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Sangria Desatada Shauara David

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Sangria Desatada

Shauara David

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Shauara David

Sangria Desatada

1° edição

Natal/RN Edição do Autor

2015

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Trecho de carta

“ Se nunca nasceste de ti mesmo, dolorosamente, na concepção de um poema... estás enganado: para os poetas não existe parto sem dor.”

Mário Quintana

“ A arte não é a reflexão da vida, mas a vida é a reflexão de um princípio transcendente com o qual a arte nos volta a pôr em contato”

Antonin Artaud.

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Apresentação

“A palavra sangria, de origem espanhola, significa sangramento, e desatada é o particípio do verbo desatar (des+atar), que significa libertar, soltar, desprender, livrar. Trocando em miúdos, sangria desatada é um sangramento descontrolado que exige cuidados imediatos. Quando falamos que uma coisa não é sangria desatada queremos dizer que ela não requer cuidados ou providências

urgentes.”

O fluir dos dias é exatamente o contínuo da vida: irrefreável, impalpável,

desprevenida, e igualmente surpreendente. Divagando pelo caminho, sem a limitação do tempo obrigatório, observei calmamente os fascínios e ruínas do imenso teatro social, e divino estado vital, na construção gradativa da maturidade. Tudo, absolutamente, faz parte do aprendizado. A passividade vem desse entendimento de mundo, além do profundo estado de contemplação diante a imponência e sabedoria da natureza, pois um estremecimento de respeito e deslumbre me resigna à humildade para encontrar as respostas e principalmente, viver no fluxo da forma mais proveitosa em todas as estações.

A convivência com pessoas próximas, e, não menos importante, com aquelas que não conheço fisicamente, mas a quem sinto no reencontro das lembranças perdidas, suas dúvidas, tédios, dias de glória e chumbo; tudo vem da própria contradição que trazem as circunstâncias. O tipo de relação compõe também a peculiaridade de cada um, construindo a página das histórias cruzadas, onde registro as sensações, amores e desencantos, menos pela necessidade de expressão que pela indispensável mania de compartilhar das emoções por onde vagueei.

Não há prazer sem dor; dois nomes diferentes apesar de não se dissociarem; é o senhor de nossas oscilações naturais de estado de espírito. O equilíbrio torna o caminho mais sereno, e na poesia refugiei a magia e a angústia da vida, coisas incompreensíveis do mundo, navegando junto à inevitável velhice e consequente iminência do fim dela. E fui caminhando, por tantas outras solidões, con(v)ersando com o céu, a lua, o mar, o sol, a chuva, as plantas... Uma interação diária que faz parte do meu universo de vivência e, claro, do processo de construção deste livro: É o sétimo e também meu prêmio, um mimo de liberdade, diário escrito do íntimo à posteridade.

As experiências do passado são sugadas pelo buraco negro do amanhã, fadado a nunca acontecer.

A autora.

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I Implorei tanto a Deus pela morte que um corpo estranho alojou-se no meu estômago e aos poucos vai cavando na dor, minha sepultura. A vida não sabia se convinha e, ao nascer, ela ainda vacilou se valeria a pena de uma frágil poeta mas meus olhos insistiram sem querer imitando a noite para enfatizar que, mesmo na escuridão, brilhariam. E sem querer já amava tanto a vida que o sentimento bruto e qualquer inunda-me inteira de forma que morta, é-me insuportável o mundo e a febre euforia torna eterna a experiência divina. Entre o cansaço e o deslumbre fui acomodando as ânsias e as tranquilidades na oscilação das luas, dos dias e dos hormônios presa na indecisão do que se cria; Fiquei devendo para sempre o equilíbrio aos fardos dos anos, às dádivas da vida. II Depois nunca mais deixei de ser etérea gostaria de simplificar meus anseios e desvanecer em harmonia mas festejo à tristeza que valha ao menos, pouca indignação; O tempo foi arruinado pela boa impressão da primeira palavra secreta e cada etapa é um susto desmotivando como dispersar a aflição sem porém, sofrer um corte profundo? Ah, se houvesse silêncio neste recinto!

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o caos não caberia além das janelas e as cores teriam sabores de novas frutas Mas claramente, ninguém se entende não há como sempre ser saudável depois de amar um doente. III Os lenços nos quais suspendo meu cabelo preto, mantêm a cabeça erguida na humildade singular de um pescador de descansos, em plena ausência de função nesse mar velejo sem glória experimentando salgar a vista e vestir-me de sargaços antes de afogar meu modo de versejar. Com certa urgência, sugiro que escondam meus dizeres atrás das prateleiras; não quero holofotes, aplausos me desconcertam minha consistência é subjetiva e não sou apta aos cargos do mundo dai que não abasteço sequer uma independência! se durmo sonho versos acordo e ainda assim os vejo colorindo o preto e branco do meu rumo, e pensar que tudo isso torna a vida insana... IV Algo de secreto inunda a percepção de ausência como será distinguir-se da carne de forma que o desejo transcenda o amor e o torne aquilo que deixa de ser? O sentimento imerso, sem registro anoiteceu roxo, em forma de cogumelo tornou todas as outras cores inúteis e emudeceu até mesmo os céticos, fantasmas são pensamentos que perambulam a mente sem convite

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Se me julgas forte, francamente! perceber além do que há aqui não é mérito, é constrangimento. V Em casa de família amada não acontecem surtos, só tédio a vontade de rasgar a garganta mantém a tortura psicológica de pluma. Assim seleciono o que ouço e o desiludo. Escolho naufragar nas lágrimas sem saber desapegar da dor. A minha infância não conhece recordações de amor. Cresci a margem que criei para me proteger de tudo que não entendia. O fardo me tornou tudo que sou. A amargura estava na boca de minha mãe no egoísmo de meu pai, uma solidão indecifrável e como o vento indiferente, fui guiada sem enraizar um pensamento maldito Andei pisando em vidros para o corte amenizar o grito. VI Há um imã que me atrai às pessoas que falam sozinhas; Criam e articulam a língua perfeitamente reconhecem a peça que lhes pregou o destino, e maldizem e angustiam depois riem com uma alegria mística escolhendo pão com manteiga e água fria com restos na mesa para saborear “os restos da mesa” da casa, da comida, da família de minha avó. Do outro lado da cidade, mesmo século outra mentalidade, em lar de avó materna me perguntava: Porque é que – tem que ser- sisudo o respeito?

