361
 Saúde dos bancários organização Laerte Idal Sznelwar coordenação Juvandia Moreira Leite Walcir Previtale Bruno

Saúde dos Bancários

Embed Size (px)

Citation preview

Sade dos bancriosorganizao

Laerte Idal Sznelwarcoordenao

Juvandia Moreira Leite Walcir Previtale Bruno

Sade dos bancriosorganizao

Laerte Idal Sznelwarcoordenao

Juvandia Moreira Leite Walcir Previtale Bruno

1a edio So Paulo - 2011

Copyright 2011 Sindicato dos Bancrios de So Paulo

editor

renato rovaiPreparao e edio

adriana Delorenzo Joo Paulo SoaresCapa, projeto e editorao

Carmem Machadoreviso

Denise Gomide e edma NeivaTraduo

luiza ribas (francs) Flvia Cera (espanhol)

Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

S255

Sade dos bancrios / organizao laerte idal Sznelwar. 1. ed. So Paulo : Publisher Brasil : editora Grfica atitude ltda, 2011. 360 p. iSBN 978-85-85938-67-3 1. Promoo da sade dos trabalhadores - Bancrios. 2. Bancos - Sistemas de produo. 3. Bancos - Planejamento da produo. 4. Psicodinmica do trabalho. 5. Psicologia do trabalho. 6. ergonomia. 7. Trabalho - aspectos sociais. 8. Trabalho - aspectos psicolgicos. 9. Trabalho - aspectos econmicos. 10. Direito do trabalho - Bancrios. 11. Direitos sociais. 12. Sindicato dos Bancrios de So Paulo. i. Sznelwar, laerte idal.

CDu 614:336.71-051 331.45ndices para catlogo sistemtico:

CDD 331.2550981

1. Sade dos trabalhadores : Bancrios 614:336.71-051 2. Proteo no trabalho : Segurana no trabalho : Bancos 3. Psicologia do trabalho 159.9:331 4. Direito do trabalho 349.2 5. ergonomia 658.015.11

331.45

(Bibliotecria responsvel: Sabrina leal araujo CrB 10/1507)

So Paulo, 2011 PuBliSher BraSil rua Senador Csar lacerda Vergueiro, 73 05435-060 Vila Madalena So Paulo (SP) Tel/fax: 55 11 3813.1836 [email protected] www.publisherbrasil.com.br

eDiTOra GrFiCa aTiTuDe lTDa rua So Bento, 365, 19 andar, 01011-100 Centro So Paulo (SP) Tel: 55 11 3241-0008 www.redebrasilatual.com.br

SumrioApresentao Prefcio 9 13 21

Juvandia Moreira Leite Laerte Idal Sznelwar

Captulo 1Bancrios no so mquinasWalcir Previtale Bruno

Captulo 2Trabalho, subjetividade e confianaChristophe Dejours | Isabelle Gernet

33

Captulo 3Trajetrias de trabalhadores bancrios entre o sonho e o real do sofrimento patognicoLaerte Idal Sznelwar | Luciano Pereira

45

Captulo 4Bancos e produtividade: entre dinmica industrial e dinmica servial?Christian du Tertre

63

Captulo 5Novas perspectivas sobre sofrimento tico no trabalho: o caso da mentira como prescrioDuarte Rolo

83

Captulo 6O trabalho bancrio e a distoro comunicacional: quando a mentira parte da tarefaLaerte Idal Sznelwar | Seiji Uchida

105

Captulo 7Os desafios relacionados mobilizao da subjetividade na relao de servioFranois Hubault

125

Captulo 8A cognio entre diferentes dimenses mobilizadas no trabalharJulia Issy Abraho

151

Captulo 9As atividades de servio e o setor bancrio argentino: uma interveno durante a crise do setor em 2002Patricio Nusshold | Mario Poy | Eduardo Keegan

169

Captulo 10Entre o nmero e a vivncia: qual ergonomia praticar?Gilbert Cardoso Bouyer

187

Captulo 11LER e transtornos psquicos relacionados ao trabalho: faces de uma mesma moedaMaria Maeno

207

Captulo 12Desgaste mental de bancrios no mundo das fusesRenata Paparelli

231

Captulo 13Lis Andra Soboll | Rossana C. Floriano Jost

249

Assdio Moral no trabalho: uma patologia da solido usada como estratgia de gesto organizacional

Captulo 14As consequncias psquicas do adoecimento por LER/Dort: o fracasso do processo de reabilitao e a volta ao trabalhoElisabeth Zulmira Rossi

263

Captulo 15A judicializao das demandas acidentrias indenizatrias na Justia do Trabalho: um artigodennciaLuis Paulo Pasotti Valente

287

Captulo 16Direitos humanos nas relaes de trabalho no BrasilMaria Leonor Poo Jakobsen

295

Captulo 17Bancrio: trabalho penoso, adicional devido e demais responsabilidades legais do empregador ou tomador de serviosRaimundo Simo de Melo

313

Captulo 18Tpicos sobre a desconstruo dos direitos sociaisAntonio de Arruda Rebouas

