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N 0 02 ANO 01 / NÚMERO 02 / AGOSTO DE 2013 ISSN 2318-3101 Philipéia informação + crítica + artes Cinema Romero Venâncio Memória Márcia Fontes Arte e Mercado Ana Monique Moura Mídia Beano Hegenhaux Leitura Jomar Ricardo da Silva Crítica Roberto Bandeira Nação Jaguaribe Pedro Osmar Silvio Osias Wênio Pinheiro Rua da Areia Frido Claudino

Revista Philipéia # Número 02 (08/2013)

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A Revista Philipéia é uma publicação independente de cultura, informação e artes.

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N002

ANO 01 / NÚMERO 02 / AGOSTO DE 2013

ISSN 2318-3101

Philipéiainformação + crítica + artes

CinemaRomero Venâncio

MemóriaMárcia Fontes

Arte e MercadoAna Monique Moura

MídiaBeano Hegenhaux

LeituraJomar Ricardo da Silva

CríticaRoberto Bandeira

Nação JaguaribePedro OsmarSilvio OsiasWênio Pinheiro

Rua da AreiaFrido Claudino

Revista Philipéia / agosto de 2013

ISSN 2318-3101

Coordenação editorial:Ana Monique MouraWênio Pinheiro Araujo

Colaboradores permanentes:Beano RegenhauxJomar Ricardo SilvaRomero Venâncio

Colaboradores desta edição:Frido ClaudinoMárcia FontesPedro OsmarRoberto BandeiraSilvio Osias

Philipéiainformação + crítica + artes

Cinema Romero Venâncio*

WIM WENDERS NO DECURSO DO TEMPO: NOTAS MIÚDAS

Existe um problema na crítica cine-matográfica que é a de definir com precisão o que é um “cinema de arte”. Toda obra cinematográfica não seria ela mesma uma “obra de arte”? Difícil responder de chofre uma questão como essa. Talvez essa questão de cinema de arte seja semelhante à aquela enfren-tada por Santo Agostinho quando tentou definir o tempo. Pensava o santo, quando não me perguntam o que é o tempo, sei do que se trata, mas quando me pedem uma defin-ição exata, não a tenho. Podemos aplicar, com reservas, esse pres-suposto agostiniano para definir o tempo ao problema do cinema de arte: acreditamos saber o que seja um cinema de arte, mas quando vamos ao papel e com calma, já não sabemos. Arriscamos uma dica: há algo num “filme de arte”

que é perene e que não há num filme exclusivamente comercial e de entretenimento.

É como se um “filme de arte” nos colocasse questões que transcen-dem a sua época e permanecem como um desafio no tempo para além de conjunturas especificas vividas por todos nós. Um cinema de “puro entretenimento” esgota-se nele mesmo e muito pouco fica na memória para ser trabalhado fora das salas de exibição. Para uma compreensão mais direta: um filme de arte nos faz mobilizar to-dos os sentidos possíveis de nos-so corpo/alma e nos coloca “ima-ginariamente” diante de questões decisivas da existência. Um filme de arte tem “compro-misso de en-gajamento” com a existência situ-ada no sentido sartreano. Numa

Imagem: Google (O louco / Maurício Takiguthi)

perspectiva dessa natureza, enten-demos o cinema do alemão Wim Wenders. Mais especificamente, destacamos o filme: “Im lauf der zeit” (1976), traduzido como “No decurso do tempo”. Titulo por si só, filosófico ou de arte por natureza. Segundo os principais estudiosos da obra cinematográfica de Wen-ders, esta película situa-se numa espécie de trilogia iniciada com Alice nas cidades (1974) que mos-tra um jornalista alemão obrigado a tomar conta de uma menina abandonada pela mãe enquan-to vaga pelos EUA para terminar uma reportagem. Iniciaria aqui um “road-movie” que seria uma marca constante de Wim Wenders em outros filmes marcantes.

O segundo filme da trilogia é “Fal-so movimento” (1975) que trata da viagem de uma trupe improvisada de atores por vários lugares da Ale-manha. Uma recorrência ao preto e branco e a lugares e paisagens pouco vistos nos cartões postais germânicos. O “road-movie” é saí-da, movimento, viagem sem des-tino certo, mas é acima de tudo, saída si mesmo para um outro desconhecido e misterioso através de uma câmara cinematográ-

fica. Segundo Fréderic Gros num belíssimo livro de filosofia, “Cam-inhar: uma filosofia”, o grande “road-movie” da filosofia teria sido Sócrates. Como se sabe, ele não conseguia ficar quieto, sobretudo quando o mercado grego funcion-ava e havia grande afluência de pessoa. Sócrates fazia da sua saí-da de si um caminhar constante em direção ao conhecimento de si mesmo através de um diálogo com um outro. Percebemos esse elemento socrático nos filmes de Wenders. No caso de “No decurso do tempo” isto é explorado de ma-neira impressionante. O filme trata de uma estranha amizade encon-trada ao acaso por dois homens e numa paisagem das estradas en-tre as duas Alemanha ainda dividi-das em plenos anos 70. O técnico de projetores Bruno e o suicida em potencial Robert ficam amigos e partem numa viagem pelas deca-dentes rodovias alemãs. Solitários e introspectivos ( o filme tem pou-cos diálogos para o normal de um filme de arte), os d o is est ão em busca de algo que só vai ficando claro no decorrer do filme e do tempo. A esperança deles é ter-minar a jornada encontrando umsignificado para as suas vidas. Só

que isto não esta dado em nen-hum momento do filme. O sentido para uma vida esta no decurso e não necessariamente no inicio ou no fim. Nada mais filosófico e ex-istencial do que esta compreensão da existência. O filme é ao mesmo tempo uma “celebração das coisas simples” ou como na poesia de Manoel de Barros “uma louvação das grandezas do ínfimo”. Um ôni-bus velho e cheio de latas de filme a serem exibidos, um lugar de mo-rada do personagem Bruno (que não sabemos de onde vem e pou-co ficamos sabendo da sua história mambembe). Robert aparece pela primeira vez no filme guiando um fusca em direção loucamente a

um rio e depois saindo dele pelo teto numa alusão a uma forma de desapego total. De cidade em cidade eles vão exibindo filmes e procurando entender o desapare-cimento do cine ma de int erior e o seu fascínio mesmo no ocaso. A vida é movimento e mudança. Por mais que isto nos seja duro e caro. Passam as pessoas que amamos, passam as coisas que temos, pas-sam os sonhos e a vida vai ficando mais rica e nostálgica. A verda-deira dialética do pertencer e ser livre. Há um bonito momento no filme em que Bruno se lamenta ao afirmar que a vida é como a sau-dade das mulheres que amamos e que deixamos ou fomos deixados.