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Em reuniões era proibido cantar ou rir durante as refeições será o silêncio mais nobre que a interação? ou a alegria é perigosa demais aos santos? a doida, na praça, fala sozinha porque não consegue mascarar suas verdades a santa, em casa, fala sozinha porque não há distinção. No cômodo de cada um reside, ancorada no peito, a solidão. VII Embora digam ver a mesma coisa a cada dia é diferente o céu! Ontem um arco íris coroava a lua fim da tarde revezam cores em espetáculo mini aurora boreal há sempre uma novidade no alto hoje haviam pássaros de nuvens; outros seres anuviados de longe sopraram no meu pescoço e juro ser uma observação saudosa meu lado mais horizontal se encurta na linha onde termina o mar é o cais em que o vento aporta? Ele intimida ou desconhece a profundidade? não tarda para que caia a chuva (como se virasse a página do dia antes da hora) esse clima me anima melancolicamente rima com a alegria da minha infância quando saltava para a rua, descalça a chutar a água brindava de bica em bica à companheira inesperada; agora é mais parecido com aconchego certo encontro com o pensamento uma surdez de chumbo torna a solidez mais flutuante, volta tudo novo, nascido ali na poça do asfalto, na telha, no casco e os móveis (velhos), rígidos, deixam de fazer sentido.

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VIII O instinto é tão condenável quanto o pulso e os bichos não se preocupam com isso as vacas andam com sinos mas não exaltam o passado (com saudade) nem planejam o futuro, demasiado tarde compõe algumas histórias; bem sabes, cantada pelos grilos, sorrateiras formigas aparecem para anunciar a chuva as rãs buscam refúgio na umidade os felinos têm fortes personalidades, que pensam as sardinhas? as seriemas? queria ser uma água viva fosforescente um dragão de komodo, ou bicho pau sem vitimar as próprias vontades e nessa febre inalterada, uma lucidez estranhamente completa um amor infantil e verdadeiro como se a vida se bastasse num instante. mas a idealização é bisbilhoteira e o tempo que se consome nós poluímos com vitrines e novelas; Não me importam as coisas banais tudo é inútil, apenas não a comunhão de ser parte de um todo intransponível. Não dá para escorar no tempo, já que ele é líquido. O futuro não existe, visto que ainda não houve. E assim seguimos a observar o nada esse fluxo contínuo... IX Tantos picos e buracos para nascer e vim logo despontar na cidade do sol; o calor toma de assalto e torna até os indignos, dignos de irritação digo isso e tropeço quando penso no sertão

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as pessoas falam dos problemas com a naturalidade, sem parecer-lhes problemas, então o clima e a falta de água não convêm com a falta de sorte onde se foi conduzido, de pé está e o raciocínio pega carona com o vento é assim no interior, certa pureza torna os encontros fáceis, a interação de se reconhecer em conjunto nas frentes das casas, nas praças, e igrejas os miúdos particulares de cada um são segredos modificados de boca em boca ao final, todos sabem às suas formas; e ainda assim é possível perambular na noite sentir a glória do teto de sombra o céu escuro, nem sempre só azul e a rotina que o corpo segue sem resistência, mas não descansam as memórias Nunca se pode saber sua origem letárgica! felicidade é o mais remoto enredo das páginas, nos silêncios estáticos das salas os quadros, os santos, os terços e os bancos entram pela janela junto às poeiras com a nostalgia das histórias inventadas depois da sesta, na rede, na cadeira de balanço dorme-se tranquilo porque há antepassados, em nome do passado se constrói o presente até mais que o próprio instante. X Há sempre certo mistério no amanhã... Uma névoa em que não dá para navegar tem pressa dos milagres e calma das alergias o calor me condena a qualquer coisa que não gostaria. Que podemos querer, além do além? O mundo não depende de ninguém menos ainda das nossas vontades

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há mais no que se poderia fazer do que o fato feito, pois na verdade, tudo cansa e depois refaz casualmente palpita meu olho direito, e geograficamente não alcanço nada; Então penso em várias palavras até que uma delas me surpreende: foi roubada ou foi presente? tudo que me acontece sinto que não existe; Apenas teu olhar, certamente, existe. XI Nossos encontros foram tão lânguidos quando ardia cá dentro uma alegria submissa e indesejada, já que é triste e impalpável o desejo de amor... o que sinto por ti, pertence a ti, ou à raiz dos meus pensamentos? Quando lembro que nos beijamos sinto mais magia do que no dia que, de fato, nos beijamos. Que sentimento é esse, que não desgruda e sobrevive às minhas custas? Se existisse outra vida, procuraria respostas, mas como sou impaciente a realidade divaga por onde tu passas nossas vidas são tão indiferentes! Essa grandeza não passa de uma espreita criação. XII Perceberam a inconsistência das horas? é engraçado quando pregam no pulso uma expressão responsável, juram controlar as datas, mas como, se elas já não são? Ah, como é efêmera a eternidade! a comiseração é quem não ladra

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e baixinho resmunga o alimento da alma; se soubéssemos ser felizes, não preocuparia se fulano vestisse saia ou sicrana se atracasse com a vizinha, mas qual? Toda essa falta de tempo deixa lacunas incuráveis, eu logo me deito na rede para sentir as horas que me sobram... assim aprendi: melhor sobrar do que faltar. XIII Não seria a morte a contemplação da vida? Bem sabem disso os velhinhos, complacente do outro lado do muro escorrendo as travessias de outrora para mimar a própria memória, (mais por recompensa que por amor...) então um riso orgulhosamente triste hesita, água com gás para neutralizar a língua café para suportar a próxima palavra um mundo arruinando e ninguém crê a paciência na saúde dos idosos reconhece que todo o esforço em deixar rastros, não surtiu efeitos; veio a guerra e tornou o tédio imerso na obviedade dos homens, depois veio a doença a desgraça, o enfado e finalmente, o nada os piedosos admitem que não há remédio na chaga dos homens, mas os estúpidos falam de piedade como se alisassem uma culpa de doer. XIV Bem embaixo dos meus olhos uma verdade irreparável: a cumplicidade na linguagem (universal) dos homens, torna-os de um caráter próprio! sem o remorso da mentira, confortavelmente apática.

