa no mapa pós-moderno, apenas uma miríade de caminhos entrecruzados e divergentes2. GIOIA (1997, p.89)

O próprio jazz, em sua essência, é o resultado do en-contro da tradição europeia com as diversas práticas musicais trazidas da África. Aliás, este é um traço mar-cante comum à maior parte das músicas das Américas, marcadas pelo processo de aculturação decorrente do colonialismo e da escravatura. De qualquer modo, o cer-to é que desde muito cedo houve uma influência mútua entre a música clássica e o jazz.

O termo Third Stream foi controverso e combatido por am-bos os lados, sobretudo do meio jazzístico, sendo Schuller

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acusado de oportunismo e falta de “feeling” racial, o que o levou a se defender afirmando que não pretendia melhorar, substituir ou mesmo trazer o jazz para dentro da música de concerto. Algum tempo depois, o pianista Ran Blake am-pliou o sentido do termo, que passou acolher as diversas manifestações vernaculares e étnicas (BLAKE, 1981).

Schuller concebia a Third Stream como um caminho lógi-co e inevitável para o curso da história da música. Entre-tanto, a fragmentação dos estilos jazzísticos, sobretudo o surgimento de duas tendências: o free jazz e a fusão do jazz com o rock, também conhecida como fusion ou jazz-rock, acabaram por enfraquecer o movimento. Ainda assim, podem ser percebidos traços característicos dessa fusão entre música clássica e jazz na obra de diversos artistas: The Modern Jazz Quartet, Stan Kenton, Charles Mingus, Toshiko Akiyoshi, Bob Mintzer, George Russel, e obviamente Blake e Schuller. Encounters, ambiciosa obra escrita em 2003 sintetiza o ideal de Schuller de uma mú-sica na qual o jazz e o clássico interagem. Sobre este tra-balho escreveu o crítico musical Richard Dyer:

Encounters é uma improvável e delirantemente atraente obra-prima orquestrada para 150 músicos, incluindo uma orquestra expandida, teclados, jazz ensemble e solistas de jazz. A obra inicia com um grito selvagem, e então um motivo suspirante; ambos aparecem o tempo todo. O grupo clássico e os instrumentos de jazz se alternam, mas logo começam a interagir em material mu-sical compartilhado. O ágil jazz frequentemente tende a roubar o show dos grupos clássicos mais amarrados, mas o ouvido e a imaginação de Schuller para a cor orquestral não deixa isso acon-tecer; o terceiro movimento, com seus estrondos de não usuais instrumentos graves, é uma mágica musica noturna Bartokiana. O clímax te faz levantar. (DYER, 2003)

Uma hipótese cogitada no início desta pesquisa é ter sido Victor Assis Brasil diretamente influenciado pelas ideias de Schuller, Blake, Russel e outros adeptos da third stream, pelo fato de o músico brasileiro ter residido em Boston jus-tamente no período em que Schuller presidia o New En-gland Conservatory, e este período coincidir também com suas obras de maior aproximação com a música clássica. Além da Suíte para saxofone soprano, existem várias ou-tras, geralmente curtas, camerísticas, que fogem do tradi-cional esquema do jazz tema-improvisos-tema. Uma busca preliminar no acervo de Paulo Assis Brasil, produtor musi-cal e irmão do saxofonista, revela as seguintes obras (Ex.2):

Assim, era bastante plausível que Victor tivesse sido afetado pela música que o grupo de compositores de Boston estava produzindo. Não havia muitos anos que o movimento tinha sido lançado e, devido à proximidade física, poderia possivelmente haver o intercâmbio entre as diversas escolas de música. Entretanto, depoimentos de amigos que presenciaram esse momento da vida de Victor Assis Brasil são contrários a essa hipótese. Um deles em especial: o trompetista Claudio Roditi, que vive hoje em dia nos Estados Unidos e é um dos mais respei-tados músicos da atualidade. Claudio e Victor sempre ti-veram uma intensa relação de amizade e afinidade mu-sical. “Eram irmãos siameses na música” (AYRES, 2009). Estiveram juntos em vários momentos: nas jam sessions

do Clube das Garrafas e do Clube de jazz e Bossa, nos festivais de jazz na Europa, no segundo disco gravado por Victor, nos tempos de Boston e da Berklee. O trom-petista é taxativo ao afirmar que

a influência da musica clássica na música do Victor veio do João Carlos Assis Brasil. O Victor sempre ouviu clássico, mais pela in-fluência do João do que outra coisa. O movimento Third Stream que existia em Boston com o Gunther Schuller e o Ran Blake não influenciou o Victor, que eu saiba. ... Nós fomos colegas de apartamento na Áustria (Victor, João e eu) e o João teve muita influência no interesse que Victor teve pelo piano e pela música que João estudava todo o tempo. Entretanto o contrário também aconteceu, pois tempos depois João Carlos se interessou pelo jazz também. Eu acho que o movimento Third Stream não teve influência no Victor (RODITI, 2009).

Não há motivos para discordar de Roditi. Seu estreito convívio com Victor Assis Brasil, pessoal e musicalmente avaliza o seu depoimento. Deve-se ainda lembrar que o período no qual moraram na Áustria é anterior à viagem aos Estados Unidos, corroborando suas declarações. Mes-mo que o compositor não tenha sofrido influência direta da chamada Third Stream, é fato que existe um número razoável de obras escritas pelo brasileiro que comparti-lham das mesmas características descritas por Schuller, Blake et al., e é provável que o cenário musical de Boston, com a fartura de escolas e estudantes de música, tenha fornecido ambiente propício para suas experimentações no campo da composição e do arranjo.

4 – A trajetória musical de Victor Assis Brasil 4.1 – o início da carreira e a identificação com o jazz.O nome de Victor Assis Brasil está associado intimamen-te ao jazz. Suas próprias declarações davam conta de suas intenções de desenvolver um trabalho ligado a este estilo musical. Os depoimentos de músicos, críticos e afi-cionados sempre se referem ao músico como o “grande jazzista brasileiro”, o “ jazzman” e outros adjetivos do gênero. Mas é preciso lembrar alguns pontos. Em primei-ro lugar, Victor não foi de maneira nenhuma um pioneiro, nem foi um representante de uma causa solitária. Havia um crescente interesse pelo jazz, que se no final dos anos 40 era mais restrito a espaços privados, como os fãs-clu-bes Sinatra-Farney e Dick Haynes-Lúcio Alves, na década seguinte iria se transferir para consagrados espaços no-turnos de Copacabana, como o Copacabana Palace e as boates, Vogue´s, Sacha´s, Plaza, e posteriormente Little Club e Bottle´s Bar. (SARAIVA, 2007, CASTRO, 1990). Vic-tor começa a despontar no cenário musical carioca em 1964, sob o impacto da bossa-nova e sua incorporação do vocabulário harmônico jazzístico ao samba carioca, um samba novo, estilizado. Longe de passar pela discus-são entre “saudosistas” e “modernistas” que acaloraram os debates sobre os rumos da música brasileira na época, o que interessa aqui é que havia na comunidade musi-cal um grande número de instrumentistas que de fato faziam uso da linguagem do jazz. Nomes como o pró-prio Farney, Johnny Alf, Sérgio Mendes, Paulo Moura, J.T. Meirelles, Aurino Ferreira, Cipó, Luiz Eça, Baden Powell

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nº Título instrumentação data

1 Asa Branca (arranjo) big band s.d.

2 Marilia big band s.d.

3 Dialogues4 big band s.d.

4 Brazilian Sketches big band s.d.

5 Faces big band s.d.

6 Winter Songs big band s.d.

7 Suite in Three big band s.d.

8 Lines Flugelhorn, 2 saxofones altos, trombone, baixo, piano s.d.

9 Minueto piano 04/03/75

10 Ponteio # 1 piano 20/08/75

11 Reflexos saxofone alto, vibrafone, baixo 28/01/77

12 Osmosis saxofone alto, guitarra, cello 23/03/77

13 Estudo #1 saxofone solo

14 Sem título piano 15/12/77

15 Scattered Clouds piano 26/04/79

16 Prelúdio piano 13/05/79

17 Sem título saxofone alto, piano s.d.

18 Sem título saxofone alto, trompete, piano s.d.

19 Suite for a Lost Lady trompete, saxofone soprano (alto), piano, baixo, bateria s.d.

20 One for Madam piano 28/03/73

21 Mirage metais e piano s.d.

22 Sem título piano s.d.

23 Sem título piano set/73

24 Fugue piano set/73

25 Modinha piano jan/74

26 Penedo piano, saxofone soprano dez/73

27 Tema saxofone tenor, trompete, trombone, piano, baixo, bateria s.d.

28 Prelude for trumpet piano and strings trompete, piano, cordas s.d.

29 Visions trompete, saxofone soprano, cordas s.d.

30 Prelude quarteto de cordas s.d.

31 To Booker Little piano, trompete s.d.

32 Mirage Saxofone tenor, trompete, trombone, piano, baixo, bateria s.d.

33 Quarteto #1 quarteto de cordas s.d.

34 Modal big band s.d.

35 Sem título big band s.d.

36 Saxophone quartet #1 quarteto de saxofones (satb) s.d.

37 Prelude for alto sax and piano saxofone alto e piano s.d.

Ex.2 – Tabela com relação de obras de Victor Assis Brasil

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e tantos outros (CASTRO, 1990). A fusão entre a batida do samba, ainda que estilizada, e os sofisticados acor-des do jazz, foram determinantes no estabelecimento da chamada ‘música instrumental contemporânea bra-sileira’, ou simplesmente ‘música instrumental brasileira’ (DAUELSBERG, 2001). A despeito da diversidade estilísti-ca e da incorporação de elementos regionais, esta músi-ca instrumental que se faz até hoje se baseia em muito na prática jazzística, fundamentada na improvisação.

Mas, o que faz com que Victor Assis Brasil tenha atraído para si o rótulo de jazzista? Além obviamente de o jazz confessadamente ser uma parte proeminente do seu fazer musical, o saxofonista fez uma escolha em sua carreira artística que o diferencia da maioria dos instrumentistas, daqueles que o antecederam, de seus contemporâneos e dos que vieram depois. Ele decidiu se dedicar exclusiva-mente à sua música, renunciando a qualquer outro tipo de trabalho. Não tocou em bailes, acompanhou cantores ou participou de gravações de jingles, que sempre foram as atividades que sustentaram a carreira de muitos mú-sicos, de ontem e de hoje. Victor pagou um preço por isso. Passou por enormes dificuldades financeiras para manter-se fiel a seus princípios. O testemunho de Rober-to Sion corrobora essa afirmação:

Na minha opinião o Victor foi o único a ser somente um jazzman no Brasil. Dick Farney era pioneiro no jazz, Robledo, os saxofonis-tas da antiga, Abdon Lara, Cipó, Aurino, Juarez Araújo, Zé Bodega, todos esses adoravam jazz, como era a nossa escola, mas ninguém se dedicou a viver exclusivamente de jazz. Esse foi um dos méritos dele, e a coragem. E custou caro, estava sempre duro (SION, 2009).

Vindo de uma família carioca de classe média, Victor Assis Brasil é irmão gêmeo do pianista João Carlos Assis Brasil, que além de uma destacada carreira na música clássica, fez incursões pela música popular e pelo jazz. Sua avó pa-terna foi maestrina e diretora de conservatório. O primeiro instrumento musical foi a gaita, que começou a tocar aos 10 anos de idade. Mais tarde ganharia de uma tia o instru-mento que se tornou seu maior meio de expressão, o saxo-fone5. Embora tenha tido algumas aulas com Paulo Moura, Victor demonstrou desde cedo um senso intuitivo muito forte e uma tendência a descobrir por si os caminhos musi-cais. Seu aprendizado se deu em muito através do processo de escuta e transcrição de solos de grandes músicos de jazz. Segundo João Carlos Assis Brasil seus favoritos eram Cannonball Adderley, Phil Woods e John Coltrane.

Em 1963 conheceu o trompetista Claudio Roditi, que viria a ser um grande amigo e parceiro musical. Nessa época, no colégio Andrews, tocavam em grupos separados: Vic-tor com os irmãos Sauer e Claudio com Antonio Adolfo. Victor começou então a participar das jam sessions do Little Club, no lendário Beco das Garrafas, o que serviu para apresentar o jovem músico à comunidade musical. Em 1965 participou da estreia do Clube de Jazz e Bos-sa, fundado por alguns jazzófilos, entre eles Jorge Guinle, Luiz Orlando Carneiro, José Domingos Rafaelli, Silvio Tu-lio Cardoso, Estevão Herman e outros, estando presente em muitas de suas reuniões subsequentes. Através des-

te contato, foi convidado pelo clube e pelo Itamaraty a participar do Internationaler Wettbewerb für Modernen Jazz Wien 1966, organizado pelo pianista e compositor austríaco Friederich Gulda, cuja carreira se dividiu entre a música de concerto e o jazz. Sobre a participação de Victor neste festival as informações são controversas. Se Borelli e Rafaelli6 afirmam que o brasileiro terminou a competição em terceiro lugar na categoria saxofone, Ce-lerier, em seu texto para a contracapa do segundo disco de Victor Assis Brasil, de 1968, afirma ter sido o segun-do lugar a sua colocação. Assim também declara Alfredo Gomes (depoimento pessoal), baterista que tocou com Victor na década de 1960. O depoimento de Celerier está mais próximo no tempo da realização do festival, portan-to seu conteúdo está menos sujeito à traição da memória. Todavia, mais importante que se estabelecer a real colo-cação de Victor Assis Brasil naquele evento, é lembrar que o vencedor da categoria saxofone na ocasião foi Eddie Daniels, um dos mais consagrados músicos da atualidade, músico referência na moderna clarineta do jazz, o que dá ideia do nível da competição. Na Europa, Victor participa-ria ainda do Festival de Berlim, tendo obtido o 1º lugar na categoria saxofone. Ganhou ainda uma bolsa de estudos na cidade de Gratz e permaneceu em Viena juntamente com o irmão João Carlos e o amigo Claudio Roditi, que também embarcara para a aventura dos festivais.

Naquele mesmo ano de 1966, Victor Assis Brasil gravou seu primeiro disco, Desenhos, ao lado do pianista Tenório Jr., do contrabaixista Edison Lôbo e do baterista Chico Batera. O repertório inclui Naquela Base (Donato), Pri-mavera (Carlos Lyra – Vinícius de Moraes), Simplesmente (Edson Lôbo), Feitiço da Vila (Noel Rosa - Vadico), Amor de Nada (Marcos e Paulo Sérgio Valle), Minha Saudade (João Donato - João Gilberto), além de quatro compo-sições de Victor: Devaneio, Dueto, Eugenie e Desenhos. É um disco naturalmente influenciado pela bossa-nova e pelo samba jazz, caracterizado pela mistura entre os ritmos de samba-canção e samba a harmonias de jazz e blues, notadamente na composição de Lôbo.

Três faixas merecem destaque. A bela valsa Eugenie tem um lirismo e um sofisticado encadeamento harmônico que lembram o trabalho do pianista Bill Evans. Victor vi-ria a ter uma especial atração pelo compasso ¾ como fica comprovado pelas diversas “waltzes”7 que ele escreveu no transcorrer de sua carreira.

A peça Dueto – que na realidade deveria se chamar trio, já que apenas o piano não toma parte - parece influen-ciada pelo antológico A Love Supreme, de John Coltrane. É uma obra intrigante que traz um longo diálogo entre sa-xofone e contrabaixo, pontuado por efeitos na bateria. Há uma alternância de seções que tem um caráter recitativo com outras mais rítmicas, com um clima latino acentu-ado. A obra apresenta ainda uma estrutura modal, sendo as ideias construídas sobre uma única escala, causando a sensação de uma nota pedal que se prolonga por toda a sua extensão, embora nem sempre esteja lá.

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Desenhos, a composição que dá nome ao disco, é um exemplo de que embora o jazz tenha um lugar de des-taque na produção de Victor Brasil, está longe de ser uma referência única. Esta obra apresenta um ostinato do contrabaixo ao qual se aderem uma linha de saxo-fone, intervenções cordais do piano e efeitos da bateria. Há a um pequeno improviso do saxofone, mas não há a presença de uma “levada”.8 O resultado é mais próximo de Satie que de Charlie Parker ou Cannonball Adderley. Um prenúncio de caminhos que levariam sua música para além dos domínios do jazz.

De volta da Europa, Victor continuou a participar das várias jam sessions na casa de amigos em Copacabana e Botafogo. Essas reuniões eram muito frequentes e eram importantes pela troca de informações e experiências entre músicos. Além de seu quinteto, que nessa época era formado pelo trompete de Roditi, o piano de Aloí-sio Aguiar, o contrabaixo de Sergio Barroso e a bateria de Claudio Caribe, Victor montou um outro grupo, um sexteto, no qual era ladeado pelo amigo inseparável Ro-diti, o pianista Haroldo Mauro Jr., o contrabaixista Ri-cardo Santos, o saxofonista Ion Muniz, também tocando alto, e o baterista Alfredo Gomes. O baterista fez sua estreia como músico profissional justamente com esse grupo, com o qual participou de diversos shows no Rio de Janeiro, com destaque para o espetáculo Ad Libitum, apresentado na Sala Cecília Meireles em 1968, que além do sexteto contou com a participação do Quinteto Villa-Lobos e de um septeto de dança coreografado por San-dra Dieken. (GOMES, 2008)

Seu segundo disco também foi gravado neste período, com a participação do quinteto9 acrescido de convi-dados, com destaque para o trombonista Edson Maciel e o guitarrista Helinho (Helio Delmiro). Este é um tra-balho direcionado totalmente ao jazz. Ao contrário de Desenhos, marcado pelo clima de samba jazz, apresenta sobretudo tradicionais números de compositores norte-americanos. Round about midnight (Thelonious Monk) é apresentada sublimemente em trio de guitarra, saxofo-ne e piano. What’s this thing called Love (Cole Porter) traz um arranjo para big band de George André, com destaque para uma sensacional seção de saxofones: Vic-tor Assis Brasil e Paulo Moura nos altos, Juarez Araújo e Oberdan Magalhães nos tenores. Há Mercy, Mercy, Mercy (Joe Zawinul), um grande sucesso de Cannonball Adderley. “E aquele cara chamado Robertinho que tá lá no disco sou eu tocando tenor. Só uma voz no Mercy, Mercy” (SION, 2009). O LP inclui ainda Search for peace (McCoy Tyner) e Summertime (G. Gershwin - Du Bose Heyward). Mesmo Stolen Stuff, composta por Victor, e Plexus, por Aloísio Aguiar, são obras escritas totalmente dentro do idioma jazzístico, afastadas de qualquer ma-triz brasileira, o que não revela intenção alguma de criar uma linguagem própria, mas uma tentativa de se esta-belecer nos cânones estilísticos do jazz. Este é o mo-mento em sua carreira onde o saxofonista abraça mais aberta e explicitamente este gênero musical.

4.2 – A atividade musical de Victor Assis Brasil na Berklee Nos anos 1960 o aprendizado da música popular era feito de maneira totalmente informal. Não havia ainda escolas especializadas como o CLAM – Centro livre de aprendiza-gem musical, criado e dirigido pelos integrantes do Zim-bo Trio, em São Paulo, em 1973, ou o CIGAM – Curso Ian Guest de Aperfeiçoamento Musical, criado pelo compositor e arranjador húngaro no Rio de Janeiro, em 1987. Desta forma, aprendia-se música através do corpo a corpo, da troca de informações entre os colegas, e também da escuta e das transcrições de solos de artistas consagrados. Esta é uma prática ainda utilizada, sendo de grande valia para a assimilação de estilos. Mas mesmo isso era mais difícil naqueles dias, já que havia uma menor variedade de títulos disponíveis. Roberto Sion relata essa dificuldade.

Naquela época a gente não tinha uma discografia brasileira de jazz - Você ia 3, 4 anos nas lojas e estavam sempre os mesmos discos: Modern Jazz Quartet, tinha um do Chet Baker, um disco do Dave Brubeck, talvez o Time Out já tivesse saído. Essa enxurrada de informação que a gente tem hoje, de Cds era uma coisa inominável (SION, 2009).

Além disso, não havia os recursos eletrônicos que auxi-liam no trabalho de transcrição, como programas que permitem diminuir a velocidade da gravação sem alterar a altura das notas, para a melhor compreensão de tempos e frases muito rápidos, ou isolar com precisão o trecho a ser transcrito. Todo o trabalho era feito com a imprecisão aleatória da agulha dos toca-discos. Através desse labo-rioso procedimento se deu a formação de várias gerações de instrumentistas.

A Berklee College of Music10, em Boston, Estados Unidos, foi a primeira instituição americana dedicada ao ensino do jazz. Com o decorrer do tempo, seu campo de atua-ção passou a abranger o rock e a música pop. A lista de ex-alunos inclui celebridades do jazz como Quincy Jones, Toshiko Akiyoshi, Joe Lovano, Gary Burton, Al di Meola, Joe Zawinul, Makoto Ozone, Branford Marsalis entre ou-tros. A universidade atende a 4.000 alunos e tem 300 en-sembles de alunos, 300 salas para ensaios e 13 estúdios completos de gravação como alguns de seus inúmeros recursos11. Os números são atuais, mas mesmo em 1969, quando a estrutura da escola era bem menor, o abismo entre seus recursos e o aparato disponível no Brasil, ou seja, nenhum, era gritante.

Nelson Ayres, Victor Assis Brasil e Claudio Roditi estão entre os primeiros brasileiros a estudarem em Berk-lee. Depois vieram muitos outros: Roberto Sion, Zeca Assumpção, Célia Vaz, Alfredo Cardin, Claudio Caribé, Helio Delmiro e uma legião de músicos. A escola viria a se tornar a Meca dos brasileiros interessados a apren-der o idioma jazzístico.

O que se sabe da vida acadêmica de Victor Assis Brasil em Berklee, considerando-se que ele teve uma, é dado pelo depoimento dos amigos que lá estiveram no mesmo período. Caberia uma pesquisa de campo para levantar

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registros acadêmicos e outros documentos relatando sua atuação naquela instituição.

O compositor Nelson Ayres costuma dizer ter sido o pri-meiro brasileiro a estudar em Berklee, embora Victor Assis Brasil tenha lá chegado dois dias antes que ele. Aconte-ce que, segundo Ayres (2009), o saxofonista nunca con-seguia acordar para as aulas matutinas. De fato, vários depoimentos dão conta de sua falta de assiduidade na escola. Vários fatores podem ter levado a isso: uma de-sestruturação de comportamento, uma tendência à boe-mia. Entretanto, vários depoimentos confluem para uma desilusão, de certo modo, uma frustração da expectati-va pelo que iria encontrar nos Estados Unidos. O irmão, João Carlos Assis Brasil, costuma dizer que quando Victor chegou a Berklee para estudar saxofone, os professores perguntaram se ele estaria ali para aprender ou para ensi-nar o instrumento, devido ao seu avançado nível técnico. Este relato poderia muito bem soar como uma declaração de admiração de um irmão devotado, assumindo até um caráter ufanista. Entretanto, diversos depoimentos ratifi-cam essa afirmação. A compositora Célia Vaz diz que “ele estava também 10.000 pontos na frente daquilo tudo. Ele daria aula para os professores.” (VAZ, 2008). Ayres afirma:

Acho que ele, como músico, naquela época já era muito superior à maioria dos professores e não se interessava pela coisa acadê-mica. De qualquer maneira a Berklee é uma faculdade e você tem aquelas “História do Jazz”, “Harmonia Tradicional” e coisas que talvez ele não tivesse “saco” para aprender. Ele gostava de tocar. À tarde e à noite ele estava lá na escola tocando com o pessoal, de brincadeira, jam sessions. Mas do que eu saiba ele nunca teve exame, ou teve nota. (AYRES, 2009)

O músico americano Kenny Werner, que estudou na Berk-lee entre 1970 e 1972, fala do nível do saxofonista e da influência sobre outros músicos.

Eu acho que ele estava praticamente pronto antes de chegar lá. Eu não sei quantas aulas ele tomou ou foi, mas ele principalmente teve influência sobre outros estudantes e apresentou-se muito em Boston. (…) Incrivelmente forte com seu próprio estilo e senso de direção. Incrivelmente generoso em mostrar, a mim e a outros, grandes coisas sobre música e mostrar-nos muita música que não ouvíamos. Ele foi uma inspiração para todos que o conheceram.12 (WERNER, 2009).

Quando chegou aos Estados Unidos e foi informado da pre-sença de outro brasileiro, chegado havia dois dias, Nelson Ayres tratou de ir conhecê-lo. Victor morava em um quarto alugado no porão do número 404 da Marlborough Stre-et, o qual dividia com o pianista chileno Matias Pizarro. Coincidentemente, seu vizinho de quarto, um estudante de arquitetura, estava à procura de alguém para dividir os custos do aluguel. Desta maneira, na maior parte do tem-po em que esteve em Boston, Ayres se tornou vizinho de Victor. Com a chegada de Claudio Roditi, e posteriormente do contrabaixista Zeca Assumpção, os brasileiros decidi-ram formar um quinteto instrumental, que contou ainda com a participação de um baterista americano chamado Buss Blackledge. O grupo, denominado Os Cinco, tinha uma rotina obsessiva diária de ensaios e começou a fazer apre-sentações nas redondezas de Boston.

Em certa ocasião houve uma apresentação dos professo-res de Berklee em um centro comunitário e o quinteto foi convidado para fazer a abertura. Segundo Ayres houve um grande constrangimento, uma vez que o grupo bra-sileiro apresentava um grande entrosamento adquirido através da maratona de ensaios. Além disso o grupo con-tava com Victor e Claudio, que, além de suas evidentes qualidades individuais como solistas e improvisadores, tinham um entrosamento fantástico, uma afinidade mu-sical indescritível.(AYRES,2009) Para completar, o grupo tocava composições originais e fazia uso de solos em ins-trumentos não convencionais, como berimbau. Em con-trapartida, o grupo formado pelos professores apresentou standards no tradicional esquema tema-solos-tema. O resultado não poderia ser outro. O grupo dos alunos cha-mou mais a atenção do que o dos mestres.

A partir daquele momento, Victor passou a ter grande prestígio e consideração entre a comunidade musical de Berklee e adjacências, embora o ocorrido pudesse tam-bém ter rendido algumas manifestações de ciúmes por parte de alguns saxofonistas. O grupo continuou reunido até o regresso de Ayres ao Brasil em 72, chegando a tocar com a cantora Astrud Gilberto.

Se Victor Assis Brasil não era muito assíduo aos cursos disponíveis em Berklee, a rotina da escola e sobretudo o calendário escolar devem ter sido respeitados, ou levados em consideração, pelo menos por um tempo. O músico aproveitou o período de férias escolares para gravar no Brasil os próximos dois discos de sua carreira. Ao chegar, sugeriu ao amigo e produtor Roberto Quartin a gravação de um LP. Roberto, fã confesso do saxofonista desde os tempos do Beco das Garrafas e do Clube de Jazz e Bossa, respondeu: “Um não, dois!”, 13 sugerindo que gravassem um com composições de Victor e outro com composições de Antônio Carlos Jobim. Assim, entre 1º e 23 de agos-to de 1970 foram gravados Jobim e Esperanto. Ambos os discos foram relançados em CD no final dos anos 1990, tendo o segundo recebido o título de The Legacy. Em am-bos os discos Victor é acompanhado pela guitarra de Hé-lio Delmiro, pelo órgão e piano de Don Salvador, o baixo de Edison Lôbo e a bateria de Edison Machado.

O trabalho dedicado a Jobim traz em sua abertura uma versão bem livre de Wave, com longos solos construí-dos sobre a escala nordestina14, prenunciando um sabor regional que estaria presente em algumas composições futuras de Victor, como Arroio e Pro Zeca, mas assimi-lando alguma influência de free jazz. É a faixa mais ex-tensa do disco, com 14m24s. Só tinha de ser com você e Bonita apresentam interpretações bastante convencio-nais, baseadas no estilo samba jazz, que foi marcante na formação de todos os músicos participantes da gra-vação. Dindi chama a atenção pela rearmonização cro-mática, e pela desconstrução da sustentação rítmica, resultando numa interpretação bastante pessoal. Este disco registra ainda a primeira gravação de Victor Assis Brasil tocando saxofone soprano.15

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Esperanto é um disco jazzístico em sua essência. Embora a proposta fosse a gravação apenas de composições de Victor Assis Brasil, sua faixa de abertura, Gingerbread boy, na realidade foi escrita por Jimmy Heath, embora fosse incorretamente creditada a Victor16. O disco traz ainda a bela Marília, uma valsa cheia de lirismo, que o compositor viria mais tarde orquestrar para big band. Quarenta graus à sombra traz influências free, com solos simultâneos, seguindo as trilhas traçadas por John Col-trane, Ornette Coleman e outros. A faixa que encerra o disco destoa da atmosfera jazzística que o caracteriza. Ao amigo Quartin tem uma estrutura minimalista, um caráter quase litúrgico. Pode ter sido essa diversidade estilística que levou a gravadora Atração, responsável pelo relançamento dos dois discos, a retirá-la do disco autoral, preferindo incluí-la naquele com obras de Jo-bim, renomeada Quartiniana nº 1. Em seu lugar entra-ram uma versão alternativa de Marília e Friends, uma gravação que ficara excluída da edição original e que conta com a participação de Claudio Roditi.

É difícil afirmar de maneira precisa o que Victor Assis Brasil estudou em Berklee. Roberto Sion afirma que estu-dou composição e arranjo, além de saxofone com Joseph Viola. Zeca Assumpção afirma que ele estudou composi-ção e arranjo, embora saliente o aspecto intuitivo de sua criação musical (ASSUMPÇÃO, 2008). De fato, ao obser-var seus arranjos para big band, percebe-se o desenvolvi-mento de uma linguagem própria, em detrimento de uma sistematização e da adoção de práticas consagradas na escola americana. Se por um lado isto resulta em traba-lhos onde se pode perceber a falta de um maior domínio de tradicionais procedimentos e técnicas de arranjo, por outro lado sobressaem a originalidade e individualidade de seu estilo, adquiridas de suas experimentações.

Em 1972, quando chegaram a Boston Célia Vaz e Roberto Sion, Victor já não frequentava mais as aulas, embora go-zasse de prestígio e tivesse acesso às dependências da es-cola. O compositor tinha uma big band que lá ensaiava aos sábados, formada por brasileiros e americanos. É provável que esse prestígio se estendesse para além dos domínios de Berklee. Conforme informações constantes do programa da estreia brasileira de sua Suíte para saxofone soprano e cordas, esta obra teve sua primeira apresentação em 1973 pela orquestra dos alunos do Conservatório de Boston, ins-tituição localizada nas cercanias da Berklee.

Desta forma, o grande estímulo que Victor Assis Brasil recebeu para fomentar a sua produção foi a abundância de músicos e grupos musicais que tinha à sua dispo-sição. O depoimento de Célia Vaz dá a dimensão das facilidades a que tinha acesso:

Eu acho importante essa facilidade de oportunidades da convi-vência com pessoas muito capazes. Isto incentiva muito o cara a escrever. Se eu tivesse uma orquestra de cordas aqui dentro do meu armário eu ia escrever uma sinfonia de seis em seis meses. [...] Provavelmente ele teve como exercitar isto muito lá.[...] Porque lá tinha as big bands à disposição, entendeu? Tinha super-músicos à disposição pra tocar o que você escrevesse. Então ele tinha gran-

des pianistas pra tocar o concerto dele. Teve um concerto que o Kenny Werner tocou, e como o Kenny vários outros músicos ma-ravilhosos que estavam à disposição e ansiosos pra tocar as coisas que ele escrevia. Isto é claro que é um incentivo muito grande pra qualquer compositor, você ter quem toque maravilhosamente sua obra, quem que não quer? Aqui você escreve e guarda numa gave-ta porque não tem onde tocar. É muito mais difícil você conseguir alguém pra tocar um concerto seu pra piano e cordas, ou piano e sinfônica, do que lá. Ainda mais em Boston, onde havia milhares de escolas, milhares de músicos de todos os níveis e de todos os lu-gares do mundo, você tem na esquina. Sempre tinha alguém bom pra tocar aquilo. (VAZ, 2008)

Assim, mais que a formação que o compositor pudesse vir a ter nas classes de Berklee, foi o imenso, farto labora-tório musical que teve à disposição que incentivou a sua criação, abrindo caminho para a expansão de sua música para além da linguagem puramente jazzística.

4.3 – o retorno de Victor Assis ao Brasil Em 1974 Victor Assis Brasil decidiu voltar ao Brasil. Des-ta vez seu grande amigo e parceiro Claudio Roditi não seguiu seus passos, permanecendo nos Estados Unidos, onde até hoje tem uma bem sucedida carreira musical, sendo um dos mais reconhecidos e respeitados trompe-tistas da atualidade. Victor seguiu seu caminho coman-dando pequenos grupos, tendo gravado mais três discos: Victor Assis Brasil, gravado ao vivo em 1974 no Teatro da Galeria; Victor Assis Brasil Quinteto, de 1979 e Pedrinho, de 1980. Uma apresentação em duo com o pianista Luiz Eça, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1977, seria postumamente lançada em CD. Participaria ainda do Festival de Jazz de São Paulo, em 1978.

Victor escreveu também música para cinema17 e televi-são. Trabalhou como arranjador na Rede Globo de Tele-visão, tendo composto a música para a novela O Grito, exibida entre 1975 e 1976, cuja trilha sonora encontra-se disponível no mercado em CD. Normalmente este tipo de coletânea é usado como estratégia de mercado para in-serir ou consolidar cantores no circuito da música comer-cial. Todavia, além das canções populares usualmente in-cluídas neste produto televisivo-fonográfico, o disco traz também quatro composições de Victor. Pode-se deduzir de sua escuta que apesar dos problemas que possa ter tido em conciliar seus princípios de criação musical com os interesses comerciais da emissora, do que Radamés Gnattali também se queixava (BARBOSA e DEVOS, 1985), no curto período em que lá trabalhou o saxofonista pôde por em prática suas habilidades de arranjador e compo-sitor. A Globo dispunha na época de uma orquestra no modelo conhecido como jazz-sinfônica, reunindo cordas, metais, madeiras (aí incluídos os saxofones) e seção rít-mica. O compositor utilizou o grupo para fazer o registro das suas composições que integram o disco.

Tema em 5/4 tem uma forma binária ABA e um caráter regionalista evidenciado em sua exposição modal. Na se-gunda seção destaca-se um coral de trombones. Em O Grito o compositor aproveita o tema de uma das seções de uma outra composição, Dialogues.

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Berceuse é apresentada pelo trio Radamés Gnattali, prova-velmente formado pelo próprio Radamés, ao piano, e inte-grantes da orquestra global. Tem a candura compatível com seu título e uma inspiração romântica. Vice-Versa, executa-da por uma big band, com destaque para as flautas, sintetiza a mistura estilística de Victor Brasil, onde jazz, música brasi-leira urbana e regional e música clássica convergem.

A música entrou na vida de Victor por muitas vias. A pri-meira delas foi a herança familiar, através da influência da avó maestrina e, sobretudo, do irmão João Carlos, por quem nutria um profundo sentimento de admiração. Houve também uma sensibilidade incomum, um grande senso intuitivo e um talento para desvendar seus próprios caminhos. O ambiente musical de meados dos anos 1960, o impacto da bossa-nova e do jazz serviu para nortear o seu trabalho, definindo a corrente principal.

O período que passou em Boston forneceu as condições para assimilar e fundir as diversas fontes que acabaram por defi-nir o seu estilo. Pôde o compositor lá, através de um trabalho de experimentação, tentativa e erro, burilar suas habilidades como compositor e arranjador. Seu depoimento em matéria da revista Veja, em 1974, confirma isto. “De 1970 a 1974 tive a oportunidade de ouvir e tocar tranquilamente. Eu or-ganizava grupos e orquestras e aprendia ouvindo meus erros. Invadi então outras esferas” (in SOUZA, 1974, p 83).

O programa do concerto da estreia brasileira de sua Suíte para saxofone soprano e cordas, traz um depoimento do compositor que dá a noção do caldeirão onde se fundiram as diversas vertentes que formaram seu estilo musical. Victor define a obra como “uma síntese de suas experi-ências musicais, abrangendo Pergolesi, Villa-Lobos, Stra-vinsky e Ravel, amalgamados com a vivência jazzística fundamental em sua formação”.

Embora o lado jazzístico tenha se tornado o mais conhe-cido de sua carreira, o que pode ser comprovado pelos discos que gravou, é importante lembrar que o composi-tor não queria que sua música ficasse confinada aos limi-tes do jazz. Em 1977 o compositor declararia:

“Esse rótulo de jazz não tem nada mais a ver comigo. Estudo mú-sica há algum tempo, escrevi um concerto para piano e orquestra, uma suíte para quarteto de cordas e gostaria que o público sou-besse dessa minha faceta.” (in MILARCH, 1977, p.1).

Victor deixou um legado de cerca de 400 composições inéditas. A morte prematura, aos 35 anos de idade, o im-pediu de conseguir divulgar a pluralidade de seu trabalho.

O pianista João Carlos Assis Brasil contou recentemen-te que ele e seu irmão chegaram a pensar em realizar um trabalho conjunto, tocando música clássica, mas que não houve tempo para tal (BRASIL, 2008). É interessante notar como os irmãos gêmeos acabaram chegando a um ponto muito próximo. Victor, tão estigmatizado pelo ró-tulo de jazzista, assimilou em sua música várias outras vertentes. João Carlos, por sua vez, com sua carreira de

pianista clássico, acabou por fazer várias incursões no campo da música popular e do jazz. Em seu disco Self Portrait, de 1990, prestou um tributo ao irmão saxofonis-ta, apresentado várias de obras inéditas, onde fica claro como podem ser tênues as linhas que separam os diversos gêneros e estilos musicais.

5 – Conclusão A vida de Victor Assis Brasil foi marcada por suas escolhas. O músico decidiu enfrentar um difícil caminho, renuncian-do aos apelos do circuito musical comercial e abraçando a causa de sobreviver no Brasil da música na qual acreditava. Mesmo pagando um alto custo, manteve-se fiel aos seus princípios. Poderia ter permanecido na Europa, ou mesmo nos Estados Unidos, como fez o amigo Claudio Roditi. Lá talvez tivesse melhores condições para desenvolver o seu trabalho. Contudo, preferiu ficar no Brasil e encarar sua cruzada. Tornou-se assim um músico emblemático.

Seu nome é sempre lembrado quando se refere à prá-tica do jazz em terras brasileiras e sua música ajudou a fornecer as bases da linguagem da moderna músi-ca brasileira instrumental. Seus objetivos primários de fato foram se estabelecer como músico de jazz, mas sua música logo extrapolou esses limites. Partindo da linguagem jazzística em que era fluente, tratou de as-similar os elementos musicais que estiveram presentes na sua formação: a bossa-nova, os ritmos brasileiros, a música clássica que conhecera através do irmão. Os quatro anos em que viveu em Boston tiveram uma importância crucial nesse processo. Através da abun-dância de recursos humanos, do ambiente musical e das condições físicas que lhe permitiram a criação de diversos grupos e orquestras, o músico pode expandir seus horizontes. A maior parte de sua produção é dessa época. Através da experimentação o compositor amal-gamou as diversas referências musicais e consolidou seu estilo composicional. Infelizmente, após o seu re-gresso ao Brasil, teve poucas oportunidades de pôr em prática a vivência adquirida em Berklee e de apresentar suas composições. Passados todos esses anos, a maioria delas permanece inédita. Espera-se que, através de es-forços como o desta pesquisa, esta parcela de seu lega-do se torne mais conhecida. Uma música que não tem fronteiras, que não se envergonha em usar a linguagem jazzística como um meio natural de expressão, mas que também incorpora elementos brasileiros e mesmo da música clássica. A mistura de John Coltrane, Luiz Gon-zaga e Debussy, afinal, “dá samba”.

Esta pesquisa se concentra na linha da teoria e prática da interpretação, tendo, portanto entre seus objetivos o le-vantamento de repertório e a discussão de soluções inter-pretativas. Na impossibilidade de se ter acesso à Suíte para saxofone soprano e cordas, seja na forma de sua partitura, seja na forma de gravação que possa ser objeto de transcri-ção, o foco será direcionado a outras obras que reúnam as mesmas características de fusão de elementos de jazz, mú-sica popular brasileira e música clássica, preferencialmen-

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te as que façam uso do saxofone em sua instrumentação. Obviamente não seria possível analisar detalhadamente cada uma das 37 obras listadas na tabela 1. Portanto, será feito um recorte sobre três ou quatro composições, forne-cendo assim um panorama de sua produção. Desta forma configuram-se objetos de estudo em potencial as obras para big band, Saxophone Quartet #1, o Prelude for alto saxophone and Piano, Reflexos, Osmosis, Suite for a Lost Lady, por representarem as várias formações instrumen-tais e tendências composicionais deste repertório. Sobre as obras selecionadas serão aplicadas ferramentas analíticas que permitam identificar os elementos característicos de cada estilo presente em sua criação. A definição do modelo

mais adequado para a análise constitui-se assim um dos próximos passos da pesquisa.

Espera-se fornecer subsídios para uma compreensão mais ampla deste repertório, permitindo ao intérprete fazer suas escolhas baseado no equilíbrio dos elementos de música clássica e popular. Acredita-se ainda que esta discussão possa contribuir para a diminuição da barreira que costuma separar saxofonistas de formação clássica dos de formação jazzística, mostrando que existem muito mais pontos em comum que divergência entre as duas linhas de trabalho, e que a Música, em suma, está acima desta questão de fronteiras de estilos e gêneros.

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Entrevistas e e-mails recebidosAYRES, Nelson. Entrevista realizada em São Paulo, 19/01/2009. Arquivo digital (24m29s).ASSUMPÇÃO, Zeca. Entrevista realizada no Rio de Janeiro, 14/10/2008. Arquivo digital (27m13s).BRASIL, João Carlos Assis. Entrevista realizada no Rio de Janeiro, 27/10/2008. Arquivo digital (23m48s).GOMES, Alfredo. Entrevista realizada no Rio de Janeiro, 07/10/2008. Arquivo digital (45m39s).RODITI, Claudio. Mensagens recebidas por [email protected] em 08/10/2008 e 10/01/2009.SION, Roberto. Entrevista realizada em São Paulo, 19/01/2009. Arquivo digital (1h13m1s).VAZ, Célia. Entrevista realizada no Rio de Janeiro, 22/10/2009. Arquivo digital (32m17s).WERNER, Kenny. Mensagem recebida por [email protected] em 05/01/2009.

DiscosBRASIL, Victor Assis. Desenhos. Rio de Janeiro: Forma. 1966. 1 LP (45m42s). FM 17.______. Trajeto. Rio de Janeiro: Equipe. 1968. 1 LP (38m45s).______. Victor Assis Brasil. Rio de Janeiro: Magic Music (CID). 1974. 1 LP (43m.49s). MM 3010.______.Victor Assis Brasil Quinteto. Rio de Janeiro: EMI-Odeon. 1979. 1 LP (43m18s). 064 422844.______. Pedrinho. Rio de Janeiro: EMI-Odeon, 1980. 1 LP (37m08s). 064 422856.______. Jobim. Rio de Janeiro: Atração Fonográfica, 2003. 1 CD (37m13s).ATR 32006.______. The Legacy. Rio de Janeiro: Atração Fonográfica, 1999. 1 CD (43m57s). ATR 31058.EÇA, Luiz; BRASIL, Victor Assis. Ao Vivo no Museu de Arte Moderna. Rio de Janeiro: Imagem, 1997. 1 CD (75m02s).O GRITO. Rio de Janeiro: Som Livre, 2001. 1 CD (31m10s). 3021-2.

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PINTO, M. T. P. Victor Assis Brasil: a importância do período na Berklee... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.45-57.

notas1 O conceito de música clássica é aqui empregado em seu sentido amplo, abrangendo a música de concerto. Para uma discussão sobre essa termino-

logia consultar PINTO, Marco Túlio de Paula. O Saxofone na música de Radamés Gnattali. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro, UNIRIO – Univer-sidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2005.

2 “...the modern age is marked by the tendency for distinct styles to coalesce and cross-fertilize. In music, purity is a myth, albeit a resilient one. The historian who hopes to come to grips with the powerful currents of creativity in modern times must learn to deal with these composite art forms on their own terms or not at all. There is no high road on the postmodern map, just a myriad of intersecting and diverging paths.”

3 Encounters is an improbable and deliriously appealing masterpiece scored for 150 players, including expanded orchestra, keyboards, jazz ensemble, and jazz soloists. The piece starts with a barbaric yawp, then a sighing motive; both figure throughout. The classical and jazz groups alternate but soon begin to interact on shared musical material. Loose-limbed jazz often tends to steal the show from strait-laced classical groups, but Schuller’s ear and imagination for orchestral color doesn’t let that happen; the third movement, with its rumblings of unusual low bass instruments, is magical Bartokian night music. The climax lifts you out of your seat.

4 Recentemente descobriu-se uma versão desta obra para flauta e piano, em posse do compositor Nelson Ayres, em São Paulo.5 Há controvérsias sobre quando Victor ganhou o instrumento. Os textos de Borelli e Rafaelli disponíveis em <http://assisbrasil.org/vitorbio.html>

afirmam que ele teria recebido o saxofone quando tinha 17 anos. Já o depoimento de João Carlos Assis aponta para o fato ter acontecido quando Victor tinha 13 ou 14 anos.

6 Informação disponível em http://assisbrasil.org/vitorbio.html. 7 O compositor deu títulos em inglês para diversas composições. Waltz for Phil, Waltz for Trane e Waltzing são exemplos de composições baseadas no

ritmo da dança em compasso ¾.8 No jargão da música popular, figuração rítmica ostensiva que caracteriza um determinado estilo musical.9 Alfredo Gomes afirma em entrevista que também foram gravadas faixas com a participação do sexteto, mas que, por decisão da gravadora, estas

não foram incluídas LP.10 Denominação adotada a partir de 1970. Denominava-se Schillinger House desde sua fundação, em 1945, até 1960, quando passou a se denominar

Berklee School of Music.11 Dados disponíveis no sítio da instituição: <http://www.berklee.edu/about/facts.html>12 I think he was pretty finished before he got there. I don’t know how many classes he took or went to, but he mostly had influence on other students

and performed quite a lot in Boston. (…) Incredibly strong with his own style and sense of direction. Incredibly generous in showing me and others great things about music and turning us on to much music we didn’t hear. He was an inspiration to all who knew him

13 Conforme declaração no encarte do relançamento em CD de Victor Assis Brasil – Jobim.14 Escala maior com a quarta aumentada e a sétima abaixada. No jazz essa escala é também conhecida como lídio dominante, lídio mixolídio ou lídio

bemol 7.15 Victor também usa este instrumento em vários momentos de Esperanto. Porém, ao contrário de Jobim, este disco esperou alguns anos para ser

lançado.16 Esta informação errônea foi corrigida no relançamento do disco, em 1999.17 Sua biografia disponível em< http://victorassisbrasil.com.br/frame01.htm> afirma ter ele composto a trilha do filme Marília e Marina. Entretanto, o

sítio The Internet Movie Database (disponível em http://www.imdb.com) credita a trilha deste filme, dirigido por Luiz Fernando Goulart em 1976, a Francis Hime e Vinícius de Moraes. Esta informação é confirmada pelo sítio e-pipoca ( Entretanto, o mesmo sítio dá o crédito a Victor da trilha do filme A Rainha do Rádio, do mesmo diretor, em 1979).

Marco Túlio de Paula Pinto é Professor de Saxofone da UNIRIO. Professor de saxofone no PIM (Programa de Integração pela Música) do município de Vassouras (RJ) entre 2007 e 2008. Bacharel em Saxofone pela UFRJ e Mestre em práticas inter-pretativas pela UNIRIO, instituição na qual cursa atualmente o Doutorado em Teoria e Prática da Interpretação. Integrou a UFRJazz Ensemble entre 1998 e 2007. Apresentou-se como solista junto a grupos como OSPA, ORSEM, Orquestra Sinfônica de Barra Mansa, Banda Sinfônica da CSN e Banda Sinfônica da FEBAM. Ao lado do pianista Alexandre Freitas, desenvolve trabalho de divulgação da música brasileira para saxofone e piano. No campo popular trabalhou com diversos artistas, como Luiz Melodia, Jorge Vercilo, Flavio Venturini, Chico César, Gilson Peranzzetta e Nivaldo Ornelas, entre outros.

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PALOMBINI, C. Fonograma 108.077: o lundu de George W. Johnson. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.58-70.

Recebido em: 13/12/2010 - Aprovado em: 22/06/2010

Fonograma 108.077: o lundu de George W. Johnson

Carlos Palombini (UFMG, Belo Horizonte, MG) [email protected]

Resumo: Um exame do fonograma Gargalhada (pega na chaleira), cançoneta por Eduardo das Neves, expõe a origem da expressão “pegar na chaleira” e revela incongruências nos critérios de catalogação online do Instituto Moreira Salles. Provavelmente datada de 1906, a gravação aparece como um “lundu” em catálogos comerciais de 1915–1926, e as mes-mas ideias musicais foram reaproveitadas em outros registros sonoros da Casa Edison comercializados entre 1913 e 1919. A música e o gargalhar que Neves reaproveita foram criados por George Washington Johnson, o primeiro astro negro da gravação mecânica. Mas enquanto o ex-escravo norte-americano se auto-ridiculariza de acordo com estereótipos bran-cos, o autodenominado “crioulo” encena uma sátira ao comportamento masculino das classes dominantes do Rio. Neste processo, a coon song transforma-se na antítese do gênero.Palavras-chave. Cançoneta; lundu; coon song; fonografia; Casa Edison

Phonogram 108.077 (Brazilian odeon): George W. Johnson’s lundum

Abstract: Through an examination of the phonogram Gargalhada (pega na chaleira) [laughter (picking up the ket-tle)], chansonnette sung by Eduardo das Neves, the origin of the expression “pegar na chaleira” (bootlicking) emerges, together with incongruities in the Instituto Moreira Salles online catalogue. Probably recorded in 1906, six years before the establishment of the Odeon plant in Rio, the piece was labelled as a lundum, a paradigmatically Afro-Brazilian genre, in the 1915–1926 catalogues. The music and laughter that Neves appropriates to himself were created by George W. Johnson, the first black star of early phonography, and reused in other Casa Edison (Brazilian Odeon) record-ings on sale from 1913 to 1919. But while the former North American slave ridicules himself in accordance with white stereotypes, the self-designated crioulo stages a satire on the behaviour of upper-class Rio de Janeiro males. In this process, the coon song turns into its antithesis.Keywords: chansonnette; lundum; coon song; phonography; Brazilian Odeon

1 - Gargalhada“Pega na chaleira, cançoneta por Eduardo das Neves para a Casa Edison, Rio de Janeiro”: inicia-se assim um fonograma cuja audição me intriga desde o início dos anos sessenta, quando, aos sete anos de idade, recebi a chapa de goma-laca 1 em cujo selo lê-se, em caracteres prata sobre fundo alaranjado: “International Talking Machine Co m.b.H., Odeon Record, Gargalhada, Edu-ardo das Neves, No. 108.077, Impresso especialmente para Casa Edison”. Segue-se, na voz de Neves, a letra, já enigmática no início dos anos sessenta.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.23, 195 p., jan. - jul., 2011

Nesse século de progresso, nessa terra interesseira,Tem feito grande sucesso o tal pega na chaleira.Nesta terra de progresso, nesta terra interesseira,Tem feito grande sucesso o tal pega na chaleira.

Pega o padre ao capitão, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha! 2

E este ao seu vigário, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha!E o vigário pega ao ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha!Ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha! Tudo pega na chaleira!

Pobre moço que só fala na missa e no breviário,Quer subir e está pegando na chaleira do vigário.Pobre moço que só fala na missa e no breviário,Quer subir e está pegando na chaleira do vigário.

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Tudo pega na chaleira, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha!Pega o bispo ao seu vigário, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha!Ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha! Tudo pega! Tudo pega! Ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha!Ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha! Tudo pega na chaleira, meu deus! Tudo!

Bispo que anda a correr mundo, que a crisma é seu ideal,Pega a chaleira no fundo, bem, do seu cardeal.Bispo que anda a correr mundo, que a crisma é seu ideal,Pega a chaleira no fundo, bem, do cardeal.

Tudo pega na chaleira, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha!O bispo ao capitão, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha!Ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha! Tudo pega na chaleira, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha!Ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha!

Vigário que a lei sagrada soletra contando a tese,Está pegando na chaleira do bispo da diocese.Vigário que a lei sagrada sustenta em boa tese,Está pegando na chaleira do bispo da diocese.

Tudo pega na chaleira, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha!O homem mais potente, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha!Pega também o soldado, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha!Na chaleira do tenente, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha!Ha, ha, ha, ha, ha! Ha, ha, ha, ha! Tudo pega na chaleira! Ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha!

De acordo com o Dicionário da língua portuguesa con-temporânea da Academia das Ciências de Lisboa (2001), a expressão “pegar na chaleira” — um brasileirismo — signi-fica “bajular, adular, lisonjear”. De acordo com o Dicioná-rio brasileiro da língua portuguesa o substantivo mascu-lino e feminino “chaleira” quer dizer “bajulador” na gíria: “O significado provém de os bajuladores do chefe político gaúcho Pinheiro Machado, que conservava no Rio de Ja-neiro o hábito de tomar chimarrão, estarem sempre aten-tos para lhe servirem a chaleira de água fervente para o preparo da infusão de mate” (SILVA et al. 1975). Ainda segundo o Dicionário brasileiro, “pegar no bico da chalei-ra” significa “adular, bajular, lisonjear os poderosos”. No terceiro volume de O Rio de Janeiro do meu tempo (1938), Luiz Edmundo descreve assim o Senador José Gomes Pi-nheiro Machado (1851–1915): 3

Pinheiro Machado, quando aqui chegou, vindo do sul, inspirava pavor. Era um caudilho tisnado pelo sol, forte, cheio de atrevimen-to e de bravura. Seus feitos, nas campanhas do sul, eram quasi lendarios. Na coxilha, á frente de guerrilheiros destemidos, foi um glorioso centauro. Na refrega, de lança em punho, bombacha pan-da, e ponche ao vento, era o que mais derrubava, abatia e matava.

Não encontrou pela frente jamais quem lhe tolhesse o passo, o dominasse ou vencesse. Por isso, onde ia, tinha, fatalmente, que mandar. Sempre. Mandou na campanha, mandou na cidade, aca-bou mandando no paiz.

Quando começa o seculo, quem manda na politica é elle. E manda como ninguem. É o sr. capitão-mór dos tempos do ouro, em Mi-nas. É o Tutú Marambaia dos altos telhados da politica. Não ha quem ouse contrariar-lhe as ideas, os desejos e até as caprichosas fantasias. A imprensa inteira vive a lamber-lhe a sola dos sapatos. (COSTA 1938, p.1065).

De acordo com SEVERIANO (2008, p.88), “salvaram-se na primeira década dos novecentos umas poucas revistas como [...] Pega na chaleira (1909), de Raul Pederneiras e Ataliba Reis, que explorava a popularidade da polca ‘No bico da chaleira’, de Juca Storoni (João José da Costa Jú-nior)”. 4 Ainda segundo Severiano, esta revista teria difun-dido a expressão “chaleirar”.

No catálogo online do Instituo Moreira Salles (IMS), a Gar-galhada aparece em quatro fichas do acervo Humberto Franceschi e duas do acervo José Ramos Tinhorão, corres-pondendo, possivelmente, a chapas distintas 5 (vide Ex.1). Todas as fichas dão “Gargalhada (pega na chaleira)” como “título da música”. Este título é o mesmo que consta na Discografia brasileira 79 RPM (SANTOS et al. 1982, p.84) e corresponde à amalgamação do título no selo da chapa com o título anunciado no início do fonograma. 6 Todas as fichas creditam “Neves, Eduardo das” como “intérpretes(s)”. Todas registram a “Odeon” como “gravadora”. Todas indi-cam, como “data de gravação” e “data de lançamento”, o período 1907–1912, correspondente à estimativa da Discografia brasileira para a totalidade da série 108.000 (SANTOS et al. 1982, p.115). Todavia, no que diz respeito às entradas “gênero musical”, “número do álbum”, “lado” e “rotações”, há discrepâncias, não só entre as fichas dos acervos Franceschi e Tinhorão como também, internamen-te, entre as quatro fichas do acervo Franceschi. (As duas fichas do acervo Tinhorão são idênticas.)

1.1 - Gênero musicalEmbora a palavra “lundu” não apareça no selo da chapa e a Gargalhada seja verbalmente apresentada no fonogra-ma como uma cançoneta, é como um lundu que ela figu-ra tanto nos catálogos disponíveis da Casa Edison (FRAN-CESCHI 2002) 7 como no primeiro volume da Discografia brasileira 78 RPM (SANTOS et al. 1982, p.84).

JRT 1 e 2 HMF 1 HMF 2 HMF 3 HMF 4

gênero musical lundu lundu humor humor humor

número do álbum 108077 108077 108077 1080772 1080773

lado indefinido Lado A Lado B único único

rotações 76 RPM 78 RPM 78 RPM 78 RPM 78 RPM

Ex.1: Discrepâncias entre as fichas do fonograma 108.077 no catálogo online do IMS.

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PALOMBINI, C. Fonograma 108.077: o lundu de George W. Johnson. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.58-70.

1.2 - número do álbumNos catálogos da Casa Edison (FRANCESCHI 2002) e na Discografia brasileira (SANTOS et al 1982, p.84), bem como no primeiro volume de Panorama da música popu-lar brasileira e em Panorama da música popular brasilei-ra na belle époque, ambos de Ary VASCONCELOS (1964, p.191; 1977, p.284), a Gargalhada aparece como o fono-grama 108.077. Não há, na era da gravação mecânica no Brasil, registro de uma série Odeon 1.000.000. Os termos “número do álbum”, utilizado pelo IMS, e “número do disco”, utilizado na Discografia brasileira 78 RPM, são inadequados. “Álbum” é uma designação curiosa para o que se aproxima mais do que se chamou um dia no Bra-sil “compacto simples”, e que hoje se conhece como sin-gle. Por outro lado, “número do disco” é uma expressão inadequada para designar um fonograma num contexto em que um disco é composto de dois fonogramas, um de cada lado da chapa. 8

1.3 - LadoOs fatos de, nos catálogos disponíveis da Casa Edison, a Gargalhada aparecer sempre antes — ou, mais exatamen-te, acima — do Balancê, fonograma 108.085, ao qual está invariavelmente acoplada ali, 9 e o número de referência da chapa assim formada ser sempre o 108.077, indicam que a Gargalhada ocupe, efetivamente, a face comercial-mente mais importante. Todavia, nem o exemplar de que disponho nem os catálogos da Casa Edison divulgados por Franceschi fazem distinção entre um “lado A” (ou “1”) e um “lado B” (ou “2”). Por sua vez, a designação “lado úni-co” parece dificilmente aplicável, já que todas as chapas da Casa Edison eram duplas, Fred Figner sendo concessio-nário, desde 12 de dezembro de 1901, da patente do disco de duas faces no Brasil (vide FRANCESCHI 1984, p.58–71; 2002, p.85–94 e 109–113).

1.4 - RotaçõesNa cópia de que disponho, o selo da canção Balancê es-pecifica nitidamente “76 voltas por minuto”, e seria mui-to improvável que uma chapa fosse prensada para girar a 76 RPM de um lado e a 78 de outro.

1.5 - A Catalogação online do IMSConclui-se que as fichas do catálogo do IMS devem ser li-das com cautela, sobretudo no que diz respeito ao acervo Franceschi. 10 Acrescente-se que os critérios de transfe-rência e processamento digital das gravações estão mui-to distantes dos praticados por profissionais como Mark Obert-Thorn, Ward Marston ou Andrew Hallifax. 11

2 - DataçãoDe acordo com FRANCESCHI (2002, p.207), a fórmula usada para anunciar a música no fonograma 108.077, concluindo-se com “para a Casa Edison, Rio de Janeiro”, sem o endereço, vigorou de 1904 a 1912. A tabela abai-xo (Ex.2) mostra as datações estimativas da Discografia brasileira para as séries Odeon imediatamente anterio-res, imediatamente posteriores ou parcialmente conco-mitantes à 108.000.

O “Livro de Registro de Gravações da Casa Edison” (repro-duzido em FRANCESCHI 2002) fornece “série”, 14 “Nos”, 15 “gênero”, “autores” e “artistas”, além da data e local das tomadas de todos os fonogramas das séries 120.000 e 137.000, bem como dos fonogramas 10.327–10.413 da série 10.000, com as datas estendendo-se de 5 de se-tembro de 1911 a 15 de abril de 1915, no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Porto Alegre. 16 Não há, no Livro, re-gistro de nenhuma tomada para a série 108.000. Assim, se a Discografia brasileira está correta ao supor que a série 120.000 se inicie com o final da 108.000 (SANTOS et al. 1982, p.115 e 169), as tomadas para a série 108.000 devem ter-se encerrado no final de agosto ou início de setembro de 1911. 17

No interior da série 108.000, os fonogramas 108.070–108.085 constituem a primeira sucessão contínua de interpretações de Eduardo das Neves (Ex.3), com quinze itens identificados na Discografia brasileira (SANTOS et al. 1984, p.84–85). A série 108.000 estendendo-se de ja-neiro de 1907 a agosto de 1911 e constando de 844 fono-gramas, obtém-se uma média de quinze fonogramas por mês. Esta aproximação situaria os fonogramas de número

série Odeon data estimada diâmetro

40.000–40.777 1904–1907 27 cm

108.000–108.843 1907–1912 27 cm

10.000–10.412 12 1907–1913 19 cm

70.000–70.084 1908–1912 35 cm 13

70.500–70.515 1908–1912 30 cm

137.000–137.107 1912–1914 25 cm

120.000–120.999 1912–1915 27 cm

Ex.2: Datações estimativas de SANTOS et al. (1982) para séries imediatamente anteriores, imediatamente posteriores ou parcialmente concomitantes à Odeon 108.000.

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PALOMBINI, C. Fonograma 108.077: o lundu de George W. Johnson. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.58-70.

108.070 a 108.074 nos últimos dez dias de maio de 1907 e os de número 108.075 a 108.085 nos vinte primeiros dias de junho do mesmo ano.

Em Panorama da música popular brasileira, VASCONCE-LOS (1964, p.191) data de “entre 1904 e 1912”: O Soldado que perdeu a parada, Bolim-bolacho, Isto é bom, Garga-lhada, Rolo em um bonde e Balancê. Na página 284 de Panorama da música brasileira na belle époque, o mes-mo VASCONCELOS (1977, p.284) data de “entre 1906 e 1912”: O Soldado que perdeu a parada, Bolim-bolacho, Pai João, Isto é bom, Gargalhada, O Aquidabã, Rolo em um bonde, Estranguladores do Rio e Balancê. Na mes-ma obra, 48 páginas adiante, ele data de “entre 1906 e 1909” o Rolo em um bonde (VASCONCELOS 1977, p.332). Finalmente, o Dicionário Cravo Albin da música popular brasileira (ALBIN 2006, p.1032) data de 1907 O Soldado que perdeu a parada, E Eu nada, Bolim-bolacho, Maro-cas, Iaiazinha, Pai João, O Amolador, O Aquidaban [sic], Rolo em um bonde, Seu Gouveia, Estranguladores do Rio e Balancê. Ressaltando o caráter estimativo das datações, FRANCESCHI (2008) não hesita em dizer que a Gargalha-da seja de 1906. Há boas razões para isto.

Como Eduardo das Neves canta em O Aquidabã, “Foi essa noite fatal de 21 de janeiro [de 1906] que trouxe pesado luto ao pavilhão brasileiro: o valente Aquidabã, colosso de mil guerreiros, desfez-se no mar sagrado com seus bravos marinheiros”. 24 Já o caso narrado em Estrangula-dores do Rio, o assassinato, por Eugênio Rocca e Justino Carlo (o Carletto), de Carlo Fuoco, de dezessete anos de idade, e Paulino Fuoco, de quinze, sobrinhos do joalheiro

italiano Jacob Fuoco, de cuja loja, no número 11 da Rua da Carioca, eram funcionários, ocorreu na noite de 14 para 15 de outubro de 1906. 25

Vagalume (João Guimarães) afirma em 1933 que “o povo se acostumou a ouvir Eduardo das Neves cantar ao violão os acontecimentos de maior divulgação, ocorridos no ce-nário político de nossa Pátria” (GUIMARÃES 1978, p.70). Como diz o cantor acerca de suas obras na “Declaração” que abre o Trovador da malandragem, “o muito mereci-mento que têm (e é por isso que tanto sucesso causam) é que eu as faço segundo a oportunidade, à proporção que os fatos vão ocorrendo, enquanto a cousa é nova e está no domínio público. É o que se chama ‘bater o malho enquanto o ferro está quente’” (NEVES 1905, p.4). Ora, Eduardo das Neves glosava o “assunto do dia” (VASCON-CELOS 1964, p.45), 26 e, em junho de 1907, entre o assun-to do dia e o dia do assunto, se teriam passado mais de um ano e quatro meses, no caso do naufrágio, ou cerca de oito meses, no caso do latrocínio. 27

Fred Figner deu início à comercialização de cilindros em 1897 (FRANCESCHI 1984, p.22; 2002, p.31), 28 isto é, três anos antes da data de registro da Casa Edison na Junta Comercial (FRANCESCHI 1984, p.31–32; 2002, p.50–51). O Catalogo de 1902 da Casa Edison mostra que A garga-lhada (com artigo) já estava à venda em 1902 como o ci-lindro A-492, na voz de Eduardo das Neves, sem menção de gênero. Todavia, se, nos Estados Unidos, “das primeiras gravações feitas em folha de estanho em 1877 às últimas produzidas em celulóide em 1929, os cilindros atraves-saram meio século de desenvolvimentos tecnológicos da

fonograma título 18 gênero matriz Com

108.070 O Soldado que perdeu a parada lundu XR-603 violão de E. das N.

108.071 E Eu nada lundu violão de E. das N.

108.072 Bolim-bolacho lundu violão de E. das N.

108.073 Marocas lundu 19 violão de E. das N.

108.074 Iaiazinha lundu violão de E. das N.

108.075 Pai João lundu 20 XR-608 violão de E. das N.

108.076 Isto é bom lundu XR-607 violão de E. das N.

108.077 Gargalhada (pega na chaleira) lundu XR-610 Violão

108.078 O Amolador lundu XR-611 violão de E. das N.

108.079 O Aquidaban canção XR-612 Violão

108.080 República de estudantes 21 cômico XR-613 viol., M. Pinheiro, Nozinho

108.081 Rolo em um bonde 22 cômico XR-614 viol., M. Pinheiro, outros

108.082 Seu Gouveia canção XR-615 violão, outros

108.083

108.084 Estranguladores do Rio canção violão de E. das N.

108.085 Balancê canção XR-618 viol. de E. das N. [e coro] 23

Ex.3: Primeira sucessão ininterrupta de fonogramas de Eduardo das Neves na série 108.000.

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gravação de som” (SEUBERT s.d.), no Brasil, nem os ca-tálogos gerais de 1915, 1918, 1919, 1920, 1924 e 1926, nem os suplementos de 1913 e 1914 — isto é, a totalidade dos catálogos divulgados por FRANCESCHI (2002) — fa-zem qualquer alusão a fonógrafos ou cilindros. FRAN-CESCHI (1984, p.32) identifica no Diário Oficial de 11 de setembro de 1907, o registro, por Fred Figner, da mar-ca de cilindros Phrynis e conclui que “discos e cilindros conviveram harmoniosamente durante as duas primeiras décadas deste século” (FRANCESCHI 1984, p.32). Em A Casa Edison e seu tempo, ele é um pouco mais preciso: “o cilindro permaneceu presente, com produção signifi-cativa, por toda a primeira década do século XX e boa parte da segunda” (FRANCESCHI 2002, p.43). Já a chapa 108.077 aparece em catálogo, sempre como um lundu: em 1915, sob a rubrica “modinhas, canções, cançonetas, monólogos e lundus” (p.59); em 1918, sob a rubrica “mo-dinhas, canções e lundus” (p.32); em 1919, sob a rubrica “modinhas, canções e lundus” (p.31); em 1920, sob a ru-brica “modinhas, canções e lundus” (p.26); em 1924, sob a rubrica “série 108.000” (p.31); e em 1926, sob a rubrica “por Eduardo das Neves” (p.6).

Em meu exemplar, o selo do Balancê é o de miolo azul e borda roxa, com os caracteres em dourado e a bandei-ra esvoaçante do Brasil no hemisfério superior. Se Fran-ceschi tem razão em dizer que este selo foi aplicado em “reprensagens comemorativas da inauguração da fábrica Odeon do Rio de Janeiro” em dezembro de 1912 29 e que “somente gravações anteriores a 1912 [...] foram repren-sadas e receberam etiqueta especial [...] num curto pe-ríodo de 1913” 30 (FRANCESCHI 2002, p.204), é razoável admitir que a Gargalhada tenha estado à venda no ano de 1913, não aparecendo nos catálogos disponíveis deste ano e do seguinte, justamente os mais próximos à data provável de gravação, porque, para os anos de 1913 e 1914, não dispomos dos catálogos gerais, mas apenas de suplementos. O sucesso posterior da chapa sugere que o cilindro A Gargalhada, independentemente de seu con-teúdo, possa ter estado à venda por quatro anos desde seu anúncio no Catalogo de 1902. Não é improvável que, a partir da data de gravação do fonograma 108.077, ci-lindro e chapa tenham figurado nos catálogos perdidos, até que a segunda desbancasse a primeira, um fato con-sumado no catálogo Discos Odeon 1915 Casa Murano. A

Gargalhada deve, portanto, ter sido comercializada por cerca de um quarto de século, ininterruptamente.

Mas isto não é tudo: ela foi reaproveitada também, gar-galhar e música, fragmentariamente (e, ao que tudo in-dica, com menos sucesso), sob outros títulos (vide Ex.4). O Supplemento A do catálogo de 1913 (p.5) apresenta o fonograma 40.493, “Febre amarela”, uma cançoneta, 31 na voz de Geraldo Magalhães, com música idêntica à do fo-nograma 108.077 e gargalhar semelhante, mas letra dife-rente. O mesmo Suplemento A” de 1913 (p.8) e o Catalogo geral de 1918 (p.60) apresentam o fonograma 40.631, A Risada, peça “cômica” (no suplemento de 1913) ou “can-çoneta” (no catálogo de 1918), na voz de Edmundo André, com gargalhar análogo ao do fonograma 108.077, mas letra e música diferentes. O catálogo Discos Odeon 1915 Casa Murano (p.56) e os Catalogos gerais de 1918 (p.23) e 1919 (p.23) apresentam o fonograma 40.169, A Vacina obrigatória, uma cançoneta, na voz de Mário Pinheiro, com música idêntica à do fonograma 108.077, mas sem o gargalhar, e com letra diferente. O Suplemento A do catálogo de 1913 (p.15) e o Catalogo geral de 1918 (p.65) apresentam o fonograma 108.760, As Eleições de Piancó, uma “gargalhada” (aqui promovida ao estatuto de gênero musical) 32 na voz de Eduardo das Neves, com melodia e letra diferentes das do fonograma 108.077, mas com gargalhar análogo.

Provavelmente baseada no próprio autor (NEVES 1926, p.4), a literatura (VASCONCELOS 1964. p.5; 1977, p.282; SILVA e OLIVEIRA 1979, p.15; ABREU 2003, p.76; ALBIN 2006, p.1032; FERLIM 2006, p.75) tende a dar a Garga-lhada hispano-americana como uma modinha ou can-çoneta de Eduardo das Neves. Ferlim (2006, p.75) chega a perguntar-se se ela corresponderia ao cilindro A-492. Como, de acordo com Franceschi, nenhum dos cilindros brasileiros é audível hoje, por questões técnicas, 33 pa-rece impossível responder a esta pergunta. FRANCESCHI (2008) me fez ouvir a Gargalhada hispano-americana ao telefone. Trata-se, exatamente, da mesma música e do mesmo gargalhar do fonograma 108.077, com letra dis-tinta. De acordo com FRANCESCHI (2008), o disco Zon-O-Phone no qual Gargalhada hispano-americana foi gra-vada está depositado no Instituto Moreira Salles. Todavia, nem o Catalogo de 1902, nem a Discografia brasileira 78

1913 1914 1915 1918 1919 1920 1924 1926

Gargalhada

Febre amarela (música =, gargalhada ≈)

A Risada (gargalhada ≈)

A Vacina obrigatória (música =)

As Eleições de Piancó (gargalhada ≈)

Ex.4: Incidência, em catálogos da Casa Edson, de fonogramas com música ou gargalhar iguais ou semelhantes aos do fonograma 108.077.

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RPM (SANTOS et al. 1982, p.1–32), nem os websites do Instituto Moreira Salles, da Fundação Joaquim Nabuco ou do Projeto Disco de Cera (Aquivo Nirez) trazem qual-quer registro desta gravação. Finalmente, o “grandioso e extraordinario repertório de modinhas brasileiras” (sic) de 1905, Mysterios do violão, de Eduardo das Neves, contém o poema Questão do Acre, designado como “nova garga-lhada”, 34 e que deve ter sido cantado ao som da música do Pega na chaleira.

3 - AutoriaNo prefácio de seu Trovador da malandragem, por volta de 1903, Eduardo das Neves pergunta: “Por que motivo duvidaes, isto é, não acreditais, quando apparece qual-quer ‘chôro’, qualquer composição minha, que agrada, que cahe no gôsto do publico, e é decorada, repetida, cantada por toda a gente, e em toda a parte — desde nobres salões, até pelas esquinas, em horas mortas da noite?!” (NEVES 1926, p.3). 35 João do Rio conclui, em 1908, que, ao contrário do Bahiano, “Dudú [...] canta apenas as suas obras” (BARRETO 1910, p.306). E Vagalu-me reitera, em 1933:

Nunca se impôs como, realmente, deveria ter feito.

Em compensação — aqui que ninguém nos ouça, — nunca se enfeitou com penas de pavão... nem nunca se locupletou com os resultados dos trabalhos dos outros...

Certa vez escrevi, a seu pedido, uma cançoneta: PEGA NA CHALEIRA — que ele musicou, enquanto o diabo esfregou um olho, para cantar duas horas depois, na noite de seu benefício, em Santa Cruz.

Pois bem, quando teve que gravar a chapa na Casa Edison, veio pedir autorização e eu não consenti em figurar o meu nome como autor da letra.

Revi, concertei ajeitei uma infinidade de peças da au-toria de Eduardo.

Ele era interessante escrevendo peças — não fazia a separação das cenas — era tudo corrido!

Quando anunciava uma peça, como de sua autoria, é porque o era mesmo.

Nunca botou o seu nome aos trabalhos dos outros...

Há por aí quem não assine com correção o próprio nome, e se inculque autor de várias obras teatrais... e já houve mesmo tempo em que nada subia à cena em determinada casa de espetáculos sem o nome do consagrado escritor!...