Imagens: Google (No Decurso do Tempo / Dir. Wim Wenders)

O perder algo precioso nos trans-mite algo de mágico e doloroso ao mesmo tempo.

O filme é também uma alegoria com o próprio cinema que esta en-trando no seu fim, mas que resiste enquanto utopia. Em dois mo-mentos precisos, o personagem Bruno encontra pessoas que refle-tem sobre o sentido do cinema no mundo de hoje. Se vale ou não a pena continuar exibindo filmes ou se não seria melhor abandonar o trabalho com a arte cinematográ-fica. E assim, relacionamos a vida ao cinema. Os principais filmes de Wim Wenders nos passam a ideia de que o sentido p ara uma

vida é uma construção feita por nós mesmos com a ajuda da arte. A dimensão radical do imaginário nos faz avançar num “road-movie” particular que é vivido por todos, mesmo que inconsciente. Como nos informa o poeta compositor Walter Franco: “viver é afinar o ins-trumento. De dentro pra fora, de fora pra dentro”. Serviria de epí-grafe para este filme magistral de Wenders.

*Romero Venâncio é professor de Filosofia da UFS.

Memória Márcia Fontes*

JOÃO DO RIO: CONVITE A UMA SOCIOLOGIA DAS ENTRANHAS

“A rua sente nos nervos essa miséria da criação, e por isso é a mais igualitária,a mais socialista,

a mais niveladora das obras humanas.”João do Rio

Que Jornalista, cronista, contista, teatrólogo, carioca, gay, desden-hoso das vaidades estabelecidas pelos “literatos” de sua época, nas-cido em 5 de agosto de 1881, e fa-lecido prematuramente 39 anos de-pois, João do Rio (ou Paulo Barreto como o nomeou seus pais) é uma prova de quão tendenciosa e fútil tem sido tanto nossa cultura literária como nosso mercado editorial, e como, no viés do moralismo, só de-caímos. Num momento em que a sociedade tenta mentir sua caretice com um falso e pobre erotismo em tons de cinza, e de uma “limpeza à força” dos drogados, a leitura de A Alma Encantadora das Ruas, nos introduz num passeio pelas vielas, pela vida “rueira”: “agasalhadora da miséria”.

Pelo seu olhar curioso e cínico so-bre a atuação de personagens belos em sua naturalização, mundanos,

vagabundos, conhecemos grandes histórias construídas na clandesti-nidade, nos esgotos das periferias, nos cortiços, enfim, nas entran- has das cidades onde ‘’os corpos movem-se como as larvas de um pesadelo’’. João do Rio dá vida a uma espécie de sociologia das en-tranhas, cuja pesquisa é o adentrar-se pelo âmago das cidades, pela histeria permanente das ruas e de seus atores: depravados, artistas anônimos – nos quais “encontrarás a confusão da populaça, os germes de todos os gêneros, todas as es-colas e, por fim, muito menos vaid-ade que na arte privilegiada” –; as mendigas do luxo – “eternas fulani-tas da vaidade, sempre com a am-bição enganadora de poder gozar as joias, as plumas, as rendas, as flores [...] arfa-lhes o peito e têm as mãos frias com a ideia desse luxo corrosivo” –; escravos, religiosos – “conduzidos por caminhos que são despenhadeiros às vezes e cam-pos de risos raramente, [...] chora, ergue os olhos para o azul do céu, a menor das suas ilusões povoa-o

Imagens: Google (No Decurso do Tempo / Dir. Wim Wenders)

de forças invisíveis e fala, e pede, e suplica. Que importa que diga tolices ou frases lapidares, horrores ou pensamentos suaves? É preciso remediar a fatalidade. E é por isso que enquanto existir na terra um farrapo de humanidade, esse far-rapo será um moinho de orações” –; sádicos, jogadores, coristas, pu-tas, desempregados opiômanos – “Grande parte desses pobres entes fora atirada ali, no esconderijo daquele covil, pela falta de fortuna. Para se livrar da polícia, dormiam sem ar, sufocados, na mais repug-nante promiscuidade. E eu, o adido, o bacharel, o delegado amável es-távamos a gozar dessa gente o do-loroso espetáculo! – ; barões, con-

des, atrizes, mendigos, políticos, charlatães, damas da recém-insta-lada república, enfim, o conjunto criado “fatalmente pelas ruas” que dá corpo ao “sistema social podre”.

Seu método, empirista, anárquico e debochado, é flanar: “Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser bas-baque e comentar, ter o vírus da ob-servação ligado ao da vadiagem”. É evidente que os pobres moralistas tinham dificuldades para supor-tar um sujeito que, além do talento inegável, seguia afirmando: “Toda a vida é luxúria. Sentir é gozar, e gozar é sentir até o espasmo. Nós todos vivemos na alucinação de gozar, de fundir desejos, na raiva de possuir. É uma doença? Talvez. Mas é também verdade. Basta que vejamos o povo para ver o cio que ruge, um cio vago, impalpável, ex-asperante”. Ou que, pela boca de um troteiro carnavalesco afirma ci-nicamente: “Eu adoro o horror. É a única feição verdadeira da humani-dade. E por isso adoro os cordões, a vida paroxismada, todos os senti-mentos tendidos, todas as cóleras a rebentar, todas as ternuras ávidas de torturas”.

* Márcia Fontes é mestre em Filosofia pela UNICAMP.

Arte e Mercado Ana Monique Moura*

DADAÍSMO E CULTURA DE MERCADO

Dadaísmo, uma ode ao nonsense, o oposto ao significado da arte burguesa, aquilo que está livre e, portanto, solto da tradição da arte, é, ao mesmo tempo, nada, porque DADA É NADA. Mas, o Dadaísmo, mesmo assim, revela um sen-tido muito perigoso e charmoso ao mes-mo tempo, o sentido do fragmento. Mas, ao contrário do que muitos pensam, no Dadaísmo o fragmento deixa de ser algo solto, porque vira, ao ser necessitado, uma raiz. Ademais, quando Tristan Tzara, em seu Manifesto Dadaísta, invoca as artes para que desçam à terra do cotidi-ano, isto significa, em termos mais sim-ples, que se trata de um retirar a arte do alto intangível e trazê-la metaforicamente para o nosso chão. Com o dadaísmo e, dentro dele, com a crítica aos mecanis-mos da burguesia cultural, a arte deixava sua auréola nobre para imiscuir-se na lama sagrada do cotidiano. Mas, na me-dida em que o Dadaísmo realizou essa empreitada, só reafirmou, ainda mais, o lugar da arte burguesa no seu céu partic-ular, isto porque ao passo que a negava, a excluía e a afastava ainda mais para este lugar negado.