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E justo essa omissão, essa fuga é que torna a coisa interessante. Reconhecemos no outro a própria falsidade, do lado esquerdo da avenida, alguém toma sorvete e faz bem, outra vai buscar o exame de mamografia e faz-se necessário. Quantos mundos caminham na sarjeta? Posso contar nas estrelas sem medo de traumatizar o tempo, que não é inesgotável. XV O problema é que os mundos limitam-se aos tempos; E eu estou velhinha demais para sustentar a falsa liberdade jovial e iludida! os limites tem várias portas a serem abertas e o dia continua depois da sepultura, fico entediada com o previsível e no entanto, faço as mesmas escolhas; como podem ser tão descarados, nossos conflitos? mostra-me as chaves através da percepção pois limitam-se a ver as coisas a um só nome, nem os segredos nos pertencem só o sono exaustivo da última ressaca. XVI Tenho o dom de calar as conversas mais interessantes; vez por outra me indagam, em tom solene, sobre minha falta de sentidos nas coisas! os dias vão acontecendo intermináveis... busco encontrar antigos amigos, ávida por alguma grande novidade mas ali, constrangida, tento encontrar

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a paciência branda das conversas trivialmente bobas sem ser deselegante negando um riso forçado às mesmas piadas tardias, na alegria dos bêbados uma santa armadilha: a supervalorização maquiado para si o ridículo, um troféu erguido inutilmente desperta a imbecilidade e me atraca uma irresistível vontade de sumir dali; ah, como é difícil conversar por esses tempos. são tão insuportáveis as vozes alheias! XVII Sob as minhas unhas sujas, o cheiro inconsolável da não definição; como distinguir o que não há denominação? O poeta pergunta e pergunta porque não passa de uma criança se queres saber o que sabe uma criança leia um poema. Se queres saber o que pensa um poema, não indagues toda a filosofia se guarda no silêncio! os resquícios das palavras pelejam no escuro sem pretensão de respostas, por falta de ânimo, permanecem para atrapalhar a vida; A sujeira está entre os dentes portanto deixe escapar a oportunidade de encaminhar repetidas frases nem as moscas pousam nelas, nem são frescas, nem louváveis, contentai-vos com a verdade corroída enferrujada, sem forças de reconstituição; o rabo do lagarto se refaz, o dito não! XVIII A harmonia termina quando começa o conflito. Mas é possível preservar em si

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a vontade pacificada de que o amor inunde a vista, o ouvido e a pele da humanidade! A vida torna-se reveladora se humilde ampliam-se às novas perspectivas, já que o mundo cético, cru e retrógrado sangra a infelicidade pobre das limitações. Só quem busca se preparar pode ver: a realidade embaça até esbarrar na estranheza turva de que aquilo não é natural... Deus é subversivo e não segue convenções o diabo é quem domina a multidão a minha pressa é a de encontrar a calma mas meu ombro se inclina para frente com o peso herdado das gerações. XIX Não fui feita do prazer nem do ódio; uma certa aventura envolvia a ingenuidade bela dos meus pais, lembro das tardes tantas que aqueciam meus sonhos no mar, não vá nadar muito longe, pai, porque as águas turvas não conhecem bem os destinos, as nuvens escondem os segredos das sombras e a morte é a mais antiga paixão dos homens! ali, na areia, banhada em sal e sono a criança agoniava em crescer logo mas o dia tranquilo, sequer percebia e aumentava a sensação de entrega (menos por falta de confiança que despejo) o som das ondas comungam o recado na ancestralidade das pedras em incríveis mistérios, ilhando a paisagem das coisas humanas; o privilégio vem da clara falta de pretensão e nessa crença de querer, ouço mais as imagens que me vem, vivo o presente;

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pois a voz não fala depois do esquecimento. XX Quem melhor conserva as cores dos sentimentos senão os próprios sentimentos? Quero incorporá-los aos seres marinhos o sussurrar dos ventos e sua urgência espatulada, carinhosamente, a dedo todos são seres puramente perfumados; mas é a flor que quero incorporar na dança sutil da borboleta; ela sibilou ao meu ouvido um segredo tão forte quanto inaudível! quero incorporar a flor, mas sem tornar meus olhos de vidro, sem interferência humana ser apenas uma flor de qualquer lugar para que o beija-flor viesse, vez por outra, cumprimentar o dia e torná-lo tão belo feito os feixes de raios amarelos que o sol decora a grama e as camadas de terra. Quero incorporar a terra porque ela há de me incorporar; e renovar meus termos; quando estiver longe do meu caderno, cairão meus versos por terra e não poderei mais salvar as abelhas. XXI O destino das cores também se transforma... Inspiração é um estado de espírito (libertino) em que as palavras emprestam à força sublime da criação: A magia eleva a superfície e eu a prendo com a mão mas as linhas são mudas e sem valia; se não fui prostituta, agradeço o instinto insaciável dos homens só reflete uma insatisfação constante e eu não estou aqui para me resguardar senão dos desejos alheios,

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a leitura, talvez, fertiliza minha mente se eu viesse do frio falaria do sol sem repudiá-lo mas como derreto desconsolada, o branco véu das noites altas me tranquiliza as coisas mal se traduzem e eu ainda menos mas transbordo de sentidos vindo delas; Não concorde com nada que escrevo e ambos estaremos certos. XXII Se escrevo tudo em vazante sangria é porque brinco de não ter o que dizer afinal, tudo há de ser em vão. Dedico uma música a qualquer coisa, e finjo ter direito às incógnitas; morre-se com elas, os dedos secam e os retratos corrompem a visão mas as coisas nunca deixam de ser coisas! quem havia me perguntado dos signos? ah, se já fui libriana não esqueço... A insônia (e não a amnésia) é um pecado incontrolável e quem tem boca não sabe guardar segredos, mas a tempestiva voz do poeta ecoa o estrondo silencioso do universo inteiro. XXIII Os amigos compõem a melhor memória tenho me isentado deles, porém com a pressa da necessidade e o sincero desejo da preservação. Minha velhice precoce pediu férias do egoísmo, mas a solidão não cessa de suplicar silêncios; ah, amigos, o tanto e quanto rimos dos casos!

