Poemas Do Dia Murilo Mendes

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Murilo Mendes O poeta na igrejaEntre a tua e o meu esprito se balana o mundo das formas. No consigo ultrapassar o mundo dos vitrais pra repousar os teus caminhos perfeitos. Meu pensamento esbarra nos seios, nas coxas, nas ancas das mulheres, pronto. Estou aqui, nu, paralelo tua vontade, sitiado pelas imagens exteriores. Todo o meu ser procura romper o seu prprio molde em vo noite do esprito onde os crculos da minha vontade se esgotam. Talhado para a eternidade das ideias ai quem vir povoar o vazio da minha alma?

Enquanto passa fome e sede quarenta dias os meus sentidos se desalteram. Cada vez que cais ao peso de tua cruz eu caio com uma mulher de ltima classe.

Enquanto te multiplicas na humanidade no saio dos limites da minha pessoa.

Depois da morte voltas para absorver o justo e o pecador, eu antes da morte j condenei o pecador, o justo e eu mesmo.

Senhor do mundo, me tira de mim para que eu possa olhar os outros e eu mesmo.] (Poemas /1927)

A namorada de LzaroAqui na terra eu deixei Uma mulher carinhosa

Vestidos suarentos , cabeas virando de repente, pernas rompendo a penumbra, sovacos mornos, seios decotados no me deixam ver a cruz. Me desliguem do mundo das formas!

Que rezava todo dia Para eu ressuscitar. Tanto tempo ela rezou, Com tanta f, tanto ardor, Com fora no pensamento, Que os espaos tremeram,

Vidas opostas de Cristo e dum homemSenhor do mundo, cada vez que ressuscitas um homem, me destruo a mim mesmo. Enquanto o demnio te tenta no deserto eu sonho com os corpos que a terra criou.

Os santos se concentraram, A msica desse pedido No deixava eles dormirem... E um dia ressuscitei. A pobre da namorada De tanto rezar por mim,

Coitada perdeu a fora, Levaram num carro azul Com trs coroas bem pobres Mas de flores naturais. Que adiantou me levantarem Se minha amada morreu? Ressuscitem-na tambm, Seno dispenso milagre, Dou um tiro na cabea. Dispenso ressurreio.

Quando a sombra da noite enegrece o poente!

Um, dois, trs lampies acende e continua Outros mais nascer imperturbavelmente, medida que a noite aos poucos se acentua E a palidez da lua apenas se pressente.

Triste ironia atroz que o senso humano irrita:Ele que doira a noite e ilumina a cidade, Talvez no tenha luz na choupana em que habita.

A musaTu s a relao entre o poeta e Deus. Tu prefiguras uma imagem do Eterno Porque a todo o instante organizas o mundo, Sem ti a minha poesia se extinguir, Sem ti eu ficaria mirando as construes do tempo. Tu assistes o movimento da minha alma, E aumentas a minha sede do ilimitado. Um dia, quando o Eterno me der a grande fora, Prenderei tua cabea as constelaes A fim de orientar os poetas futuros.

Tanta gente tambm nos outros insinua Crenas, religies, amor, felicidade, Como este acendedor de lampies na rua! (XIV Alexandrino)

O mundo do menino impossvelFim da tarde, boquinha da noite com as primeiras estrelas e os derradeiros sinos.

Entre as estrelas e l detrs da igreja,

Jorge de Lima O acendedor de lampiesL vem o acendedor de lampies da rua! Este mesmo que vem infatigavelmente, Parodiar o sol e associar-se lua

surge a lua cheia para chorar com os poetas.

E vo dormir as duas coisas novas desse mundo: O sol e os meninos

soldadinhos de chumbo so Mas ainda vela o menino impossvel a do lado enquanto todas as crianas mansas dormem acalentadas por Me-negra Noite. O menino impossvel que destruiu os brinquedos perfeitos que os vovs lhe deram: (...) O menino impossvel que destruiu at os soldados de chumbo de Moscou e furou os olhos de um Pap Noel, brinca com os sabugos de milho, caxias vazias, tacos de pau, pedrinhas brancas do rio... Faz de conta que os sabugos so bois... Faz de conta... Faz de conta... a boquinha da noite no mundo que o menino impossvel povoou sozinho! (...) (Poemas) E as pedrinhas balem! Coitadinhas das ovelhas mansas longe das mes presas nos currais de papelo! cangaceiros de chapu de couro...

Orao- Ave Maria, cheia de graa... A tarde era to bela, a vida era to pura, as mos de minha me eram to doces, havia l no azul um crepsculo de ouro... l longe... -Cheia de graa, o Senhor convosco, bendita! Bendita! Os outros meninos, minha irm, meus irmos menores, meus brinque[dos, a casaria branca de minha terra, a burrinha do vigrio pastan[do junto capela... l longe...

E os sabugos de milho mugem como bois de verdade...

Ave Maria cheia de graa -Bendita sois entre as mulheres, bendito o fruto do vosso ventre...

e os tacos que deveriam ser

E as mos dos sonos sobre meus olhos,

e as mos de minha me sobre o meu sonho, e as estampas do meu catecismo Para o meu sonho de ave! E isso tudo to longe... to longe... (Poemas)

O poeta vence o tempoJ no vejo mais as paisagens de plantas carnvoras. Levada pelos riachos a gua velha canta de novo. A relva ignora sua tragdia e alteia as folhas inocentes Regresso ao teu tempo Davi. Como tu, tenho harpa e tenho Deus E num dia bblico assim Fora dos tempos duros Posso voltar s origens, E sentir como tu Que sou mais forte que o rei, Mais forte que todos os Golias. Mas no sei como tu Distinguir se essa estrela clarssima a estrela da manh Ou se mesmo a poesia Que ns vemos no cu antecedente e posterior a tudo. (Tempo e eternidade)