O fragmento não estava mais solto. Es-tava colado e difundido. Deixou de ser superfície para ser regra. O sentido de improvisação do fragmento como acaso passou então a ser meramente progra-mado por uma atitude ideológica. O que

se obtém no Dadaísmo era inesperado, mas o inesperado, precisamos ser fran-cos, era forçado a acontecer previa-mente.

O Dadaísmo provoca com mais força a cisão entre o que é arte e o que não é arte e, por meio da crítica à arte enquanto tradição, monta um espectro do passado para a referência às artes hegemônicas e traz o manifesto de um organismo daq-uilo que se propõe uma outra arte capaz de criticar todas as formas soberanas de artes. E aqui se revela o sentido de van-guarda, ou seja, aquilo que se coloca à frente. Mas é preciso lembrar que este colocar-se à frente é colocar-se contra algo que, aqui, é o passado, e estar con-tra o passado é virar-se a ele, isto signifi-ca, estar de frente para o passado, para assim combatê-lo. Neste sentido, uma vanguarda está, em verdade, de costas para o porvir. Sua atenção estar em av-aliar o passado e lançar as armas cara a cara a ele, afinal de contas, não é de costas que se vence o inimigo.

Negar uma arte que se propõe arte é dif-erente de negar como arte uma arte que já se reconhece como anti-arte. Em um sentido lógico, a negação da negação cairá na sua afirmação, e é o que não ocorre com o primeiro caso. Mas a ló-gica não é o que salva o que proponho. A lóg-ica aqui é apenas uma ilustração possív-

Imagem: Google (Raoul Hausmann, revista ‘Der Dada’, Nr. 2, Berlin 1919.)

el... O que vem a tornar talvez aceitável o que trago, não está meramente apoiado em um mero jogo lógico, mas é um dado histórico cuja carga de significado es-tético é inegável dentro do percurso do Dadaísmo no período pós-guerra.

A ideia de colagem de fragmentos desconexos exibe, na medida em que critica o consumismo, uma estética do próprio. E é nessa estética do consumo que o advento Kitsch ganha força, por sua vez. E assim também o trabalho comercial de Andy Warhol, herdeiro do Dadaísmo, embora não prontamente um Dadaísta completo, um artista que, por mais que tenha se dedicado a expandir os princípios estadunidenses numa arte que se intitulava de vanguarda, é consid-erado um grande artista revolucionário.

Não há, por fim, nada desconexo, está tudo colado e fixo, todas as diferenças dançando entre si. Esse dado é a ex-pressão cabal da política de mercado

neoliberal. Aqui, e roubo as palavras de Tzara, “todo mundo faz sua arte à sua maneira” e, acrescento, o mercado at-inge a todos.

Sem o Dadaísmo o que seria do Kitsch no mercado? E o que é o Kitsch senão o atual produtor de consumo, não só da massas, mas também da cultura de-nominada cult? Não quero fazer uma abordagem continuísta, mas prefiro deixar claro: o Dadaísmo está vivo nas expressões atuais da arte de mercado. A cultura do mercado do Kitsch se nutriu do Dadaísmo, pois foi aqui que ele bus-cou o sentido da arte como degradação da própria arte (uma expressão utiliza-da por Gillo Dorfles), e tal degradação não é identidade, portanto, apenas do Kitsch. Esta verdade deve ser dita e ja-mais esquecida. O Dadaísmo nega o consumismo na exibição do universo consumista, que será, por fim, tomada como admirável. A diferença única en-tre o Dadaísmo e o Kitsch é que o pri-meiro não almejava disarçar-se como as grandes e tradicionais obras, ao passo que o Kitsch beira um cinismo ta-manho que não apenas imita, mas tenta mostrar-se, por ser acessível, melhor, por trazer as diferenças fragmentári-as dadaístas e sem sentido com ele.

Sabemos que o Kitsch adveio do Dadaísmo. Mas acrescento que o Kitsch é o excesso do DADA, aquilo que abriga tudo e que, no fim, não serve para nada. Ademais, o que é o Kitsch senão um produto que se faz arte negando a arte? A diferença entre o Kitsch e o DADA é que o Kitsch se mostra declaradamente

como algo mercadológico, cuja necessi-dade é criada mesmo que seja algo in-útil. E aqui é que surge o que podería-mos chamar, numa fraseologia marxiana (para, propositalmente, não dizer mar-xista), de “fetichismo da mercadoria”.

Neste caso, como a arte pretende ser arte, contudo, negando a arte, e ainda, dentro num elogio declarado à propagan-da e à publicidade? Tzara mencionava no seu manifesto que “a propaganda e os negócios são também poéticos”. Estaria este tipo de arte em vias de ser arte ou sua destruição? A própria arte manifesta se entregou ao consumo e à mercadoria. Neste caso, a transgressão do Dadaís-mo se revela como regressão e esta re-gressão não é negada, na medida em que eles concebem um posicionamento de assumir as contradições e, mesmo numa crítica à arte burguesa, revelar seu elogio velado a um capitalismo reiventável. A crítica parece estar, neste caso, em out-ros aspectos. O problema criticado pelo Dada é que toda e qualquer arte sirva à burguesia (basta lembrar a obra “O Críti-co de Arte” de Rauol Hausmann), mas isso não elimina a possibilidade de que uma arte que não sirva a uma burguesia não venha fazer parte dos elementos capitalistas. Seria muita ingenuidade crer nisso. Quando a arte vira mercadoria de acesso ao povo, ela passa a ser também mais capitalista, já que o consumo será proposto a toda e qualquer classe.

O que tornou, por outro lado, o Dadaís-mo um arauto de muitos intelectuais que se posicionaram contra a cultura de mercado? Com toda certeza foi o modo

vanguardista de se propor no meio das nuvens fascistas da época. Em dados reais, o Dadaísmo é uma expressão de uma anarquia, mas jamais, por fim, uma expressão de anarquia clássica. O méri-to, por outro lado, do Dadaísmo, foi ter vislumbrado que, mesmo com a crítica à arte burguesa, suas obras não conseg-uiriam fugir das relações mercadológicas.

Vejamos. Pergunto aos incautos entusia-stas das artes atuais, o que Andy Warhol, contribuiu em terreno de arte para o sig-nificado politizado da arte? Não há sen-tido politizado de arte em Warhol, mas um sentido mercadológico. E ouso dizer também, o Dadaísmo não alça fôlego no sentido de esquerda porque suas propos-tas culminam por estratificar ideais para uma expansão de mercado pluralista do liberalismo, um termo até melhor do que capitalismo para falar sobre isso.