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das passeatas desfiladas dos transeuntes e da nossa própria juventude! Agora nem rio, nem choro, nem procuro, nem penso em partir. Os dias criaram um laço secreto carregando a obrigação do consolo materno; mas não sou mãe, nem quero filhos o tal desequilíbrio perpetua nas gerações, por onde reproduzem traços ancoram os rastros do meu pranto em solidão. XXIV Como explicar uma verdade que sequer compreendemos? É perturbador manter tantas vozes no pensamento, não são gritos nem sussurros, mas tumultos emaranhados de si mesmos, cansaria mais não escrevê-los e cessaria menos a vontade de meus dedos. Agora que estás longe, posso nadar em segredo e cantar bem alto a celebração do momento. Ouve essas vozes? De outro lado do mundo, respondes: “não! Elas nada me dizem...” Como é irônica a tua sensibilidade apática de quem já tem tudo! o lento estar de não preocupar-se a nada; és livre demais nas tuas palavras mas as tuas mãos agarram uma timidez e afastam de ti meu amor, a tua petulância é quase um atentado ao pudor, e teu nome é uma migalha disfarçando o alimento das lembranças que nem sabes,

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e nem precisas saber. XXV Esqueci de venerar teu mérito, amor logo depois de tua partida abandonei ele para todo o sempre. Seu passo longe, meio apressado salta medo na adrenalina da madrugada levando consigo a maldita lembrança de curar a febre e o vício, e mesmo no ócio, esqueci de preparar teu futuro mas tu voltas, amor, um dia tão logo verás que é dia; voltarás sem apego, sem esperança sem conselhos nem utopias apenas para cumprir a sessão de monotonia; E quando o sol raiar não será tu, amor, mas a vaga ideia de alguém que existia. XXVI De mágoa, a panturrilha parece ainda mais sobressaltada, enfática, pertinente Não, querido! Não há sentido nas frustrações já que os erros são acolhidos pelo aprendizado! A inútil tentativa de controle é inimiga da passividade, dai surgem as guerras, a agonia, os gritos de raiva e horror, se não me esforço em harmonia e calma acabo quebrando troços, solvendo lágrimas e o peso amargo e feio desse sentimento é sugado por futuras nações; Não, querido! Não há motivos de insultarmos uns aos outros o que se julga por fora reflete o que há dentro verás, mais tarde, frente ao espelho! Antes vem diluir a couraça do orgulho e manter a estranha identidade do nosso mundo.

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XXVII Que me dizes, querido, da minha vagabunda mania de livros e poesia sombra de árvores e água fresca em ritmos de apatia e leveza? Que achas, querido, da minha plena vocação de permear da súbita alegria à estranheza inesgotável da dor? Não fui eu quem lançou sob teus pés esse véu, a necessidade sufocante da nossa história carrega o insípido privilégio de nos acostumarmos um ao outro, e desencontra a magia das noites antigas para longe de mim, também não perto de ti distintamente, como um membro da família; como os passos não revertem ao tempo (nem à família) o tédio toma conta da nossa paz interior e nem ligamos, porque a cumplicidade que conquistamos é forte em reencontrar propriedade, tu de lá eu de cá, na liberdade falsa do amor. XXVIII Diante das minhas ancas teu sexo limita a entregar-se a dúvida e a preguiça dissipa o breve tremor do desejo. Assim serás meu todo dia na utópica lembrança do que não houve. sentemo-nos pois, no mesmo campo dos monges; cada um embebido de santidade sacrificando a impertinência da paixão em nome do sossego solitário da palavra não. XXIX A minha transparência te pesa e

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isso o torna ainda mais cômico; meu mundo de romances ressalva tua expressão perdida, nada te protege tuas mentiras! Ah, criatura de deus, não me amole tanto que já amanhece. Não me estranhe o manto, se eu mesma me desconheço meu gênio ruim te excita, minha generosidade te insulta. Deixa teu amor de lado, dorido que amanhã engravido menos. Ah, se já não somos igualmente sujeitos a deriva... A arte se alimenta de ruínas, e nós, nos alimentamos de quê? XXX Bem sabes, é inabalável nossa esperança pela inevitabilidade da morte, que não finaliza, mas transcende à vida; quanto mais ao amor! Confirmo a fé pela folha seca caída nascendo adubo e tua conversa de chuva depois de cinco décadas de seca obrigada natureza, volte sempre que não aguento qualquer companhia. A morte pode deixar rastros em constante estado de vertigem, embalsamado pelo abismo do nunca mais por outro lado, não perde o canto pois há árvores sempre florescendo, pássaros, nuvens, amantes se encantando... paralelas e interligadas vidas num danado passa e volta sem fim. XXXI O dia de hoje foi extraordinariamente

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diferente, coisa rara! tanto que me convenço a não relatar, detalhadamente, em palavras; hoje vivi por trinta e três anos e o que tenho a dizer daria um livro na mesma intensidade, é inefável. Porque quanto mais compreendemos mas devemos calar. Quem acreditaria em nós, senão nossa consciência da realidade? Quem acreditaria no objeto branco e veloz voando tão alto e o trovão em pleno sol acolhido o calmo tom de Deus, em nossa humilde companhia? É preciso calar para entender o silêncio mais que isso, é preciso ser o silêncio. XXXII Não te lembras das coisas tão mágicas nos foram gratuitamente reveladas (porque o valor é o que se é, não o que se compra!) em nenhuma delas possuía a voz humana tampouco tropeçavam na vaidade porque se bastavam, deslizavam com serenidade sobre nossas almas atadas, a imponência do mar nos permitia o deleite no embalo de águas tranquilas; e se falássemos sangue, logo elas se agitavam então cantávamos, dedicando canções aos seres transmutando-os em versos, é preciso calar às lições da natureza e ao provável pulsar do universo. XXXIII A graça da loucura vem do mais extremo estado de lucidez e a experiência de vida permeia melhor nos campos da criatividade,