Eduardo, porém, era vinho de outra pipa, como vulgar-mente se diz, e submetia tudo quanto o seu bestunto gerava à apreciação de pessoas que lhe pudessem cor-rigir os erros. Jamais o grande artista fez cortesia com

o chapéu alheio — porque, o que apresentava como seu, era seu de verdade. (GUIMARÃES 1978, p.68)

Jota Efegê observou, em 1965, que “houve um punhado de canções (lundus, modinhas, chulas, etc.) que o teve como criador ou principal intérprete. Muitas delas, por isto, ficaram consignadas na biografia do bardo do povo como sendo de sua própria e exclusiva autoria, quando, apenas, houve feitura de versos conduzidos por músicas alheias” (GOMES 1978, p.159).

4 - Gargalhadas “inglezas”Encimado pelo cabeçalho “gargalhadas inglezas”, en-contramos no Catalogo de 1902 da Casa Edison de Fred Figner, “importador de phonographos, gramophones e no-vidades americanas”, o anúncio de dois cilindros, o 379, “Laughing Song”, e o 380, “Laughing Coon” (vide Ex.5). Entre o cabeçalho e os fonogramas, a figura de um cida-dão de meia-idade convida-nos, sorridente, a conhecer-mos estas instâncias de humor “britânico” (o qual, como é sabido, nunca teve no gargalhar um meio privilegiado de expressão). Seria necessário um tipo de atenção que não costumamos dispensar a catálogos publicitários para nos darmos conta de que, apesar da alvura da sua tez, o nariz do cidadão é grande e chato. Trata-se de George Washington Johnson, o primeiro astro negro da fonogra-fia, nascido escravo numa fazenda da Virgínia em 1846. 36

De acordo com um anúncio publicado na revista Pho-nogram em novembro de 1900 (p.14–15, apud BROOKS 2004, p.24), Johnson começou a gravar para Thomas Alva Edison em 1877. Levando em conta que o primeiro fonó-grafo foi construído por Edison em dezembro de 1877 e apresentado na Casa Branca em abril de 1878, BROOKS (2004, p.24) conjetura que estas gravações, se realmente ocorreram, 37 devem ter-se realizado em 1878 ou 1879. Seja como for, em junho de 1890, meses depois do início das gravações comerciais, a New York Phonograph Com-pany já tinha em catálogo a Laughing Song e o Whistling Coon, as duas especialidades de Johnson. Nesta época, Johnson gravava também para a New Jersey Phonogra-ph Company (BROOKS 2004, p.30), de Edison. Em 1891 e 1892 ele regravou seus números para a North Ameri-can Phonograph Company, com distribuição nacional. Em 1892 a Columbia adicionou a seu catálogo a Laughing Song e o Whistling Coon na voz de John Y. AtLee. A New Jersey contra-atacou revelando que Johnson era negro e que, portanto, a versão registrada para este selo era a legítima. Em março de 1894 a United States Phonograph Company, divulgou que “até o momento, mais de 2.500 gravações destas duas canções foram realizadas por este artista, e os pedidos parecem aumentar, ao invés de di-minuir” (BROOKS 2004, p.30). No mesmo ano, Johnson registrou direitos sobre a música e a letra da Laughing Song e começou a gravá-la como parte dos sketches fo-nográficos do Spencer, William and Quinn Minstrels. 38 Em 1897 estes sketches passaram a ser lançados pela Co-lumbia, que também comercializou os fonogramas solo do artista. Em 1894, Emile Berliner havia dado início à

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venda de discos em ampla escala e Johnson foi convidado para registrar seus dois sucessos em disco em 1895, 1896, 1897 e 1898. Na segunda metade dos anos 1890, ele os gravou também para vários selos menores. Os catálogos da Columbia para o período 1895–1897 afirmavam que nenhum outro item vendia tanto quanto as duas canções de Johnson. Walcutt and Leeds, fabricantes dos New York Cylinders, chamaram-nas, em 1896, de “duas grandes especialidades que têm sido vendidas no mundo inteiro”. Um catálogo não identificado do período fala de 38.000 cilindros. Publicada em 1894, a partitura da Laughing Song (vide Ex.6 e 7) fala de 50.000 gravações, só em ci-lindro. Neste ano, o Edison Phonograph News afirmou que “a Laughing Song de George Washington Johnson tem vendido mais do que qualquer outro registro fonográfico”. Os dois títulos de Johnson foram imitados, traduzidos e “pirateados”. Whistling Coon teve versões em francês e em sueco. No final dos anos 1890, quando várias com-panhias de gravação tentavam estabelecer escritórios no exterior, vendendo registros locais e sucessos importados, Laughing Song e Whistling Coon foram incluídos num dos primeiro catálogos ingleses de Berliner, datado de 16 de novembro de 1898, reaparecendo em 22 de fevereiro de 1899. Uma gravação desta época, provavelmente para a New Jersey Phonograph Company (vide referências fono-gráficas), inicia-se com o anúncio do apresentador: “The Laughing Song, by Mr George W. Johnson!”

As I was coming ’round the corner I heard some people say:Here comes a dandy darky, here he comes this way.His heel is like a snow plow, his mouth is like a trap,And when he opens it gently you will see a fearful gap.

And then I laugh, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha!39

I couldn’t stop my laughing, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha!Ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha!I couldn’t stop my laughing, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha!

They said his mother was a princess, his father was a prince,And he’d been the apple of their eye if he had not been a quince,But he’ll be the king of Africa in the sweet by and by.And when I heard them say it why I laughed until I cried.

And then I laugh...

So now kind friends just listen to what I’m going to say:I’ve tried my best to please you with my simple little lay.Now whether you think it’s funny or a quiet bit of chaff,Why all I’m going to do is just to give this little laugh.

And then I laugh...

A letra de Johnson poderia traduzir-se assim:

Eu estava dobrando a esquina quando ouvi gente dizer:Vem aí o peralvilho preto, 40 aí vem ele.Seu calcanhar é como um limpa-neves, sua boca um alçapão,E quando ele a abre suavemente você vê um buraco medonho.

E eu dou risada, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha!Não pude conter o riso, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha!Ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha!Não pude conter o riso, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha!

Disseram que sua mãe era uma princesa, seu pai um príncipe,E ele teria sido a menina de seus olhos se não tivesse sido um sonso,41

Mas ele será o rei da África se deus quiser. 42

E quando eu ouvi isto eu ri até chorar.

E eu dou risada...

Agora, caros amigos, ouçam o que vou dizer:Fiz o que pude para agradá-los com meus versinhos singelos.Agora, se acharam engraçada ou meio fraca a brincadeira,Tudo o que farei é dar esta risadinha.

E eu dou risada...

5 - Risada de negroA apropriação e re-significação por artistas brasileiros de músicas “norte-americanas aficanas” é um fato tão antigo quanto a própria indústria fonográfica. Ela resulta da clivagem espaço-temporal intrínseca à reprodutibili-dade técnica do som: aquilo que soou em determinado tempo e em determinado lugar ressoa em outro tem-po e em outro lugar, sendo escutado, necessariamente, com outros ouvidos. Desta forma, o evento original é descontextualizado. Assim, a Laughing Song, uma coon song 43 cantada por um ex-escravo norte-americano, transforma-se na Gargalhada no Brasil: uma cançone-ta na qual um afro-descendente apresenta o puxa-sa-quismo como traço dominante das classes favorecidas. Neste processo, o gênero adquire um novo significado. De modo oposto, nas primeiras décadas do século XX, At a Georgia Camp Meeting, o celebérrimo cakewalk 44 do compositor branco norte-americano Kerry Mills (vide Ex.8), dá origem a vários fonogramas no Brasil: 45 com a Banda do Corpo de Bombeiros (Odeon 40.115), com a Banda da Casa Edison (Odeon 10.015 e 40.057), com o pianista Artur Camilo (Odeon 40.210), com o cantor J. G. Leonardo e banda (Victor Record 98.720). 46 Em O Mulato de arrelia, J. G. Leonardo, um cantor de etnia indeterminada, personifica a bravata de um negro de subúrbio em visita à capital federal. Ocorre aqui o re-verso do processo anteriormente descrito: no cakewalk nacionalizado parodia-se o comportamento de um ne-gro suburbano em visita à capital federal.

Seja como for, através da associação entre o empresá-rio europeu Fred Figner e “o crioulo Dudu das Neves”, o trabalho do ex-escravo norte-americano Johnson, explorado pela nascente indústria fonográfica norte-americana, passa a ser explorado também no Brasil por aproximadamente um quarto de século. Este fenômeno tem lugar no momento em que, nos Estado Unidos, o surgimento do processo de matrizes fonográficas trans-formava Johnson num artista dispensável e, aos sessen-ta anos de idade, sem trabalho.

No dia 6 de maio de 1905, o influente crítico negro Sylvester Russell 47 escreveu nas páginas do Indiana-polis Freeman: 48

Homens que escrevem letras para canções não podem mais escrever degenerações vergonhosas como a letra de Whistling Coon e esperar que editores respeitáveis aceitem-nas, ainda que a música seja boa. Os compositores não devem musicar palavras que constituam um insulto direto ou uma insinuação indireta à raça parda. Este estilo de literatura não é mais apreciado. (Apud BROOKS 2004, p.66)

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E Brooks continua:

Os últimos dias de George Johnson foram verdadeiramente som-brios. Sua renda há muito se reduzira a quase nada e, gradual-mente, seu nome foi-se perdendo de vista. Seu último cilindro na Columbia saíra de catálogo em 1908. Em 1910 a Victor eliminou o último dos discos que ele gravara e Edison fez o mesmo em 1912. Em 1913 um único disco de sua Negro Laughing Song estava disponível ainda, feito pela Columbia anos antes, mas seu nome sequer constava no selo. Ao invés de creditar o artista, continha simplesmente as palavras “an old standard”. O número minstrel de Len Spencer no qual aparecia a Laughing Song continuava em ca-tálogo, mas também não mostrava o nome de Johnson. (BROOKS 2004, p.67)

Johnson faleceu em Nova York no dia 26 de janeiro de 1914, aos sessenta e sete anos de idade. Em 1918, a músi-ca de sua Laughing Song e a gargalhada que ele inventou eram vendidas no Brasil sob os números de fonograma 108.077, 108.760, 40.169 e 40.631 (vide Ex.4), todos em oferta no Catalogo geral da Casa Edison do Rio de Janei-ro, Odeon brasileira.

6 - observações finais: de onde vem o lundu?A historiografia consagrou as trajetórias inversas da mo-dinha e do lundu 49 — da casa grande à senzala, e vice-versa — como emblema da miscigenação musical bra-sileira. No momento em que desigualdades econômicas emergem com a nitidez dos números, demonstrando a opressão econômica e cultural da componente menos clara da mistura, é lícito perguntar em que medida esta construção histórica não constitui, ela própria, um ins-trumento de dominação. O presente trabalho mostra que o lundu-canção pode se originar menos das senzalas ca-feeiras ou açucareiras do que das vantagens econômicas que a vida urbana de uma grande metrópole do norte dos Estados Unidos ofereceu a um ex-escravo. E em que medida a anatematização sistemática dos elos — proble-máticos, 50 mas evidentes — entre a música brasileira e a norte-americana não constitui, mais que uma expres-são de nacionalismo xenófobo, uma rejeição à arte negra norte-americana, vale dizer, um ato de fobia racista?

Ex.5: Página do Catalogo de 1902 da Casa Edison, mostran-do a imagem anônima de George W. Johnson (embaixo,

à esquerda), provavelmente extraída da foto que ilustra a publicação da Laughing Song em 1894 (vide Ex.6).

Ex.6: Capa da edição de 1894 da Laughing Song, com a foto de George Washington Johnson, detentor dos

direitos sobre a letra e a música.

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Ex.7: Primeira página da Laughing Son, de George W. Johnson, na edição de 1894.

Ex.8: At a Georgia Camp Meeting (1897) de Kerry Mills (1869–1948), “o maior de todos os cakewalks” (WONDRICH, 2003, p.65)

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______ (música) e Vagalume (letra), com Eduardo das Neves (voz) e violão. Gargalhada. Disco Odeon, 108.077. Aprox. 1906: Brasil.

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1907: Brasil.______ (música), com Artur Camilo (piano). Cake walk. Disco Odeon, 40.210. Aprox. 1904–1907: Brasil.______ (música), com a Banda da Casa Edison. Cake walk. Disco Odeon, 10.015. Aprox. 1907–1913: Brasil.______ (música), letra de autor desconhecido, com J.G. Leonardo (voz) a banda. O Mulato de arrelia. Disco Victor, 98.720.

Aprox. 1908–1912: Brasil.

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PALOMBINI, C. Fonograma 108.077: o lundu de George W. Johnson. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.58-70.

notas1 Sobre a composição da massa do disco, vide FRANCESCHI (1984, p.107–108; 2002, p.212).2 Nem sempre é fácil identificar as unidades de riso nas gargalhadas ritmadas e moduladas em timbre e altura desta cançoneta. A presente transcrição

resulta de comparações entre a percepção auditiva e representações visuais do envelope sonoro.3 Nas citações que se seguem, mantenho as ortografias originais.4 Fonogramas Odeon 108.086 e 108.341, Favorite Record 1–452.004, Victor Record 98.486 e Columbia B–101.5 Ou a transferências distintas de uma mesma chapa: o site do IMS não fornece esclarecimentos.6 De acordo com FRANCESCHI (2002, p.207), nas gravações cantadas da Casa Edison o anúncio era feito pelo próprio intérprete. O sotaque português

do anunciante aparentemente o contradiz, no caso do fonograma 108.077.7 No primeiro dos cinco CD-ROMs que acompanham o livro A Casa Edison e seu tempo, Humberto Franceschi divulgou cópias dos seguintes catálogos

e suplementos:• 1900, capa do catálogo 1900: phonographos, graphophonos, phonogrammas, pertences para importação direta por Fred Figner, Rio de Janei-

ro; • 1902, Catalogo de 1902 (capa, duas páginas não numeradas, p.3–16 e 25–54, capa traseira), Casa Edison, Rio de Janeiro;• 1913, Supplemento de abril e maio 1913 (capa, duas páginas não numeradas, p.4–7, capa traseira), Casa Edison, Rio de Janeiro; Supplemento

de agosto, setembro e outubro de 1913 (capa, p.2–7, capa traseira), Casa Edison, Rio de Janeiro; Supplemento A (capa, uma página não nu-merada, p.4–15, duas páginas não numeradas), Casa Edison, Rio de Janeiro; Supplemento do mez de dezembro de 1913: discos gravados em Porto Alegre (capa, duas páginas não numeradas, p.4–11, capa traseira), Casa Edison, Rio de Janeiro;

• 1914, Supplemento de janeiro a maio de 1914 (capa, página não numerada, p.3–11, duas páginas não numeradas), Casa Odeon, São Paulo (a primeira e a última páginas e os cabeçalhos do miolo, excetuadas as duas páginas finais, indicam “Casa Edison”); Supplemento de outubro, novembro e dezembro (capa, p.5–15, capa traseira), Casa Odeon, São Paulo;

• 1915, Discos Odeon 1915 Casa Murano (capa, página sem número, p.8–70), Casa Murano, São Paulo;• 1918, Catalogo geral (capa, seis páginas sem número, p.6–224), Casa Edison, Rio de Janeiro;• 1919, Catalogo geral 1919 (capa, seis páginas sem número, p.8–123, 125–142, 144–208, duas páginas sem número), Casa Edison, Rio de

Janeiro;• 1920, 1920: catalogo geral (capa, quatro páginas sem número, p.6–78, três páginas sem número, p.139–208, duas páginas sem número),

Casa Edison, Rio de Janeiro;• 1924, Catalogo geral de discos duplos Odeon (capa, três páginas sem número, p.4–85, duas páginas sem número), Casa Edison, Rio de Janeiro;• 1926, Catalogo geral de discos duplos Odeon (capa, três páginas sem número, p.4–47, duas páginas sem número), Casa Edison, Rio de Janeiro.

8 É por sinédoque (e por praticidade) que, nos catálogos da Casa Edison, o número de um dos fonogramas designa a chapa.9 Na cópia do primeiro volume da Discografia que pertenceu ao colecionador paranaense Paulo José da Costa (SANTOS et al. 1982, p.85), uma ano-

tação a lápis indica a existência de uma chapa combinando os fonogramas 108.085 (Balancê, com Eduardo das Neves) e 108.289 (Moro à beira do mar, com Geraldo Magalhães).

10 De acordo com FRANCESCHI (2008), estas fichas não correspondem a seu próprio banco de dados. 11 Os dois primeiros realizaram transferências digitais de chapas de goma-laca para o selo Naxos Historical, o terceiro é responsável pelas transferên-

cias digitais do Centre for the History and Analysis of Recorded Music (CHARM). Sobre a abordagem do CHARM, vide HALLIFAX (2002).12 O “Livro de Registros de Gravações da Casa Edison”, reproduzido por FRANCESCHI (2002) identifica o fonograma 10.413, desconhecido de SANTOS

et al. (1982, p.80–81).13 Baseados em catálogos da época, SANTOS et al. (1982, p.121) afirmam que os discos de 35 centímetros permitiam gravações de até seis minutos

de duração. Esta informação é confirmada: em 1920: catalogo geral (p.73); no Catalogo geral de discos duplos Odeon de 1924 (p.84); no Catalogo geral de discos duplos Odeon de 1926 (p.47). Em todos eles, a segunda faixa da chapa 70.083, Ballada do Guarany, na voz da soprano M. Pereira, é anunciada como durando seis minutos. O fato desta chapa não aparecer nos catálogos de 1915, 1918 e 1919, todos eles contendo gravações da série 70.000–70.084, pode levantar suspeitas quanto à data de 1912, fornecida por SANTOS et al. (1982, p.121) como limite final da série.

14 O termo “série” corresponde ali ao que SANTOS et al. (1982) designam por “matriz”, e não ao que estes, FRANCESCHI (1984 e 2002) e o presente autor entendem pelo termo.

15 No “Livro de Registros”, “Nos” corresponde ao que SANTOS et al. (1982) designam por “número do disco” e o IMS por “número do álbum”, mas que prefiro chamar de “número de fonograma”.

16 Sobre gravação e prensagem em Porto Alegre, vide VEDANA (2006) e FRANCESCHI (1984, p.89–92; 2002, p.177–191).17 Não é impossível que a hipótese de Santos não se confirme e que as tomadas para a série 108.000 tenham-se registrado em outro livro. Por outro

lado, SANTOS et al. (1982, p.106–114) dão dezembro de 1912 como “data do lançamento” de trinta e três dos fonogramas da série 108.000. A pos-sibilidade do decurso de um período considerável de tempo entre a data de gravação e lançamento deve ser levada em conta.

18 Todos os títulos abaixo estão disponíveis, por streaming, no site do IMS.19 De acordo com a ficha do fonograma do acervo Tinhorão (o único no qual esta gravação está disponível online), um “lundu alegre”.20 Para VASCONCELOS (1977, p.284), um “lundu alegre”.21 Anunciado no fonograma como “uma noite agitada numa república de estudantes”.22 Para VASCONCELOS (1977, p.332), Rolo em um bonde é uma “confusão cômica”, um “sketch certamente improvisado, durante o qual Mário Pinheiro

canta uma modinha de um autor desconhecido”.23 A referência ao acompanhamento de coro não é fornecida por SANTOS et al. (1982, p.115), mas aparece nos catálogos de 1915, 1918, 1919, 1920,

1924 e 1926. Segundo VASCONCELOS (1977, p.284), o coro é constituído por Mário Pinheiro e Nozinho (Carlos Vasques). O fonograma anuncia: “cantado e acompanhado ao violão por Eduardo das Neves e coro feito por Mário e Sinhozinho”.

24 A letra de O Aquidabã aparece em VASCONCELOS (1985, p.42–43) e LISBOA (1996, p.183).25 Sobre “o crime do ano”, vide PINHEIRO (1906), BARBOSA (1923, p.97–102), ALENCAR (1976, p.100), XAVIER (2004), FERLIM (2006, p.76–77) e PORTO

(2009, p.176–202). 26 TINHORÃO (1976, p.40–41) vai mais longe, atribuindo a Eduardo das Neves o papel de fundador da tradição, viva na primeira década do século XX,

de cantar sempre o drama ocorrido na cidade, um caso escandaloso ou um acontecimento político.27 É verdade que o crime da Rua da Carioca ainda era assunto em dezembro de 1907, quando Carletto e Rocca foram levados a julgamento. “Justiça,

senhores da terra, justiça mais uma vez, trinta anos não é demais para quem tal crime fez”, canta Eduardo das Neves, seja solicitando a pena máxi-ma, antes do julgamento, seja endossando-a, depois.

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28 Sobre a produção e a comercialização de cilindros no Brasil, vide FRANCESCHI (1984, p.11–52; 2002, p.15–59).29 Fred Figner recebeu a prova da primeira chapa inteiramente produzida no Brasil em 21 de dezembro de 1912, embora não se saiba ao certo que

fonogramas ela contivesse (FRANCESCHI 2002, p.203).30 Em Registro sonoro por meios mecânicos no Brasil, Franceschi afirma que o selo Bandeira Brasileira aplicou-se a discos “prensados entre 1908 e

1912” (FRANCESCHI 1984, p.75).31 SANTOS et al. (1982, p.52) apresentam Febre Amarela como uma “gargalhada”.32 O primeiro volume da Discografia brasileira 78 RPM registra, sob o selo Zon-O-Phone, o primeiro da Casa Edison: Cometa Biela, uma “gargalhada”,

com o ator Veloso, número de série 1.674 (SANTOS et al. 1982, p.17); América e Espanha, “gargalhadas”, com o ator Veloso, número de série X-816 (SANTOS et al. 1982, p.30); Cometa Biela, “gargalhadas”, com o ator Veloso, número de série X-821 (SANTOS et al. 1982, p.30). De acordo com SANTOS et al. (1982, p.31), as séries 1.500 e X-500 consistem de discos de sete e dez polegadas, respectivamente. Apesar da numeração inferior, elas seriam posteriores às séries Zon-O-Phone 10.000 e X-1.000, nas quais realizaram-se as primeiras gravações da Casa Edison. De acordo com SANTOS et al. (1982, p.32), “as séries Zon-O-Phone devem ir até meados de 1904, quando Figner passa a usar a Odeon”.

33 De acordo com FRANCESCHI (2008), os cilindros brasileiros eram constituídos de um núcleo de cera recoberto por uma camada externa raspável, também de cera. Com o calor, a dilatação do núcleo produzia fissuras na camada externa, menos facilmente dilatável, que terminava por fender-se.

34 O texto da “nova gargalhada” de Eduardo das Neves mostra, já em 1905, o costume latino-americano de chamar os brasileiros de “macaquitos” (vide NEVES 1905, p.34).

35 Citado por João do Rio em 1908, com variações, na coletânea A alma encantada das ruas (BARRETO 1910, p.305–306). 36 Sobre Johnson, vide ABBOT e SEROFF (2002, p.93 e 103–4), BROOKS (2004, p.13–71) e SALEM (n.d.). Toda esta seção baseia-se na primeira parte do

livro de Brooks.37 As gravações originais, em cilindros revestidos de folha de estanho, sendo muito perecíveis, esta questão dificilmente será esclarecida.38 Um minstrel show era “um espetáculo teatral de longa duração estrelando intérpretes com os rostos pintados de preto que executavam canções,

danças e números cômicos baseados em paródias e estereótipos da vida e dos costumes dos americanos africanos” (BURNIM e MAULTSBY 2006, p.646).

39 O texto reproduzido baseia-se no da partitura de 1894, com alterações em função da gravação listada nas referências e do texto fornecido por BROOKS (2004, p.31). Como não se utilizava ainda o sistema de matrizes, cada execução gerava três ou quatro cilindros vendáveis. As performances gravadas podiam, portanto, diferir consideravelmente. Por outro lado, a partitura está muito longe da variedade rítmica da criação de Johnson.

40 É curioso observar que a pecha de janota foi lançada contra Eduardo das Neves pelo escritor (dândi mulato, homossexual, cocainômano e imortal) João do Rio em 1908: “o Eduardo das Neves tinha sido bombeiro, antes de ser notavel. Quando foi numero de music-hall, perdeu a tramontana e passou a andar de smoking azul e chapéo de seda” (BARRETO 1910, p.305).

41 Há aqui um trocadilho intraduzível entre apple of their eye, literalmente “a maçã de seus olhos”, significando “a menina de seus olhos”, e quince, literalmente, “marmelo”, mas também, “uma pessoa fraca, efeminada; uma pessoa indecisamente tola” (PARTRIDGE 1989, p.360).

42 In the sweet by and by, traduzido aqui por “se deus quiser”, é uma referência ao hino de Sanford Fillmore Bennett e Joseph P. Webster In the Sweet Bye and Bye, publicado em 1868.

43 “Estilo de canção popular do final do século XIX e início do XX que apresentava uma visão estereotipada dos americanos africanos, frequentemente interpretada por cantores brancos com as caras pintadas de preto” (BURNIM e MAULTSBY 2006, p.644).

44 “Dança que parodia o comportamento da classe superior branca, originalmente executada por escravos americanos africanos; a melhor performance recebia um prêmio, normalmente um bolo, ao qual a dança deve seu nome” (BURNIM e MAULTSBY 2006, p.644).

45 Traduzido ao alemão e publicado no Illustrierte Zeitung Leipzig em 1903, At a Georgia Camp Meeting tornou-se “uma das peças mais populares na Alemanha e na Áustria, presumivelmente contribuindo para a divulgação (da música) do cakewalk nos países de língua alemã” (HARER 2006, p.137 e 140).

46 Sou grato à pesquisadora austríaca Ingeborg Harer por ter identificado, no fonograma Victor, o cakewalk de Mills, tendo me transmitido esta infor-mação em mensagem eletrônica de 16 de abril de 2008.

47 No início dos anos 1900, Sylvester Russell tornou-se o primeiro crítico profissional de música de ascendência americana africana (ABBOT e SEROFF 2002, p.190).

48 Fundado em 1888 por Edward Elder, que fugira da escravidão no sul para instalar-se em Indianápolis em 1882, o semanário Indianapolis Freeman tornou-se rapidamente uma das publicações negras de maior circulação, sendo adotado por profissionais do espetáculo e músicos negros como fonte principal de notícias e fofocas (ABBOT e SEROFF 2002, p.xii).

49 Sobre o lundu, vide o capítulo “Doces lundus, pra nhonhô sonhar...” no livro de Carlos SANDRONI (2001, p.39–61).50 Sobre esta problemática, vide BÉHAGUE 2002.

Carlos Palombini doutorou-se em Música pela Universidade de Durham, no Reino Unido, com a tese “Pierre Schaeffer’s Typo-Morphology of Sonic Objects” (1993). Desenvolveu atividades de pesquisa e ensino na PUC-SP, Unicamp e UFPE antes de tornar-se professor de Musicologia na UFMG. Seus artigos e resenhas aparecem nos periódicos Computer Music Journal (MIT Press), Music and Letters (Oxford University Press), Leonardo (MIT Press), Organised Sound (Cambridge Uni-versity Press), Echo (UCLA) etc. É pesquisador do CNPq e da FAPEMIG. Com a colaboração de Sophie Brunet, reconstituiu o Essai sur la radio et le cinéma: esthétique et technique des arts-relais, um original inédito de Pierre Schaeffer recente-mente publicado na França (Paris: Allia, 2010).

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Recebido em: 13/11/2009 - Aprovado em: 22/06/2010

O percurso histórico da improvisação no ragtime e no choro

César Albino (UNESP/FMCG, São Paulo, SP) [email protected]

Sonia R. Albano de Lima (UNESP/FMCG, São Paulo, SP) [email protected]

Resumo: O artigo teve como objetivo investigar em que medida a improvisação e a tradição oral permitiram a consoli-dação do ragtime e do choro em gêneros musicais com aceitação popular na virada do século XIX. A escolha concen-trou-se nas semelhanças formais existentes entre ambos e nos caminhos percorridos por ambos para essa consolidação. A partir dos conceitos de territorialização e desterritorialização criados por Gilles Deleuze e Félix Guattari, incorporados à improvisação musical por Rogério Costa, verificamos o tipo de improvisação utilizado nesses dois gêneros. O re-lato histórico reafirma a ideia de D. Bailey de que a improvisação está sempre presente na criação de novos sistemas notacionais, gêneros e estilos musicais, ainda que nos processos de transmutação, ela saia de cena. O texto é parte da dissertação de mestrado defendida no IA-UNESP.Palavras-chave: ragtime; choro; improvisação; música popular brasileira; música popular norte-americana.

The historical path of improvisation in ragtime and choro Abstract: This study aims at investigating to what extent improvisation and oral tradition allowed for the consolidation of ragtime and choro into musical genres which became popular in the turning of the nineteenth century. The choice was concentrated on the formal similarities existing between both kinds of music and in the paths taken by both of them in their process of consolidation. As far as the concepts of territorialization and de-territorialization coined by Gilles De-leuze and Félix Guattari, and incorporated in musical improvisation by Rogério Costa, it was possible to verify the type of improvisation used in these two genres. Historically, it re-states D. Bailey’s idea that improvisation is always present in the creation of new notational systems, genres and musical styles, even if it leaves the scene during the transmutation processes. This article derives from the first author’s Master of Arts dissertation (IA-UNESP, Brazil).Keywords: ragtime, choro; improvisation; Brazilian popular music; North-American popular music.

1 - Ragtime, choro e improvisação: um recorte históricoNo universo musical observa-se que as práticas improvi-satórias sempre estiveram presentes na gênese das novas concepções que viriam a se tornar estilos ou na criação de novas modalidades notacionais, contribuindo, mesmo que de forma nebulosa, para o desenvolvimento das mesmas. Muitos relatos comprovam a presença da improvisação na criação de novos sistemas notacionais, gêneros e es-tilos musicais, no entanto, à medida que esses sistemas e gêneros se consolidavam, a improvisação saia de cena. Encontrar um ponto de equilíbrio entre esses dois opos-tos parece ser a questão primordial a se trabalhar para a continuidade dessa prática performática.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.23, 195 p., jan. - jul., 2011

Derek BAILEY(1993), no livro Improvisation: its nature and practice in music fala das dificuldades em se promover uma abordagem histórica da improvisação devido à natu-reza não-documental da atividade. Nessa publicação ele se reporta a Ernest Ferand para demonstrar a intensa presen-ça dessa atividade em toda a história da música, mesmo em um terreno aparentemente inóspito como a Europa:

This joy in improvising while singing and playing is evident in al-most all phases of music history. It was always a powerful force in the creation of new forms and every historical study that con-fines itself to the practical or theoretical sources that have come down to us is writing or in print, without taking into account the improvisational element in living musical practice, must of neces-sity present an incomplete, indeed a distorted picture. For there is scarcely a single field in music that has remained unaffected

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ALBINO, C.; LIMA, S. R. A., C. O percurso histórico da improvisação no ragtime e no choro. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.71-81.

by improvisation, scarcely a single musical technique or form of composition that did not originate in improvisatory practice or was not essentially influenced by it. The whole history of the de-velopment of music is accompanied by manifestations of the drive to improvise (Ferand, 1961 Apud BAILEY, 1992, p.ix e x) 1

Hoje, os jogos improvisatórios e algumas práticas impro-visatórias têm sido empregados com certa frequência nos cursos de musicalização e iniciação musical com o intuito de incentivar a criatividade musical e a desenvoltura mu-sical, entretanto, esses procedimentos não se caracteri-zam como práticas improvisatórias performáticas.

Na música erudita, a forte tradição escrita e o número pequeno de composições destinadas à improvisação im-possibilitaram a proliferação dessa habilidade, fato que não ocorreu na música popular, pois nesse universo ela obteve níveis de aceitação plena.

Considerando-se a amplitude e a complexidade do as-sunto, foi necessário adotar uma linha de investigação que pesquisou de que forma a improvisação e a tradição oral foram contempladas em dois gêneros musicais pro-venientes dos EUA e do Brasil: o ragtime e o choro. Tam-bém foram verificadas as semelhanças formais existentes entre esses dois gêneros e o percurso trilhado por eles, que permitiu a consolidação de novos gêneros musicais, entre eles, o jazz, o bebop e outros.

Para o recorte histórico recorremos a um tipo específico de música executada no continente americano em meados do século XIX, que não se caracteriza nem como música folclórica, nem como música erudita, muito embora te-nha sofrido suas influências. Esse tipo de música também difere da música popular mais recente, divulgada maciça-mente nos meios de comunicação a partir da década de 1930 (cinema, rádio, disco e posteriormente a televisão), necessariamente cantada. Essa música contempla alguns gêneros basicamente instrumentais, semi-eruditos, no sentido estrito do termo, sofisticados, todos provenientes do continente americano: o tango instrumental argentino e uma diversidade de ritmos caribenhos conhecidos por salsa, identificados hoje por “música afrocaribeña”, que apesar de ser tocada em vários países como Porto Rico, República Dominicana, Colômbia e Venezuela, tem sua origem em Cuba, o ragtime nos EUA e o choro no Brasil.

Esses estilos, gêneros, ou ainda idiomas, como têm sido recente chamados por alguns autores, têm em comum a peculiaridade de terem transcendido o aspecto ligeiro e dançante de suas origens, graças ao empenho de alguns compositores em elevá-los a um patamar mais erudito, possibilitando então a sua apreciação em ambientes mais propícios à audição, sem vínculos com a dança. Dentre esses autores podemos citar: Ernesto Nazareth, Duke Ellington, Astor Piazzolla, Tom Jobim e George Gershwin.

Henrique CAZES (1998, p.17) identifica-os com o termo música popular urbana, pelo forte vínculo estabelecido com determinadas cidades onde eles se originaram, mas

a melhor definição para eles é fornecida por Geraldo SU-ZIGAN (1986, p.35), que se refere a essa música como o quarto gênero musical - a “Música das Américas” - uma música que oferece um alto grau de ineditismo harmô-nico e rítmico, improvisação e uma gramática própria. O autor sugere atenção das Instituições de ensino e dos educadores no estudo desse repertório, pela importância que o mesmo representa para a nossa cultura.

Esses estilos musicais, embora provenientes de vários pa-íses da América, apresentam características semelhantes, a saber: nasceram das tentativas locais de tocar a polca e outros tipos de danças europeias, mescladas ao sotaque do colonizador e à influência negra, gerando em pouco tempo, uma serie de “estilos híbridos” como polca-haba-nera, polca-schottisch, polca-lundu, polca-mazurca, que mais tarde, após um período de gestação que pode chegar a quase um século, seriam sintetizados em um “estilo” identificável com características próprias, sofrendo, de-vido à origem, influências religiosas e culturais que lhe são determinantes (KIEFER, 1990, p.21). Originaram-se em cidades portuárias, em uma época de grande expan-são urbana, principalmente, a partir da metade do século XIX (fim da escravatura e expansão do industrialismo). Na virada do século XIX, esses estilos já se encontravam con-solidados e amplamente difundidos, agradando as diver-sas camadas da população (CAZES, 1998, p.17; COLLIER, 1995, p.9). Havia neles a presença efetiva das síncopes e uma variedade de conotações, mudanças de significado e uso frequente e impróprio de palavras, não apenas no campo da música popular, mas também na música eru-dita (KIEFER, 1990, p.24). Um exemplo dessa prática está presente em diversas partituras denominadas “tango” ou “tango brasileiro”, hoje consideradas choros, o que im-plica em uma confusão terminológica, falta de informa-ção, ou ainda, a “vergonha” de atribuir à música, o nome verdadeiro -“maxixe”-, uma dança de bordel. Empregar a palavra “tango” oferecia um risco menor para a época e passava a ideia de uma pseudo-erudição.

O ragtime e o choro do início do século XX apresentam inúmeras semelhanças: ambos eram executados ao piano, muitas vezes pelos próprios compositores; havia a utili-zação efetiva das síncopes, muito comum na música afri-cana, mescladas às características de danças oriundas da Europa, como é o caso da polca.

2 – o ragtimeO ragtime, publicado pela primeira vez em 1895, tornou-se conhecido nos EUA em pouco tempo. Em 1900 já era muito popular, encontrado nas partituras2, nos registros fonográficos, nos piano rolls 3, executado nos teatros, bares e bordéis, impulsionando o mercado de partituras, de pianos e gravações (fonógrafos nessa fase) (SAGER, 2009)4. Tais considerações são relevantes ao que é co-nhecido como o ragtime clássico (classic rag), a fase áu-rea desse gênero, em que ele aparece estabilizado como estilo e escrito em notação tradicional, representado principalmente por Schott Joplin. No entanto, os termos

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associados ao ragtime têm definições inexatas, receben-do muitas vezes rótulos oportunistas de acordo com o momento e com os interesses comerciais da época.

São confundidos como ragtime os seguintes nomes, re-ferentes a estilos, danças, canções, etc: cakewalk; mar-cha (característica); two-steps; coon song (estilo vocal pré-ragtime popular até 1901, com letras cruéis e racis-tas frequentemente cantadas por cantores com o rosto maquiado de negro - uma das razões da má reputação atribuída ao ragtime); folk ragtime (de tradições orais); classical rag (o ragtime popularizado por Scott Joplin e James Scott por meio de partituras); fox-trot; novelty piano; stride piano; etc. (Jasen Apud SAGER, 2009).

É difícil definir com clareza o que é o ragtime. A definição que se segue é mais adequada ao ragtime clássico:

Ragtime - A genre of musical composition for the piano, gener-ally in duple meter and containing a highly syncopated treble lead over a rhythmically steady bass. A ragtime composition is usually composed three or four contrasting sections or strains, each one being 16 or 32 measures in length. (SAGER, 2009) 5

Essas soluções pianísticas agradavam muito ao público e foram posteriormente adaptadas para as bandas, em forma de arranjos. Arthur Pryor - assistente de regente e trombonista da famosa banda de John Philip Sousa, aju-dou a difundir esse gênero musical na Europa, em 1900, quando para lá excursionou. Ele não apenas compôs a maior parte do material da banda, como também ensinou aos seus integrantes, a maneira de executar as síncopes de uma forma bem mais tranquila. Apesar do sucesso da banda, suas músicas eram publicadas apenas como adap-tações para piano solo (SAGER, 2009).

A emoção do sincopado, muito presente no ragtime, ge-ralmente causa no ouvinte, um sentimento de propulsão, de movimento, uma vontade de dançar. Esse deslocamen-to das batidas tem forte conotação com a música negra executada nas cidades que margeavam o rio Missouri, re-pleto de bares, bordéis e cabarés, lugares esses, onde um pianista com um repertório digno podia ter um nível de vida decente (SAGER, 2009).

A síncope e outras soluções também sincopadas são mui-to comuns na música executada “de ouvido”, encontrada em todo o Caribe e estados do sul dos EUA. A facilidade dos escravos em executá-la oralmente, foi com certeza determinante para a música desse continente. A síncope, porém, foi raramente encontrada em publicações ameri-canas antes de 1880.

Acredita-se que o ragtime tenha nascido da tentativa dos pianistas negros de adaptar ao piano, por meio da oralidade, aquilo que os músicos itinerantes tocavam no banjo. Em 1989, o ensaísta Lafcadio Hearn fez o seguinte comentário: “Did you ever hear negroes play the piano by ear?... They use the piano exactly like a banjo. It is good banjo-playing but no piano-playing”6 (Hearn Apud SAGER, 2009)

É difícil saber o que ocorreu anteriormente à fase escrita e consolidada do ragtime devido à falta de documentação. Não se pode explicar o ragtime a partir da primeira publi-cação, é preciso investigar como se chegou a ela. De nossa parte, podemos afirmar que a improvisação deve ter feito parte do processo que culminou nessas publicações, mas, nessa fase, ela já não fazia mais parte desse processo. O classic rag foi o tipo de ragtime que se perpetuou, devido justamente à escrita. O mesmo ocorreu com as famosas improvisações de Bach ao órgão. Elas só são conhecidas pelos relatos de seus contemporâneos, pois o que ficou para a posteridade são apenas suas obras escritas.

No início do século XX o ragtime exige para sua inter-pretação uma técnica apurada, alcançada apenas por pianistas com familiaridade em executar as síncopes. Apresentamos a seguir um exemplo didático (Ex.1) ex-traído do livro School of Ragtime: 6 Exercises for Pia-no, de Schott JOPLIN (1908, p.vii). Como se observa no exemplo, o estilo sincopado da melodia se contrapõe ao acompanhamento mais marcado (stride), o que resultou em um estilo balançado e movimentado.

O ragtime, assim como o choro, foi escrito em compasso binário de 2/4, como se escrevia comumente a polca. Os músicos de jazz, mais tarde, preferiram adotar o compas-

Ex.1 - School of Ragtime: 6 Exercises for Piano, de Schott Joplin: Exercício #1. O autor, que foi também professor de piano e teoria musical, teve a preocupação de escrever a melodia em uma pauta anexa facilitando a visualização das antecipações

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so 4/4 ou 2/2. No início tentou-se escrever o swing, onde o tempo é dividido em duas partes desiguais - a primeira nota tem uma duração maior que a segunda na razão de 2/3 até 3/4 do tempo. Utilizava-se então uma colcheia pontuada seguida de uma semínima (Ex.2).

Ex.2 – Notação inicial do swing no jazz

Essa escrita não vingou. Os músicos preferiram escrever as colcheias de forma simples (50% do seu valor), como mostra o Ex.3.

Ex.3 – Notação mais comum do swing no jazz

Que deveria ser interpretada da maneira mostrada no Ex.4.

Ex.4 – Realização do swing no jazz

A tarefa da execução do swing fica a cargo do intérpre-te quando a indicação “swing” aparece como uma das instruções da partitura. O intérprete de jazz deve saber executá-las (tocar a primeira nota com maior duração que a segunda: quanto maior for a permutação, maior será o swing). Por isso Jacques RIZZO escreve na contra-capa de seu livro Reading Jazz: “no jazz, aquilo que você vê não é o que você tem”. Até hoje o intérprete de jazz tem presente essa regra. O ragtime foi um gênero musical importante até próximo de 1917 (ano da morte de Joplin). Posteriormente, o jazz executado desde o início do século, começa a superá-lo. O ragtime não se transformou no jazz, mas contribuiu para sua formação, sendo até hoje executado sem gran-des inovações. Em 1920 seus intérpretes já estavam qua-se que esquecidos.

Apesar de os dois gêneros musicais (o jazz e o ragtime) terem sofrido influência direta da música negra, guardam certas diferenças. O swing é um dos principais diferen-ciais. Isso é bastante perceptível em uma interpretação jazzística e pode ser observado, por exemplo, nas grava-ções de Jelly Roll Morton interpretando classic rags e nas antológicas gravações do Modern Jazz Quartet quando interpreta Bach com roupagens jazzísticas. No ragtime a influência negra está concentrada na rítmica, no jazz ela se estende também para os recursos musicais verticais7 melódicos e harmônicos, muito comuns na música ne-gra rural e religiosa americana do século XIX (spirituals e

blues). Dessa maneira, portamentos, vibratos, glissandos e outras inflexões executadas com facilidade pela voz hu-mana, podem ser reproduzidos pelos instrumentistas de sopro no jazz (MALSON & BELLEST, 1989, p.14).

A não adoção dos elementos verticais da música negra no ragtime pode estar associada ao fato de ser uma música composta quase que essencialmente para o piano - um instrumento que não permite alterações sonoras signifi-cativas, pois dispõe de poucos recursos de dinâmica de-pois de ter suas notas articuladas. O mesmo não ocorre com os instrumentos de arco e de sopro, vez que eles podem produzir alterações propositais após a nota ser articulada, como crescendos, decrescendos, portamentos, vibratos, alterações de afinação, etc. Tais recursos foram utilizados somente no jazz.

Quanto aos aspectos harmônicos provindos da música ne-gra, o melhor exemplo está no blues. Esse gênero musi-cal, inicialmente cantado, é um gênero-forma inédito no Ocidente, geralmente com 12 compassos que utiliza os acordes que representam as funções básicas da tonalidade maior (I, IV e V) dispostos em ordem não convencional (a dominante antecede a subdominante no compasso 9). Com o tempo, agregaram-se a esses acordes, sétimas menores, conferindo à harmonia uma sonoridade peculiar prove-niente da melodia. A melodia blues utiliza notas estranhas à harmonia: as blue notes [notas de blues], (b3, b5 e b7) le-vemente bemolizadas (pois não seguem o temperamento), sendo assim melhor interpretadas por instrumentos sem afinação fixa. O blues é mais uma forma do que um estilo, adotada pelos jazzistas, formando parte de seu repertório básico. Mais tarde, o blues foi utilizado por músicos de ou-tros gêneros, como o rock. O grupo Beatles, por exemplo, surgiu de tentativas de tocar o blues que ouviam em Liver-pool, cidade que mantém uma base militar americana, re-pleta de soldados negros que praticavam o blues na época.

A Rhapsody in Blue (1924) para piano e orquestra de George Gershwin (1898-1937) é um exemplo típico da utilização desses recursos musicais verticais. Gershwin, compositor americano, judeu, filho de russos, que morava no Brooklin - um bairro negro de New York - soube como poucos, explorar essa sonoridade americana. Já no início da obra, o compositor difunde no solo do clarinete a so-noridade jazzística. Os intérpretes atuais já incorporaram em suas execuções alguns desses recursos sonoros que não estão escritos de forma clara na partitura, como o glissando inicial, possível apenas no clarinete, enrique-cendo demais a orquestração, bem como alguns bends (desafinações para baixo) que o clarinete faz logo em se-guida e uma série de recursos utilizados por músicos de jazz, como surdinas nos trompetes e trombones, trillos executados de uma forma diferenciada (shakes - um trillo característico do jazz em intervalo de terça menor, come-çando mais lento com acelerando). Muitos desses outros recursos verticais foram empregados na obra. Gershwin consegue incorporar o piano nesse ambiente sonoro, in-clusive como instrumento solista. Na maior parte da peça, o piano soa como um piano clássico, em outros, o autor

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tenta explorar a sonoridade jazzística dentro de suas pos-sibilidades8, pois utiliza muitos elementos harmônicos e melódicos provindos do blues.

Outra diferença entre o jazz e o ragtime está no em-prego da improvisação. Como já foi dito, possivelmen-te, o improviso fez parte da formação do ragtime, mas como o acesso se dá apenas por meio de partituras, fica praticamente impossível um resgate de uma tentativa mais sólida nesse sentido, ficando apenas a suposição de que a improvisação tenha existido nesse estilo. Por outro lado, como o jazz praticamente nasce juntamente com o rádio e o disco9, a impressão é outra. Graças à tecnologia, O jazz pôde revitalizar o uso da improvisação na música popular do Ocidente, reacendendo uma ideia musical esquecida: a de que execução e criação musical não são atividades necessariamente separadas (BAILEY, 1993, p.48). Contrariando o senso comum, o jazz não é uma música totalmente improvisada. Há momentos em que um dos integrantes tem liberdade para criar suas próprias melodias (o momento do solo). Isso acontece sobre o chorus – a estrutura harmônica e rítmica de uma melodia que é utilizada como tema. A improvisa-ção também acontece no acompanhamento, que não é escrito e deve ser executado sobre a mesma estrutura harmônica. Essa característica, entretanto, não esteve presente desde sua implantação:

Essas bandas inicias, portanto, desenvolveram-se da tradição de uma música que era, sem dúvida alguma, tocada em conjunto e não essencialmente improvisada. Os músicos podiam “ornamen-tar”, mas na banda de marcha esperava-se que tocassem mais ou menos de acordo com uma linha preestabelecida; o interesse esta-va nas diferentes entradas dos instrumentos, sem contar, é claro, com o elemento rítmico. (COLLIER, 1995, p.36)

Só no final de 1920 o jazz tornou-se uma música para solista improvisador. Foram Sidney Bechet e Louis Arms-trong os responsáveis por essa primeira grande transfor-mação, ao criarem o solo improvisado. Como comenta Bob Wilber, enquanto Armstrong procurava o caminho, Bechet já o havia encontrado: “Falando de um modo ge-ral, embora Sidney, no blues, improvisasse livremente, ele nem por isso deixava de seguir a forma do tema e varia-ção, desenvolvendo com segurança um chorus de outro” (in COLLIER, 1995, p.45). Isso significa que Sidney estava criando melodias novas e ao mesmo tempo respeitando a estrutura rítmica e harmônica do chorus.

Um exemplo de chorus está na canção When the Saints Go Marching In, um hino evangélico tradicional america-no tocado frequentemente em funerais de New Orleans (Ex.5). Foi muito executada por músicos de jazz, que uti-lizavam apenas a primeira parte (apresentada aqui) com uma conotação mais alegre. Os músicos solistas improvi-savam, repetindo a estrutura quantas vezes desejassem. A mesma estrutura devia ser obedecida também pelos músicos encarregados do acompanhamento.

A eficiência dos solos sobre o chorus nessa fase do jazz ocorreu devido à utilização de sequências harmônicas simples, simétricas (com estruturas múltiplas de 4 com-passos, geralmente 16 ou 12, como ocorre no blues) curtas e intuitivas. Tais estruturas possibilitavam aos músicos a criação de novas melodias independentes do tema e relacionadas à estrutura harmônica, afastando-se, portanto, das variações sobre o tema, ou adornos e embelezamentos melódicos como se fazia anteriormen-te. Essa concepção possibilitou ao jazz um desenvolvi-

Ex.5 - When the Saints go Marchin In, Hino religioso tradicional, segue a estrutura rítmica e harmônica (cifrada) da canção de 16 compassos

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mento improvisacional baseado na harmonia, atingindo um alto grau de eficiência já na década de 40. Foi por meio dessa concepção que músicos como Charlie Parker, John Coltrane, Miles Davis e tantos outros, puderam se desenvolver como improvisadores e elevar o jazz à ca-tegoria de música feita por improviso, mesmo que isso não fosse totalmente verdadeiro, mas que lhe conferiu o título de ter reintroduzido a improvisação no Ocidente, o que é uma verdade.

Outra característica importante que permitiu ao jazz se manter vivo, tendo a improvisação como principal ver-tente criativa, foi a sua incrível capacidade de absorver influências externas sem se desestruturar. O jazz sofreu influências do ragtime, do blues, da música erudita, da música flamenca, da música brasileira, etc. e ao mes-mo tempo em que foi influenciado, também influenciou, como ocorreu com a bossa nova. São muitas as oportu-nidades de ouvir músicos de jazz americanos tocando bossa nova com músicos brasileiros: João Gilberto & Stan Getz (1964), Tom Jobim & Frank Sinatra (1967); Milton Nascimento & Wayne Shorter (1975), etc. Nessas oportunidades, a bossa nova para esses músicos ameri-canos se desenvolveu como um tipo de jazz (brazilian jazz), assim como outras possibilidades: latin jazz; gipsy jazz; free jazz; cool jazz. Ao ponto de podermos encon-trar composições típicas da bossa nova compostas por músicos de jazz americanos, como Pensativa (1962) de Clare Fischer e Alone in the morning (1994) de Joshua Redman. Isso só foi possível com a adoção do chorus, que delimita claramente o campo de ação do improvisa-dor, da forma como é entendida no jazz.

O jazz experimentou mais de uma vez o rompimento com a o passado, buscando novos horizontes. A primeira vez foi por volta de 1930, situação já comentada, com a in-venção dos solos, a segunda com o bebop (meados de 1940) e a terceira, com o free jazz (1960), o que demons-tra a sua forte vocação para a renovação.

O bebop praticado a partir da segunda metade da dé-cada de 1940 constituiu-se em um ato de rebeldia dos jazzistas contra o jazz orquestrado, arranjado e escri-to, tocado pelas orquestras de dança no entre guerras (orquestras de swing). Nessas formações orquestrais, os músicos tinham cada vez menos espaço para im-provisar. Uma das questões fundamentais do bebop foi o ressurgimento da improvisação nos moldes introdu-zidos por Bechet no final dos anos 1930. Sua execu-ção em andamentos rapidíssimos, com harmonias mais complexas, revolucionou a forma de executar o jazz, implicando em sua modernização. Nenhum músico ao tocar o bebop poderia fazê-lo da forma como era exe-cutado o swing, pois as antigas soluções simplesmente não funcionavam nos andamentos do bebop – muito mais rápido. A atitude de músicos como Thelonious Monk, Charlie Parker e Dizzy Gillespie, conhecidos por “inventar” o bebop (HOBSBAWM, 1989, p.365), reite-rou a importância da utilização da improvisação nessa

música, impedindo que a atividade viesse a desapare-cer, como sempre ocorreu no desenvolvimento musical de formas, estilos e sistemas musicais onde um dia a improvisação esteve presente.

O terceiro momento revolucionário do jazz, conhecido como free jazz, trouxe consigo um intenso desejo de renovação, uma proposta radical que teve como lema a negação das leis, das regras idiomáticas e da gramá-tica dos sistemas. Tentou romper com idiomas, clichês e gestos, rumo à liberdade total, mas ainda assim, con-tinuou jazz, pois manteve aspectos comuns ao gênero executado por seus antecedentes, não conseguindo se desvincular dessas características. Como exemplos de músicos que adotaram essa linha avant-gard citamos: Ornette Coleman, Archie Shepp, Eric Dolphy, Don Cherry e posteriormente John Coltrane, Charles Mingus e Cecil Taylor (HOBSBAWM, 2008, p.12).

Após essa experiência radical, a improvisação continuou seu curso básico dentro dos moldes introduzidos por Be-chet, sempre considerando o respeito à improvisação e ao improvisador, sendo esse o foco dessa maneira de tocar, que independente dos momentos de inovação-tradição-renovação, manteve a improvisação em um fluxo de ener-gia constante e renovador, quase como um ideal.

3 – o ChoroA improvisação na música popular brasileira se desenvol-veu de forma bem diferente da verificada nos EUA, apesar das características semelhantes verificadas nos principais estilos desses dois países antes do século XX. Podemos di-zer que as influências religiosas e culturais foram deter-minantes nessas diferenças. A religião predominante nos EUA é a protestante, não tão permissiva como a católica, predominante na América Latina. Nos EUA, o negro de-veria cantar os hinos evangélicos, em língua inglesa, não podendo, por exemplo, dançar, tocar um tambor, ou falar seu idioma nativo. Isso também ocorreu na América Latina, mas sem tanta restrição. Dessa maneira a música negra da América Latina é basicamente alegre e dançante, já o blues americano é arrastado, pesado, chorado, um lamento.

O principal gênero popular no Brasil foi o choro, que apresenta uma história de 130 anos, um período de tem-po considerável para nossa cultura. Surgiu no início dos anos 1870, antes do ragtime, e assim como outros gêne-ros sul-americanos, teve raízes na forma de executar a polca (TINHORÃO, 1991, p.103).

Assim como ocorreu nos EUA e Caribe, a influência da música negra na música popular brasileira se fez pre-sente basicamente na rítmica, utilizando muito pouco dos recursos verticais, tão familiares ao jazz e apesar de sua origem dançante (polca), o choro constituiu-se em uma música instrumental para ser ouvida. Contou para essa tarefa com músicos consagrados como: An-tonio da Silva Callado, Ernesto Nazareth, Chiquinha Gonzaga, dentre outros.

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Da mesma maneira como ocorreu no ragtime, são en-contrados no Brasil, muitos compositores que executa-vam seus próprios choros, mesmo que ainda não rece-bessem tal rótulo. Muitos músicos de choro provinham ainda de bandas musicais, comuns em eventos cívicos e religiosos. Essas bandas revelaram-se boas formado-ras de músicos e maestros, supõe-se, portanto, que es-ses músicos sabiam ler partituras (CAZES, 1995, p.33; TINHORÃO, 1997, p.118).

Enquanto o ragtime teve sua produção basicamente diri-gida para o piano, no choro as execuções se desenvolve-ram em conjuntos típicos formados por flauta, cavaqui-nho, pandeiro e violão - as “rodas de choro”. Só depois de algum tempo o choro foi adaptado para o piano, exigindo ambientes mais aristocráticos. O choro para piano teve como ícone a figura de Ernesto Nazareth (1863-1934), que preferiu adotar a denominação “tango brasileiro” para suas peças, por rejeitar a ideia de que sua música pudesse ser considerada “popular”.

Nas rodas de choro participavam tanto intérpretes al-fabetizados musicalmente como músicos que “tocavam de ouvido”. Antonio da Silva Calado, considerado um dos maiores flautistas de seu tempo, era o único que sabia ler partituras em seu grupo de choro:

Ficou então constituído o mais original agrupamento reduzido do nosso país – O Choro, de Calado. Constava ele desde a sua origem de um instrumento solista, dois violões e um cavaquinho, onde somente um dos componentes sabia ler a música escrita: todos os demais deviam ser improvisadores do acompanhamento harmôni-co. (Siqueira, Apud TINHORÃO, 1991, p.104)

Tanto a oralidade, como a improvisação, foram componen-tes importantes no desenvolvimento do choro. Comumen-te, o que se executava musicalmente não era o que estava escrito na partitura. É o típico caso de uma música que estava sendo criada e modificada ao mesmo tempo em que era executada. A notação musical transcrita servia apenas de guia para os solistas, da mesma forma como ocorreu com a música executada no período Barroco.

Recentemente tem surgido uma série de publicações vi-sando resgatar o material sonoro deixado pelo choro, de forma fidedigna. As dificuldades têm sido enormes, como nos conta a pianista Maria José CARRASQUEIRA na re-cente reedição da obra do flautista Pattápio Silva:

É de suma importância ressaltar que nem sempre Pattápio foi fiel ao texto impresso das obras que gravou, mesmo porque, suas composições ainda não estavam editadas nessa época. Nosso pro-pósito é aclarar somente as diferenças mais significativas, reite-rando seu caráter inventivo de músico-criador, em interpretações surpreendentes para um jovem músico de apenas 22 anos de idade (CARRASQUEIRA, 2001, p.14).

Como no ragtime, a presença das síncopes no choro é predominante, entretanto, aqui elas aparecem também no acompanhamento. Observe a presença delas tanto na mão direita de Odeon de Ernesto Nazareth (Ex.6), como na esquerda, diferentemente do que ocorre no ragtime.

O choro, como o ragtime, utilizou preferencialmente a forma rondó “ABACA” com modulações – forma muito comum em músicas realizadas por bandas e piano no sé-culo XIX. Essa forma se mostrou bastante inapropriada à

Ex.6 - Utilização de síncopes em Odeon (c.18-25) de Ernesto Nazareth.

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improvisação como a utilizada pelo jazz no final da déca-da de 1930 como explica Paulo SÁ.

Sua forma tradicionalmente ternária com cinco sessões ABACA, não propicia o mesmo tipo de improviso realizado no jazz, isto é, o chorão não se propõe a expor um tema e depois improvisá-lo na íntegra, porque sua música já é suficientemente rica em sua melodia, e além disso os trechos a serem improvisados ficam a critério do chorão e não prescindem de um momento predeter-minado (SÁ, 2000, p.67).

Começa a ficar claro que o foco do chorão está na me-lodia e não na harmonia. Assim, o desenvolvimento da improvisação no choro não se deu como no jazz. “[...] faz parte do choro entender o chamado improviso através de um pensamento melódico-improvisatório baseado na própria melodia chorona que está sendo executada”(SÁ, 2000, p.67). Mais adiante Paulo Sá declara:

No caso do choro não existe um improviso nascido de divaga-ções, isto é, não se espera do músico chorão que ele simplesmen-te improvise melodias que porventura venham à sua mente ou a seus dedos, compondo assim uma espécie de choro instantâneo. O improviso chorão nasce de um choro previamente concebido, portanto, ele possui um referencial que será também o seu limite. Mas tendo em vista que o tipo de improviso que se costuma fazer no choro é fundamentado na melodia, o que ocorre, portanto, é que esta é permanentemente lembrada ou citada durante a im-provisação. Trata-se por conseguinte de uma variação melódica. [...] No entanto, o problema maior da conceituação dessa maneira chorona de improvisar está justamente no fato que as variações realizadas são também improvisadas. [...] a aplicação de variações melódicas memorizadas em momentos predeterminados implica na ausência de um improviso [...] embora na compreensão de al-guns chorões estas variações memorizadas continuem a ser o que eles chamam de improviso (SÁ, 2000, p.69).

Fica claro ainda que o conceito de improviso no choro é um tanto nebuloso ou impreciso, mesmo entre alguns chorões (SÁ, 2000, p.66). Ou seja, muitos músicos dizem estar improvisando sem, no entanto, estarem.

Nas gravações existentes, observa-se recorrentemente que o músico que executa a melodia (músico solista), não foge muito dela, pois tais modificações seriam “perseguidas” facilmente pelos habilidosos e intuitivos músicos acompanhantes. Esse pensamento norteou grandes músicos, como Callado, Pixinguinha, Pattápio e Jacob do Bandolim. O flautista Daniel DALAROSSA descreve o que acontece em uma roda de choro no que diz respeito à improvisação:

Numa roda de choro, uma característica importante é a liberdade dada ao solista para conferir sua própria interpretação à música que executa, não tendo necessariamente de seguir a partitura em todos seus detalhes.

Isso faz parte do espírito do Choro. O Chorão interpreta um dado Choro utilizando ornamentos (trilos e mordentes são muito co-muns) previamente inseridos na frase musical, ou cria frases de acordo com sua personalidade, ensaiando tudo isso previamente. O Chorão também pode simplesmente improvisar, criando frases não existentes na partitura original.

Com muita frequência, o Chorão aperfeiçoa uma dada improvi-sação ou criação já ensaiada e tocada muitas vezes em sua vida musical, até incorporar a frase em seu repertório e consagrá-la como sua “marca-registrada” (DALAROSSA, 2008, p.17).

Expressões “inseridas previamente” e “uma improvisação já ensaiada” estão em desacordo com a concepção de im-provisação como a oferecida, por exemplo, pelo Dicionário Groves de Música: “a criação de uma obra musical, ou de sua forma final, à medida que está sendo executada”. Elas não trazem a ideia fundamental da improvisação que é a criação no momento da execução. Outros dicionários dão definições semelhantes (OXFORD, 1997; HARVARD DIC-TIONARY OF MUSIC, 1969; DICCIONARIO DE LA MÚSICA LABOR, 1954). No entanto, tais práticas são empregadas e entendidas como sendo improvisação por parte dos músicos de choro, equivocadamente, no nosso modo de entender. O que ocorre de fato é que a tradição pede que o músico ao tocar um choro, não respeite plenamente a partitura, nesse aspecto, alguns improvisam efetivamente e outros, menos capazes de improvisar, aplicam variações “previamente ensaiadas”. Porém, é no acompanhamento do choro que a improvisação ocorre em maior grau, man-tendo-se em um nível semelhante ao que deve ter sido no passado. Em cada repetição, em cada nova execução, percebe-se que esses acompanhamentos são executados de maneira diversa e espontânea. Apesar das restrições formais, o choro tem mantido a presença da improvisa-ção, sendo, ainda hoje, o gênero onde mais se improvisa e onde mais se respeita o improvisador no Brasil.

Da mesma forma que o ragtime, a partir de 1930 o cho-ro cai no esquecimento, apesar dos 60 anos anteriores de glória, perdendo espaço para gêneros cantados nas rádios, provenientes do samba (samba-canção, samba-exaltação, etc.), gêneros que tiveram como base o próprio choro. Pou-cas intervenções modificaram esse quadro, como a de Ja-cob do Bandolin, um dos grandes nomes da música popular brasileira. O choro virou uma música de “velhos” e teve de esperar até a década de 1970, quando ocorreu um verda-deiro revival sendo redescoberto por jovens músicos do Rio de Janeiro e Brasília. É hoje uma música muito executada e estudada nesses centros, contando com algumas inova-ções, ainda tímidas no que se refere à improvisação.

Esse é um componente que se quer preservar. Nos atuais intérpretes de choro, percebe-se a tentativa de encontrar novos espaços para a improvisação. No entanto, é difícil desvencilhar-se das estruturas formais do passado, pro-duto dos 130 anos de tradição. É preciso encontrar uma forma de romper com tais amarras caso se queira avançar e manter a improvisação em um patamar mais alto de utilização nesse gênero tão interessante e tão genuina-mente brasileiro de tocar. Fazer o que fez o jazz, se auto-revolucionando, mas não da forma como ele o fez, tendo em vista que as soluções encontradas são incompatíveis com a forma de pensar do músico de choro (melodia ver-sus harmonia). Há de se encontrar uma solução inovadora que possa partir da própria improvisação, mas para isso seria necessário dar mais espaço e importância a ela.

Rogério Costa, baseado no pensamento de Deleuze, dá uma explicação para o fenômeno da improvisação, que pode por sua vez explicar porque o choro reluta em ino-var: em um primeiro momento criam-se os territórios.

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Isso se dá por meio da repetição periódica dos compo-nentes, criando membranas que o separam do mundo exterior. Nesse início, existe apenas o plano, as maté-rias e as energias não formadas. Ainda não há qualidade nem permanência para se tornar forma. Não há ainda um discurso analítico, sistematizador. Só há virtualida-des sendo atualizadas. Em algum momento se atinge a “maturidade” (o segundo momento) do território com suas referências históricas e geográficas, possibilitando o idioma (o estilo), a expressão e a improvisação idio-mática, que depois de estabelecidos, oferecem resistên-cia às novas configurações. Por isso as mudanças são lentas e graduais. Os ritornellos (as tais repetições pe-riódicas), as redundâncias e tudo o que dá identidade e qualidade à performance, acabam gerando membranas tão espessas que acabam impossibilitando o ritmo e a produção. Surge então uma fórmula abstrata, um sis-tema de reprodução, uma superfície de captura e uma gramática, possibilitando a sistematização e a criação de uma escola a ser imitada (parte abstrata do idioma) (COSTA, 2003, p.75-6).

Nessa territorialização, um ser vivo estabelece suas mem-branas, seus territórios, seus limites, sempre a partir de procedimentos repetitivos. Porém, após a estabilização do território (o segundo momento), é preciso que se abram poros nas membranas constituídas e ai, o ritornelo apre-senta por sua vez um caráter dinâmico e não estático, de equilíbrio entre a atitude que visa a manutenção da identidade de cada meio em manter tal membrana e uma atitude inversa que visa sua diluição. Em outras palavras, da mesma forma que um plano tende a se territorializar, tende também a se desterritorializar, em um processo continuo e alternado que depende da fluência do ritmo entre os diversos meios e da permeabilidade da membra-na de cada um (COSTA, 2003, p.66).

Num terceiro momento, partem linhas de fuga por den-tro do território (pequenas escapadas, indisciplinas, que acontecem em direção ao caos: a viagem de Colombo) que vão lentamente desestruturando o idioma (desterri-torialização), e também as infiltrações do caos nos siste-mas fechados (as invasões). Aqui, há uma volta da produ-ção em um processo que o autor denomina de bricolagem (raspagem), onde acontecem as revoluções, as transfor-mações a partir do que existia. Assim nasceu o Bebop.

Sibila GODOY, também baseada em Deleuze, reflete pro-cesso semelhante vivido pelo músico Egberto Gismonti em suas renovações por meio da improvisação:

Na improvisação, num primeiro momento Gismonti se depara com o caos, para, a seguir, selecionar elementos heterogêneos e organizá-los num “espaço-limitado” onde ganham forma e autonomia expressiva. Coloca-do numa situação em que é obrigado a funcionar a partir do caos e depois numa organização do caos, o compositor se abre para forças futuras, arrisca-se im-provisando. Arriscando-se, descobre potências e essas

potências é que vão fazendo suas transformações ou o começo de transformações. Nesse processo de im-provisação em que Gismonti se liberta das formas de compreensão de mundo anteriores, consolida-se um novo território (GODOY, 2000, p.58).

4. Considerações finaisOs dois primeiros momentos (os dois primeiros ritornelos de Deleuze) descritos acima ocorreram no choro e no rag-time: nasceram do caos, consolidaram-se como estilos, criaram uma gramática e uma sistemática própria, cria-ram suas membranas separando-os do caos. Quanto ao terceiro momento (terceiro ritornelo de Deleuze), o que de fato ocorreu em relação a esses dois idiomas?

No ragtime, não houve o terceiro momento e o estilo tornou-se “clássico”, cristalizado, com membranas fecha-das para o novo, preferindo ser perpetuado nas partituras que ficaram para a posteridade. Nesse instante, nasce o jazz (seria ele o terceiro momento renovador?), que por sua vez, recusou o conformismo, mantendo sempre que possível as membranas abertas para outras possibilidades inovadoras e restauradoras, tendo a improvisação como importante ferramenta de experimentação.

Podemos dizer, seguindo o mesmo raciocínio, que o choro e os músicos de choro criaram membranas tão espessas que impossibilitaram a existência do terceiro momento descri-to acima, preferindo permanecer dentro do conforto ofe-recido pela tradição a se arriscar por novos horizontes. No entanto, temos ouvido cada vez mais intérpretes e músicos de choro buscando inovações, adotando a improvisação. Esperamos que essas intervenções permitam essa renova-ção que ainda não ocorreu nesse gênero musical. Permitir espaço para improvisação significa aqui renovação, revo-lução, como ocorreu no início, na gênese dos novos esti-los, inclusive no choro. Precisamos ainda considerar, como mostra a história, que a improvisação é o meio pelo qual essas novas descobertas serão conhecidas. É por meio dela que se consegue aglutinar ideias aparentemente desco-nexas em soluções criativas e originais que possibilitam a descoberta de um caminho novo, original.

O choro tenta manter a improvisação em seu escopo, como se disso dependesse sua própria vida, talvez sa-bendo que se ela desaparecer, ele também desaparecerá, cristalizando-se em uma forma por demais endurecida como ocorreu com o ragtime. A solução dos músicos de jazz, que no início também eram músicos de ragtime, foi manter a todo custo a vertente improvisacional, transfor-mando o ragtime, ou qualquer outra influência em jazz - uma forma libertária de tocar. Puderam, por meio dessa ideologia, alcançar um alto grau de desenvolvimento nas questões improvisatórias, que foram solucionadas pelas próprias possibilidades da habilidade. Curiosamente, o jazz consegue manter-se vivo e inovador, sendo o gênero mais influente e desenvolvido no uso dessa habilidade. Esperamos também que o choro encontre soluções ousa-das e personalizadas que permitam o desenvolvimento da

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improvisação em níveis mais acentuados. Sabemos, como mostra a história, que essas soluções serão encontradas por meio da própria improvisação, assim, quanto maiores forem as oportunidades, maiores serão as possibilidades de inovação. Resta acrescentar ainda o papel da educa-

ção nesse processo. É preciso estudar e sistematizar todo esse conhecimento adquirido em 130 anos de tradição, para que se possa então ter coragem e fundamentação para transgredir a ordem estabelecida, saindo em busca do terceiro momento inovador levantado por Deleuze.

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notas1 Tradução: Essa alegria de improvisar enquanto se canta e se toca um instrumento é evidente em quase todas as fases da história da música. Essa

foi sempre uma força poderosa na criação de novas formas, e todo o estudo histórico que se limita à prática ou às fontes teóricas que nos foram deixadas de forma escrita ou impressa, sem levar em conta o elemento de improvisação e a vivência da prática musical, deve ser considerado ne-cessariamente como algo incompleto, certamente um retrato distorcido. Pois quase não há um único campo na música que não tenha sido afetado pela improvisação, nem uma única técnica musical ou forma de composição que não tenha tido origem na prática improvisadora, nem que não tenha sido influenciado essencialmente por ela. Toda a história do desenvolvimento da música é acompanhada por manifestações de impulsos para se improvisar.

2 A venda de partituras para o piano foi sempre um aspecto muito relevante nesses gêneros e comprova que nessa fase a oralidade e a improvisação já não estavam mais presentes no ragtime. Em 1914 a partitura do rag “Maple Leaf Rag”, de Schott Joplin, publicada pela primeira vez em 1899, atinge a marca de um milhão de cópias (SAGER, 200?).

3 Um piano roll é um rolo de papel com perfurações acionado por um dispositivo conhecido como “bar tracker”. A posição e tamanho das perfurações no papel determinam quando e quais notas serão tocadas no piano. Assim que uma perfuração passa a nota soa. É, portanto, um meio de armazena-mento musical, utilizado para gravar, operar ou reproduzir um piano. Foi o primeiro meio que permitiu copiar industrialmente uma execução musical. Tiveram uma produção em massa a partir de 1896. Hoje eles foram substituídos por arquivos MIDI, uma forma moderna de armazenar e controlar os dados de uma execução, que podem por sua vez acionar via eletrônica, o mecanismo de um piano. Muitos softwares de música apresentam uma interface inspirada no piano roll, podendo ser muito mais precisa que a notação musical tradicional. (http://en.wikipedia.org/wiki/Piano_roll)

4 O texto encontra-se no site da Biblioteca do Congresso Americano << http://lcweb2.loc.gov/ diglib/ihas/loc.natlib.ihas. 200035811/default.html>> acesso em 19 de outubro de 2009. Nele não consta a data exata de sua publicação. Sabemos apenas que é posterior ao ano 2000, daí a não inclusão do ano neste texto.

5 Tradução: Ragtime: um estilo de composição musical para o piano, geralmente em compasso binário que contém um alto grau de sincopado na clave aguda, sobre o ritmo estável da clave grave (stead). Uma composição ragtime é geralmente composta de três ou quatro seções contrastantes, cada qual com 16 ou 32 compassos de duração.

6 Tradução: “Você já ouviu negros tocar piano de ouvido?...Eles usam o piano exatamente como um banjo. É um bom tocador de banjo, mas não um pianista”.7 Utilizaremos o termo “recursos verticais” para referendar os aspectos relativos à altura das notas musicais. São aspectos que não são basicamente

rítmicos (horizontais): são o sistema de afinação, os portamentos, os glissandos, a harmonia e uma série de sonoridades encontradas principalmente na música negra americana, e aqui se evidencia a influência religiosa. Esses aspectos são muito difíceis de serem transcritos no sistema de notação tradicional. É quase impossível escrever literalmente a interpretação de Ray Charles em Georgia on my mind. No entanto, ainda que isso pudesse ser realizado, seria impossível interpretá-la de forma semelhante utilizando apenas a partitura e quanto mais detalhada a partitura, maiores as chances de soar falso.

8 Os músicos de jazz sabem utilizar muito bem o piano no blues, buscando efeitos compatíveis com os outros instrumentos, como apogiaturas e clusters. Um bom exemplo a ser ouvido é o pianista Jelly Roll Morton (1890-1941), que se auto intitula o inventor do jazz com gravações disponíveis inclusive em piano-roll.

9 Não exatamente no mesmo instante, mas no momento em que tanto o rádio como o disco tornam-se populares e acessíveis à população em geral.10 A polca foi apresentada no Rio de Janeiro em 1845 e causou um verdadeiro fascínio nas Américas, servindo inicialmente ao gosto da recente classe

média surgida da revolução industrial. O ritmo em 2/4, em andamento allegretto transmitia uma vivacidade inédita e ao mesmo tempo coerente com a euforia econômica do momento. Essa dança de par unido, como a valsa, era tocada ao piano - um instrumento considerado mais aristocrático naquela época. Ela influenciou outros gêneros musicais provenientes da América do Sul a partir da metade do século XIX, como o choro e o tango. Não se tem certeza de que o ragtime americano tenha recebido essa influência. Não há dúvidas, porém, de que a sincopação desse estilo tenha tido suas raízes na música negra. José Ramos Tinhorão declara que o escritor Machado de Assis, que tinha como tema predileto para suas obras a vida carioca, mais especificamente a das elites e da alta classe média da segunda metade do século, cita a polca em oito de suas obras (TINHORÂO, 1991, p.59-60).