Foi o que fez Andy Warhol, que não ape-nas propagou a cultura de arte estaduni-dense do entretenimento acefálico como defendeu o ideal de artista como um ne-gociador, um comerciante de sua arte. Quando Andy Warhol profere “eu sou um artista comercial”, isso, para além do que se poderia entender como ironia à cultura de mercado, é uma defesa, um manifesto declarado do artista comercial. A imagem do artista vale tanto quanto sua arte. Não é mais, com foi até no fim do século XIX, a ideia estética de um gênio cuja obra merecia apreciação, mas a imagem de um artista, que provoca certa expressivi-dade e apelo ao reconhecimento de sua obra. O próprio artista se torna produto, mercadoria.

É possível perceber isso no próprio Andy Warhol, nas performances de Duchamp, no rosto de Joseph Breyus e aqui no Brasil em Paulo Leminski, cujo signifi-cado de sua fisionomia, diga-se de pas-sagem, foi posto em tema de maneira brilhante por Marcos Pache em seu texto intitulado “Faltou apenas os óculos e o bigode” no Jornal Rascunho. O artista se torna também produto. Elabora sua auto performance em pró de sua obra, que se faz quase, senão completamente, unívo-ca com ele.

Mas, em que certo sentido pode-se di-zer que, ainda assim, Tristan Tzara pode ser tomado como artista de esquerda? Respondo, por uma via simples e clara: A crítica que Tzara realizou se opôs ao modo de realização de arte tipicamente burguesa. Na crítica à burguesia reside a presença de um esquerdismo, é ine-vitável.

Dentro do universo do fetichismo da mer-cadoria nos chega a possibilidade firma-da do consumo passivo da arte, uma lás-tima contemporânea. O filósofo francês Bernard Stiegler comentou, em entre-vista à Folha de São Paulo (Sexta-feira, 27 de Maio de 2011), que deveríamos diante dessa apreciação estética inexis-tente pararmos de consumir os produtos que se propõe como arte no mercado, ou seja, nos desintoxicar do consumismo cultural, e retornarmos à uma experiência mais autêntica com a arte. Trata-se de sairmos praticamente de algo que Walter Benjamin veio a chamar de “pobreza da experiência”, que nada mais é do que a experiência individualizada do consumo

na cultura do mercado. A proposta de Stiegler parece desesperada, mas provo-ca um certo sentido, já que a apreciação estética da arte vem sendo substituída pelo consumo de uma mercadoria que nega os fins da arte, que não é outro que não o de ser, apenas e tão somente, arte. Esta ideia é um tanto romântica, mas, assim parece, é a que se mantém mais política.

O Dadaísmo invoca o fragmento e, ao torná-lo regra, também se dá rusti-camente fragmentária a experiência estética com a arte. Então, pergunto, parece um bom acréscimo ao que eu digo a ideia que Bernard Stiegler nos propõe? Deixarmos de consumir arte?! Abandonarmos os corolários cínicos de um movimento que surgiu para negar a direita burguesa? Não seria uma pos-tura também dadaísta? Dadaísta talvez não seria, porque a proposta de Stiegler implica em um retorno à apreciação es-tética efetiva da arte, coisa negada pe-los dadaístas, mas de certa forma, se-ria uma postura anarquista clássica já dada por Kropotkin, a da arte. Embora exerça o papel de Anarquismo em mui-tas circunstâncias, o Dadaísmo não foi nem é tão anarquista assim, como mui-tos poderiam gostar de pensar.

Ana Monique Moura é doutoranda em Filosofia pela UFPB.

Mídia Beano Regenhaux*

ANARCOCAPITALISMO, BISBILHOTEIRISMO E A IMPLANTAÇÃO PERVERSA DO PRIVADO NO PÚBLICO

O que o direito ao humor politicamente incorreto midiático, o exercício arbitrário das opiniões dos formadores de opinião, a partir do privilégio da concessão pú-blica, a noção neoliberal de liberdade de expressão, a constituição/profusão de identidades LGBTT e do “armário” – e o questionamento de voluntariedade so-bre estas identidades –, têm em comum?

Simples, como explicado pela filósofa Mar-ilena Chauí: a confusão entre espaço públi-co - tomo como referência aqui a acepção de Habermas - e privado com a extinção do MARCO REGULATÓRIO que existe entre eles. Sendo inerentes, de acordo com os critérios já estabelecidos sobre o exercício democrático, a tal interstício, a possibili-dade de garantia de direitos civis, cidada-nia e oferecimento das mesmas condições de acesso dos sujeitos, aos benefícios, di-reitos e deveres propostos pelos poderes executivo, jurídico e legislativo, então por que persiste a insistência midiática na co-bertura de “achismos” de formadores de opinião, reificando-os como representativos do domínio público? Este é o efeito desen-cadeado pelos próprios privilégios concedi-dos à iniciativa privada de publicizar seus interesses, em detrimento das posições da maioria esmagadora da população que os acata e até mesmo incorpora? Qual a ne-cessidade de se ter uma noção de armário em relação à identidade do sujeito reduzida aos seus desejos sexuais, como uma im-plantação perversa, acusada por Foucault,

de uma etiqueta sobre a integridade do ser /sujeito e de se ter a publicização de de-talhamentos das especificidades a partir de “visibilidades’’ resultantes de acréscimos e pulverizações do corpus/gueto LGBTT…, a despeito da já pressuposta diversidade se-xual? A noção de necessidade de inquérito/ confissão e fundação de uma figura social incompatível com uma privada, explica tal fato?

A iniciativa privada, as formulações anarco-capitalistas esquecem que qualquer postu-ra de negação de uma organização estatal é inviabilizada inclusive pelo próprio liberal-ismo, pela própria tentativa de não partici-pação governamental, pois o próprio lais-sez faire é uma atitude endossada pelo Estado - pelos setores que detém o poder e que o formam – e, ao mesmo tempo, é uma garantia de dominação sobre o restante das camadas sociais. Não há qualquer possibilidade de separação entre a for-mação de uma sociedade e uma organiza-ção do poder que administra os meios de produção e distribui seus recursos. A tutela do Estado, menor ou maior, é inexorável. O que resta, idealisticamente, é a garantia do que é consensualmente entendido como democrático, seus valores, a disponibiliza-ção das mesmas condições de participação política e acesso aos recursos dos ci-dadãos, e não uma centralização do poder que coincida com cerceamento dos recur-sos e oficialização simbólica de posturas discricionárias ou legitimação do unilateral.