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na falta dela não há falha, é apenas uma condição; provocamos ou somos criaturas dela? Antes tinha a natureza com tímida intimidade! quanto mais vivo, mais sou parte e mais ainda me alimento da morte das coisas, dos animais, alimento também a própria morte. E isso não é bom? Que cargas d´água é a vida, senão a composição da morte? É cômodo chamar-me trágica, pessimista fácil executar as mesmas necessidades na velha ilusão de pequenas mentiras. Aqueles saudosos sorrisos amarelados tem tornado minha alegria ranzinza. XXXIV Na proteção toda a humanidade adormece. A chuva traz uma ausência completude e minha alma cheia de satisfação transborda aos fascínios acanhados da noite sem lua, mais escura que triste. (só padeço ao lembrar que teu clima é outro outros são teus pensamentos...) a chuva vem e melhor dormimos porque ela se responsabiliza pelas aflições e convida o corpo, mais relaxado, a reanimar os fados mas antes, uma multidão de mosquitos invade a casa e anuncia ao redor da luz da sala, uma curiosa música igualzinha a chuva! depois morrem unidas ao bando em nobre gratidão, sacrifício e renúncia: o chão de branco fica preto esparramados voos interrompidos. XXXV

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Os trovões cantam a presença de Deus. Agorinha, pela janela sem vida do quarto a imagem fractal da luz relampeja vagamente como uma lembrança familiar que insiste em tornar mais visível o espaço. Que devo fazer do meu braço moído? A lembrança da noite já me causa euforia a lua cheia, alta, abrigada na densidade do céu negro e sem estrelas, concretiza o sentido de paz embora doam meus ossos, sinto-me vulgarmente feliz, floresço planos e escolho não concretizá-los antes do dia anunciar uma nova fatalidade, é que imaginar é assim tão completinho quando pode-se transportar inteiro até onde se cria sem desabar o cretino e absoluto presente nem confundir o mal presságio com a hora da partida; porque nessa hora, esperada mágica hora a alma caminha pálida, na liquidez da chuva. XXXVI É ruim conter desejos, mas é tão perigoso despertá-los! Estás aí sozinho enquanto navego pelo teu corpo com a nítida precisão dos mais ínfimos detalhes. É fim de Abril e só agora a chuva incorpora nas casas e as almas aliviadas esquecem o medo que o mundo perpassa. E tu aí só, pensando em como seria bom estarmos juntos novamente! E eu aqui resignada à madrugada, completamente fiel a reconstituição sensorial do teu beijo, teus dentes imensos deslizando no meu couro cabeludo; o delírio fatal da carícia reciprocamente desejada... Ai, se quase vou correndo até tua casa! mas me detenho ao lembrar que amanhã é dia branco, e ao lembrar que odeias

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porque me detenho, e ao lembrar que me odeio por não ser tão livre como és. A imagem da tua tatuagem salta quase real e me arranca, mais fortemente a vontade de você. Mas me detenho. Entre mim e ti há o abismo penetrante de algumas ruas adormecidas sem porém, desmerecer nossos afetos. E tu agora se detém. Resolveste dormir. Tudo é morno contigo, provoco-te estas palavras sem que me percebas. XXXVII Não há nada de espantoso nas tardes exceto por elas parecerem remotas. Saudosa, longínqua e abandonada de qualquer graça, suspendi os pés inchados sobre a mesinha do terraço, o vento parece me adular. De repente, uma resposta soa lógica: O universo é uma força sólida, pulsante, viva; tudo, indubitavelmente, respira! O espaço também se organiza na rotina extraordinária das estrelas. Lá, as manhãs devem ser mais soltas e enxutas, a noite suponho fria como uma civilização em superior progresso, daqui tudo se mantém acostumado aos seus lugares: As plantas traspassam o concreto e ninguém se espanta. a lua surge diferente todo dia e recompensa a vista ninguém se aflita. Para eles, a natureza cumpre a imagem enfática, banal, imperceptível de uma parte morta da cidade. Para estes, nós é que somos vivos.

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XXXVIII A diversidade de cores do céu velhíssimo indiferentemente sobre-humano não emociona. O aparecimento e sumiço do solidário vento não concentra, não atrai dúvida ou cumplicidade. A formação das ondas, o perfume das rosas, as transformações sábias advindas do poder de determinadas plantas mágicas em nosso corpo; o desprendimento, a percepção, o experimento, a sabedoria nada disso convence, nem desperta interesse. É bom preparar o espírito, manter calma a mente perceber o interior do corpo quando pede ajuda, mas ninguém o sente. XXXIX Melhor conviver na amplidão da simplicidade... se pudessem ver adentro, sabiam que as mãos secam ao atravessar o amadurecer, murcham sem qualquer vaidade como uma folha vencida. Se abrissem perspectivas, veriam mais movimento e criatividade embaixo da água (onde não alcançaremos nunca!) Se transcendessem às futilidades, a harmonia viria a tona nas vestes mais relaxadas sem adornos para suprir fraquezas; antes fomos dignos de enxergar na superfície o medo abdicou-se do deslumbre diante o misterioso uivo da trovoada. XL O meu horror mais maligno não vem dos ratos aranhas, escorpiões, cobras ou traças; são as baratas que me repugnam

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pragas indestrutíveis da humanidade! só de citá-las, descarrego uma fina sensação de nojo. Paremos, pois, por aqui, a atenção cedida ao esgoto. XLI O outro horror é o preconceito. Como julgar, se se expõe em feiíssima prisão e impõe para dentro de si, uma ampla limitação? É cavar ao contrário em busca de esperança, dá para derreter a couraça de quem estagna na iludida sensação de poder? Não deves limitar sequer o ponto de tua calçada por isso andas em linhas quadradas, este pedaço de planeta, quem loteou, quem te deu? Esse terreno de rio, esta casa que vigia o mar, quem julgou capaz de usurpar? Tiraram da terra o suporte do papel moeda botaram a terra no papel, em legítima posse, em troca de papel moeda, demarcaram o mundo! extraíram as fibras de celulose, em prol do excelentíssimo (roubador) papel moeda. estampam na cara, escondem debaixo do pano por que me tomas, porque me difamas a loucura? por isso ando envergonhada, desculpando-me às eras e reverenciando a natureza das plantas: tanto admiro sua inteligência, como esmaeço à miserável condição humana! XLII O horizonte comanda o foco da direção meus olhos são a paisagem; a mesma janela que dá para uma ruína, esconde uma linda praça florida: escolhe-se a perspectiva! o mar idoso renova e tenuemente, me atinge ao céu, deito em terra, e jamais posso dizer-me mais que ela; a areia é fera em multiplicação, move montes