11 Interesse renovado por certo costume, tendência, estilo de música, de literatura etc. (In: HOUAISS)12 Conceito baseado na Ontologia. DELEUZE assim entende o território: “O território é primeiramente a distância crítica entre dois seres de mesma

espécie: marcar suas distâncias. O que é meu é primeiramente minha distância, não possuo senão distâncias. Não quero que me toquem, vou grunhir se entrarem no meu território, coloco placas” (DELEUZE & GUATARI, 1997, p.127). “O território é o produto de uma territorialização dos meios e dos ritmos. [...] Ele é construído com aspectos ou porções de meios. Ele comporta em si mesmo um meio exterior, um meio interior, um intermediário, um anexado. Ele tem uma zona interior de domicílio ou de abrigo, uma zona exterior de domínio, limites ou membranas mais ou menos retráteis, zonas intermediárias ou até neutralizadas, reservas ou anexos energéticos. Ele é essencialmente marcado por “índices”, e esses índices são pegos de componentes de todos os meios: materiais, produtos orgânicos, estados de membrana ou de pele, fontes de energia, condensados percepção-ação. [...] Há território a partir do momento em que há expressividade do ritmo. (DELEUZE & GUATARI, 1997, p.120-1).

13 Ações e repetições (ritornelos) dos seres vivos dentro dos territórios que têm dentre outras funções, delinear o território. Por exemplo, os diversos cantos dos pássaros.

14 Outro tipo de ação, o ritornelo do segundo tipo, uma força evasiva que parte de dentro do território para fora dele em busca do desconhecido (a viagem de Colombo).

César Albino é Mestre em Música pelo IA-UNESP, Bacharel em Saxofone e Licenciado em Música (FMCG). Estudou sa-xofone com Roberto Sion, José Carlos Prandini e Eduardo Pecci no CMBP e CLAM. Possui pós-graduação lato sensu em educação musical, área de concentração-Práticas pedagógicas (FMCG). Leciona improvisação, instrumento e prática de conjunto nos cursos de Bacharelado em Música popular da FMCG. É professor da Escola Técnica do Governo do Estado de São Paulo de Artes (ETEC) e da Escola de Música do Estado de São Paulo (EMESP). Autor dos métodos de saxofone (2003) e flauta transversal (2005) pela editora Gondine.

Sonia Albano é Doutora em Comunicação e Semiótica, área de Artes-PUC-SP; Pós-Doutora em Educação (GEPI-PUC-SP); Especialista em interpretação musical e música de câmara (FMCG); Bacharel em Direito (USP); Diretora e coor-denadora pedagógica dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação da FMCG; Professora do Mestrado e Doutorado em Música do IA-UNESP; pesquisadora do GEPI-PUC/SP; possui várias publicações em anais nacionais e internacionais, revistas, além de livros e coletâneas.

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Recebido em: 12/01/2010 - Aprovado em: 22/06/2010

Tiger Rag na interpretação do Le Quintette du Hot Club de France: história, análise e práticas de performance

Adriana Costa (Orquestra Opus, Belo Horizonte, MG)[email protected]

Resumo: Estudo sobre a assimilação do jazz na cultura popular francesa dos anos de 1930 e criação de uma sociedade de entusiastas desse estilo, especialmente em torno do Le Quintette du Hot Club de France. A transcrição e análise de Tiger Rag, música dos membros da Original Dixieland Jazz Band (Nick La Rocca, Eddie Edwards, Tony Sbarbaro, Larry Shields e Harry da Costa) na interpretação do Le Quintette (LE QUINTETTE DU HOT CLUB DE FRANCE, 1934, remas-terizado em 1993) revela suas práticas de performance, especialmente de seus solistas: Django Reinhardt, no violão, e Stephane Grappelli, no violino.Palavras-chave: Django Reinhardt; Stephane Grappelli; jazz na França, Le Quintette du Hot Club de France.

Tiger Rag as performed by the Quintet of the Hot Club of France: history, analysis and performance practices

Abstract: Study about the assimilation of jazz into French popular culture of the 1930s and the emergence of a society of jazz enthusiasts, especially around Le Quintette du Hot Club de France. The transcription and analysis of Tiger Rag, composed by the members of the Original Dixieland Jazz Band (Nick La Rocca, Eddie Edwards, Tony Sbarbaro, Larry Shields and Harry da Costa) and performed by Le Quintette reveal performance practices of its main soloists: Django Reinhardt on the guitar and Stephane Grappelli on the violin.Keywords: Django Reinhardt; Stephane Grappelli; jazz in France, Le Quintette du Hot Club de France.

1 - As origens do Le Quintette du Hot Club de FranceDepois de alguns anos de exposição ao jazz, os músicos franceses começaram a formar suas próprias bandas no final dos anos 1920. No começo, os esforços desses pio-neiros eram tênues em comparação com as bandas norte-americanas. Entretanto, no começo dos anos 1930, a Fran-ça se tornou um dos primeiros países europeus a produzir um grupo de músicos de jazz de reconhecida competência internacional. Para elevar o nível de compreensão e apre-ciação do jazz na França, Hughes Panassie, um entusiasta do jazz, criou e presidiu uma associação: o Hot Club de France (daqui para frente chamado apenas de Hot Club). O resultado mais importante do clube, entretanto, foi a formação de uma banda oficial para representar a orga-nização: Le Quintette du Hot Club de France (daqui para frente chamado apenas de Le Quintette).

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.23, 195 p., jan. - jul., 2011

Desde a sua formação em 1932, os diretores do Hot Club planejavam formar uma orquestra para enfatizar o valor do então chamado “hot” jazz. O pianista negro norte-americano Freddy Johnson liderou a primeira orchestra do Hot Club, a qual ele chamou de Os Harlemitas. John-son foi à França pela primeira vez em uma turnê com a orquestra de Sam Wooding em 1928; em 1929, ele fixou residência na França e formou sua própria banda. Os Harlemitas eram formados por Arthur Briggs no trompe-te, “Big Boy” Goodie no sax tenor, Peter Duconge na cla-rineta, Marceo Jefferson na guitarra, Juan Fernandez no baixo, e Billy Taylor na bateria (DELAUNAY, 1985, p.64).

Segundo Laurie Henshaw, que escrevia para a revista bri-tânica Melody Maker, Os Harlemitas “tocavam sucessos musicais com muito swing, sob a batuta de Freddy Jo-nhson” (HENSHAW, 1942, p.4; todas as traduções são da

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autora do presente artigo). Embora obtendo um suces-so considerável, Johnson deixou a França em 1934 para tocar na Holanda. Sentindo que a falta de uma banda oficial poderia diminuir o interesse do público pelo jazz, o secretário do Hot Club, Pierre Nourry, foi procurar um substituto a altura de Os Harlemitas.

Na época em que Johnson foi embora de Paris, ha-via muitos outros músicos norte-americanos de jazz tocando nos clubes e cabarés de Paris que poderiam assumir o papel de promover o hot jazz. A banda de Willie Lewis tocava no Florence na Rue de Blance; a banda do trompetista Harry Cooper tocava no Ponto 2 todo sábado à tarde e tinha exelentes músicos como o clarinetista Jerry Blake e o saxofonista Booker Pitman. No começo do verão de 1934, o presidente honorário do Hot Club, Louis Armstrong, passou 18 meses em Pa-ris, onde fez dois concertos na Salle Pleyel em novem-bro daquele ano. De acordo com o crítico e empresário de jazz francês Charles Delaunay, o Hot Club não tinha condições financeiras de contratar Armstrong, mas sua presença em Paris foi uma inspiração para os músicos parisienses. Portanto, até 1934, o Hot Club ainda não tinha uma banda oficial.

Apesar do grande número de músicos norte-americanos de jazz em Paris, os dirigentes do Hot Club sentiam a ne-cessidade de ter “uma banda apenas com músicos fran-ceses” (KENNEY, 1984, p.19). Acima de tudo, eles espe-ravam quebrar o mito vigente de que apenas os negros norte-americanos sabiam tocar jazz. No começo dos anos 1930, a ideia de “jazz francês” ainda era recebida com ceticismo. O musicólogo francês Blaise Pesquinne afirmou que, “não apenas é impossível para um francês escrever um bom jazz, mas, mesmo que conseguisse, não haveria ninguém para tocar” (JORDAN, 1934, p.280). Em 1933, entretanto, o jazz francês já apresentava um mo-vimento de expansão que permitia outras interferências, como pode ser exemplificado pela iniciativa do Hot Club que começou a misturar músicos franceses a norte-ame-ricanos nos seus concertos.

Em 10 de novembro de 1933, dois jovens músicos to-caram pela primeira vez no Hot Club: Noel Chiboust no trompete e Alix Combelle no saxofone (DELAUNAY, 1985, p.66). Em fevereiro do ano seguinte, o violonista Django Reinhardt, então com 24 anos, também se apresentou pela primeira vez. O crítico da revista Jazz Tango Jaques Bureau escreveu a respeito da performance de Reinhardt, “pode-se dizer que ele foi a revelação do concerto. Ele é um músico curioso com um estilo como nenhum outro” e concluiu “nós agora temos um grande improvisador em Paris” (DELAUNAY, 1985, p.64).

Enquanto os diretores do Hot Club procuravam por uma expressão francesa do jazz, ocorria também um mistura espontânea de músicos norte-americanos e franceses. A respeito de uma apresentação no Hot Club em março de 1934, a revista Jazz Tango observou: “Foi o fim do mundo

quando Andre Ekyan, Jungo [sic.] Reinhardt, seu irmão e Al Romans se juntaram à Banda do ‘Big Boy’. Foi um delírio encarnado, delírio que durou a noite toda” (DE-LAUNAY, 1985, p.64).

O jovem Django Reinhardt se destacou dos seus con-temporâneos franceses como um violonista que sabia improvisar. Nourry planejava começar uma banda com Reinhardt como líder, uma ideia que se tornou realidade quando o baixista Loius Vola formou uma banda para tocar na hora do chá no Hotel Claridge em Paris. Esta banda apresentava uma combinação de música popular e, ocasionalmente, jazz, onde tocavam os melhores mú-sicos de jazz da França. A banda de Vola revezava com a orquestra de tango de Manuel Pizarro. Enquanto a or-questra de tango tocava, os músicos da banda de Vola passavam o tempo livre nos bastidores. Num desses in-tervalos, o violinista Stephane Grappelli foi trocar uma corda de seu violino e encontrou o violonista Django Reinhardt tocando. Grappelli se recorda que Reinhardt “me pediu para tocar uma frase que ele tinha acabado de inventar. O resultado nos agradou e nós continua-mos tocando outras músicas” (GRAPPELLI, 1992, p.56). Dinah, uma canção popular dos anos de 1930 foi a pri-meira canção que eles tocaram juntos. No começo, eles tocavam para seu próprio divertimento, mas logo outros músicos começaram a notar a banda. Um dia, o irmão de Reinhardt, Joseph, se juntou ao duo fazendo o acom-panhamento no violão e Vola se juntou a eles no con-trabaixo. Os encontros diários no Hotel Claridge foram seguidos por ensaios à tarde no restaurante Alsace em Montmartre; o quarteto passou a causar sensação na pequena comunidade de jazz francesa.

A originalidade do grupo, tocando com instrumentos nor-malmente associados à música erudita, chamou a aten-ção de Pierre Nourry, o secretário do Hot Club. A princi-pio, Nourry tinha a intenção de contratar o quarteto para acompanhar um jovem cantor francês, Raymond Valeda. Em setembro de 1934, Nourry, convidou Charles Delaunay para ouvir o quarteto e ter uma segunda opinião. Delau-nay descreveu o que ele ouviu: “Lá em um canto, quatro homens tocavam uma música surpreendente pela sua veia melódica, pela delicadeza de sua improvisação, pela preci-são de seu acompanhamento” (DELAUNAY, 1985, p.70). A banda impressionou Delaunay. Ele previu uma coisa única: a ideia de que “jazz sem trompetes ou bateria” agradaria ao público francês (SMITH, 1987, p.61). Ele entendeu que pessoas que não gostavam de jazz com trompetes, iriam gostar de jazz com instrumentos de cordas. Além disso, os instrumentos de cordas formam a base da música clássica europeia e estariam mais em sintonia com o gosto francês “do que o som dos instrumentos de metal das bandas norte-americanas” (KENNEY, 1984, p.20).

Atraídos pela ideia de um grupo só com instrumentos de cordas, a diretoria do Hot Club sugeriu uma gravação do grupo com a gravadora Odeon. Para este propósito, o quar-teto adicionou uma terceira guitarra rítmica por sugestão

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de Reinhardt, que sentiu que deveria ter duas guitarras o acompanhando quando ele fazia os solos, assim como acontecia com Grapelli. Portanto, assim nasceu a combi-nação que se tornou a banda oficial do Hot Club. No final, Grappelli e Reinhardt eram os líderes do Le Quintette, com Joseph Reinhardt e Roger Chaput nas guitarras rítmicas e Louis Vola no contrabaixo. Embora este fosse o acordo inicial, logo no começo, Reinhardt já detinha o maior pres-tígio no meio jazzístico francês. Para melhor entender a singularidade do Le Quintette, vamos analisar sua música e compreender o desenvolvimento de suas figuras centrais.

2- Django Reinhardt (1910-1953)Reinhardt era cigano e herdeiro de uma tradição musi-cal que tinha como característica “a variedade rítmica, as síncopes, a música dançante, o virtuosismo, a paixão e a complexidade na improvisação” (KENNEY, 1984, p.17). Sua habilidade de construir um vocabulário musical vindo da tradição cigana, que incluía incríveis frases cromáti-cas, trilos, vibrato rápido, e aplicar estes efeitos ao jazz norte-americano, o tornou uma lenda do violão no jazz. O que também contribuiu para sua fama de Reinhardt foi o fato de que ele tocava passagens incrivelmente rápidas com apenas 2 dedos (indicador e médio) de sua mão di-reita. Isto se devia ao fato de que os outros 2 dedos (anu-lar e mindinho) ficaram paralisados devido a queimaduras decorrentes de um incêndio no trailer onde ele morava, quando tinha 18 anos de idade. Reinhardt conseguia oca-sionalmente tocar acordes usando os dedos paralisados.

Quando Reinhardt estourou na cena do jazz no final de 1934, seu impacto no desenvolvimento do violão como um instrumento solo no jazz foi inigualável. De 1928 até alguns meses antes de sua morte em 1953, Reinhardt gravou mais de 850 faixas, na maior parte jazz norte-americano, e também suas próprias composições. Até hoje, muitos o consideram como o único jazzman euro-peu a “ter dado à América um estilo instrumental novo tão influente quanto qualquer outro desenvolvido na pá-tria do jazz” (CHERRET, 2001, p.58). Este estilo teve mui-tos seguidores nos Estados Unidos e na Europa, e tornou-se mais tarde conhecido como gypsy jazz (jazz cigano).

Os solos de Reinhardt cheios de lirismo e virtuosidade lhe valeram o título de gênio. “Um gênio no jazz,” escreveu George Hoefer para a revista de jazz Down beat, é o ins-trumentista “que ao improvissar, o faz de uma forma tão genuína e inimitável, que foge de categorias pré-estabe-lecidas, como é o caso de Duke Ellington, Art Tatum e Django Reinhardt.” (HOEFER, 1966, p.21). Ao longo de sua carreira, Reinhardt obteve uma imensa fama tanto na Eu-ropa quanto nos Estados Unidos, onde, em 1946, foi um convidado por Duke Ellington para uma turnê.

3 - Stephane Grappelli (1908-1997) O outro solista do Le Quintette teve a difícil tarefa de ser parceiro de um gênio. Por causa da fama de Reinhardt, alguns críticos não reconheceram inteiramente a contri-buição de Grappelli para o quinteto, referindo-se a ele

simplesmente como “o violinista de Django” (MORGENS-TERN, 1967, p.18). A contribuição de Grappelli no desen-volvimento do Le Quintette, entretanto, não deve ser su-bestimada: ele era o principal arranjador do quinteto, além de ser o responsável pela transcrição das músicas, já que Reinhardt não sabia notação musical e tocava tudo de ouvido. Algumas das canções famosas do quinteto, como Minor Swing e Djangology foram escritas em parceria. Gra-ppelli fornecia estabilidade, responsabilidade, e manteve o grupo operante mesmo durante as inúmeras ausências de Reinhardt, que muitas vezes preferia jogar cartas a cumprir seus compromissos com o Le Quintette. Além disso, como explica Alain Antonietto, “o sucesso do grupo era devido, sobretudo, à mistura perfeita de temperamentos musicais que eram completamente diferentes, antagônicos mesmo” (ANTONIETTO, 1990, p.12). O estilo de Grappelli, cheio da elegância e imaginação, complementava o senso rítmico e harmônico de Reinhardt. Junto com outros pioneiros como Joe Venuti e Stuff Smith, Grappelli deu um passo à frente, introduzindo o violino como um instrumento que poderia ser usado no jazz. Ele de fato se tornou uma lenda do vio-lino no jazz. Grappelli, que foi o membro do Le Quintette com maior longevidade, morreu aos oitenta e nove anos, alguns meses após ter dado seu último concerto.

4-Gravações do Le Quintette du Hot Club de France Durante sua existência entre 1934 e 1948, Le Quintette realizou 265 gravações. Destas, 125 foram feitas entre 1934 e 1939 e tiveram Grappelli ao violino. Em 1940, no início da Segunda Guerra Mundial, o quinteto estava em turnê na Inglaterra, onde era muito popular. Grappelli de-cidiu ficar na Inglaterra durante a guerra, enquanto que Reinhardt e os outros membros do grupo retornaram à França, ocasionando uma cisão na história do quinteto. De volta a Paris, Reinhardt continuou a tocar e gravar com diferentes grupos. Um ano mais tarde, ainda sem um co-líder, Reinhardt remontou o Le Quintette (mantendo o nome original), substituindo Grappelli pelo clarinetista Hubert Rostaing. Em vez de uma segunda guitarra rít-mica, Reinhardt contratou o baterista Pierre Fouad. O Le Quintette com clarineta e bateria, “americanizado” em sua instrumentação, se tornou extremamente popular durante a ocupação nazista. Entre 1940 e 1943, o novo quinteto gravou pelo menos 27 faixas. Com o final da guerra, Grappelli retornou a Paris e o antigo quinteto foi reagrupado em 1946. De 1946 a 1948, o antigo quinteto (com Grappelli) e o novo (com o clarinetista Hubert Ros-taing) gravaram pelo menos 105 faixas.

5- origem do ragtimeO rag ou ragtime é um gênero musical precursor do jazz, originado com os negros da região do meio-oeste norte-americano e que alcançou grande popularidade entre o final do século XIX e meados dos anos de 1930. Inicial-mente idealizado para o piano, o ragtime absorveu in-fluências de formas musicais europeias, em particular a marcha (SCHULLER, 1968, p.34). Assim como ocorre na marcha, a forma do ragtime é baseada em uma estrutura

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de 4 seções, (com versos para cada seção, no caso do ragtime cantado) sendo que o Trio, que ocorre na terceira seção, geralmente há uma modulação para a subdomi-nante. Outras semelhanças entre as duas formas musicais são o andamento 2/4 ou 4/4 e, em muitos casos, a indi-cação Tempo de marcia, como no Maple Leaf Rag de Scott Joplin, um dos mais populares de todos os tempos.

Entre os compositores mais importantes de ragtime es-tão James Scott e Joseph Lamb, sendo que o primeirp ganhou maior notoriedade tanto nos Estados Unidos quanto no exterior, chegando a influenciar composito-res eruditos como Eric Satie, Claude Debussy e Charles Ives, que também escreveram neste estilo (TIRRO, 1993, p.19). A História do Soldado de Igor Stravinsky de 1918 traz, entre os seus movimentos e ao lado de um Tango e uma Valsa, um Ragtime, refletindo três estilos musi-cais dançantes em voga no período da I Guerra Mundial (BORÉM, 2003).

Embora a forma do ragtime varie de uma composição para outra, a estrutura mais comum segue a seguinte sequência:

Introdução: 4 c.Seção A: 16 c. com repetiçãoSeção B: 16 c. com repetiçãoSeção C ou Trio (modulação para a subdominante): 16 c. com repetiçãoSeção D: 16 c. com repetição

A harmonia empregada geralmente é convencional, ba-seada principalmente nas relações de tônica, dominante e subdominante. O ritmo geralmente se caracteriza por uma melodia sincopada que se apóia sobre uma linha não-sincopada no baixo (Ex.1).

6-Considerações gerais sobre a transcrição de Tiger RagTiger Rag foi gravada pelo Le Quintette em 1934 e re-lançado diversas vezes. A transcrição que serviu de base para o presente artigo (ORIGINAL DIXIELAND JAZZ BAND, 2011, veja a partitura completa neste volume de Per Musi às p.89-92 foi feita a partir de uma remaste-

rização de 1993 da Classics Records francesa (LE QUIN-TETTE DU HOT CLUB DE FRANCE, 1934, remasterizado em 1993). Nela, foi utilizado o sistema tradicional de notação com seus símbolos para dinâmica, fraseado, acentos e ataque. Entretanto, devemos lembrar, como Robert Witmer explica, que “a essência do jazz encon-tra-se precisamente nas características que a notação padrão não pode facilmente mostrar” (KERNFELD, 1988, p. 923). Portanto, elementos como sutilezas na afinação e ritmo são difíceis de representar no papel. Para forne-cer uma representação mais aproximada das gravações, alguns sinais e símbolos foram acrescidos. Por exemplo, ghost notes (“notas fantasmas”), cuja articulação sutil e quase que apenas percussiva as tornam características, são representadas por um “x”; os glissandi são notados com uma linha reta; o bend (“entortada”ou seja, ligeira caída na afinação seguida imediatamente por um retor-no à nota original) é notado como um “v”.

Tanto a Seção A quanto a Seção B têm oito compassos cada. Nesta transcrição, cada chorus (repetição com-pleta da forma), que ocorre na seção D é mostrado pela barra dupla na partitura e pelo número da repetição. A numeração dos compassos de cada chorus é sempre de 1 a 32. Assim, a indicação chorus 2 - c.23-24, por exemplo, significa os compassos 23 a 24 do segun-do chorus. Na discussão da transcrição, a oitava que vai do Dó central até o Si logo acima, será chamada de terceira oitava; assim, essas notas são designadas como Dó3 ao Si3; na oitava acima desta, são desig-nadas como Dó 5 a Si 5, e assim por diante. Outros elementos que aparecem na forma em Tiger Rag são uma coda e um break (interrupção curta da música du-rante um solo por todos, incluindo a seção rítmica). O sistema de notação da harmonia utilizado é o de sím-bolos de acordes baseado no nome das notas em inglês começando pelo Lá: A, B, C, D, E, F e G. Os acordes da transcrição anotados são os acordes ouvidos na grava-ção, embora os mesmos possam diferir dos acordes ori-ginais da canção. Todas as colcheias, a menos que seja indicado, soam como swing eights (“colcheias swinga-das”), ou seja, duas colcheias seguidas soam como uma semínima seguida de colcheia em tercinas.

Ex.1 – Típico padrão de melodia sincopada sobre baixo não-sincopado do ragtime.

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7 - Práticas de Performance em Tiger RagUma análise da transcrição da gravação de Tiger Rag (veja a edição de performance completa neste número de Per Musi) pelo selo Ultraphone (P-77162) revela bem o estilo do Le Quintette. Considerado um clássico do ragtime, Tiger Rag era tradicionalmente tocado em an-damento rápido; nesta versão do quinteto o andamento é a semínima a 165. A forma e harmonia originais da música são as seguintes:

Seção A: 8 compassos repetidos em SibMSeção B: 8 compassos em Fá MSeção A: 8 compassos em SibMSeção C (Trio): 24 compassos em MibMSeção D: 32 compassos em LábM

A versão do Le Quintette manteve a forma original. Na Seção A, c.1-8, em Sib M, Reinhardt e Grappelli tocam sua versão do tema em sextas paralelas como podemos observar no (Ex.2).

Na Seção B, nos c.10-17, o violino toca o novo tema em Fá M. Após o retorno da Seção A, nos c.18-25, segue a Seção C , o trio, (c.26-49) em Mib M. Nesta seção, Gra-ppelli toca uma frase diatônica descendente no c.26-27 que se distancia da melodia original, dando a ela um efei-to blues, ao tocar a terça do acorde como terça menor (a nota Solb 5, no c.26) e também a sétima como sétima menor (Réb 5, no c.27) sobre o acorde de Mib M (Ex.3).

Diferentemente do estilo de frases em legato de Grappelli, Reinhardt toca o próximo break de dois compassos

(c.28-29) com ataques percussivos (Ex.4). Aqui, Reinhardt explora seguidamente o motivo formado por três semicol-cheias cromáticas ascendentes, motivo que reflete uma téc-nica instrumental muito idiomática e comum no violão. Ao acentuar a primeira das três notas deste motivo, ele reforça a ideia de uma métrica ternária (3/8) dentro da rítmica bi-nária prevalente (2/4), recurso que se tornou cada vez mais comum na improvisação do jazz. O break é finalizado por uma extensão do motivo cromático, cujo caráter conclusivo é enfatizado pela aceleração do mesmo por meio de fusas.

A Seção D em Lá b M é a seção dos solos de improvisação, composta de quatro choruses. Reinhardt começa sua im-provisação no chorus 1 com uma anacruse de Lá b (sobre um acorde de Mi b M) no compasso 49, antecipando a tô-nica do acorde seguinte. Mas, ao invés de confirmar esta tônica e de uma maneira incomum para a época, ele toca a sétima maior do acorde (a nota Sol 4), como mostra o Ex.5.

Com uma palheta, Reinhardt era capaz de tocar tremo-li extremamente rápidos, como ocorre, por exemplo, no chorus 1 (c.21-24), uma habilidade provavelmente ad-vinda da tradição cigana. Grappelli começa seu solo no chorus 2 tocando um motivo de duas notas, Mib 6 e Dó 6 (c.1-5). Ele varia as duas notas mudando seu ritmo cada vez que elas aparecem. No chorus 2 (c.23 e c.25), Gra-ppelli toca notas blue: a sétima Dób 6 sobre o acorde de Db M. O chorus 3 começa com um solo do contrabai-xo (c.1-14) de Louis Vola consistindo de frases escalares, mas o que segue, ao invés de uma continuação da impro-visação, é um arranjo do grupo onde parte da melodia é executada pelo violino e, depois, pelo violão.

Ex.2 – Tema de Tiger Rag em sextas paralelas na performance de M, Reinhardt e S. Grappelli

Ex.3 – Notas blue em improviso de S. Grappelli em Tiger Rag.

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Grappelli antecipa sua improvisação no chorus 4 (o último) de uma maneira parecida com o chorus 3, isto é, alternan-do entre duas notas e variando seu ritmo, desta vez por sete compassos (c.145-151): o Láb 6 e o Fá 6, que são a tô-nica e a sexta do acorde de Láb M, respectivamente (Ex.6).

8 - Considerações finaisO violonista Django Reinhardt e o violinista Stephane Gra-ppelli lideraram, a partir de 1934 e por quase 15 anos, um dos melhores grupos de jazz que surgiram na Europa. No desejo de conciliar a música clássica com o jazz, a comu-nidade francesa interessada no gênero estimulou e apoiou a ascensão do Le Quintette du Hot Club de France. Nas big bands dos anos da década de 1930, a seção rítmica consis-tia principalmente de piano, guitarra, bateria, e baixo. En-tretanto, a originalidade do Le Quintette, formado por um violino e um violão solistas, acompanhados por dois violões e um baixo, aliados ao virtuosismo e genialidade de Django Reinhardt e Stephane Grappelli, contribuiu para uma nova formação instrumental no jazz e ajudou a elevar o nível de apreciação e de sua performance na França.

Até o começo dos anos de 1930, a maioria de músicos de jazz franceses imitava os jazzistas norte-america-nos, o que é ilustrado na fala do musicólogo de jazz William KENNEY (1984, p.22):

Phillipe Brun chegou a tocar bem o trompete num estilo al-tamente influenciado por Bix Beiderbecke. No começo de sua carreira, Andre Ekyan soava bem parecido com Frank Trum-bauer no saxofone do alto. O jovem Alix Combelle só pensava em Coleman Hawkins.

Entretanto, Reinhardt e, talvez com menos destaque, mas igualmente importante, Grappelli, se destacaram entre seus contemporâneos europeus, sendo os primei-ros a desenvolver um estilo altamente pessoal dentro do jazz na Europa. Sua importância histórica ainda pode ser observada pelas constantes re-edições das gravações do Le Quintette, que parecem ter um público sempre renovado.

O estilo de improvisação de Reinhardt e Grappelli pode ser verificado através de uma análise da transcrição de Tiger Rag, onde podemos também constatar a opinião comum, de que Reinhardt geralmente exibia uma impro-visação mais sofisticada do que Grappelli.

Ainda nos dias de hoje, bandas que tocam no estilo do Le Quintette podem ser encontradas em locais referenciais como o Hot Club of San Francisco, Hot Club of Detroit, e outros lugares em todo o mundo, demonstrando que o gypsy jazz e as tradições do grupo Le Quintette du Hot Club de France continuam vivas.

Ex.4 – Motivo cromático sugerindo métrica ternária na improvisação de D. Reinhardt na seção C de Tiger Rag.

Ex.5 – Improvisação de D. Reinhardt em Tiger Rag com ênfase na sétima maior.

Ex.6 - Improvisação de S. Grappelli em Tiger Rag utilizando apenas duas notas.

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Referências de textoANTONIETTO, Alain. Djangology. Notas do CD.EMI France, v.1-11, 1990, p.12.BORÉM, Fausto. O anticlímax da História do Soldado de Stravinsky: proporção, coerência harmônica e relação texto-

música na sequência Pequeno Coral, Canção do Diabo e Grande Coral. Em Pauta. v.12. Porto Alegre: UFRGS, 2003. p.131-154.

CHERRET, Ted, ed. The Genius that was Django Reinhardt. London: privately printed, 2001, p. 58. DELAUNAY, Charles. Delaunay’s Dilemma: De la Peinture au Jazz. Macon: Editions W, 1985, p.64.GRAPPELLI, Stéphane avec Joseph Oldenhove, Jean Marc Bramy. Mon Violon pour tout Bagage: Mémoires. Paris: Calmann-

Lévy, 1992, p. 56.HENSHAW, Laurie. “Swing Guitars.” Melody Maker Agosto 1942, p. 4. HOEFER, George. “The Magnificent Gypsy.” Down Beat 14 July 1966 : p. 21-24.JORDAN, Matthew F. “Jazz Changes: A History of French Discourse on Jazz from Ragtime to Be-Bop.” Ph.D. Disserta-

tion, Claremont Graduate School, 1998, p.281.KENNEY, William Howland. “Le ‘Hot:’ the Assimilation of American Jazz in France, 1917-1940.” American Studies 25

(Spring 1984): p. 5-24.KERNFELD, Barry, ed., The New Grove Dictionary of Jazz London: Macmillan Press, 1988, p.932, s.v. “Notation” by Robert

Witmer.MORGENSTEN, Dan. “Jazz Fiddle.” Downbeat 34 February, 1967, p.16-19.SCHULLER, Gunther. Early Jazz. Oxford University Press: New York, 1968, p.34.SMITH, Geoffrey. Stéphane Grappelli. London: Pavilion, 1987, p.61.TIRRO, Frank. Jazz.: A History. W.W.Norton& Company: New York, 1993, p.19.

Referência sonoraLE QUINTETTE DU HOT CLUB DE FRANCE. Tiger Rag. In: Chronological Django Reinhardt: 1934-1935. Classics Records,

França, remasterizado em 1993.

Referência de partituraORIGINAL DIXIELAND JAZZ BAND. Tiger Rag (1917) na performance do Le Quintette du Hot Club de France. Per Musi,

Belo Horizonte, n.23, 2011, p.xxx-xxx.

Adriana Costa é Mestre em Música e Doutora em Música pela Shennadoah University (EUA), violinista da Orquestra de Câmera OPUS, pesquisadora e professora de violino. Tem trabalhos publicados na área do jazz pela International Association of Jazz Educators Journal e Nottingham Univesity Press. Além disso, já apresentou trabalhos de pesquisa na International Association of Jazz Educators Conference nos EUA e na Hot and Cool Conference em Seysses na França.

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ORIGINAL DIXIELAND JAZZ BAND. Partitura de Tiger Rag (1917) na performance do Le Quintette ... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.89-92.

Recebido em: 21/12/2009 - Aprovado em: 15/03/2010PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.23, 195 p., jan. - jul., 2011

& bb 42

A solo de violino e violão em sextas paralelas (S. Grapelli + D. Reinhardt)

Ragtime swing q = 165

violino

violão

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C 7

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Jœ ‰ ‰ JœF

& bbA solo de violino e violão em sextas

paralelas (S. Grapelli + D. Reinhardt)

18 œœ œœ œœ œœBb œœ œœ œœ œœ œœ œœ œœ œœBb

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C solo de violino (S. Grapelli)

26 œ œ ≈ œb œ œ œ œEb

œ œ œb œ œ œ œ œEb

break instrumental(solo de violão sem acompanhamento: D. Reinhardt)

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Tiger Rag (1917)na performance do Le Quintette du Hot Club de France (1934)

Original Dixieland Jazz Band(Nick La Rocca,Eddie Edwards, Tony Sbarbaro,

Larry Shields e Harry da Costa)

Transcrição de Adriana Costa Ed. Adriana Costa e Fausto Borém

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ORIGINAL DIXIELAND JAZZ BAND. Partitura de Tiger Rag (1917) na performance do Le Quintette ... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.89-92.

& bbbsolo de violino (S. Grapelli)

30 œ œEb .œ œ œ œ œ œœnEb

break instrumental(solo de violão sem acompanhamento: D. Reinhardt)

..œœ œ .œ œ .œ œ .œ œntœ œ œ œ œ œn œb

&

& bbb

solo de violino (S. Grapelli)

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3

Eb œœ œœEb

‰ Jœ œ œ œEb œ œ œb

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3

3Bb7?

break(contrabaixo solo: Louis Vola)œ œ œ œ œ œ Œ &

solo de violino (S. Grapelli)

œ œ œBb7 œ œ œ œ

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solo de violão (D. Reinhardt)Chorus 1D1

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ORIGINAL DIXIELAND JAZZ BAND. Partitura de Tiger Rag (1917) na performance do Le Quintette ... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.89-92.

& bbbb

Chorus 2solo de violino (S. Grapelli)D2

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Chorus 3solo de contrabaixo (Louis Vola)D3

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ORIGINAL DIXIELAND JAZZ BAND. Partitura de Tiger Rag (1917) na performance do Le Quintette ... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.89-92.

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MOREIRA JÚNIOR, N. A..; BORÉM, F. Traços do ragtime no choro Segura ele de Pixinguinha... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.93-102.

Recebido em: 05/11/2009 - Aprovado em: 18/06/2010

Traços do ragtime no choro Segura ele de Pixinguinha: composição, performance e iconografia após a viagem a Paris em 1922

nilton Antônio Moreira Júnior (UNIRIO, Rio de Janeiro, RJ)[email protected]

Fausto Borém (UFMG, Belo Horizonte. MG)[email protected]

Resumo: Estudo analítico e comparativo sobre os choros Segura ele e Um a zero de Pixinguinha que, na histórica viagem do grupo de choro Oito Batutas a Paris em 1922, conviveu com músicos de jazz norte-americanos. Observam-se cara-cterísticas do ragtime em Segura ele a partir das gravações no CD Pixinguinha 100 anos, o qual inclui performances do compositor no saxofone e na flauta. Uma comparação entre elementos formais, harmônicos, rítmicos, motívicos, de instrumentação e iconográficos mostra que o choro de Pixinguinha foi influenciado em vários níveis pelo gênero popular norte-americano.Palavras-chave: Pixinguinha; choro; ragtime; música popular brasileira; análise musical.

Ragtime traces in the choro Segura ele [Hold him!] by Pixinguinha: composition, performance and iconography after the trip to Paris in 1922

Abstract: Analytical and comparative study about Segura ele and Um a zero, two choros by Brazilian composer and in-strumentalist Pixinguinha, who embarked to Paris in 1922, on the historical trip with his choro group Oito Batutas (Eight Smarties), where he met American jazz musicians. It shows traits of ragtime in Segura ele departing from the recordings of the works in the CD Pixinguinha 100 anos, which includes performances by the composer on both the saxophone and flute. A comparison among formal, harmonic, rhythmic, motivic, instrumentation and iconographic elements reveal that Pixinguinha´s choro style was influenced by the US popular music genre in several levels.Keywords: Pixinguinha; choro; ragtime; Brazilian popular music; musical analysis.

1 – IntroduçãoAlfredo da Rocha Vianna, mais conhecido como Pixingui-nha (1897-1973), deixou um grande número de composi-ções, especialmente choros, que se tornaram referenciais na música brasileira. A versatilidade da atuação de Pixin-guinha nesse gênero - no qual foi compositor, flautista, saxofonista, arranjador e regente – aliada à sua criati-vidade e curiosidade, o permitiu criar uma linguagem pioneira para suas demandas musicais, e que se tornou modelo para todas as gerações de chorões que se segui-ram (CABRAL, 1997, p.13). Uma comparação entre Um a zero e Segura ele, dois choros de sua autoria, mostra

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.23, 195 p., jan. - jul., 2011

que, apesar dessas músicas compartilharem elementos comuns do gênero, a segunda revela traços do gênero norte-americano ragtime.

Uma das ferramentas mais eficientes da nova musico-logia para se perceber o cerne da realização musical é a análise de gravações, a exemplo do que tem sido desen-volvido no CHARM (Centre for the HIstory and Analysis of Recorded Music) na Inglaterra, sendo uma de suas ver-tentes a transcrição musical baseada na audição atenta de gravações. A transcrição e análise de linhas solísticas

“ O artista é o melhor dos veículos para a aproximação dos povos” (Oscar Guanabarino, citado por MARIZ, 1989, p.62)

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e de acompanhamento, harmonias, ritmos, dinâmicas, articulações, instrumentação, timbres, efeitos instru-mentais e timing dos eventos musicais tem auxiliado na descrição estilística de importantes compositores e ins-trumentistas brasileiros (ALMEIDA, 2005; FABRIS, 2005; FREITAS, 2005; ARAÚJO COSTA, 2006; FABRIS e BORÉM, 2006; MOREIRA JUNIOR, 2006; GOMES, 2007; LINHA-RES, 2007; NUNES, 2007; SILVA , 2007; SOARES, 2007; MAGALHÃES PINTO, 2009; BORÉM e GARCIA, 2010; CANÇADO, W. 2010; COSTA-LIMA NETO, 2010; VALENTE, 2011; LINHARES e BORÉM, 2011).

A sistematização de características do choro proposta por ALMEIDA (1999) e corroborada por SANTOS (2001) é um importante referencial tanto para a análise composicional quanto para a identificação de práticas de performance do gênero. Idealmente, o cenário ideal para esta identifica-ção combina a percepção da música anotada e realizada, ou seja, as fontes primárias representadas por partituras e gravações. No caso de Pixinguinha, temos à disposição um rico acervo, constituído por partituras e leadsheets1 edi-tadas ou manuscritas e por gravações representativas de suas performances, ou de colegas com os quais comparti-lhava o que poderíamos chamar de estilo do choro.

Logo após a consolidação dos gêneros ragtime e blues nos Estados Unidos, na última década do século XIX, muitos grupos de músicos norte-americanos se bene-ficiaram de sua grande aceitação no meio musical eu-ropeu, ambos popular e erudito. Foram ágeis para logo absorver os traços marcantes do ragtime na sua música, compositores como Debussy (Goliwog´s cake-walk do ál-bum Children´s corner, 1908) e Stravinsky (Ragtime para onze instrumentos, 1918; o Ragtime de A História do soldado, 1918; Piano-Rag music, 1919) (KAMIEN, 1992, p.434; MACHLIS, 1990, p.476). A Paris do final do século XIX e início do século XX era considerada o centro cul-tural do mundo e atraía grandes artistas de toda parte. Bandas de jazz norte-americanas começaram a viajar para a Europa, levando o ragtime, já no ano de 1900 (SAGER, 2010) e, logo, se tornaram modelos para a mú-sica popular instrumental daquele continente. No final dos anos de 1920 já se observavam as primeiras bandas de jazz formadas por músicos franceses, pioneiros na Eu-ropa neste estilo. Em 1932, surgiu o Hot Club de France cujo Le Quintette atingiu reconhecimento internacional, especialmente com as brilhantes atuações de dois de seus membros: Django Reinhardt, no violão, e Stephane Grappelli, no violino (COSTA, 2011, p.82-88, neste volu-me de Per Musi).

Antes do início do processo de exportação de uma músi-ca tipicamente brasileira, a miscigenação, que sempre fez parte do longo processo de formação da cultura brasileira, acontecia dentro do país. A presença do lundu na música erudita, que remonta a 1819 na obra para piano O Amor brazileiro, foi possível com a vinda de um europeu – Sigis-mund Neukomm – para o Rio de Janeiro (APPLEBY, 1983, p.61; NEUKOMM, 2006). Entretanto, ao longo de todo o

século XIX, uma música que pudesse ser reconhecida como genuinamente brasileira – surgida no meio popular e não no círculo erudito – permaneceu dentro de nossas fron-teiras e não recebeu o patrocínio imperial, como a mú-sica marcadamente europeia de Carlos Gomes, Leopoldo Miguez, Henrique Oswald, Francisco Braga e Alberto Ne-pomuceno, para citar alguns (APPLEBY, 1983, p.28-93). Só em 1923, após a Semana de Arte Moderna, é que H. Villa-Lobos conseguiu se mobilizar para ir à França mostrar sua música, fato que ainda é considerado o principal marco da produção de uma música nacional fora do país. Entretanto, a ida de Pixinguinha com seu grupo a Paris é anterior - coincide com o ano da Semana de Arte Moderna de 1922. Assim, podemos considerar Pixinguinha um dos primeiros casos, senão o primeiro, em que coincidem, no exterior, a exposição de uma música nacional e a absorção de ele-mentos de uma música estrangeira.

Pixinguinha, em última análise, também atenderia à mo-dernidade advogada por Mário de ANDRADE (1942, p.15) e seus colegas, sintetizadas em três princípios: (1) a atu-alização da inteligência artística brasileira (por exemplo, levando sua música a um centro artístico mundial, Paris), (2) a pesquisa estética (por exemplo, miscigenando esté-ticas diferentes, como a do choro e a do ragtime) e (3) a consolidação da criatividade brasileira (por exemplo, tornando-se o modelo do choro por excelência, apesar dos riscos de reinventá-lo). A universalidade de Pixinguinha, de que nos fala BASTOS (2005; veja mais detalhes à frente), é bem ilustrativa pelo fato de envolver três países: o Brasil (a música original), a França (o local) e os Estados Unidos (a influência). Esse processo de hibridação, que pode ser observado historicamente na música brasileira, se tornaria cada vez mais comum ao longo do século XX, envolvendo praticamente todos os principais movimentos da música popular, como a chanchada, a bossa-nova, a jovem guarda, o tropicalismo, o Clube da Esquina, o rock brasileiro etc.2

Da viagem de Pixinguinha com os Oito Batutas à França, Sérgio Cabral nos fala como o contato com músicos norte-americanos implicou em inúmeras mudanças na vida mu-sical dos músicos brasileiros:

“os integrantes dos Oito Batutas falaram da convivência com os músicos de quatro jazz-bands, com os quais chegaram a tocar jun-tos” CABRAL (1997, p.80).

“Além de Pixinguinha na flauta e no sax, Palmieri no bandolim e China no vocal e no violão, os novos Oito Batutas passaram a contar com um pianista (J. Ribas), um pistonista (Bonfiglio de Oli-veira...), um trombonista (Euclides Galdino), um baterista (Eugê-nio de Almeida Gomes, o Submarino) e mais um saxofonista (Luís Americano)” CABRAL (1997, p.35).

Rafael José de Menezes Bastos também fala deste con-tato de Pixinguinha com a música norte-americana em Paris em 1922, destacando que

“foi a partir dessa jornada que Pixinguinha começou a criar víncu-los musicais e compatibilizar sua música com o jazz, que na época se encontrava em franco processo de se estabelecer como o novo universal da música popular” BASTOS (2005, p.179).

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Propõe-se, neste estudo de caso, explicar práticas de per-formance nos choros de Pixinguinha a partir dos aconte-cimentos históricos e de seus reflexos nas suas partitu-ras e gravações. Para isso, o recorte das fontes primárias limitou-se à análise de duas obras: Um a zero, escolhida por ser emblemática das características do choro e por ter sido composta provavelmente em 1919 (apesar de ter sido gravada pela primeira vez apenas em 1946 e Segura ele, por ter sido composta em 1929 (após a viagem de 1922 de Pixinguinha à França) e conter mudanças esti-lísticas que refletem a influência do ragtime. Ambos os choros têm gravações históricas incluídas no CD Pixin-guinha 100 anos (PIXINGUINHA, 1998), disco que tem a participação do próprio compositor como instrumentis-ta: no choro Segura ele, Pixinguinha toca flauta e, em Um a zero, toca saxofone (ficando o solo de flauta nesta música por conta de Benedito Lacerda). Para este estudo, além das gravações de Pixinguinha, serão utilizadas como fontes primárias as leadsheets de Um a zero e Segura ele editadas por CARRASQUEIRA (1997).

Há controvérsias sobre a data de composição de Um a Zero. Alexandre Zamith Almeida relata o ano de 1949 e atribui uma co-autoria a Benedito Lacerda (ALMEI-DA,1999, p.151). Carlos Sion e Tarik de Souza, no texto do encarte do CD Pixinguinha 100 anos, afirmam que sua gravação é anterior, de 1946 (SION e SOUZA,1997), o que contradiz a informação de Almeida. Por outro lado, pers-pectiva que adotamos, Sérgio Cabral defende que a obra remonta a 1919, período em que Pixinguinha e Lacerda ainda não trabalhavam juntos, e que sua composição te-ria sido inspirada na conquista do Campeonato Sul-Ame-ricano pela seleção brasileira de futebol, na qual venceu a seleção uruguaia por um a zero (CABRAL, 1997, p.49).

Esses dois choros foram escolhidos para ilustrar o contras-te estilístico em Pixinguinha, como compositor e como in-térprete. Em Um a zero, tomado aqui como representante de um “grupo de controle”, pode-se observar claramente a presença dos elementos tradicionais do choro (ALMEIDA, 1999; SANTOS, 2001). Já em Segura ele, embora algumas características do choro permaneçam, verificam-se tra-ços de uma forte influência do ragtime norte-americano, cujas características são descritas por Tânia Mara CAN-ÇADO (1999) e pelo próprio compositor e pianista norte-americano do início do século XX, Scott Joplin, considera-do o maior expoente do gênero (CHASE, 1957).

2 – Vestígios iconográficos da mudança estéti-ca na música de Pixinguinha e dos Oito BatutasA documentação iconográfica da produção de Pixingui-nha revela sua relação com o gosto do público e suas mu-danças em função de sua “modernização” após a viagem a Paris no início de 1922. Quatro anos antes, no Rio de Janeiro de 1919, Pixinguinha liderou a criação de os Oito Batutas, cuja formação inicial tinha ele próprio na flauta e Donga (violão), China (canto, violão e canto), Nélson Alves (cavaquinho), Raul Palmieri (violão), Jacob Palmie-ri (bandola, pandeiro e reco-reco), José (“Zezé”) Alves de

Lima (bandolim e ganzá) e Luís de Oliveira (bandola e reco-reco) (CABRAL, 1997, p.45; MARCONDES, ed., 1998, p.583), para tocarem na sala de espera do cinema Palais, no Rio de Janeiro.3 Essa formação de os Oito Batutas, é bem próxima da instrumentação dos chamados regionais 4 que predomina até hoje nos grupos de choro, se ocupava de apresentar um repertório, nos primeiros anos de exis-tência do grupo, exclusivamente de músicas brasileiras, como mostra um programa apresentado em 7 de julho de 1921 (CABRAL, 1997, p.68):

1º - De bocca em bocca. (Samba)2º - Remeleixo (Choro) por A. Vianna (seu autor)3º - Bem te vi (Poesia de Catullo Cearense), por O. Vianna. 4º - Agueia Chiquinha (embolada), por João Pernambuco.5º - Preto Limão e Bernardo Nogueira (Desafio), por O. Vianna e J. Pernambuco.6° - Graúna (Grande Choro), pelo exímio flautista Pixinguinha.

A crescente popularidade do grupo permitiu que Pixingui-nha juntamente com os Oito Batutas viajasse pelo Brasil - São Paulo e Minas Gerais em 1919, Bahia e Pernambuco em 1921 - e se preparasse para vôos mais altos - Paris em 1922 e Argentina em 1923. Curioso e ávido, Pixinguinha procurava a cor da música local em cada região que toca-va. Pelo Brasil, notou as diferenças regionais. No programa de concerto acima, percebe-se a inclusão de dois gêneros nordestinos – a embolada e o desafio, além de uma com-posição original sua com versos do poeta, teatrólogo, can-tor e compositor maranhense Catulo da Paixão Cearense (1866-1946) (MARCONDES, ed., 1998, p.190).

A estadia de os Oito Batutas em Paris, financiados pelo milionário Arnaldo Guinle (MARCONDES, ed., 1998, p.583), foi longa. Durou aproximadamente seis meses e ocasionou mudanças profundas na estética do grupo, es-pecialmente a partir da convivência com músicos norte-americanos na cena musical eclética da capital cultural (BASTOS, 2005). Pixinguinha trouxe, de Paris, um saxofo-ne para si (MARCONDES, ed., 1998, p.634). Notadamente, estas mudanças ocorreram na instrumentação, na inclu-são de novos gêneros e na forma de arranjar:

As influências do jazz, sofridas no exterior, tornaram-se evidentes, pela inclusão de saxofones, clarinetas e trompetes, pela utiliza-ção de arranjos instrumentais no estilo das jazz bands e pelas alterações no repertório, que passou a incluir fox-trots, shimmys, ragtimes e outros ritmos estrangeiros da moda (MARCONDES, ed., 1998, p.584).

A nova instrumentação do grupo mudou substancialmen-te sua sonoridade. Em muitas músicas houve a substitui-ção de instrumentos tipicamente brasileiros - como o cavaquinho e o pandeiro - por outros, populares nos esta-dos Unidos - como o banjo e a bateria. Um programa de concerto de 1923 com a relação das músicas de um show realizado na cidade de Santos (CABRAL, 1997, p.68), já após o retorno de os Oito Batutas da França, explicita o caminho híbrido escolhido:

1º Marcha “Meu passarinho” (Jazz Band Os Batutas)2º Fox trot “Positively Absolutely” (Delsol and Nata)3º Fox-blue “224” Effeito de Pistão (Jazz Band Os Batutas)

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4º Dança Americana (Miss. Nata)5º Electrico – Solo de saxophone (Euclides)6º Tango Argentino “Roxo” (Trio dos Batutas)7º Dança excêntrica “Lucky Day” (Mr. Delsol)8º Courdy Fox (Jazz Band Os Batutas)9º One step (Delsol and Nata)10º Samba “Não posso comer sem molho” (Jazz Band Os Batutas)11º Fantasia do “Charleston” (James Black)

Observa-se aí a inclusão de gêneros relacionados às ban-das de ragtime norte-americanas, como a marcha militar, o fox trot, o blues e, ainda que com denominações pouco claras, alusões a uma “dança americana”, a uma “dança excêntrica”, a um “one step”, e ao “Charleston”. Em meio ao maciço abandono da música nacional que se observa neste programa, há lugar até para um “tango argentino”. A internacionalização de os Oito Batutas é também visível na própria maneira de se dirigir ao público, em que pode ser inferida certa valorização da cultura estrangeira, em detrimento da nossa, na excessiva utilização da língua inglesa: o programa denomina o grupo de “Jazz Band”; a preposição que une os co-autores do Fox trot “Positively Absolutely” é um “and” e não um “e”; há um espaço pri-vilegiado para solos de trompete e saxofone. Em meio às onze peças apresentadas, há apenas um gênero brasileiro: o samba “Não posso comer sem molho”, mas que, mesmo assim, é tocado por uma “Jazz Band”.

3 – Aspectos do choro tradicional em Um a zeroSe as origens do choro remontam ao final do século XIX e tem referências fundamentais na obras de Chiquinha Gonzaga, Joaquim Calado e Ernesto Nazareth (VERZONI, 2000) com outras designações como maxixe, tango brasi-leiro e polca, foi somente a partir da década de 1910 que o termo choro se consolidou (CAZES, 1998). Como acon-tece em muitos dos gêneros musicais populares, os mais conhecidos compositores de choro tendem a ser seus me-lhores intérpretes FERRER (1996). Pixinguinha surgiu com as primeiras gerações dos chamados chorões e ainda é considerado seu maior expoente.

Um a zero, seja na sua partitura ou na gravação incluída no CD Pixinguinha 100 anos, é tomado aqui como mode-lo do choro por diversas razões. Ele confirma a formação instrumental do regional tradicional das rodas de choro: solistas (flauta e saxofone realizando contrapontos) e acompanhantes (violão, cavaquinho e pandeiro). Os solis-tas são esporadicamente substituídos por outros instru-mentos melódicos, como a clarineta e o bandolim, entre outros. A informalidade na convivência e na realização musical, verificada no ambiente das rodas de choro por LARA FILHO, SILVA e FREIRE (2011, p.148-161, nesse vo-lume de Per Musi), parece se refletir na realização rítmica mais relaxada do gênero, que se traduz em síncopas, como veremos em alguns exemplos, tanto nas linhas melódicas, quanto nas linhas de acompanhamento.

Ex.1 - Baixo condutor harmônico realizado pelo violão 7 cordas na gravação de Um a zero (CD Pixinguinha 100 anos).

Ex.2 – Contracanto de Pixinguinha na gravação de Um a Zero (CD Pixinguinha 100 anos).

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Na gravação, observa-se claramente o “baixo condutor harmônico”, descrito por ALMEIDA (1999) e SANTOS (2001), no início da repetição da Seção A (Ex.1), baixo cujos graus conjuntos e ritmo sincopado o aproximam da natureza melódica dos solos.

Estudando traços típicos da música popular brasileira, Acácio PIEDADE (2011, p.103-112, nesse volume de Per Musi) destaca a tópica “brejeiro”,5 muito encontrada no choro e caracterizada por “. . . subversões, brincadeiras, desafios, exibindo e exigindo audácia e virtuosismo, mas tudo isto de forma organizada, elegante, altiva, por ve-zes sedutora, maliciosa.” Encontramos esse elemento nos contracantos improvisados ao saxofone por Pixinguinha, que além da função ornamental melódica, ainda cum-prem a função de condução harmônica para o solo de flauta de Benedito Lacerda, como pode ser observado nos c.1-4 de Um a zero (Ex.2). Nesses contracantos podemos também observar ainda as antecipações típicas da flexi-bilidade rítmica do choro, o graus conjuntos e cromatis-mos observados também na linha do baixo.

No acompanhamento harmônico, pode-se observar a pre-sença do timbre penetrante do cavaquinho que realiza um padrão sincopado característico (Ex.3).

Quanto à interpretação do solista Benedito Lacerda, podemos observar a liberdade rítmica com que toca a melodia, sem a preocupação de alinhamento vertical com o acompanhamento. Algumas notas são anteci-padas, ilustrando o caráter que SANTOS (2001, p.5) descreve como uma “realização do ritmo de forma re-laxada em relação ao pulso”. O Ex.4 mostra primeiro, os c.5-6 da Seção A de Um a zero como normalmente aparecem nas partituras da música e, depois, a trans-crição da realização do mesmo trecho na interpretação de Benedito Lacerda.

O Ex.5 também mostra, nos c.49-51, além de mais duas ocorrências desse tipo de antecipações, duas simplifica-ções rítmicas na realização de Benedito Lacerda, da Se-ção C de Um a zero, o que é também outra característica na performance do choro.

Ex.3 – Acompanhamento sincopado do cavaquinho em Um a zero (CD Pixinguinha 100 anos)

Ex.4 – Ritmo em trecho de Um a zero (c.5-6 da Seção A) na partitura e na sua realização antecipada por Benedito Lacerda (CD Pixinguinha 100 anos).

Ex.5 – Simplificação melódica e antecipações em trecho de Um a zero (c.49-51 da Seção C) na partitura e na sua reali-zação por Benedito Lacerda (CD Pixinguinha 100 anos).

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4 – Aspectos do ragtime em Segura eleO ragtime surge no fim do século XIX nos Estados Unidos, como um desdobramento e fusão das plantation songs� com os cakewalks. A veiculação e refinamento dessa ex-pressão artística afro-norte-americana acontecia princi-palmente no ambiente musical dos minstrel shows :

“Os cantos acompanhados ao banjo dos músicos negros das plan-tations haviam sido a principal fonte da música que os músicos brancos criaram para a minstrelsy antes da Guerra Civil. . . Nas dé-cadas subsequentes à guerra, o estilo dos músicos de banjo e o rit-mo empertigado do cakewalk fundiram-se num novo tipo de mú-sica para piano que se chamou ragtime”. (SABLOSKY, 1994, p.91)

No livro Do salmo ao jazz, CHASE (1957, p.397) destaca a proximidade entre os gêneros, argumentando que “... uma pequena lacuna separa as mais genuínas canções mins-trel do século dezenove do autêntico estilo ragtime que emergiu poucas décadas depois”, lacuna que do ponto de vista instrumental foi preenchida pelo piano, que se tor-nou característico ao estilo na sua migração das fazendas para os bares e salões das cidades. A disseminação do ragtime nas cidades levou ao surgimento de uma varie-dade de intérpretes do gênero:

“. . . entre 1890 e 1920, havia ragtime bands, cantores de ragtime, tocadores de banjo no ragtime, e, juntamente com os pianistas de ragtime que tocavam apenas a música escrita, havia também pianistas de ragtime que improvisavam” (GRIDLEY, 1988, p.42).

O afro-americano Scott Joplin (1868-1917) tornou-se o mais popular compositor e pianista americano do gênero, “conhecido no final do século XIX como o Rei do Ragtime” (GROVE, 1994, p.479). No seu estilo de maturidade, Joplin chegou a uma fusão entre a herança escrava e a escrita da música europeia de salão.

Mas o caminho do ragtime até a música brasileira não foi o mais curto, mas sim via Europa. BASTOS (2005, p.180) fala da presença de cakewalk, seu precursor, na França:

“Desde o final do século XIX e início do XX, a França já vinha sendo “invadida” pelas danses exotiques e danses nouvelles (Apprill e Dorier-Apprill, 2001, p.31). As primeiras incluíam tudo que fosse estrangeiro; as segundas, especialmente as manifestações artísticas provindas das Américas – o cake walk norteameri-cano, o tango argentino, o maxixe brasileiro, o paso doble espanhol, a rumba cubana, entre outros”.

Na gravação de Segura ele, podemos reconhecer muitos elementos do choro tradicional, como aqueles observados em Um a zero. Um dos elementos comuns entre o choro e o ragtime é sua estrutura formal a qual, assim como em di-versos outros gêneros populares, é baseada no rondó ABA-CA. Mas traz também, e integrados à sua textura, elemen-tos estranhos à roda tradicional de chorões e que podem ter significado uma grande mudança estilística na época.

Em depoimento a VALENTE (2011)?? sobre as diferenças na improvisação no choro e no jazz e suas relações com as mãos esquerda e direita no piano, Nailor “Proveta” de Azevedo fala da natureza da linha do baixo em ambos os gêneros: melódi-ca e ritmicamente mais criativa no brasileiro, e mais contrita e subserviente à linha dos solistas no caso norte-americano. No ragtime, isto é bastante perceptível na rítmica de ori-gem militar do acompanhamento simples, característica que CANÇADO (1999, p.172-174) descreve como um “constante ritmo de marcha na linha do baixo”, marcha que pode ser ouvida na gravação de Segura ele no CD Pixinguinha 100 anos (Ex.6). Outro elemento característico do ragtime, e es-tranho ao choro tradicional, perceptível na audição desta faixa é a presença do banjo na instrumentação.

Outra característica na gravação de Segura ele, que pode ser rela-cionada ao ragtime, é o padrão rítmico cubano chamado cinquillo, observado no banjo e que, por meio de uma síncope sobre o segun-do tempo, resulta em cinco notas por compasso (daí a origem do nome em espanhol, como mostra o Ex.7). Segundo CANÇADO (1999, p.152), esse padrão rítmico seria uma variação das “oito semicol-cheias com uma ligadura entre os tempos”, comum no ragtime.

Ex.6 – Padrão rítmico da marcha militar do ragtime observado na linha do baixo (instrumento não identificado) de Segura ele no CD Pixinguinha 100 anos.

Ex.7 – Padrão rítmico do cinquillo cubano realizado pelo banjo em Segura ele no CD Pixinguinha 100 anos.

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5 – Considerações finaisA postura aberta de Pixinguinha em relação ao conta-to com outras culturas permitiu que ele absorvesse e incorporasse elementos que contribuíram na formação de seu estilo musical maduro e eclético. Suas deman-das por uma música mais universal passam, primeiro, por uma ampliação de seus horizontes dentro do próprio país e, depois, fora dele. Sua estadia em Paris, em 1922, juntamente com seu grupo Oito Batutas, significou uma rica via de mão dupla, em que ele levou, pioneiramente, uma cultura musical genuinamente brasileira e conso-lidada à Europa e trouxe, na bagagem, instrumentos, formas de tocar e de se relacionar com o público que ampliaram a estética e vocabulário do choro.

Na gravação de Um a zero, composta antes da viagem de Pixinguinha à França, vimos que ele e Benedito Lacerda optaram por uma interpretação mais atenta às características tradicionais do choro. A instrumen-tação privilegia o cavaquinho, o violão, a flauta, e o pandeiro (apesar da sonoridade presente do saxofone, já incorporado no choro à época da gravação, mas não na época da composição). Do ponto de vista da reali-zação rítmica, percebe-se o ritmo sincopado (mesmo nas linhas de acompanhamento) e a liberdade rítmica do solista em relação ao pulso.

Por outro lado, na gravação de Segura ele, composta após a viagem de Pixinguinha à França, vimos que ele rompe com cânones do choro tradicional ao buscar inspiração nos rag-times das jazz bands e nos elementos formativos deste gê-nero norte-americano com os quais teve contato. Na instru-

Finalmente, recorremos à fala do maior compositor de ragtimes, Scott Joplin, para reconhecer outra possível influência deste gênero na interpretação de Segura ele por Pixinguinha. Em um método no qual pretendia en-sinar como tocar sua música, Joplin (citado por CHASE, 1957, p.408-409) diz que, para se obter os efeitos mu-sicais que desejava, era necessário dar “. . . a cada nota a sua duração exata e observando escrupulosamente as ligaduras” e também que “. . . os exercícios estão har-monizados na suposição de que cada nota será tocada conforme está escrita, visto que o sentido que se quer dar à música depende disso e também da duração exata que se dá às notas.” De fato, na gravação de Pixinguinha de Segura ele há um grande cuidado em alinhar verti-calmente a melodia com a linha do baixo, evitando-se as assincronias decorrentes da liberdade rítmica do cho-ro tradicional (especialmente antecipações e atrasos), como aquelas observadas na gravação de Um a zero, na performance do próprio Pixinguinha.

Tematicamente, podemos estabelecer uma conexão entre o choro Segura ele e um dos mais famosos ragtimes de todos os tempos, o The Entertainer de Scott Joplin. Trata-se de um motivo formado por uma apojatura seguida de sínco-pa. Este motivo ocorre nas seções C de ambas as músicas (Ex.8). Em Segura ele, este motivo (com as mesmas notas!) é utilizado primeiro na cabeça do tempo e sem a síncopa e, depois, deslocado como anacruse. Esse deslocamento é um desafio rítmico para ouvidos não acostumados ao repertó-rio, pois dá a sensação de uma métrica ternária (um 3/8) na rítmica tradicionalmente binária do choro, o que pode explicar o título escolhido por Pixinguinha.

Ex.8 – Motivo comum entre a Seção C (c.53 e c.55) do ragtime The Entertainer de Scott Joplin e a Seção C (c.33-34) do choro Segura ele de Pixinguinha.

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mentação, inclui a sonoridade exótica do banjo. Na linha do baixo, recorre aos ritmos militares simples e sem síncopas. Ainda no acompanhamento, incorpora o ritmo do cinquillo nas levadas de preenchimento harmônico. Nesse ambiente, o molejo e flexibilidade brasileiros dão lugar a uma verticali-dade sincrônica à qual o solista, ele, procura se ater.

Atestam também esta mudança estética em Pixinguinha e na história do choro brasileiro, por conseguinte, as no-vidades e modismos que se observam na comunicação entre os chorões e seu público, como a inclusão de gê-neros musicais estrangeiros nos concertos, a adoção de

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tos da hibridação entre o choro e o jazz. Per Musi, v.13. Belo Horizonte: UFMG, 2006. p.5-28.

termos na língua inglesa nos títulos das composições e suas descrições nos programas impressos.

Se houve uma falta de apoio governamental à primeira música de fato brasileira a ser ouvida na Europa e uma relativa subestima nos círculos eruditos, Radamés Gnat-tali, possivelmente o compositor que melhor sintetizou e compreendeu a integração entre as músicas erudita e a popular no Brasil, buscou reparar essa negligência histórica, homenageando-o como personagem central em um dos movimentos de sua Suite retratos (LIMA, 2011,p.113-123, nesse volume de Per Musi).

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nilton Moreira é Doutorando em Música pela UNIRIO, Mestre em Música e Bacharel em Flauta Transversa pela UFMG. Atualmente é bolsista do CNPq, sendo orientado pelo professor Sérgio Barrenechea. Foi orientado no Mestrado pelos professores Maurício Freire e Fausto Borém na UFMG, onde foi bolsista da CAPES. Estudou com Artur Andrés, Toninho Guimarães, fez máster classes com os professores Michel Debost (França), Michael Heisel (Alemanha), Renato Axelrud, Odette Ernest, Andréa Ernest, Toninho Carrasqueira, entre outros. Atua junto à Orquestra Filarmônica do Espírito Santo como músico convidado. Já atuou como músico convidado junto à Orquestra Sinfônica Nacional e Orquestra Ouro Preto. Foi professor da Universidade Vale do Rio Verde, no curso de Licenciatura em Música em 2007 e 2008 e professor de Flauta Transversa na Faculdade de Música do Espírito Santo em 2009. Na área da MPB, integra o Sexteto Patápio Silva, com o qual tem um CD gravado. Ganhou os concursos Jovem Solista da UFMG (2003), Jovem Músico BDMG (2004) e “Orquestra para Todos” da Orquestra Sinfônica Brasileira (2005).

Fausto Borém é Professor Titular da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde criou o Mestrado em Música e a Revista Per Musi. É pesquisador do CNPq desde 1994 e seus resultados de pesquisa incluem um livro, três capítulos de livro, dezenas de artigos sobre práticas de performance e suas interfaces (composição, análise, musicologia, etnomusicologia e educação musical) em periódicos nacionais e internacionais, dezenas de edições de partituras e apresentação de recitais nos principais eventos nacionais e internacionais do contrabaixo. Recebeu diversos prêmios no Brasil e no exterior como solista, teórico, compositor e professor. Acompanhou músicos eruditos como Yo-Yo Ma, Midori, Menahen Pressler, Yoel Levi, Fábio Mechetti, Luiz Otávio Santos, Arnaldo Cohen, Antônio Menezes e músicos populares como Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, Henry Mancini, Bill Mays, Kristin Korb, Grupo UAKTI, Toninho Horta, Juarez Moreira, Tavinho Moura, Roberto Corrêa e Túlio Mourão. Participou do CD e DVD O Aleph de Fabiano Araújo Costa.

notas1 Lead sheet é uma partitura simplificada, geralmente de músicas populares, que “geralmente inclui apenas a melodia e os acordes simplificados na

forma de cifras e, algumas vezes, detalhes rítmicos (“convenções”) ou de instrumentação. (FABRIS, 2005).2 Para algumas discussões sobre hibridação na música popular brasileira, veja PIEDADE (2011; neste volume de Per Musi) e ALBINO e LIMA (2011;

neste volume de Per Musi); para estudos de caso sobre K-Ximbinho, veja FABRIS e BORÉM (2006); COSTA e CASTRO (2011; neste volume de Per Musi) e VALENTE (2011; neste volume de Per Musi); sobre Hermeto Pascoal, veja BORÉM e GARCIA (2010) e COSTA-LIMA NETO (2010); sobre Victor Assis Brasil, veja LINHARES e BORÉM (2011; neste volume de Per Musi); PINTO (2011; neste volume de Per Musi), MAURITY (2006); PIEDADE (1985) e PIEDADE (1999).

3 O número de músicos no grupo dos Oito Batutas, mais tarde renomeado simplesmente como Batutas, variou ao longo de sua história, chegando a contar com 12 membros (MARCONDES, ed., 1998, p.584).

4 O regional de choro é um grupo instrumental geralmente formado por instrumentos de acompanhamento, como o cavaquinho, violão de 7 cordas, violão de 6 cordas (opcional), pandeiro e outros instrumentos de percussão (opcionais), e instrumentos solistas, como a flauta, clarineta, bandolim, cavaquinho e acordeom.

5 Tópicas são figuras de retórica utilizadas como elemento característicos de expressão e de sentido na música. Veja mais em PIEDADE (2011, 2007).6 Plantation songs são canções autênticas dos negros das fazendas do sul dos Estados Unidos no final do século XIX, normalmente apresentadas em

espetáculos dos brancos e geralmente acompanhadas pelo banjo (GROVE, p.11). 7 Minstrel shows eram espetáculos de variedades, nos quais intérpretes de rostos pintados de preto parodiavam os negros, onde se cantavam as plan-

tations songs e o cakewalk (GROVE, p.11).8 Para outras semelhanças e diferenças entre o choro e o ragtime, veja ALBINO e LIMA (2011), às p.71-81 nesse volume de Per Musi.

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Recebido em: 29/01/2010 - Aprovado em: 22/06/2010

Perseguindo fios da meada: pensamentos sobre hibridismo, musicalidade e tópicas

Acácio Piedade (UDESC, Florianópolis, SC)[email protected]

Resumo: Discussão sobre os conceitos de hibridismo, musicalidade, fricção e fusão de musicalidades e tópicas da musi-calidade brasileira. O objetivo é refletir sobre a questão da mudança e a transformação nos gêneros musicais, bem como a da permanência de elementos e figurações musicais que, por sua vez, carregam consigo nexos sócio-culturais e históricos que, de alguma forma, são experimentados pelos músicos e audiências. Tendo como foco questões da música brasileira, este artigo apresenta a busca de tópicas musicais (“brejeiro”, “época-de-ouro” e “nordestina”) como uma ferramenta para enfrentar o problema das transformações no mundo da música. Palavras-chave: hibridismo; musicalidade; tópicas musicais; música brasileira.

Pursuing clues to the puzzle: thoughts on hybridism, musicality and topics

Abstract: Discussion about concepts such as hybridism, musicality, friction and fusion of musicalities, and the topics of the Brazilian musicality. It aims at reflecting on the question of the change and transformation in musical genres, as much as that of the permanence of musical elements and figurations that, in its turn, carry socio-cultural and historical connec-tions that are somehow experienced by musicians and audiences. Focusing on questions of the Brazilian music, this article presents the search for musical traces called topics (“brejeiro” [maliciously smart ], “época-de-ouro” [good times], and “nor-destina” [northeasterly Brazilian]) as a tool to face the problem of the transformations in the world of music.Keywords: hybridism; musicality; musical topics; Brazilian music.

1 - HibridismoFala-se muito de hibridismo nos estudos de música popu-lar, principalmente no que tange à constituição e mudan-ça nos gêneros e linguagens musicais. Gostaria de refletir sobre este conceito. Para os gregos antigos – tomemos este ponto como originário -, a hybris nomeava uma for-ça excessiva que violava as leis naturais. Esta ideia foi sendo historicamente transformada e filtrada, primeira-mente pelos romanos antigos e depois pela cultura eu-ropeia dos primeiros séculos, passando pelo sentido de transgressão de parentesco em direção àquele do orgulho que rompe com a lei moral. No século XIX, Mendel con-solidou o uso de termo híbrido para nomear organismos

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.23, 195 p., jan. - jul., 2011

criados artificialmente a partir do cruzamento de espé-cies naturais. Trata-se da criação de um novo corpo: nos termos da genética atual, um novo DNA. No campo das humanidades, o termo hibridismo aparece como metáfora biológica já em escritos oitocentistas sobre raças huma-nas. O paradigma evolucionista imperava no pensamento antropológico, e temos aqui não apenas o uso do termo hibridismo em um contexto que hoje entendemos como racista, como também a ideia de que o hibridismo, apli-cado ao mundo social, porta um componente ideológico, uma remissão à questão de poder, seja isto consciente ou subliminarmente. Este vínculo congênito tem sido re-

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velado especialmente nos estudos do pós-colonialismo (BHABHA, 1994). Tomando os processos de mudança e fertilização cruzada como legítimos agentes das forças de poder no mundo, o discurso anti-essencialista do hi-bridismo permeia várias teorias da globalização há pelo menos duas décadas (ver CANCLINI, 1995).

Atualmente, aparentemente estamos longe dos sentidos antigos de hybris, nós que habitamos o mundo da velo-cidade e da mudança: o excesso e a transformação pare-cem ter-se instaurado no calor da sociedade ocidental e aí serem tomados como processos naturais. Digo “calor”, aqui, no sentido levi-straussiano de sociedades quentes (LÉVI-STRAUSS, 1989), ou seja, aquelas que concebem o devir como História, dirigindo-se para o futuro através do progresso e da transformação tecnológica. Note-se que, para LATOUR, a modernidade é iniciada pela separação entre mundo social, mundo natural e religioso, e a própria palavra “moderno” implica em uma mediação entre estes mundos, onde há misturas de gêneros completamente no-vas, os “híbridos de natureza e cultura” (LATOUR, 1994). O processo de hibridização seria, desta forma, congênito ao espírito moderno e à sociedade quente ocidental.

Na literatura das humanidades, as transformações da cultura e a criação de categorias híbridas não são enten-didas como uma violação da natureza, nem como ato da soberba humana que se põe acima da moralidade, e nem sempre como processos que envolvem ideologias implíci-tas. No entanto, talvez um pouco de tudo isso esteja em jogo quando olhamos para os fenômenos cobertos pela metáfora do hibridismo no campo da cultura, e talvez possa haver laços com o sentido originário.

No contexto da temática do hibridismo na virada do séc. XX para o XXI, podemos perguntar: as teorias do hibri-dismo cultural anunciam este estado híbrido como uma nova roupa da cultura? A hibridez cultural depende do multiculturalismo? O hibridismo surge como uma con-sequência da modernidade? Muitas destas questões já se encontram bem trabalhadas na vasta literatura das ciências sociais a respeito1. Gostaria de pontuar aqui as seguintes questões: o corpo híbrido traz em si elemen-tos divergentes que, uma vez incorporados, pacificam-se mutuamente? Senão há uma paz, haveria ao menos uma lei social necessária para regular os elementos hi-bridizados, e então será que o corpo híbrido é regulado por um terceiro, que coloniza os elementos no processo de hibridização? Gostaria aqui de pensar estes pontos no campo da música.