Em relação ao que é entendido como im-parcialidade e neutralidade midiática, a emissão de juízos por jornalistas em jornais na televisão e veiculação clara de prefer-ências por partidos políticos e motivações ideológico-religiosas deveria ser acompan-hada da identificação do viés especificado, em tais veículos, o que, portanto, não anu-laria a afirmação de imparcialidade, pois, a imprensa aí estaria identificando ao leitor seus critérios e tendências, e não elegen-do-as como representativas do geral.

Como efeito da eliminação da distinção en-tre espaço público e privado, da inserção da iniciativa privada como supressora do interesse comum, percebe-se – se é ou não é uma arquitetura perversa do poder ou conspiração não faz importância –, que

a eleição do arbitrário particular (dos sen-timentos, “achismos” e detalhes da vida conjugal) permite a manipulação pelos veículos de informação e pelos interesses das classes dominantes na sociedade, e o consequente deslocamento do que real-mente deveria ser o motivo de regulação e expressão no espaço público: a garantia da privacidade dos sujeitos, de bem estar, res-peito pelas particularidades.

No tocante à “ditadura do politicamente correto”, ao exercício irrestrito da atividade humorística, cabe salientar, novamente, a estratégia de deslocamento das preo-cupações do espaço público para a garan-tia dos mimos dos formadores de opinião e “profissionais’’ do entretenimento, em sua usurpação da distinção entre público/privado e achismo/pensamento. Quanto à legislação, promoção e medidas correcion-ais direcionadas ao público LGBTT…, não interessa para o meio jurídico a especiali-zação e nomeação das posturas/naturezas sexuais dos sujeitos, mas sim o estabeleci-mento de critérios para garantir a tutela es-tatal do indivíduo, neste caso, no que tange à garantia legal da integridade humana e do que chamo Formas de Conjugalidades Consentidas entre Adultos (FCCA), absor-vendo a visibilidade e as particularidades dos sujeitos, como dado tácito da diver-sidade sexual. A formação de critérios ju-rídicos que identificam as FCCA, muito provavelmente, desencadearia o fim da ne-cessidade de “armários”, confissões, rótu-los e promoveria a garantia da privacidade dos sujeitos, sem a imiscuição dos juízos religiosos, machistas, em processos civis.

Beano Regenhaux é mestrando em Antropologia pela UFPB.

Imagem: Google (autor não identificado)

Leitura Jomar Ricardo da Silva*

A UNIVERSIDADE E A CULTURA POPULAR: “O MARTÍRIO DOS VIVENTES” DE PAULO CAVALCANTE

Paulo Cavalcante escreveu O Martírio dos-Viventes. São suas experiências vividas durante a seca de 1992/1993. Trata de uma narrativa que conta os dilemas de persona-gens em convívio com a seca. O autor é professor de História formado pela Uni-versidade Estadual da Paraíba. Resolveu escrever um livro, mas não deixou de lado a cultura de onde proveio. Retrata a vida e a desventura de Zé Mocó e sua família, com a fala cotidiana. Com isso questiona-mos as mudanças que a instrução superior pode acarretar na forma de pensar, sentir e agir do egresso de um curso superior em relação a sua realidade. Quais os conheci-mentos adquiridos por um viés científico que o levam a rejeitar/reincorporar sua an-terior visão de mundo, denominada de sen-so comum? No caso de Paulo Cavalcante, foi um contexto de penúria e sofrimento de setores sociais que, durante séculos, viveram desassistidos pelos poderes públi-cos e obrigados a ficarem dependentes das favoráveis flutuações climáticas, em uma palavra, da chuva.

Nessa perspectiva nos valemos dos el-ementos contidos na concepção de “cul-tura popular” que, segundo Roger Chartier, supõe para seu entendimento, situar o es-paço de enfrentamentos em que se locali-zam “as relações que unem dois conjuntos de dispositivos: de um lado, os mecanismos da dominação simbólica, cujo objetivo é tor-nar aceitáveis, pelos próprios dominados, as representações e os modos de consumo

que, precisamente, qualificam (ou antes desqualificam) sua cultura como inferior e ilegítima, e, de outro lado, as lógicas espe-cíficas em funcionamento nos usos e nos modos de apropriação do que é imposto.”

Na correlação de força entre a cultura de elite e a cultura popular, a distinção passa a ser necessária para a depreciação do que é popular como sendo desprezível, inferior, de mau gosto; e a exaltação do que é erudi-to como sendo apreciável, nobre e de bom gosto. Essa diferenciação é consequência de lutas sociais que demarcam previamente os espaços e usufrutos dos bens simbóli-cos. Enquanto práticas culturais objetivam afirmar no embate “sua classificação, sua hierarquização, sua consagração (ou, ao contrário, sua desqualificação).”

Por outro lado, Paulo Cavalcante fura o cerco da estratégia social de dominação que impõe a lógica de apropriação e com esforço próprio faz funcioná-la em seu fa-vor, quando escrever e lançar um livro eram quase improváveis. É através da narração dele que se acessa aos códigos de con-hecimento, de crença e de práticas utiliza-das para sobrevivência em uma ambiente hostil.

Peter Burke, ao analisar variedade da cul-tura popular camponesa do século XIX na Europa, testifica essas diferenças de habi-tat: “Se a cultura surge de todo modo de vida, é de se esperar que a cultura cam-

ponesa varie segundo dif-erenças ecológicas, além das sociais; diferenças no ambiente físico implicam diferenças na cultura ma-terial e estimulam também diferentes atitudes”. As características físicas da região determinam em sua variedade, uma produção de formas de pensar e lidar com a realidade em volta dos indivíduos. Essa pode ser exemplifi-cada com o contexto de Zé Mocó que vivia numa “economia baseada quase exclusivamente em técnicas primitivas do mato e uma agricultura tradicional.” (p.77).

Tal afirmação é proveniente do conheci-mento universitário de orientação estru-turalista, em que as bases da formação so-cial estão assentadas em modelo teórico, em que os fatores econômicos adquirem dinamismo através das contradições entre as forças produtivas e relações sociais de produção. Esta última vem por meio da as-censão social do protagonista, que depois de muito esforço e anos de trabalho, ad-quire seu quinhão de terra. Todavia, em vez de alcançar a sua liberdade como pequeno proprietário, sua condição o põe na con-dição de trabalhador livre, ao ser explorado pelo latifundiário em sua força de trabalho e de sua família, na construção de cercas nas propriedades alheias.