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e ainda tem a delicadeza de dançar! o vento brincalhão, é sempre ativo, sente-se bem canta, coreografa, rasteja, navega, voa, assobia, transporta, viaja pelos melhores lugares da terra; a água escandaliza em transparência o fogo canaliza toda a essência, eu ossos não movo sequer uma palha de coqueiro! eu ossos, seviciei os dias de trabalho e não sei como entra a água nos cocos. eu ossos, calcificando a maçã do rosto para que finde a vida dos outros; eu ossos, inerte, sem o limite que alcança a vista. XLIII Vivo o sentimento, meu bem, por isso há sempre algo que me deixa infeliz. A concretude engasga a libertação espiritual: Liberdade é não mais que aceitar os dias como eles se propõem, é não mais que deixar as coisas se resolverem com a passiva certeza que elas, no mínimo se transformam, mesmo que a certeza não exista. Porque no fundo tudo inexiste. Essa mágoa, essa ironia, esse fardo. tudo fica suspenso no interior para causar feridas, o mundo não vem sanar suas dívidas e você dedica ao mundo quase todo o seu tempo. A cobrança e o consumo aumentam o tédio; o que nos prende ao dinheiro se o termo formalíssimo desmorona no banheiro? Por onde sai o exagero, devia entrar o remorso. XLIV Essa névoa escura sobre a cidade molhada parece hibernar;

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no frio fala-se baixo, move-se preguiçosamente e até se aparenta mais elegância! A chuva ausenta as pessoas dos lugares o asfalto brilha na penumbra do silêncio absolutamente nada, deixamos de perceber ruidosos, os próprios passos não hesitam. Essa névoa densa sobre a cidade molhada parece me libertar. Nesse momento nada pode me entristecer; nem teu falso amor, nem o pudor dos que julgam e praguejam seus enredos o caminho é solitário, só afeta o que permitimos: Permito-me a vida, não essa mesquinha, afundada de joias e mentiras, não essa que se reproduz em massa. Permito-me a vida que se percebe de repente, sem explicação. XLV É mais importante a cumplicidade total, ou reservar uma vida paralela? A magia que não vem das paixões é mais sustentável e a paz é mais autêntica que o sacrifício. Arguciosa, deixo de ruminar o pensamento. logo mais madrugam esvaziados da sexta feira amanhã é apenas uma sombra, a sombra parece sempre mais consternada que a imagem, a rua permanece imóvel, nem velha nem atípica um homem observa a nuance de cores no céu a criança faz giros na bicicleta de rodinhas, formigas em fila bem acima da minha cama e eu, invento coisas. Inclusive amores, invento também sensações só não invento o sonho, porque ele é mais real que imagético. Uma vida que ainda não aprendemos a associar, nem decifrar. E essa outra rotineira, minuciosamente apática

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raras vezes animada, torna uma aparição ordinária para compensar o mínimo das mínimas surpresas. XLVI Ontem o domingo parecia triste, mas estava feliz. A cidade escura, agasalhada e silenciosa. O amor silencioso, o tédio, o banzo ainda mais silencioso. Nobre momento de interiorização, estado de graça e silêncio. Esses prédios sobre a sombra da minha mesa esses gatos sobre meu carro imaginário os passos surdos e a existência da solidão! Vê? a vida passa... mas o que sinto agora está inundado de eternidade. XLVII Hoje senti vontade de me matar, grande novidade... deixar escrito em papel comum, com letra comum, sem qualquer indício de desespero nem marcas de sangue o seguinte esclarecimento: “ acaba comigo a convivência, a pobreza de espírito, a falta de amor. O mundo não cabe em mim, deixo-o transbordada de uma curiosa tranquilidade.” O frio da chuva rala atrás da porta acanhou o suposto suicídio ao cobertor quente, dissipou a realidade que me atordoava. Resolvi dormir. Pensei em me mudar para longe de mim onde a potencialidade para o desequilíbrio da loucura lúcida não pudesse despertar, o inimigo tão a espreita não pudesse sugar, e as baixarias sociais bem longe de meus olhos! Fora da angústia das multidões, há fantasia; o céu rosa, azul e amarelo climatizam minha dor e a acomoda no parto da noite nítida, pulsada vaidosa... tão simpática a noite!

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Mas aqui não dá lua, nem frutos, nem pendências não há novidades, não há amigos, sequer uma decisão. Saio rumo ao espírito da física quântica no espaço da matéria que se julgue mais surpreendente. XLVIII Ele não se espanta mais, minhas palavras! pudera, aquela era sua vida de homem, acidentalmente tranquila. Antes, meu desespero lhe causava o incômodo de sentir-se culpado embora o lembrasse a dúbia existência da culpa. É preciso coragem para dizer a si o que os outros condenariam, mas nada o atingia tanto quanto minhas desmesuras; seu charme e cortesia delineiam em luz as notas musicais, depois cala. Encaverno-me cada vez mais desprotegida, desde então. O teu olhar vazado mira qualquer coisa, menos a maldita vaidade que nos fez amantes. Ele não se atrai mais, bobagens e vestidos; e a memória se conforma disforme, como se nunca atravancasse o caminho! Na impetuosidade dos grandes acontecimentos mantive teu sorriso duro, esgotado no mistério do nunca mais. É tão imperceptível o nunca mais! Sem o quebranto que rodeava teu amor, quase não lembro de ti, e tu nem se espanta. XLIX Em tempos áureos muito nos víamos, tentava estarrecida lembrar de teu rosto, sem sucesso. Agora que andamos em mundos longínquos posso vê-lo com tanta precisão que saltam o olhar grave, o sorriso entreaberto, e a postura imponente de quem sabe exatamente como se fazer desejar.

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Talvez seja saudade inventar te buscar talvez não, seja mesmo necessário; construir um patamar influencia certa posição de concentrar qualidades, até o amor se perder mofino, numa noite feliz sem a culpa de não ter amado tanto, nem a glória da reciprocidade exercida. Em tempos áureos, acordava e pensava em ti. Agora os tempos não são áureos, nem róseos acordo e vou dormir apenas os dias improdutivos, as tardes estranhas e nada muda, tudo é normal, só a lua me lembra a ti, tenebrosamente mais. L Não tenho nada para fazer a não ser esperar o dia amanhecer. A movimentação externa não ouço, não vejo mas sinto irremediavelmente acontecer. Em minha cama múltiplas partículas invisíveis terra, poeira e os fios dispersos de cabelo amontanham-se sem que se perceba como; o ventilador estático mira um ponto indiferente, me faz lembrar o deserto. Mantenho-me comprimida na miragem de um Oasis um milhão de acontecimentos por fora das paredes da casa, dos limites das cidades e países enfadam mais que o limite do cansaço; ainda existe orvalho no deserto? A sede da curiosidade me transporta pelo faro; como é longa a seca sensação de terra! eis que surge uma welwítschia pouco discreta antes mesmo que pudesse analisar o fato.