De início, vamos identificar dois tipos de hibridismo: cha-memos de hibridismo homeostático aquele que pressupõe o corpo híbrido como domesticado, equilibrado, onde há uma real fusão, ou seja, A deixa de ser A enquanto tal e B deixa de ser B enquanto tal para que se encontrem em conjunção na construção de um novo corpo estável, C, o híbrido; no outro tipo de hibridismo não há fusão, nem equilíbrio, A não pode deixar de ser A, e nem B pode fazê-

lo, ambos estando dispostos em um corpo que não é C, mas AB. Em AB, é importante que A se mostre como A e que B se mostre como B. Mais propriamente, A necessariamente se afirma enquanto A perante B e vice-versa. A é contras-tivo em relação a B no corpo AB, cujo cerne é justamente esta dualidade. Se este corpo AB, no qual a identidade de A e B se apresentam conjunta e contrastivamente, pode ser chamado de híbrido, então podemos falar aqui de um hibridismo contrastivo.

Assim, vamos considerar o hibridismo na música. Vamos falar de A e B em AB não como suas seções formais, mas como motivos ou frases específicas em modos determinados, pro-gressões harmônicas típicas, ritmos padronizados, timbres denotativos, ou combinações de tudo isso em estruturas cur-tas. Creio que, ao menos na música, na maioria dos casos se trata do segundo tipo de hibridismo, o contrastivo, e é por isso mesmo que eu gostaria destacar a importância da retóri-ca musical aqui. Em AB, o elemento A está ali para ser ouvido enquanto A, e o elemento B também se apresenta como B, para o ouvinte. Cada um deles tem um papel na expressão musical e por isso são criados para serem reconhecidos. Ou seja, na composição musical, tanto quanto na improvisação, a enunciação destes elementos é voltada para a audiência em busca de compreensão. Isto configura o viés expressivo, a necessidade de comunicação, a retórica por trás do hibridis-mo contrastivo. Vou retomar isto mais adiante.

Uma das limitações da abordagem acima é que ela é vol-tada para o objeto em si, mas talvez no campo da música o microscópio deva se tornar um macroscópio, pois o ob-jeto, música, porta consigo necessariamente nexos sócio-culturais e históricos cuja imbricação semântica com os sons torna difícil considerá-los exteriores. Ou seja, os fa-tos culturais que permeiam e constroem os gêneros mu-sicais fazem parte do objeto tanto quanto os sons. Claro que podemos isolar os sons, criar partituras, observar os mecanismos musicais, analisar tecnicamente, trata-se de um passo fundamental no entendimento dos processos teóricos em música, mas no momento em que se preten-de lançar um olhar compreensivo2, é necessário recompor a integridade do objeto. Nesta direção, vamos pensar a retórica por trás hibridismo através dos conceitos de mu-sicalidade e de tópicas musicais.

2 - MusicalidadeEm estudos sobre o jazz brasileiro (PIEDADE 1997, 2003, 2005, 2010; PIEDADE & BASTOS 2007), musicalidade é uma memória musical-cultural compartilhada constituída por um conjunto profundamente imbricado de elementos musicais e significações associadas. A musicalidade é de-senvolvida e transmitida culturalmente em comunidades estáveis no seio das quais possibilita a comunicabilidade na performance e na audição musical. Vamos entender aqui comunidade no sentido de agrupamento social com valores compartilhados, como em BAUMAN (2003), seja este grupo territorializado ou não3. Qualquer grupo social é sujeito a permanentes transformações, daí que “estabi-lidade”, aqui, significa uma duração historicamente ob-

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servável de um agrupamento, à qual se atribui significân-cia em termos metodológicos.

Mais do que uma língua musical, portanto, musicalidade é uma audição-de-mundo que ativa um sistema musical-simbólico através de um processo de experimentação e aprendizado que, por sua vez, enraíza profundamente esta forma de ordenar o mundo audível no sujeito. No jazz brasileiro, chamado de pelos nativos de “música instrumental”, há uma relação típica com o jazz norte-americano que é ao mesmo tempo de tensão e de síntese, de aproximação e de distanciamento. A forma como a musicalidade brasileira e a norte-americana se encon-tram no jazz brasileiro confere com a ideia de hibridis-mo contrastivo: as tópicas musicais presentes nos temas e improvisações estabelecem uma relação de fricção de musicalidades4. Esta revela a sua relação com discursos sobre imperialismo cultural norte-americano, identidade brasileira, globalização e regionalismo.

Entretanto, a musicalidade não é um sistema fechado e imutável. Um indivíduo pode tentar desenvolver seu ouvido musical em um outro sistema musical, e com isso ele está desenvolvendo uma outra musicalidade, o que significa o exercício de uma competência em uma pedagogia estética sonora particular. O que HOOD (1960) chamou de “bi-mu-sicalidade” começou a apontar nesta direção. O que hoje se torna claro é que este processo de musicalização envolve decisões eminentemente sócio-culturais, e estas são toma-das ainda que inconscientemente. Ou seja, um indivíduo pode buscar tornar-se nativo de uma comunidade musical através de uma autodeterminação em absorver aquela for-ma particular de musicalidade, mas este afinco necessaria-mente inclui elementos simbólicos que coordenam os ne-xos sócio-culturais da musicalidade: estes fazem parte do pacote absorvido pelo estudante. Por isso, a musicalidade não está no indivíduo, não depende de sua habilidade, mas se encontra sim na comunidade e seus gêneros musicais, que estão em permanente trânsito e transformação.

Falamos de hibridismo contrastivo e fricção de musicali-dades, mas e o hibridismo homeostático na música, seria possível? Esta situação de contraste ou conflito poderia ser um período transitório que tenderia à construção de uma estabilidade de gênero? E este poderia reiniciar o ciclo entrando em fricção com outro conjunto? A fricção pode ser vista como uma fase de um processo que leva a um estado de homeostase que se poderia chamar de “fu-são de musicalidades”. Como a musicalidade é uma me-mória, as musicalidades constituintes da fusão não mais se farão distintas no mundo nativo e não haverá, portan-to, nenhuma fricção. Para que esta fusão pudesse ocorrer seria necessário que os elementos sócio-culturais ineren-tes às musicalidades, referentes a aspectos existentes no mundo social das comunidades musicais, também entras-sem, de alguma forma, em alguma espécie de diluição. O conflito existente no contraste haveria de ser apaziguado por um consenso ou acordo: este seria eminentemente simbólico, pois a desigualdade é congênita ao mundo

social. Sobretudo, é o tempo histórico que possibilita a fusão. Creio que este movimento de fusão é permanente na história da música e que é justamente este processo que está na base da invenção das tradições (HOBSBAWM & RANGER, 1983): uma tradição é sempre entendida pe-los nativos como realidade homeostática, porém há na sua origem um acordo esquecido, um contraste diluído. Há que haver um esquecimento do contraste inicial: a tradição é A que, na verdade, é um C, ou seja, um AB. Se não houvesse este tipo de esquecimento, a humanidade não poderia ouvir música, pois toda a multiplicidade ime-morial de gêneros e elementos que fundam as músicas se exporia diante de nossos ouvidos.

O esquecimento ou a naturalização da diferença são, de fato, processos congênitos da memória e, portanto, da história (ver RICOEUR, 2000; ZUMTHOR, 1997). Sobretu-do, sem o esquecimento de que o tradicional, o gênero “raiz”, é na verdade um híbrido, produto da circulação transnacional das ideias musicais, as comunidades não poderiam chamar alguma música de tradicionalmente sua. O tradicional é transnacional por natureza. Na histó-ria da música, há o constante desenrolar de um proces-so de fricção e fusão de musicalidades: tópicas, estilos e gêneros contrastivos são reunidos e diluídos em outros de sua espécie, e estes, por sua vez, avançam, formando novas tópicas, estilos, gêneros, unidades com identidade própria que podem vir a se fundir.

O que eu gostaria de destacar é que, quando se fala de “influência”, trata-se de reconhecer as musicalidades constituintes de um estilo, seja pela análise das mais evidentes, contrastivas, ou por uma arqueologia que revela mesmo no mais auto-regulado dos estilos uma diversidade de vínculos distantes. Por exemplo, no caso da linguagem musical de J. S. Bach, já é bem conhecido o fato de que este compositor estudou muito a música barroca italiana, conhecendo profundamente os estilos de Frescobaldi, Vivaldi, Corelli, e formas como concerto e ricercare (ver WOLFF et al, 2010). Para o ouvinte regular contemporâneo, entretanto, este eco se encontra fun-dido na musicalidade bachiana, juntamente com outras musicalidades que constituem seu estilo. Além disso, o estudo da integridade sócio-cultural das musicalidades nesta fusão pode revelar aspectos sociais, políticos e re-ligiosos importantes para uma compreensão mais funda da música, da pessoa e do tempo de Bach: nexos ativos, reconhecidos na sua época, como as figuras de retórica, e mesmo outros mais subliminares, relacionados a ques-tões políticas e sociais (MCCLARY, 1987). Outro exemplo é a presença da modinha na música brasileira, já exaus-tivamente estudada (VEIGA, 1998). Dada como gênero atualmente extinto, a modinha teve grande sucesso no Brasil a partir do século XIX, principalmente na corte (ver MONTEIRO, 2008), e penetrou na musicalidade brasileira de forma definitiva, sobrevivendo através de tópicas tre-mendamente ativas em vários repertórios da música bra-sileira5: trata-se de uma parte fundamental do universo de tópicas época-de-ouro (adiante tratarei mais disso).

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Pode-se mencionar também a musicalidade caribenha no samba-canção, via bolero (ARAÚJO, 1999), que marcou uma parte importante da bossa nova: tópicas caribenhas estão vivas em diversos repertórios brasileiros, especial-mente a batida de bongô. Estes casos podem ser consi-derados exemplos de fusão de musicalidades, pois apa-rentemente não há conflito inerente: ao contrário, parece ter havido um consenso tácito na geração destes gêneros que lançou para o esquecimento a multiplicidade original (que, no entanto, não deixa de existir e de se revelar seja no discurso do senso comum quanto na análise). Haveria centenas de exemplos como estes a dar: de fato, creio que este processo de fricção e fusão de musicalidades se dá constantemente em vários sistemas musicais do mundo todo. Acho que o cenário das musicalidades, como aque-le das culturas, é de permanente encontro, intercâmbio e mudança ocorrendo em diferentes intensidades e ve-locidades. Há setores da música mundial que são mais propensos às mudanças rápidas, enquanto outras regi-ões musicais trabalham mais pela permanência. Ou seja, usando novamente o conceito de Lévi-Strauss, creio que há musicalidades frias e quentes.

Muitas vezes se utiliza o conceito de hibridismo para tra-tar da imbricação de elementos estilísticos que sintetizam uma obra ou gênero musical. Esta mistura de elementos é normalmente positivada, tomada como índice de comple-xidade ou sofisticação. Pressupõe-se assim a possibilidade de síntese, de fusão, mas esta nem sempre implica em uni-dade, ainda que a consciência perceptiva tenda de início a tomar o corpo sonoro como uno e estável. Tenho trabalha-do a noção de tópicas musicais da musicalidade brasileira para tentar identificar e isolar estes elementos A e B que são utilizados em largo espectro em diversos repertórios da música brasileira, com a particularidade de se fazerem contrastivos entre si a ponto de se destacarem no tecido musical e de portarem remissões significativas a elemen-tos culturais. Estes elementos, creio, podem ser agrupados em um número reduzido de categorias gerais, os universos de tópicas. Entre os universos de tópicas mais centrais da musicalidade brasileira, há as tópicas “brejeiro”, “época-de-ouro” e “nordestinas”. Abaixo vou apresentar um resu-mo destes três universos de tópicas, conforme exposto em PIEDADE (2007) e PIEDADE & BASTOS (2007).

Ex.1 - Cadências “nordestinas” em Sol.

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3 - TópicasDesde cedo, na literatura, o nordeste se apresentou como Brasil profundo, e a musicalidade nordestina levou a um universo de tópicas muito importante na música brasi-leira. Não basta ser dórico ou mixolídio, com ou sem 4ª aumentada, para levantar uma evocação do nordeste: é preciso que estas alturas apareçam em figurações es-pecíficas, como a cadência nordestina. No Ex.1, acima, encontra-se a cadência nordestina em Sol com variações adequadas ao dórico e ao mixolídio.

As tópicas nordestinas são peças-chave do repertório do baião, e dali migraram para uma parcela enorme dos gê-neros musicais brasileiros. Criou-se o mito do nordeste musical, o mistério do nordeste profundo, que foi fonte exuberante para compositores nacionalistas e continua sendo, passando por Elomar, o movimento armorial, o jazz brasileiro e muitas outras paragens.

O brejeiro é aquele estilo em que as figurações apare-cem transformadas por subversões, brincadeiras, desafios, exibindo e exigindo audácia e virtuosismo, mas tudo isto de forma organizada, elegante, altiva, por vezes sedutora, maliciosa. Trata-se de um gesto eminentemente individu-alista: o indivíduo se destaca da massa, como que zom-bando de sua regularidade e previsibilidade monótona. O brejeiro está profundamente relacionado a alguns gêne-ros, como o choro, ali transparecendo originariamente no papel do flautista dos grupos formados no final do século XIX, que usualmente desafiava seus acompanhantes com frases irregulares e rápidas, exibindo algum virtuosismo instrumental. O brejeiro na musicalidade brasileira se

manifesta no gingado da capoeira: o corpo faz gestos surpreendentes, o oponente toma uma rasteira e cai. O brejeiro se consolida na figura mítica do malandro, que ginga a sociedade com seus pés, desafia a legalidade com sua esperteza. Ou seja, desloca o tempo forte e o acentua no fraco, realiza a “quebrada”, ataca uma nota com uma ornamentação cromática que causa a impressão de erro, mas que revela a precisão de uma transformação brejeira. Vou apresentar alguns exemplos, alguns destes já men-cionados em BASTOS (2008), onde há vários exemplos de tópicas no choro e no jazz brasileiro. Um exemplo é o bem conhecido deslocamento rítmico da segunda parte de Lamentos, de Pixinguinha, conforme mostra o Ex.2:

A métrica do choro é tipicamente bastante regular, de modo que estes deslocamentos se destacam como figura-ções bem marcantes. No Ex.3 temos outro deslocamento rítmico brejeiro que se dá no início do choro Um a Zero, de Pixinguinha.

É interessante notar que esta melodia foi escrita para flauta, de modo que o trecho remete ao canto insistente de um pássaro que atravessa a música. O brejeiro também se apresenta na composição Joaquim Virou Padre, de Pi-xinguinha, nas suas subidas e descidas cromáticas surpre-endentes para os anos 20 e que lembram a irreverência de Thelonius Monk em Well You Needn’t, de 1957. As tópicas brejeiro aparecem também no tom lascivo e debochado de algumas melodias que vão ser importantes na gafieira, notadamente nos solos de trombone, mas já no Trombone atrevido, também de Pixinguinha, as notas repetidas evo-cam esse espírito. No choro Na Glória, de Ary dos Santos

Ex.2 - Deslocamento “brejeiro” em Lamentos.

Ex.3 - Deslocamento “brejeiro” em Um a Zero.

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e Raul de Barros, esta tópica brejeiro aparece na terceira seção. Esta parte se inicia com arpejos sincopados de Si bemol, lembrando um toque militar carnavalizado, e em seguida aparece uma tópica bebop (ver PIEDADE 1997, 2003; PIEDADE & BASTOS, 2007) que, aliás, muitas ve-zes é executada com swing de jazz. Em seguida, citações diretas brejeiramente evocam o militar, com o hino do expedicionário e a cerimônia de casamento, com trecho da marcha nupcial de Mendelssohn. Vejamos esta densa passagem no Ex.4, acima.

A citação direta é mais do que simplesmente uma paró-dia, é uma “citação em contexto” (PIEDADE, 2005): tí-pica desta do espírito brejeiro, trata-se de encaixar um tema na estrutura da peça que está sendo executada um tema, de forma que este outro tema seja reconheci-do pela audiência. Há um contexto específico em toque: este encaixe envolve estratégia, perícia, malícia brejeira, e isto também deve ser reconhecido pela audiência. Eis aqui uma situação típica da retórica. Ao mesmo tempo, o tema citado porta uma significação própria que, injetada no tecido que lhe acolheu, cria uma conotação implícita. Neste caso, há claramente uma paródia à rigidez mili-tar, mas também uma referência aos Estados Unidos via tópica jazz, e por fim, o casamento, talvez índices que apontam para o quartel e a igreja do bairro. De qualquer forma, a audiência ela mesma costura estas significações, ainda que tacitamente.

O universo de tópicas época-de-ouro inclui floreios me-lódicos das antigas modinhas, polcas, valsas e serestas brasileiras. A execução de traços destas melodias orna-mentadas evoca a simplicidade, a singeleza e o lirismo do Brasil antigo. Este Brasil profundo se expressa em floreios

melódicos em certas frases, padrões harmônicos, orna-mentação típica (muitas apojaturas e grupetos) que estão fortemente presentes nas modinhas, polcas, no choro e, a partir daí, em vários outros repertórios de música bra-sileira, e mesmo em segmentos de obras de um estilo completamente diferente do ambiente época-de-ouro. Para ficar com Pixinguinha, o Ex.5 apresenta um trecho da valsa Rosa com várias tópicas época-de-ouro, como o grupeto, o volteio e as apojaturas 6-5 e 2-1.

Este tipo de figuração vem adentrando a musicalidade brasileira aos poucos ao longo do século de XIX e se con-solida na obra de compositores como Ernesto Nazareth, que se inspirava no lirismo romântico europeu de compo-sitores como Chopin (MACHADO, 2007). Surge em modas, polcas, maxixes, sambas, marchas-rancho, obras eruditas de compositores como Villa-Lobos, Camargo Guarnieri, Francisco Mignone, canções de Chico Buarque, temas de Hermeto Pascoal, improvisos de Toninho Horta, enfim, é uma faceta viva da musicalidade brasileira que traz como nexo simbólico a nostalgia, a flecha que aponta para o passado, o interno, a tradição, a raiz. Como veremos adiante, trata-se de uma ficção absolutamente necessá-ria para que haja vínculo social. Estes universos de tópi-cas flutuam acima da divisão entre o erudito e o popular, em uma esfera onde, articulados entre si e com outras musicalidades que surgem, são discursos fundamentais para imaginar a música brasileira.

Gostaria de comentar aqui um aspecto das tópicas épo-ca-de-ouro: é o conjunto de tópicas “de banda”. Um dos nós da musicalidade brasileira encontra um nexo nas bandas militares. A formação aparentemente chega ao Brasil com a corte de D. João VI (BINDER, 2006), as ban-

Ex.4 - Tópicas “brejeiro” na terceira seção de Na Glória.

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copa. O Ex.6, acima, traz um esquema simplificado destas relações, sobra as quais continuarei tratando adiante.

O éthos militar atravessa estes gêneros não apenas em termos rítmicos, mas como uma musicalidade plena. Em todos os casos, ele porta traços de um antigo símbolo de alta classe: as bandas tocavam em festas da nobreza, em grandes recepções e cerimônias oficiais da corte imperial, os “rituais de monarquia” (como fala BINDER, 2006, p.90). Uma música “elevada” para ocasiões “elevadas”, a força do metal aponta para a altivez, o vigor do Estado. Estes nexos, juntamente com a nostalgia típica do universo época-de-ouro, estão presentes na realidade musical das tópicas de banda: quando elas soam, soa também a doçura passageira do vigor juvenil e da utopia de transformação social. Como disse Chico Buarque na sua famosa canção, “tudo tomou seu lugar depois que a banda passou”.

Na capital do Brasil no início do século XX, a musicalidade das bandas vai influenciar a formação do mundo do carna-val com o surgimento da “marchinha”: a marcha-rancho. Pode-se dizer que ela mesma é um fruto híbrido: de um lado, a ênfase melodiosa legato típica das tópicas de se-

das militares formaram um modelo que a sociedade civil podia reproduzir, e assim foram criadas sociedades musi-cais em vários municípios brasileiros, chamadas de “Lira”, “Filarmônica”, “Orfeão”, “Associação” ou “Corporação”, ou mesmo “Banda”. Os trajes militares e a formação típica se mantiveram, configurando quase que grupos “travesti-dos” de soldados: havia nas bandas civis um éthos militar (BINDER, 2006, p.77-82). Este é um aspecto importante: do universo militar a sociedade deseja emular a ordem, a utopia de uma disciplina ausente na sociedade. A obe-diência às regras espraia-se na obediência ao maestro, a banda funcionando como alegoria da sociedade ideal. O lugar da banda é o coração da cidade, o coreto da praça principal, onde se encontra também a igreja matriz, e aos domingos se desenrola o ritual de uma sociedade per-feita, simples, ordenada, religiosa. Estes nexos ecoam no imaginário nativo quando as tópicas “de banda” apare-cem. A música da banda, por excelência, é a combinação do som dos sopros com a rítmica da marcha, o dobrado.

O militar na musicalidade das bandas remete, portanto, à ordem, disciplina, à perfeição do mundo social, e no frevo e marcha-rancho, à sua subversão carnavalizada pela sin-

Ex.5 - Tópicas “época-de-ouro” em Rosa.

Ex.6 - Deslocamentos de acentuação na marcha, marcha-rancho e frevo.

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resta e modinha e, de outro, o pulso bem marcado da rít-mica das tópicas de banda. Nesta mistura musical e sócio-cultural, nesta fusão de musicalidades, anseios sociais são tratados de maneira ritualizada (ver ARAÚJO et al, 2005).

No Recife, a aceleração do dobrado e sua fusão com outras musicalidades geraram o frevo, que efetiva uma espécie de carnavalização da musicalidade das bandas civis através das tópicas brejeiro. Quero dizer, o frevo, além do andamento rápido, traz figurações melódicas de grande agilidade, terminações acentuadas em tem-po fraco, tipicamente instrumentais. Há no frevo uma transgressão do militar, um espírito guerreiro (ARAÚJO, 1997) que pode remeter a um nexo afro-brasileiro ou indígena. De início música instrumental (SUASSUNA et al, 1997, p.223), o frevo foi se transformando em dança, carnaval típico, frevo-canção e gênero musical estável na música brasileira. No entanto, no frevo ainda sobre-vivem os pilares da marcha militar, nele ainda está ativo o nexo aerofônico com a musicalidade das bandas. Por isso, além do universo brejeiro, o gênero frevo partilha do universo de tópicas época-de-ouro. Entre os compo-sitores atuais que cultivam tópicas de banda, especial-mente via frevo, se encontram Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti e Marlos Nobre.

4 - Considerações FinaisO que eu estou tentando mostrar com estes exemplos é que o conceito de hibridismo nos estudos musicais funcio-na em uma camada tal que muitas vezes oculta um proces-so interior e anterior cuja investigação tem, a meu ver, bom rendimento através da musicalidade e do ensejo retórico implícito nestes gêneros. O termo hibridismo ganhou mui-to peso nos estudos literários e humanidades a partir de BAKHTIN (2008), porém, com a crítica cultural dos anos 70, os estudos do pós-colonialismo (BHABHA, 1994) impingi-ram na ideia de hibridismo seu necessário caráter ideoló-gico que, apesar de indubitavelmente importante, muitas vezes simplesmente não é o caso nos estudos musicais.

O debate sobre transformações e mudanças no universo da música é, em geral, tratado através do típico discurso das “influências”, que acaba esterilizando processos cuja pertinência excede o indivíduo e abrange a comunidade ou a cultura. Se a musicologia contemporânea tem se debru-çado intensivamente sobre esta abrangência sócio-cultural das músicas (ver ARAÚJO et al, 2008; CLAYTON et al, 2003; STOBART, 2008; WILLIAMS, 2007), ao mesmo tempo há um

desvio de olhar do texto musical, desvio que é herdeiro da velha crítica kermaniana ao formalismo da análise musical (KERMAN, 1987; ver COOK & EVERIST, 2001). Para mim, uma forma de superar estes dilemas é analisar a mecânica do hibridismo através da musicalidade e das tópicas mu-sicais, buscando recompor o significado a partir do ouvido e da análise musical e através de uma hermenêutica só-cio-cultural. Entretanto, tal tarefa se torna cada vez mais complexa no mundo atual devido ao constante armazena-mento e disponibilização de repertórios musicais, que infla e gera a imensa diversidade da música composta, tocada e ouvida hoje em dia, bem como devido ao fluxo das culturas mundiais em aceleração aparentemente irrefreável.

O cenário mundial das músicas é estruturado por uma assimetria de centro e periferia, sendo que o fluxo cultu-ral torna a periferia mais receptora de bens materiais ou simbólicos emanados a partir do centro, embora o fluxo contrário exista, aliás, sob a vigência de um sistema de propriedade bastante desigual (MALM, 2008). Segundo HANNERZ (1991) isto faz parte de um processo de homo-geneização global da cultura que pode levar a duas possi-bilidades: uma é a “saturação”, na qual o fluxo de influên-cia transnacional seria tal que tomaria completamente a sensibilidade de uma cultura periférica, tornando-a cada vez mais indistinta em relação ao centro. É a versão global da ideia de assimilação, ou integração. Outra tendência é o que este autor chama de “maturação”, onde as culturas periféricas poderiam colonizar este fluxo através de pro-cessos como a criolização, hibridismo, sincretismo, entre outros, o que acabaria por dissolver a polarização cen-tro-periferia nos fluxos culturais. Não compartilho desta utopia de dissolução da polarização global, mas acredito, como este autor, que a cultura é ela mesma uma virtua-lidade em fluxo (ver HANNERZ, 1997). Ou seja, a cultura é um fluxo, seu aspecto estável decorre da necessidade de criação de tradições e territórios particulares com os quais um grupo se identifica: é a necessidade humana de pertencimento a um grupo limitado, contrastivo em rela-ção a outros que cria a cultura. A música é um fenôme-no fundamental neste processo, mas as músicas também são fluxos, tramados ao calor da história. Gêneros, estilos, motivos, frases, harmonias que se atravessam formando novas combinações: o hibridismo é um processo congêni-to e inevitável na música. Através das tópicas, como elas são cristalizações estáveis destes conteúdos, talvez seja possível perseguir algumas linhas que costuram os tecidos mutantes que compõem as músicas no século XXI.

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notas1 Para referências básicas no debate do hibridismo na atualidade, incluindo autores que criticam este conceito, ver BHABHA (1994), BRAH & COOM-

BES (2000), CLIFFORD (1997), FEATHERSTONE & LASH (1999), NEDERVEEN PIETERSE (1995, 2001) e WERBNER & MODOOD (1997).2 Compreensão no sentido de uma hermenêutica da cultura (Cf. GEERTZ, 1997).3 Ver também a ideia de “tribos contemporâneas” (MAFFESOLI, 1987).4 Tópicas são figuras de retórica. O termo é oriundo do conceito aristotélico topoï, parte do jargão filosófico dos estudos de Retórica. O que alguns

musicólogos têm denominado topics envolve uma teoria analítica da expressividade e do sentido musical que se pode chamar de “teoria das tópi-cas” (RATNER,1980; AGAWU,1991; HATTEN;2004).O universo estudado por estes autores é o da música europeia do período clássico e romântico. No entanto, creio que a teoria das tópicas é uma excelente via na compreensão da significação musical e da musicalidade em geral, sendo que sua adaptação para o âmbito da música brasileira é uma maneira fértil de lidar com o aspecto expressivo da musicalidade brasileira (ver PIEDADE, 2007).

5 LIMA (2001) traz partituras e análises de uma coleção de modinhas do século XVIII. Ali se pode encontrar diversas figurações de tópicas época-de-ouro que ainda hoje transitam pela música brasileira.

6 Como exemplos do estudo de tópicas na música de concerto, posso mencionar CAZARRÉ (2001), que estudou tópicas nas danças negras (batuques, sambas, jongos, lundus, etc), parte do repertório pianístico brasileiro desde 1850. Camargo Guarnieri emprega amplamente tópicas caipiras e época-de-ouro (PIEDADE & BENCKE, 2009), e o estilo de Villa-Lobos tem como um de seus marcos as tópicas indígenas e ecológicas, além de um profundo idioma época-de-ouro (PIEDADE, s/d).

7 BINDER na verdade afirma que a formação das bandas é anterior à chegada da corte (2006, p.62).8 A contrastividade é mesmo um fator fundante da própria identidade e etnicidade (BARTH, 1998).

Acácio Tadeu de C. Piedade é bacharel em Composição (UNICAMP), mestre e doutor em Antropologia (UFSC). Atual-mente é professor associado do Departamento de Música e do Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), onde ministra aulas de Análise Musical e Musicologia-Etnomusicologia. Suas pesquisas envolvem a análise musical e a música em seu contexto sócio-cultural e histórico. Suas publicações envolvem estudos sobre música indígena, música popular e erudita brasileira.

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Recebido em: 26/11/2009 - Aprovado em: 22/06/2010

Ernesto Nazareth e a valsa da Suíte Retratos de Radamés Gnattali

Luciano Chagas Lima (Université de Montréal, Canadá)[email protected]

Resumo: Composta por Radamés Gnattali (1906-1988) em 1956 para bandolim solista, conjunto de choro e orquestra de cordas, Retratos é uma suíte em quatro movimentos onde são homenageadas algumas das mais expressivas per-sonalidades do cenário da música popular brasileira: Pixinguinha, Ernesto Nazareth, Anacleto de Medeiros e Chiquinha Gonzaga. O que dá forma e sustenta a narrativa da obra é a ideia de que os movimentos constituem retratos musicais destes compositores. Assim, a estrutura de cada movimento foi elaborada a partir de um modelo, ou seja, de cada com-positor Gnattali escolheu uma peça que serviria de roteiro para o processo criativo dos retratos. Este estudo tem como foco o segundo movimento da suíte, a valsa, observando como está relacionado ao seu respectivo modelo, a valsa Expan-siva de Ernesto Nazareth (1863-1934). Para ilustrar o paralelo será apresentada uma análise mais comparativa do que formal, procurando ampliar a visão do contexto histórico com evidências musicais, concentrando-se principalmente nos elementos comuns a ambas as peças. Palavras-chave: Radamés Gnattali; Ernesto Nazareth; valsa; Retratos; Expansiva.

Ernesto nazareth and the waltz from Radamés Gnattali’s Suíte Retratos

Abstract: Written in 1956 by Brazilian composer Radamés Gnattali (1906-1988) for solo mandolin, choro ensemble and strings orchestra, Retratos (namely, Portraits in Portuguese) is a four movement suite that pays homage to some of the most significant personalities in the history of Brazilian popular music: Pixinguinha, Ernesto Nazareth, Anacleto de Medeiros and Chiquinha Gonzaga. What shapes and supports the suite’s narrative is the idea that the movements rep-resent musical portraits of these composers. As a result, each movement was structured after a model, that is, Gnattali has chosen a particular piece by each composer that would serve as a blueprint for the creative process of the portraits. The focus of this study is the suite’s second movement, the waltz, observing how it is related to its respective model, the waltz Expansiva by Ernesto Nazareth (1863-1934). In order to illustrate this parallel, a more comparative than formal analysis will be provided, in an attempt to expand the view from the historical context to musical facts, drawing special attention to all cross-references present in the work.Keywords: Radamés Gnattali; Ernesto Nazareth; waltz; Retratos; Expansiva.

1- IntroduçãoUma das obras mais significativas da produção de Rada-més Gnattali, Retratos é uma suíte em quatro movimen-tos onde são homenageados quatro grandes represen-tantes da cultura musical brasileira: Pixinguinha, Ernesto Nazareth, Anacleto de Medeiros e Chiquinha Gonzaga. A escolha destes compositores justifica-se também pelo fato de cada um deles simbolizar um estilo, ou melhor, pelo fato de suas trajetórias musicais revelarem obras que podem ser consideradas como paradigmas de um deter-minado estilo. Assim, Pixinguinha entra como o repre-sentante maior do choro; Nazareth através da elegância de suas valsas; Anacleto, maestro da Banda do Corpo de Bombeiros, famoso pelos seus schottisches; e Chiquinha Gonzaga, “a primeira chorona e primeira pianeira” (CA-

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.23, 195 p., jan. - jul., 2011

ZES, 1998, p.35), com o elemento do maxixe. A escolha destes quatro estilos pode ser interpretada também como uma breve amostra de alguns dos vários elementos que definiram o perfil da música brasileira: o choro como o principal símbolo da música urbana; a herança europeia representada pela valsa e pelo schottisch; e o ingrediente africano presente no rítmico corta jaca. Definida a estru-tura da suíte, os movimentos de Retratos foram designa-dos da seguinte forma: I - Pixinguinha (choro); II - Ernesto Nazareth (valsa); III - Anacleto de Medeiros (schottisch); IV - Chiquinha Gonzaga (corta jaca). Dito isto, cabe aqui esclarecer que toda menção ao nome de Ernesto Naza-reth ao longo do texto refere-se ao compositor e não ao título do segundo movimento da suíte.

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Vale ainda observar que:

...a escolha dos homenageados também está de acordo com o for-mato de uma suíte, combinando complexidade, diferentes texturas e andamentos em uma coleção de padrões rítmicos contrastantes, evocando de alguma forma o elemento de dança presente em uma suíte barroca (LIMA, 2008, p.1).

Mas o que caracteriza a essência de Retratos é o fato de cada movimento ser baseado em um modelo. Gnattali escolheu de cada compositor uma determinada peça que serviria de roteiro para o processo criativo dos retratos; seguindo este princípio, o primeiro movimento foi cons-truído a partir do choro Carinhoso, de Pixinguinha; o se-gundo elaborado sobre a valsa Expansiva, de Ernesto Na-zareth; o terceiro sobre Três Estrelinhas, de Anacleto de Medeiros; e o quarto movimento sobre o maxixe Gaúcho, também conhecido como Corta Jaca, de Chiquinha Gon-zaga. É importante ressaltar que os movimentos da suíte de forma alguma podem ser qualificados como arran-jos ou que foram meramente “inspirados” nestas peças. Gnattali explora sim os modelos à risca, mas transforma os elementos originais e dá a Retratos uma identidade própria que a sustenta como obra artística. Presente no dia da gravação, uma tarde chuvosa de quinta-feira, o jornalista e musicólogo Lúcio Rangel observa:

Na “suíte”, os retratos são padrões de originalidade e, ao mesmo tempo, dão ideia perfeita de quatro grandes músicos que são Pixin-guinha, Anacleto de Medeiros, Ernesto Nazareth e Chiquinha Gon-zaga. Não direi que Radamés dignificou esses músicos já digníssi-mos: compreendeu, que é melhor. E criou, não “à manière de”, mas na maneira de Radamés (RANGEL in GNATTALI, 1964, CBS 60099).

Escrita originalmente para bandolim solista, orquestra de cordas e conjunto regional, Retratos não deixa tam-bém de fazer alusão à forma concerto. Em uma crítica sobre a suíte, o crítico e musicólogo Eurico Nogueira França comentou que Radamés Gnattali havia composto “uma espécie de concerto – sem buscar nenhuma es-pécie de ligação com o conceito tradicional da forma” (apud BARBOSA, 1984, p.66). Até mesmo na contraca-pa do disco da primeira gravação (GNATTALI, 1964, CBS 60099) consta a inscrição “Concerto para bandolim, or-questra de cordas, violão e cavaquinho”. Mas, segundo Hermínio Bello de Carvalho, Radamés não aprovava o título de “Concerto”, dado à sua revelia, e preferia ver Retratos denominada como “Suíte”. “Concerto ou Suíte? Música, eis tudo” (CARVALHO in GNATTALI, 1980, Atlan-tic BR 20.055). Retratos teve desde então uma série de versões, sendo arranjada pelo próprio compositor para a Camerata Carioca; piano e orquestra; orquestra sem solista; dois violões; três violões; para o seu quinteto (dois pianos, baixo, guitarra e bateria); além de inúme-ros arranjos elaborados por outros músicos. A partitura utilizada como referência neste estudo é a da versão para dois violões (Ed. Sérgio e Odair Assad) publicada pela casa editora Henry Lemoine, Paris.

Radamés conviveu ao longo da sua carreira com a “fina flor dos intérpretes brasileiros” (BARBOSA, 1984, p.65), dos quais alguns, além de grandes instrumentistas, eram

também amigos próximos do compositor. Nas palavras no próprio Gnattali: “eu sempre escrevi música para os meus amigos. Quando eu compunha uma peça para vio-loncelo, era para Iberê [Gomes Grosso] tocar. Ele tinha muita bossa, muito jeito para música brasileira” (BAR-BOSA, 1984, p.65). A Suíte Retratos foi então dedicada a Jacob Bittencourt, mais conhecido como Jacob do Ban-dolim, um ícone da história do choro por quem Gnattali tinha muito apreço. A primeira audição deu-se na Rádio Nacional, curiosamente tendo como solista não Jacob e nem sequer um bandolinista, mas Romeu Seibel, o Chi-quinho do Acordeon, que executou a parte do bando-lim ao acordeon. Após um decurso de oito anos desde a composição em 1956, a estreia oficial aconteceu no dia 24 de agosto de 1964, ocasião do lançamento da gra-vação realizada seis meses antes, no saguão do Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, tendo Jacob como solista e Gnattali como regente.

2- Ernesto nazarethCompositor e pianista, Ernesto Nazareth nasceu no Rio de Janeiro no dia 20 de março de 1863. Iniciou os estudos de piano com sua mãe, aperfeiçoando-se mais tarde com Eduardo Madeira e Lucien Lambert que lhe transmitiu um profundo entendimento da música de Chopin, uma gran-de influência na sua obra. Enfrentando sérios problemas de saúde mental, Nazareth foi internado na Colônia Ju-liano Moreira, em Jacarepaguá, vindo a falecer no início de fevereiro de 1934.

Nazareth teve uma participação marcante na cena mu-sical do Rio de sua época, onde “seus tangos foram exe-cutados e gostados, se espalharam, e o compositor teve a glória de ser tão familiar na pátria inteirinha [...]” (AN-DRADE, 1926, p.121). E um dos espaços a acolher e fazer as honras de vitrine para a música de Nazareth foi o Cine Odeon. Inaugurado em 1909, este lugar logo se instaurou como um pólo cultural que reunia a elite da época.

Dentro de um programa de ‘atrações’, as empresas exibidoras davam-se ao luxo de apresentar ao público, na ‘sala de espera’, audições com os melhores conjuntos musicais, que em tournées passavam pelo Rio [...] e, como atração nacional,[...] Ernesto Naza-reth. Sua presença no Odeon tornou-se acontecimento significati-vo para a vida musical da cidade. Havia muita gente que comprava o ingresso e, em lugar de entrar nas salas de projeção, ficava ali, junto do estrado, a ouvi-lo tocar horas a fio (PINTO, 1963, p.41).

Dentre as personalidades de destaque que frequentavam o cinema e que apreciavam a música de Nazareth, figu-ravam Ruy Barbosa, Darius Milhaud, Henrique Oswald, Villa-Lobos, Arthur Rubinstein, Tomás Téran, entre ou-tros. Mas também havia gente que, sem recursos para pagar o ingresso, ouvia Nazareth do lado de fora do ci-nema. Conforme observa BARBOSA (1984, p.17), “ouvir Ernesto Nazareth ‘do lado de fora’ do cinema Odeon foi para Radamés, se não o ideal, o suficiente para perceber todas as nuances de interpretação daquele já consagra-do pianista”. Mas, como prova o testemunho abaixo, o contato de Gnattali não se restringiu à distância do es-pectador sem ingresso:

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Foi em 25 ou 26, no Cinema Odeon, na Rio Branco esquina com Sete de Setembro. Eu vinha andando pela avenida e ouvi um som de piano. Era o Nazareth tocando e eu já conhecia as músicas dele. Nazareth tocava num piano de armário em cima de um estrado, perto de umas cadeiras de veludo, atrás de uma parede de vidro na sala de espera. Toquei várias vezes pra ele (Gnattali citado por DIDIER, 1996, p.75-76)

Gnattali tanto admirava a música de Nazareth que gravou em 1954 um disco dedicado exclusivamente à obra do pianista (Continental LP-V-2001). O repertório incluía Ex-pansiva, Tenebroso, Ameno Resedá, Odeon, Fon-Fon, Apa-nhei-te Cavaquinho, Confidências e Batuque. Coinciden-temente, outro grande admirador da arte de Nazareth foi Jacob do Bandolim. Segundo PAZ (1997, p.98), “para ele, Nazareth não apenas fotografou e criou a alma brasileira. ‘Ele foi mais eclético. Foi mais além das nossas fronteiras. O fraseado dele é uma coisa muito mais ampla do que os limites do Brasil’”. Jacob não só estudava a fundo a obra de Nazareth, como provam as análises, notas e observa-ções feitas pelo bandolinista nas partituras encontradas no seu arquivo, mas também, “das coisas mais simples às mais complexas, seu forte compromisso com a verdade levou-o, como no caso de Ernesto Nazareth, a desvendar os mistérios que cercaram sua morte” (PAZ, 1997, p.25). Como intérprete, Jacob foi um grande divulgador da obra de Nazareth, incluindo várias composições do pianista em discos seus, com destaque para Jacob Revive Músicas de Ernesto Nazareth (RCA Victor BP-1) de 1952.

3- Elementos comuns entre a valsa de Retra-tos e ExpansivaNazareth compôs diversas peças dentro dos diferentes estilos em voga na sua época, tangos brasileiros, polcas, choros, mas talvez o que pudesse melhor representar “a força conceptiva, a boniteza da invenção melódica, [e] a qualidade expressiva” (ANDRADE, 1926, p.124) da sua música fosse a valsa. Dentre as suas 41 valsas, Gnattali escolheu Expansiva para servir como modelo para o se-gundo retrato da suíte. Curiosamente, esta valsa é a peça que abre o disco gravado por Gnattali acima mencionado, sendo também gravada por Jacob em 1960 no disco Val-sas Brasileiras de Antigamente. Apesar da manifesta in-fluência de Chopin na obra de Nazareth, Expansiva parece ter sido inspirada em uma peça de outro grande composi-tor do universo pianístico, Liebestraum n.3 do húngaro Franz Liszt. Mas isto é objeto para um futuro estudo, já que uma análise mais detalhada sobre o assunto foge do âmbito desta pesquisa.

Escrita em 1912, Expansiva apresenta a estrutura de um rondó de três partes, uma forma típica da tradição do choro. A tonalidade original é Ré bemol maior, dando se-quência a um esquema harmônico onde a segunda e ter-ceira partes exploram o quinto e quarto graus (Lá bemol maior e Sol bemol maior), respectivamente. Com relação à quadratura, as frases em Expansiva são organizadas em dois grupos de dezesseis compassos, onde o primei-ro assume uma função de antecedente, encerrando com uma cadência imperfeita, e o segundo representa o com-

plemento consequente, repetindo parte do conteúdo do primeiro grupo e concluindo com uma cadência perfeita.

Gnattali mantém na valsa da Suíte Retratos estes tra-ços formais que definem o contorno de Expansiva, porém vistos através de um viés diferente. Talvez a principal di-ferença em termos estruturais seja a presença de uma in-trodução e uma Codeta, assim como realizado no primeiro movimento da suíte. No entanto, esta Codeta não passa de uma variação dos cinco últimos compassos da seção A, sendo inserida no mesmo ponto estrutural, comple-tando o arco de trinta e dois compassos. A forma rondó é preservada, apresentando apenas algumas alterações: ao passo que Nazareth faz uma repetição literal do A após o B em Expansiva, Gnattali apresenta na valsa da suíte uma versão transformada e abreviada deste segundo A, con-tendo apenas dezesseis compassos. Finalmente, a terceira parte da valsa de Retratos possui um ritornello que não ocorre em Expansiva. Assim, as estruturas de ambas as peças poderiam ser resumidas da seguinte forma:

Expansiva: A – B – B – A – C – A

Retratos – valsa: Introdução – A – B – B – A’ – C – C – A – Codeta

Tendo em vista um resultado mais idiomático, a tonali-dade original de Expansiva foi transposta para Dó maior na valsa da suíte, favorecendo assim uma textura mais apropriada para o bandolim que segue o mesmo padrão de afinação do violino em intervalos de quinta (Sol, Ré, Lá, Mi). Todavia, Gnattali em nada altera o esquema har-mônico original, mantendo a mesma proporção do quinto e quarto graus para a segunda e terceira partes de sua valsa. Já no tocante à quadratura das frases, apesar de Gnattali preservar a mesma moldura de dois grupos de dezesseis compassos em cada parte, a valsa da suíte não apresenta exatamente a mesma simetria de Expansiva.

Após a introdução, da qual trataremos mais adiante, a exposição da valsa de Retratos é claramente derivada do modelo original, com a longa sustentação da terça na melodia (Ex.1 e Ex.2). Visando ilustrar com mais clareza o paralelo proposto neste estudo, todos os exemplos a seguir terão Expansiva transposta meio tom abaixo.

Com relação ao contorno descendente do baixo, em Ex-pansiva esta linha combina posições fundamentais com inversões, partindo de um Dó para um Mi uma sexta me-nor abaixo, resultando em um total de sete compassos. Já na valsa de Retratos, esta linha é transformada e compri-mida em uma unidade de três compassos, mas preserva ainda o mesmo intervalo de sexta menor.

No entanto, apesar de ambas as peças compartilharem a mesma ideia desta linha de baixo descendente, na valsa da suíte os acordes estão todos em posição fundamental. Mas tanto Nazareth quanto Gnattali incorporam neste trecho uma nota de passagem não pertencente à escala da pri-meira parte: o acorde diminuto no terceiro compasso de Expansiva e o acorde de F#m7(b5) no segundo compasso

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da exposição da valsa de Retratos (ver Ex.1 e Ex.2). Em relação à distância entre a tônica inicial e a nota de passa-gem, o acorde diminuto de Expansiva está um tom abaixo da tônica; na valsa de Retratos, embora a linha descenden-te do baixo esteja comprimida, Gnattali estende esta dife-rença, aumentando o intervalo para uma quinta diminuta abaixo. Salvo algumas alterações, o tratamento harmônico de ambas as peças é bastante similar (Ex.3).

Após praticamente citar os compassos iniciais de Expan-siva, a valsa Retratos explora um conteúdo melódico in-teiramente novo sustentado por um conceito harmônico diferenciado. Ao atingir o ponto estrutural de uma es-perada repetição na primeira parte, precisamente após o primeiro grupo de dezesseis compassos onde Expansiva repete literalmente o mesmo material de seus primeiros oito compassos, Gnattali dá sequência ao segundo grupo com uma versão transformada deste material (Ex.4).

Um detalhe interessante deste trecho é que, estendendo a linha do baixo no âmbito de uma oitava (Ex.4 penta-grama superior), Gnattali de certa forma retifica não só o cromatismo delineado no baixo dos quatro primeiros compassos de Expansiva, mas também a compressão da ideia original discutida anteriormente. Retornando à introdução, é possível observar que ela contém suas próprias referências cruzadas, sendo de certa forma um sumário de toda a estrutura da peça. A anacruse em colcheias, que é um material novo não derivado do mo-delo, é um dos motivos centrais da introdução (Ex.5). Aliás, esta é uma diferença marcante entre a valsa de Retratos e Expansiva, sendo que a última começa todas as três partes de forma tética enquanto que Gnattali usa o impulso de uma anacruse para cada parte.

Após estes compassos iniciais, a sequência descendente de acordes pode ser relacionada à linha descendente do

Ex.1: Retratos – valsa c.19-22 (início da seção A)

Ex.2: Expansiva c.1-5 (início da seção A)

Ex.3: Harmonia dos sete primeiros compassos da exposição da valsa de Retratos (c.20-26) e Expansiva (c.1-7)

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Ex.4: Retratos – valsa c.36-39 (início do segundo grupo)

Ex.5: Retratos – valsa c.1-5 (introdução – anacruse)

Ex.6: Retratos – valsa c.6-10 (introdução – acordes descendentes)

Ex.7: Retratos – valsa c.11-14 (final da introdução)

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baixo na seção A que, assim como na exposição, serve também como um tapete harmônico para a nota longa sustentada da melodia (Ex.6 c.6-7). Em seguida, a figura pontuada (Ex.6 c.8-9) pode ser encarada como uma refe-rência ao ritmo empregado no início da seção B.

Finalmente, encerrando a introdução, há um movimento melódico com um caráter quase cadencial articulado em dois grupos de colcheias, como em um compasso de 6/8, an-tecipando o contorno que será usado na terceira parte (Ex.7).Dando continuidade à análise, a segunda parte da valsa da suíte tem início com uma anacruse, assim como ocorre nas demais seções. A seguir, a inflexão

rítmica é idêntica ao modelo original, mas agrupada de um modo diferente: em Expansiva há uma ideia básica encerrada em um grupo de dois compassos (Ex.9 c.33-34, c.35-36, etc.) ao passo que na valsa da suíte esta ideia é expandida para um grupo de quatro compassos (Ex.8 c.52-55, etc.).

A figura rítmica pontuada e a escala ascendente em col-cheias que se segue constituem os elementos principais comuns a ambas as peças, uma vez que Gnattali e Naza-reth transitam por caminhos harmônicos distintos. Mas há ainda outro vínculo, um motivo elaborado a partir de um desenho de apogiaturas presente na primeira me-

Ex.8: Retratos – valsa c.51-56 (início da seção B)

Ex.9: Expansiva c.33-37 (início da seção B)

Ex.10: Expansiva c.39-41 (apogiaturas)

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Dentro da forma rondó, a seção A após a segunda par-te em Expansiva é repetida exatamente como no início. Na valsa de Retratos, entretanto, este segundo A não segue as mesmas diretrizes estabelecidas pelo modelo. Conforme discutido anteriormente, Gnattali faz uma re-petição abreviada de dezesseis compassos (exatamente a metade do esperado) e também muda o conteúdo me-lódico, dando-lhe um caráter de variação temática com um contínuo fluxo de colcheias. O que é interessante é que neste ponto finalmente surge uma referência ao atraente acorde de sexto grau abaixado em terceira in-

tade da seção B de Expansiva (Ex.10). Neste trecho as apogiaturas ornamentam um arpejo descendente sobre a tônica, formando um grupo de dois compassos com a repetição do mesmo arpejo uma oitava abaixo.

Gnattali mantém o motivo das apogiaturas, mas in-serido em outro ponto estrutural e em um contexto harmônico na dominante (Ex.11). Além disso, esta ideia é apresentada de uma forma mais curta na valsa de Retratos já que começa na segunda metade do primei-ro compasso em questão.

Ex.11: Retratos – valsa c.62-64 (apogiaturas)

Ex.12: Expansiva c.23-26 (acorde de sexto grau abaixado em terceira inversão – c.25-26)

Ex.13: Retratos – valsa c.93-96 (acorde de sexto grau abaixado em segunda inversão – c.95)

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versão presente no final da seção A de Expansiva (Ex.12 c.25-26), mas apenas como um breve acorde de passa-gem (e em posição fundamental) para alcançar a tônica em segunda inversão (Ex.13 c.95).

A terceira parte da valsa de Retratos é nitidamente desenvolvida a partir da seção equivalente de Expan-siva, também iniciando no terceiro grau da escala (Ex.14 e Ex.15).

Esta frase em Expansiva, essencialmente um arpejo construído sobre o primeiro grau, projeta-se através de um grande arco ascendente partindo de um Lá-2 até alcançar um Ré-6, totalizando uma extensão de três oi-tavas e uma quarta justa. Em contraste à exuberante fartura de um piano, a extensão prática de um bando-lim não passa de três oitavas (e ainda assim de Sol-2 a Sol-5). Gnattali busca então outra solução para trans-mitir a sensação de movimento gerada pelo trânsito das diferentes oitavas, e o resultado é realizado através de um ritmo harmônico mais acelerado. Desta forma, observa-se que no início da terceira parte de Expansiva o movimento melódico é mais acentuado e a harmonia mais estática (Nazareth simplesmente alterna a posição fundamental com sua segunda inversão); inversamente,

a valsa de Retratos apresenta no mesmo trecho um con-torno melódico mais contido, mas com um movimento harmônico variado em cada compasso.

Nazareth faz desta seção um grande moto perpétuo valendo-se de uma malha costurada por colcheias do começo ao fim. Gnattali, entretanto, interrompe o fluxo inicial de colcheias com valores rítmicos diferenciados, criando uma atmosfera de caráter improvisatório muito peculiar ao seu estilo. No exato instante onde isto acon-tece (c.110) a harmonia volta a reproduzir o conteúdo do modelo, como se procurasse de alguma forma compensar a transformação melódica para que a música ainda per-manecesse conectada à fonte (Ex.16).

Na sequência, o segundo grupo de dezesseis compassos (c.118) começa exatamente como o primeiro, da mes-ma forma que Nazareth procede em Expansiva. Apesar do fato de ambas as peças apresentarem um tratamento harmônico distinto neste início de frase, elas acabam se reencontrando no mesmo acorde diminuto que prepara o desfecho cadencial (Ex.17 e Ex.18).

A única diferença é o uso do primeiro grau em segunda inversão após o acorde diminuto em Expansiva, o qual é

Ex.14: Retratos – valsa c.101-106 (início da seção C)

Ex.15: Expansiva c.97-101 (início da seção C)

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Ex.16: Harmonia compartilhada: Retratos –valsa (c.110-117) e Expansiva (c.105-112)

Ex.17: Retratos – valsa c.126-129 (acorde diminuto)

Ex.18: Expansiva c.121-124 (acorde diminuto)

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substituído na valsa da suíte pela primeira inversão se-guida do sexto grau antes das dominantes finais.

Um detalhe relacionado ao aspecto formal é que am-bos os compositores apresentam leituras diferentes no que diz respeito às repetições dentro da estrutura ron-dó. Em Expansiva, por exemplo, Nazareth não requer uma repetição para a terceira parte; Gnattali, entre-tanto, preserva o padrão tradicional repetindo esta se-ção, compensando de certa forma a inserção abrevia-da da seção A que antecede a terceira parte. De fato, esta repetição na valsa de Retratos surte um efeito de maior contraste em virtude de uma textura mais dinâ-mica em comparação ao movimento contínuo de Ex-pansiva. Finalmente, a re-exposição da primeira parte encerra a moldura da forma rondó. Seguindo o mesmo procedimento usado no movimento anterior, Pixingui-nha (choro), a valsa também termina com uma Codeta. Mas, enquanto que no choro a Codeta acrescenta ma-terial novo à estrutura, na valsa ela é inserida de modo que apenas completa a frase anterior, incorporando ri-gorosamente a mesma sequência harmônica dentro do mesmo espaço de cinco compassos.

4- Considerações finaisÉ fascinante como Gnattali atinge na valsa da su-íte um resultado com uma identidade própria tão marcante sendo ainda tão fiel ao modelo escolhido, a valsa Expansiva (esta afirmação, aliás, estende-se para os demais movimentos de Retratos e seus res-pectivos modelos). Para alguém que tem intimidade com o repertório do choro, uma primeira impressão ao ouvir esta obra mostra algo de familiar, deixando uma ligeira sensação de déjà vu. Traçando o caminho inverso do processo da composição, uma análise mais detalhada revela um mapa onde os caminhos percor-ridos por Gnattali e Nazareth se cruzam no momento da criação. E a originalidade de Retratos encontra-se exatamente nesta fronteira de contrastes: música de concerto, mas com raízes no choro, desde a escolha dos modelos e da instrumentação até a figura do so-lista. Sob o ponto de vista interpretativo, um estudo comparativo entre os retratos e os modelos contribui para o esclarecimento de vários problemas que sur-gem ao executar obras com este perfil, onde um dos maiores desafios é saber equilibrar os elementos das esferas popular e de concerto.

ReferênciasANDRADE, Mário de. Música, doce música. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1976.BARBOSA, Valdinha; DEVOS, Anne Marie. Radamés Gnattali: o eterno experimentador. Rio de Janeiro: Funarte, 1984. CARVALHO, Hermínio Bello de. In: GNATTALI, Radamés. Tributo a Jacob do Bandolim. São Paulo: ATLANTIC BR 20.055,

1980. 1 disco sonoro.CAZES, Henrique. Choro: Do Quintal Ao Municipal. São Paulo: Ed.34, 1998.DIDIER, Aluísio. Radamés Gnattali. Rio de Janeiro: Brasiliana, 1996.GNATTALI, Radamés. Suite Retratos. Ed. Sérgio and Odair Assad. Paris: Henry Lemoine, 1987. 1 partitura (20p.). Dois

violões.LIMA, Luciano Chagas. Radamés Gnattali e Pixinguinha: Carinhoso no Choro da Suíte Retratos. Anais do Simpósio de

Pesquisa em Música, Curitiba, SIMPEMUS5, p.1-5, 2008.NAZARETH, Ernesto. Expansiva. Rio de Janeiro: Irmãos Vitale, 1939. 1 partitura (4p.). Piano.PAZ, Ermelinda A. Jacob do Bandolim. Rio de Janeiro: Funarte, 1997.PINTO, Aloysio de Alencar. In: Revista Brasileira de Música 6. Rio de Janeiro: Editora e Gráfica Polar, 1963.RANGEL, Lúcio. In: GNATTALI, Radamés. Retratos – Jabob e seu Bandolim com Radamés Gnattali e Orquestra. São Paulo:

CBS 60099, 1964. 1 disco sonoro.

Leitura recomendadaBÉHAGUE, Gerard. The Beginnings of Musical Nationalism in Brazil. Detroit: Information Coordinators, 1977._______. Music in Latin America: An Introduction. Englewood Cliffs: Prentice-Hall, 1979._______. “Nazareth, Ernesto.” The New Grove Dictionary of Music and Musicians, ed. Stanley Sadie and John Tyrrell. Lon-

don: MacMillan, 2001. Vol. 17: 720-721.

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LIMA, L. C. Ernesto Nazareth e a valsa da Suíte Retratos de Radamés Gnattali. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.113-123.

Discografia recomendadaALMEIDA, Laurindo; BARBOSA-LIMA, Carlos; BYRD, Charlie. Music of the Brazilian Masters. Estados Unidos: Concord Jazz

4389, 1989. 1 CD.ASSAD, Sérgio e Odair. Duo Assad – Gnattali, Rodrigo, Piazzolla. São Paulo: Con Anima 004-1988, 1988. 1 disco sonoro.______. Latin American Music for Two Guitars. Holanda: Nonesuch 79116, 1992. 1 CD.______. Alma Brasileira. Holanda: Nonesuch Records 79179, 1988. 1 CD.BITTENCOURT, Jacob. Jacob Revive Músicas de Ernesto Nazareth. Rio de Janeiro: RCA Victor BP-1, 1952. 1 disco sonoro.______. Valsas Brasileiras de Antigamente. Rio de Janeiro: RCA Victor BBL 1100, 1960. 1 disco sonoro.CANAUD, Fernanda; NASCIMENTO, Joel. Valsas Brasileiras. Rio de Janeiro: Biscoito Fino, 2008. 1 CD.GNATTALI, Radamés. Ernesto Nazareth. Rio de Janeiro: Continental, LP-V-2001, 1954. 1 disco sonoro.______. Retratos – Jabob e seu Bandolim com Radamés Gnattali e Orquestra. São Paulo: CBS 60099, 1964. 1 disco

sonoro. ______. Tributo a Jacob do Bandolim. São Paulo: Atlantic BR 20.055, 1980. 1 disco sonoro.LIMA, Arthur Moreira. Arthur Moreira Lima Interpreta Ernesto Nazareth n.2. São Paulo: Marcus Pereira MPA 9364/65,

1977. 1 disco sonoro duplo.NASCIMENTO, Joel. Joel Nascimento and the Brazilian Sextet, Live! Estados Unidos: Santa Fe Chamber Music Festival,

1990. 1 CD.NOGUEIRA, Gisela; COSTA, Gustavo. Tocata Brasileira para Pinho e Arame. São Paulo: CPC – UMES, 1998. 1 CD.OFICINA DE CORDAS. Oficina de Cordas apresenta Retratos em Vários Compassos. Campinas: Ministério da Cultura / Se-

cretaria da Música e Artes Cênicas, 2001. 1 CD.ORQUESTRA ARMORIAL. Orquestra Armorial - vol 5. Pernambuco: Conservatório Pernambucano de Música, 1981. 1 disco

sonoro.ORQUESTRA DE CÂMARA RIO STRINGS. Retratos do Brasil. Rio de Janeiro: Rádio MEC, 2004. 1 CD.RABELLO, Rafael. Rafael Rabello. Rio de Janeiro: Visom LPVO 018, 1988. 1 disco sonoro.TRIO OPUS 12; NÚCLEO HESPÉRIDES MÚSICA DAS AMÉRICAS. Retratos de Radamés. São Paulo: Produção Independente,

2007. 1 CD.VÁRIOS. Pixinguinha 70. Rio de Janeiro: Copacabana COLP 12118, 1968. 1 disco sonoro.______. Retratos: Radamés Gnattali. Rio de Janeiro: Kuarup Discos KLP 044, 1990. 1 disco sonoro.______. Prêmio Visa de MPB Instrumental. São Paulo: Eldorado, 1998. 1 CD.______. Ao Jacob, Seus Bandolins. Rio de Janeiro: Biscoito Fino, 2003. 1 CD duplo.

Luciano Lima é Doutor (D. Mus.) pela Université de Montréal (Canadá), Mestre pela McGill University (Canadá) e Bacharel em violão pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná. Como pesquisador, defendeu sua tese de doutorado sobre os Quatro Concertos para Violão Solo de Radamés Gnattali, além de ter artigos publicados em anais de eventos acadêmicos como XIX Congresso da ANPPOM, SIMPEMUS 5, e II Simpósio Acadêmico de Violão da Embap. Fez parte do quadro de professores da École des jeunes e do Service d’activités culturelles da Université de Montréal, no Canadá, e também das 20ª, 27ª e 28ª edições da Oficina de Música de Curitiba, do 29º Festival de Música de Londrina e do III Simpósio Acadêmico de Violão da Embap. Conciliado às atividades de ensino e pesquisa, Luciano desenvolve carreira como arranjador, solista e camerista, tendo se apresentado no Canadá, Estados Unidos e Brasil.

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COSTA, P. G.; CASTRO, B. M. Elementos extra-musicais na obra de K-ximbinho... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.124-137.

Recebido em: 22/12/2009 - Aprovado em: 22/06/2010

Elementos extra-musicais na obra de K-ximbinho: questões sobre iconografia musical em suas capas de disco entre 1950 e 1960Pablo Garcia da Costa (UnB, Brasília, DF)[email protected]

Beatriz Magalhães Castro (UnB, Brasília, DF)[email protected]

Resumo: K-ximbinho participou juntamente com outros músicos entre as décadas de 1950 e 1960 de um processo que visava modernizar o samba e o choro pela introdução dos elementos diversos do jazz. Esse processo de mistura entre gêneros musicais distintos, compreendido entre os músicos da época como “samba-jazz” ou “choro jazzístico”, não se limitava em misturar elementos rítmicos harmônicos e melódicos, mas também negociar a presença de termos, imagens e vestimentas da cultura estadunidense no Rio de Janeiro pré Bossa Nova. É possível verificar nas capas de discos gravados por K-ximbinho que essa negociação entre duas culturas se manifestava em forma de imagens e textos e visavam informar ao consumidor a que cada obra se destinava, ressaltando a inovação do samba e choro e propondo a criação desse novo estilo musical.Palavras-chave: K-ximbinho; jazz; choro; iconografia musical.

Extra-musical elements in the work of K-Ximbinho: questions about musical iconography in their record covers between 1950s and 1960s

Abstract: K-Ximbinho participated along with other musicians from the 1950s and 1960s in a process aimed at mod-ernizing the samba and choro in the introduction of various jazz.elements into Brazilian traditional styles. This blending of different musical genres, known at the time as “samba-jazz” or “choro jazz” was not limited to mixing rhythmic, harmonic and melodic elements, but also in the negotiation of present expressions, images and ways from North-American culture in Rio de Janeiro in a pre Bossa Nova era. It’s possible to verify on the covers of albums recorded by K-Ximbinho that the negotiation between these two cultures is manifested in the form of images and texts meant to inform the consumer how each work was intended, highlighting the innovation of samba and choro and proposing the creation of this new musical style.Key Words: K-ximbinho; jazz, choro; musical iconography.

1 - IntroduçãoK-ximbinho foi compositor e instrumentista, protagonis-ta de uma fase de transformação na música brasileira. Questões como a mistura entre o samba, o jazz e choro na sua música e os diversos ambientes profissionais em que atuou estão presentes num processo modernizador da música em meio ao contexto de globalização. Esse contexto se caracteriza pela organização de uma cultura de massa, pela disseminação da informação musical pro-movida pelo rádio e o circuito musical de apresentações e festas nas casas noturnas do Rio de Janeiro, promovidas por uma elite econômica que cumpria, além do papel de consumidor, também o papel de financiadores e promoto-res da relação entre a música do Brasil e Estados Unidos.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.23, 195 p., jan. - jul., 2011

Diante dessa estrutura, verifica-se na trajetória de K-xim-binho, assim como das orquestras Tabajara de Severino Araújo, e do Maestro Cipó entre outros arranjadores e ins-trumentistas da época, um processo de adaptação e reor-ganização de saberes musicais para a formatação de um novo estilo musical, com elementos harmônicos do jazz e elementos rítmicos do choro, que permitisse aos músi-cos lugar de destaque no cenário musical. Da intenção de inovar ou modernizar o samba e o choro, nos deparamos com denominações para estilos e gêneros musicais novos; samba-jazz e, especificamente discutido por K-XIMBINHO (1980b), o choro-jazz. Apesar da trajetória de K-ximbinho se estender até o fim da década de 1970, o período entre

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1950 e 1960 desponta de forma significativa por verificar que a efervescência cultural daquela época coincide com a fase mais atuante do compositor. Dessa época temos o lançamento de três dos seus quatro discos de carreira investigados nessa pesquisa, como também a participação de K-ximbinho como solista ou arranjador em outros dis-cos de cantores, colegas arranjadores ou grupos formados por sindicatos de músicos ou gravadoras.

O levantamento que se pretendeu nessa pesquisa, teve como estratégia o mapeamento de estudos sobre pro-cessos composicionais caracterizados pela hibridação, mistura e fusão na obra de K-ximbinho: composições, arranjos e improvisação. Foram selecionados trabalhos que analisam tendências e transformações no sam-ba entre as décadas de 1950 e 1960 (SARAIVA, 2007) e obras de outros instrumentistas contemporâneos e/ou parceiros de K-ximbinho, como Zé Bodega (FABRIS, 2005). A escolha dos autores citados dá suporte para recriar e entender o contexto sócio-econômico, cultural e o pensamento musical em que se inseria o compositor na cidade do Rio de Janeiro entre as décadas de 1950 e 1970. Feito o mapeamento dos trabalhos citados, ain-da é possível perceber escassez de trabalhos específicos sobre a obra de K-ximbinho que reflitam sobre a relação entre contexto, discurso e prática. Enquanto as discus-sões de SARAIVA (2007) abordam questões mais abran-gentes sobre o contexto cultural da época, o trabalho de FABRIS (2005) trata de questões especificamente per-formáticas sobre suas composições.

Surge aqui a necessidade de explicitar e entender a mes-cla desses elementos, oriundos do jazz, do samba e do choro na obra de K-ximbinho. Considerando que há um consenso entre os executantes, compositores, estudiosos e demais interessados pelos gêneros musicais em questão, admitiremos que o jazz, bem como o choro, são gêneros que se consolidaram pela mescla de diversos elementos musicais: instrumentação, arranjos, melodias e “jeito” de tocar. Todos com referências europeias e africanas que, ao se misturarem, resultaram em algo novo, cada um com características específicas do contexto cultural em que foram produzidos (BERENDT, 1975, CAZES, 1999).

GARCIA CANCLINI (2000) enumera uma série de conse-quências oriundas do processo globalizador, algumas com características de interdependência entre sociedades, ou-tras que julgamos mais adequadas à análise e entendi-mento que se pretende em nossa pesquisa.

“Estas mudanças na produção são acompanhadas pela formação de uma “cultura internacional popular” que organiza os consumi-dores de quase todos os países com informação e estilos de vida não homogeneizados, mas sim compartilhados em um imaginá-rio multi-local constituído por ídolos do cinema de Hollywood e a música pop, os heróis do esporte e design de moda.” (GARCIA CANCLINI, 2000, p.4)

Esta citação, corroborada pela descrição de SARAIVA (2007) abaixo, alinha-se à observação sobre as influências e fontes musicais que permeiam a obra de K-ximbinho,

quando este, além de seus contemporâneos não escondiam o interesse e admiração pelos arranjos e composições das big-bands estadunidenses e demais artistas daquele país.

Em outras ocasiões, a atração da noite era o conjunto do saxofo-nista e maestro Cipó, que contava, no seu conjunto, com K-xim-binho (clarinete e sax alto), Julinho (piston), Paulinho Magalhães (bateria) e Chaim Lewak (piano). Nesta boate, como contou Juli-nho, quase não se tocava música brasileira; o que estava na moda eram as melodias francesas e americanas, principalmente aquelas que faziam sucessos nos filmes da época. [...] também fazia parte da programação da boate noites em que o artista principal era algum cantor importante da época, como Murilinho de Almeida, Jamelão e até Ella Fitzgerald (SARAIVA, 2007, p.29-30).

GARCIA CANCLINI (2001) discute os processos de mis-tura entre elementos de gêneros musicais distintos, so-bre artistas que têm o propósito de criar e/ou pesquisar os elementos que formam suas obras. A hibridação no conceito proposto pelo autor descarta a velha limitação biológica em que só é híbrido aquilo que nasce de fontes puras. Em ciências sociais a hibridação é um processo cíclico e dinâmico, e por vezes identificaremos o híbrido do híbrido, facilitando a percepção de novas estruturas e a busca de distinção entre tudo aquilo que se produz na sociedade.

O foco não é a hibridez, mas sim o processo de hi-bridação. Contudo deixaremos claro que, analisar a obra de K-ximbinho tendo o processo de hibridação como suporte para definir a metodologia de análise, não imprime na obra do compositor esse caráter, pois como alerta KARTOMI (1981/01), a terminologia pode não ter grande significado para o compositor ou gru-po social em que se insere. Tal terminologia não serve como adjetivo para a obra analisada, mas os processos de produção da obra de K-ximbinho assim como o con-texto, o contato, as trocas de experiências, nos levam a crer que a definição de GARCIA CANCLINI (2000, 2001) para processos de hibridação se assemelha às escolhas e experiências vividas pelo compositor e corroboradas pelos personagens que descrevem tal história por meio de depoimentos e entrevistas.

O conceito de hibridação no contexto sócio-cultural ajuda a entender mesclas fecundas. O termo hibridação como processo e não como produto põe em evidência a produtividade e o poder inovador de muitas mesclas in-terculturais, a saber, alguns exemplos: a relação da mú-sica indiana com os ingleses The Beatles, Paul Simon e o grupo sul-africano Ladysmith Black Mambazo. Numa síntese rápida sobre essas relações, percebe-se que esses grupos ou artistas solo se unem e conseguem produzir uma música que terá referências particulares de cada uma das fontes. O processo de readequação não supri-miu nenhuma fonte anterior, o resultado não deve ser classificado como híbrido, mas como um novo produto de significado diferente daquilo que foi produzido antes por cada um dos artistas. Essa criatividade coletiva utiliza saberes e referências anteriores e as remodela para um novo contexto, sugerindo uma nova interpretação diante das quebras de barreiras culturais.

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O que diferirá os exemplos citados acima do caso anali-sado nessa pesquisa é o fato de K-ximbinho, no contexto brasileiro, estar envolto por uma teia de relações muito específica, que diz respeito à questão globalizadora e à presença e interferência da cultura dos Estados Unidos, representada musicalmente pelo jazz, na vida cotidiana e cultural das capitais Natal e Rio de Janeiro. Em termos gerais as relações políticas Brasil - Estados Unidos e a indústria musical versus produto artístico.

A preocupação para que o objeto de estudo esteja focado no processo de hibridação e não no híbrido mostra que por meio de estratégias de reconversão de patrimônios, práti-cas e estruturas, a hibridação interessará “tanto a setores hegemônicos como aos populares que querem se apropriar dos benefícios da modernidade.” (GARCIA CANCLINI, 2001, p.17). Este conceito de modernidade está associado à ino-vação e não se contrapõe diretamente com o conceito de tradicionalidade. Dessa forma poderemos observar que transformações podem ocorrer num processo evolutivo, sem descartar elementos canonizados que regem ou resguardam um determinado gênero musical, evitando a perda de suas referências pelo erro da resistência ou total desfiguração.

O ambiente, o bar, encontros musicais, diálogos e termi-nologias dos chorões, são comumente observados a fim de compreender que o choro, como gênero musical, pos-sui um jogo de relações que influenciam a performance. Embora performance não seja o foco dessa pesquisa, ob-servar esses elementos auxilia na compreensão da noção de musicalidade - adequada por K-ximbinho a determi-nados intérpretes, principalmente na situação em que se analisa a mistura de elementos de dois gêneros musicais performaticamente bem distintos; choro e jazz.

No caso da música feita por K-ximbinho, a transferência de lugar onde se fazia e tocava choro, saindo da roda de choro e dirigindo-se para as boates e demais casas notur-nas, revela a percepção dos elementos do jazz, exigindo outra técnica de improvisação pela presença de blue no-tes, e a alteração da formação dos acordes, mantendo a ideia de identificação, comparação e análise de elemen-tos entre gêneros musicais que se influenciam, se trans-formando por meio de mistura.

Como forma de entendermos estas questões, propõe-se um estudo a partir das capas de discos de K-ximbinho, observando elementos extra-musicais. Muito do que se observa por meio das palavras, imagens, listagem e iden-tificação das músicas de cada disco revela como o com-positor intervinha na produção dos discos, ao negociar a presença dos elementos extra-musicais que remetem ao jazz, ao samba e ao choro. Essa comunicação pelas capas nos mostra como os músicos daquela época pretendiam veicular as propostas para modernizar gênero e prática musical, além de estabelecer um vínculo comercial com o público consumidor por jogadas de marketing em que o jazz representava objeto de valor agregado ao samba e ao choro. Essa estratégia de propaganda não estava somente

nas capas, segundo SARAIVA (2007) outra forma de divul-gar um artista era citar seu sucesso no exterior:

Um pouco mais à frente, ainda na mesma avenida, estava a boi-te Fred´s. Esta casa era mais especializada em grandes atrações (e pelos anúncios no jornal, investia-se alto na divulgação). Por exemplo, no dia 23 de novembro de 58, o anúncio da próxima atração ocupava metade da página do jornal: “No Fred´s Leny Eversong. A cantora brasileira mais aplaudida nos Estados Unidos”. Já naquela época, falar do sucesso adquirido lá nos EUAs era uma ótima jogada de marketing (SARAIVA, 2007, p.27).

A pergunta geral em torno das análises e observações sobre o contexto e os personagens que circundam K-ximbinho é como se dá a influência, nas gerações seguintes da música brasileira, de um compositor que possui poucas obras, cerca de trinta composições. Em seguida surgem indagações sobre o ambiente cultural, a presença da rádio e suas consequên-cias e interferências no modo de pensar e fazer música entre os compositores de um dado lugar, e como os músicos de um grupo social se articulam entre si construindo uma espécie de tendência e/ou estilo composicional e interpretativo mar-cantes na história de um gênero musical.

Sem excluir tal possibilidade, não há o propósito especí-fico nesse trabalho de discutir as questões de conflito ou construção de identidade nacional a partir do choro pro-duzido por K-ximbinho, tampouco reforçar características que possam estratificar elementos oriundos do jazz e do choro. A forma como K-ximbinho constrói suas ideias mu-sicais e o discurso que ampara e justifica sua obra, além das articulações entre o compositor e colegas de trabalho, motivam essa e outras discussões em torno do tema.