Por sua vez o espaço de reprodução, situ-ado na superestrutura, é ocupado pela re-ligião católica, que através do padre, em um sermão, numa missa de Natal, realiza a função de apaziguador das tensões la-tentes entre opressores e oprimidos: “Mos-

trando o menino Jesus na manjedoura, nascido em uma região tão seca e sofrida quanto aquela, tentava convencer aquele povo de que o sofrimento às vezes, era normal e até necessário para disciplinar o corpo e purificar a alma.” As relações políti-cas ocupam outra dimensão da mesma realidade de dominação em que a subju-gação dos dominados faz-se pela utilização do voto, por parte dos necessitados e de sua compra pelos políticos: “tirado o título de eleitor e votado nas últimas eleições, era um excluído, parecia um ser inexistente” (p.83).

O livro, à medida que descreve situações de morte, emigração e fome, em razão do conhecimento fomentado em bancos uni-versitários, sugere o nível de consciência do autor. Paulo Cavalcante, por diversas opor-tunidades, reporta-se ao termo exclusão para designar a opressão social vivida pela família que se retirou para a cidade: “tendo como companheiros cães, ratos e urubus animais que como eles eram indesejados, discriminados e excluídos” (p.81).

Imagem: Google (da mostra Siempre di Nunca, de Alejandro Magallanes)

Somos conhecedores da exclusão com a própria vida, mas a escola, instituição re-produtora de uma ordem dominante, con-cedendo-nos a ilusão de ascensão social, ao emitir o diploma de curso superior, ter-mina sendo mais um fator de exclusão. Na reflexão de Pierre Bourdieu: “Como sem-pre, a escola exclui; mas a partir de agora, exclui de maneira contínua, em todos os níveis [...] e mantém em seu seio aqueles que exclui, contentando-se em relegá-los para os ramos mais ou menos desvalori-zados.” A universidade brasileira exclui at-ravés da diferenciação de cursos.

O destino do candidato foi previamente im-posto pelas suas condições socioeconômi-cas; se estudou em escola pública, terá enormes dificuldades de concorrer com outros que frequentaram escolas de ensino fundamental e médio privadas. Seu ambi-ente familiar não o proveu de condições culturais para assimilar conteúdos cogni-tivos exigidos nos processos de aprendiza-gem dentro dos padrões que a escola ex-ige. Durante o período escolar, o indivíduo vai apenas certificar-se de seus limites e desse modo a escola cumpre a função de legitimadora das desigualdades sociais, em que o aluno pobre vai atribuir a si mesmo a responsabilidade de fracasso escolar.

Se chegamos a reconhecer elementos da cultura universitária no livro Martírio dos viventes, percebemos que outros valores não foram introjetados, talvez pelo fato do referido autor, ao adentrar a universidade não era seu portador. Falamos de uma von-tade de poder expressa por nossos alunos e acentuada em nossos mestres, em com-portamentos de arrogância, competitivi-dade e orgulho. Essas atitudes são meios de oprimir que começam em surdina, pen-

etram as estruturas através de normas e vão ao encontro das máquinas do desejo, na expressão de Felix Guattari. Para ele, a “química totalitária trabalha as estruturas do Estado, as estruturas políticas e sindic-ais, as estruturas institucionais e familiais, e até as estruturas individuais, na mesma medida em que se pode falar, como o evo-camos antes, numa espécie de fascismo do superego na culpabilidade e na neurose”.

Por isso, o livro de Paulo Cavalcante deve ser recepcionado com louvores por repre-sentar a relação política ente cultura popular e universidade imune às transversalidades sociais de poder fascista. É mais oportuno por trazer uma realidade que a maioria das pessoas conhece apenas pelas notícias de jornais e imagens da televisão. Também importante por estarmos num momento em que se agudiza a luta pela imposição dos interesses de classe no País e quando, nesses últimos anos, o governo tem pa-trocinado as manifestações populares com uma política de resgate e valorização da cultura subalterna.

CAVALCANTE, P. O martírio dos viventes. João Pessoa: Editora UFPB, 2005.

Jomar Ricardo Silva é sociólogo e professor da UEPB.

Crítica Roberto Bandeira*

“TERRA EM TRANSE”

Depois de assistirmos o novo filme de Glauber Rocha duas vezes, chegamos a uma conclusão não muito satisfatória. Como dissemos anterior-mente, “Terra em Transe” é um filme com altos e baixos, mas uma decepção para todos os que vi-ram e aplaudiram “Deus e o Diabo na Terra do Sol”.

Depois de um regular “Barravento” e do exce-lente “Deus e Diabo na Terra do Sol” era natu-ral que todos esperássemos uma obra ainda melhor, um amadurecimento completo de um diretor que era colocado precipitadamente nas alturas pela maioria da crítica. Aliás, este é o mal da crítica: assim que aparece um filme de qualidades acima da média, seu diretor, seus intérpretes e o resto da equipe são cha-mados de “Gênios”, “e melhor que se fez até hoje”, etc. Nós estamos entre os que consi-deram o segundo filme de Glauber uma obra importante (não uma obra-prima), mas nem por isso vamos agora dizer que Glauber é um gênio. Talvez as próprias críticas ao diretor e ao filme tenham sido as culpadas do meio-fra-casso que é “Terra em Transe”. (A impressão que temos é que ele se julga um segundo Or-son Welles). O resultado é um filme confuso, pedante e artificial com boas cenas de cinema (o início, a campanha política e a posse de José Lewgoy, etc) e outras atingindo o ridículo (como quase todas em que aparece Paulo Autran).

O filme, com ação em Eldorado (por que isto? A falsidade do filme começa aqui) parece que foi buscar inspiração no citado Orson Welles de “Cidadão Kane” havendo ainda influências de outros cineastas importantes. Não somos con-tra as “influências” desde que haja certa auten-ticidade (como no caso da maioria dos filmes de Walter Khouri) mas G. R. foi longe demais. O sim-bolismo exagerado, planos afetados, imagens

confusas, tudo que em “Deus e o Diabo na Terra do Sol” tinha razão de ser, aqui não funciona.

Dos intérpretes, apenas José Lewgoy e Glauce Rocha conseguem sair ilesos de uma de-clamação geral. Lewgoy, tem em “Terra em Transe” seus melhor desempenho no cinema, no líder “Felipe Vieira”. Glauce Rocha atua com sua classe de sempre, tentanto dar convicção a um papel ingrato. Apenas de deslocada, a atriz tem ótimos momentos. Jardel Filho, quase sempre um bom ator, aparece em atuação frus-trada e mesmo ridícula. O ator não convence nem como poeta nem como idealista. Também Paulo Autran e Paulo Gracindo tem atuações desastrosas. Danuza Leão, que não diz uma linha, pouco tem a fazer. Comparecem ainda Jofre Soares (grande ator desperdiçado), Fran-cisco Milani, Echio Reis, Emanuel Cavalcanti e outros. Boa a fotografia de Luiz Carlos Barreto e Dib Ricardo com altos e baixos como o filme.