LI

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Mil textos não verbalizam o que não há denominação. A mais profunda capacidade de amar é silenciar; ver além da pele, do caso e da alma mais que isso, ser a alma. Livre. Leve e intensa. A pulsação do universo é íntima e coletiva uma mãe maior em que habita(mos) até na morte. Aliás, a morte inexiste no sentido de fim o ciclo é constantemente simples e generoso: a folha que seca não desfolha a árvore o pássaro que cai não desanuvia o céu a estrela morta não deixa de brilhar e nenhuma das coisas mortas deixam de acontecer, as partes menores não são menos importantes na verdade não existe o importante, nem verdade porque não há infortúnios, nem mentiras. Não existe falha, nem dor, e mesmo se houvesse dor, seria tranquilo, porque seria natural. O amor é naturalmente, uma recordação. LII Foi por motivo fútil, que me entreguei agora... é tão estúpido sentimentalizar demais pelo constante ritmo lânguido da coisa! A intolerância na melhor das intenções permite, ao menos, preservar a si um pouco de solidão. Ainda assim nos aventuramos em encontrarmo-nos na caverna fria e imprevisível do outro; o amor nos tornou estranhas criaturas nos postamos diante da surpresa e emudecemos, um vasto místico de imagens não pondera: Entre o horizonte e nós, o mar e a falésia. Entre nós e o todo, um imenso respeito, gratidão e luz, apesar da noite. Vida pulsando em nós. Nós pulsando o amor.

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LIII Há uma hora da noite em que ela anseia pela chegada da madrugada silenciosa, fria incompletamente satisfeita. Porque ela é tão transbordada de si mesma que em sua identidade nos é impossível esmiuçá-la por dentro! Lá fora, como se sabe, não é só soluço, ventania e silêncio. Algo de sobrenatural acontece a todo momento: A vela consola a reza do pecador no movimento impuro da chama. O morcego, a coruja, o pneu que desliza no asfalto, o retalho sobre a mesa. A formiga que constrói a própria casa e carrega bravamente seu alimento, e aqui, de fora, num ponto extremo do mundo, também espero por milagres. Tudo é extraordinário. Que dirá o sol nascendo? LIV É uma hora antes, quando finda a madrugada o sentimento sepultado na névoa parda e vazia, uma profunda tristeza vem do nada, apalpa o peito, retrai os músculos, translúcido medo de enfrentar a nostalgia; quando espreguiçam os primeiros raios uma fonte de segredos rompe nas almas mais sagradas, tudo é contemplação! A beleza é a vasta soma do que não se agarra com a mão; a vista alcança o horizonte, o mar, montanhas e rios até na consternação um feixe de luz

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solar adormece de mistério todos os dias. LV O sol toma uma coloração cada vez mais vermelha, até escurecer aos pingos de brilhinhos que surgem na escuridão na linha acima do mar; Tudo que não é infinito parece frágil e corrompível demais, mas o que não o é, se todos os dias estamos apenas começando? Essa interação pode levar os anos à loucura explodir em décadas as rotinas e estórias. A cruel e impessoal lucidez oscila entre as circunstâncias paralelas de cada mundo e me pergunto; as conchinhas da praia envelhecem ou se transformam em ostras? (com o tempo surgem dúvidas inúteis e se percebe melhor a sujeira do lençol...) O parêntese abre para acrescentar um sussurro como um segredo; o segredo é uma palavra que não revela absolutamente nada, se mantém fiel a si mesma? LVI A vida é ligada ao universo portanto instável e surpreendente, mas também servida da mesmice menos invencível que o tempo. LVII As crianças se divertem na iminência do perigo: não sentem tédio, pela constante da descoberta... o abrigo é o vão sem dono, qualquer inocência, ponte de saudade futura! um mal assombrado de brilho

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conduz à magia do medo aos monstros daí então, a seleção dos esconderijos: saltar heróis às vivências secretas de mundos não paralelos, mas atrelados na compostura sutil de quem faz a tudo, pouco caso; afinal, criar é como manipular o voo e descansar do ócio é o mais cansativo dos descansos. A criança que habita menos internamente, não está tão condenada ao surto, vã loucura; acompanhar no vazio do instante uma infância a mesura do tempo e a fumaça que centra em dispersar os pequenos pesares num sopro, logo acima, dois passarinhos dormem nos galhos não mais viverei sem emocionar-me o fato. LVIII O silêncio tem múltiplas vozes e ruídos como pode existir silêncio, se o universo inteiro está em atividade? Absolutamente tudo respira em melodia o mar , a relva, a terra, o ar; se chove, os morcegos constroem tendas com as folhas das árvores. Os homens descansam. A águia careca acasala para a vida toda e constrói apenas um ninho, o qual vai ampliando; O homem vai guerreando para acumular. Os mosquitos causaram mais mortes do que todas as guerras juntas, o homem se isenta da culpa. Os ratos não vomitam, nem reverberam. a resistência maior é a teia da aranha e os cangurus não sabem andar para trás; os golfinhos dormem com um olho aberto o homem gradeia, alardeia e usa arame farpado para demarcar território. se o homem fosse como o camarão, não

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vacilava, pois teria o coração na cabeça. LIX Hoje não estou para ninguém... mal? ao contrário, passo muito bem! não quero passeio, nem notícias quentinhas meu pensamento ziguezagueia por ti, agora, justo quando não consigo me desvencilhar desse amor, preso no limbo para todo o sempre. LX O amor que sinto consiste na pureza da espontaneidade natural dos que renunciam à superfície vaidosa, ao apelo da ânsia ou mesmo à imaturidade do medo; Amei-te profundamente sem ciúmes, mágoas ou desejos extremos. Amei levemente, sem farsas nem máscaras. Sem qualquer omissa cobrança; porque me bastava amar na intensidade das nuvens e na profundeza do oceano. E por isso fui fiel, desde que nos conhecemos e entendi que o amava antes mesmo de te encontrar, de fato. Quando estivemos envolvidos, em tua cama, chorei doce e silenciosamente pelo escuro da noite, reconhecendo o reencontro de nossos espíritos: O amor me inunda inteira, e em todos os elementos nos encontro. LXI Sua extrema dualidade agora me cansa! por uma película de distância, insiste em não romper o véu de mistérios que o circundam porque há um escudo sobre teu ego que te faz imóvel, insistentemente sem as cores que focas, graciosamente nas fotografias; se de um lado a delicadeza sensível da nobreza;