Muitos dos elementos que K-ximbinho considera como importantes para definir as características do jazz, do samba e do choro, puderam ser verificados em seus de-poimentos e confirmados por meio de análise das parti-turas e gravações de algumas de suas composições. Mas além desse material surgiram, ao longo das observações, elementos não musicais que se ligavam diretamente às estratégias de promover uma mudança no samba e no choro entre as décadas de 1950 e 1960.

Uma breve observação sobre as capas dos discos que K-ximbinho lançou ou das quais participou, sugere a re-lação entre Brasil e Estados Unidos não só pela música, mas adota a cultura daquele país como um avatar que simula ou atesta a prática e o estilo musical do jazz que K-ximbinho e seus contemporâneos admiravam.

2 - Análise das capas de discoSARAIVA (2007) fez um trabalho de investigação históri-ca, seguindo um caminho temporal inverso; parte de uma coleção de discos relançados em CD e percebe que muitos desses discos, além de sugerir um gênero musical, tam-bém ressaltavam a intenção de propagandear uma nova tendência ou sucesso em realizar uma espécie de samba novo. Esse novo passa a ser verificado como “sambajazz” e, da mistura desses nomes percebe-se que a novidade é constatada não só pelos elementos melódicos, rítmicos

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ou instrumentais do jazz. Verifica-se também que, duran-te as décadas observadas, uma tendência em consumir determinada música envolvia os bares, cafés e boates na noite de Copacabana. Grande número de músicos se firma como operários da música, chegando a tocar em lugares diferentes na mesma noite. Dentre esses, destacavam-se aqueles que assumiam a iniciativa de lançar formas di-versas para promover a mudança do samba, e por sua vez em K-ximbinho o choro, adotando não só a música vinda dos Estados Unidos, mas também expressões do idioma inglês, vestimentas, comidas, composição visual. Esse ambiente não só se destacava pela música produzi-da, mas também era responsável por uma forma especí-fica de veicular o produto musical que ofereciam. Como

o jazz representava elemento estratégico comercial não somente apresentar uma música era suficiente, mas ca-racterizar o ambiente e os músicos garantiria veracidade e autenticidade; jazz supostamente autêntico tocado no Brasil, como mostra a foto de divulgação da Boite Beguin (Ex.1) em que aparace K-ximbinho e seus colegas trajan-do paletós e exibindo instrumentos musicais que, para a época, faziam referência maior ao jazz do que ao choro.

Foram analisadas capas de discos da orquestra, além de discos do próprio K-ximbinho, e nelas há o apelo comer-cial que visa informar ao consumidor o objetivo daquele material fonográfico pelos seus título e faixas executa-das. Frases de efeito no título dos discos como “no hit

Ex.1 - Concerto de jazz realizado na Boite Beguin, em junho de 1954. Em sentido horário, Enedir Santos (trompete), K-ximbinho (clarinete), Malagutti (contrabaixo), Dick Farney (piano).

Ex.2 - Ritmos e Melodias, Odeon 1956. Capa e contra-capa.

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parade” ou “play-boys”, músicas com o título em inglês (mesmo algumas compostas por brasileiros), sinalizavam a flexibilidade das orquestras com os novos ouvintes. Títulos com as palavras “dança” ou “festa” sugeriam a proposição de cada álbum; simular em casa, por meio da audição dos discos, a sensação de festa pela música, em referência às festas e bailes em que o conjunto musical do compositor toca.

Não há classificação de importância entre cada álbum para esse trabalho, qual atuação é mais ou menos im-portante, pois cada material há de compor um quadro da atuação de K-ximbinho e sua relação com os elementos do jazz, do samba e do choro no resultado musical.

2.1 - K-Ximbinho e seu Conjunto: Ritmos e Melodias (1956)Ritmos e Melodias é o primeiro compacto de K-ximbinho a ser publicado com mais de duas músicas. Segundo CÂ-MARA (2001) há discos anteriores de K-ximbinho con-tendo apenas uma música em cada face. O repertório é formado por oito composições, nenhuma de sua autoria. Verbalmente o álbum não comunica muito, mas visual-mente (Ex.2) já podemos perceber a intenção do compo-sitor em ilustrar a formação instrumental da banda que o acompanhava (Ex.3).

A formação instrumental escolhida por K-ximbinho re-montava àquela praticada pela Orquestra Tabajara, com a intenção de tocar samba com instrumentação e arranjos semelhantes aos das big-bands dos Estados Unidos. Além de constar no repertório músicas, como diria K-ximbinho, internacionais, a presença no repertório de músicas bra-sileiras como Jura, Gosto que me enrosco de Sinhô e Mur-murando do Maestro Fon-Fon serviam como exemplo de

samba e choro tocado no formato instrumental de or-questras populares2.

Ainda sobre os instrumentos listados, ganham destaque na frente da capa o violão e o contrabaixo acústico, en-tendidos aqui como elementos que reforçam a ponte en-tre samba e jazz no disco e na música.

Mesmo que haja a proposta de tocar músicas do cancio-neiro estadunidense, especificamente nesse disco verifi-ca-se a tradução de alguns títulos. Talvez na tentativa de ainda preparar o consumidor ou gerar alguma identifica-ção entre o disco e o ouvinte que não estivesse familiari-zado com expressões do idioma inglês. Assim “Unchained melody” aparece com o título Esperando Você, “Washer Woman” traduzida para Suba Espuma, I’d Forgive Myself traduzida como Nunca me Perdoei e o caso mais curio-so para Rock Around The Clock que ficou traduzida como Ronda das Horas excluindo a palavra rock do título suge-rido em português e ilustrado pelo desenho de um híbrido entre bateria e relógio despertador, onde o prato se as-semelha ao sino do relógio e os ponteiros e horas estão estampados no centro do bumbo.

Outro detalhe a se observar, e de certa forma irônico, é a presença de cachimbos na boca de alguns integrantes sugerindo associação com o apelido de Sebastião Bar-ros, K-ximbinho. Esse detalhe se choca principalmente com a declaração que deu à Fundação José Augusto (K-XIMBINHO, 1975) sobre não aprovar fumo de espécie alguma e o receio de receber um apelido que sugerisse associação com a prática de fumar. Além, claro, de ne-gar outra associação, também desmentida pelo compo-sitor de o nome K-ximbinho referir-se ao cachimbo que empresta formato ao saxofone.

Músicos participantes: Lista de músicas

Lado A:

K-Ximbinho (arranjos e clarinete) Jura (Sinhô)

Leal Britto (piano) Unchained Melody (Zaret e North)

Orlando Silveira (acordeon) Washer woman (Morales e Sunshine)

Scarambone (vibrafone) Love me or leave me (Donaldson e Kahn)

Lado B:

Geraldo Miranda (guitarra) Gosto que me enrosco (Sinhô)

Walter Rosa (sax-tenor) Rock around the clock (Freedman e De Knight)

Julinho Barbosa (trompete) I´d never forgive myself (Martin e McAvoy)

Trinca (bateria) Murmurando (Fon-Fon)

Jorge Marinho (baixo)

Jorge Viñolas (bongô)

Mario Godoy (percussão)

Ex.3 - Ritmos e Melodias, Odeon 1956, K-ximbinho e Seu Conjunto, Lista de músicas e instrumentistas.

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2.2 - Quinteto de K-Ximbinho: Em Ritmo de Dança vol.3 (1958)Em Ritmo de Dança Vol.3 foi lançado em 1958 e já sugere uma formação instrumental compacta (Ex.5) em relação ao disco anterior. A formação de quinteto sugere um grupo me-nor para tocar em pequenas boates, e pelo título e imagem podemos perceber clara sugestão em oferecer ao ouvinte simulação do evento em que se produzia a música do disco.Esse é o primeiro álbum entre os listados que além da infor-mação visual pelas imagens traz um texto explicativo sobre o compositor e o repertório. O texto na contra-capa do ál-bum, além de já relacionar música com dança, traz como

referência de modernização os arranjos e improvisos dos integrantes sobre as músicas listadas. Mesmo a composição de “I’ve got you under my skin” de Cole Porter é apresentada como ultrapassada e ganha renovação pelos arranjos suge-ridos. Também é o primeiro álbum do próprio K-ximbinho a conter entre o repertório, músicas de sua autoria3.

Foi nossa intenção neste LP, apresentar o conjunto, ou melhor, o Quinteto de K-ximbinho, em arranjos dançantes e modernos, que procuram fugir um pouco a vulgaridade reinante no gênero, seja pela valorização harmônica e contrapontística do material me-lódico, seja pela atuação individual dos executantes, cada qual verdadeiro mestre do seu instrumento.

Ex.4 - Em Ritmo de Dança; vol. 3, Polydor 1958. Capa e contra-capa.

Músicos participantes: Lista de músicas

K-ximbinho - Clarinete Lado A:

Walter Gonçalves - Piano Lá vem a baiana - samba (Dorival Caymmi)

Pedro Vidal Ramos - Contrabaixo An affair to remember - fox (Adamson, McCarey, Chandler, Warren)

Hugo Tagnin - Bateria Zezinho teimoso - choro (Nestor Campos)

Nestor Campos - Guitarra Tá? - baião (K-ximbinho - Hianto de Almeida)

Por causa de você - samba-canção (Antônio Carlos Jobim, Dolores Duran)

Mambo do Panamá - mambo (Steve Bernard)

Lado B

Teleguiado - choro (K-ximbinho)

Love me forever - calypso (Lynes, Guthrie)

Não diga não - samba-canção (Tito Madi, Georges Henry)

I’ve got you under my skin - fox (Cole Porter)

Penumbra - choro (K-ximbinho)

Se acaso você chegasse - samba (Lupcínio Rodrigues, Felisberto Martins)

Ex.5 - Em Ritmo de Dança; vol. 3, Polydor 1958, Quinteto de K-ximbinho, Lista de músicas e instrumentistas.

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2.3 - K-Ximbinho e Seu Conjunto: O Samba de Cartola (1958)Samba de Cartola foi lançado no mesmo ano do álbum anterior, 1958. Antes de desenvolver qualquer discussão sobre o trabalho, vale citar o texto que descreve a propos-ta do álbum na contra-capa do disco (Ex.6).

À primeira vista, o título deste LP dá a impressão de que a ideia era vestir o samba com roupagem de salão de festas, tira-lo do morro e do asfalto, jogando entre as quatro paredes de um ambiente “snob” e falsamente erudito.Na verdade quando imaginamos esse álbum, juntamente com o completo musicista K-ximbinho, o que esteve sempre presente, foi apresentar o que de melhor já se compôs ontem e hoje, em con-cepções modernas e arrojadas, utilizando os recursos da harmonia contemporânea, os efeitos instrumentais agora em voga, tudo dentro das possibilidades técnicas da alta fidelidade.O repertório clássico, bem como as baladas românticas hoje em grande evidência garantem a facilidade do entendimento temático deste novo idioma aqui expressado por K-ximbinho.Alguns puristas poderão ver nesses arranjos uma forte influência da linguagem “jazzística”, mas por outro lado, chamamos a aten-ção para o fato de se ter abolido o piano e em seu lugar aparecer a guitarra, o que vem trazer ao conjunto aquela sonoridade das antigas serenatas (no caso serenatas à la 1958).Do repertório não há muito o que explicar, uma vez que, se trata de títulos todos eles por demais conhecidos e já permanentemente incluídos no cancioneiro popular de nossa gente.[...] Os que gos-tam, encontrarão neste micro-sulco uma forte motivação para tal, e os que preferirem apenas ouvir, temos a certeza, terão muito o que apreciar e assimilar neste “revolucionário” (se é que assim podemos chamar...) lançamento da Polydor. (K-ximbinho, 1958b)

Embora se verifique o esclarecimento sobre evitar a pri-meira impressão em associar samba vestido de cartola, de fato é o que a imagem da capa sugere (Ex.6); um mulato carioca sambista de traje de gala. Nesse caso as impres-sões vão além. Antes de consultar as capas do álbum e colher o depoimento de K-ximbinho sobre as intenções com a produção desse disco, havia a suspeita de que o ál-bum fosse todo constituído de músicas do sambista Age-nor de Oliveira, o Cartola (1908-1980). Alguns dicionários ditos especializados (CÂMARA, 2001) listam esse álbum na discografia de K-ximbinho, mas não dão maiores in-formações sobre as músicas que compõem o repertório o que dificultou parte da investigação. Esse é o único álbum do qual, até o fechamento da pesquisa, não dispusemos dos arquivos de áudio.

Não sabemos se na elaboração desses textos das contra-capas tinham participação de K-ximbinho, mas já diziam muito sobre os processos composicionais e observações do compositor e produção com o mercado musical. É o único álbum até aqui inteiramente composto por músicas brasileiras, algumas de compositores que mais tarde pro-tagonizariam a Bossa Nova; Tito Madi e Antônio Carlos Jobim. Também não há informação sobre gênero ou esti-lo musical ao lado das composições nas capas, conforme descrito (Ex.7), o que se alinha com a discrição no texto sobre não precisar falar muito sobre o repertório.

Pode se notar certo cruzamento e divergência entre novo e velho, moderno e tradicional quando, na justificativa, se falam de “concepções modernas e arrojadas, utilizando

O repertório, além de incluir dois clássicos do nosso cancioneiro popular (Lá vem a baiana e Se acaso você chegasse), apresen-ta também dois números da nova geração de autênticos valores (Por causa de você e Não diga não). O clássico de Cole Porter (I’ve got you under my skin) em roupagem nova e brilhante, além de dois números da parada de sucessos atuais (Love me forever e An affair to remember), juntamento com o Mambo do Panamá que defendem a parte internacional. Incluímos também quatro núme-ros dos próprios executantes do Quinteto (Tá?, Zezinho teimoso, Penumbra e Teleguiado), onde chamamos a atenção dos ouvintes para as passagens improvisadas, verdadeiros achados no gênero. (K-XIMBINHO, 1958a)

O título poderá sugerir que outros álbuns em série fo-ram produzidos pelo mesmo grupo, mas após verificar outros discos da época, foi constatado que algumas dessas séries tinham em cada volume um músico ou grupo diferente.

As imagens sobrepostas na capa (Ex.4) não mostram cla-ramente casais ou grupo de pessoas dançando, apenas um homem diante de uma mulher, talvez a convidando para dançar, mas sugere o ambiente de boate a meia luz, com pessoas bem vestidas e garrafas de vinho o que se pode relacionar com a classe social e econômica a que se des-tinava o álbum. Conforme verificado por SARAIVA (2007), entre outras a boate Sacha’s, onde tocava K-ximbinho, oferecia cardápios variados de bebida e comida, mas a taxa de consumação, couvert artístico e preço dos produ-tos no cardápio eram sempre caros o que já segregava e determinava a condição financeira dos frequentadores. A autora também observa que alguns desses lugares não se destinavam somente à dança, mas também apenas ver e ouvir os grupos musicais.

[...] No Sacha´s uma porção de faisão custa 700 cruzeiros, couvert e whisky 130. No Arpège a consumação mínina é de 400 cruzei-ros, o que dá pra três doses de whisky ou um estrogonoff e duas cubas-libres. No Fred´s o couvert é de 500 cruzeiros e mais 500 de consumação mínina porque está em temporada internacional com Roy Hamilton. (...) Para termos uma ideia de custos, o dólar está a 141,30 cruzeiros, uma cadeira numerada no maracanã 150, arquibancada 34, e salário de uma garota propaganda de TV em fase de inicio é de 4000. (apud SARAIVA, 2007, p.30)

Sobre as músicas é possível verificar que o gênero ou estilo musical já era citado ao lado dos títulos das composições (Ex.5), embora se verifique que, no álbum anterior essa informação também estava disponível, mas apenas no selo sobre as faces do disco. Aqui a citação dessas músicas ainda não sugere a quantida-de de estilos e gêneros musicais, conforme observado por SARAIVA (2007), que viriam a surgir pela tentativa de promover a modernização ou mudança no samba. Mas já ressalta a noção de diversidade musical entre músicas brasileiras e estrangeiras. A classificação das músicas de K-ximbinho por samba-jazz ou choro-jazz ainda não está evidente, mas já se pode verificar que os elementos de cada cultura musical já vinham se misturando, a definição desse resultado só acontece em seguida por meio de termos e expressões específi-cas. Muitas ditas somente entre os músicos, mas não explicitadas nas capas de disco.

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os recursos da harmonia contemporânea, os efeitos ins-trumentais” e a defesa, quando se fala da substituição do piano pela guitarra associada à “sonoridade das antigas serenatas”. Essa atribuição de que o piano seria o gran-de responsável pela execução da “linguagem jazzística” não parece menos diferente da proposta de K-ximbinho quando se utiliza dos “recursos da harmonia contempo-rânea”, visto que o compositor declara que esse aprendi-zado veio, com as aulas que teve com H. J. Koellreutter

entre 1951 e 1954, para garantir um diferencial que lhe faltava no ensino de música popular no Brasil. Nota-se também que a percepção da tecnologia como aliada no registro e veiculação da obra musical já entra como elemento estratégico na propaganda do disco. Alta fidelidade é o que se esperava de um disco que contives-se arranjos com harmonias contemporâneas e garantisse uma experiência auditiva satisfatória, a altura da propos-ta “revolucionária” a que se intitulava o disco.

Ex.6 - O Samba de Cartola, Polydor 1958. Capa e contra-capa.

Músicos participantes Lista de músicas

August Keller e Hans Breittinger - Oboé Lado A

Luiz Barbosa Mendes - Trompete Viva Meu samba - Billy Blanco

Nestor Campos - Guitarra Agora é cinza - Bide e Marçal

Pedro Vidal Ramos - Contrabaixo Chove lá fora - Tito Madi

Paulo Fernandes Magalhães - Bateria Aquarela do Brasil - Ary Barroso

Milton Marçal e K-ximbinho - Seção de ritmo E eu sem Maria - Alcyr Pires Vermelho - Dorival Caymmi

Ary Paulo da Silva - Trompa A voz do morro - Zé Keti

Aderbal Moreira - Saxofone barítono Lado B

Juarez Assis de Araújo - Saxofone tenorOnde o céu azul é mais azul - João de Barro, Alberto Ribeiro e Alcyr Pires Vermelho

Jorge Ferreira da Silva - Saxofone alto Se você jurar - Ismael Silva, Nilton Bastos e Francisco Alves

Meireles e Antônio Souza - Flauta Sucedeu assim - Antônio Carlos Jobim e Marino Pinto

K-ximbinho - Arranjos e clarinete João valentão - Dorival Caymmi

Ai! Que saudades da Amélia - Ataulfo Alves e Mário Lago

Falsa baiana - Geraldo Pereira

Ex.7 - O Samba de Cartola, Polydor 1958, K-ximbinho e Seu Conjunto, Lista de músicas e instrumentistas.

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Ainda assim, se não houve sugestão direta, pelo repertó-rio, de algo que remetesse à influência da cultura dos Es-tados Unidos, a citação da expressão “linguagem jazzís-tica”, a referência visual do mulato de fraque e cartola e a instrumentação utilizada no disco resguardavam a ten-dência em promover, agora de forma discreta, a mudança ou modernização do samba pelos elementos da cultura estrangeira. Segundo depoimento de K-ximbinho, tanto o termo “cartola” nesse disco, como “playboy” no próximo disco a ser analisado refletiam a intenção do compositor em acrescentar novo elemento ao samba.

K-ximbinho – [...] na Polydor gravei dois discos. O primeiro foi Samba de Cartola, sambas com arranjos modernos porque o con-junto que eu introduzi aqui foi aproveitando alguns instrumentos de orquestra sinfônica dentro da música popular. Com esse tipo de conjunto eu gravei dois discos; Samba de Cartola e K-ximbinho e Seus Playboys Musicais. Nesse tempo essa palavra playboy tava na moda, então eu aproveitei e pus o título. Depois fiquei gravando, fiquei fazendo festivais de jazz com esse tipo de conjunto também. (K-XIMBINHO, 1980b)

2.4 - K-Ximbinho e Seus “Play-Boys” Musicais (1959)Conforme citado anteriormente, K-ximbinho gravou esse álbum pela Polydor em 1959, mas ao contrário do que está dito e, talvez por esquecimento, o compositor gra-vou três discos e não dois pela gravadora. A capa desse álbum (Ex.8) traz mais referências e de forma mais direta sobre a presença da cultura dos Estados Unidos na obra de K-ximbinho, sugerindo também um estilo de vida no Rio de Janeiro daquela década. Nesse sentido as imagens sugerem que a orquestra ou banda de boate foi à rua pela ilustração dos ladrilhos e da moto. Sobre os instrumentos, a presença do pandeiro, do afoxé e do violão juntos de trombone e trompete sugere a formação instrumental das orquestras populares assegurando o ritmo do samba e a melodia do fox-trot ou beguine, conforme classificação das músicas na contra-capa (Ex.9).

O texto na contra-capa (Ex.10) foi escrito como se intera-gisse com o ouvinte nesse caso a associação com festa é maior, mas agora sugerindo que a festa seja em casa e não mais na boate. O repertório (Ex.9) continua a misturar mú-sicas estrangeiras entre músicas brasileiras e novamente a presença de referências da Bossa Nova pela música Che-ga de Saudade. Essa observação levanta a discussão sobre uma formatação já bem sucedida de música dos Estados Unidos e música brasileira, ou jazz e samba, especifica-mente. Podemos verificar que a década de 1950 passa por todo um processo de divulgação e experimentação dos ele-mentos musicais de dois países na busca pela moderniza-ção do samba. Esses elementos se encontram ao longo da década, mas ainda distintos, mas a Bossa Nova talvez aqui no disco de K-ximbinho sugira um resultado bem sucedido de mistura, embora ainda se precise atender à demanda de consumo tocando ainda a música A, de fora e B, nacional.

Sobre os estrangeirismos pelas palavras verificamos di-versos exemplos; play-boy, descrevendo pessoas descon-traídas e de bem com a vida, party substituindo festa, talvez sugerindo maior animação, El-Rey Whisky e outras bebidas destiladas que muito pouco se equivalem com a tríade samba, suor e cerveja, mas sim com vestimentas elegantes, músicas de salão e civilidade financiados por um alto nível financeiro.

2.4 – 2º Concerto de Jazz de Camera no Teatro Municipal (1960)Desse álbum destacaremos a presença de K-ximbinho com uma formação por ele denominada como tenteto, termo que sugere aportuguesação de tentet. A denomina-ção soa confusa e deveria sugerir um grupo formado por dez integrantes. Mas se observarmos a lista de músicos participantes (Ex.12), perceberemos, além de K-ximbinho, doze músicos que se revesam. Essa formação tem Paulo Moura tocando saxofone alto. Ressaltamos a presença de

Ex.8 - K-ximbinho e seus “play-boys” musicais, Polydor 1959. Capa e contra-capa.

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Lado A: Lado B:

Deixa por minha conta - Cipó Convite ao samba - Gaúcho e Inaldo Villarin

De corazon a corazon - Ruiz/Mendes Em meus braços - Almeida Rego e Irany de Oliveira

Exaltação a Mangueira - Enéas Brites e Aloísio Costa Mistura Fina - Luis Bandeira

Eu quero é sossego - K-Ximbinho The song is you - versão cantada - Kern/Hemmerstein

I´ve got you under my skin - versão cantada - Cole Porter Chega de Saudade - Antônio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes

Carioca 1954 - Ismael Netto A woman in love - Frank Loesser

Ex.9 - K-ximbinho e Seus “play-boys” musicais, Polydor 1959. Lista de músicas.

Ex.10 - K-ximbinho e seus “play-boys” musicais, Polydor 1959. Texto contra-capa.

Moura aqui por dois fatos específicos; o saxofonista sola o tema Just Walking de K-ximbinho e em entrevista nos conta sobre ter dado o nome a música.

Essa é a única composição de K-ximbinho com título em inglês e foi composta especialmente para esse evento. O grupo é composto por muitos dos músicos presentes nos discos anteriores. Essa formação é descrita pelo composi-tor como aquela que lhe permitiu trabalhar melhor essa combinação de samba com jazz e está presente nos discos anteriores publicados pela Polydor. Nota-se que a presença da bateria paralela à seção rítmica revela as bases rítmicas responsáveis por evidenciar de forma mais característica o jazz ou o choro conforme a música tocada no programa.

Esse evento em especial teve como regra que seus participantes apresentassem músicas novas, que es-treariam naquela ocasião. Segundo Paulo Moura Just Walking não tinha título e como o evento era de jazz, K-ximbinho lhe perguntou que título seria adequado para a peça. Embora o título remeta à prática walking do jazz, MOURA (2008), em entrevista, não deu maio-res detalhes sobre o porque desse nome, além da esco-lha pelo idioma em inglês.

A importância de que se mantivesse no evento um pro-grama exclusivamente jazzístico é evidenciado pelo re-pertório escolhido por K-ximbinho, além dos Standards citados (Ex.12), Just Walking é a que menos se assemelha com as demais de sua autoria e o tema da parte A remete ao tema inicial da composição Autumn Leaves de Joseph Kosma e Jacques Prévert.4

Segundo K-ximbinho, essa banda o acompanhou em ou-tros festivais de jazz entre Rio de Janeiro e São Paulo que aconteciam sob organização de Paulo Santos, des-crito pelos jornais da época (Ex.13) como disc-jockey e responsável por eventos e lugares diversos selecionando grupos de jazz. Esses concertos pareciam ter grande re-ceptividade ou pelo menos despertavam interesse de um público específico, uma vez que K-ximbinho cita cerca de três eventos dessa natureza.

K-ximbinho - Com esse tipo de conjunto eu gravei dois discos; Samba de Cartola e K-ximbinho e Seus Playboys Musicais. [...] De-pois fiquei gravando, fiquei fazendo festivais de jazz com esse tipo de conjunto também.Lílian – Quando, esses festivais de jazz?K-ximbinho – Isso faz muito tempo, 1955, 1957, sob a direção de Paulo Santos, nosso locutor.

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Músicos participantes Lista de músicas

K-Ximbinho - clarinete DICK FARnEY TRIo

Augusto Keller - oboé - solo faixa 05 01 - Risque (Ary Barroso)

Ary Paulo - trompa 02 - Um Tema em Fuga (Dick Farney)

Juarez - sax tenor 03 - We’ll Be Together Again (Fisher - Laine)

Aurino - saxofone barítono TEnTETo DE K-XIMBInHo

PauloMoura - saxofone alto - solo faixa 06 04 - Scarlet’s Gone (Vrs. Paulo Santos)

Luiz Mendes - piston 05 - Sophisticated Lady (Duke Ellington)

Pedro Vidal Ramos - baixo 06 - Just Walking (K-Ximbinho)

Paulinho “Baterista” - bateria faixas 05 e 06 BRAZILIAn JAZZ QUARTET

Oswaldo Oliveira Castro - bateria faixa 04 07 - Not So Sleepy (Mat Mathews)

Ramon, Rubens Bassini, Jorginho - seção rítmica 08 - Smoke Signal (Gigi Gryce)

ALL-STARS

09 - Tema sem Nome (Cipó)

Ex.12 - 2o Concerto de Jazz de Câmera no Teatro Municipal, Prestige 1960. Tenteto de K-ximbinho, Lista de músicas e instrumentistas.

Lílian – Mas eles eram realizados no rádio?K-ximbinho – Não. Eram realizados em palcos, em teatros, como o teatro municipal. Ele realizou vários concertos desse. Então tinham vários conjuntos, dos quais o meu.Lílian – Mas eram conjuntos de músicas nacionais? [...] os músicos eram brasileiros?K-ximbinho – Não. São jazz, conjuntos com música americana, música variada, mas predominava mais jazz. [...] Brasileiros, mú-sicos brasileiros. O músico brasileiro é versátil. Depois no Copaca-bana Pallace, dessa vez organizado pelo Sindicato dos Músicos... O Paulo Santos é pioneiro nessa questão de organização de festivais e em todos eles eu fiz parte. (K-XIMBINHO, 1980b)

Ex.11 - 2º Concerto de Jazz de Camera no Teatro Municipal, 1960. Capa de disco.

3 – Considerações finaisOs elementos verificados na obra de K-ximbinho pas-saram por adaptações e experiências diversas ao longo de seus discos. A frase, “modernizei meu choro, sem descuidar do roteiro tradicional” (apud CAZES 1999, p.119), sintetiza todo o processo e trajetória do com-positor. Conclui-se então que, processos de mudança não acontecem da noite para o dia, mas levam tempo para ajuste e não significam sucesso garantido sempre.

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O novo ou o moderno, no caso de K-ximbinho, seriam as palavras que anunciariam um processo e intenção de mu-dança, o jazz escrito junto da palavra samba seria a cons-tatação da presença desse outro, que tem lugar de origem confirmado. Não se pretendia criar um jazz brasileiro, mas sim inovar o samba e, consequentemente o choro, e o que hoje temos paralelo aos dois gêneros, chamado de músi-ca instrumental brasileira. Essa inovação do samba e do choro se fazia pela utilização de elementos claramente definidos por K-ximbinho; o ritmo e os instrumentos do samba e do choro manteriam a noção de música brasileira como lugar de origem da sua música, e o jazz garantia a representação “fiel” da cultura dos Estados Unidos.O discurso sobre uma nova proposta para o samba pode ser verificado em SARAIVA (2007) pelos muitos exem-plos de discos que apresentavam termos como “novo”, “esquema novo” e por fim samba-jazz. Esse mesmo exemplo pode ser verificado no álbum Samba Esquema

Novo de Jorge Ben, trabalho que tem a participação de J.T. Meirelles e Os Copa 5, e inicia uma carreira que leva Jorge Ben a produzir o estilo que hoje conhecemos como samba-rock.

Diante desse contexto consideramos a Bossa Nova como o ápice do processo que teve várias etapas: o samba, o samba novo, o samba-jazz e a Bossa Nova. Cumprindo assim uma linha de desenvolvimento onde esse último gênero definitivamente tem características próprias, não mais se configurando como um pastiche. Alinha-do com a reflexão de SARAIVA (2007), a trajetória de experiências daqueles gêneros anteriores à Bossa Nova não pode ser pensada como exemplo paralelo sobre um jeito certo ou errado de misturar samba, choro e jazz, mas sim perceber que até hoje reflexos desses processos permitem novas formas de repensar práticas, gêneros e estilos musicais.

Ex.13 - Recorte de notícias sobre o 2o concerto de jazz. Paulo Santos acima à direita e K-ximbinho em duas imagens no centro à direita.

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COSTA, P. G.; CASTRO, B. M. Elementos extra-musicais na obra de K-ximbinho... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.124-137.

DiscografiaK-XIMBINHO. Ritmos e Melodias: K-ximbinho e Seu Conjunto. K-ximbinho: composição, regência e clarinete. São Paulo:

ODEON 3039 (LP de vinil 33 RPM), 1956.______. Em Ritmo de Dança vol.3: Quinteto de K-ximbinho. K-ximbinho: composição regência e clarinete. Rio de Janeiro:

Polydor LPNG 4015 (LP de vinil 33 RPM), 1958a.______. O Samba de Cartola: K-ximbinho e Seu Conjunto. K-ximbinho: regência e clarinete. Rio de Janeiro: Polydor 4025

(LP de vinil 33 RPM), 1958b.______. K-ximbinho e Seus “Play-boys” Musicais. K-ximbinho e Seu Conjunto. K-ximbinho: composição, regência e clari-

nete. Rio de Janeiro: Polydor 4048 (LP de vinil 33 RPM), 1959.

notas1 Terminologia utilizada para designar os músicos que tocam e pertencem à comunidade do choro.2 Usaremos o termo “orquestra popular” para estabelecer associação com a definição de K-ximbinho, assim teremos distinção de banda de música,

associada à banda militar, orquestra erudita, associada ao repertório de música erudita e orquestra popular, associada às big-bands.3 Composições anteriores como “Sonoroso” e “Sonhando” foram gravadas pela Orquestra Tabajara em 1946, tendo K-ximbinho como integrante

tocando saxofone alto. Em seguida o compositor publica em disco compacto as composições “Perplexo” e “Tudo Passa” no ano de 1952.4 Autumn Leaves foi composta pelos autores franceses citados acima em 1945 com o título de Les Feuille Mortes, recebeu letra em inglês de Johny

Mercer em 1945, em seguida foi assimilada pelo cancioneiro estadunidense e pelo repertório standard do jazz.5 Philips, 1963.

Pablo Garcia da Costa iniciou sua formação no programa de Bacharelado Geral em Música pela Universidade Estadual do Ceará, concluído em 2002. Recetemente concluiu o curso de mestrado pelo programa de pós-graduação Música em Contexto na Universidade de Brasília, defendendo dissertação sobre tradição e inovação, os elementos do jazz e choro e os processos de mistura entre gêneros musicais na obra de K-ximbinho em 2009. Publicou os trabalhos “O tradicional e o moderno no discurso de K-Ximbinho” no primeiro volume da Revista “O Mosaico” de Pesquisa em Artes / Faculdade de Artes do Paraná e “Modernizei meu choro sem descuidar do roteiro tradicional”: tradição e inovação em K-ximbinho (Sebastião Barros)” no XIX Congresso da ANPPOM, 2009, Curitiba.

Beatriz Magalhães Castro iniciou a sua formação em música em Brasília com Nivaldo de Souza e Odette Ernest Dias. Único artista latino-americano a receber o Primeiro Prêmio em flauta do Conservatório Nacional Superior de Música de Paris, e a obter ainda doutoramento na mesma área na Juilliard School of Music. Realizou pós-doutoramento na Uni-versidade Nova de Lisboa na área de Musicologia. É Professor Adjunto IV na UnB, onde foi responsável pela instalação do Programa de Pós-Graduação - Música em Contexto e atua como Editora da Revista do programa. Suas publicações incluem a inclusão na coletânea “Music’s Intellectual History: founders , followers, and fads” (Nova Iorque, 2009), volu-me inaugural da série RILM perspectives series. Recentemente recebeu o Prêmio Bolsa de Pesquisa do MinC – Fundação Biblioteca Nacional (edição 2009-2010). Em 2010, realizará o projeto “Beatriz interpreta Tacuchian” sob a coordenação do compositor, a ser lançada pelo selo ABM-Digital da Academia Brasileira de Música, numa proposta de valorização da produção musical brasileira contemporânea.

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Recebido em: 22/01/2010 - Aprovado em: 22/06/2010

Guerra-Peixe: arranjador de orquestras de rádio

Bruno Renato Lacerda (Universidade Estadual Paulista, São Paulo, SP)[email protected]

Resumo: Revisão biográfica sobre o músico brasileiro Guerra-Peixe e sua carreira como arranjador de orquestras de rádio. Objetiva-se compreender como compositores clássicos, como Guerra-Peixe, encontraram na esfera popular um meio de vida. Inclui dados biográficos pouco conhecidos sobre o compositor.Palavras-chave: Guerra-Peixe; música popular brasileira; orquestra de rádio, arranjo.

Guerra-Peixe: an arranger of radio orchestras

Abstract: Review of literature about Brazilian musician Guerra-Peixe and his career as an arranger of radio orchestras. It aims at understanding how classical composers such as Guerra-Peixe found in the popular sphere a way of living. It also presents some lesser known biographical data on the composer.Keywords: Guerra-Peixe; Brazilian popular music; radio orchestra; arrangement.

1 – IntroduçãoEssa recuperação da trajetória de Guerra-Peixe como ar-ranjador de orquestras de rádio traça em linhas gerais a atuação musical dele no período de vigência dessas orquestras e corresponde à contextualização do estudo analítico de seus arranjos realizada pelo presente autor em sua dissertação de mestrado intitulada Arranjos de Guerra-Peixe para a orquestra da Rádio Nacional do Rio de Janeiro.

César Guerra-Peixe nasceu na cidade de Petrópolis, esta-do do Rio de Janeiro, em 18 de março de 1914. Filho de pais portugueses recém-chegados ao Brasil, Guerra-Peixe teve nove irmãos, sendo que um deles nasceu no navio durante a viagem a caminho do Brasil. Segundo o depoi-mento prestado pelo próprio GUERRA-PEIXE (1992b), o sobrenome Peixe se deve ao fato de seu avô ter sido um pescador. Sua família foi a primeira com esse sobrenome no Brasil.

Guerra-Peixe aprendeu violão e bandolim por meio do in-centivo e das instruções recebidas de seu pai e, aos oito anos de idade, em 1922, já integrava o grupo de choro chamado Choro de Carvalho do botequim de portugueses.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.23, 195 p., jan. - jul., 2011

Ainda segundo o mesmo depoimento, o grupo era for-mado pelos seguintes instrumentos: bandolim (Guerra-Peixe), trombone, clarinete, contrabaixo (rabecão), violão, surdo e outros instrumentos de percussão (GUERRA-PEI-XE, 1992b).

Aos 11 anos de idade, ingressou no curso de violino da Escola de Música Santa Cecília, na qual teve aulas com o professor de violino Gaó Omicht. Nesse curso, Guerra-Peixe, de acordo com o seu depoimento, obteve avanço acima da média que resultou em prêmios e, posterior-mente, na posição de professor auxiliar de violino (GUER-RA-PEIXE, 1992b).

Em 1928, aos 14 anos de idade, ingressou como segundo violino da Orquestra do Cine Glória de Petrópolis (cinema mudo), emprego que lhe rendia o salário de seis mil réis por dia, 180 por mês, segundo ele, “mais do que muito pai de família recebia na época” (GUERRA-PEIXE, 1992b).Aos 16 anos de idade, compôs uma peça para piano, um tango intitulado Otília, em homenagem à sua namora-da. Seu pai apresentou a peça para o maestro da banda de Petrópolis, Firmino Borragio, que escreveu um arran-

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jo para ser tocado em uma das sessões do Cine Glória. Guerra-Peixe estudou a partitura desse arranjo e decidiu, a partir dali, compor as próximas peças já com instru-mentação apropriada para os grupos disponíveis, mas sempre contando com os conselhos e a ajuda de Firmino Borragio. A partir desse momento, segundo o seu depoi-mento, GUERRA-PEIXE (1992b) passou a ter seu interesse despertado para o lado da criação musical. Nesse senti-do, suas diversas leituras de partituras adquiriram uma nova perspectiva: a da compreensão da escrita musical enquanto criação.

Em 1932, aos 18 anos de idade, entrou no Instituto Na-cional de Música do Rio de Janeiro e por dois anos ia duas vezes por semana de Petrópolis ao Rio de Janeiro para ter aulas de violino com “Paulina D’Ambrósio, harmonia com Arnaud Gouveia e conjunto de câmara com Orlado Frederico” (NEPOMUCENO, 2001, p.18).

Segundo o artigo escrito por AGUIAR (2007, p.130-131) no livro Guerra-Peixe: um músico brasileiro, em 1934, o compositor concluiu o curso de violino do Instituto Na-cional de Música do Rio de Janeiro e passou a residir nesta cidade definitivamente. Começou a trabalhar como violi-nista substituto em restaurantes, bailes e gafieiras e, após três meses substituindo o violinista da Taberna da Glória, conseguiu emprego fixo neste lugar, sendo logo transfe-rido para a Orquestra da Casa Belas Artes, emprego que manteve até 1938 quando foi dispensado juntamente com toda a orquestra.

Também segundo AGUIAR (2007, p.131), durante o pe-ríodo em que trabalhou como violinista da Orquestra da Casa Belas Artes, Guerra-Peixe foi apresentado a Ra-damés Gnattali pelo pianista da mesma orquestra, seu vizinho do bairro do Andaraí: Newton Pinheiro. Os dois, durante as folgas do café-concerto, passaram a fazer frequentes visitas à Rádio Nacional do Rio de Janeiro. Nas primeiras visitas, Guerra-Peixe apresentou seus arranjos a Gnattali na busca de críticas e sugestões e, depois, Gnattali, ao conhecer a escrita de Guerra-Peixe, estendeu-lhe o convite para escrever arranjos “para a famosa Orquestra de Serenata (dois violinos, flauta, clarinete, violoncelo, piano, contrabaixo e bateria)”, orquestra responsável por executar música ao vivo em programas da Rádio Nacional do Rio de Janeiro. “Em 1937, Radamés foi convidado por Ayres de Andrade, di-retor artístico do programa A Voz do Brasil do DPI [De-partamento de Imprensa e Propaganda] para participar do suplemento musical. Nesse programa, Radamés exe-cutava várias valsas e choros de Guerra-Peixe”.

Ainda em 1938, Guerra-Peixe foi convidado pelo compo-sitor e diretor musical da gravadora Odeon Vicente Paiva para trabalhar como arranjador substituto do maestro Rondon nessa gravadora ao lado de Pixinguinha. Vicen-te Paiva conheceu a trabalho de Guerra-Peixe por meio dos arranjos que ele fazia (muitas vezes de graça) para as músicas de Ronaldo Lupo e Sant-Clair Senna, geralmente,

gravados pelos cantores Gastão Formenti, Moacir Boe-no Rocha, Aurora Miranda ou, até mesmo, por Francisco Alves. Por exemplo, este último gravou a música Sonhei com teus carinhos, de Sant-Clair Senna e Guerra-Peixe, lançada pelo selo Columbia. GUERRA-PEIXE (1979, p.27) descreve como foi esse período de sua vida:

Comecei a me aprimorar e fazer arranjos para a Aurora Miranda, Francisco Alves, etc. Aliás, o Chico gravou um samba meu na épo-ca, meu e do Sant-Clair Sena, chamado Sonhei com Teus Carinhos. Eu sei que dois dos meus arranjos foram parar na Odeon, numa época em que Pixinguinha e o maestro Rondon, que estava do-ente e não podia orquestrar. Era um trabalho para os dois, mais ainda para um só. Foi quando o Vicente Paiva, na época diretor da gravadora, viu esses dois arranjos e me convidou para trabalhar na gravadora.

Nessa época de sua vida, Guerra-Peixe leu pela primeira vez o livro, de Mário de Andrade, Ensaio sobre a música brasileira e chegou à seguinte constatação: “Foi aí que eu tive a primeira revelação (...) eu nem sabia que existia a tal música brasileira” (FARIA JR., 1997, p.9).

A soma desses fatores – contrato na Odeon, leitura das propostas de Mário de Andrade como estímulo aos com-positores brasileiros, o convívio com Radamés Gnattali, um músico que se sustentava com o trabalho de arran-jador, o desgosto do trabalho instável de músico da noi-te e a finalização dos estudos de violino – contribuíram para que Guerra-Peixe tomasse a decisão de procurar um professor para aprofundar os seus estudos musicais. As-sim, como citado por FARIA JR. (1997, p.9), Guerra-Peixe declarou: “procurei um professor e encontrei um ótimo em Newton Pádua”. Com isso, de 1938 até 1943, Guerra-Peixe teve aulas particulares com Newton Pádua apren-dendo contraponto, fuga, composição, instrumentação, orquestração e harmonia. Nesse meio tempo, segundo ONOFRE (2005, p.240), entrou no Conservatório Brasileiro de Música, em 1941, sendo o primeiro aluno do estabele-cimento e do Brasil a concluir o curso de Instrumentação e Composição, no final do ano de 1943.

Com o progressivo avanço dos estudos, Guerra-Peixe de-senvolveu o domínio da técnica de composição musical, o que veio a se somar ao treinamento prático advindo da feitura de arranjos fazendo com que assumisse a carreira e a postura da profissão de arranjador e, logo, a de com-positor – “e quando menos esperava virei compositor”, citado por FARIA JR. (1997, p.9).

2 - Rio de Janeiro, 1942-1946: o trabalho na Rádio TupiEm 1942, o saxofonista dirigente de orquestras itineran-tes Otaviano Romero Monteiro (1908-1951) – o maestro Fom-Fom –, que entrou e saiu só na Rádio Tupi do Rio de Janeiro mais de três vezes, convenceu o diretor supe-rintendente desta emissora, Theóphilo de Barros Filho, a contratar Guerra-Peixe para o cargo de arranjador. Acon-tece que Fom-Fom, como era conhecido, não possuía su-ficiente conhecimento para realizar arranjos para orques-tra de rádio, o que gerou o argumento de que não sabia

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ler partitura, mas sabia comunicar aos músicos o que queria. Assim, naquele ano se iniciou, formalmente, a car-reira de Guerra-Peixe como arranjador de orquestras de rádio. Segundo o depoimento do próprio GUERRA-PEIXE (1992a), esse contrato não o impedia de realizar outros trabalhos, mesmo em outras emissoras, todavia, durante o seu contrato com a Rádio Tupi do Rio de Janeiro ele não fez arranjos para nenhuma orquestra de outra emissora.

Seus primeiros arranjos na Rádio Tupi foram executados contemporaneamente à estreia do programa História do Rio pela música, que teve início no dia 21 de dezembro de 1942, sobre a organização do radialista Almirante. CABRAL (1990, p.213, 214) menciona que a orquestra da emissora ainda contava com um coral e que os arranjos de Guerra-Peixe eram regidos pelos maestros Fom-Fom e Milton Calazans.

No dia 4 de maio de 1943, estreou o programa Instantâne-os Sinfônicos Schenley, inspirado na estética composicio-nal de George Gershwin. O programa tinha um forte cunho político de exaltação americana, sobretudo por causa da presença brasileira na Aliança contra o Eixo. O programa, patrocinado pela marca de uísque Schenley, que nunca chegou ao Brasil, contava com um elenco de cem pessoas, tendo como diretores Olavo de Barros e Paulo Porto, reda-ção de Guilherme Figueiredo e direção geral de Theóphilo Barros Filho. Guerra-Peixe ganhava cerca de três contos de réis por programa tendo que escrever arranjos e com-por “quase uma hora de música orquestral em dois dias” (AGUIAR, 2007, p.133). Segundo GUERRA-PEIXE (1979, p.1-2) declarou, “o fato é que, durante dois anos, através do programa, tive uma orquestra sinfônica à minha dispo-sição”. Vale dizer que, segundo o depoimento de GUERRA-PEIXE (1992b), entre os músicos integrantes dessa orques-tra estava seu professor Newton Pádua executando ao violoncelo os arranjos que Guerra-Peixe escrevia.

O desenvolvimento de sua técnica composicional ocorreu em paralelo ao aumento de seu prestígio como compo-sitor. O envolvimento com o meio profissional das rádios forneceu oportunidades para Guerra-Peixe divulgar sua obra e se tornar conhecido no meio artístico da época. Um exemplo disso foi o convite feito pelo empresário radiofônico Assis Chateaubriand para a apresentação da Sinfonia nº 1 de Guerra-Peixe na inauguração dos novos aparelhos transmissores da Rádio Tupi, que foi realizada no Teatro Municipal, no dia 9 de julho de 1944, como lembra AGUIAR (2007, p.134).

Guerra-Peixe adotou o nome Fase inicial para designar as composições de 1942 a 1943 e nessa fase incluiu apenas duas obras: a Suíte Infantil e o hino patriótico Fibra de herói 1, também conhecido como Bandeira do Brasil, “com texto de Teófilo de Barros Filho e gravação original de Silvio Caldas” (MIGUEL, 2006, p. 24). Para o musicólogo FARIA JR. (2000, p.173), a Fase Ini-cial de Guerra-Peixe corresponde ao período de 1937 a 1944. Nesse período, as composições de Guerra-Peixe

apresentam uma estética neoclássica com elementos extraídos da música popular brasileira, por exemplo, o choro. Porém, segundo FARIA JR. (2000, p.173), esses elementos são usados como citação literal, ou seja, os componentes usados nas composições ainda não são criações próprias do compositor.

Nesse sentido, esse processo se assemelha ao trabalho do arranjador que toma, por exemplo, um tema de outro para explorá-lo e desenvolvê-lo como quer. Acredita-se que, também, tenha sido por meio desse processo que Guerra-Peixe passou de arranjador para compositor, o que torna ainda mais significativa o papel da sua carreira como arranjador de orquestras de rádio para o desenvol-vimento de sua técnica composicional.

Entre março e maio de 1946, “toda quinta-feira, no horá-rio nobre das 21 horas, sob o patrocínio de Phymatosan”, Guerra-Peixe escreveu arranjos para o programa chamado Ritmos cruzados transmitido pela Rádio Tupi do Rio de Ja-neiro (AGUIAR, 2007, p.136). “Nesse programa, por exemplo, Guerra-Peixe brincava com os gêneros e ritmos: apresentava sucessos populares com arranjos eruditos e transportava pe-ças clássicas, como as de Beethoven, para o ritmo de samba” (NEPOMUCENO, 2001, p.24). “Desse modo, Moto perpétuo toma forma de choro, Sonata ao luar de swing, Sobre as on-das e Danúbio azul, sambas. Até O Vira acaba transformado em maracatu” (AGUIAR, 2007, p.136).

Após quatro anos de serviço prestado à emissora da Rádio Tupi do Rio de Janeiro, Guerra-Peixe encerrou definitiva-mente seu vínculo de arranjador contratado dessa emis-sora, em maio de 1946. Segundo AGUIAR (2007, p.136), nessa ocasião, a Rádio Nacional do Rio de Janeiro ofereceu a Guerra-Peixe o salário de Cr$ 8.000,00 mensais (“cerca de quarenta salários mínimos”) para trabalhar na função de maestro nessa rádio. Contudo, em junho desse mesmo ano, ele começou a trabalhar na Rádio Globo e, a partir do dia 8 de agosto, passou a apresentar, “no horário nobre das 20 horas, o programa Arranjos orquestrais, de caráter acentuadamente dançante (...), Uma história em cada mú-sica, bem como a trilha sonora da radionovela Amor eterno de Nelson Nobre, com direção de Amaral Gurgel”.

A opção pela Rádio Globo ao invés da Rádio Nacional do Rio de Janeiro, apesar do maior prestígio e salário oferecidos pela segunda, se deve ao fato de que Guerra-Peixe queria ter tempo para estudar música. Na época, o compositor conversou com Radamés Gnattali, arranjador contratado da Rádio Nacional, e, a partir desse diálogo, percebeu que a emissora exigia muito dos seus profissionais e isso iria interferir em seus planos de estudo. Por isso a escolha pela Rádio Globo, que lhe proporcionou melhores condições para desenvolver os seus estudos musicais, como explicou GUERRA-PEIXE (1992a) em seu depoimento.

Com a dispensa da orquestra da Rádio Globo, no início de 1947, emissora que passou a basear sua programação em esporte, notícias e músicas transmitidas pelo disco, Guer-

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ra-Peixe ficou um período afastado do trabalho de arran-jador de orquestras de rádio até ser contratado pela Rádio Nacional do Rio de Janeiro, no dia 15 de abril de 1948.

3 - Rio de Janeiro, 1948-1949: o trabalho na Rádio Nacional do Rio de JaneiroDo dia 15 de abril de 1948 a 1° de agosto de 1949, con-forme consta no documento arquivado (ficha funcional) da sede da emissora, Guerra-Peixe teve sua primeira pas-sagem pela Rádio Nacional do Rio de Janeiro. Segundo AGUIAR (2007, p.137), Guerra-Peixe foi efetivado a con-vite do então diretor Victor Costa para se responsabili-zar, entre outras tarefas, pelos arranjos para o programa chamado Dicionário Toddy, produzido por Fernando Lobo.

No contrato de Guerra-Peixe com a Rádio Nacional es-tão presentes as seguintes informações descritas por PEREIRA (2006, p.71):

O contrato de Guerra-Peixe, que data de 4 de abril de 1948, é um documento todo datilografado. O contrato de número 64 indica o cargo de Maestro e apresenta o seguinte, contendo as funções que o funcionário se comprometeu a desempenhar: 1° o artista que se contrata como maestro, se obriga a participar dos programas e ensaios, a fazer orquestrações e arranjos para orquestras e coros de música, a atuar como regente de orquestra e colaborar como música executante nos programas da Rádio Nacional.

O ano de 1949 foi um ano de crise para Guerra-Peixe, pois na época teve que tomar decisões difíceis e de con-sequências duradouras. Por um lado, Guerra-Peixe fez a crucial escolha do abandono do dodecafonismo e, por outro, teve que escolher entre quatro opções de meio para a sua subsistência. A primeira era aceitar a pro-posta do regente alemão Hermann Scherchen2 que, em breve estada no Rio de Janeiro, fez questão de conhe-cê-lo e convidá-lo para trabalhar como arranjador em programas de músicas populares e folclóricas, a princí-pio, brasileiras, na Rádio de Zurique na Alemanha, como relatou a musicóloga ASSIS (2007, p.8). Esse emprego, que lhe daria o direito de morar na casa do maestro Hermann Scherchen, envolvia aulas de aperfeiçoamento de regência com Scherchen e a oportunidade de prati-car os ensinamentos na Orquestra Sinfônica da Rádio de Zurique, foi um convite recusado.

A segunda opção, de acordo com depoimento do pró-prio GUERRA-PEIXE (1992b), seria aceitar a proposta do compositor Aaron Copland que, ao vir para o Brasil in-teressado em encontrar um compositor de até 30 anos a quem dar uma bolsa de estudos nos Estados Unidos, conheceu Guerra-Peixe pessoalmente, mas não pôde lhe dar a bolsa porque Guerra-Peixe já tinha 36 anos na ocasião. Guerra-Peixe mostrou ao compositor america-no algumas partituras de suas peças dodecafônicas e Copland, examinando-as, teve sua estima despertada pelo compositor e lhe garantiu um emprego de profes-sor de música em uma das universidades dos Estados Unidos, se ele tão somente aprendesse o idioma inglês. Convite também recusado.

A terceira opção era permanecer no Rio de Janeiro e con-tinuar trabalhando na Rádio Nacional. Porém, possivel-mente por motivos pessoais, em seu depoimento, GUER-RA-PEIXE (1992b) revela que considerava essa opção inaceitável, pois alegava que tinha que sair dessa cidade de qualquer maneira.

Assim, sua decisão recaiu sobre a quarta opção: conciliar o emprego de arranjador com as pesquisas de música fol-clórica que forneceria material sonoro para suas compo-sições – seguindo a cartilha de Mário de Andrade.

Em junho de 1949, após tirar um mês de licença na Rádio Nacional, viaja para o Recife, a convite de Teó-philo de Barros Filho [ex-diretor da Rádio Tupi do Rio de Janeiro e atual diretor da Rádio Jornal do Comér-cio do Recife], para colaborar na comemoração do 1 aniversário da Rádio Jornal do Comércio. Da janela do hotel ouve um pregão de cocada que inspira sua pri-meira obra nacionalista Suíte para cordas [quarteto de cordas ou orquestra de cordas]. (...) Diante de uma proposta para trabalhar na Rádio Jornal do Comércio não titubeia em fixar residência na capital pernambu-cana. Em 8 de dezembro de1949, casa-se no Rio com a jovem Célia [da Rocha] Pinto [então Célia Guerra-Peixe], de quem se separará em 1975. No dia seguinte ao casamento, parte para o Recife, aonde chega em 16 de dezembro, permanecendo naquela cidade por três profícuos anos (AGUIAR, 2007, p.137).

Antes de dar procedimento ao estudo de Guerra-Peixe como arranjador da Rádio Jornal do Comércio de Recife, convém fazer uma observação sobre as atividades para-lelas que ele manteve como compositor dodecafônico e arranjador de música popular. Conforme MARIZ (1953, p.11) assinalou em artigo escrito para o jornal Correio da Manhã, “na realidade, custa crer que o Guerra-Peixe arranjador de sambas e baiões tenha escrito, ao mes-mo tempo, peças de um cerebralismo atroz”. Entretanto, GUERRA-PEIXE (1992a) explica claramente como conci-liava as duas atividades, aparentemente, antagônicas:

Eu sempre tive duas atividades. Uma como arranjador e outra como compositor. Eu sempre pensei que não tinha nada a ver uma coisa com a outra. Mas como arranjador eu tive uma experiência muito grande, certa ordem para ver as coisas, por ser uma coisa mais simples. Mesmo quando a gente faz uma coisa mais avança-dinha para o público, sempre tem um limite.

Nesse depoimento, Guerra-Peixe se lembrou de uma curiosa situação em que inseriu uma vinheta dodecafô-nica especialmente composta para esta função em um programa radiofônico. O resultado foi o esperado: os téc-nicos do estúdio tamparam os ouvidos e o diretor veio conversar com ele, e disse algo do tipo: “Olha, Guerra, você tem que escrever algo que agrade ao ouvinte, nós temos que tocar aquilo que a gente sabe que o ouvinte vai gostar”. Uma grande mudança no nível de experi-mentação em comparação com aquelas vinhetas que ele escrevia e os cantores queriam colocar letra para gravar.

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Outra observação pode ser feita com referência ao perí-odo em que recebeu consideráveis propostas para atuar no exterior, pois, nessa época (1922-1945), era de vital importância para a consagração artística passar por uma experiência no exterior, como, por exemplo, aconteceu com o compositor Villa Lobos. Na maioria das vezes, esse era um objetivo almejado por boa parte dos artistas, por servir também como forma de aperfeiçoamento técnico.

Entretanto, Guerra-Peixe sempre acreditou que tudo que um músico precisava aprender poderia ser encontrado no Brasil sem precisar viajar para o exterior. Ele pensava também que a principal lição para o músico brasileiro só poderia ser aprendida no Brasil por meio de pesquisas de campo como as que ele realizou, por exemplo, em Recife, no interior e litoral paulista, e outros músicos e musicó-logos realizaram em outros locais do país.

O fato é que, por diversos motivos já bastante explicados por outros pesquisadores, Guerra-Peixe abandonou defi-nitivamente o dodecafonismo, em 1950, para se dedicar à pesquisa e à composição, segundo o nacionalismo mu-sical proposto por Mário de Andrade.

4 - Recife, 1950-1953: o trabalho na Rádio Jornal do ComércioNo seu primeiro trabalho para a Rádio Jornal do Comércio de Recife, durante o mês de junho de 1949, Guerra-Peixe compôs a Suíte para orquestra de cordas com a intenção de experimentar as danças nacionais. Essa suíte apresen-ta os seguintes movimentos: Maracatu, Pregão, Modinha e Frevo. Vale ressaltar que essa música foi escrita para os músicos dessa rádio, bem como executada e grava-da por eles. Guerra-Peixe declarou ao ouvir a gravação: “agrada muito como primeira composição nacionalizan-te” (ARAÚJO, 2007, p.3).

Nos primeiros contatos de Guerra-Peixe com o Recife e com a Rádio Jornal do Comércio, os músicos da emissora foram se entusiasmando com ele e ele com os músicos. Ele nutriu uma admiração pela riqueza e pela variedade das manifestações culturais do lugar e, por isso, combinou com aqueles músicos que, assim que ele se desligasse da Rádio Nacional do Rio de Janeiro, voltaria para o Recife para tra-balhar como maestro da Rádio Jornal do Comércio.

Guerra-Peixe partiu do Rio de Janeiro para Recife no dia 16 de dezembro de 1949 e voltou do Recife para o Rio de Janeiro no dia 27 de novembro de 1952, após três anos de muita pesquisa e de muito trabalho. De fato, segundo ele mesmo declarou sua viagem, não foi a passeio (GUERRA-PEIXE, 1979, p.27).

Entre os programas que Guerra-Peixe era responsável por escrever, destacam-se os arranjos para a orquestra da Rádio do Comércio, como Harmonias nitroquímicas, Jardim de me-lodias (patrocinado pelo Regulador Xavier), Ritmos cruzados, Arranjos orquestrais e Fantasia, este último como trilha para textos de Joel Pontes, de acordo com AGUIAR (2007, p.138).

Nesse período, além de arranjos para programas de rádio, pesquisas e composições, Guerra-Peixe “foi professor de Clóvis Pereira, que de gaitista passou a orquestrador, do famoso mestre Capiba [Lourenço da Fonseca Barbosa]”, que teve importante papel como arranjador de músicas apresentadas no Festival Internacional da Canção, na década de 1960, e de Sivuca (Severino Dias de Oliveira), “músico famoso internacionalmente e grande orquestra-dor”, como citado NONNO (1997, p.44).

Vale lembrar que Hermeto Pascoal tocava acordeom no regional da Rádio Jornal do Comércio de Recife no período em que Guerra-Peixe trabalhou como regente e arran-jador da orquestra dessa emissora. Nessa época, Pascoal ainda era jovem, mas muito observador, admirava a im-portância que Guerra-Peixe dava à música local. Pode-se dizer que o jovem talento teve sua estima despertada para a sua música cotidiana e natal por meio da observa-ção dos intensos estudos etnomusicológicos que Guerra-Peixe realizou em Recife. Pascoal também aproveitava as oportunidades para assistir aos ensaios da orquestra realizados por Guerra-Peixe e observava atentamente como o compositor experimentava na orquestra os ritmos folclóricos pesquisados. Pode-se dizer que tal experiência tenha tido viva representatividade nas futuras composi-ções de Pascoal. No entanto, Guerra-Peixe talvez tenha conhecido Hermeto Pascoal apenas como instrumentista. Ou ainda é possível que o futuro compositor lhe tenha passado despercebido.

Na Rádio do Jornal do Comércio, Guerra-Peixe teve uma nova experiência, pois o compositor explorou na orques-tra da emissora os ritmos e gêneros musicais diretamente ligados com as suas pesquisas. Em diversos testemunhos que deu, ele deixou claro o seu entusiasmo em poder transferir para a formação instrumental das orquestras de rádio os diversos ritmos folclóricos das músicas que estava pesquisando, como certa vez noticiou, no dia 23 de fevereiro de 1950, em correspondência a Mozart de Araújo:

Maracatu – Já tive a ousadia de escrevê-los numa rapsódia que fiz para um programa de rádio. Digo ousadia porque os músicos pregavam que a orquestra da rádio não tocava níquel do verda-deiro maracatu. Entretanto (...) a trompa tocou direitinho faltando somente um pouco de estilo que é coisa que virá a seu tempo (...) (FARIA JR., 1997, p.42).

O período que permaneceu em Recife foi de grande im-portância para a ampliação do material sonoro e musical que Guerra-Peixe passou a empregar em suas composi-ções, bem como para a aquisição de informações sobre as manifestações folclóricas que, graças às suas coletas e registro de materiais, forneceram subsídios para a com-preensão de tais manifestações por parte de diversos mú-sicos e musicólogos interessados no assunto. Naquela época, Guerra-Peixe simplificou a sua escrita composicional em uma clara oposição à estética dode-cafônica praticada anteriormente. Tal fato também pode ser atribuído ao seu vínculo com a prática de arranjo para música popular que, por sua vez, visa essencialmente à

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simplicidade como recurso para uma comunicação mais direta com o público. Além disso, a visão política advin-da do seu pensamento partidário do realismo socialista – comunismo – também explica seu objetivo de compor músicas com maior facilidade de assimilação.

Talvez, Guerra-Peixe poderia ter permanecido mais tempo no Recife, porém, segundo AGUIAR (2007, p.140), o seu nome foi associado às ideias progressistas do movimento de esquerda em uma época em que isso gerava uma sé-rie de complicações pessoais, como as que foram geradas para Guerra-Peixe: intrigas “promovidas por intelectuais reacionários do Recife envolvendo o seu nome”.

Com intenção de evitar maiores problemas, Guerra-Peixe voltou para o Rio de Janeiro, em 27 de novem-bro de 1952, onde permaneceu até se mudar para São Paulo, no início de 1953.

Com a mudança para São Paulo, segundo o musicólogo FARIA JR. (1997, p.35), Guerra-Peixe pretendia dar conti-nuidade ao seu trabalho como compositor de trilhas so-noras para companhia cinematografia Vera Cruz, cumprir contrato com a emissora Rádio Nacional de São Paulo e prosseguir com as pesquisas folclóricas, agora nas cida-des do interior e do litoral paulista.

Segundo a divisão estabelecida pelo próprio GUERRA-PEIXE (1992a), suas fases estéticas podem ser divididas da seguinte maneira: Fase inicial, de 1943 a 1944, Pri-meira fase (dodecafônica), de 1944 a 1950 e Segunda fase, de 1950 a 1960, ou seja, a Segunda fase abrange o período em que morou em São Paulo.

5 - São Paulo, 1953-1961: o trabalho na Rá-dio nacional de São PauloNo dia 1° de maio de 1952, o ex-diretor da Rádio Na-cional do Rio de Janeiro Victor Costa chegou a São Paulo com autorização do governo federal, em nome de Getúlio Vargas, para comprar as instalações, o prefixo e a frequ-ência da Rádio Excelsior, a fim de instalar em seu lugar Rádio Nacional de São Paulo. Ao fazer isso, de acordo com o radialista TAVARES (1999, p.70), Victor Costa rompeu com um acordo tácito entre os proprietários das Emis-soras Associadas de São Paulo que impedia a transferên-cia de prefixos entre emissoras radiofônicas. Com isso, a frequência e o prefixo da Rádio Transmissora passaram a sintonizar a Rádio Nacional de São Paulo que, poste-riormente, se tornou Rádio Globo, e a Rádio Transmissora adquiriu novo prefixo e nova frequência tornando-se a Central Brasileira de Notícias – CBN.

A primeira providência das Organizações Victor Costa foi contratar os melhores profissionais das Empresas Associa-das, inclusive o seu diretor e chefe Derminal Costa Lima. A partir da orientação de Victor Costa, a Rádio Nacional de São Paulo passou a formar um elenco com os principais nomes das diversas áreas de atuação da radiofonia paulista, sendo poucos os que não aceitaram as propostas financei-

ramente recompensadoras dessa organização. Desse modo, de acordo com a pesquisa de PIRES (2000, p.202), enquanto houve um desfalque no corpo de profissionais das outras emissoras paulistas, ocorreu, ao mesmo tempo, um rápido crescimento da Rádio Nacional de São Paulo.

No setor musical o elenco foi formado por uma orques-tra de 45 instrumentistas que recebia arranjos e re-gência de maestros como Gaó (Odmar Amaral Gurgel), Spartaco Rossi, Osmar Milani, Alberto Lazzoli, Oliver de Sousa, além de Guerra-Peixe, segundo as informações de PIRES (2000, p.198).

Segundo AGUIAR (2007, p141), no mesmo mês da inau-guração Guerra-Peixe já estava incumbido de produzir arranjos para o programa Ritmos e melodias Arno. Neste programa, o repertório era mais voltado para a música popular urbana paulista, mas sempre que possível Guer-ra-Peixe incluía gêneros pernambucanos como o frevo. Tal programa mudou de patrocinador duas vezes, passou, em 1955, para a empresa Ovomaltine, tornando-se Ritmo e melodias Ovomaltine e, logo depois, para o Ritmo e me-lodias brasilianas.

A TV Paulista também estava sob a direção das Or-ganizações Victor Costa. Essa emissora de televisão contava com o elenco de artistas de rádio para atuar nos seus programas, e algumas transmissões ocorriam simultaneamente nos dois veículos. Vale lembrar que naquela época a base para a realização de programas televisivos vinha da rádio. Entre algumas das parti-cipações de Guerra-Peixe nesses programas, AGUIAR (2007, p.142) lembra que:

Em 1956 passa a trabalhar na TV Paulista, criando os prefixos mu-sicais para as Organizações Victor Costa. Juntamente com outros regentes participa do programa Quando os Maestros se Encon-tram, transmitido simultaneamente pela Rádio Nacional, espécie de desafio entre os arranjadores, que permanece no ar até 1960. No mesmo ano, aperfeiçoa-se como regente tendo aulas com o maestro Eduardo Di Guarnieri. Em 1957, na Rádio Nacional produz os programas Um milhão de Ritmos, Festa de Ritmos e Grande Es-petáculo, este último transmitido em conjunto com a TV Paulista. No mesmo ano, participa, ainda na TV Paulista, dos Recitais Cos-mopolitas, onde faz a estreia de A Inúbia do Cabocolinho. No ano seguinte, apresenta pela Rádio Nacional os programas Cancioneiro Armour e o curioso Desconversando em que analisa os últimos lançamentos fonográficos.

Aparentemente foi através desse último programa que se tornou conhecida a crítica positiva de Guerra-Peixe em favor da bossa nova. Nesse sentido, o jornalista CASTRO (1999, p.242-243) menciona que:

Com algumas exceções, como Gabriel Migliori e Oswaldo Borba, os demais maestros – Peracchi, Panicalli, Radamés e, claro, Lin-dolfo Gaya e Moacir Santos – apoiaram ou aderiram abertamente à nova música. Os maestros jovens de São Paulo, como Rogério Duprat, Diogo Pacheco e Júlio Medaglia, estes se apaixonaram em bloco, talvez porque, como Jobim e Severino Filho, dois cariocas, tivessem sido alunos do alemão radicado no Rio: Hans Joachim Koellreutter. E outro maestro, Guerra-Peixe, ex-professor de [Ro-berto] Menescal, só faltou vestir a casaca para dar a sua opinião: “A bossa nova é uma inseticida sonora na aspereza batuqueira e na castração bolerosa”.

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uma maior maturidade na composição que, segundo citado por MIGUEL (2006, p.39), teve início a partir do Quarteto n° 2 (02/03/1958), “referência para tudo o que vem depois”.

De acordo com AGUIAR (2007, p.143), após oito anos pas-sados na capital paulista, Guerra-Peixe teve o seu contra-to com a Rádio Nacional de São Paulo vencido e retornou ao Rio de Janeiro, em 27 de março de 1961.

6 - Rio de Janeiro, 1961-1967: o trabalho na Rádio Nacional do Rio de JaneiroA segunda contratação pela Rádio Nacional do Rio de Ja-neiro foi cumprida do dia 2 de outubro de 1961 ao dia 1° de maio de 1967, conforme consta em documento arqui-vado (ficha documental) na sede dessa emissora.

Desde a sua volta ao Rio de Janeiro até o momento de sua contratação pela Rádio Nacional, Guerra-Peixe trabalhou como autônomo dando aulas particulares semelhantes às que ele havia dado no período em que viveu em Recife, conforme notou AGUIAR (2007, p.142).

Nota-se que ainda não era possível, mesmo para um mú-sico de sua formação e experiência, viver como compo-sitor de música clássica no Brasil. A solução para esse impasse era a atuação como arranjador nas orquestras de rádio. O fato de Guerra-Peixe retornar ao trabalho de ar-ranjador de orquestras de rádio é exemplo disso. Esse era um trabalho, ainda na década de 1960, estável, com uma remuneração fixa e que tinha ligação com o que um com-positor realmente gosta de fazer: escrever e criar música.

Por ocasião da recontratação de Guerra-Peixe pela Rádio Nacional, o radialista Paulo Tapajós estava reivindicando melhorias de salário para os arranjadores. Como forma de argumentação, Tapajós lembrava a direção que:

Lyrio Panicali, José Zimbres, Cid dos Santos e Romeu Fossati esta-vam sendo transferidos para o serviço público e, com isso, a emisso-ra estaria fazendo uma economia de aproximadamente Cr 133. 700, 00, quantia que poderia ser utilizada para reajustar o salário dos maestros que permaneceram na emissora (PEREIRA, 2006, p.56-57).

Acredita-se que parte dessa verba (Cr$ 25.000,00) tenha sido destinada à recontratação de Guerra-Peixe que, ao voltar para a emissora naquele momento, também estava suprindo o desfalque ocasionado pela saída desses e de outros maestros, pois, segundo o levantamento de PEREI-RA (2006, p.55-57), na década de 1960, foram desligados sete maestros da Rádio Nacional, “sendo a maioria trans-ferida para o serviço público”. Na Tabela de Remuneração e Função dos Maestros da Rá-dio Nacional do Rio de Janeiro, apresentada pela pesquisa de PEREIRA (2006, p.51), constam os seguintes dados so-bre o contrato de Guerra-Peixe. Os arranjadores da Rádio Nacional do Rio de Janeiro não ocupavam uma função específica indicada apenas pelo cargo de maestro. Assim, não é possível afirmar se Guer-ra-Peixe ficava responsável pela elaboração de arranjos exclusivos para um determinado programa da emissora.

Inclusive, foi com a interpretação do hino Fibra de herói que João Gilberto convenceu Oswaldo Gurzoni, um dos donos da rede de lojas de discos Assumpção, a colocar o LP Chega de saudade à venda – “por toda São Paulo, o disco foi recordista de vendas dessa loja, aquele ano” (CASTRO, 1999, p.188). A ligação entre Guerra-Peixe e João Gilberto não parou aí, pois sempre que o segundo precisava de uma palavra final sobre alguma produção era a Guerra-Peixe que recorria e, ao receber a aprovação do compositor, efetuava a gravação com mais segurança.

Esses fatos se devem a uma vida na capital paulista “mar-cada pelo respeito e credibilidade”, pois foi reconhecido como “um grande profissional do rádio, do cinema, da pesquisa folclórica e das salas de concerto”, tudo como resultado de sua dedicação à música “sem fronteiras” (AGUIAR, 2007, p.141), reconhecimento este que lhe pro-porcionou prêmios nas diversas áreas em que atuou.

Neste período, Guerra-Peixe recebeu seis vezes os troféus Roquete Pinto e Tupi mirim referentes ao melhor funcio-nário do ano, oferecido pela AFEU – Associação dos Fun-cionários das Emissoras Unidas e Associadas de São Paulo.

No período em que morou em São Paulo, Guerra-Peixe re-cebeu uma média de seis convites por ano para viajar para o exterior, “além de uma bolsa oferecida pela UNESCO [Or-ganização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura] por dois anos, para divulgação das suas obras em Paris”. Nesse episódio, “houve a tentativa da parte do compositor de permuta (...), em vez de Paris, o compositor gostaria de ter ido para Angola, onde poderia desenvol-ver outras pesquisas; no entanto, a resposta foi negativa” (DELL’ORTO, 1998, p.6). Pelo que se sabe Guerra-Peixe nun-ca viajou para fora do Brasil, porém seu nome e sua música percorreram e ainda percorrem o mundo todo.

Nesse período de sua vida, segundo entrevista concedida pelo compositor (1971, p.4), ocorreram outros fatos im-portantes referente à sua relação com o rádio, por exem-plo: a execução de sua Sinfonia n° 2 Brasília na Rádio do Ministério da Educação e Cultura do Rio de Janeiro por ocasião de um concurso de composição, em 1960, no qual ficou em segundo lugar junto com Cláudio Santoro e Guerra Vicente (não houve primeiro lugar). Houve tam-bém a realização de um recital sob sua direção e regência na demonstração de música popular brasileira para con-gressistas estrangeiros que participavam do Congresso Internacional de Folclore, patrocinado pela Comissão do IV Centenário da cidade de São Paulo, realizado no audi-tório da Rádio Nacional de São Paulo, em 1954.

Foi também durante sua estada em São Paulo que aconte-ceram outros fatos relevantes na carreira de Guerra-Peixe, como a nomeação para o cargo de chefe do setor musical da Secretaria da Comissão Paulista de Folclore, a participa-ção nos jornais O Tempo e A Gazeta, nos quais tinha colu-nas semanais em que escrevia artigos sobre folclore mu-sical brasileiro e música popular urbana e a conquista de

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Sabe-se, no entanto, que ele teve seus arranjos executa-dos nos seguintes programas:

Alegria da rua, alma do Brasil, Cancioneiro romântico, Cantando para você, Carrossel musical, Dicionário Toddy, Flash musical, Isto é show, Jornal sem banca, Meio século de canções, No mundo das notas, Paulo Gracindo, Quando os maestros se encontram e Refres-cando a memória. Guerra-Peixe também trabalhou na publicidade [vinhetas] (PEREIRA, 2006, p.36-37).