Conclusão: “Terra em Transe” é obra que apesar de decepcionante, merece ser vista e discutida pelo que se interessam pelo nosso cinema. É tecnicamente bem feita, mas desconcertante como filme de Glauber Rocha que desperdiça assim um tema fascinante.

Roberto Bandeira é crítico de cinema. (Crítica extraída da obra “Mini-críticas

de cinema”, Belém - PA, 1984.)

Imagem: Google (da película Terra em Transe, Dr. Glauber Rocha)

Nação JaguaribeA CIDADE COMO UNIVERSIDADE

Um dia, João Pessoa se viu cidade, amorosa e conquistada, pássaro-perplexo, passado/presente e futuro às margens do rio da vida, deixando atrás de si um rastro de sangue e poesia, progresso e miséria, em suas popu-lações a ver navios e discos voadores, pelo que tanto olham o horizonte. O horizonte bem perto, formando um “L” a partir do Porto do Capim, sentido praia e, depois, sentido Jag-uaribe, bem dentro da Mata Atlântica e seu riacho de onças bebendo água. Foi para o lado sul que João Pessoa pôde ser a “Univer-sidade Popular” em que seus artistas se for-maram: de Livardo Alves aos Piratas de Jag-uaribe, do Jaguaribe Carne a Unhandeijara Lisboa, de Sílvio Osias ao Fala Jaguaribe, passando por Carlos Aranha e Walter Galvão, Creusa Pires e Adeildo Vieira, Lúcio Lins e Os Quatro Loucos, Fuba e Ricardo Coutinho, de Gustavo Moura a Escola de Samba Última Hora.

E quantos e tantos se revelaram para o mun-do da “cidade-trampolim”, futuro que veria nascer de suas entranhas um projeto humano de capital aberta, gerando olhares índios, ne-gros e brancos de além Atlântico, para nunca mais voltar, e estando na luta pela sua digni-dade o tempo inteiro, sendo bem certo esse novo caminho a partir de suas águas doces e salgadas, águas do Rio Sanhauá, Rio Pa-rahyba, Rio Jaguaribe, rios da vida e da sorte a céu aberto.

Para mim, a experiência de nascer e viver em Jaguaribe é, ao mesmo tempo, um grande ponto de exclamação, de interrogação e de mutação cultural, base de lançamentos de tantos projetos de arte, cultura, educação e

cidadania, comunitários e humanistas, em que se assenta todo um interesse de “Ilu-minação Pública Intelectual”, por onde entro e saio, indo e vindo, livremente, como um menino que cresceu, virou filho, irmão, namo-rado, marido, pai, avô e continua menino, in-definidamente, como que a desafiar vivências e compreensões que o próprio corpo urbano, suburbano e rural não conhece direito, sob o movimento eterno das ondas do mar desse litoral em que tanto coco de roda, ciranda, caboclinhos e sambas já se dançou. O que Mário de Andrade pode ter visto e pensado ao ver as palhas dos coqueiros da nossa “modernidade de pé no chão” balançar nas ondas de um mar que nos levou sempre para o infinito?

Essa é a energia caleidoscópica ainda emer-gente que o bairro de Jaguaribe tem por ess-es dias em que a modernidade se renova por seus artistas e em que me encontro e me sin-to bem à vontade, enquanto “fala” e “corpo” de um projeto/processo que grita um outro pensar e agir mais aberto e mais abrangente, para que novas etapas de seu crescimento sejam libertas das mãos dos acasos e ocasos necessários, de uma evolução a seguir.

E por onde Jaguaribe cresceu nos últimos 50 anos? Pela Escola Industrial? Pelo Estrela do Mar? Pela Igreja do Rosário? Em sua vo-cação como área de hospitais, maternidades e grandes postos de saúde?

Sou de um tempo em que o bairro tinha e tem grande parte de sua população sobrevivendo, tendo como base um perigoso e provocador cinturão de favelas, apesar da existência do

Pedro Osmar*Wênio Pinheiro*

Silvio Osias*

Centro Administrativo Estadual, da CAGEPA, do CEFET, do DETRAN, do Tribunal de Con-tas, do IPM e da Casa da Cidadania: contraste experimental de uma democracia desumana e burguesa, que insiste em se fazer mulher de todos, em que ricos e pobres vivem a pas-tar, como hienas, nos jardins de cada casa desse elegante bairro da capital paraibana.

Antes de conhecer televisão na minha infân-cia, eu conheci os cinemas do bairro, vivendo a felicidade de uma formação cultural de rua de uma época em que todos estávamos nas ruas e praças, em que todos exercitávamos uma cidadania cultural sadia que realmente nos forçava a aprender que a riqueza da vida não se limita aos passeios e compras em shoppings travadores de muitos processos de democratização, fase final de uma inocência política que nos arrastou por seus tratores, barranco social abaixo. E como resposta, eu fui de uma geração assídua frequentadora dos cinemas do bairro, ainda hoje saudosos como salas de aulas: Cine São José, Cine Santo Antonio, Cine Jaguaribe e Cine Bela Vista (já na fronteira com o bairro de Cruz das Armas), onde aprendi informalmente tudo o que precisei saber para ser o artista multimí-dia que sou na atualidade.

Minha universidade de mundo foi sempre esta cidade (só depois é que eu viria a con-hecer São Paulo!); foi João Pessoa, foi Jag-uaribe, “em tudo e por todos”, “pulando muros e mundos” (como dizia Lúcio Lins), para che-gar aonde tantos chegaram criativamente, politizadamente: profissionais formados num processo de realidade cultural bastante en-riquecedor, emotivo e técnico, sério e com-penetrado. Com seus mestres, suas pessoas de bem, suas famílias gerando tantas pos-sibilidades em seu cruzamento e enraiza-mento amoroso. Professores como Metusael Dias (o nosso rei momo do carnaval da rua da Conceição); como Antônio Leite, o mes-tre “cachimbo eterno” do carnaval da Praça

Onze; como Martinho Laurentino, mestre do carnaval da Escola de Samba Última Hora; como Zumba e Humberto Coutinho, mestres do carnaval dos Piratas de Jaguaribe; como Zé Raimundo, mestre do carnaval da Escola de Samba Noel Rosa; como João Grande, mestre do carnaval dos Vinte e Cinco Bichos; Todos eles sendo fundamentais nas luzes que se acendem a cada domingo e terça-feira dos desfiles do carnaval tradição, até hoje.