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de outro, a mais previsível frigidez dos homens! mas o teu amor é uma imagem oculta artificialmente bela, no quadro estático de um apartamento qualquer, dentre tantos arranha-céus, na mesma autoafirmação dos colecionadores de glórias e merecedores do tédio. Me cansa tua birra, tua barba, teu olhar hermético. sejamos livres e sinceros com nós mesmos, antes de tudo; depois da paixão, o cansaço de carregar pesos inúteis... Acreditas em que Amor, para a mudança radical do mundo? LXII Acontece que a tarde escureceu mais cedo um dilúvio ameaçou intimidar a euforia transeunte para alguns, uma certa sensação de despreparo; não há energia, não há companhia não há tecnologia aqui para suprir a solidão. O gole de café frio, a garoa da noite lá fora, à luz de velas uma estranha sensação: que dia apocalíptico! LXIII Hoje plantei meu primeiro trevo de quatro folhas! Enquanto amassava a terra no jarro branco de bonsai, sentia no faro de minhas mãos as cores da primavera! O fim de tarde parecia mesmo remoto como se tivesse acontecido em épocas atrás; A juventude do setembro em meu suspiro, doce recordação, a despedida do inverno! Mas que bela anomalia, meu trevinho! tão verdinho, se fecha para dormir a noite... nas primeiras luzes do dia, parecem borboletas espreguiçando-se à manhã. LXIV

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As lembranças do parque e eu estamos no mesmo limbo contemplativo de serenos. No anonimato desta quinta, fugi para buscar a companhia da floresta, onde habitam seres habilidosamente musicais e de infinita beleza! A fumaça me distancia das infâncias eternas de minha memória cansada e aproxima-me da inútil necessidade de qualquer coisa; como tudo que retomo possui teu rosto tatuado, permanentemente, em detalhes? Tudo aqui parece um milagre! Calculo que hoje seria um dia normal não fosse uma formiga grande passeando no caderno, e ademais, esses troncos antigos exalam respeito, pois toda a árvore é idosa! daqui, penso em não voltar nunca mais... os passantes inebriados de tanta sobriedade escorrem nas horas. Como um bicho da mata me escondo deles; porque digladiam-se tanto, os homens? Não preciso insistir com a dúvida, reencontro as cores tranquilas dos raios e reconforto meu frágil pensamento numa teia de aranha; perfeitamente desenhada em mandala!

LXV Aquele abraço na sala faiscou um pedacinho da tarde, perdurando por outras tardes a noite em que conversamos na rede da varanda; Havia o mar, o vento abundante penetrando a janela o cheiro de incenso, o cheiro do teu cheiro... se guardo cada detalhe tenho o infinito selecionado, vê como estamos entrelaçados? Cada tato teu é sentido novamente, cada beijo assalta o momento; se leio ou acordo, se choro ou me alegro, se chove, se faz sol, por entre as nuvens, me voltas com esse olhar investigativo e sereno, e os termos

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evasivos tão imprecisos ao auto controle! As nuvens se transformavam com o vento, e tu, divaga atordoado na multidão, a passos lentos, sem pretensão de voltar, nem de chegar à conclusão: Amanhã retalhas as lembranças de vestidos, e um sorriso descansado reina toda tua infância. LXVI Sempre um arrepio vem dilatar meus poros dizem que um anjo atravessou o corpo; - um sopro? Uma luz? Um fantasma? De toda forma, deixa-me gélida e passa... pior é a frieza da tua sombra perambulante ouço tua voz distante, no passado empoeirado, e a falsa sensação de que estás ao meu lado, mas não me queixo além do que permite o desabafo; cada um supre ao seu instante vital, a sua natureza é jovem, apesar de morta, e eu, desfaço o extremo de tal absurdo! Não estamos pensos nem calados: há uma invisível comunicação que envolve tudo! LXVII Pode aveludar, um pouco, a sua força? ou te empurrarei ainda mais ternura e amor... Pare, por favor, de manter minha insônia acesa! senão abdicarei mesmo o sono e os sonhos ao desvario do tempo programado; O tempo que te falta, o tempo que me sobra... Tempo é espaço, e espaço é instante, mas todo o esclarecimento é a loucura do mundo, e o mundo completamente sã, é manipulado para adaptar-se às horas. Depois, sempre vais embora. Não me apego, busco no refúgio natural da consciência, a tua volta.

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LXVIII O canto matinal dos pássaros envaidece a eternidade; por entre as margaridas amarelas, o feixe de luz solar vem alimentar meus dias de jejum: O quintal vai colecionando personalidades... O pé de ganja murchou, a craibeira está doente, a amora não sei se vinga, o maracujá cresce saudável e o pau brasil está robusto como a babosa, que agora brota flores. As nuvens não adoecem: sem pragas no céu aninham-se de forma a uniformizar o cinza, mas ainda é possível localizar o sol pela tímida claridade expansiva de seus raios. A chuva não tem pressa de cair, nem a semente de germinar. Tudo espera; estaticamente transmudado. LXIV É verdade que, tudo, absolutamente faz parte do aprendizado. É a irremissível ponte curiosa. Então me distancio das perigosas armadilhas do ego, e deixo que me guiem os ventos; uma coisa aprendi: Não há prazer sem dor. São, na verdade, a mesma coisa. Depende da perspectiva. O problema está na ignorância. Não é preciso mudar o mundo, apenas a consciência. E isso basta para cada um. LXX Tempo é o que se vive, e só após a morte ele e a vida se concretizam e se revivem: Certamente. Ciclicamente, porque não, infinita (a mente)? Por isso não queira possuir senão a leveza e harmonia da natureza, sejamos breves com as palavras;

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elas não hão de ser necessárias mais que o esclarecido silêncio.

Fim