Nas partituras com os arranjos de Guerra-Peixe selecio-nadas e impressas no Museu da Imagem do Som do Rio de Janeiro também constam, entre outros, o nome dos seguintes programas: Paradas de sucessos, 21 anos de Manuel Barcelos, Paulo Gracindo, Cantando para você, Musical romântico, Galeria musical, Três estrelinhas, Meu Rio é assim e Estreia ao meio-dia.

O nome da função preenchida nas fichas cadastrais, por exemplo, como regente, arranjador, maestro ou orques-trador, significava que esses músicos deveriam estar obrigados a “ensaiar, tocar, gravar, compor, arranjar, re-ger independentemente do nome de seus cargos, ou seja, tinham que fazer de tudo para manter seus empregos” (PEREIRA, 2006, p.72).

Ainda em trabalhos veiculados no rádio, nos anos de 1964 e 1965, Guerra-Peixe escreveu arranjos especiais para pro-gramas da Rádio e TV Globo, tal como Uma canção por dez milhões. AGUIAR (2007, p.142) relata outras duas produ-ções importantes, veiculadas pelo rádio, desse período:

Entre 1963 e 1968 redige o programa semanal Nossa Música... Nossa Alma... para a Rádio MEC, verdadeiro estudo sobre a nossa cultura musical, utilizando discos como exemplos ilustrativos. Em fevereiro de 1964, em O Assunto é a Música, feito em colaboração com o Centro de Estudos e Pesquisas Musicais, do Sindicato dos Músicos Profissionais do Estado da Guanabara, produz uma série de programas sobre cinema, verdadeiras aulas sobre a evolução da produção musical para esse meio (...).

Três outros fatores chamam a atenção sobre a carrei-ra profissional de Guerra-Peixe durante o tempo em que trabalhou na Rádio Nacional do Rio de Janeiro. O primeiro foi a volta ao seu instrumento: o violino, após ter passado cerca de vinte anos sem tocar. Em 1963, Guerra-Peixe ingressou como violinista da Or-questra Sinfônica Nacional da Rádio MEC (Ministério da Educação e Cultura), na qual permaneceu por cinco anos até se aposentar da função de instrumentista, em 1968. Um segundo fator foi a aceitação do convite fei-to pelo compositor Heitor Alimonda para dar aulas de Harmonia nos Seminários de Música Pró-Arte: “ao que parece, Guerra-Peixe se entusiasmou com a nova fren-te de trabalho aberta pelo desenvolver natural de sua

Ano Maestro Salário Função observação

1962 Guerra-Peixe Cr$ 60.000,00 Arranjador e regente

Ex. 1: tabela de renumeração e função de Guerra-Peixe na função de maestro da orquestra da Rádio nacional do Rio de janeiro.

carreira de compositor” (FARIA JR., 1997, p.83). O ter-ceiro ponto foi a retomada ao trabalho de composição, interrompido em 1960, tendo como última composição daquele ano a Sinfonia Brasília n° 2, para reiniciar no ano de 1966, com a composição do Ponteado para vio-lão e, logo, em 1967, com a Sonata para piano n° 2. O retorno à composição coincide com uma ênfase ainda mais acentuada na simplificação da escrita: “reduz a dificuldade em benefício da praticidade de execução. Com isso, as peças ganharam extrema comunicabilida-de” (MALAMUNT, 1999, p.51).

As últimas atividades que ocorrem em paralelo ao seu contrato com a Rádio Nacional, como relatado por AGUIAR (2007, p.144), foram: o trabalho de arranjador para a TV Tupi do Rio de Janeiro, do ano de 1966 até o final da década de 1970, e os arranjos escritos para o Festival Internacional da Canção de 1967.

7 - Últimos trabalhos como arranjadorAo chegar aos 60 anos de idade, aposentado “por todos os lados” – “pelo INPS [Instituto Nacional de Previdência So-cial] há vinte anos, como compositor, músico; aposentado pela Orquestra Sinfônica Nacional [da Rádio MEC], que está nos quadros culturais da UFP, aposentado como pro-fessor universitário” (CAVALCANTI, 2007, p.123) – Guer-ra-Peixe, em entrevista ao Jornal do Brasil, em 10 de maio de 1974, fez um balanço de sua carreira profissional. O título da reportagem já aponta sua atitude – “Agora é tempo de recuperar o tempo perdido”. Nessa reportagem o compositor declarou para o entrevistador Edino Krieger: “Passei 43 anos fazendo arranjinhos de música popular para sobreviver; só agora que me aposentei é que vou poder me dedicar à música que quero fazer. Não faço mais arranjos para discos, nem música para cinema nada dessas coisas”. É claro que sua posição não permaneceu tão radical. A partir desse momento, de acordo com seu depoimento (1992a), sua tabela de preços para esse tipo de serviço passou a estar na média de quinze mil dólares pela produção de um disco com 12 faixas.

Apesar das frequentes solicitações dos canais de televisão para que escrevesse arranjos tirados de discos, trabalho que ele se recusava tenazmente a fazer, a partir de sua aposentadoria Guerra-Peixe não trabalhou mais como ar-ranjador contratado de nenhuma emissora de rádio, canal de televisão ou gravadora.

Os últimos trabalhos de maior repercussão como arran-jador foram: a realização do projeto de arranjos sinfôni-cos para songbooks, projeto organizado pelo publicitário

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Marcus Pereira e gravado pelo selo Chantecler, presente na coleção intitulada A grande música do Brasil, uma série de três discos separados por compositores: Tom Jo-bim, Chico Buarque e Luiz Gonzaga, lançado no final da década de 1970. E os arranjos sinfônicos (solo orques-tral) para as músicas do disco chamado Afro Sambas, de Baden Powell e Vinícius de Morais, lançado em 1966, para o qual também tinha feito os arranjos para a gra-vação do LP cantado. Segundo AGUIAR (2007, p.146), a execução de seus arranjos sinfônicos para os cantos afro-brasileiros de Baden e Vinícius aconteceu em 1992, no programa de televisão Os arranjadores transmitido pela TV Cultura de São Paulo, sendo, simultaneamente, sua última aparição na televisão e a última regência de uma orquestra sinfônica3. Como últimos trabalhos na área também incluem diversos arranjos escritos para músicas apresentadas nos festivais de música da tele-visão, como Ponteio e Upa neguinho de Edu Lobo, além da participação como júri em alguns destes festivais. O último arranjo feito na sua vida foi o arranjo de cordas para música Cinema novo, presente no LP Tropicália II, gravado pelo selo Polygram, de Caetano Veloso e Gilber-to Gil, conforme AGUIAR (2007, p.146).

O último prêmio como arranjador foi a troféu Pixingui-nha – melhor orquestração, recebido no I Concurso de Música Natalina, promovido pela Secretaria de Turismo de Guanabara, em 1969.

As atividades pedagógicas como professor de música ajudam a entender seu envolvimento com a música po-pular, bem como seu interesse em passar o aprendizado advindo da longa experiência de arranjador para os seus alunos. É possível traçar um breve panorama do per-curso de Guerra-Peixe no desempenho dessa função. De 1950 a 1952, deu aulas particulares no Recife. De 1954 a 1959, deu aulas, palestras, conferências e cursos em São Paulo. De 1961 a 1978, participou ativamente de alguns cursos no Rio de Janeiro: Seminário de Música Pró-Arte, de 1963 a 1970; criação da Escola Brasileira de Música Popular do Museu da Imagem e do Som, de 1968 a 1972; aulas no Centro de Estudos Musicais, de 1972 a 1980; e Oficina Musical de Guerra-Peixe ministradas na Escola de Música Villa Lobos – RJ, de 1981 a 1991. Atuou ainda como professor de Composição da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, de 1980 a 1989 e, após ser transferido, como professor da Univer-sidade Federal do Rio de Janeiro, de 1989 a 1990.

Em meio a essa intensa atividade pedagógica, o que chama atenção era a sua intensa preocupação com a formação dos músicos brasileiros. Muitas vezes, ao per-ceber o interesse de determinado aluno, aceitava dar aulas de graça por tempo indeterminado caso este não pudesse lhe pagar. Inclusive, foi iniciativa sua a cria-ção da Escola Brasileira de Música Popular, “objetivando elevar o nível técnico dos que se dedicam à música po-pularesca (...)” (GUERRA-PEIXE, 1971, p.5).

Quando questionado sobre os profissionais que se dedi-cam à prática de arranjo para música popular, GUERRA-PEIXE (1979, p.1-2) respondeu:

O problema dessa gente é que não quer estudar. Uma das únicas exceções que conheço é a do Geraldinho Vespar, que levou a sério o estudo. É um orquestrador consciente, sem dúvida. Muitos outros aprendem um bocadinho e vão adivinhando. Compram métodos es-trangeiros e se limitam a aprender estilos alheios. Aliás, arranjador e maestro são apelidos. Virou falta de respeito profissional.

Tal declaração revela o interesse do compositor em for-malizar o estudo da música popular com intenção de ele-var o nível técnico dos profissionais dessa área, bem como da própria música popular. Nesse sentido, um depoimento de um ex-aluno do curso de música popular de Guerra-Peixe confirma essa sua vontade:

Outra coisa que me influenciou no longo contato com o professor foi a seriedade com que ele encarava a música e a profissão de músico. Apesar dele não falar clara e diretamente, eu sentia em suas atitudes que ele não aprovava um músico fazer concessões em sua carreira profissional quando essas concessões comprome-tessem a qualidade artística da música. Acredito que a minha con-cepção musical começou a tomar uma forma mais definida depois do meu envolvimento com o ensino e as ideias de Guerra-Peixe. A partir dessa fonte eu passei a encarar a profissão com mais serie-dade e respeito (MAURO JR., 2007, p.199).

Além de Geraldo Vespar e Haroldo Mauro Júnior, nos cursos de Guerra-Peixe passaram nomes que tiveram expressiva atuação na música popular brasileira, como Chiquinho Morais, Capiba, Sivuca, Rildo Hora, Baden Powell, Formiga, Juca Chaves, Roberto Menescal, Jards Macalé, Nestor de Hollanda, Antônio Guerreiro, Ran-dolf Miguel, Guilherme Bauer, Jorge Antunes, Portinho, Antônio Adolfo4 e Moacyr Santos.

Guerra-Peixe faleceu no dia 26 de novembro de 1993. Se-gundo os pesquisadores FARIA JR. (1997, p.120) e NEPO-MUCENO (2001, p.54), somente nas últimas composições – Rapsódia: Angustiante e Rapsodicamente, encomenda-da pelo Departamento de Cultura do Estado de São Paulo, em outubro de 1993; e no Trio (piano, violino e violonce-lo), encomendado pela Associação Rio-Arte, incompleto por motivo de seu falecimento–, é que o compositor con-sentiu em usar elementos de “música popularesca” em suas composições, recurso que Radamés Gnattali utilizou sempre sem nunca precisar padecer para isso.

8 – ConclusãoO levantamento da carreira de Guerra-Peixe como ar-ranjador de orquestras de rádio traz elementos novos na compreensão da vida musical do compositor. É relevante o fato de que essa profissão foi a sua principal fonte de renda durante toda a sua vida, como ocorreu com ou-tros compositores contemporâneos brasileiros. Tal estudo demonstra que importantes compositores eruditos brasi-leiros encontraram no campo de atuação profissional da música popular a renda que não conseguiam obter por meio apenas da música erudita.

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do em Música)-Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1985.

notas1 Composto inicialmente para um programa de rádio este hino foi, depois de gravado, “oficialmente adotado nas escolas públicas da antiga Guanabara

e outros Estados da Federação, em arranjos para duas ou três vozes. Este hino é também executado por bandas de música, inclusive nas paradas militares” (MIGUEL, 2006, p.24), como a de 7 de setembro entre outras solenidades, por exemplo, quando foi executado na inauguração do Estádio do Maracanã, em 16 de junho de 1950, segundo afirmou AGUIAR (2007, p.132).

2 Hermann Scherchen foi um profundo interessado na divulgação da música dodecafônica e foi por meio da execução de obras como o Noneto e Sinfonia nº1 (dodecafônica) de Guerra-Peixe que o maestro conheceu o compositor (ARAÚJO, 2007, p.31).

3 As partituras, tanto dos arranjos sinfônicos instrumentais, como do disco Afro-Sambas, encontram-se em posse de sua sobrinha neta, Jane Guerra-Peixe. Sem dúvida, esse material merece um estudo aprofundado que poderia resultar em uma ótima pesquisa, através da qual poderiam ser divul-gados outros aspectos interessantes da escrita criativa desse compositor. A fita de vídeo com a execução da ‘sinfonização’ dos Afro-sambas deve estar em algum arquivo cultural de São Paulo.

4 Quando Radamés Gnattali foi questionado pelo produtor musical Antonio Adolfo sobre quem seria o professor ideal para dar continuação aos seus estudos musicais – contraponto, harmonia, composição - ele respondeu de imediato: “procura o Guerra, Guerra-Peixe. Ele é o cara. Não tenha dú-vidas” (ADOLFO, 2007, p.189).

Bruno Renato Lacerda é Mestre em Música pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP, maio de 2009, realizada com bolsa de estudos fornecida pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, de abril de 2008 a maio de 2009. Arquivista da Orquestra Experimental de Repertório do Estado de São Paulo, julho de 2009 até o presente momento. Graduação em Composição e Regência pela Faculdade das Artes Alcântara Ma-chado – FAAM –, dezembro de 2005. Prêmio Acadêmico obtido por ter estado entre os cinco melhores alunos da turma no ano de 2002, título atribuído pela instituição de ensino UniFMU – FIAM/FAAM. Monitor da disciplina Harmonia com a supervisão da Profª Mªs. Marisa Ramires nos anos de 2003, 2004 e 2005, durante o bacharelado. Professor substituto do Prof. Mestre Ricardo Rizek, ministrando aulas de Composição Musical para a turma do 6º semestre de bacharelado em Composição da faculdade FAAM, de fevereiro a junho de 2005.

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Recebido em: 12/01/2010 - Aprovado em: 22/03/2010

Análise do contexto da Roda de Choro com base no conceito de ordem musical de John Blacking

Ivaldo Gadelha de Lara Filho (UNB, Brasília, DF)[email protected]

Gabriela Tunes da Silva (Câmara Legislativa do Distrito Federal, DF)[email protected]

Ricardo Dourado Freire (UNB, Brasília, DF)[email protected]

Resumo: A Roda de Choro oferece um rico ambiente para análise tanto do contexto musical da performance quanto do contexto social que nutre as relações musicais. No presente artigo, essa especificidade é analisada a partir do conceito de ordem musical estabelecido por John Blacking (1995). A coleta de dados da pesquisa foi realizada a partir de observações etnográficas e entrevistas com os músicos participantes do universo do Choro. A análise dos discursos e dos registros pode auxiliar na identificação dos elementos que compõem esta ordem musical dentro do Choro conforme a proposta do etnomusicólogo. O contexto ilustrado na discussão é uma Roda de Choro regularmente realizada em um bar de Brasília com a presença de músicos vindos de vários lugares do Brasil. Os relatos dos chorões apontam para a importância da existência de Rodas para manutenção e recriação da tradição musical do Choro. Foi possível compreender que, para esse gênero musical, uma série de fatores extra-musicais interfere de modo significativo nas performances dos músicos.Palavras-Chave: choro; roda de choro; etnomusicologia; John Blacking.

The Roda de Choro musical and social analysis based on John Blacking´s concept of musical order

Abstract: The Roda de Choro offers a rich environment in order to analyze the musical context of performance and the social context which nourishes the musical relations. This article aims at analyzing the relationship of both musical and social contexts according to the concept of musical order established by John Blacking (1995), who argues that “music cannot exist without the perception of order that organizes sound”. Empirical data was carried through interviews and based on ethnographic field work realized during eighteen months in a live music restaurant in Brasilia. Through discourse analysis and registers analysis it was possible to identify elements which form musical order inside the Choro according to the musician’s proposal. Analyses unveil the role of Rodas de Choro as social contexts for maintaining and to recreating choro musical tradition. As a musical gender, Choro involves a whole set of extra-musical factors that impacts musicians’ performance.Key-Words: Brazilian choro; roda de choro; ethnomusicology; John Blacking.

1- IntroduçãoNo Choro, assim como em qualquer outro tipo de mani-festação de música popular, o estudo da prática da inter-pretação musical (performance) torna-se um desafio para trabalhos de natureza acadêmica, pois inclui uma série de elementos subjetivos e complexos para serem descri-tos com precisão. Todavia, a interpretação musical é um dos aspectos mais importantes no gênero, sendo uma de suas marcas registradas. Em sua trajetória histórica, os compositores e suas obras exerceram um papel impor-

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tante, mas foi na arte da interpretação que essa música alcançou seu elemento identificador mais contundente. Músicos e ouvintes do Choro, ao observarem performan-ces de chorões, são capazes de emitir julgamentos sobre ela. Mesmo divergindo muitas vezes sobre alguns aspec-tos, esses julgadores, em sua grande maioria, convergem quanto à atuação. Isso permite inferir que há uma ordem que organiza o Choro como sistema musical, e que tal or-dem é reconhecida pelos chorões, músicos ou audiência.

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Gerard BÉHAGUE (1984), em estudos sobre performance musical, afirma que a etnografia da perfomance deve tra-zer à luz os modos como os elementos não-musicais, numa determinada ocasião influenciam os musicais. O referencial fornecido por BÉHAGUE (1984) aponta para a impossibili-dade de se compreender um sistema musical desvinculado do contexto geral em que se insere. O conhecimento do contexto permite que as análises dos parâmetros musicais sejam mais facilmente realizadas e compreendidas, porque abordadas a partir do conhecimento do ambiente musical do Choro, composto não somente pela música como tam-bém por inúmeros outros elementos.

De acordo com diversos autores (dentre eles, podemos destacar BLACKING, 1973; e QURESHI, 1987), no estudo de sistemas musicais não totalmente ancorados no re-gistro escrito convencional, é importante levar em con-sideração os conceitos, as teorias, e os conhecimentos musicais dos músicos que compõem tais sistemas. Isso quer dizer que o uso das ferramentas da teoria musical ocidental pode não ser adequado para o entendimento e para as análises desses sistemas musicais. Para os mu-sicólogos, os conceitos cunhados pelos próprios músicos são aqueles que melhor representam seus sistemas mu-sicais. Portanto, é tarefa do pesquisador identificar esses conceitos e conhecimentos, tentando manter fidelidade ao modo como são expressos dentro de seu sistema cul-tural originário. Mesmo que um sistema musical não se baseie em uma teoria musical, existem conhecimentos subjacentes acerca da ordem sonora. Nas palavras de John BLACKING (1973):

Quando afirmo que a música não pode existir sem a percepção da ordem que orienta o som, não estou argumentando que algum tipo de teoria musical deva preceder a composição e a performance musical: isso deve ser obviamente falso para a maior parte das grandes composições clássicas e para o trabalho dos chamados músicos ‘folk’. Estou sugerindo que a percepção da ordem musical, não importa se inata ou aprendida ou ambas, deve estar na mente antes de emergir como música. (BLACKING, 1973, p.11)

Tomando como válida a assertiva de BLACKING (1973), supõe-se possível identificar uma ordem sonora subja-cente às performances do Choro; além de constatar que os chorões têm consciência dessa ordem. No contexto do Choro, os entendimentos pessoais e individuais existentes sobre a ordem sonora do Choro irão contribuir inclusive para a consolidação dos estilos individuais de instrumen-tistas. É possível também perceber elementos cuja pre-sença é crucial para as performances do Choro.

Desse modo, se a pesquisa investigar a percepção da or-dem musical dos músicos integrantes desse universo po-derá identificar elementos dessa ordem. Uma forma de se ter acesso a esses conhecimentos é permitir aos músicos a verbalização de seus conceitos e de suas percepções. BLACKING (1995) postula que o julgamento da perfor-mance no âmbito de uma tradição musical, ou seja, a ca-pacidade de dizer o que é bom ou ruim, certo ou errado em um determinado sistema musical, baseia-se em prin-cípios adquiridos na vida social em processos que nem

sempre estão diretamente ligados à prática musical. Com isso, BLACKING (1995) infere que é possível aprender mú-sica simplesmente sendo parte de uma coletividade hu-mana, organizada por uma ordem que se expressa, entre outros, na música dessa coletividade.

Contrariamente KERMAN (1987) afirma que toda in-terpretação é individual, pois o músico deve imprimir à obra sua personalidade, seu sentimento e sua intui-ção. A interpretação é o modo como a individualidade do músico influi na individualidade da obra. Ele ressal-ta que os músicos inseridos em uma tradição viva não precisam escrever ou falar sobre a música que execu-tam para manterem a tradição. Importante para isso é a constante produção, interpretação e reinterpretação das músicas. Na visão do autor, uma tradição musical não mantém sua “vida” ou continuidade por meio de livros e da sabedoria livresca. Ela é transmitida em li-ções privadas, não tanto por palavras, mas também pela linguagem corporal; não tanto pelo preceito como tam-bém pelo exemplo. Afirma ainda que isso não significa que os músicos não reflitam ou pensem sobre sua prá-tica musical; apenas não têm o hábito de articularem isso em palavras ou de registrarem em pentagramas. No fundo, isso não é necessário, pois a prática musical já é suficiente. No Choro, ao contrário do que acontece na música erudita, não é comum o registro detalhado por escrito das interpretações. As gravações, contudo, dei-xam registradas interpretações que acabam se tornando célebres. Desta forma fica eternizada a criatividade de grandes intérpretes que será exemplo para vários ins-trumentistas. Mas, de algum modo, ao seguir os exem-plos e se deixar influenciar, o intérprete deve subverter a imitação do modelo, e criar seu estilo interpretativo próprio. John BLACKING (1995) afirma que, se a música é o som organizado pelos homens, ela deve conter refle-xos da organização social em que seus produtores este-jam inseridos. Se considerarmos que a interpretação é o modo como um indivíduo expressa sua pessoalidade em um sistema musical, pode-se inferir que a interpretação deve conter, também, reflexos do modo como o intér-prete compreende sua realidade e seu sistema social. A interpretação, portanto, traz elementos que estão além do seu entendimento da ordem sonora de um sistema musical; levando em conta os conceitos de BLACKING (1995) e KERMAN (1987), é a verdadeira expressão de uma pessoa. Diante disso, percebe-se que o estudo da performance e da interpretação irá acessar aspectos da ordem sonora de um sistema musical — reflexo da ordem social que organiza uma coletividade; mas irá, também, acessar os modos como cada intérprete com-preende tal ordem sonora, e como ele se vê e se insere na ordem social da qual faz parte.

A partir de uma análise categorizada do discurso dos cho-rões de Brasília, foram identificados diversos elementos musicais utilizados na avaliação da performance na roda de choro. Dentre eles podem ser destacados: sonoridade, formação instrumental, repertório, virtuosismo, expressi-

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vidade e emoção, capacidade de decorar (não tocar len-do), erros (o modo como o músico lida com erros), ritmo (citado como balanço, ginga, malandragem – elementos próprios do Choro e de outras manifestações da cultura brasileira), variações e improvisação.

2- A Roda de ChoroA Roda de Choro é um dos contextos de performance mais característicos do Choro, que pode ser considerada sua matriz. Marcada pela informalidade, nela não estão definidos, a priori, aspectos como: quem irá tocar, quan-do, como, com quem ou quanto irá tocar; trata-se de um encontro entre músicos, com a presença de uma audiên-cia; há um limite fluido entre músicos e audiência, pois todos são audiência. Em geral, os músicos intercalam-se na performance, e cada músico é audiência dos outros músicos no momento da execução do Choro. Podemos caracterizar a Roda como um conjunto de círculos con-cêntricos, sendo que, no primeiro círculo, estão os mú-sicos (geralmente em volta de uma mesa); no segundo círculo, os interessados pela música (conhecedores desse universo musical e participantes do ambiente de relações pessoais dos músicos); nos círculos subsequentes ficam os frequentadores do ambiente musical — algumas vezes interessados apenas na interação social. Muitas vezes, essa classificação circular não é observada, e as pessoas se misturam constantemente.

A Roda é um encontro de pessoas, e vincula-se ao lazer, tendo, quase sempre, ares de festejo. Dois aspectos musi-cais reforçam seu caráter informal: não há ensaio e ela é aberta. Sendo um encontro, para que aconteça a roda, não há sentido em realizar outros encontros preparatórios – os ensaios. A Roda é também aberta, pois, a princípio, todos podem tocar, desde que tenham certo domínio técnico do instrumento e sejam aceitos pelos músicos do momento. A possibilidade de qualquer instrumentista presente na oca-sião da Roda ter a liberdade de tocar reforça também seu caráter de encontro social. Ao contrário de muitas práticas musicais abordadas em estudos etnográficos, nas quais a música é apenas um dentre diversos elementos compo-nentes de um ritual, a Roda de Choro tem a música por objetivo, pois ela é o elemento principal, o fator agregador de pessoas. Diante do exposto, pode-se dizer que a música origina o contexto, que, por sua vez, interfere na música. O ritual da Roda de Choro acontece porque existe a música; são indissolúveis contexto e música. São fatores impor-tantes as pessoas presentes e as relações de troca que os músicos estabelecem entre si.

SCHUTZ (1977) defende que a música como modo de co-municação não se baseia na transmissão de conteúdos sonoros, mas na possibilidade de instaurar relações in-terpessoais. No caso da Roda, instrumentistas de diversos níveis tocam juntos, criando e recriando repertórios; nela a música exerce, dentre outras coisas, o papel de interlo-cução entre as pessoas. Assim, a Roda de Choro cria um ambiente de relações e, em contrapartida, apoia-se nele. Com efeito, o contexto interfere nos elementos musicais,

que também alteram o contexto. Nesta visão, QURESHI (1987, p.65) afirma que o som musical varia com a va-riação no contexto da performance; no caso da Roda de Choro, o inverso também é válido.

Roberto M. MOURA (2004) realizou extenso trabalho sobre a Roda de Samba, que pode servir de referência para a análise das Rodas de Choro, pois ambos os gêne-ros estão ligados desde sua origem, e as características das Rodas guardam importantes semelhanças. Do mesmo modo, capoeira e candomblé são exemplos de manifes-tações de raiz negra que também reúnem características semelhantes às das Rodas de Samba e Choro. Para o caso da segunda, a análise de MOURA (2004) sobre as Rodas de Samba é particularmente pertinente, pois ambas são manifestações culturais em que a música desempenha o principal papel, diferentemente da capoeira e do can-domblé, em que elementos de luta, dança e religião são tão importantes quanto a música. Como no caso do sam-ba, a Roda antecede o Choro e é sua matriz física; não foi o Choro que criou a Roda, mas o contrário. Ao longo de sua existência, o gênero incorporou instrumentos, alterou formas e harmonias, criou novos estilos e sofreu uma sé-rie de outras modificações. Mas a Roda permaneceu. Mais do que apenas um dentre vários contextos em que o Cho-ro ocorre, a Roda é elemento fundamental na geração, preservação e divulgação desse gênero musical (MOURA, 2004, p.29). Assim, as características de performance e contexto presentes na Roda são, sem dúvida, cruciais para o entendimento da natureza do Choro.

No livro No princípio Era a Roda: um estudo sobre sam-ba, partido alto e outros pagodes (MOURA, 2004), o autor tenta refazer a trajetória histórica do Samba a partir das Rodas de Samba no Rio de Janeiro desde o final do século XIX aos dias atuais. Ele afirma que, embora seja um ritual, cada Roda é única e não pode ser repetida. Seu código se funda na família, na amizade, na lealdade, na pessoa e no compadrio (MOURA, 2004, p.28). Como em qualquer ritu-al, a Roda preserva e atualiza o que está em sua origem. Ela é antes de tudo um evento festivo de caráter plural, familiar; um espaço mítico resultante da dialética entre o cotidiano e a utopia; ela instaura a ilusão da eternidade (MOURA 2004 p.23). É um espaço em que o que é íntimo se confunde e se mistura com o que é coletivo. Compre-ende música, comida, bebida, alegria e um conjunto de relações, e funciona como suporte de processos de inte-ração e comunicação entre as pessoas. Não são os sam-bistas que formam a Roda, mas o contrário. Isso se deve em grande parte ao ambiente doméstico, familiar, íntimo, caseiro em que ela se dá (MOURA, 2004, p.39).

Como referencial para suas análises sobre a Roda de Samba e o inexorável processo de profissionalização dos sambistas e suas inserções no mercado fonográfico, MOURA (2004) adota as categorias sociológicas “casa” e “rua”, criadas pelo antropólogo Roberto DaMatta. Esses termos designam mais que simples espaços geográficos ou coisas físicas comensuráveis; designam:

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(...) acima de tudo entidades morais, esferas de ação social, pro-víncias éticas, dotadas de positividade, domínios culturais insti-tucionalizados e, por causa disso, capazes de despertar emoções, reações, leis, orações, músicas e imagens esteticamente emoldu-radas e inspiradas.” (DAMATTA 1997, apud MOURA, 2004, p.41).

O autor afirma ainda que, do mesmo modo que é possí-vel fazer uma leitura do Brasil do ponto de vista da casa em contraponto à rua, é possível ler o Samba através da Roda em contraponto à Escola de Samba nascida como casa e transformada em rua. Assim, na casa/roda as lei-turas ressaltam a pessoa; a casa propicia a formação da Roda como manifestação espontânea e festiva. Já na escola/rua há uma ênfase no indivíduo, os discursos são mais rígidos e instauradores de novos processos sociais (MOURA, 2004). Visto desta maneira, nota-se que a Roda não é passível de se transformar em produto, ao contrá-rio do samba. Ela é descrita antes como uma expressão comunitária (mais utópica e amadora); seu aspecto mais comercial caminha na direção da escola de samba (mais pragmática e mercantil).

A música que soa na Roda é, coerentemente com a abor-dagem de SCHUTZ (1977), produzida verdadeiramente em conjunto. Para MOURA (2004, p.37), o ambiente musi-cal da Roda não separa música e vida, lazer e produção, sendo mais do que apenas um evento musical, mas uma opção política, um modo de vida, que inclui desde círcu-los de amizade até vestimentas, comidas, bebidas, gestos, discursos e expressões. Muitos músicos realizam essa en-trega total à música, de modo que o Samba (ou o Choro) se torna sua principal marca de identificação.

A Roda apresenta muitas características das coletividades humanas, sendo a hierarquia uma delas. Todavia, os cri-térios delimitadores dessa hierarquia dentro de uma Roda de Choro ou de Samba são diversos daqueles passíveis de demarcarem hierarquias em outros ambientes. De modo simplificado, nada do que o sujeito é ou tem ou faz fora da Roda importa para aqueles que estão dentro dela:

Pode (...) certo artista ser um indiscutível sucesso de vendas ou execução. Pode ser um ídolo do rádio, do cinema ou da televisão. Pode bater recordes. Nada disso lhe assegura qualquer respeita-bilidade ou diferenciação dentro da Roda. Seu lugar será sempre determinado pelo que for capaz de fazer ali – e ali não é lugar de mentira. (MOURA, 2004: 44).

Sem dúvida, no caso do Choro, a performance do músico é o principal elemento que irá garantir sua respeitabilidade. Evidentemente, outros fatores podem intervir, tais como: antiguidade na Roda, reconhecimento, histórico pessoal, ou até o carisma. Mas a performance, a capacidade de tocar bem, a demonstração de talento e criatividade são cruciais para um músico na Roda.

Muitas vezes, outras manifestações da cultura popular brasileira que incluem a música têm na Roda sua matriz. CÂMARA CASCUDO (2002, P. 592) afirma que as três et-nias que deram origem ao povo brasileiro (negros, portu-gueses e índios) possuíam suas danças de roda. Segundo

ele, a Roda não é nenhuma novidade, pois a primeira dan-ça humana, expressão religiosa instintiva, a oração inicial pelo ritmo, deve ter sido em roda, dançada ao redor de um ídolo. Com efeito, encontramos inúmeras manifestações da cultura popular cuja organização se dá em forma de roda. Mas teriam essas outras rodas características seme-lhantes àquelas observadas nas Rodas de Samba, descritas por Roberto MOURA (2004), e nas de Choro? Tomemos a capoeira como exemplo. VIEIRA e ASSUNÇÃO (1998) afir-mam que o jogo da capoeira, até o início dos anos 30, integrava-se às práticas cotidianas das classes popula-res de modo semelhante aos jogos de futebol informais (peladas), pois consistia em encontros entre pessoas cujo aprendizado se dava no exercício prático do jogo. Havia pontos tradicionais de reunião dos capoeiristas, principal-mente nos domingos à tarde, tais como bares, praças, mer-cados e feiras. Não havia indumentária especial, mas os capoeiras mais experientes costumavam trajar ternos de linho branco, pois sua destreza se demonstrava ao sair da brincadeira com a roupa perfeitamente limpa. Os autores enfatizam que, embora o universo da capoeira envolvesse violência e frequentes embates entre grupos rivais e com a polícia, seu caráter essencial era lúdico. A roda de capo-eira era vista como folguedo, encontro. Afirmam também que a capoeira é marca identitária de seus praticantes, e apontam a malandragem, a mandinga, como um dos ele-mentos mais valorizados na performance do capoeirista. O duelo jocoso é a marca do jogo da capoeira; embora seja complexo a ponto de ser um jogo em que quase nun-ca é possível apontar um vencedor, há sempre o objetivo de derrubar o outro, por meio de golpes desequilibrantes. Todavia, nem sempre isso ocorre, e o jogo não perde seu valor por isso. No mesmo sentido, REIS (1997) afirma que o ethos da capoeira é marcado pela ambiguidade lúdico-combativa, que prefere o confronto indireto, disfarçado, ao embate aberto. A malandragem é a maliciosa capaci-dade de dissimular, de esconder as verdadeiras intenções do jogador. A ginga, base móvel da capoeira, é um tipo de movimentação que permite ao capoeira utilizar ma-neirismos e mandingas que confundem o outro jogador. Desse modo, ele torna seu jogo completamente imprevisí-vel, nunca sujeito a ser conhecido por antecipação, mes-mo nas últimas frações de segundo que antecedem sua movimentação. O jogo da capoeira é sempre improvisado.

Dentro da variedade de fontes que tratam da história do gênero, destaca-se a obra Choro: A Social History of a Brazilian Popular Music (LIVINGSTON-ISENHOUR e GAR-CIA, 2005). Em um capítulo inteiro dedicado à Roda, os autores destacam os aspectos musicais (a formação ins-trumental, o repertório, a improvisação, o aprendizado, a interpretação, e outros) e também os sociais (os códigos de conduta, o papel das amizades, a hierarquia, a intera-ção, a informalidade, a devoção, a paixão etc). Torna-se importante discutir os modos como os autores entendem a autenticidade de uma Roda. Para eles, existem dois ti-pos: a Roda pura, considerada também como original, e a Roda de Apresentação. Na primeira, os músicos não são remunerados, qualquer um pode tocar e não existe ne-

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nhum aparato tecnológico para a amplificação dos ins-trumentos. Na outra, os músicos são assalariados, con-tam com o apoio de uma infra-estrutura de sonorização e a participação de outros músicos dependerá do grau de intimidade tida com os outros membros da Roda. Os autores afirmam que esse segundo modelo descaracteriza a Roda pura, pois o fato de os chorões contarem com o apoio de recursos tecnológicos instaura outros modos de relação entre músicos e audiência. Ademais, o profissio-nalismo exigido reduz os espaços de expressão da pessoa-lidade, e cria um distanciamento entre músicos e músicos e entre músicos e audiência. A Roda só é autêntica se houver a máxima interação entre os músicos e a audiên-cia. (LIVINGSTON-ISENHOUR e GARCIA 2005, p.54).

Nesse ponto, algumas considerações são pertinentes. O contraponto, por excelência, da Roda de Choro, é a apresentação, geralmente realizada em teatros e ca-sas de espetáculos, e cujas características são opostas àquelas observadas na Roda. Em termos gerais, o reper-tório é preestabelecido e a apresentação é precedida de ensaios. Por isso, são feitos arranjos para a maioria das músicas; em muitos casos, a estrutura e a forma do Choro são alteradas, justamente por existirem ensaios prévios. A apresentação é marcada pela formalidade e pelo profissionalismo. O público assume a postura de espectador, ou seja, consumidor passivo do espetá-culo apresentado. Para os músicos, não faz diferença quem os está assistindo, pois a distância que os separa da audiência é grande, tanto no âmbito físico quan-to no psicossocial. Ocorre que, muitas vezes, as Rodas de Choro acabam por incorporar alguns elementos da apresentação, vez que são capazes de atrair público. Então, é comum que produtores de eventos, donos de estabelecimentos, entre outros, promovam Rodas de Choro periódicas, a fim de verem crescer seus negó-cios. Todavia, para que aconteçam, para que atraiam o público, é preciso garantir, primeiramente, que exista um mínimo de músicos presentes, capazes de execu-tar os Choros. Assim, nesses casos, um conjunto re-gional é contratado para garantir a música; todavia, não lhes são exigidos ensaios, repertórios definidos, e a participação de outros músicos é aberta. Em segun-do lugar, é preciso amplificar o volume do som, para que a audiência escute a música; existem, portanto, Rodas de Choro com som amplificado. Por fim, em al-guns casos, quando alguma Roda de Choro começa a se destacar pela qualidade musical, é comum que o dono do estabelecimento e/ou os próprios músicos realizem filtragens daqueles que poderão participar, vetando a entrada de músicos muito iniciantes e inexperientes, que podem comprometer o nível da performance da Roda como um todo. LIVINGSTON-ISENHOUR e GAR-CIA (2005) entendem que quando há som amplificado, pagamento de músicos fixos e filtragem de partici-pantes, o evento, embora denominado Roda de Choro, perde sua autenticidade como tal. Defendem esses au-tores a ideia de que somente é autêntica aquela Roda de Choro considerada pura, ou seja, que acontece sem

nenhum outro objetivo a não ser o encontro de músi-cos, e sem interferências de elementos externos a ela própria e à música.

Propomos, aqui, um outro modo de entendimento da Roda de Choro. Para tanto, será utilizada a abordagem metodo-lógica proposta por Max WEBER (1993), que se baseia na construção de tipos-ideais. Um tipo-ideal é uma abstra-ção que contém um conjunto de elementos que, embora encontrados na realidade, não necessariamente o são do mesmo modo como estão na representação típica-ideal. O tipo-ideal não é uma representação nem uma descri-ção, mas sim um conceito que funciona como ferramenta de análise, cuja finalidade é auxiliar a compreensão da realidade. Nas palavras de Weber:

Obtém-se um tipo ideal mediante a acentuação unilateral de um ou vários pontos de vista, e mediante o encadeamento de grande quantidade de fenômenos isoladamente dados, difusos e discretos, que se podem dar em maior ou menor número ou mesmo faltar por completo, e que se ordenam segundo os pontos de vista unilate-ralmente acentuados, a fim de se formar um quadro homogêneo de pensamento. Torna-se impossível encontrar empiricamente na realidade esse quadro, na sua pureza conceitual, pois se trata de uma utopia. A atividade historiográfica defronta-se com a tarefa de determinar, em cada caso particular, a proximidade ou afas-tamento entre a realidade e o quadro ideal (...) Ora, desde que cuidadosamente aplicado, esse conceito cumpre as funções es-pecíficas que dele se esperam, em benefício da investigação e da representação. (WEBER, 1993, p.137).

A descrição da Roda, conforme proposta por Roberto MOURA (2004), pode ser entendida como uma constru-ção típico-ideal de um contexto em que o Choro ocorre; a apresentação formal teria, então, características diame-tralmente opostas, sendo, também, um tipo-ideal. O que observamos no plano real, contudo, são situações híbri-das desses dois contextos, que contêm elementos de um e de outro, em maior ou menor grau (Ex.1).

A polaridade roda/apresentação é presente quase sempre nos discursos que tratam do Choro. Músicos, ouvintes, apreciadores, produtores, donos de comércio, intelectu-ais, acadêmicos e artistas, enfim, todos que tem alguma relação com o gênero, costumam possuir também opinião formada acerca dessa polaridade. Alguns discursos valori-zam a apresentação em relação à Roda, apoiados na ideia de que a formalização e a profissionalização indicam que o gênero está sendo valorizado. De outra mão, há aqueles que defendem a autenticidade do choro somente nas Ro-das, onde existe informalidade e pessoalidade. Em defesa da Roda, levanta-se o argumento da tradição: é comum associar a origem do Choro ao ambiente das Rodas. A partir daí, surge a ideia de que está havendo uma espécie de degeneração do gênero, cuja origem é a profissiona-lização dos músicos e a associação do Choro com o co-mércio do entretenimento. Ao mesmo tempo, alimenta-se o desejo nostálgico de volta ao tempo do “verdadeiro” Choro, aquele tocado em Rodas nos quintais e botecos. Esse argumento contribui, também, para a criação de uma visão romântica da Roda de Choro, como sendo um local que as pessoas frequentam por motivos nobres e

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altruístas, movidas apenas pela beleza da música e dos encontros entre pessoas, onde reinam a mais perfeita harmonia e as mais sólidas amizades, e onde não há lugar para mesquinharias e outros sentimentos e atitudes vis e baixos. Essa visão romântica é, obviamente, equivocada e distante da realidade.

É interessante notar que CAZES (2005), faz referência ao antagonismo Roda/Apresentação já no título – Choro: do quintal ao municipal. O título transmite a ideia de que o Choro, em sua trajetória histórica, partiu de um ambien-te amador/informal (o quintal, local onde as Rodas mais simples e espontâneas acontecem) para um formal/pro-fissional (o Teatro Municipal, ambiente glamoroso, onde somente grandes artistas se apresentam), obtendo mere-cido reconhecimento. Todavia, o prefácio do livro, escrito por Hermano Vianna, traz considerações sobre o título e sobre o antagonismo roda/apresentação:

Do quintal ao Municipal sim, mas também de volta ao quintal novamente, e assim sem parar, num mo-vimento de ida e vinda (não se sabe ao certo qual é o território de origem) que confunde muitas noções preestabelecidas, como a de alta e baixa cultura, ou como erudito e popular. Em cinquenta anos, a banda de Anacleto de Medeiros já apresentara uma seleção de temas de II Guarany, Villa-Lobos já frequentava as rodas de Choro na casa do pai de Pixinguinha; e o pioneiro do violão chorista, Sátiro Bilhar, tocara tam-

bém música clássica. Então, quem veio primeiro: o quintal ou o Municipal? Puxo a brasa para a minha sardinha, e para o que penso ser o traço mais interes-sante de tudo aquilo de vital que aconteceu e acon-tece na cultura carioca e brasileira: nem o quintal nem o Municipal. O melhor acontece “entre”, na pos-sibilidade de ultrapassar as fronteiras rígidas que se-param os vários mundos culturais, na tradução entre as várias linguagens musicais, na genial atuação de mediadores (entre-mundos, entre-linguagens) como Pixinguinha, Radamés Gnatalli(...). (VIANNA, Herma-no, In: CAZES, 2005, p.8-9)

Ao longo da história do Choro, conforme indicou Herma-no Vianna, a polaridade roda/apresentação esteve sempre presente. Também é fato que, na maioria das vezes, os músicos participantes das apresentações são os mesmos frequentadores das rodas e conhecedores dos dois con-textos, das diferenças que guardam entre si e dos códigos de conduta em cada um deles.

LIVINGSTON-ISENHOUR e GARCIA (2005, p. 42) também fazem referências à tensão roda/apresentação. Enfati-zam a importância da Roda como matriz do Choro, e a descrevem também em contraposição com o contexto da apresentação. Todavia, não refletem sobre a existên-cia de situações híbridas, que misturam elementos dos dois contextos. Segundo eles, para os chorões, o Choro “verdadeiro” somente se ouve na Roda, e a qualidade

Ex.1: Resumo esquemático de dois contextos de performance típicos do Choro.

RODAS

Informais

Pessoais

Proximidade músicos / audiência

Não-remunerada

Repertório definido na hora

Aberta a outros instrumentistas

Ausência de equip. amplificação de som

Ao redor de mesas, em cadeiras comuns

APRESENTAÇÕES

Formais

Impessoais

Distanciamento músicos / audiência

Remuneradas

Repertório pré-definido

Fechadas a outros instrumentistas

Equipamentos para amplificação do som

No palco

REALIDADE

(RODAS + APRESENTAÇÕES)

Características tanto das Rodas quanto da Apresentações, podendo estar mais

próxima de uma ou de outra.

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e pagos, a Roda tem falsa espontaneidade, e não deve ser considerada como tal. Além do pagamento, apontam a amplificação do som como outro elemento que desca-racteriza a Roda de Choro: a questão da amplificação não esteve presente em nenhuma das rodas que participamos, principalmente porque os requisitos estéticos de uma roda são substancialmente diferentes daqueles de um concerto (LIVINGSTON-ISENHOUR e GARCIA, 2005, p.56).

Com base nessas observações, LIVINGSTON-ISENHOUR e GARCIA (2005) concluem que:

(...) houve uma mudança crucial nos últimos vinte anos na prática e na percepção do choro; ele deixou de ser uma tradição essen-cialmente participativa, baseada na roda, para ser uma tradição de apresentações e gravações, representada pelas gerações mais jo-vens. O renascimento [do choro no final do século XX] introduziu o choro a um novo setor social – a juventude universitária de classe-média e classe-média-alta. Nesse processo, o choro foi adaptado às preferências e à sensibilidade musical dos novos chorões. Além de serem capazes de ler e compor músicas, esses músicos geralmente têm uma orientação cosmopolita que os distingue das gerações an-teriores de chorões (LIVINGSTON-ISENHOUR e GARCIA, 2005, p.57)

Desse modo, fica claro que, para LIVINGSTON-ISENHOUR e GARCIA (2005), não existe meio-termo entre os con-textos da Roda e da Apresentação, pois cada evento deve ser enquadrado em uma ou outra categoria. Quando ele-mentos típicos da Roda estão ausentes, eles a consideram falsa, mesmo que seja denominada como tal. Além disso, conforme indica a citação acima, esses autores relacio-nam a redução das Rodas de Choro autênticas ao fenô-meno contemporâneo do renascimento do Choro, cujos protagonistas são, principalmente, jovens de classe-mé-dia bem formados e informados. Esse setor da socieda-de dá alto valor às apresentações e gravações de discos; desse modo, realizam Rodas de Choro voltadas para um público com grupos fixos, pagos para tocar e, muitas ve-zes, com som amplificado. Para LIVINGSTON-ISENHOUR e GARCIA (2005), essas não são Rodas verdadeiras. Todavia, na história do Choro, sempre esteve presente a polari-dade roda/apresentação e seus hibridismos. Os chorões eram familiares aos ambientes informais tanto quanto aos mais formais possíveis, pois estavam acostumados a se apresentar para a corte e a alta sociedade. Também sempre foram comuns Rodas de Choro em estabeleci-mentos comerciais, visando a aumentar o movimento, e com retornos financeiros aos músicos. Conforme afirma Hermano Vianna, o Choro não acontece nem no quintal nem no Municipal, mas no espaço entre esses dois mun-dos culturais aparentemente apartados. Com base nisso, podemos afirmar que as Rodas do Choro na Feira não são, como afirmam LIVINGSTON-ISENHOUR e GARCIA (2005), falsas, mas possuem características diferentes daquelas exclusivamente domésticas, sem, que por isso, sejam me-nos autênticas. De fato, não é possível sequer julgar em qual contexto o Choro é “mais autêntico”, se na Roda ou na Apresentação, uma vez que ambos estiveram presen-tes ao longo da história do gênero, fazem parte dele e são igualmente importantes para o seu desenvolvimento.Podemos, ainda, afirmar que a polaridade roda/apre-

da Roda é julgada não somente pelo nível dos músicos, mas pelo grau de participação: uma roda em que apenas poucas pessoas tocam (...) não é considerada “verdadeira”. No capítulo que dedicam às Rodas de Choro, os autores fazem referência a várias delas. Uma ficcional, imaginada a partir dos relatos de Alexandre PINTO (1978) sobre o ambiente do Choro no início do século XX, com o ob-jetivo de descrever uma Roda antiga. Duas outras tive-ram participação dos autores do livro, e cuja realização se deu exatamente para que eles pudessem participar; a primeira foi considerada uma roda de amadores, por ser formada por músicos de nível técnico intermediário; a segunda foi definida como roda de profissionais, porque dela participaram músicos consagrados, como Joel Nasci-mento, Maurício Carrilho e Luciana Rabello. Há também a descrição de uma Roda de Choro em Brasília, realizada na residência do Dr. Assis, chorão conhecido na cidade por Six, pelo fato de possuir seis dedos nas mãos. Essa Roda durou cerca de três dias, pois era costume do Six realizar eventos intermináveis, e contou com a participação de grandes nomes da música instrumental brasileira, como Arthur Moreira Lima e Carlos Poyares. Pela longa duração da festa, a roda teve momentos diferentes, alguns mais formais, outros extremamente informais, e obviamente muitos choros foram repetidos.

Por fim, os autores descrevem a Roda do “Choro na Feira”, que aconteceu em maio de 2003. Eles diferenciam essa Roda das demais descritas por ser uma Roda de Apre-sentação. Definem esse termo – Roda de Apresentação – como sendo um contexto em que, embora aparente ser uma roda espontânea, na realidade consiste em um grupo de músicos, relativamente flexível, que se encontra todo sábado em Laranjeiras (LIVINGSTON-ISENHOUR e GAR-CIA, 2005, p.54). São, portanto, Rodas de Choro com ca-racterísticas de apresentação. Os autores chegam a afir-mar que, nesses casos, os músicos são pagos para agirem como se estivessem em um “evento espontâneo”. Desta maneira, nas rodas contratadas como eles as denominam, haveria uma grande dose de cinismo, pois que preten-dem literalmente enganar o público. Nelas, a aparente espontaneidade confunde a audiência: o fato de não ha-ver palco, e dos músicos tocarem fisicamente próximos da audiência, faz com que o público pense que se trata de uma Roda. Quanto à participação de outros músicos, afirmam que ela é limitada a instrumentos percussivos auxiliares (qualquer um menos pandeiro e surdo). Toda-via, descrevem uma situação em que um violonista des-conhecido dos músicos solicitou a participação na Roda e foi atendido; os solicitados, contudo, consideraram sua performance ruim e, embora o tenham tratado cordial-mente, demonstraram, com sutis expressões faciais, que não estavam apreciando. Apesar disso, deixaram-no tocar por um tempo. Para LIVINGSTON-ISENHOUR e GARCIA (2005), a participação do violonista foi possível porque o violão tem volume baixo, e não compromete tanto a sonoridade geral da Roda; caso fosse um trombonista, por exemplo, certamente teria sua participação negada. Os autores entendem, assim, que quando há músicos fixos

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sentação reflete a tensão casa/rua, descrita por Roberto DAMATTA (1997) e utilizada por Roberto MOURA (2004) para explicar os contextos da Roda e da escola de sam-ba. A roda equivale à casa, em que imperam a informa-lidade e a pessoalidade, e a rua equivale à apresentação, marcada pela impessoalidade e pelo profissionalismo. A partir desse aforismo, podemos dizer que o Choro ocor-re, na maior parte das vezes, não na casa, nem na rua, mas na calçada, ou no alpendre, com o portão aberto para quem quiser entrar.

3- Estudo de caso: análise de uma Roda de Choro em Brasília – DFEm Brasília, Rodas de Choro ocorrem nos quintais das belas casas dos Lagos Norte e Sul, nos apertados bares e restaurantes do Plano Piloto, nas salas dos generosos apartamentos da Asa Sul e Asa Norte ou em bares e res-taurantes que abrem espaço para música ao vivo. Este artigo realizou um estudo etnográfico sobre as rodas de choro realizadas em uma Lanchonete sempre às sextas-feiras. Essas rodas merecem destaque pela presença de muitos e importante músicos da cidade, bem como pela regularidade com que ocorrem desde 2004.

A Lanchonete Tartaruga Lanches localiza-se no Plano Piloto de Brasília, área nobre, de classe-média e classe-média alta. A Roda da Tartaruga reflete as características do ambiente do Choro na cidade. Entre os músicos que frequentam a Roda, existe enorme diversidade de origens familiares (cariocas, nordestinos, mineiros, sulistas, goia-nos, paulistas), de classes econômicas e níveis de renda, de escolaridade e de formação musical. Há, também, pre-dominância de jovens, entre 20 e 35 anos, embora a Roda seja constantemente visitada pelos chorões das velhas gerações. Dentre os ouvintes, predominam funcionários públicos, profissionais liberais e estudantes universitá-rios, ocupações típicas da classe média. A composição da audiência decorre, sem dúvida, do fato de a lanchonete estar localizada em bairro nobre da cidade.

As Rodas da Tartaruga Lanches tiveram início em meados de 2006, assim que a lanchonete/bar, de propriedade de dois irmãos músicos e chorões, foi inaugurada no final da Asa Norte. Antes disso, funcionava em um pequeno trailler de Kombi, sem motor, estacionado no Campus da Universidade de Brasília, ao lado do Departamento de Música. Seus donos, Paulo e Rogério, desde a ado-lescência estavam envolvidos com música, e participa-ram de várias bandas da cena da cidade. Na Tartaruga, iniciaram contato com os estudantes de música, dentre os quais alguns jovens chorões. Assim, Rogério come-çou a estudar pandeiro e Paulão, bandolim. A partir de 2004, a Tartaruga Lanches passou a promover modestos encontros, às sextas-feiras a partir das 18h00, entre es-tudantes de música que gostavam de tocar Choro. As reuniões eram pequenas, com menos de 30 pessoas. Em 2006, os irmãos transferiram a Tartaruga Lanches para um local maior, no final da Asa Norte, e continuaram a promover encontros musicais nas sextas-feiras à tarde.

As primeiras rodas não tinham um grupo fixo de ins-trumentistas. Os músicos se sentavam ao redor de uma mesa comum, em que os irmãos ofereciam alguns petis-cos, uma garrafa de cachaça e cerveja. A audiência era reduzida, e composta por amigos e por músicos. Numa das primeiras Rodas, realizada em 20/10/2006, foi regis-trada a presença de 12 instrumentistas, do total de 30 pessoas que estavam no local. Ao longo de um ano, as Rodas aconteceram sem um regional fixo, porém com a presença constante de 10 a 15 instrumentistas.

A audiência, contudo, foi aumentando a cada semana e, atualmente, varia entre 100 e 200 pessoas. O som de todos os instrumentos é, por necessidade, amplificado, sendo que há microfones para instrumentos de sopro e cabos para os de corda. Hoje existe, também, um grupo fixo de músicos contratados, que tem o compromisso da presença em todas as Rodas, e cuja função é garantir que a música aconteça, independentemente da presença ou da ausência de outros instrumentistas.

Muito embora sempre exista uma grande quantidade de músicos na Roda, que por vezes chega a 20 ou 30, certas regras definem a composição do grupo que toca em cada momento. Sempre há somente um pandeiro, um violão de sete cordas e um cavaquinho fazendo o centro (harmonia e ritmo); outro violão pode auxiliar na harmonia e outro cavaquinho pode entrar para fazer o solo. Quanto aos solistas, vários podem tocar a mes-ma música, porém sempre um de cada vez, dividindo entre si as partes da música. As observações das Rodas documentaram que já se apresentaram como solistas: clarineta, flauta, cavaco, bandolim, trombone, saxofone, violino, gaita, trompa, acordeom e viola caipira.

O objetivo da Roda de Choro é a possibilidade de os músicos tocarem uns com os outros, sem ensaio ou pré-determinações de repertórios e arranjos. Por isso, a Roda de Choro não dá espaço para grupos e regionais de Choro realizarem apresentações ensaiadas. Em Junho de 2007, a Roda recebeu a visita de um regional, residente nos Estados Unidos, que iria se apresentar no Clube do Choro de Brasília. Eles chegaram, assumiram seus ins-trumentos, e começaram a tocar o repertório próprio do grupo. Um leve mal-estar pairou entre os demais mú-sicos, que rapidamente foram substituindo os forastei-ros, para que se misturassem com os instrumentistas da Roda e tocassem com eles.

Esse episódio reforça o caráter de encontro da Roda. Sen-do um encontro, os músicos se importam menos com a audiência do que com os próprios músicos. Em entrevista, um dos músicos frequentadores dessas Rodas afirmou: na roda, eu toco para os músicos, e, no palco, para o público. Outro objetivo da Roda de Choro é o aprendizado do gê-nero, o conhecimento do repertório e a tomada de fa-miliaridade com sua linguagem. A Roda é considerada a escola por excelência do bom chorão, conforme indica o relato do violonista de sete cordas LP (Ex.2):

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LP: Geralmente quando a gente fala de choro, a gente fala de regional de choro, então fala de grupo, fala de pessoas. Ele pode ser um solista, tocar os temas, tocar sozinho, mas o esquema da roda de choro é único. É diferente tocar sozinho e tocar em grupo, acompanhado pelo pandeiro, pelo 7 cor-das. É uma outra pressão, um outro entendimento.

Ex.2: Relato de violonista acerca da importância da Roda de Choro.

Mesmo reconhecendo o papel do aprendizado formal, HN, violonista de 7 cordas, atribui à Roda importância funda-mental na formação do músico (Ex.3):

Hn: Meu aprendizado musical eu devo muito mais às rodas do que ao ensino formal e universitário. O conhecimento acadêmico te orienta, mas pra você ser músico mesmo, aí tem que tocar. Não deve ficar restrito à noite, tocar em boteco, isso não, porque aí o cara joga fora a vida dele toda. No boteco ninguém está ouvindo você tocar. Tem que se gabaritar para ser um grande músico, sacou? Fazer grandes trabalhos, isso é indispensável. A roda de choro, o boteco, ninguém está te ouvindo tocar, mas mesmo assim você tem que tocar neles, acompanhar cantores e tudo o mais. Essa é a maior escola, sem desmerecer a Universi-dade, claro, porque as coisas se complementam. A Univer-sidade te dá só um polimento.

Ex.3: Relato de violonista acerca da importância da Roda de Choro para o aprendizado do gênero.

Observamos, pelo relato acima, que o chorão em questão tem conhecimento de diversos contextos em que o Choro acontece. Para ele, tocar na Roda de Choro é indispen-sável para o aprendizado do gênero, mas é igualmente importante tocar em apresentações, gravações e em ou-tros contextos, bem como tocar outros gêneros além do Choro. Isso reforça a ideia de que a polaridade Roda de Choro/apresentação é algo sempre presente na realidade desses músicos, pois faz parte de sua formação a perfor-mance em ambos os contextos.

Na Roda, há uma regra clara: quem quiser tocar, pode to-car, desde que seja na roda e que tenha capacidade para tal. Certa vez, na Tartaruga Lanches, um desconhecido solicitou uma participação; como sua performance não foi condizente com o nível musical da Roda, foi sutilmen-te expulso, com frases incentivadoras, do tipo: “ô amigo, tente estudar mais um pouco”.

Diz-se que a Roda é aberta, ou seja, em princípio, nela é permitida a participação de qualquer músico. A depender do nível técnico e de conhecimento do Choro daqueles que a compõem, existe um grau de cobrança de desem-penho que pode excluir um grande número de músicos. A Roda da Tartaruga tem marcadamente essa característica. Muitos instrumentistas iniciantes relatam que não têm coragem de tocar, acreditando não possuir nível suficien-te para participar. Essa impressão é causada, em parte,

porque um bom número dos músicos participantes dela é considerado como os “bons” de Brasília. Também contri-bui para isso o hábito que os músicos têm de cobrar boas atuações. Não são poupados comentários e brincadeiras; se um participante está a comprometer por demais a exe-cução da música, é solicitado que algum outro músico assuma seu instrumento. Até mesmo músicos frequentes da Roda são alvo de críticas que chegam a ser severas a ponto de criar desentendimentos pessoais (Ex.4).

O cavaquinista, enquanto solava um baião rápido, olhava para o pandeirista e tentava corrigir um erro que ele estava cometendo naquele pedaço da música. Tanto o cavaquini-sta quanto o pandeirista são músicos habituais da Tar-taruga Lanches. Depois, chamou novamente a atenção do pandeirista, dizendo “está caindo, está caindo”, referindo-se ao fato de o pandeirista estar atrasando um pouco o anda-mento da música. Após um breque, o pandeirista teve di-ficuldades em voltar a tocar no tempo certo. O cavaquinista, então, fazia caras e bocas, dizia “não, não!”, e expressava impaciência e descontentamento; demais participantes da Roda estavam levemente apreensivos. Alguns riam dos er-ros do colega, outros aguardavam o desfecho da situação. Quando a música terminou, iniciou-se o seguinte diálogo:

Cavaquinista (dirigindo-se ao pandeirista): mas foi ruim demais, hein? Caiu muito [ou seja, o andamento ficou mais lento], caiu demais. Assim não dá.

Pandeirista: mas também a música é rápida demais.

Cavaquinista: Pois é. Vou te dar um conselho. Volta para a Escola de Choro [Raphael Rabello]. Volta para lá, você con-segue até uma bolsa. Volta para lá para aprender a tocar.

Pandeirista (levantando-se e deixando o pandeiro sobre a mesa): Alguém vem tocar no meu lugar aqui, porque não tenho capacidade para tocar nessa Roda.

Nisso, alguns integrantes da Roda tentaram minimizar o mal-estar, com frases do tipo: o que é isso, também não é assim, calma, não liga não.

Em vão, pois o pandeirista, visivelmente magoado, aban-donou a Roda.

Ex.4: Descrição de episódio ilustrando o modo como os músicos cobram boas performances no

contexto da Roda de Choro.

De fato, o que se observa na Roda é que, embora sempre se afirme que ela é aberta, tal abertura não é absoluta-mente irrestrita. As limitações se impõem, principalmen-te, em função de performances não satisfatórias. O caso descrito acima mostra a exclusão de um músico conside-rado de casa - cuja aceitação comumente não é posta em questão - em função de sua performance ter sido consi-derada ruim naquele momento. Em geral, a Roda fica sob o comando de um músico, defi-nido tacitamente entre todos; o critério para tal pode ser experiência, nível técnico ou de conhecimento musical. Se o “comandante” deixa seu posto, automaticamente o comando se transfere para outro. No Tartaruga, há a pre-sença constante de um cavaquinista cujo virtuosismo é notável, embora seja muito jovem. Em geral, a Roda fica

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sob seu comando. Algumas vezes, músicos mais velhos e experientes aparecem para participar; nesses momentos, é evidente a reverência com que são tratados por todos, e o comando da Roda lhes é gentilmente cedido.

Todavia, há casos em que instrumentistas virtuosos apa-recem para tocar, músicos que vêm se apresentar no Clube do Choro ou músicos que não frequentam assiduamente a Roda da Tartaruga. Nesses momentos, o comando da Roda fica em xeque (Ex.5). Observa-se, então, que se ini-ciam duelos entre solistas e, do mesmo modo, os acom-panhadores são postos à prova. Quando isso acontece, os músicos menos experientes ficam de fora, e são chama-dos para compor a Roda somente aqueles considerados os melhores. Em entrevista, o cavaquinista MM afirmou:

MM: [para tocar choro] tem que estar naquele convívio da Roda. Tem que ter aquele esquema do desafio. Eu acho que Roda de Choro é isso, o desafio, testar o cara para ver se ele vai dar conta. Se ele se ferrar, a galera vai ficar feliz, porque você conseguiu derrubar o cara. Roda de Choro tem muito isso

.

Ex.5: Relato acerca da existência de duelos entre instrumentistas na Roda de Choro.

Outro cavaquinista fez observações semelhantes (Ex.6):

LB: Roda é isso, chega o solista e diz: vou tocar tal choro, você tem que se virar pra acompanhar (...). O tom é tal, vamos atrás. Poyares fazia isso com a gente direto, às vezes inventava uma música e a gente tinha que acompanhar, tinha que correr atrás. Às vezes, o cavaquinista dá uma palhetada invertida, tira a acentuação do tempo, para ver se o solista também não se perde. Igual quando a gente vai tocar com o Evandro, ele enrola a galera. Pode estar tocando o choro mais simples do mundo, o Carinhoso, que ele desloca a melodia, atrasa, adianta. Se o cara não estiver atento, cai na hora. É coisa da roda.

Ex.6: Relato que demonstra a forma como os músicos testam uns aos outros na Roda de Choro.

O duelo musical entre instrumentistas é, então, um dos elementos importantes da Roda de Choro. Consiste basi-camente na comparação entre as performances, em que são julgados: técnica, conhecimento e criatividade para interpretar e improvisar. A responsabilidade daquele que não quer perder o comando da Roda é grande, pois ele não pode errar; por outro lado, tem a vantagem de “estar em casa”, ou seja, conhecer os acompanhadores e o am-biente. O forasteiro, por sua vez, pode testar o regional como um todo: por exemplo, é considerado humilhante se ocorrer de ele propor uma música que os acompanhado-res não conheçam e não sejam capazes de executar. Por outro lado, ele perderá a oportunidade de permanecer to-cando se cometer um deslize muito grave, como esquecer a música que ele mesmo propôs ou cometer um erro ru-dimentar (principalmente se perder o ritmo). Nesse pon-

to, o regional pode testá-lo também, fazendo variações rítmicas inesperadas – no caso do pandeiro e do cavaco -, ou frases contrapontísticas do violão que tirem a concen-tração do solista, ou mesmo acelerando o andamento da música (embora nem sempre isso seja considerado leal). O solista “de casa” tem a incumbência também de “manter seu reinado”. Por exemplo, quando um deles propõe uma música conhecida por ambos, o duelo então se acirra, por meio de improvisos e aumento dos andamentos, até que fique claro qual deles se saiu melhor, ou até que a música termine (Ex.7). Nem sempre sai um vencedor do duelo, mas é certo que todos ganham nessas ocasiões, principal-mente a audiência de músicos e frequentadores:

DD: Se eles [os músicos de casa] sacarem que o cara é carne nova no pedaço e vai dar uma canja, dependendo do cara, eles botam quente. Se eles sacarem que o cara toca bem e está tocando tudo o que eles estão fazendo, uma hora eles vão jogar uma música para ferrar o cara. Ou às vezes eles podem se ferrar. Eles acham que o cara não sabe, mas o cara sabe. Como já aconteceu no Rio com E. Foram tocar uma música, acharam que determinada pessoa não sabia a músi-ca, mas se ferraram, porque o cara sabia e tocou a música. Depois E. jogou contra, e puxou uma música que eles não souberam. Se ferraram. [Em outra ocasião], E. foi para São Paulo, e os paulistas tocavam altas músicas para sacanear, músicas que ninguém conhecia, e ele tocou todas. Então, ele puxou uma música, aquela ‘pra esquecer’, do Waldir, aí os caras não foram. E. deixou o cavaquinho na mesa, saiu da roda e falou: vocês não tocam nada. Então, você pode se surpreender, querer dar uma de bonzão e se dar mal.

Ex.7: Relato de violonista narrando um episódio em que um músico convidado foi testado pelos demais

em uma Roda de Choro.

Outro instrumentista também observou e comentou so-bre as mesmas situações (Ex.8):

Hn: Assim, a roda de choro sempre tem o espírito de testar o outro. No Rio [de Janeiro], acho que se acentua mais esse espírito, porque tem muita concorrência lá. Também tem esse lance, que está estampado na cara do carioca, de que ele é ma-landro. Então ele chega já botando uma música que ele sabe que você não vai tocar, de uma maneira até meio perversa. Aqui em Brasília também tem isso, lógico. Mas tem um lance do de-safio saudável. Lá eles derrubam para ver teu oco, mas isso é o espírito do choro. Acho que ele foi formado assim, isso não é uma coisa ruim. Acho que quando isso acontece, de você não saber tocar, isso te motiva a estudar mais, a conhecer mais rep-ertório. Tem que estar preparado para isso.

Ex.8: Relato de violonista confirmando e reafirmando a importância dos duelos e testes na Roda de Choro.

Embora seja inegável sua importância, nem sempre o duelo está presente. Muitas Rodas acontecem em clima constante de amizade, compadrio e companheirismo, sem por isso, serem consideradas piores. Outros fatores são considerados importantes no contexto da Roda (Ex.9).

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DD: Eu acho [importante para a Roda] a descontração, en-contrar os amigos e aprender com o outro. Tem gente que não traz coisas novas, tem um repertório de 15 músicas, mas tem muita gente que traz coisas novas, tem muita canja e isso é legal. Tomar umas, descontrair.

Ex.9: Relato de violonista enfatizando o caráter doméstico da Roda de Choro.

Do mesmo modo como ocorrem nas rodas de samba (MOURA, 2004), as relações pessoais, de afeto e de ami-zade, importantes para a vida dos músicos mesmo fora do âmbito estritamente pessoal, tem relação com a Roda de Choro, pois ela é local de formação de vínculos (Ex.10), conforme evidenciado no relato de AS:

AS: Se você toca numa roda de choro, já está fazendo ami-zade automaticamente. Claro que essa amizade, às vezes, se restringe mais ao campo profissional, mas não deixa de ser uma amizade. Também tem muitos músicos antigos aqui em Brasília, e a gente já toca há muito tempo. Então, a gente tem uma relação de amizade.

Ex.10: Relato sobre a Roda de Choro como local propício para formação de laços de amizade.

A existência, no mesmo ambiente da roda, de dois modos de relacionamento entre pessoas - desafio/competição e compadrio/amizade/afeto/lealdade – aparentemente contraditórios, revela um outro aspecto interessante da Roda de Choro: seu caráter lúdico. A música como jogo ou brincadeira amplia a sensação de informalidade e fes-ta (Ex.11). O seguinte relato menciona o desafio como brincadeira na roda de choro:

LB: Não tem, na história do samba, grandes cantores. O que importa não é a voz, é a interpretação, deslocando o tempo, atrasando, adiantando. Isso pra mim é improvisar (...). Toda a roda, na cultura brasileira, tem esse negócio do desafio, do duelo. Na capoeira os caras são amigos, mas tão due-lando; na roda de partido alto, também. Era tudo improviso, só tinha o refrão. Na roda de choro também tem esse lado; por ser roda, tem desafio.

Ex.11: Relato de cavaquinista afirmando o caráter de jogo e brincadeira da Roda de Choro.

PELLEGRINI (2005) também faz referência à brincadeira nessa modalidade musical:

Pode-se testemunhar esse clima de brincadeira ainda hoje em qualquer roda de choro em que, mesmo se tocando melodias co-nhecidas, vê-se o solista alterando as melodias de tal maneira que um acompanhamento pouco treinado, muitas vezes, acaba por se perder. (PELLEGRINI, 2005, p.25)

Imprimir a qualidade de jogo à música, contudo, não reduz o respeito com que os músicos e audiência consideram-na. Para tocar na Roda, é necessário conhecer seus códi-gos e ter capacidade de tocar bem o instrumento; ou seja, é preciso levar a sério a música e o ambiente da Roda.

O termo brincadeira, na Roda de Choro, não é antagôni-co à seriedade. A música como brincadeira de roda pode, porém, indicar uma resistência à institucionalização da Roda, que a converteria em espetáculo. Se ocorrer essa conversão, obrigatoriamente a Roda perderá algumas de suas características informais, dentre elas, a brincadeira e o jogo. No espetáculo, não há lugar para a imprevisibili-dade do jogo, tampouco para a vulnerabilidade do jogador que pode cair ou perder a qualquer momento; nele, tudo deve ser ensaiado previamente. Então, o ambiente de festa e encontro cederia lugar ao formal e profissional; nesse ponto, o evento não mais poderia ser considerado uma Roda. Esse é, sem duvida, o risco de as Rodas de Choro que assimilam elementos de apresentações formais (como amplificação de som e pagamento de cachê) sempre cor-rerem. Caso as características da apresentação passem a ter primazia sobre aquelas da Roda, ela pode, aos poucos, ir deixando de funcionar como tal, porque a Roda é resis-tente à institucionalização desde a sua essência.

Embora marcada pela informalidade e pela brincadeira, há aspectos da Roda tratados com verdadeira austeri-dade. Um deles é o repertório. Ele deve ser composto majoritariamente por Choros, embora possam ser in-cluídos, com muito critério, sambas, baiões e outros ritmos. O repertório das Rodas da Tartaruga varia, evi-dentemente, com os músicos solistas presentes. Não há nenhuma determinação prévia do que será tocado, mas algumas músicas fazem parte do cânone, e são tocadas em praticamente todas as Rodas. Autores como Jacob do Bandolim, Pixinguinha, Waldir Azevedo estão sempre presentes; e são tocados vários instrumentos. Uma re-gra rígida, em Brasília, consiste em não repetir a mesma música na mesma Roda. Portanto, se um solista chega depois do início da Roda, pergunta aos demais se de-terminado choro já foi tocado. Outra regra firme é a proibição do uso de partituras ou outros registros escri-tos. É extremamente valorizada, por parte dos músicos, a ampliação dos repertórios dos solistas, inclusive com o acréscimo de composições contemporâneas. Também se apreciam as inovações interpretativas trazidas pelos solistas. A Roda cobra dos músicos a variação nas inter-pretações, e critica, com sorrisos sarcásticos e olhares de lado, as reproduções sempre iguais. Desse modo, a Roda torna-se um fator de preservação, divulgação e renovação da tradição do Choro.

Normalmente, a Roda se inicia por volta das 18h30, com choros lentos e cadenciados, quando a audiência é ain-da pequena. A partir das 19h30, com público maior, são tocados choros mais rápidos, e parte da audiência já se aglomera ao redor da mesa dos músicos, dançando ou sim-plesmente observando as performances de choros rápidos e alguns lentos, com clara preferência dos músicos pelos mais rápidos. É comum aos solistas a realização de sequên-cias de sambas, bossa-nova ou baiões, que são do agrado do público. A partir das 20h00, o clima de informalidade aumenta, as pessoas falam mais alto e reagem aos aconte-cimentos musicais da Roda. Um improviso impressionante é reconhecido por gritos e palmas tanto dos demais mú-

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sicos quanto da audiência. Quanto maior for o número de pessoas, quanto mais sua atenção estiver voltada para a música, quanto mais elas gritarem, maior será o incentivo para os músicos, e a Roda se torna mais vigorosa e cres-ce em volume de som e no andamento das músicas. Para a última música da Roda, os músicos guardam os choros “apoteóticos”; dentre os mais comuns tocados estão Brasi-leirinho (Waldir Azevedo), Santa Morena (Jacob do Bando-lim) e Aquarela na Quixaba (Hamilton de Holanda).

Em todas as músicas do repertório, o improviso pode acontecer; é comum, contudo, que muitas músicas se-jam tocadas sem improvisos, às vezes com pequenas va-riações na linha melódica, ou sem variações. Existem al-gumas consideradas mais “propícias” ao improviso: por exemplo, podemos citar Cochichando, de Pixinguinha, e Noites Cariocas, de Jacob do Bandolim, como Choros em que o improviso é sempre presente. Quando são tocadas, normalmente as partes são repetidas muitas vezes (al-terando a forma da música) para que todos os músicos participantes improvisem. Praticamente todos os músi-cos entrevistados afirmaram considerar o improviso im-prescindível no Choro e na Roda. No improviso, o músico se despe das preparações prévias à performance, e mos-tra o seu real domínio e conhecimento da linguagem do Choro. Além disso, traz a possibilidade de se expressar individual e pessoalmente. Por isso, na Roda de Choro, contexto em que vigora o primado da pessoalidade, o improviso é considerado fundamental.