A contribuição que o bairro de Jaguaribe deu e dá ao crescimento e desenvolvimento cul-tural da cidade de João Pessoa está mar-cada em suas ruas e na história de vida das famílias que deram suas vidas para que a parte que cabe ao bairro fosse exemplar. E felizmente essa história não começou apenas em 1954, ano em que nasci. E certamente haverá muito mais o que se contar e viver a partir das novas gerações, plantio de novos alicerces que plantarão novos pilares de uma vida melhor, para que “felicidade” não seja apenas uma palavra cantada nos blocos de carnaval da velha tradição de nossos pais e avós. Sou um homem feliz por ter nascido, vivido e criado os meus filhos neste bairro que sempre foi minha luz. E se puder, farei muito mais.

Esta é a história que eu vivi e tenho para contar.

*Pedro Osmar é artista multimídia.

Imagem: Gustavo Moura, do livro Nação Jaguaribe (Ed. LocalFoto, 2009).

JAGUARIBE

De intacto só restou o nome

Da onça só restou o Rio

Restaram idosas calçadas

Sob os pés de idosos cansados

Do concreto restou o silêncio

Da imponência restou o abandono

Aos moradores restou essa pressa

Dos veículos e do comércio

Que nervosos movem as semanas

Para a calma cansada dos domingos

Quando a torre da igreja do Rosário

Num estranho dobrar de sinos

Faz ecoar um passado já velho

E embala o sono de Chinelo.

Parahyba, 24/10/2008.Wênio Pinheiro é artista visual.

Imagem: Wênio Pinheiro, do livro Nação Jaguaribe (Ed. LocalFoto, 2009).

SAUDADE DE JAGUARIBE

Jaguaribe era o meu bairro. O Cine Santo Antônio, o meu Cinema Paradiso. Ficava na esquina da Vasco da Gama com a 1º de Maio. A sessão noturna começava às oito, mas, uma hora antes, os que moravam nas redondezas começavam a chegar. E ali, naquela pequena área em frente ao cinema, formavam-se os grupos. Uns falavam de futebol, outros, de política, de música, e mulheres. As-sistir ao filme nem sempre era essencial. A conversa, muitas vezes, era mais im-portante. A formação de alguns garotos do bairro passou pelas reuniões diante do Santo Antônio e também pela sala escura do cinema que pertenceu aos frades franciscanos e depois ao exibidor Luciano Wanderley.

Antes de fundar o Jaguaribe Carne, Pedro Osmar frequentava a frente do cinema. O poeta Águia Mendes também estava lá quase todas as noites. Ivan Cineminha, cinéfilo que o Brasil conheceu no progra-ma de Jô Soares, era outro que chegava em sua moto para assistir à sessão das oito. Gostava de exibir seus conhecimen-tos, mas o negócio dele era ver o filme em cartaz. Marcos Leão, morador do bairro, era um exímio contador de filmes. Lembrava-se de cada detalhe. Suas nar-rativas, de tão ricas, às vezes, eram mais extensas que o próprio filme. Seus con-hecimentos de História, raças, línguas, podiam transformar as quatro horas de “E o Vento Levou” em seis ou mais!

Jaguaribe es-tava represen-tado na frente do Cine Santo Antônio. As figuras do bair-ro, as pessoas anônimas, os artistas, os que jogavam futebol na Es-trela do Mar, os que estudavam na Es-cola Técnica, os que vinham da missa na Igreja do Rosário. A poucos metros dali, ainda na Vasco da Gama, morava Ge-raldo Carvalho, intelectual que recebia em sua casa os jovens interessados em cinema, em literatura. Um dia, ele exibiu “Menino de Engenho” numa tela impro-visada na parede, e o público aglomerou-se na calçada para ver o filme. Tal como veríamos, muitos anos mais tarde, em “Cinema Paradiso”.

Caminhando pela Vasco da Gama em direção ao Centro, havia o Bar Luzei-rinho, outro grande ponto de encontro do bairro. Entrando à direita, na Senador João Lyra, ficava (e ainda fica) a casa de Unhandeijara Lisboa, que promoveu, certa vez, o que ele chamou de Noite de Consolidação da Consciência Universal de Jaguaribe. Archidy Picado morava em frente ao Sagrada Família, o colégio das freiras. Lúcio Lins, na Aderbal Piragibe. Miguel dos Santos, perto da Escola Téc-

nica, diante da feira de todas as quartas. O Fala Jaguaribe nasceu na 12 de Outu-bro e depois foi para o Círculo Operário, o prédio onde funcionou o Cine São José.

Jaguaribe parecia-nos um lugar especial, com os carnavais na Avenida Conceição e na Praça 11, os Piratas da Floriano Pei-xoto e o som dos índios, que ouvíamos de longe. Com os encontros nas madru-gadas no Mundial Lanches e as noitadas na Festa do Rosário. Com o Centro Ad-ministrativo construído nos anos 1970 e o Cinema Educativo dirigido por João Córdula. Pessoas, ruas, lugares, even-tos - coisas que ficaram na memória de

quem viveu em Jaguaribe. Sempre que volto ao bairro, tenho a impressão de que ele empobreceu, de que suas casas en-velheceram, de que o lugar não é mais o mesmo.

*Silvio Osias é Jornalista.

Fotos e textos extraídos da obra “Nação Jaguaribe”, João Pessoa, FMC, 2009,

por Wênio Pinheiro e Gustavo Moura.

Imagem

: Wênio P

inheiro.

Imagem: Wênio Pinheiro.

Rua da Areia Frido Claudino*

CORES DA NOITERUA DA AREIA, JOÃO PESSOA, 2009.

Em todo mundo os distritos da luz vermelha são a medida de uma paisagem urbana tingi-da por um desejo que parece não ter fim. Seja na periferia, no centrão ou na cidade baixa cada distrito é a antologia da gente que percorre a noite desafiando esse mistério que se define sem a luz. Basta apenas um sentimento, para que esse sutil tome a liberdade de uma cor e ilumine por completo a forma. Só assim, a fotografia pode ser a acumulação ilimitada de cores cujos tons ora falam sobre a satisfação do ordinário ora escondem a ansiedade do prazer. E o desejo, que no sexo parecia simples, ganha uma matiz que se parte em dúvida e medo. O ritual da noite tem disso, seus jogos recebem a gente fustigada pelo dia com o presente da média, do som alto, da conversa dissimulada, dos risos largos, do azul sincero e da diversão barata. Um banquete de prazeres banais cujo sentido é apelar para todos os sentidos. Sua função é só uma, atestar que por trás de cada olho atiçado existe um mundo repleto de cores inchadas e desejos saturados. Esse ensaio é o inventário das cores que insistem na noite, meu prazer.

*Frido Claudino é fotógrafoe graduado em Sociologia.

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