Há, porém, falta de consenso entre os chorões acerca da quantidade de solos improvisados que uma performance pode conter, bem como acerca do modo como são reali-zados. Há aqueles críticos dos músicos que exageram nos improvisos; normalmente, é cobrada a apresentação do tema. Todavia, alguns músicos consideram desnecessária a apresentação do tema em uma Roda de Choro (princi-palmente nas músicas muito conhecidas), e não se inco-modam de executar uma música inteira somente impro-visando. Essas divergências resultam, ocasionalmente, em discussões na Roda, por vezes no meio da música, como ilustra o episódio abaixo:

A música era Cochichando, havia três solistas (cavaqui-nho, flauta e gaita), mais o violão de 7 cordas, o violão de 6, o cavaquinho-centro e o pandeiro. O cavaquinho puxou a primeira parte incluindo variações e improvisos; a flauta a repetiu sem improvisar. Na segunda parte, o mesmo se sucedeu. A partir daí, o cavaquinista e o gaitis-ta intercalavam improvisos, pedindo as partes da música aleatoreamente, sem respeitar a forma. A terceira parte já havia sido repetida várias vezes (inclusive com impro-visos dos violões), sem que o tema fosse apresentado. O cavaquinista-centro pediu, então, que algum dos solistas apresentasse o tema. Quando a música terminou, alguns músicos não esconderam a insatisfação, reclamando mui-to do excesso de improvisos e do desrespeito à forma do choro. Seguiu-se uma pequena discussão, até a próxima música fosse iniciada, e o entrevero esquecido.

Os seguintes relatos expressam a opinião de músicos que defendem maior parcimônia nos improvisos (Ex.12):

LB: O respeito na roda é todo mundo saber o que fazer e quando fazer. Chego lá na roda da Tartaruga, e está todo mundo estudando improviso. Tocou a música, aí repete a segunda ou a terceira parte vinte vezes. Só o cara que está improvisando é que está gostando. Quem é músico está en-tendendo tudo. Mas imagina quem não é? O público não entende nada. Fica aquela coisa massante, igual ao Jazz. O tema dura 30 segundos, mas a música dura duas horas. Tudo tem um limite.

DD: Até nas repetições das músicas, a galera esqueceu da forma das músicas (...). Faz três vezes a primeira, a segunda faz uma vez, aí já muda pra terceira, faz três vezes a terceira. Aí confunde tudo, porque perde a forma.

LB: Isso é primordial. A forma é primordial. Porque se é uma música de improviso, você não sabe onde ela vai acabar e o que vai acontecer. Então, pelo menos a forma tem que estar definida.

DD: Isso está acontecendo em Brasília, não é só na Tartaru-ga, a gente tem a referência da Tartaruga, porque a maioria dos músicos de Choro está se encontrando lá, e ela se tornou a maior Roda de Choro aqui de Brasília. Os solistas, e até mesmo os violonistas, ficam toda hora pedindo para improv-isar, toda hora falam tal parte para mim, para mim. Aí então acaba afetando a forma, porque é um tal de pedir para mim, para mim, que a gente não sabe se faz uma vez a [parte] A, outra vez a B. Porque as vezes você está na A, então alguém fala: três, três [solicitando a parte C, às vezes chamada de terceira ou parte três], eu pulo do A para o C, sem fazer a forma da música toda. Aí fica sem sentido a coisa, e a música mesmo, que era pra ser apresentada, não acontece.

LB: Tem que apresentar o tema, e improvisar depois.

Ex.12: Relatos sobre improviso no Choro.

É fato que, embora o improviso seja sempre aceito e considerado indispensável, há pontos de conflito rela-cionados a ele. Os músicos mais conservadores enten-dem que o tema de uma música não pode desaparecer por longos períodos em sua execução, como acontece no Jazz; também há polêmicas quanto à perda da lin-guagem do Choro, uma vez que muitos músicos, por sua formação eclética, utilizam técnicas do Jazz para improvisar. Por outro lado, outros defendem o aconte-cimento de improvisos, principalmente nas Rodas de Choro, longos e que tomam boa parte da execução da música. Em virtude dessas divergências, o que se ob-serva nas rodas é uma grande diversidade de modos de executar os choros, com ou sem improvisos; esses últimos podendo ser longos ou curtos, ser próximos ou distantes da melodia da música.

Com efeito, controvérsias em relação ao improviso no Cho-ro não são recentes. CAZES (2005) afirma que a improvi-sação, do surgimento do Choro até as primeiras décadas do século XX, era inexistente nas gravações, o que levou Hermano Vianna, no prefácio do livro Choro: do quintal

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ao municipal (CAZES, 2005, p.8) a concluir que isso torna muito provável a afirmação de que não se improvisava na roda de choro. KORMAN (2004), por outro lado, afirma que o improviso esteve presente no Choro desde suas origens, ainda no século XIX. Segundo esse autor, no início do sécu-lo XX, o Choro incorporou influências do jazz norte-ameri-cano, do ragtime, dos fox-trots. Nas décadas de quarenta e cinquenta, foi influenciado pelo bebop, cool jazz, swing, ballroom e hard bop.Em todos os casos, o uso de técnicas e de linguagens oriundas desses gêneros estrangeiros ge-rava polêmicas e discussões entre os músicos brasileiros. A escassez de registros torna difícil saber se havia ou não im-provisos no Choro, bem como conhecer com precisão como eram feitos. Mas o próprio CAZES (2005) afirma que as gravações do início do século XX da flauta de Pixinguinha apresentam o brilho especialíssimo de suas interpretações e de seus improvisos. É possível que improvisos estivessem ausentes das gravações, por questões de ordem técnica e financeira, mas isso não significa que, em outros contex-tos, notadamente com alto grau de informalidade como as Rodas de Choro, eles não ocorressem.

KORMAN (2004) afirma que na nova fase que o Choro vive, seus praticantes tem familiaridade com a lingua-gem do jazz americano, e isso vem alterando o voca-bulário de improvisação do Choro. O autor identifica algumas mudanças no modo de tocar o Choro, dentre as quais as seguintes estão presentes nas Rodas da Tar-taruga Lanches: a forma da música é alterada, possibi-litando a improvisação sobre uma sequência harmônica cíclica; aspectos da performance jazzistica estão sendo apropriados e usados livremente; repertório, fragmentos melódicos e fraseados da tradição brasileira têm sido incluídos no vocabulário comum do Choro; praticantes estrangeiros estão cada vez mais familiarizados com o gênero. Observamos, contudo, que a inserção dessas mudanças não se dá de forma harmoniosa, pois gera desavenças entre seus praticantes. Os relatos dos músi-cos também permitem concluir que, em geral, têm ple-na consciência desse processo de mudança pelo qual o Choro está passando, e não se furtam a tomar posição perante elas, seja concordando ou discordando. A exis-tência dessas controvérsias, bem como a possibilidade de introduzir inovações no modo de tocar o Choro, in-dicam que a Roda de Choro da Tartaruga é um contexto em que é possível a renovação da tradição do Choro.

De fato, Roberto MOURA (2004), quando afirma que a roda é a matriz do samba, está a dizer que é precisamente nesse contexto em que se processa o desenvolvimento do gênero; ou seja, é na Roda que as inovações são testadas, podendo ser aceitas e incorporadas ou não ao gênero. O mesmo é válido para o Choro. As Rodas da Tartaruga são locais em que esses testes podem acontecer, e as polê-micas e controvérsias acerca das inovações ao gênero podem ser discutidas e amadurecidas. As seguintes ca-racterísticas da Roda de Samba apresentadas por MOURA (2004) também estão presentes na Tartaruga Lanches: compadrio, amizade, lealdade, hierarquia e informalida-

de. Também é nítido o caráter doméstico e familiar da relação entre músicos e boa parte da audiência. O fato de os músicos tocarem para os músicos e da Roda cobrar que toquem juntos, sem predeterminações de arranjos ou interpretações, reforça o caráter de construção coletiva da música. A tradição se renova, então, pela constante reformulação interpretativa das composições.

É preciso enfatizar, contudo, que a Roda da Tartaruga Lanches incorpora alguns elementos típicos de apre-sentações, sendo os mais importantes a contratação de um grupo fixo de instrumentistas, mediante pagamento de cachê, amplificação de som e presença de pessoas externas ao círculo de amizades e relações dos músi-cos. Além disso, em determinadas situações, alguns instrumentistas não têm acesso a participar da Roda, principalmente em função do nível de habilidade. Esses elementos, porém, não fazem com que os músicos, nem a audiência, deixem de considerar o evento como uma autêntica Roda de Choro.

Também são presentes nessa Roda formas de duelo mu-sical, ocorridos quando um instrumentista desafia outros, transformando a música em uma espécie de jogo. Esse modo de executar a música remete a outras manifesta-ções de roda típicas da cultura afrobrasileira, baseadas em duelos e desafios. Já citados nesse trabalho como tais são a capoeira, com duelos corpóreos e improvisados, e o partido-alto, que consiste em duelos musico-verbais também improvisados. É interessante ressaltar que os termos empregados pelos chorões, ao se referirem aos duelos, se assemelham àqueles do universo da capoeira (cair, derrubar, levantar etc); em um dos relatos, inclusive, um cavaquinista chegou a comparar o duelo da Roda de Choro com o jogo da capoeira.

4- ConclusãoOs relatos dos chorões apontam para a importância da existência de Rodas para manutenção e recriação da tra-dição musical do Choro. Podemos, então, afirmar que, do mesmo modo como ocorre com o Samba (MOURA, 2004), a Roda é a matriz do Choro. E as características da Roda nos mostram que, para esse gênero musical, uma série de fatores extra-musicais interferem de modo significativo nas performances dos músicos, no desenvolvimento e na criação da música. Esse modo de conceber a arte é coe-rente com a perspectiva de Gerard Béhague, que afirma que o sentido da música não pode ser compreendido a partir de uma única fonte (BÉHAGUE, 1984, p.8). As im-plicações dessa afirmação são inúmeras, e seria impossí-vel explorá-las todas aqui. Conseguir apreender o sentido do Choro como gênero musical talvez seja o maior desafio da musicologia que pretende estudá-lo, e esse trabalho mostra que a Roda de Choro tem muito a nos revelar so-bre isso. Nessa modalidade os elementos não musicais encontram-se, de alguma maneira, dentro da música, como partes importantes em sua execução, interpretação e criação. A Roda de Choro é um local em que a música é tão importante quanto a existência pessoal de músicos

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e ouvintes, porque não se separa dos demais aspectos da vida, e funciona como ponte comunicativa, que permite o encontro e a relação entre pessoas.

A imbricação entre música e contexto é tão marcante no Choro que não é possível falar de Choro sem se referir ao seu contexto. Essa inseparabilidade não é exclusiva do Cho-

ro, como nos ensinam musicólogos como Jonh Blacking e Gérard Béhague. Ela faz parte da música. Não existe siste-ma musical em que a música esteja separada dos aspectos não-musicais. A música é coisa dos homens, das coletivida-des humanas organizadas por suas culturas. A ordem sono-ra é reflexo da ordem vigente na sociedade. Então, a música está enraizada na realidade, e é daí que emana seu sentido.

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PELLEGRINI, Remo T. Análise dos Acompanhamentos de Dino 7 Cordas em Samba e Choro. Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, 2005, 250 pp.

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ciais. 2ª ed., São Paulo: Editora Cortez, 1993.

Ivaldo Gadelha de Lara Filho iniciou seus estudos na Escola de Música de Brasília, obteve o bacharelado em clarineta na classe do professor Ricardo Dourado Freire na Universidade de Brasília. Em 2009, concluiu seu mestrado na área de Musicologia no programa de Pós-Graduação Música em Contexto da Universidade de Brasília. Atualmente é técnico de música do SESC-DF.

Gabriela Tunes da Silva iniciou a realização de trabalhos acadêmicos na área de biologia, na Universidade de Brasília. Seguiu nas ciências biológicas até terminar o Mestrado em Ecologia, pela mesma universidade, em 1999. Ingressou no Doutorado em Desenvolvimento Sustentável, ainda na Universidade de Brasília, em 2001, quando teve contato com as ciências humanas e sociais. Iniciou, então, a prática amadora de flauta transversal, aprendendo em aulas particulares, em rodas de choro e na convivência com a comunidade de músicos chorões de Brasília. Após o término do Doutorado, aprofundou leituras e estudos sobre história do choro e antropologia da performance musical. Atualmente, é servidora concursada da Câmara Legislativa do Distrito Federal, onde desempenha a função de consultora legislativa.

Ricardo Dourado Freire cursou o Bacharelado em Clarineta na Universidade de Brasilía com o professor Luiz Gonzaga Carneiro. Continuou seus estudos na Michigan State University recebendo os diplomas de Mestrado em Música (MM), em 1994, e Doutorado em Artes Musicais (DMA), em 2000, sob a orientação da Dra. Elsa Ludewig-Verdehr. Sua tese intitulada a “Historia e Desenvolvimento da Clarineta no Brasil” serve como principal referência para os interessados na trajetória dos clarinetistas brasileiros. Realiza pesquisas nas áreas de Performance, Educação Musical, Psicologia Cognitiva vincu-lado ao aprendizado instrumental e Música Popular.

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Recebido em: 03/02/2010 - Aprovado em: 22/06/2010

Horizontalidade e verticalidade: os modelos de improvisação de Pixinguinha e K-Ximbinho no choro brasileiro

Paula Veneziano Valente (USP, São Paulo, SP)[email protected]

Sumário: Análise sobre os procedimentos de improvisação utilizados por Pixinguinha em 1 x 0 (1947) e por K-Ximbinho em Velhos Companheiros (1981). Uma comparação das diferenças e semelhanças entre suas abordagens mostra uma preferência pelos modelos estilísticos vertical ou horizontal. Palavras-chave: K-Ximbinho; Pixinguinha; choro; música popular brasileira; improvisação; análise musical.

Horizontal and vertical structures: Pixinguinha and K-Ximbinho’s models of improvisation in the Brazilian Music

Abstract: Analysis of the improvisation procedures of Brazilian instrumentalists Pixinguinha in 1 x 0 (One to zero; 1947) and K-Ximbinho in Velhos Companheiros (Old pals; 1981). A comparison of differences and similarities in their approach-es reveals a preference for horizontal or vertical stylistic models.Keywords: K-Ximbinho; Pixinguinha; Brazilian choro; popular music; improvisation; music analysis.

1 – Introdução O improviso é um procedimento comum a vários estilos e épocas, possui grande importância dentro da criação musical brasileira, e ainda é pouco considerado pela mu-sicologia nacional. Por serem relativamente recentes os estudos nesta área, existem poucos trabalhos referentes a ele. Grande parte do material didático que temos dis-ponível para o estudo da improvisação se refere à música americana, mais especificamente ao jazz, sendo raros os livros dedicados à música brasileira. O mercado norte-americano de livros didáticos que se volta para a im-provisação é vasto, provavelmente este deva ser um dos motivos da grande influência da improvisação jazzística dentro da música brasileira. Tendo em vista essa insufi-ciência de pesquisas e materiais de estudo, aqueles que queiram se aprimorar na linguagem do choro e na im-provisação, voltam-se necessariamente aos discos ou aos próprios músicos para construir seu aprendizado. Nesse sentido, a observação das gravações é determinante, pois

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.23, 195 p., jan. - jul., 2011

nelas podemos perceber aspectos como articulação, dinâ-mica, inflexão, variações de timbre e muitos outros efei-tos instrumentais.

Destacamos neste trabalho, dois importantes improvi-sadores da música popular brasileira: Pixinguinha e K-Ximbinho. Além de improvisadores, eles também foram intérpretes, compositores e arranjadores. No entanto, será tema da nossa pesquisa somente o aspecto referente à improvisação dentro de suas obras, e por meio de seus exemplos musicais investigaremos os principais caminhos e preferências de cada um deles. A escolha dos nomes Pi-xinguinha e K-Ximbinho foi motivada pelo fato de acre-ditarmos que eles representam dois modelos distintos de abordagem de improvisação.

Pixinguinha nasceu no Rio de Janeiro em 1897, onde viveu toda sua vida, falecendo em 1972. K-Ximbinho,

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nasceu em 1917 em Natal/RN, e também passou grande parte da vida no Rio de Janeiro, falecendo em 1981. A diversidade de suas concepções e de suas influências mu-sicais é fundamental para a nossa pesquisa, uma vez que transparecem em seus improvisos, e é por meio deles que conseguiremos ilustrar diferentes procedimentos dentro de suas criações.

Em relação às influências observadas em cada um deles, notamos que para músicos populares, como no caso de Pixinguinha e K-Ximbinho, que circulavam por gêneros, estilos e performances variadas, sobreviver dentro do mercado de trabalho significava se adaptar aos gostos e modas do público e da época. Tanto Pixinguinha quanto K-Ximbinho sempre se ajustaram ao mercado, e compu-nham além de choros, outros estilos. Essa flexibilidade sempre fez parte da produção dos músicos brasileiros, e a assimilação das novidades estrangeiras muitas vezes se combinou às tendências musicais brasileiras.

Pixinguinha foi considerado o primeiro grande improvisa-dor no choro e, segundo CABRAL (1978, p.20) “soube reu-nir uma série de elementos que andavam dispersos nas primeiras décadas do choro”. K-Ximbinho pode ser consi-derado um exemplo da continuidade dessa prática criati-va dentro da música brasileira, mesmo com uma obra não tão numerosa quanto à de Pixinguinha, e também pelo fato de ser pouco estudado dentro das pesquisas acadê-micas até o presente momento1.

Enquanto a obra de Pixinguinha já foi tema estudado, a de K- Ximbinho recebeu pouca atenção. Apesar de ter sido um compositor e instrumentista conceituado dentro da música brasileira, deparamo-nos com dificuldades em en-contrar materiais sobre ele, tanto escritos quanto sonoros. A maioria de seus discos foi gravada junto à Orquestra Ta-bajara, de Severino Araújo, na qual atuou em grande parte de sua vida. Além dos discos com a Orquestra, gravou com outras formações menores ou também acompanhando importantes cantores de sua época. As gravações de K-Ximbinho estão dispersas e segundo nossas pesquisas, seu último trabalho pode ser encontrado em CD.

Durante a criação de um improviso percebemos dois ca-minhos básicos: um que se revela mais preocupado com a harmonia e outro com a melodia. Essas duas linhas co-existem no mesmo discurso, mas notamos a predominân-cia de uma delas em relação à outra, dependendo de cada intérprete. Com as análises dos compositores escolhidos queremos exemplificar estes caminhos, demonstrando as diferenças e semelhanças e traçando um modelo predo-minante em cada um deles.

Para esse artigo, analisaremos apenas um trecho de im-proviso de cada autor: de Pixinguinha, o do choro 1 X 0 (de 1947); e de K- Ximbinho, Velhos Companheiros (de 1981). Como referências de repertório para a escolha dos improvisos selecionamos dois choros. De Pixinguinha, um choro gravado em 1947, com o flautista Benedito Lacer-

da, que faz parte de uma importante fase de sua carreira, quando passou a tocar ao saxofone seus famosos “con-tracantos”, enquanto a flauta de Benedito executava a melodia. Com a mudança de instrumento para o saxofo-ne, os improvisos de Pixinguinha, que antes eram feitos à flauta como variações melódicas ou pequenas alterações rítmicas da voz principal, passaram a ter uma função mais subordinada à harmonia, ou seja, de acompanha-mento desta voz principal. De K-Ximbinho, escolhemos uma parte de um choro gravado no disco Saudades de um clarinete, lançado em 1981. Neste disco, todas as faixas são de sua autoria, bem como os arranjos e regências, e entendemos que nesta fase seu estilo de improvisação já se encontrava consolidado e amadurecido.

Nossa principal fonte de estudo para o presente trabalho se constitui nas gravações, que serão transcritas e poste-riormente analisadas. Em muitos casos, a transcrição dos solos não é suficiente para a compreensão ampla da obra, sendo necessário a audição da própria gravação, que nos possibilite ouvir as sonoridades específicas do instrumen-tista, suas inflexões, o tipo de interpretação que sugeriu e em que contexto se deu o improviso. Apesar de não ser o ideal para a análise de improvisos, esta será uma das fontes que utilizaremos, juntamente com as gravações.

Vale lembrar que o objetivo do pesquisador em música é tentar achar o sentido dentro da obra, que vai além das simples notações, partituras e o que elas podem revelar, percebendo as várias partes que compõem a estrutura to-tal, identificando pontos de reflexão, a fim de encontrar o método mais eficiente de análise em cada caso específico.

Acreditamos que a solução para a análise de um improviso seja primeiramente sua transcrição a partir de uma grava-ção (mesmo sabendo que dificilmente conseguiremos ob-ter uma descrição fiel do momento), e posteriormente, para complementação das análises, examinar as próprias grava-ções que transcrevemos a fim de observar fatores como: inflexões de frases, variação timbrística, articulações etc. Em música popular, e mais ainda na música improvisada, o performer, ou o músico tem muita liberdade em relação à partitura. Segundo NAPOLITANO (2002), tanto a estrutura quanto a performance são igualmente importantes, mas uma não deve ser reduzida à outra.

Nossa sugestão de análise restringe-se à improvisação dentro de um gênero definido, o choro; dentro de um ter-ritório específico, que supõe suas delimitações e regras, citaremos Derek BAILEY (1993) que, na introdução de seu livro, Improvisation - its nature and practice in music, ca-racteriza as duas principais formas de improvisação - a idiomática e a não idiomática:

Idiomatic improvisation, much the most widely used, is mainly concerned with the expression of an idiom – such as jazz, fla-menco or baroque – and takes its identity and motivation from that idiom. Non idiomatic improvisation has other concerns and is most usually found in so-called ‘free’ improvisation and, while it can be highly stylised, is not usually tied to representing an idiomatic identity2

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Nossa pesquisa se refere à improvisação idiomática, ou seja, dentro de um idioma definido. Para auxiliar-nos nas análises iremos examinar os conceitos citados pelo autor George Russell em seu livro The Lydian Cromatic Concept of Tonal Organization for Improvisation de improvisação vertical - que prioriza a harmonia – e horizontal – que enfatiza a melodia.

Nossas análises têm como objetivo principal a caracte-rização de dois caminhos que são tomados no decorrer das improvisações e a sua demonstração através dos dois compositores destacados. Denominaremos estes caminhos de vertical e horizontal, e iremos examiná-los a seguir.

2- Improvisação horizontal e verticalPara nos auxiliar na questão da análise de improvisações dentro do choro brasileiro, utilizaremos a obra de RUS-SELL (2001) citada acima, em que o autor observa dois caminhos básicos dentro da improvisação que chama-mos de “idiomática”. Segundo Russell, uma música pode ser comparada metaforicamente a uma viagem através de um rio, e no caso da improvisação o músico tem a possibilidade de fazer esta viagem de várias maneiras. Os dois principais modos desta “navegação” são denomina-dos como o modo ou abordagem vertical e o outro que é chamado de horizontal.

O músico que navega por este rio pelo modo que chama-mos vertical faz paradas em cada acorde, ou seja, cons-trói uma improvisação através da escala relativa a cada acorde. Uma improvisação neste nível, ou seja, vertical requer que o músico projete a identidade harmônica de cada acorde com a melodia, definindo os tipos de acor-de na medida em que eles aparecem dentro da música. Para esta definição nota-se inicialmente uma construção baseada principalmente em terças e fundamentais dos acordes, e posteriormente, através da experimentação, outras notas além das estruturais do acorde também po-dem ser incorporadas, o que leva aos acordes extendidos ou alterados. Por exemplo: em um acorde de C7 pode-se adicionar um Db ou um Gb, assim este acorde se trans-forma em C7/ b5/b9 (acorde dominante com a quinta diminuta e a nona menor).

Criar uma melodia que se encaixe em cada acorde dentro da respectiva progressão é o principal objetivo deste nível “vertical”. O improvisador vertical sugere o tipo de acorde através da melodia do seu improviso. Na gravitação ver-

tical a melodia é indicada pelo acorde, ela é concentrada em cada acorde da progressão.

O outro modo de navegação por este rio é chamado de horizontal. Nesta abordagem, a melodia é construída não com paradas e definições sobre cada acorde, e sim base-ada em uma escala relacionada a mais de um acorde, ou seja, ao centro tonal daquela progressão. O músico não precisa necessariamente definir cada acorde identifican-do-os um a um, mas utiliza escalas comuns a mais de um acorde. Este tipo de abordagem não realiza paradas como a vertical, em cada acorde e sim nos centros tonais.

Quando encontramos uma única nota sustentada em mais de uma acorde, ou uma única escala utilizada atra-vés de vários compassos, podemos dizer que a melodia está baseada numa abordagem horizontal.

Notamos em cada improvisador uma tendência ou pre-ferência por um desses tipos de abordagem, mas ambos os modos caminham lado a lado e durante o improviso observamos, nem sempre muito claramente, as passagens de um modo ao outro.

Segundo BERTON (2005), baseado nos conceitos de Rus-sell, define uma abordagem horizontal quando, por exem-plo: dentro de uma cadência típica da música popular, Dm – G7 – C7M (ii,– V – I), o improvisador utiliza como material fonte a escala de Dó Maior sobre os 3 acordes, gravitando em um só centro. Dentro desta abordagem utilizam-se mais padrões escalares. No Ex.1 podemos ver claramente a aplicação de uma escala blues3 em “Sol”, enquanto a progressão harmônica caminha, independen-temente desta, porém, gravitando no mesmo centro “Sol”.

Seguindo o raciocínio de Russell, através da dissertação de Berton, uma abordagem vertical seria quando o impro-visador, dentro desta mesma cadência, utiliza três centros de gravitação, correspondentes às três fundamentais de acordes envolvidas. Em Dm7, ele pensa no segundo modo de Do (dórico), no G7 pensa no quinto modo de Do (mixo-lídio), e em C7M no primeiro modo de Do (jônico). Dentro desta abordagem usam-se mais arpejos (Ex.2).

Aplicando os conceitos de horizontalidade e verticalidade examinados acima, podemos notar a preponderância de um destes aspectos dentro de cada compositor estudado. Através deles pretendemos esclarecê-los e delinear ten-dências da improvisação dentro do choro brasileiro.

Ex.1 - Song of my father (Joe Henderson): exemplo de abordagem horizontal4

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3- o desenho harmônico de Pixinguinha Nossa análise fundamenta-se na fase em que Pixin-guinha definiu sua maneira de improvisar, isto é, exe-cutar ao saxofone suas linhas de contracanto6. Nela, notaremos sua originalidade e as razões pelas quais é considerado um estruturador da linguagem do cho-ro ao transferir o tipo de improvisação característica dos instrumentos acompanhadores (harmônicos) para o instrumento solista (melódico). Pixinguinha criava essas linhas paralelamente aos solos da flauta, mas quando ouvimos suas gravações podemos observar que não eram totalmente improvisadas. Em gravações da mesma música, ouvimos frases bem parecidas - o que nos faz concluir que em sua mente existia um “cami-nho” traçado pela harmonia da música, e no momento da execução poderia ou não repetir certos elementos sempre criando linhas que revelavam claramente a harmonia. A concepção destas linhas é similar às do baixo (ou da “baixaria” como é denominado no choro) e podemos ouvi-las desde as primeiras gravações.

Para a análise dos choros de Pixinguinha, utilizaremos como ferramenta a relação entre o acorde dado e as notas da melodia criada sobre este mesmo acorde. Esse

modo de análise nos parece mais adequado para de-monstrar se seus improvisos estão fundamentados prin-cipalmente em estruturas verticais (baseadas em notas de acorde) ou horizontais (baseadas em escalas referen-tes às sequências harmônicas).

Nota-se no Ex.3, que sem se descuidar da condução melódi-ca, Pixinguinha descreve a harmonia praticamente em todo o improviso, utilizando-se largamente das terças e sétimas dos acordes, principalmente em tempos fortes, para melhor defini-la. Neste trabalho faremos uma análise simplificada, colocando abaixo das notas que julgamos mais importantes o número referente ao seu intervalo dentro do acorde. Por exemplo: 1- tônica; 3 - terça; 5 - quinta; 7 - sétima.

Seguindo neste mesmo choro, podemos notar que o au-tor utiliza nos compassos 17, 18 e 19 o que podemos considerar uma abordagem horizontal (A.H.), mas logo a seguir mantém a preferência pelas notas do acorde em tempos fortes, desenho dos baixos descendo cromatica-mente, arpejos e alguns cromatismos (Ex.4).Para este presente artigo só analisaremos a primeira se-ção deste choro, mas Pixinguinha continua em todas as seções seguindo as mesmas preferências verticais.

Ex.2 - Exemplo de abordagem vertical (Jamey Aebersold) 5

Ex.3 - Contraponto de Pixinguinha em 1 a 0, c.1-16 (100 Anos. BMG, 1997).

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A seguir, o Ex.5 mostra uma tabela separada por seções com o número de vezes que o autor utiliza em tempo forte as fundamentais, terças e sétimas.

4- o desenho melódico de K-XimbinhoNa música “Velhos Companheiros”, choro de sua autoria, notaremos uma maior liberdade de criação e uma clara influência jazzística. CAZES (1998) acredita que K-Xim-binho realizou um casamento perfeito entre o choro e os elementos harmônicos oriundos do jazz, e afirma que “para se ter uma ideia da modernidade do autor, ele foi estudar com Koellreuter, o guru da vanguarda...”Notamos em seus improvisos um claro pensamento meló-dico (horizontal), diferente de Pixinguinha que se baseia principalmente no desenho harmônico (vertical).

Podemos notar sobreposições de arpejo, cromatismos, es-cala de blues, escala bebop (passando pela sétima maior e sétima menor), motivos melódicos característicos da lin-guagem do jazz, aproximações cromáticas e diatônicas. Há uma preferência pela condução melódica – horizontal sem se preocupar tanto em delinear as harmonias como vimos anteriormente no choro 1x0, de Pixinguinha. No caso de K-Ximbinho, observaremos principalmente esca-las e os motivos melódicos (Ex.6).

Examinamos aqui somente um exemplo de K-Ximbinho, o choro Velhos Companheiros. As análises de outros exem-plos de sua improvisação, apresentadas na dissertação de mestrado da autora confirmam as preferências horizon-tais de K-Ximbinho.

Ex.4 - Contraponto de Pixinguinha em 1 a 0, c.17-32 (100 Anos. BMG, 1997).

Seções Fundamental (1) Terça (3) Sétima (7)

A1 11 9 4

A2 8 7 4

B 17 4 1

A3 12 3 2

C1 12 3 2

C2 12 3 3

A4 8 6 2

Ex.5 - Tabela com número de ocorrências em tempos fortes, de fundamentais, terças e sétimas, utilizadas por Pixinguinha no improviso do choro 1 x 0.

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horizontal, não prioriza a plena definição do caminho harmônico, apesar de sempre se adequar a ele. Gosta-ríamos de ressaltar em algumas ocasiões a presença da abordagem vertical, porém em poucas ocasiões se comparada às características horizontais.

Nosso estudo não pretende afirmar que Pixinguinha só improvisa com base na harmonia sem se preocupar com o desenho melódico, e tampouco que K-Ximbinho não utilizava o estilo contrapontístico, mas sim que notamos que há uma predominância de cada um destes tipos de pensamento no estilo de cada autor. Sobre esta questão, Nailor “Proveta” de Azevedo, em de-poimento realizado em 25/08/2006 observa que “a im-provisação no jazz parte da mão direita do piano, em cima das harmonias; já a brasileira nasceu a partir da mão esquerda (baixos), desenhando as inversões”.Esta ideia ilustra de maneira simplificada duas tendências bá-sicas dentro da improvisação em geral e que transparece ao analisarmos tanto os improvisos de Pixinguinha, vol-tados às raízes do choro, quanto os de K-Ximbinho, com forte influência da música norte americana.

Através dessas análises, exemplificamos o conceito da horizontalidade e verticalidade na improvisação e pode-mos antecipar a existência dessas tendências em outros autores do choro.

Acreditamos que seja importante refletir sobre essas es-colhas no momento da improvisação, analisar as caracte-rísticas musicais essenciais de cada uma delas, uma vez que isto dará suporte para o estabelecimento de padrões e esquemas que, de maneira didática, lançará novas luzes nos estudos sobre a improvisação no choro brasileiro.

Como características principais, podemos observar que o autor tem uma grande preocupação em apresentar fra-ses longas com vários motivos rítmico-melódicos que são trabalhados criativamente alterando-os de diversas ma-neiras. A valorização das linhas horizontais está presen-te de maneira marcante por meio dos desenvolvimentos motívicos, com preferência às escalas ao invés de arpejos.

O Ex.7 mostra uma tabela com o número de vezes que encontramos fundamentais, terças e sétimas nos tempos fortes em toda a peça.

5 - ConclusãoNa análise de Pixinguinha, vemos que o autor utiliza-se amplamente de fundamentais, terças e sétimas nos tempos fortes, sempre com fundamentais ao final de cada seção. Pixinguinha conduz sua melodia delineando toda a harmonia, isto é, a estrutura harmônica é clara-mente percebida através do desenho melódico de seu improviso, graças ao uso de vários arpejos e tríades. Ou-tras características encontradas são os cromatismos que servem para se alcançar alguma nota do acorde, dan-do fluência à linha melódica, uma relação direta com o que chamamos de baixaria no choro. Quando existem acordes invertidos, muitas vezes eles são representados no improviso para que fiquem claros. Encontramos rara-mente uma abordagem horizontal.

Examinando os improvisos de K-Ximbinho percebe-se sua preferência pela abordagem horizontal, pois na maioria das vezes há preocupação com o aspecto melódico que se sobrepõe ao harmônico. Observamos nesses exemplos que para K-Ximbinho a sequência de acordes não é determinante em sua forma de impro-visar e enfatiza principalmente o aspecto melódico

Fundamental 12

Terça 8

Sétima 6

Ex.7: Tabela com número de ocorrências em tempos fortes, de fundamentais, terças e sétimas, utilizadas por K-Ximbinho no improviso do choro Velhos Companheiros.

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Ex.6 - Improviso de K-Ximbinho em Velhos Companheiros (Saudades de um clarinete. Eldorado,1981).

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ReferênciasBAILEY, Derek, Improvisation, its nature and practice in music, England Ashbourne: Da Capo Press, 1993.BERTON, Cesar Gabriel. Inventividade melódica: Uma outra abordagem das técnicas de análise, composição e improvisa-

ção em música popular. Campinas: Unicamp (dissertação), 2005.CABRAL, Sérgio. Pixinguinha: Vida e obra. Rio de Janeiro: Lumiar Editora,1997.NAPOLITANO, Marcos. História e Música – história cultural da música popular. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.RUSSELL, George - Lidian Cromatic Concept of Tonal Organization - Concept Publish Company, 40 Shepard Street; Cam-

bridge, MA 02138, 2001.VALENTE, Paula Veneziano. Horizontalidade e Verticalidade: dois modelos de improvisação no choro brasileiro. São Paulo:

Eca/Usp, (Dissertação), 2009.

Referências sonoras K-XIMBINHO. Saudades de um clarinete. K-Ximbinho: composição, regência eclarinete. São Paulo: Gravadora Eldorado,1981 (CD digital estéreo).PIXINGUINHA: 100 Anos. BMG, 1997.

Leitura recomendada CÂMARA, Leide. K-ximbinho. In: Dicionário da Música do Rio Grande do Norte. Natal: Acervo da Música Potiguar, 2001.FABRIS, Bernardo V. Catita de k-ximbinho e a interpretação do saxofonista Zé Bodega: aspectos híbridos entre o choro e o

jazz. UFMG/Música: (Dissertação), 2006. FRANCESCHI, Humberto Moraes. A Casa Edison e seu tempo. Rio de Janeiro: Sarapuí, 2002.MAGALHÃES, Alexandre Caldi. Contracantos de Pixinguinha: contribuições históricas e analíticas para a caracterização do

estilo. Rio de Janeiro: Universidade do Rio de Janeiro, Música Brasileira, (Dissertação), 2001.PIEDADE, Acácio Tadeu de Camargo. Jazz, Música Brasileira e fricção de musicalidades. Revista Opus. 11, 2005, p.197-207._____ Análise musical e música popular brasileira: em busca de tópicas. II Jornada de Pesquisa do Centro de Artes,

Florianópolis, 2006. Anais, Florianópolis: UDESC, 2006._____ Expressão e sentido na música brasileira: retórica e análise musical. III Simpósio de Pesquisa em Música – SIM-

PEMUS 3, Curitiba, 2006. Anais..., Curitiba: Editora do DeArtes, 2006, p.63-68.PINTO, Alexandre Gonçalves. O choro. Rio de Janeiro, Edição FUNARTE, 1978.SCHULLER, Gunther. Early Jazz: It’s roots and musical development. New York: Oxford University Press, 1986.SILVA, Marília Barboza da & OLIVEIRA FILHO, Arthur L. de. Pixinguinha – filho de Ogum Bexiguento. Rio de Janeiro,

Gryphus, 1998.

notas1 O material encontra-se nas referências do final do artigo. 2 A improvisação idiomática se preocupa principalmente com a expressão de um idioma - como o jazz, a música flamenca ou barroca - e tem sua

identidade e motivação originada desses idiomas. A improvisação não idiomática tem outra preocupação e é mais encontrada no que chamamos de livre improvisação, que não está atrelada a nenhuma identidade idiomática (tradução da autora).

3 A escala blues é uma escala de seis notas. Quando comparada com uma escala maior, a escala blues é assim construída sobre os graus da escala de sete notas: 1, b3, 4, b5, 5, b7 .

4 Exemplo citado em BERTON (2005, p.72).5 Exemplo citado em BERTON (2005, p.73).6 No contexto do choro, contraponto ou contracanto é uma melodia de acompanhamento que dialoga com a melodia principal sendo uma das prin-

cipais características desta linguagem.7 Como exemplo, citamos o grupo Choro Carioca (1910 a 1915) em que Irineu de Almeida, professor de Pixinguinha, já fazia estes contracantos ao

oficleide. 8 A análise integral deste choro encontra-se na dissertação de mestrado da autora. 9 VALENTE, Paula Veneziano. Horizontalidade e Verticalidade: dois modelos de improvisação no choro brasileiro. São Paulo: Eca/Usp, (Dissertação),

2009.

Paula Veneziano Valente é Graduada em Composição e Regência pela UNESP (Universidade Estadual Paulista), Mestre pela USP, saxofonista e flautista da Orquestra Jazz Sinfônica do Estado de São Paulo desde 1990. Na área didática atua como professora de saxofone e coordenadora de sopros populares na EMESP – Tom Jobim (antiga Universidade Livre de Música-ULM).

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ANDRÉS, A.; BORÉM, F. O grupo UAKTI: três décadas de música instrumental... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.170-184.

Recebido em: 03/02/2010 - Aprovado em: 18/03/2010

O grupo UAKTI: três décadas de música instrumental e de novos instrumentos musicais acústicos

Artur Andrés (UFMG, Belo Horizonte, MG)arturandres@ ufmg.br

Fausto Borém (UFMG, Belo Horizonte, MG)[email protected]

Resumo: Estudo panorâmico sobre a história do grupo instrumental UAKTI, cobrindo desde a formação musical de seu idealizador, luthier, compositor e multi-instrumentista Marco Antônio Guimarães até a construção e utilização dos novos instrumentos musicais acústicos que norteiam sua estética e continuada produção no Brasil e no exterior por mais de três décadas. Palavras-chave: UAKTI; organologia; instrumentos musicais acústicos; música instrumental; música popular; com-posição; performance musical.

The Brazilian UAKTI group: three decades of instrumental music and new acoustical musical instruments

Abstract: Panoramic study on the history of Brazilian instrumental group UAKTI, ranging from the musical background of its mentor, composer, luthier and multi-instrumentalist Marco Antônio Guimarães until the construction and use of the new acoustical musical instruments that lead to the aesthetics and continued production in Brazil and abroad for over three decades.Keywords: UAKTI; organology; acoustical musical instruments; popular music composition; music performance.

1 – Introdução No mundo pós-guerra, grandes avanços tecnológicos têm ocorrido em praticamente todas as áreas do conhe-cimento. O impacto da ciência se fez sentir também na comunicação e na música, especialmente com o adven-to da gravação sonora, do rádio, da televisão, dos dife-rentes meios de suporte fonográfico e da tecnologia de síntese e processamento digital do som. No que concer-ne aos instrumentos musicais, ressalta-se o surgimento dos instrumentos elétricos e eletrônicos e sua rápida evolução, que tem acompanhado o desenvolvimento acelerado da informática. Entretanto, em meio a tantas mudanças, ainda predomina a tradição de construção

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.23, 195 p., jan. - jul., 2011

de instrumentos acústicos convencionais sem os benefí-cios da tecnologia. Neste cenário, o luthier, compositor, arranjador e instrumentista Marco Antônio Guimarães, fundador e líder do grupo instrumental UAKTI, chama a atenção, na citação que abre este artigo, para uma inércia na história da luteria. De fato, observa-se que o surgimento de novos instrumentos para concerto encontra-se praticamente estacionado desde o final do século XIX. De lá para cá, as principais mudanças nessa área se restringiram à melhoria dos métodos de fabrica-ção e aperfeiçoamento dos princípios de funcionamento e produção do som.

“Os instrumentos acústicos tradicionais tiveram sua época áurea de desenvolvimento, tendo atingido um nível de perfeição muito grande. . . a época do Stradivarius. . . até hoje não foi superada. Um violão tem aquela forma há muito tempo; o violino, há séculos” (Marco Antônio GUIMARÃES, 1983).

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2 – Pequeno panorama da criação de novos instrumentos acústicosNo campo da criação de novos instrumentos, o que se vê comumente ao longo da história da música são exemplos de aparecimento pontual de novos instrumentos que, por razões diversas, integraram-se ao cotidiano do fazer musi-cal ou, então, permanecem como mera curiosidade ou pe-ças de museu. A partir da classificação convencional dos instrumentos de orquestra em três grandes classes – cor-das, sopros e percussão, pode-se notar alguns marcos his-tóricos. No âmbito das cordas, o fim da Renascença marca o início da substituição da família da viola da gamba e da braccio pela família do violino no contexto orquestral. Ins-trumentos como o baryton, de seis cordas e registro grave, têm seus poucos exemplares históricos restantes datados entre 1674 e 1799 e, hoje, só é lembrado pelo público de concertos graças a 175 obras compostas por Haydn, dedi-cadas ao seu patrono Nikolas Joseph Esterházy, um aficio-nado desse instrumento. O arpegione, instrumento grave de seis cordas friccionadas como o violoncelo, e afinadas como o violão, foi inventado por J. G. Staufer no início do século XIX e teve um curto período de sobrevivência. Hoje, sua lembrança deve-se à composição de uma única obra, a Sonata Arpeggione de Franz Schubert, especial-mente escrita para o virtuoso Vincenz Schuster. No âmbito dos instrumentos de sopro, destaca-se o aparecimento e a consolidação do fagote, também na Renascença, da clari-neta em meados do século XVIII e da flauta de metal e do saxofone na primeira metade do século XIX. A tuba wag-neriana sobreviveu basicamente devido à finalidade ima-ginada pelo seu idealizador, o compositor Richard Wagner, que a utilizou no Anel dos Nibelungos

“. . . com a intenção de preencher a lacuna entre as trompas e os trombones. . . Seu som sombrio e majestoso atraiu muitos com-positores posteriores, em especial Bruckner, Strauss e Stravinsky, que utilizou-a em ‘O pássaro de fogo’ e ‘A sagração da primavera’” (SADIE, 1994, p.968).

Entre os instrumentos de percussão, a primeira utilização do glockenspiel ocorreu na obra Saul (1739) de Haendel, onde ainda era chamado carillon e tinha teclado. Sua técnica de performance com baquetas só veio a ser de-senvolvida a partir de meados do século XIX. O desenvol-vimento da mecânica moderna dos tímpanos em 1820 os tornou instrumentos bem mais sofisticados musicalmen-te, com possibilidades de execução de efeitos precisos e sofisticados como glissandi e passagens cromáticas rápi-das. Entre os instrumentos musicais acústicos, o vibrafo-ne constitui uma rara exceção, pelo fato de sua criação ter ocorrido, nos Estados Unidos, já no início do século XX. Em contraposição ao sistema classificatório convencional e partindo da premissa de que “a classificação tradicional da orquestra moderna não alcança categoria científica” (SACHS, 1947, p.9), Erich von Hornbostel1 (1877-1935) e Curt Sachs2 (1881-1959) criaram, em 1914, um novo sistema para a classificação dos instrumentos musicais, mais completo e de abrangência internacional. Em oposi-ção à divisão tripartida (percussão, cordas e sopros), esse novo sistema propôs a utilização da característica física

de produção do som como princípio básico para a divisão classificatória, onde se destacaram. a princípio, quatro categorias de instrumentos musicais: os idiofones, que são instrumentos cujo próprio corpo em vibração gera o som; os membranofones, onde o som é produzido pela vibração de uma membrana; os cordofones, onde o som é produzido pela vibração de cordas e os aerofones, onde o som é produzido pela vibração do ar. Posteriormente, foi incluída uma quinta classe de instrumentos, a dos ele-trofones, instrumentos que produzem vibrações que pas-sam por um alto-falante e se transformam em sons. Os eletrofones por sua vez se dividem em duas sub-classes: os instrumentos eletromecânicos, baseados nas vibrações produzidas por meios mecânicos usuais e transformadas em vibrações elétricas e os instrumentos radioelétricos, baseados em circuitos elétricos oscilantes. Em seu livro Historia Universal de los instrumentos musicales, SACHS (1947, p.9) justifica a criação desse novo sistema de clas-sificação fundamentando-se na existência de um mesmo princípio básico para cada categoria, o que não ocorre na divisão habitual dos instrumentos de orquestra em cordas, sopros e percussão: “Esta [antiga] classificação repousa sobre três princípios diferentes: o material sono-ro sobre aquilo que se está atuando, nas cordas; a força atuante, nos sopros e a própria ação, na percussão”. Além disso, considerou essa antiga forma de classificação ilógi-ca por não incluir os instrumentos modernos, assim como “o infinito mundo dos instrumentos históricos, populares e exóticos” (SACHS, 1947, p.9). O sistema de classificação Hornbostel-Sachs ainda predomina e, em suas linhas ge-rais, tem sido universalmente aceita pelos musicólogos. Na seção 6 deste artigo, é apresentada uma classifica-ção dos instrumentos o UAKTI dentro destas categorias. Dentro desses, o Aqualung, parece exigir uma categoria especial dentro da organologia, pois, basicamente trata-se de uma superfície de água tocada por uma coluna de água que cai. Entretanto, por praticidade, consideramos a superfície da água como uma membrana e, sendo assim, o classificamos como um membranofone.

Apesar da grande influência da eletrônica e da computação no período pós-guerra, um pequeno número de constru-tores dedicou-se à tarefa de criação de novos instrumen-tos acústicos que, incorporando novos materiais e novas formas de emissão sonora, sem depender de recursos ele-trônicos, resultaram na obtenção de sonoridades e timbres singulares. Este vanguardismo construtivo, entretanto, não atraiu a atenção da maioria dos compositores, impedin-do o desenvolvimento de um repertório específico para os mesmos, o que, de certa forma, explica a tendência de acumulação das funções de construtor e compositor de novos instrumentos pela mesma pessoa. No século XX, antecedendo a experiência de Marco Antônio Guimarães com o UAKTI, ressaltam-se o trabalho de dois construtores de novos instrumentos acústicos que conseguiram integrar suas novas fontes sonoras ao processo compositivo: Har-ry Partch, nos EUA e Walter Smetak, no Brasil. O norte-americano Harry Partch (1901-1974) começou a tocar órgão de palheta, bandolim, violino e harmônica aos seis

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anos de idade. Aos quatorze anos começa a se dedicar à composição. Escreveu um quarteto de cordas no sistema de afinação justa, além de um poema sinfônico, um concerto para piano e cerca de 50 canções. Sua insatisfação com a música tradicional o estimulou a procurar outras formas de expressão sonora que culminaram numa ruptura radical com as convenções da música erudita europeia. Em 1930, de forma drástica, queimou propositalmente todos os seus manuscritos musicais compostos até aquela data e propôs uma abordagem musical radicalmente diferente, baseada no conceito de corporalidade. A música não estaria mais dissociada dos impulsos humanos fundamentais do canto e da dança, elementos que seriam geradores dos impulsos musicais básicos no corpo do ser humano. Ainda segundo Partch, a associação desses três elementos - música, can-to e a dança, além de promover uma relação direta com o momento presente, o “aqui e agora”, está diretamente relacionada à existência e às diversas manifestações do universo tangível. Num sentido mais amplo, esse conceito de corporalidade levou Partch ao abandono do sistema de afinação ocidental tradicional da escala temperada, base-ada na divisão da oitava em doze partes iguais, em favor de um sistema de afinação próprio, baseado na afinação justa. De uma maneira simplificada, enquanto que a afi-nação temperada aplica um artifício matemático conve-niente para determinar a afinação de cada um dos doze sons da escala cromática, a afinação justa segue uma abordagem aritmética mais próxima daquilo que seria a maneira natural do ouvido humano interpretar os interva-los da escala musical. Sua pesquisa sobre a afinação justa o levou a construir instrumentos especiais para acomodar 43 notas por oitava. Partch não se considerava um cons-trutor de instrumentos, mas sim “um filósofo seduzido pela carpintaria” (HOPKIN, 1996, p.51). Seus instrumentos tam-bém expressam esse senso de corporalidade, pois além de buscarem grande beleza plástica, suas formas refletem a natureza dos materiais com os quais foram construídos. Nos trabalhos musicais escritos por Partch, seus novos ins-trumentos constituíam elementos essenciais para a elabo-ração dos cenários, onde interagiam cantores, dançarinos e instrumentistas. Pode-se notar, em sua música, diversas influências, entre eles, música dos Índios Yaquis (Sonora, México), cantos fúnebres hebreus, hinos cristãos e música chinesa. Já Walter Smetak (1913-1984), compositor suíço naturalizado brasileiro e professor da Escola de Música da Universidade Federal da Bahia, criou, entre 1958 e 1984, mais de cento e quarenta instrumentos musicais originais, utilizando materiais alternativos como bambu, cabaça, ca-nos de PVC, tubos plásticos, placas de metal, madeira etc. Sua estética musical foi de fundamental na formação e no trabalho de Marco Antônio Guimarães com o UAKTI, como será discutido, mais à frente, nesse artigo.

Na realidade, os trabalhos de Partch e Smetak são exce-ções dentro de um quadro onde há poucos estudos siste-máticos sobre a criação de novos instrumentos musicais. Na Inglaterra, um projeto pioneiro denominado Alterna-tive Tuning Projects dirigido por Ozzard-Low e conduzi-do em parceria com a London Guildhall University, visa a

criação de um Centro de Novos Instrumentos Musicais. Tal empreendimento tem o objetivo de contemplar, priorita-riamente, o surgimento de novos instrumentos orques-trais no século XXI, reunindo, para isto, estudiosos de di-ferentes áreas. A partir da década de 1980, a construção de novos instrumentos musicais passou a congregar, cada vez mais, construtores, compositores e grupos de músi-cos. Desde 1986, o festival Sound Symposium, realizado bienalmente na cidade de Saint John’s, Newfoundland, Canadá, dedica-se à temática da construção de novos instrumentos musicais e instalações sonoras. Este sim-pósio reúne construtores e instrumentistas de diversos países, promovendo o intercâmbio de ideias, experiências construtivas e de performance.

3 – A formação musical de Marco Antônio Guimarães

“. . . somente numa família de certa tradição artesanal aconteceria o despertar para a arte de fazer instrumentos musicais. Desde pe-queno, Marco Antônio viveu entre madeiras, couros e ferramentas na oficina de seu avô materno, aprendendo com ele a manejar uma plaina, um serrote, uma lixadeira. Com seus irmãos, inclusive e auxiliado por sua mãe, construía brinquedos até para os vizinhos” (CICCACIO, 1978).

A história do grupo UAKTI confunde-se com a trajetória musical de Marco Antônio Guimarães, nascido em Belo Horizonte, em 10 de outubro de 1948. Sua mãe, Heloísa Fonseca Guimarães (Formiga, MG, 1918-1978), possuía grande aptidão para atividades manuais. Na família, era ela a responsável por grande parte de reparos caseiros como consertos em móveis, pinturas e serviços de bombeiro e eletricista. Assim como sua mãe, Marco Antônio também desenvolveu habilidades manuais e um espírito criativo com seu avô materno, Camilo de Assis Fonseca. Em uma entrevista à revista Manchete, Marco Antônio revelou:

“Quando era criança, construía os próprios brinquedos. Meu avô tinha uma oficina e eu o admirava ali trabalhando. Por influência dele, todos os seus filhos tinham oficina na garagem. Hoje não se encontra mais marceneiro, carpinteiro...” (GUIMARÃES, Minas não trabalha em silêncio, 1989).

Nos fundos da casa do avô, no bairro Santo Antônio, em Belo Horizonte, filhos e netos aprenderam o manuseio de equipamentos e ferramentas e produziam trabalhos em madeira e metal, inventos e reparos em diferentes tipos de equipamentos elétricos e mecânicos. Esta marcante influência familiar proporcionou ao jovem Marco Antô-nio um estreito contato com o mundo das ferramentas e materiais construtivos que, anos mais tarde, possibilitou a concretização de sua carreira profissional como instru-mentista, compositor e criador de novos instrumentos musicais. Em1966, Marco Antônio mudou-se para Sal-vador com o intuito de estudar regência nos Seminários de Música da UFBA. O principal fator que motivou sua transferência para a Bahia foi o fato de que ali se desen-volvia, há vários anos, uma intensa e inovadora experiên-cia artística e cultural. Desde o início dos anos de 1950, a cidade de Salvador esteve sob um forte influxo de infor-mações internacionais, em grande parte provenientes das

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vanguardas estético-intelectuais europeias do período anterior à II Guerra Mundial, especialmente nas áreas de música, artes plásticas, teatro, dança, arquitetura e cine-ma. Importantes artistas de renome internacional, como H. J. Koellreutter, Lina Bo Bardi, Yanka Rudzka, Ernst Wi-dmer, Carybé, Mário Cravo, Nelson Rossi, Milton Santos, Walter da Silveira, Pierre Verner e Anton Walter Smetak, trouxeram para a cultura local, influências da vanguarda europeia, promovendo o estímulo ao experimentalismo e à inovação. Durante o período de quatro anos em que esteve na Bahia, Marco Antônio manteve contato com importantes músicos, mas foram os compositores Wal-ter Smetak (1913-1984) e Ernst Widmer (1927-1990), ambos de origem suíça e radicados em Salvador desde meados da década de 1950, que contribuíram de forma marcante para o direcionamento de sua futura carreira musical. Marco Antônio Guimarães é violoncelista, com-positor, arranjador e responsável pela criação do UAKTI, sua direção musical e construção dos seus instrumentos não-convencionais desde 1978. Participou como arran-jador e instrumentista em discos de Milton Nascimento, Paul Simon, The Manhattan Transfer, Ney Matogrosso, Zélia Duncan, Maria Bethânia e Robertinho Silva dentre outros. Foi convidado pelo departamento de acústica do museu Exploratorium, São Francisco, EUA, como Artist in Residence durante o mês de julho de 1990, para idealizar e construir instrumentos, que lá permanecem em exposi-ção permanente. Realizou concertos com o grupo UAKTI por diversos países da Europa, entre eles Espanha, Fran-ça, Alemanha, Bélgica, Inglaterra, além de EUA, Canadá e Japão. É autor de cinco trilhas para balé, encomendadas pelo Grupo Corpo, de Belo Horizonte: A Lenda (1989), 21 (1991), I Ching (1994), Bach (1996) e A Música do Acaso (1997), ainda inédito. Compôs também três trilhas sono-ras para cinema: Kenoma (direção de Eliane Caffé, 1997), Primeiras Estórias (direção de Pedro Bial, 1998) e Lavoura Arcaica (direção de Luis Fernado Carvalho, 1999). Entre os diversos prêmios que recebeu, destacam-se: Prêmio Sharp de Música (Melhor arranjador, 1990), Prêmio Sharp de Música (Melhor grupo de música instrumental, 1990), Prêmio Sucesso Mineiro (Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, 1995), Prêmio Ministério da Cultura (Melhor grupo de música instrumental, 1996), Prêmio Santista (Melhor grupo de Música Popular Brasileira, 1997) e o Prêmio Multicultural Estadão (1999).

3.1 - Walter Smetak e Marco Antônio GuimarãesMarco Antônio, ao descrever seus primeiros contatos com Smetak, diz que o mestre aceitou suas visitas diárias ao velho prédio da Universidade da Bahia, que lhe servia de oficina:

“Em Salvador eu descobri que, no porão da Escola de Música, ti-nha um cara construindo instrumentos e fui lá saber o que era. Fiquei atordoado: era o violoncelista Walter Smetak, cercado por centenas de instrumentos esquisitos, extremamente coloridos. A minha vida mudou quando entrei naquele porão” (GUIMARÃES, Villa-Lobos na batida. . ., 1997, p.6).

O contato com Smetak e seus novos instrumentos mudou as perspectivas profissionais de Marco Antônio de forma

decisiva, pois, a princípio, ele aspirava tornar-se regente e fagotista. Posteriormente, ele revelou outros aspectos do trabalho do mestre suíço:

“Na Bahia havia um trabalho muito intenso de música contempo-rânea. Além de Ernst Widmer, outra influência grande que tive lá, foi o trabalho com Smetak, acompanhei o trabalho dele nos quatro anos que fiquei na Bahia, acompanhei a construção dos instru-mentos, toquei no concerto de apresentação dos instrumentos, peças inclusive escritas pelo grupo de compositores para os instru-mentos dele. . . Em sua oficina no porão da escola, ele tinha uma centena de instrumentos, um trabalho fantástico! Nessa época ele desenvolveu uma série de instrumentos que eu pude acompanhar, muito interessantes, eram os instrumentos coletivos. Ele estava desenvolvendo instrumentos que funcionavam com vários execu-tantes, inclusive instrumentos que não funcionavam se fosse uma só pessoa para tocar. Como exemplo, posso citar A Grande Virgem, uma flauta gigante para vinte e duas pessoas: um bambu inteiro, gigantesco, vinte e dois gomos, e um furo em cada gomo. Inclusive ele colocava onze mulheres de um lado e onze homens do outro, tinha que haver todo este ritual” (GUIMARÃES, 1981, p.1).

Nota-se que sua influência sobre Marco Antônio foi muito além da criatividade e habilidades construtivas. Significou a vivência da música dentro de uma perspectiva integra-dora de questões mais amplas da vida. Seu mestre era um homem essencialmente místico, extraindo, muitas vezes, de diversas religiões orientais e escolas esotéricas, a ins-piração para seu trabalho de criação. Membro integrante da Sociedade Brasileira de Eubiose3 durante as últimas três décadas de sua vida, Smetak buscou transmitir, por meio de seus novos instrumentos musicais, discos, composições, textos e peças teatrais, um profundo conhecimento cos-mológico. Sua obra está repleta de símbolos, frutos de uma vida dedicada à busca do auto-conhecimento e de uma compreensão das leis gerais que regem o universo. Segun-do Smetak, os instrumentos musicais teriam um papel im-portante no processo de evolução do ser humano. No seu ainda inédito livro Simbologia dos Instrumentos (SMETAK, 1980) ele faz um jogo de palavras para propor “. . . devol-ver ao instrumento a sua real dignidade e a sua verdadeira missão, que é de instruir mentes”. Quiz discutir, a partir deste prisma, os motivos pelos quais ele dedicou grande parte de sua vida à construção de novos instrumentos mu-sicais. Durante uma turnê do UAKTI à Espanha, Marco An-tônio uma vez mais reconheceu a estreita relação existente entre seu trabalho e o de Smetak:

“No Brasil muitas vezes consideram-me como aquele que deu con-tinuidade ao trabalho de Smetak, apesar de que atuamos, hoje, em linha musicais bem distintas. Porém, é certo que, não fosse ele, eu não teria feito nada disto” (GUIMARÃES, 1986).

Bem mais tarde, ele também falou de alguns traços mar-cantes da personalidade de Smetak que o influenciaram: “Smetak me deu papo, sentiu que meu interesse era verda-deiro. Ele era místico, trabalhava com extrema liberdade, fazia tudo que lhe desse na cabeça, e isso me fascinava cada vez mais” (GUIMARÃES, Villa-Lobos na batida. . ., 1997, p.6). Movido pela ideia de que uma nova humani-dade requer uma nova música, que requer a construção de novos instrumentos musicais, Walter Smetak construiu, durante seus últimos 26 anos de vida, 150 instrumen-tos musicais, utilizando materiais diversos, como cabaça,

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bambu, madeira, tubos de PVC, mangueiras plásticas etc. Em 2006, com o patrocínio do Projeto Natura Musical, a exposição Smetak Imprevisto (SMETAK, 2010) apresentou a vida e a obra do eclético Walter Smetak:

“... que tornou possível o restauro das mais de 100 plásticas so-noras do artista. Uma cuidadosa catalogação e a digitalização do impressionante acervo deixado por Smetak tornaram permanente o acesso à totalidade da obra neste site inédito. São poesias, peças de teatro, registros sonoros, fotografias, partituras, ensaios e teo-rias...SMETAK IMPREVISTO possibilitou, ainda, a construção de um projeto educativo exclusivo que permitirá a educadores e alunos a exploração dos potenciais da obra do professor Smetak − o con-texto histórico, o sabor de construir novos instrumentos, as cores, as formas, os timbres, as reverberações, sons e silêncios do mundo de fora e do mundo de dentro.”

3.2 - Ernst Widmer Marco e Antônio GuimarãesNas raízes do processo de sua formação musical como compositor, Marco Antônio reconhece em Ernst Widmer sua maior influência:

“Na Bahia, estudei composição na escola onde Smetak ensinava, mas Widmer era o mestre de todos os compositores. Sua liberdade de compor me influenciou muito, tinha coragem de passear pelo atonalismo e pelo tonalismo” (GUIMARÃES, 1994, p.1).

É comum, na obra de Widmer, encontrarmos elementos temáticos típicos do folclore nordestino e da música popular brasileira, mesclados a procedimentos compo-sicionais característicos da música erudita contempo-rânea, tais como atonalismo, clusters cromáticos e a exploração de novos timbres e texturas sonoras que implicam, muitas vezes, no desenvolvimento de novas formas de notação musical. As experiências de Mar-co Antônio com a música popular não se limitaram ao período anterior a 1966, quando se transferiu para Salvador. Uma das características que sempre norteou seu trabalho musical foi a busca de conexões entre as estéticas musicais erudita e popular, visando promo-ver uma síntese dos elementos oriundos desses dois universos sonoros, tradicionalmente separados. É ele mesmo quem declara:

“O tempo em que estive na Bahia trabalhei com música erudita, mas não deixei de trabalhar com música popular; sempre quis fa-zer a fusão. Por exemplo, uma coisa que fiz muito lá foram arran-jos para coral de música popular. Fizemos vários concertos com corais da Bahia; às vezes pegávamos o instrumental mais usado em música popular junto com o coral, às vezes só o coro à capela. E o trabalho que eu faço atualmente tem um pouco dessa fusão, essa pesquisa que acontece na música contemporânea, aplicada também à música popular” (GUIMARÃES, 1981, p.1).

Outra característica estilística importante da obra de Widmer, amplamente encontrada no trabalho musical de Marco Antônio, é a autonomia do ritmo, evidenciada principalmente na percussão. A percussão, que apareceu como elemento primário de manifestações musicais em culturas de todos os continentes “. . . ruidosa, brilhante e [de] intensa ritualização da trama simbólica” (WISNIK, 1999, p.35), perdeu espaço no desenvolvimento da mú-sica erudita europeia de concerto, uma vez que o rit-

mo perdeu a “. . . centralidade que tinha antes, servindo agora de suporte para melodias harmonizadas” (WISNIK, 1999, p.42). Somente no início do século XX, quando uma gama diferente de materiais sonoros não conven-cionais começa a ser descoberta musicalmente, é que o ritmo, e com ele os instrumentos de percussão, voltam a recuperar sua autonomia. No balé Parade, Erik Satie emprega tiro de revólver, sirene e uma máquina de es-crever como instrumentos de percussão. Luigi Russolo, a partir de ruídos, utiliza os intonarumori na produção de sua música. O interesse rítmico ocupa espaços antes destinados à melodia e harmonia, como na Sagração da Primavera de Igor Stravinsky. Arthur Honneger, com instrumentos convencionais, emula os sons de uma lo-comotiva na peça Pacific 1921. O compositor Aderbal Duarte, aluno da classe de composição de Widmer no final da década de 1970, constata a ênfase do professor na autonomia do ritmo:

“Widmer dava muito valor à existência do ritmo no contexto com-posicional, não meramente como acompanhamento, mas como uma coisa estrutural. . . em certos momentos você tem que parar tudo e só deixar o ritmo sobressair” (LIMA, 1999, p.166).

Por outro lado, Paulo Costa Lima, também discípulo de Widmer e autor do livro Ernst Widmer e o ensino de composição musical na Bahia, comenta o incentivo de Widmer aos alunos da classe de composição na experi-mentação das possibilidades dos instrumentos de per-cussão como “. . . um caminho inovador e autêntico na direção da diversidade timbrística, relativização do pa-râmetro altura, do desafio de uma nova notação e um movimento de aproximação da realidade concreta do som” LIMA (1999, p.71). As influências de Widmer e da escola de composição da Bahia como um todo, na obra de Marco Antônio tornaram-se mais evidentes no lan-çamento do primeiro disco do grupo em 1981, chamado apenas de UAKTI:

“Considerando-se que este trabalho é uma amostragem da pro-dução musical de Marco Antônio, pode-se dizer que ele faz sua música dentro dos parâmetros de uma modernidade instigante. A chamada Escola da Bahia, uma das melhores do país no campo da música contemporânea, revela para nós todos um compositor de talento, que dosa, com requinte de um estudioso inspirado, uma linha melódica breve, envolvida por procedimentos nitidamente aleatórios e de música concreta. Ele consegue, em suas partituras, extrapolar o popular, sem deixar de ser popular” (CARVALHO, 1981).

José Lutzemberger, agrônomo, ambientalista gaúcho e recebedor do Prêmio Nobel Alternativo de Ecologia, parte do conceito de Gaia4 para fazer um paralelo entre a arte e a ecologia:

“O naturalista procura a integração, a harmonia, a preservação, o esmero, a contemplação estética. Ele está no mesmo nível do artista, do compositor, maestro, escultor, pintor, escritor, mas ele trabalha dentro da disciplina científica, em diálogo limpo com a natureza” (LUTZEMBERGER, 1990).

Ele defende a ideia de que na natureza não existe subs-tância química ruim, mas sim, substância química no lugar errado. Parafraseando o ecologista, Marco Antônio Guimarães, disse estar convencido de que “. . . não existe

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Desses, o Chori Smetano, o Iarragunga e o Peixe, todos cordofones, foram os que se consolidaram e ainda per-manecem nos repertórios do UAKTI em sua concepção original. Em 1973, Marco Antônio transferiu-se para São Paulo onde, durante três anos, ocupou o cargo de violon-celista na Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, sob a regência do maestro Eleazar de Carvalho. Nesse pe-ríodo, intensificou seu trabalho como construtor, ainda dedicado principalmente aos instrumentos de cordas:

“Nesse período todo que trabalhei em [orquestras] sinfônicas, continuei construindo instrumentos, mas sem uma aplicação. Era um trabalho pelo qual me interessei, me liguei quase como uma necessidade. Cada instrumento sugeria um novo e chegou uma época em que eu tinha uma quantidade enorme de instrumentos, mas que não estava utilizando” (GUIMARÃES, 1981).

Esse período corresponde à primeira fase de seu trabalho como construtor de novos instrumentos, em que, movido por uma curiosidade de ver até que limites poderia ex-perimentar, não se preocupava, ainda, com a aplicação musical de suas descobertas. Paralelamente a isto, com-pôs várias obras para grupos orquestrais, côro e música de câmara. Datam desse período o Quinteto de cordas e piano e os Salmos 150 para orquestra e coro. Uma de suas obras mais conhecidas e executadas, a Oferenda musical, foi escrita especialmente para a Orquestra de Cordas da Fundação de Educação Artística, em1976, quando mu-dou-se novamente para Belo Horizonte. Na sua casa no bairro São Lucas, Marco Antônio montou uma pequena oficina, dando continuidade ao seu trabalho de constru-ção de instrumentos. Algumas vezes, os instrumentos eram utilizados por grupo experimentais de música eru-dita e teatro, mas a necessidade de um grupo próprio, que produzisse e interpretasse música especialmente para os sons inéditos que surgiam, era cada vez mais premente. Em 1977, com a criação da Orquestra Sinfônica do Esta-do de Minas Gerais (OSMG), passou a conviver de perto com um grande número de instrumentistas de alto nível e pôde aproximar-se daqueles cujos interesses musicais iam além do repertório sinfônico. Em 1978, Marco An-tônio Guimarães formou o grupo UAKTI, juntamente com Paulo Sérgio dos Santos, Décio de Souza Ramos Filho e Artur Andrés. Paulo Santos (1954, Belo Horizonte, MG) cursou História na Universidade de Brasília, onde iniciou também seus estudos musicais, com o compositor Emílio Terraza. Posteriormente, em Belo Horizonte, estudou cla-rineta com o professor Salvador Villa, composição com Rufo Herrera e percussão com Décio Ramos. Participou da Orquestra Sinfônica de Minas Gerais entre 1979 e 1986 e integra o grupo UAKTI desde a sua formação. Participou da gravação dos nove discos lançados pelo grupo UAKTI, assim como em discos de outros artistas, com quem o grupo trabalhou, além de trilhas para balés e filmes. Pa-ralelamente ao seu trabalho com o UAKTI, desenvolve trilhas sonoras para performances, instalações e vídeos, alguns em parceria com o video-maker Éder Santos, como os premiados Rito e Expressão, Não vou à África, Essa Coi-sa Nervosa e Memórias de Ferro. Décio Ramos (1957, São Paulo, SP) iniciou seus estudos musicais na bateria com João Rodrigues Ariza, percussão com Osmar da Cunha e

música ruim: existe música no lugar errado” (GUIMARÃES, UAKTI promove. . ., 1997), refletindo uma postura estética aberta, que privilegia uma criação musical desarmada de preconceitos e tradicionalismos, herdada de Widmer. Ele segue em frente para comentar sobre a importância da música para ouvir e da música para dançar:

“É, quando eu ouvi isso, liguei imediatamente com a questão da música. Sempre ouvi músicos, conceituados, famosos e que eu até admiro, falando a seguinte frase: ‘Eu gosto de qualquer música, sen-do boa, eu gosto.’ Eu sempre achei essa frase muito pouco inteligen-te, pois isso é algo absolutamente subjetivo, achar o que é bom e o que não é. Levando isso em conta, comecei a observar a questão da música e cheguei a esta conclusão, na qual até hoje acredito: o que existe é música no lugar certo ou errado. Se você tem um tipo de música, que coloca 100 mil pessoas dançando em uma praça, essa música é ótima para isso, a função dela, ali, é colocar 100 mil pessoas dançando, durante horas. Daniela Mercury, consegue fazer isso, não é qualquer um que consegue fazer isso bem. Os compo-sitores que fazem as músicas que ela canta, fazem isso bem, e os músicos de sua banda também. É um tipo de ritmo e de percussão que controla uma multidão de 100 mil pessoas! Então, existe a mú-sica para dançar. A dance music é usada no Planeta inteiro. Você vai encontrá-la na Indonésia, no Japão, no Alaska. Onde você for, existe algum clube de dança tocando aquele tipo de música. E é uma música muito simples, que tem uma batida binária, porque o ser humano tem dois pés e aquela é uma música feita para dançar. Portanto, se você a fizer com um compasso de cinco, sua música já não vai funcionar ali. Por outro lado, se você imaginar alguém sentado num sofá, em casa, à noite e querendo ouvir uma música antes de dormir, claro que se escolher esse tipo de música, vai estar errado. Esta música foi feita para dançar e ele vai achar que ela é ruim. Por outro lado, se você colocar um quarteto de Haydn, para 100 mil pessoas. . . Um quarteto de Haydn foi feito para se ouvir calmamente e a dance-music foi feita para dançar. E mesmo essas músicas, consideradas de baixo nível… Cada época tem as suas, não é? Quando eu era adolescente tinha a Jovem Guarda, o Iê-iê-iê. . . não tem diferença nenhuma a música do Jerry Adriani, do Wan-derley Cardoso, para aquela que se faz hoje. É do mesmo tipo: uma música muito simples, que também é a música que toca no rádio, que vai para a televisão, vende discos e junta milhares de pessoas. É, realmente eu acredito nisso mesmo” (GUIMARÃES, 1999).

Esta afirmação de Marco Antônio nos remete à questão da funcionalidade da arte numa determinada cultura, dos valores que pode ter, do papéis que cumpre, de

“. . .ser eficaz, de uma determinada forma, dentro de um dado con-texto. . . para os índios que vivem no Xingú. . . nem a Heróica de Beethoven, nem a obra de Chopin, Stravinski, Schoenberg. . . representam para eles valores. Cantos monodimensionais simples, ou formas de comunicação sonora, são para eles valores; para nós, muitas vezes, simples fatos antropológicos ou sociológicos” (KO-ELLREUTTER, 1999).

4 - o retorno a Belo Horizonte e a criação do grupo UAKTIDepois de quatro anos de estudos nos Seminários de Mú-sica da UFBA, Marco Antônio retornou a Belo Horizonte, em 1971, para ocupar o cargo de violoncelista na Orques-tra Sinfônica da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) por dois anos. A criação de seus primeiros instru-mentos não-convencionais data desta época.

“Em 1971, já de volta a Belo Horizonte, Marco Antônio começou a fazer instrumentos experimentais, muitos dos quais permanecem em sua concepção original, enquanto outros foram sendo modi-ficados com o passar do tempo e outros até abandonados num canto, aguardando novas experiências” (BRANT, 1981).

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tímpanos com John Boudler e Carlos Tarcha. Bacharelou-se em Percussão pela Faculdade Mozarteum, São Paulo, em 1985. Atuou como primeiro percussionista da OSMG, e como professor de percussão da Schola Cantorum da Fundação Clóvis Salgado, entre 1978 e 1987. É integran-te do UAKTI desde a formação do grupo. Artur Andrés Ribeiro (1959, Belo Horizonte, MG), um dos co-autores do presente artigo, iniciou seus estudos musicais na Fun-dação de Educação Artística em 1974, com o flautista Expedito Viana. Estudou flauta também com os profes-sores Odette Ernst Dias, Bettine Clemen, Renato Axelrud, e Antônio Carlos Carrasqueira. Estudou composição com Eduardo Bértola e Sergio Magnani. Obteve o Bacharelado em flauta pela Escola de Música da UFMG (1981), onde se tornou professor dois anos mais tarde. Atuou como flautista na Orquestra Sinfônica do Estado de Minas Ge-rais (1980 a 1986), onde, por várias vezes, apresentou-se como solista. Com a pianista Regina Stela Amaral forma um duo de flauta e piano desde 1978, realiza recitais no Brasil e no exterior e gravações (Encontro Barroco I, 1983; Encontro Barroco II, 1984; Duo, 1999). Como composi-tor, escreveu Alnitak e Turning point (CD I Ching, 1994) e O Segredo das dezessete nozes, Música para um Templo Grego Antigo e Trilogia para Krishna (CD Trilobyte, 1997). O grupo UAKTI contou também com a participação do violoncelista Cláudio Luz do Val, de 1978 a 1980, e do violonista Bento Menezes, de 1981 a 1984.

O nome UAKTI -Oficina Instrumental deriva de uma lenda indígena dos índios Tukano do Alto Rio Negro descrita pela compositora e etnomusicóloga Helza Camêu, pionei-ra no estudo da música indígena brasileira:

“Os estudos de E. Biocca sobre os índios Tukano, do rio Tiquiê, (afluente do Alto Rio Negro) revelam mais um aspecto da criação dos instrumentos. Uma lenda, referente ao herói Uakti, desses ín-dios, diz que ele violava e pervertia as mulheres, por isso foi captu-rado. Era um monstro de formas humanas, horrendo e tendo o corpo aberto em buracos. O vento, ao atravessar-lhe o corpo, produzia sons soturnos e lúgubres. Uakti foi morto e sepultado. No lugar em que o enterraram nasceram três palmeiras altas, que passaram a guardar o grande espírito de Uakti. Desde então, os instrumentos de Uakti são feitos do caule dessa palmeira. O timbre dos instrumentos corresponde aos sons tirados pelo vento ao passar pelo corpo esbu-racado de Uakti. E em razão do comportamento de Uakti em vida, as mulheres que ainda vissem ou ouvissem o som do instrumento ficariam imundas. Por isso, se uma coisa dessas acontece, a mulher teria ou terá fatalmente que ser sacrificada” (CAMÊU, 1977, p.263).

Em 28 de junho de 1980, o UAKTI realizou sua primeira apresentação pública, em um concerto apresentado no teatro do Museu de Arte da Pampulha, dentro do Projeto Musicanto, promovido pela Fundação de Educação Artís-tica, sob o patrocínio da Secretaria Municipal de Turismo e Esportes da Prefeitura de Belo Horizonte.

5 – UAKTI: três décadas de músicaNo trabalho do UAKTI, iniciado em 1978 e desenvolvido em mais de 30 anos de atividade musical ininterruptas, ocorreram importantes parcerias, que marcaram dis-tintas etapas da trajetória do grupo. Em 1980, o grupo foi convidado pelo compositor Milton Nascimento para participar de uma faixa do seu disco Sentinela (Ariola,

1980). A música escolhida foi Peixinhos do mar, tema do folclore mineiro, com arranjo de Marco Antônio. Segundo MILLARCH (1981):

“ ... o registro de Peixinhos do Mar estusiamou tanto o Bituca [ape-lido de Milton Nascimento], que este os convidou para mais duas faixas; ´Sueño com serpientes´ e ´Uma cafuné na cabeça, malan-dro, eu quero até de macaco´”.

O sucesso do trabalho com Milton Nascimento propor-cionou ao grupo a chance de participar, em 1981, da tur-nê de lançamento do disco Sentinela por várias cidades brasileiras além de duas apresentações em Buenos Aires. Nesse período, numa entrevista ao jornal argentino ASI en Cronica, Milton Nascimento comentou sobre as ori-gens comuns, assim como a íntima relação musical exis-tente entre ambos:

“O UAKTI e eu viemos de um mesmo lugar e essa questão da terra é para mim como um ritmo, uma melodia. Creio que é exatamente isso que nos une, por ela estamos juntos. . . Os músicos do UAKTI, no seu estilo, e minha música se complementam no sentido de que queremos expressar a mesma qualidade, vinda de uma mesma origem. Dos quase 40 instrumentos que eles já fabricaram, trou-xemos apenas 10. O emprego de madeiras, bambus, pedras e água para produzir sons musicais é um dos fatores que une meu estilo ao deles” (NASCIMENTO, 1981).

Trabalhando com Milton Nascimento, o UAKTI teve aces-so ao circuito fonográfico, tendo participado em cinco discos do compositor,5 acompanhando-o em turnês na-cionais e internacionais6 e assinado um contrato com a Ariola, para a gravação dos três primeiros discos solos do grupo,7 que tiveram a produção artística do próprio Milton Nascimento. O desejo de levar a música do UAKTI além das fronteiras nacionais fez com que o grupo se abrisse a novas parcerias musicais. O contato com a mú-sica popular se consolidou. As participações do grupo nos discos Brazil, do quarteto vocal de jazz norte-americano The Manhattan Transfer, em 1986 e The Rhythm of the Saints, de Paul Simon, em 1989, possibilitaram um con-tato mais estreito com o ambiente artístico internacional, abrindo novas portas para o grupo. Assim, o UAKTI passou a atingir uma faixa de público mais ampla. O trabalho com Paul Simon marca a transição para a segunda etapa da história do grupo. A segunda etapa do UAKTI foi mar-cada pelo encontro com o compositor Philip Glass, ocorri-do em março de 1989 durante as seções de gravação com Paul Simon. GLASS (1999) reconheceu no trabalho do grupo: “. . . uma bela contribuição ao novo e experimental do mundo da música”. Foi nesta segunda fase que ocorreu o lançamento mundial dos quatro primeiros CDs do UAKTI pelo selo Point-Music de Nova Iorque: Mapa (1992), I Ching (Point-Music, 1994), Trilobyte (Point-Music, 1997) e Águas da Amazônia (Point-Music, 1999). Neste período aconteceram também apresentações em conjunto com outros artistas, como o baterista Stewart Copeland e The Rhythmatists (1994); a realização de diversas turnês de concertos e workshops, pelos EUA, Europa e Brasil; a in-tensificação das atividades didáticas - como o projeto UAKTI: Programa Artista Visitante na UFMG (1994-1995), e a elaboração de trilhas sonoras para balé, especial-mente compostas e gravadas para o Grupo Corpo: A Len-

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da (1989), 21 (1992) e Sete ou Oito peças para um balé (1993). Em 1997, a trilha sonora 21, composta para o balé do Grupo Corpo é finalmente lançada em CD. O texto de apresentação resultou do encontro entre o grupo UAKTI e o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, em 1996:

“. . . o sociólogo se encantou com um espetáculo no Heineken Festi-val e entrou em contato com o grupo. Quando Herbert de Souza via-jou até a capital de Minas, ele foi recepcionado com uma apresen-tação particular na oficina do grupo no bairro Serra” (LANA, 1996).

Dessa visita surgiu a ideia do texto do encarte do CD 21, onde Betinho fala sobre a mineiridade e o senso de integração entre os opostos, valores que compartilhava com o grupo UAKTI:

“Metade Deus. Metade Diabo. Na exata e mineira medida, como é a vida. Num único espaço e tempo estão juntos porque necessa-riamente diferentes e necessários um ao outro: não há vida sem morte, prazer sem dor, sim sem não, princípio sem fim, agudo sem grave, veloz sem lento, grande sem pequeno. Deus sem Diabo. Tudo é metade e o contrário da outra parte, diferente para fazer a uni-dade do que é contrário. Foi escutando o Uakti que aprendi o que sempre me recusei a aceitar: que todo diferente é, no fundo, parte de um mesmo igual. ‘Yin’ e ‘Yang’. Deus e o Diabo, num empate aceito pelos dois, eis o mistério. Negado em todas as partes, mas não em Minas Gerais, onde o empate é reconhecido no “se”, no “talvez”, no “não sei se sim ou se não”, na indefinição que define todo o saber e fazer. Em Minas o normal é o empate. O desempate é puramente provisório. Minas Gerais, um estado particular e úni-co do Brasil. Central, no meio de tudo, com extremos, mas sem se definir. Um lugar onde a vida e a morte conversam todo o tempo sem se despedir. Terra de Milton Nascimento, de João Guimarães Rosa e do Uakti, sem mar, mas com imensidão. Terra onde a li-berdade foi esquartejada na Inconfidência Mineira de Tiradentes no século 18, mas permanece de corpo inteiro. O lugar onde a liberdade dura ainda que tardia. Enfim, o mistério. Foi lá que nas-ceu o Uakti e só poderia ser. Quatro anjos vertidos em demônios entraram na música e fizeram uma grande filosofia pela via das notas, do estalo, do contraste, do espanto, da doçura e da violência sem limites do som que ultrapassa todas as barreiras. Transcende-ram o tempo e o espaço, rescreveram Einstein por cima de toda relatividade. Foram tão acima de tudo que tiveram que inventar até os instrumentos. E inventaram como Deus fez no começo e o Diabo ajudou. Deus inventou a humanidade, o Uakti inventou o instrumento da música. Não se pode entender o Uakti sem se levar esse choque do totalmente Deus e totalmente Diabo, uma coisa que todo mineiro entende e aqueles que podem praticam. O fim do mundo está no começo e o Uakti é esse Verbo” (SOUSA, 1996).

Neste período, o trabalho musical do UAKTI foi reconheci-do, também, em âmbito nacional, pela conquista de duas importantes premiações: o Prêmio Ministério da Cultura, como melhor grupo de música instrumental de 1996 e o Prêmio Santista, como melhor grupo de Música Popular Brasileira de 1997. Esse período caracterizou-se ainda pela intensificação dos trabalhos do UAKTI em todo o Brasil: as primeiras trilhas sonoras para longa-metragens: Kenoma, de Eliane Café; Outras Estórias, de Pedro Bial; Lavoura Arcaica, de Luís Fernando Carvalho; concertos e workshops em diversas cidades brasileiras e uma turnê nacional do show Atracatraca, em parceria com o per-cussionista Naná Vasconcelos. Em 1999, o UAKTI gravou o seu décimo disco, intitulado Clássicos, que foi lançado no primeiro semestre de 2001. O título se refere à reunião de arranjos de obras de compositores eruditos consagra-dos, cuja seleção, bem como a estética dos arranjos, não

seguiu nenhum padrão pré-estabelecido. Cada um dos membros do UAKTI escolheu e arranjou temas de compo-sitores de sua preferência. Já em agosto de 1999, o UAKTI lançou o CD Águas da Amazônia, seu nono trabalho. Ao mesmo tempo, saía o quarto CD editado mundialmente pela Point-Music, que inclui a trilha para balé Sete ou oito peças para um balé e um arranjo de Marco Antônio para a composição Metamorphosis I, também de autoria do compositor norte americano Philip Glass. Isso concretiza-va um projeto iniciado em 1993, quando da gravação da trilha sonora para o balé de mesmo nome encomendado pelo Grupo Corpo. No texto de apresentação do CD, Phi-lip Glass escreveu sobre sua relação com o grupo UAKTI, cujo reconhecimento nacional e internacional reflete a maturidade que o grupo atingiu a partir da construção de novos instrumentos musicais acústicos:

“Anos atrás, quando encontrei o UAKTI pela primeira vez, vi em sua música e performance algo único e uma bela contribuição ao novo e experimental no mundo da música. Me tornei, desde então, amigo de todos eles; especialmente tornei-me um admirador da extraordinária capacidade de Marco Antônio no que diz respeito ao ouvir e compor. Fiquei muito feliz, quando, anos mais tarde, eles me propuseram um trabalho em parceria. Seria a partitura de um balé, composto para a companhia de dança ‘Grupo Corpo’, de sua cidade, Belo Horizonte. Este CD representa uma verdadeira integra-ção entre a minha música e a sensibilidade deles. Para mim, é um deleite e um enorme prazer ouvir o resultado final” (GLASS, 1999).

Se a primeira fase do grupo, durante a década de 1980, foi caracterizada por um empenho no sentido da consolidação do UAKTI como um grupo musical, poderíamos dizer que a segunda fase, durante a década de 1990, foi marcada por uma atuação mais voltada para sua inserção no cenário internacional da música. Já na terceira fase, adentrando o século XXI, pode-se perceber um enfoque maior do grupo em atuar, de forma mais abrangente, no seu próprio país. Comprova isto o fato de que, somente no período entre os anos de 2000 e 2004, foram realizados 146 concertos e 57 workshops no Brasil e apenas 13 apresentações e 5 workshops no exterior. Em 2000, as apresentações do grupo tiveram seu repertório centrado, em grande parte, nas músicas do CD Águas da Amazônia. Com a participa-ção especial da pianista Regina Amaral8 e da percussio-nista Josefina Cerqueira,9 foram realizados concertos em Florianópolis, Belo Horizonte, Ouro Preto, Tiradentes, São Paulo, Campinas, Brasília, Salvador e Belém. Este trabalho do UAKTI em parceria com Philip Glass teve uma excelente receptividade por parte da crítica especializada:

“...’Águas da Amazônia’ teve suas faixas batizadas com nomes de afluentes do rio Amazonas, tema que, não só toca na questão eco-lógica, como se afina perfeitamente com o jeito de o grupo fazer sua inclassificável música... o grupo consegue despertar ondas de entusiasmos por onde passa e arranca os mais impressionantes adjetivos. O próprio Philip Glas elogiou o resultado do CD, enquan-to um crítico da revista musical Bilboard afirmou que ´nunca a música de Glass soou tão orgânica e sem afetação como tocada pelo Uakti.´” (NUNES, 2000)

No âmbito educacional, começa a se consolidar o traba-lho em parceria com o grupo Tabinha,10 integrado por 30 crianças e adolescentes carentes da cidade de Uberlândia, MG. De forma a valorizar a genuína cultura que o cerca, o

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Tabinha executa ritmos remanescentes de festas populares e religiosas, tais como o congo, a folia de reis, o gatupé e o moçambique. Além de apresentações na região de Uber-lândia, o Tabinha se apresentou também em Portugal, no Festival do Ritmo de Aveiro, em 2000. No final de 2001, a convite da Orquestra Experimental de Repertório (São Pau-lo), o UAKTI teve várias de suas composições rearranjadas para orquestra sinfônica. Os arranjos das músicas Raça, Música para um Templo Grego Antigo, Alnitak, Mapa, Mon-tanha, Bolero e Parque das Emas foram escritos por André Mehmari11 e os arranjos das músicas Onze e Hai-Kai n.6 foram escritos por Marco Antônio Guimarães. Posterior-mente, este repertório foi reapresentado com as orques-tras Jazz Sinfônica (São Paulo), Sinfônica da Petrobrás (Rio de Janeiro) e Orquestra Sinfônica de Minas Gerais. O ano de 2002 foi marcado por um outro importante projeto de cunho artístico e social do UAKTI: a montagem e apresen-tação do espetáculo Dança das Marés. Terceiro trabalho do coreógrafo Ivaldo Bertazzo com um grupo de adolescentes do Complexo da Maré, na cidade do Rio de Janeiro, este espetáculo teve seu roteiro escrito pelo médico Dráuzio Varella, que se baseou em depoimentos dos próprios jovens integrantes do grupo. Em cena, além de dançar, os meni-nos e meninas, moradores da favela da Maré, falavam de questões que marcam a passagem da infância para a ado-lescência, da sexualidade, da violência e dos problemas que eles enfrentam no seu dia-a-dia. Integrado por 69 adoles-centes entre 11 e 20 anos, os jovens dançarinos tiveram uma carga horária bastante intensa de ensaios, visando à montagem de um espetáculo com as exigências de uma obra coreográfica de nível profissional. Para este espetá-culo, Marco Antônio Guimarães compôs uma trilha sonora que, além de incluir temas escritos especialmente sobre coreografias previamente criadas por Bertazzo, previa a performance ao vivo do UAKTI. Além desses novos temas, algumas faixas do CD Clássicos foram incluídas no espe-táculo. O espetáculo teve 28 apresentações na cidade do Rio de Janeiro e 17 na capital paulista. No ano de 2003, o UAKTI realizou uma série de oficinas dentro do Circuito Te-lemig Celular de Cultura, em Belo Horizonte e em cidades do interior de Minas (Montes Claros, Varginha, Governador Valadares, São Sebastião do Paraíso e Divinópolis). Foram realizados também concertos em Brasília, São Paulo, Santo André e Rio de Janeiro. Este foi também o ano do show de lançamento do CD Clássicos, gravado alguns anos antes e já descrito anteriormente. Segundo o crítico musical João PAULO (2003), do jornal O Estado de Minas, o CD Clássicos

“... é um disco marcante. Músicas conhecidas se tornam novas. Instrumentação original alimenta nossa memória dos sons. Além do apenas belo, o Uakti anuncia seu diálogo dos tempos...”

Ainda em 2003, o UAKTI participou da gravação do disco Brasileirinho, da cantora Maria Bethânia. A fai-xa de abertura do CD, Salve as Folhas, teve arranjo de Marco Antônio Guimarães. Os instrumentos do UAKTI que acompanham a cantora nesta faixa são Torre, Chori Smetano,Tubo percutido, Planetário, Marimba de Vidro, Marimba D´Angelim e Violão com Arco. A cantora falou do grupo ao repórter Milton LUIZ (2003):

“. . . esses meninos (do Uakti) fazem a música de Deus. Quem me mostrou um trabalho deles, pela primeira vez, foi o Orlando Mo-raes. Ele me falou que eu precisava ouvir. Sentia que aquilo era eu, meu espírito. Fiquei louca. Comprei todos os discos possíveis e quando fui a Belo Horizonte, os conheci. São extraordinários. Fico orgulhosíssima de abrir um disco com essa qualidade, com esses instrumentos, sentidos. Tudo deles é da alma.”

Em junho de 2004, a convite do compositor norte ame-ricano Philip Glass, o UAKTI participou do Projeto Órion, estreado em Atenas, Grécia, juntamente com seis artis-tas de diferentes nacionalidades: Mark Atkins (Austrália), Wu Man (China), Ashley MacIssac (Canadá), Foday Musa Suso (África), Ravi Shankar – Gaurav (Índia) e Eleftheria Arvanitaki (Grécia), sempre acompanhados pela Philip Glass Ensemble (PGE). 12 Com o apoio da UNESCO, o co-mitê organizador das Olimpíadas Culturais de Atenas de 2004 convidou Philip Glass para compor uma obra musical extensa, em torno de noventa minutos, que marcaria a abertura daquele evento. Orion, nome dado à constela-ção de estrelas pelos gregos da antiguidade, foi também o nome escolhido por Philip Glass para essa obra. Segundo ele, “quando olhamos as estrelas ficamos sonhadores. E de cada país, você consegue ver Órion.” (PEIXOTO, 2004). No ano seguinte, em meados de 2005, as apresentações de Orion ocorreram em Nova Iorque, Chicago e Los Angeles (EUA), e Melbourne, na Austrália, quando um CD duplo, incluindo toda a obra, foi lançado. Ao final de 2004, com vistas à documentação da história do grupo, foi lançado o livro Uakti: um estudo sobre a construção de novos instru-mentos musicais acústicos, de autoria do flautista Artur ANDRÉS RIBEIRO (2004), um dos co-autores do presente artigo. Este lançamento, patrocinado pela SEB – Southern Eletric Brasil, baseou-se integralmente na tese de Douto-rado homônima, defendida em 2000, na Escola de Música da UFMG. O livro se divide em três partes principais. A primeira traz a trajetória histórica do grupo até 2004. A segunda parte do livro discute a construção de novos ins-trumentos musicais acústicos, os processos de idealização e construção de novos instrumentos musicais acústicos e o sistema integrado de elementos que permitiu a experi-ência continuada do grupo UAKTI em seus mais de três décadas de trabalho ininterrupto. Na terceira parte, o livro apresenta um catálogo completo, descritivo e ilustrado, de cada um dos setenta instrumentos criados por Marco Antônio. O Ex.1 mostra alguns desses instrumentos.

Para o UAKTI, 2005 foi marcado pelo lançamento do CD Oiapok-Xui, que se baseou, fundamentalmente, em rit-mos e temas da música popular brasileira. Por outro lado, o trabalho de oficinas musicais e workshops foi bastante intensificado, envolvendo projetos de inserção social com jovens em situação de vulnerabilidade social, tanto em Belo Horizonte, quanto em cidades do interior do es-tado de Minas Gerais, principalmente na região do Vale do Jequitinhonha. Em 2006, dando sequência ao trabalho iniciado em 2001, várias obras do grupo UAKTI , incluindo sete arranjos escritos por André Mehmari, foram apre-sentadas com Orquestra Experimental de Repertório. Já o CD Águas da Amazônia foi integralmente reorquestrado para ser realizado com Banda Sinfônica do Estado de São

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Paulo. As apresentações ocorreram no teatro São Pedro em São Paulo, em outubro de 2006, com reapresentações no Teatro Cultura Artística, em março do ano seguinte. Em meados de 2007, juntamente com a Orquestra Sinfô-nica de Minas Gerais, os sete arranjos de Mehmari foram reapresentados no Grande Teatro do Palácio das Artes, em Belo Horizonte, incluindo desta vez um arranjo orquestral de Artur Andrés para a música Arrumação do compositor baiano Elomar Figueiras. Ao final desse ano, a convite da Orquestra de Câmera do Sesiminas, de Belo Horizonte, em formação para cordas, piano e instrumentos originais do grupo, foram apresentadas obras e arranjos de Artur Andrés (Mapa, Alnitak, Turning Point, Trilogia para Krish-na, Arrumação e Música para um Templo Grego Antigo), Paulo Santos (Forró de Iarra) e Marco Antônio Guimarães (Maculelê de Marimba). Ainda em 2007, houve o lança-mento do primeiro DVD do grupo, intitulado simplesmen-te UAKTI e gravado no Grande Teatro do Palácio das Artes, sob a direção do video-maker Éder Santos. As imagens em movimento dos instrumentos registram pela primei-ra vez, as diferentes técnicas e práticas de performance em diversos dos novos instrumentos acústicos criados por Marco Antônio Guimarães. Em 2008, o UAKTI completou

30 anos de uma história contínua, dedicada à performan-ce e projetos educacionais voltados para a formação de professores. Foram realizadas apresentações em várias capitais de cidades do interior do país assim como uma apresentação em Turim, na Itália, a convite da Secretaria de Estado da Cultura de Minas Gerais.

Uma série de questionamentos e mudanças começou a ocorrer dentro do grupo em 2009, devido ao prenúncio da interrupção das atividades do Marco Antonio Guimarães como luthier e compositor do UAKTI. Artur Andrés, pri-meiro co-autor do presente artigo, relatou ao jornal Esta-do de Minas: “Se por um lado [isto] gera insegurança, por outro lado traz desafios e desperta potenciais criativos” (REIS, 2009). Por exemplo, para o novo CD do UAKTI, ain-da a ser gravado e que deverá ser intitulado Em família, todos os demais membros do UAKTI deverão se desdobrar como compositores e arranjadores. Este trabalho, que terá obras encomendadas ao francês Philippe Kadosch e os brasileiros André Mehmari, Kristoff Silva e Alexandre Andrés, incluirá uma participação bastante expressiva da voz humana, possivelmente da cantora paulista Mônica Salmaso e seu marido, o flautista e saxofonista Teco Car-

Ex.1 – Uma das salas da oficina do UAKTI com alguns dos novos instrumentos criados por Marco Antônio Guimarães (ANDRÉS RIBEIRO, 2004, p.121)

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doso. O ambiente familiar do disco deverá se ampliado por ocasião da turnê de lançamento do CD: Regina Ama-ral (piano) e Alexandre Andrés (flautas, violão); Daniela Ramos (percussão) e Josefina Cerqueira (percussão).

Em 2010, além da gravação e turnê de um novo CD, o grupo deverá retomar o trabalho em conjunto com Philip Glass, na turnê Orion, pelo México e EUA. Numa parceria com a empresa de projetos culturais Bureau Santa Rosa, o UAKTI projeta a construção de sua sede em Belo Horizon-te, que será chamada de Centro de Referencia Uakti. REIS (2009) comenta sobre a futura sede, que além de salas de estudo de exposições, terá um teatro para 300 pessoas interligado a um estúdio de gravação:

“O prédio, de dois andares, a ser construído num terreno cercado de mata nativa na região da Pampulha, segue à risca a inspiração da lenda amazônica que batizou o grupo... Inspirado nela, o proje-to do Instituto, dos arquitetos Mariza Hardi e Fernando Maculan, cria espaços vazados, repletos de paredes de vidros e aberturas, capazes de integrar a natureza do entorno”.

6 – UAKTI: três décadas de novos instrumen-tos musicais acústicosNos últimos trinta anos, Marco Antônio Guimarães tem construído novos instrumentos musicais em todas as cin-co categorias propostas por Hornbostel e Sachs.

Entre os aerofones do UAKTI , que podem ser de sopro ou de percussão, estão o Borel, o Cachimbo, as Flautas brancas, as Flautas Uakti I e II (veja Ex.2), o Taquará, o Trombone de chaves, o Trompetim, os Tubos soprados I e osTubos soprados II, o Grande Pan (veja Ex.3), o Pan Incli-nado, os Pius-pi e o Tri-Lá.

Ex.2 - Flautas Uakti I e II : exemplos de aerofones de sopro criados por Marco Antônio Guimarães para o

Grupo UAKTI (ANDRÉS RIBEIRO, 2004, p.176)

Ex.3 - Grande Pan: exemplo de aerofone de percussão criado por Marco Antônio Guimarães para o Grupo UAKTI (ANDRÉS RIBEIRO, 2004, p.180)

Entre os idiofones do UAKTI estão a Caixa de madeira, a Centrífuga, as Figuras geométricas, o Garrafão, as La-tinhas, a Manfra, a Marimba D’Angelim, a Marimba de vidro (veja Ex.4), a Panela de alumínio com varetas de aço, o Panelário, a Peça de caminhão, o Tambor d’água, o Tampanário e os Tubos com joelhos de 90º .

Entre os membranofones do UAKTI estão os Tambo-res acoplados, os Tambores condensadores, a Trilobita (veja Ex.5) e os Tubos com latas de alumínio. Um tipo especial de membranofone é o mirliton, cuja membra-na tem a função de modificar um som originalmente produzido de outra forma. O Bocal chinês é o único instrumento do UAKTI que se enquadra nessa categoria e sua membrana é ativada pelo sopro ou pelo canto executados contra ela. Um caso especial, discutido an-tes nesse artigo, é o Aqualung (veja Ex.6), considerado membranofone por utilizar como membrana a superfí-cie da água.

Entre os cordofones do UAKTI estão o Chori Smeta-no, o Chorinho, o Colibri, a Flor, o GIG (veja Ex.7), a Iarragunga, o Peixe e o Planetário. Entre os cordofo-nes que têm cordas percutidas estão o Berimbau com chave e o Jaburu.

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Os instrumentos eletromecânicos do UAKTI se dividem em quatro categorias. Primeiro, aqueles que possuem corda e são tocados mecanicamente, mas são inter-rompidos ou selecionados pelos dedos do instrumen-tista: a Roda e a Torre (veja Ex.8). Na segunda catego-ria, em que o instrumentista meramente seleciona o cilindro ou o rolo que determina a tonalidade a ser to-cada, estão o Nastaré, o Toca-discos com braço central e os Violões giratórios. Na terceira categoria, em que o funcionamento dos instrumentos mecânicos depende de corrente elétrica, estão o Ion e o Ventilador manual. Na quarta categoria, estão os instrumentos cujo som é produzido por procedimentos acústicos, tais como uso de cordas ou palhetas e então, amplificados ou modi-ficados eletricamente. Entre eles estão a Cítara, o Sino de alumínio, o Sino elétrico, o Sino de madeira, a Tabla elétrica e o Tatu.

Para fotos, utilização discográfica, história da criação, descrições detalhadas da forma, dimensões e princípios de funcionamento de todos os instrumentos do UAKTI, veja ANDRÉS RIBEIRO (2004).

Ex.4 – Marimbas de vidro: exemplos de idiofones criado por Marco Antônio Guimarães para o Grupo UAKTI (ANDRÉS RIBEIRO, 2004, p.190)

7 – ConclusãoA história do UAKTI se confunde com a história de vida de Marco Antônio Guimarães, que foi o idealizador do grupo e tem sido, ao longo de mais de três décadas, o projetista e construtor dos novos instrumentos acústicos, o com-positor de obras para estes instrumentos. Suas principais influências estão ligadas aos professores da Escola de Música da UFBA Ernst Widmer e Walter Smetak, espe-cialmente este último pelo seu ecletismo e originalidade em abordar a música de forma não tradicional.

Diferentemente da maioria das tentativas anteriores à sua criação no cenário brasileiro ou internacional, o UAKTI se mostrou ser viável como um dos raros grupos que cria ins-trumentos musicais novos, compõe música para os mesmos e as apresenta regularmente para um público em concertos e CDs, o que realimenta este processo integrado.

A perspectiva educacional do UAKTI é também uma fa-ceta importante do grupo e ultrapassa os limites entre a música popular e a música erudita, entre a música brasi-leira e a música universal.

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Ex.5 - Trilobita: exemplo de membranofone de percus-são criado por Marco Antônio Guimarães para o Grupo

UAKTI (ANDRÉS RIBEIRO, 2004, p.200)Ex.6 - Aqualung: exemplo de membranofone de água criado por Marco Antônio Guimarães para o Grupo

UAKTI (ANDRÉS RIBEIRO, 2004, p.196)

Ex.7: Gig: exemplo de cordofone criado por Marco An-tônio Guimarães para o Grupo UAKTI (ANDRÉS RIBEIRO,

2004, p.207)

Ex.8 - Torre: exemplo de instrumento eletromecânico criado por Marco Antônio Guimarães para o Grupo

UAKTI (ANDRÉS RIBEIRO, 2004, p.223)

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Revista Pampulha, dezembro, 1983.p.12-15.___________. Minas não trabalha em silêncio. Entrevista a Ricardo Rodrigues, Manchete, Rio de Janeiro, março, 1989.

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Referência de entrevistaGUIMARÃES, Marco. Entrevista de Marco Antônio Guimarães ao autor. Belo Horizonte, 15, setembro, 1999. Vide anexos

tese de doutorado nas UFMG.

notas1 O austríaco Eric von Hornbostel dedicou-se à psicologia experimental e à musicologia, dirigindo o Phonogram-Archiv de Berlim entre 1906 e 1933.

Demitido em 1933, emigrou para Nova Iorque e, em seguida, para Londres. Foi um pioneiro na aplicação de conceitos de fisiologia, psicologia e acústica a culturas musicais não-europeias e, com isso, fundamental na criação da musicologia comparada. Entre suas muitas publicações inclui-se a classificação padrão dos instrumentos juntamente com Curt Sachs em 1914.

2 Musicólogo alemão, Curt Sachs estudou história da música e história da arte em Berlim e, somente a partir de 1909, dedicou-se à música, tornando-se diretor da Staatliche Instrumentensammlung, destacada coleção de instrumentos musicais, tendo ensinado na universidade e em outros centros de música. Privado de todas as suas funções acadêmicas em 1933, emigrou para Paris e, em 1937, para os EUA, onde ensinou nas universidades de Nova Iorque e Columbia. Foi um dos fundadores da moderna organologia, tendo também escrito um dicionário bastante abrangente e uma história referencial dos instrumentos musicais. Interessou-se pela música não-ocidental, o que o levou a tornar-se um dos pioneiros da etnomusicologia. Escreveu também sobre a música do mundo antigo, ritmo e andamento, e sobre a relação entre a música e as outras artes.

3 A Sociedade Brasileira de Eubiose, que foi fundada em Niterói (RJ), em 1924, com o nome de Sociedade Teosófica Brasileira e recebeu seu nome atual em 1969, é uma sociedade espiritualista, constituída de livres-pensadores, cujo objetivo é o desenvolvimento cultural da humanidade.

4 Gaia, que significa planeta Terra, originou-se entre os antigos gregos e designava uma deusa grega. A hipótese Gaia, em que trata-se de um ser vivo e não apenas meio para outras vidas, foi formulada pelo biólogo inglês James Lovelock e apresentada no seu livro Gaia: a new look at life on earth (Oxford University Press, 1982).

5 Além do disco Sentinela, o UAKTI participou dos seguintes trabalhos de Milton Nascimento: Caçador de Mim (Ariola-1981), nas faixas: De magia, dança e pés e Coração civil; Ânima (Ariola, 1982), na faixa Ânima; Encontros e Despedidas (Barclay, 1985), nas faixas Lágrima do Sul e Portal da cor; nas faixas Dança dos meninos e Carta à República (Yauaretê (CBS, 1987).

6 Durante o mês de julho de 1986, a convite do Ministério da Cultura Espanhol, o UAKTI participou de uma turnê de oito shows pela Espanha, ao lado de Milton Nascimento e da cantora catalã Maria Del Mar Bonet.

7 Uakti-Oficina Instrumental (Ariola, 1981), Uakti II (Ariola-Barclay, 1982) e Tudo e Todas as coisas, (Polygram, 1984).8 Regina Amaral, Mestre em Música pela Escola de Música de Karlsruhe (Alemanha), foi professora de Piano e Música de Câmera da Escola de Música

da UFMG. Recitalista e camerista, integra o Duo (flauta e piano) com Artur Andrés, com quem gravou seis discos: Encontro Barroco I (independente, 1984) e Encontro Barroco II (independente 1985); Duo (Sonhos e Sons 1999), Cantos e ritmos do Oriente (Sonhos e Sons 2001), Música dos Sayyids e dos Derviishes (Sonhos e Sons 2002) e Hinos, preces e ritos (Sonhos e Sons 2004). Gravou também um CD solo, “Klavinedotas”, com obras inéditas do compositor Arthur Bosmans (Sonhos e Sons, 2002).

9 Josefina Cerqueira estudou percussão na Fundação de Educação Artística (Belo Horizonte) com Décio Ramos e Paulo Santos em 1987. Dedica-se à luteria, tendo se especializado na construção de marimbas de vidro. Atualmente, toca com o Uakti e trabalha na manutenção dos seus instrumentos.

10 O grupo Tabinha, formado em 1998 em Uberlândia, tinha como propósito inicial, constituir a bateria-mirim da Escola de Samba Tabajaras do Patri-mônio, bairro histórico daquela cidade e berço da congada e folia de reis, em que a tradição musical tem sido passada de geração em geração.

11 André Mehmari, compositor, arranjador e multinstrumentista, nasceu em Niterói (RJ), é considerado pela crítica especializada um dos grandes ex-poentes da nova geração de músicos brasileiros.

12 A Philip Glass Ensemble (P.G.E.) é um grupo formado por onze instrumentistas, que acompanha Philip Glass há mais de três décadas. Inclui em sua formação, teclados eletrônicos, voz, sopros e percussão, sob a regência do maestro Michael Riesman.

Artur Andrés é membro do UAKTI desde sua criação, com o qual já gravou mais de 10 CDs e recebeu diversos prêmios. Doutor em Música pela Escola de Música da UFMG, onde ensina flauta, foi flautista da Orquestra Sinfônica do Estado de Minas Gerais de 1980 a 1986. Como solista tem se apresentado em importantes teatros do Brasil e do exterior e atuado ao lado de músicos como Milton Nascimento, Paul Simon, The Manhattan Transfer, Philip Glass, Ney Matogrosso, Maria Bethânia, Caetano Veloso, José Miguel Wisnik, Skank, Zélia Duncan e Grupo Corpo. Com a pianista Regina Stela Amaral, forma um duo de flauta e piano desde 1978.

Fausto Borém é Professor Titular da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde criou o Mestrado em Música e a Revista Per Musi. É pesquisador do CNPq desde 1994 e seus resultados de pesquisa incluem um livro, três capítulos de livro, dezenas de artigos sobre práticas de performance e suas interfaces (composição, análi-se, musicologia, etnomusicologia e educação musical) em periódicos nacionais e internacionais, dezenas de edições de partituras e apresentação de recitais nos principais eventos nacionais e internacionais do contrabaixo. Recebeu diversos prêmios no Brasil e no exterior como solista, teórico, compositor e professor. Acompanhou músicos eruditos como Yo-Yo Ma, Midori, Menahen Pressler, Yoel Levi, Fábio Mechetti, Luiz Otávio Santos, Arnaldo Cohen, Antônio Menezes e músicos populares como Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, Henry Mancini, Bill Mays, Kristin Korb, Grupo UAKTI, Toninho Horta, Juarez Moreira, Tavinho Moura, Roberto Corrêa, Maurício Tizumba e Túlio Mourão. Suas gravações incluem o CD Brazil-ian Music for the Double Bass, o CD e DVD O Aleph de Fabiano Araújo Costa, os CDs da Orquestra Barroca do Festival Internacional de Juiz de Fora de 2005 a 2009 (com Luiz Otávio Santos), a Suite for Flute and Jazz Piano de Claude Bolling (com Maurício Freire, Tânia Mara e Eduardo Campos) e No Sertão (com o violista Roberto Corrêa) e Cidades Invisíveis (com o saxofonista Daniel d´Olivier).

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ROCHA, M. A. R. Leituras sobre música, as palavras e a voz. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.185-187.

Recebido em: 03/11/2009 - Aprovado em: 22/06/2010

A coletânea Music, Words and Voice: A Reader, editada em 2008 por Martin Clayton, foi inicialmente idealizada para servir de fonte bibliográfica para os alunos do se-minário Words and Music, oferecido pelo editor na Open University. Assim, o livro reúne trinta e seis textos bas-tante diversificados, apresentados de forma parcial ou na íntegra e organizados em cinco partes que abordam as relações entre a voz, as palavras e a música dentro de variados gêneros musicais e contextos culturais. O vo-lume apresenta diversas transcrições de exemplos mu-sicais, fragmentos de letras de canções, índice remissivo e pode ser adquirido pela internet por cerca de £12.00.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.23, 195 p., jan. - jul., 2011

Na primeira parte do livro, denominada de Words and Music, o editor reúne sete trabalhos que discutem as diferenças entre a fala e a canção e que questionam a origem da música e as formas como ela se relaciona com a linguagem. O primeiro texto da seção foi extraído do Essay on the origin of languages de Jean-Jacques Rous-seau, onde encontramos sua teoria a respeito de uma origem comum para a fala e a música. Segundo o autor, música e fala teriam emergido juntas no nascimento da sociedade e, somente algum tempo depois, teriam se separado em modos verbais e musicais de comuni-cação. Jaques Derrida se contrapõe ao ponto de vista

PEGA nA CHALEIRA - RESEnHAS

Leituras sobre música, as palavras e a voz

Maurilio Andrade Rocha (UFMG, Escola de Belas-Artes, Belo Horizonte, MG)[email protected]

Resenha do livro CLAYTON, Martin (Ed.). Music, Words and Voice: A Reader. Manchester and New York: Manchester University Press, 2008. 313p. US$ 26 nos EUA; R$ 60,63 no Brasil.Palavras-chave: canto; voz; fala e música; texto e música; etnomusicologia; sociologia da música.

Music, words and voice: a reader

Review of the book CLAYTON, Martin (Ed.). Music, Words and Voice: A Reader. Manchester and New York: Manches-ter University Press, 2008. 313p. US$ 26 nos EUA; R$ 60,63 no Brasil.

Keywords: singing; voice; speech and music; text and music; ethnomusicology; sociology of music.

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ROCHA, M. A. R. Leituras sobre música, as palavras e a voz. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.185-187.

de Rousseau, defendendo que a fala e o canto nunca estiveram realmente juntos, mas sim, em constante pro-cesso de diferenciação desde o início da humanidade. O texto seguinte, de Charles Myers, também discute a origem da música e sua raiz comum à fala dentro da evolução humana. Geoge List, através do uso de um es-pectrógrafo, buscou categorizar a grande diversidade de formas vocais encontradas ao redor do mundo; o frag-mento extraído do trabalho de Richard Wagner aborda paradoxos nas relações entre a poesia e a música; e o artigo de David Hughes apresenta o uso de sistemas de sílabas para transmitir intervalos melódicos no processo de ensino da flauta noh japonesa. Finalmente, o traba-lho de George Herzog discute o uso de tambores como imitação da fala em uma tribo africana.

Na segunda parte, Song, text and voice, encontramos sete trabalhos que consideram as relações de com-plementaridade entre texto e voz na canção e entre o significado das palavras e os outros aspectos do canto. O texto de Simon Frith aborda as várias vozes que se encontram na canção e as relações de identidade en-tre o próprio e o outro daí decorrentes. Steven Feld e seus colaboradores discutem o jogo entre o sentido do texto e os recursos vocais utilizados por um cantor norte-americano de música country. Roland Barthes apresenta a música como uma forma de linguagem e discute a musicalidade de textos transformados em canção. Tim Riley analisa a canção Hey Jude, dos Bea-tles, seu processo de composição e os significados de sua parte final, desprovida de palavras. Virginia Daniel-son analisa as relações entre texto e qualidade vocal em uma performance do Alcorão islâmico. Sheila Dhar e Peter Manuel analisam a voz dentro da canção india-na Thumri, destacando aspectos de sua relação com o erótico e com o desejo.

A terceira parte, Song performance and society, apre-senta seis escritos que consideram o canto enquanto performance e dentro de seu contexto social. Viktor Zuckerkandl discute o significado do lugar social da canção, onde a voz do indivíduo passa a representar a voz de um grupo e a funcionar como um importan-te fator de identidade. O trabalho de Hiromi Sakata aborda aspectos do público e do privado e suas re-lações com questões sobre o gênero, dentro da per-formance do lullaby no Afeganistão. Susan McClary aborda questões sobre raça, classe social e gênero em seu estudo de caso sobre a ópera Carmen, de Georges Bizet. Richard Middleton discute o blues como forma de expressão não somente dos africanos-americanos, mas também dos brancos norte-americanos. Christo-pher Waterman descreve a juju music da Nigéria e as funções sociais de sua execução ao vivo. Robert Walser discute o papel das palavras e dos aspectos musicais na transmissão das mensagens políticas do grupo rap Public Enemy. Finalmente, Jan Bolwell analisa a intera-ção entre gestos e linguagem na transmissão da men-sagem das canções interpretadas por Keri Kaa.

A quarta parte, Song and ritual, reúne sete trabalhos que focam na canção em contextos de performances rituais sagradas ou profanas e na adaptação ou representação encenada de rituais em performances musicais. O artigo de Palmer e Patten descreve e situa canções do gênero Wassails, utilizadas no contexto de remanescentes ri-tuais de inverno no distrito de Somerset, Inglaterra. O fragmento do trabalho de Frank Howes aborda o gênero de canção Carols cujos textos parecem sofrer marcada influência da música gospel. Robert Hayburn discute a relação entre letra e música ao abordar o uso de textos sagrados na forma vernácula na música religiosa católi-ca do século quatorze. Marina Roseman discute o papel curativo das canções em rituais do povo Temiar da Ma-lásia. Naquele contexto, as canções atuam como pontes de ligação entre doentes e seus guias espirituais em di-reção à cura. Elizabeth Tolbert descreve o lamento, ao mesmo tempo espontâneo e estilizado, dos refugiados soviéticos da região de Karelia, no sudeste da Finlândia. Os artigos de Richard Taruskin e de Pieter van der Toorn analisam um tradicional ritual russo de casamento e seu uso por Stravinsky na preparação de sua peça de balé Les Noces. A discussão sobre a música em contextos ri-tuais ganha nova dimensão ao analisar-se sua apropria-ção em uma performance encenada.

A quinta e última parte, Words music and narrative, reúne oito trabalhos que consideram as relações entre palavras e música na construção de narrativas. O texto gerado a partir de uma entrevista realizada com Mauro Geraci des-creve a arte dos “cantadores” de histórias (storytellers) si-cilianos que usam canções e palavras para contar histórias com temas antigos e contemporâneos. Nesse tipo de arte, a música presente no acompanhamento da guitarra apre-senta-se como suporte para o desenvolvimento da história contada. Edward Cone desvenda as várias vozes, literais e metafóricas, presentes na ópera ocidental, partindo dos cantores, englobando as linhas instrumentais e chegando até a voz do compositor. Carolyn Abbate analisa as narrati-vas musicais do século dezenove com foco no papel da voz na ária Bell Song da ópera Lakmé, de Léo Delibes. Gordon Williams apresenta os processos de trabalho na criação de uma cantata, descrevendo as relações de parceria entre o compositor e o libretista e discute a pertinência de se ana-lisar os textos de tais obras fora de seu contexto musical. A entrevista realizada com o compositor de canções para a Broadway, Stephen Sondheim, apresenta aspectos de sua técnica composicional e de sua visão sobre as diferenças entre a ópera e o teatro musical. O letrista de canções para musicais da década de 1940 na Broadway, Oscar Hammers-tein, discute sua prática na criação de letras, com enfoque para aspectos como rima, ritmo e fonética. Os excertos da novela autobiográfica de Amit Chaudhuri traz um pouco de sua experiência adquirida em sessões de música na Ín-dia e de sua relação com a voz dentro de canções indianas. Encerra a seção e o volume, um extrato do livro No Cami-nho de Swann, onde Marcel Proust descreve a experiência de seu protagonista ao ouvir uma sonata composta pelo compositor fictício Vinteuil.

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ROCHA, M. A. R. Leituras sobre música, as palavras e a voz. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.185-187.

A antologia reúne desde trabalhos escritos no século de-zoito até textos inéditos, elaborados especialmente para o livro. Por se tratar de uma coleção de textos utilizados para um seminário de pós-graduação, alguns trabalhos são apresentados no volume em excertos bastante redu-zidos, o que pode dificultar a compreensão mais ampla do pensamento dos autores. Um exemplo disso é o fragmen-to do texto Working-class ‘country’, assinado por Steven Feld e colaboradores. Nesse caso específico, o texto me-rece ser lido na íntegra, ou melhor, talvez apenas com o livro Real Country de Aaron Fox, o leitor poderá contextu-

Maurilio Andrade Rocha é Professor da Escola de Belas Artes da UFMG onde ministra disciplinas relacionadas à música e à voz no teatro. Integra o grupo de pesquisa NACE (Núcleo de Pesquisa Transdisciplinar em Artes Cênicas) e é Doutor Colaborador do INET-MD (Instituto de Etnomusicologia – Música e Dança) da Universidade Nova de Lisboa. Suas inves-tigações e publicações têm se concentrado nas ligações entre a música popular, o teatro e a sociedade.

alizar adequadamente as proposições geradas pelo traba-lho desenvolvido. Nesse sentido, a intervenção presencial do professor parece ser fundamental para suprir lacunas deixadas pela forçosa redução de alguns textos. Ainda assim, a significativa diversidade dos trabalhos, aliada ao abrangente período temporal em que foram escritos, nos oferece uma interessante visão do pensamento existente sobre o tema e faz da coletânea um rico material para o aprofundamento da discussão sobre as interações entre as palavras, a voz e a música.

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GOMES, R. C. S. Num velho exemplo, diferentes maneiras de fazer musicologia... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.188-190.

Recebido em: 05/10/2009 - Aprovado em: 22/06/2010

Num velho exemplo, diferentes maneiras de fazer musicologia: uma resenha do livro César Guerra-Peixe: Estudos de Folclore e Música Popular UrbanaRodrigo Cantos Savelli Gomes (UDESC, Florianópolis, SC)[email protected]

Resenha do livro ARAÚJo, Samuel (org.) César Guerra-Peixe: Estudos de folclore e música popular urbana. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2007. 277p. R$40,00.Palavras-chave: Guerra-Peixe; musicologia brasileira; estudos musicológicos; música folclórica brasileira.

In an old example, different ways of doing musicology: a review of the book César Guerra-Peixe: Estudos de Folclore e Música Popular Urbana

Review of the book ARAÚJo, Samuel (org.) César Guerra-Peixe: Estudos de folclore e música popular urbana. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2007. 277p. R$40,00.Keywords: Guerra-Peixe; Brazilian musicology; musicology studies, Brazilian folkloric music.

Guerra-Peixe foi amplamente reconhecido como um ilus-tre compositor que com maestria, à moda nacionalista de sua época, soube mesclar a estética clássica europeia com a cultura popular e folclórica brasileira, como fize-ram Villa-Lobos, Guarnieri, Mignone, entre tantos. Bem menos conhecida, no entanto, foi sua produção como pesquisador musicólogo, resgatada e sistematizada no livro Estudos de folclore e música popular urbana. Classificado modestamente como organizador, Samuel Araújo se lançou nessa aventura histórico-musicológica, vasculhando acervos, bibliotecas, arquivos, depósitos, onde se deparou com manuscritos, transcrições musicais nunca antes publicadas, para dar forma a algo até então inédito em nosso país: uma coletânea com a vasta produção musico-lógica de Guerra-Peixe, disseminada até então em diversos meios de difícil acesso. Tratava-se, pois, de uma produção praticamente desconhecida pela musicologia brasileira, cuja forma final foi esboçada por Guerra-Peixe antes de sua mor-te, mas só definitivamente finalizada nesta publicação.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.23, 195 p., jan. - jul., 2011

Há não muito tempo atrás, o trabalho musicológico no Brasil tendia a ser algo absorvente e pouco gratificante. A área carecia de profissionais qualificados, na melhor das hipóteses os musicólogos costumavam ser “profes-sores de música, instrumentistas ou regentes que se dedica[vam] aos estudos musicológicos nas horas livres e de modo pouco articulado com suas atividades prin-cipais” (NEVES, 1999, p.181). Além de poucos recursos para pesquisas, dificilmente musicólogos podiam ver editados os resultados de seus trabalhos, fazendo com que grande parte da sua possível produção não chegasse a completar seu próprio ciclo, não alçando, assim, sua forma final (NEVES, 1999). O trabalho de Samuel Araú-jo vem, portanto, atender a demanda brasileira, a qual carece de levantamentos sistemáticos na área de mú-sica tradicional, folclórica e popular, de coleções e do-cumentações etnográficas que possam contribuir para uma avaliação mais exata da diversidade das culturas musicais brasileiras num período onde estudos costu-mavam ser escassos e esparsos.

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Diferente, de certo modo, do grupo de “musicólogos nas horas livres”, Guerra-Peixe teve a astúcia de integrar suas pesquisas à sua atividade principal como compositor e arranjador, como é o caso de inúmeras de composições inspiradas no material de campo coletado, por exemplo: Inúbia do Cabocolinho (1956), Prelúdios Tropicais (1979), No Estilo da Folia de Reis (1984), entre tantas. Recolher elementos das culturas populares como forma de criar um “grande banco ou reservatório do qual se deveria extrair elementos que revitalizassem a arte ‘elevada’ ou ‘erudi-ta’” (ARAÚJO, 2007, p.17) era uma prática comum entre os compositores da época. O diferencial de Guerra-Peixe, no entanto, foi o tratamento dado ao material coletado que, embora pouco valorizado pela academia brasileira, a qual por décadas privilegiou a música europeia em detri-mento da cultura local (BÉHAGUE, 1999), foi sistematiza-do e publicado pelo compositor em diversos meios.

Entre os 44 artigos e 4 esboços, a obra instiga ao menos duas leituras: a de um documento histórico da diversidade cultural brasileira em meados do século XX, ao apresen-tar uma imensa quantidade de instrumentos, vestimentas, apetrechos, danças, repertórios, grupos musicais, fatos e rituais, descritos e transcritos detalhadamente pelo com-positor; a de um documento da prática musicológica bra-sileira, ao ilustrar diferentes abordagens para o tratamen-to de questões de interesse musicológico, empregadas por Guerra-Peixe nos diversos contextos abordados.

Na primeira parte do livro, onde estão reunidos os artigos publicados na Revista Brasileira de Folclore, Guerra-Peixe segue uma abordagem descritiva predominante dos estu-dos de folclore, possivelmente inspirado pela linha edito-rial da própria revista. Aqui o autor busca privilegiar “uma descrição objetiva dos diversos elementos constituintes de determinado sistema musical, isto é, instrumentos mu-sicais, sistemas tonais, formas musicais, escalas, ritmo, metro, harmonia, polifonia, etc, visando uma taxonomia do vasto material utilizado, do que procurar estabelecer significados ou funções da música” (LAVIGNE, 2000, p.40). É uma abordagem se aproxima ao que IKEDA (1998) clas-sificaria como musicografia “ou seja, trabalhos apenas de descrição do objeto estudado ou coleções de músicas e documentos de interesse musical, que propriamente de musicologia, a qual exige análise, interpretação e compre-ensão dos fatos” (IKEDA, 1998, p.64). Encontram-se aqui descrições bastante detalhadas de manifestações como, por exemplo, dos grupos carnavalescos conhecidos como Cabocolinhos do Recife; das orquestras populares nordes-tinas, chamadas de Zabumba ou Banda de Pife, entre ou-tros nomes; e o rito de preparação para a morte daqueles que estão agonizando, popularmente conhecido como Re-

za-de-defunto, sustentado por longas cantorias à capela.Na segunda seção – um compêndio de Artigos para jor-nais diários diversos¸ dirigidos a públicos distintos e com teor e enfoques próprios em cada um deles – é possível encontrar, além de textos descritivos ao estilo folclorista, abordagens que se aproximam à musicologia comparati-va. Nelas o autor procura identificar unidades de modo a reconhecer características próprias de determinadas prá-ticas musicais, apontando para possíveis generalizações, como é o caso dos textos intitulados: Escalas musicais do folclore brasileiro, A execução do pandeiro no Brasil e Em termos de Música Paulista. Na mesma seção são apresen-tados estudos que enfocam questões relativas à estética musical, onde autor comenta sobre a origem de deter-minados gêneros musicais, processos de hibridização e questões relativas à massificação do gosto, em especial a hegemonia do gosto carioca no território brasileiro: Va-riações sobre o Baião, Variações sobre o maxixe e A prová-vel próxima decadência do frevo.

A última parte apresenta uma série publicada ao longo do ano de 1952 em uma coluna do Jornal Diário de Per-nambuco. A série consiste em um levantamento de obras e compositores pernambucanos dos últimos cem anos, resultado de uma sondagem realizada em acervos de lo-jas musicais da região especializadas em venda e registro de partituras. O autor depara-se aqui com um objeto de estudo próximo à sua realidade artístico-profissional, ou seja, obras de compositores de seu meio social que, assim como ele, transitaram entre a estética clássica europeia e a música popular brasileira. Trabalhando com algo de seu meio e tempo próximo, Guerra-Peixe se posiciona como um severo crítico de arte, ao molde jornalístico opinativo. Além de revelar a público uma lista imensa de musicistas e peças esquecidas pelo tempo, o autor traz pequenos comentários analíticos onde avalia as obras e os com-positores de acordo a complexidade técnica e o estilo estético-ideológico empregados nas respectivas compo-sições. Nacionalista ferrenho, Guerra-Peixe é implacável com os puristas da estética europeia e com aqueles que considera de pouca habilidade técnico-musical.

Assim, ao longo dos diversos artigos presentes nesta co-letânea, é possível observar Guerra-Peixe lançando mão de diferentes abordagem (folclorista, etnomusicológica, musicológica, jornalística), adaptando-se de acordo com o meio de publicação e o público alvo. Uma prática hoje pouco comum. Atualmente, musicólogos costumam res-tringir a publicação de suas pesquisas a revistas cada vez mais especializadas, de pouco conhecimento público, em linguagem rebuscada, raramente, por exemplo, divulga-das em revistas e jornais de ampla circulação.

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GOMES, R. C. S. Num velho exemplo, diferentes maneiras de fazer musicologia... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.188-190.

Referências bibliográficas:ARAÚJO, Samuel (org.) César Guerra-Peixe: Estudos de folclore e música popular urbana. Belo Horizonte: Editora da

UFMG, 2007.BÉHAGUE, Claude. A Etnomusicologia na América Latina. In: SIMPÓSIO DE MUSICOLOGIA II. Anais. Curitiba: Fundação

Cultural de Curitiba, 1999, p.41-70.IKEDA, Alberto T. Musicologia ou Musicografia?: algumas reflexões sobre a pesquisa em música. In: SIMPÓSIO DE MU-

SICOLOGIA I. Anais. Mesa Redonda II: Perspectivas da Pesquisa Musicológica na América Latina (do séc. XVI ao XX). Curitiba. Fundação Cultural de Curitiba, 1998, p.63-68.

LAVIGNE, Marcos Antônio. Folclore, música folclórica e música popular. In:Seminário Folclore e Cultura Popular: as várias faces de um debate. 2 ed. Rio de Janeiro: Funarte, Cnfp, 2000, p.39-43.

NEVES, José Maria. Alguns problemas da Musicologia na América Latina. In: SIMPÓSIO DE MUSICOLOGIA II. Anais. Curi-tiba: Fundação Cultural de Curitiba, 1999, p.175-189.

Rodrigo Cantos Savelli Gomes é mestrando em Música (Musicologia-Etnomusicologia) na Universidade Estadual de Santa Catarina (UDESC) e bolsista do Programa Pós-Graduação CNPq/UDESC. Graduado pelo Curso de Licenciatura em Música na mesma instituição, onde foi por três anos bolsista de iniciação científica. Suas últimas pesquisas enfocaram as relações de gênero na música brasileira, em especial no samba, rock, hip-hop e na música negra. Em 2008 recebeu o 3º Prêmio Construindo a Igualdade de Gênero e foi condecorado com menção honrosa no ano consecutivo.

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MOREIRA, G. F. O livro Cavalo-marinho pernambucano de John Patrick Murphy. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.191-195.

Recebido em: 17/10/2009 - Aprovado em: 22/06/2010

O livro Cavalo-marinho pernambucano de John Patrick Murphy

Gabriel Ferrão Moreira (UDESC, Florianópolis, SC)[email protected]

Resenha do livro MURPHY, John Patrick. Cavalo-marinho pernambucano. Tradução de André Curiati – Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008, 159p. R$ 33,00Palavras-chave: etnomusicologia, antropologia da performance musical, música folclórica brasileira, cavalo-marinho.

The book Cavalo-marinho pernambucano by John Patrick Murphy

Review of the book MURPHY, John Patrick. Cavalo-marinho pernambucano. Tradução de André Curiati – Belo Hori-zonte: Editora UFMG, 2008, 159p. R$ 33,00 Keywords: ethnomusicology, anthropology of music performance, Brazilian folkloric music, cavalo-marinho.

O livro Cavalo-marinho pernambucano é uma etnografia musical da prática do Cavalo-Marinho – uma variação re-gional dos tradicionais folguedos do Bumba-meu-boi, em Pernambuco – escrita, primeiramente como tese de douto-rado, pelo etnomusicólogo americano John Patrick Murphy fruto das suas observações nos anos de 1990 e 1991. Ori-ginalmente uma tese de doutorado, o texto foi traduzido pelo pesquisador em Etnomusicologia e mestre em linguís-tica pela USP, André Curiati. O trabalho procura estabe-lecer uma relação entre as transformações nessa prática cultural e as transformações nas relações de trabalho dos participantes (trabalhadores da cana-de-açúcar).

Está dividido em 5 capítulos os quais tratam, respec-tivamente:

- do contexto social da encenação do cavalo-marinho e a história de vida de mestres brincantes:

- da contextualização do drama em termos de gênero e sumariza seu conteúdo musical e textual;

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.23, 195 p., jan. - jul., 2011

- da descrição de apresentações rurais e urbanas;- da análise dos processos musicais e da continuidade

histórica que liga o cavalo-marinho - estudado a outras tradições de performance mais

disseminadas no Nordeste brasileiro;- da interpretação do cavalo-marinho como meio de

acesso à visão moral de seus participantes.

Acerca da teoria e metodologia desse trabalho, o autor afirma que se baseia em três pressupostos:

- a música é um elemento básico na cultura e a pes-quisa de música pode revelar diversos elementos sobre a cultura em que está integrada.

- a música codifica sentidos através dos sons e pode fun-cionar como um canal independente de comunicação, aprofundando a textura de uma encenação dramática;

- o contexto de uma apresentação musical é um ce-nário estrategicamente importante para se estudar processos musicais.

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MOREIRA, G. F. O livro Cavalo-marinho pernambucano de John Patrick Murphy. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.191-195.

Através da observação dessas prerrogativas teóricas, Murphy desenvolveu perguntas de pesquisa – e ações no trabalho de campo – que procuravam entender a ligação entre essa performance musical e os valores e visão de mundo de seus participantes, para compreender, assim, o significado dessa prática para eles.

A etnografia musical é utilizada como ferramenta de ob-servação na pesquisa narrada no livro. O autor vê, des-sa forma, a música mais como prática cultural e crê que para ter essa visão do fenômeno deve considerar também sua estrutura apresentada em eventos concretos e seu contexto histórico e social.

Murphy se preocupa em contextualizar geografi-camente e historicamente a região na qual ocorre o cavalo-marinho, a zona da mata em Pernambuco, nar-rando a transição do sistema açucareiro do modelo de engenho para o engenho central e, finalmente, as usinas, e procurará demonstrar como a mudança nas relações de trabalho nesse sistema afetou a prática do cavalo-marinho em Pernambuco.

No final do livro há um glossário onde os termos regionais utilizados – nome de instrumentos, gêneros musicais, etc. – são explicados com maior detalhe. Há também um site onde o autor coloca informações adicionais, áudio e víde-os relacionados ao cavalo-marinho.1

No primeiro capítulo, O contexto social da representação do Cavalo-marinho, Murphy explicita as diversas dimen-sões constituintes do contexto que envolve a concepção e execução do Cavalo Marinho. Ele discorre acerca das rela-ções de trabalho, demonstrando que a grande maioria dos brincantes2 obtém seu sustento das atividades relaciona-das ao cultivo e processamento de cana-de-açúcar. Fala acerca das condições de vida simples da grande maioria dos brincantes e da religiosidade que eles possuem – um catolicismo popular embebido em uma crença em feitiça-ria e pequenos focos de religiões afro-brasileiras.

As relações entre patrões e empregados desses enge-nhos na Zona da Mata Norte são consideradas dados importantes pela relação que será estabelecida entre essa dinâmica de trabalho e as representações de algu-mas personagens do cavalo-marinho. Questões relativas ao baixo nível de instrução dos moradores da Zona da Mata Norte (educação e alfabetização) e os altos índices de violência dessa região também são apontados nesse capítulo para a constituição completa do cenário onde a brincadeira surge e é executada.

Murphy relata a história de vida de dois mestres do ca-valo-marinho pernambucano, Mestre Salustiano e Mestre Batista, além de outros mestres menos famosos. O autor discorre sobre a organização social do grupo de brincadei-ra, falando dos diversos papéis dos participantes na orga-nização e representação da brincadeira. Discorre, também, sobre as competências necessárias para que tais funções

possam ser assumidas. No fim do capítulo, Murphy relata as diversas maneiras – e as circunstâncias - pelas quais um grupo de cavalo-marinho pode ser formado.

No início do segundo capítulo – Cavalo-marinho: Gênero e seu conteúdo - Murphy usa a categoria “Danças Dra-máticas” - termo criado por Mário de Andrade – enqua-drando o cavalo-marinho como uma manifestação cultu-ral dessa espécie. De fato, para o autor, o cavalo-marinho se designa como um reisado, uma brincadeira que que tem uma diversidade de cenas e personagens, algumas vezes aleatórios – onde não se perceber sua necessidade para o desenvolvimento do roteiro principal da história - os quais se encerram sempre com o bumba-meu-boi. A partir dessa explanação inicial, o autor trabalha cada uma das três categorias especificamente; os Reisados, o Bumba-meu-boi e o Cavalo-Marinho.

Reisado se refere a adaptações dramático-coreográficas de romances e cantigas populares. “Bumba-meu-boi é a designação padrão para danças dramáticas que têm como elemento central a morte e ressurreição de um boi” (p.53). Murphy afirma que segundo Cascudo “bumba é uma interjeição, zás, dando impressão de impacto, pan-cada, golpe. Bumba significa ‘bate, bate com chifre, meu boi’” (p.53). Existem diferentes versões de bumba-meu-boi nas regiões do país.

“Cavalo-Marinho é a versão regional do boi de terreiro que é exclusiva da Zona da Mata Norte de Pernambuco e Paraíba” (p.53). Essa dança dramática tem esse nome específico, pois não usa a Zabumba – referência instru-mental ao nome Bumba-meu-boi – então o nome da brincadeira foi mudado para outro personagem impor-tante, o cavalo-marinho.

Murphy mostra duas hipóteses para a adoção do nome cavalo-marinho. Uma hipótese é que o cavalo-marinho seria um cavalo importado do além-mar, Portugal. Em várias versões da brincadeira aparece a frase “Cavalo-Marinho dança muito bem” dando apoio a essa hipóte-se, de que se refere à presença de um animal de qua-lidade superior.

A outra hipótese é que Marinho venha do sobrenome de um grande Capitão da Capitania Hereditária da época colonial na região. O nome da brincadeira não possui ne-nhuma relação com o animal cavalo-marinho (p.54).

Nessa seção do capítulo o autor se dedica à diferenciar o bumba-meu-boi do cavalo-marinho através das diferen-ças de instrumentação e entre algumas cenas entre os dramas, como, por exemplo, o uso da rabeca no cavalo-marinho e sua ausência no bumba-meu-boi.

Murphy cita Mário de Andrade, Borba Filho e Araújo como as fontes bibliográficas que se completaram para o seu conhecimento do Cavalo-Marinho anterior à pes-quisa. O autor considerava necessário inserir uma versão

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do que seu informante considerava como apresentação integral do cavalo-marinho, uma vez que cada apresen-tação era particular, contendo cenas diferentes ou ex-cluindo algumas outras.

A versão do Mestre Salustiano consistia em três partes, descritas com muito detalhamento no livro (p.56-60). A primeira parte é caracterizada pelo embate entre os vaqueiros e o Capitão pela posse do engenho. Após a vitória do Capitão sobre os vaqueiros, esses se tornam seus servos e irão mediar suas relações com os outros personagens restantes. De fato, o resto da brincadeira é a festa do Capitão.

Na segunda parte um grande número de personagens contracenam com o Capitão com o intuito de negociar, mostrar um problema a ser solucionado ou narrar uma odisseia pessoal. No livro, Murphy cita detalhadamente cada personagem que aparece nessa parte (p.57).

Na terceira parte, os personagens individuais se tornam mais agitados conforme se aproxima a chegada do Boi. Nesse epi-sódio, o Boi avança sobre os brincantes e a plateia, até que o vaqueiro Mateus o mata. Depois do funeral do Boi, o médico é chamado para curá-lo. O Boi revive e dança outra vez.

Após a sinopse da brincadeira, Murphy comenta acer-ca do conjunto musical do cavalo-marinho. O conjunto musical é formado por um vocalista principal, um ou mais vocalistas de apoio, rabeca, pandeiro, bage3, canzá ou reco-reco e ganzá. O autor dedicará grande parte do presente capítulo para uma descrição bastante detalhada sobre os instrumentos, principalmente a rabeca, sobre a qual também se preocupa em falar sobre seus fabricantes e especificações da construção do instrumento. Depois dessa descrição detalhada dos instrumentos, di-versos exemplos musicais são mostrados onde os pa-drões executados por cada instrumento e cantos do to-adeiro (cantor principal) são escritos. Murphy considera que a riqueza dos textos falados no cavalo-marinho de-manda um estudo à parte e, no fim desse capítulo, tam-bém há uma seção onde partes dos textos falados são apresentadas, separados por gêneros, estilos, estratégias de texto e meios de transmissão.

No terceiro capítulo intitulado Cavalo-marinho brincando, o autor descreve os diversos contextos onde o cavalo-marinho é apresentado e as particularidades das apresentações nesses diversos ambientes: apresentações rurais, brincadeiras de rua, apresentações de festa, apresentações urbanas.

Nas apresentações rurais, se joga4 em três lugares especí-ficos: (1) na rua, em pequenas cidades independentemente de festas de santos padroeiros, (2) na rua, como parte de festas de santos padroeiros ou (3) em engenhos ou sítios.

Murphy comenta que são raras as apresentações em sítios e engenhos, pela mudança de residência da

maioria dos brincantes dos sítios para as cidades. En-tretanto, os informantes afirmavam que o sítio era o lugar ideal para a execução do cavalo-marinho, onde ele era conhecido e respeitado, sem as restrições das autoridades municipais.

As brincadeiras de rua se aproximam desse ideal, onde os brincantes – geralmente os trabalhadores do cultivo de cana, que agora moram na cidade – acordam com donos de bares o valor pago ao grupo que representará a brincadeira.

Nas apresentações de festa, os grupos são contratados para celebrações comunitárias dedicadas aos santos pa-droeiros. Já as apresentações urbanas são feitas em nú-mero reduzido de locais e são financiadas pela Prefeitura Municipal de Recife. Nessas apresentações organizadas o cavalo-marinho é tratado como folclore – fetichizada como uma prática cultural ancestral preservada, e não como nos engenhos - algo pertencente aqueles que a ‘performam’ viva dentro do sistema cultural atual que eles vivem. No final do capítulo Murphy afirma que o ca-valo-marinho não é brincado no carnaval, onde o Bumba-meu-boi é executado.

No capítulo quarto - Processos musicais e continuida-de histórica - o autor explicita a importância da música como elemento sustentador da prática do cavalo mari-nho. Também ressalta a importância da música de dança (música que acompanha a dança das personagens) como elemento de contraste entre as partes faladas. Na página 106 é apresentada uma tabela que organiza os eventos da cena do Soldado – uma das cenas do cavalo-marinho - entre música e diálogo, demonstrando a importância da alternância entre essas duas linguagens. A música tem o papel de, na alternância com o texto, estruturar o tempo da performance e preservar a atenção dos ouvintes, bem como conservar a energia dos brincantes.

Após ressaltar a importância da música para o andamen-to da brincadeira, Murphy descreve a continuidade his-tórica do cavalo-marinho e as mudanças que ocorreram na sua prática no decorrer da história da Zona da Mata Norte. Ele declara que muitas cenas que foram incluídas ou excluídas da representação refletem mudanças políti-cas e sociais (criação da CLT, mudança para a cidade, sur-gimento da televisão, mudanças no processo de produção do açúcar) que interferiram na relação patrão-empregado e também na concepção da mulher.

O autor mostra a continuidade das tradições do cavalo-marinho através da demonstração das semelhanças entre o cavalo-marinho atual e as versões mais antigas copi-ladas em diversos livros que utilizou como base para a análise da continuidade e mudança no gênero.

Ainda nesse capítulo, Murphy descreve as particularida-des do Bumba-meu-boi em Pernambuco (uma vez que, como já dito anteriormente, há várias versões do bumba-meu-boi em diversos estados brasileiros).

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No capítulo final, Uma interpretação do cavalo-marinho como visão moral, devoção religiosa popular e arte cômi-ca, Murphy revela sua percepção acerca do cavalo-mari-nho como representação de uma visão moral e devoção religiosa próprias dos camponeses, bem como um produto concebido como artístico.

Ele reitera que para se entender esses significados é imprescindível ter em mente o contexto no qual se de-senvolve a brincadeira, de trabalhadores da cana de açúcar recentemente proletarizados, e dedicará um tó-pico do capítulo para o entendimento desse fenômeno. Após o esclarecimento desse contexto ele comenta a visão moral contida dentro da representação. A cena da disputa entre o capitão e os vaqueiros pela posse da terra demonstra a punição merecida dos vaqueiros por desobedecerem ao Capitão, e não é uma crítica à atitude enérgica do capitão; é uma visão de respeito à autoridade patronal.

Murphy admite que inicialmente percebeu o cavalo-marinho como uma crítica ferrenha ao ‘patronato’, mas logo compreendeu que a crítica era aos maus patrões e maus empregados, e exaltação daqueles que ocupavam de maneira honesta e justa seus papéis dentro desse sis-tema. Também se percebe o fundo de devoção religiosa do bumba-meu-boi, a temática da morte e ressurreição do Boi, e a ligação desses com o suprimento das necessi-dades mais básicas daquelas pessoas.

No fim do capítulo o autor demonstra que a interpretação mais recorrente do cavalo-marinho por seus brincantes é de arte cômica, onde o humor é valorizado e necessário para a existência da brincadeira.

Ele também afirma que, apesar da existência desses elementos morais e religiosos no cavalo-marinho, não há garantia de que todos seus participantes estejam de acordo com essas representações, sendo que muitos deles permanecem na superfície da brincadeira onde os ele-mentos artísticos e cômicos são melhor percebidos. De fato, o cavalo-marinho deve ser percebido nessa sua mul-tiplicidade na possibilidade de interpretação e impacto artístico e, como diz Murphy na página 138, “talvez seja por isso que permanece como uma tradição viável”.

A edição do livro Cavalo-marinho Pernambucano é uma iniciativa bastante válida da etnomusicologia brasileira. Muito embora seja uma tradução de uma obra americana, sua edição por uma editora brasileira é uma iniciativa lou-vável. Entretanto, faltam imagens que seriam essenciais para a descrição dos instrumentos, indumentária e rostos dos informantes principais como Salustiano e Batista.

Pelo fato de ser uma obra escrita originalmente para leitores estrangeiros, relata bastantes coisas que para um ‘nativo’ – no caso um brasileiro – são conhecidas de antemão – como a composição dos instrumentos musicais - tornando a leitu-ra do livro - em algumas dessas seções - um pouco tediosa.

Murphy fez uma extensa pesquisa acerca do cavalo-mari-nho e sua pesquisa bibliográfica o dotou de um vasto co-nhecimento do status da brincadeira em outros tempos, o que propiciou sua análise das mudanças e continuida-des presentes nas brincadeiras que observou e na prática narrada pelo seu informante principal, Mestre Salustiano.

Contudo, a maneira pela qual ele organiza as informações em seu livro dificulta um entendimento amplo da brin-cadeira, na medida em que ao trabalhar com o contexto social da representação do cavalo-marinho – no primeiro capítulo – ele cita cenas e personagens da brincadeira quando essa só será explicada no segundo capítulo.

Por fim, o título da obra em inglês (Performing a moral vision) o forte conteúdo etnográfico e a conclusão da obra sendo a interpretação do cavalo-marinho em ter-mos antropológicos – como antropologia da performance – entendo que a obra situa-se dentro da Antropologia da Música, onde a música serve como elemento aglutinador de valores morais, éticos e religiosos daqueles que a exe-cutam (musica inserida dentro da cultura - numa visão semelhante à MERRIAM (1964), muito embora haja bas-tante transcrições musicais e informações sobre instru-mentos, não são elaboradas interpretações musicológicas dessas estruturas musicais) de forma diferente da etno-musicologia mais voltada para a interpretação dos signos musicais para o entendimento de como se processam e se desenvolvem dentro de uma cultura particular – também tendendo para uma interpretação do ‘humano’ por detrás desses signos musicais (BLACKING,1973).

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ReferênciasBLACKING, John. How musical is man? Seatle: University of Washinghton Press, 1973.MURPHY,Jonh Patrick. Cavalo-marinho pernambucano. Tradução de André Curiati – Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008,

159p.MERRIAM, Alan. The anthropology of music. Evanston: Northwestern University Press, 1964.

Notas1 web3.unt.edu/murphy/brazil.2 Categoria nativa que se refere aos participantes do Cavalo-marinho.3 “A bage é um pedaço de taboca sem nó, de 45-50 cm por 8,5 cm da extensão da taboca. Esta superfície serrilhada é friccionada com um bastãozinho

de perfil triangular (p.68).4 Categoria nativa que significa participar do cavalo-marinho.

Gabriel Ferrão Moreira é Mestrando em Música – linha de pesquisa Musicologia-Etnomusicologia pela Universidade do Estado de Santa Catarina - possui graduação em Licenciatura em Música pela mesma universidade (2008). Atualmente pesquisa as representações musicais de brasilidade na obra de Heitor Villa-Lobos, orientado pelo Prof.Dr. Acácio Tadeu de Piedade Camargo. Nessa mesma pesquisa procura orientar-se também, pela disciplina História, onde pôde apresentar seu trabalho no XXV Simpósio Nacional de História na Universidade Federal do Ceará, em 2009. Também trabalha com proje-tos musicais e organização de eventos musicais na Comunidade Batista de Ingleses, Florianópolis – SC. Tem experiência na área de Artes, com ênfase em Música, atuando principalmente nos seguintes temas: composição, música erudita, musica popular, clássico-romântico e educação musical. É bolsista do CNPQ/CAPES.

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