341

AgradecimentosA todos os bancrios que, na histria do Sindicato, lutam e lutaram pela melhoria das condies de trabalho e de sade. Aos bancrios e bancrias que participaram da pesquisa e das entrevistas deste projeto. executiva e a toda a diretoria do Sindicato. A todos os funcionrios do Sindicato que trabalharam para concretizar este projeto e que atuam no dia a dia na luta em defesa da sade dos bancrios. Aos autores e pesquisadores que colaboram com o livro. Ao Departamento de Engenharia de Produo da Escola Politcnica da Universidade de So Paulo.Juvandia Moreira Leite, Laerte Idal Sznelwar e Walcir Previtale Bruno

Apresentao

Com o fim do processo inflacionrio, os bancos no Brasil mudaram o foco de atuao e passaram a priorizar a venda de servios para os clientes. O bancrio no responsvel apenas por prestar um bom atendimento, ele tem de vender: seguro, capitalizao, previdncia, carto de crdito. E precisa faz-lo cada vez mais e mais, para cumprir metas abusivas impostas de cima para baixo com base em um sistema de gesto de resultados. Sistema que faz com que atualmente todos os bancos garantam, com sobras, o custo das folhas de pagamento com essa receita de servios. Essa mudana de foco das instituies financeiras alterou completamente a profisso e a rotina do trabalho bancrio, aumentando demais a presso por resultados, a competio e o assdio moral. Atualmente, histrias de bancrios e bancrias que tomam remdios para controlar a ansiedade so cada vez mais comuns. Como tambm aumentaram consideravelmente os casos de pessoas afastadas do trabalho ou que procuram o Sindicato com estresse, depresso ou sndrome do pnico. Esse novo cenrio fez com que, nas ltimas campanhas salariais, aparecesse com maior relevncia o tema da sade e das condies de trabalho entre os pontos de pauta que a categoria quer discutir com a federao dos bancos. Principalmente no que diz respeito a debater o sistema de metas, considerado pelos bancrios como a principal razo que leva muitos a adoecer. Foi isso que fez com que diretoria do Sindicato realizasse uma pesquisa qualitativa com a categoria sobre o tema1 e tambm pensasse em transformar essa pesquisa em base para um dilogo com pesquisadores e estudiosos do assunto, em nvel nacional e internacional. Este livro resultado dessa iniciativa e nos fortalecer bastante no debate com os bancos na mesa de negociao. Se antes deste livro j tnhamos convico de que o formato atual de organizao do trabalho no sistema financeiro que est adoecendo a categoria, hoje temos certeza cientfica desse fato. E tambm sabemos que, para modificar esse sistema, temos de apresentar propostas que alterem sua dinmica.1 Os resultados dessa pesquisa so apresentados pelo diretor de Sade do Sindicato, Walcir Previtale Bruno em artigo que inicia na pgina 21 deste livro.

9

Sade dos bancrios

Em relao s metas, por exemplo, o Sindicato tem propostas objetivas. Por exemplo, queremos o fim dos rankings, nos quais se comparam os desempenhos individuais, como o melhor vendedor do ms, melhor atendimento etc., e a consequente exposio dos bancrios. E tambm queremos o fim da comparao de desempenho entre agncias. Atualmente os bancos so divididos em regionais, e cada uma delas tem seu superintendente ou diretor, que recebe metas da diretoria executiva e as divide pelas agncias. Cada agncia passa a ter uma meta para atingir. Essa diviso, no entanto, no considera nem as diferenas entre regies, nem o poder aquisitivo do cliente. Assim, so projetadas metas abusivas e inalcanveis, que o bancrio sabe que no conseguir atingir. Essas metas, em geral, vm acompanhadas de prmios para esses diretores ou supervisores, e isso faz com que eles acabem exercendo muita presso sobre os bancrios que trabalham na ponta. Um passo para o adoecimento do trabalhador. Precisamos construir uma regra que no permita esses abusos praticados pelos bancos. Nesse sentido, criamos um instrumento de resoluo de conflitos no ambiente de trabalho com foco no assdio moral. Quando o banco assina esse acordo, assume posio explcita de que contra o assdio moral no seu ambiente de trabalho. E tambm o compromisso de divulgar amplamente esse entendimento para todos os funcionrios. Com o acordo, cria-se um canal de denncias entre o bancrio, o Sindicato e o banco que passa a ter um prazo para responder s denncias que a entidade encaminha. Mas esse um acordo em construo. E mesmo tendo sido assinado, para continuar dando certo precisamos cobrar sua efetiva implementao e acompanh-lo de perto. Em alguns bancos, o instrumento j tem dado importantes resultados. Conseguimos inclusive reintegrar bancrios que haviam sido assediados e demitidos pelos assediadores. Bradesco e Ita so os bancos que tratam o acordo com mais seriedade, enquanto no Santander e na Caixa Econmica Federal h muitos problemas. A Caixa, por exemplo, tem respondido s denncias com evasivas e respostas curtas. Por isso, j estamos conversando com as diretorias desses bancos e, caso no mudem de postura, as denncias feitas contra eles via programa passaro a ser realizadas de forma pblica. Mas o principal objetivo no divulgar o problema. Queremos solucion-lo. Recorrer denncia pblica uma forma de presso para que os bancos cumpram sua parte. Outro ponto importante que colocamos na nossa pauta de reivindicao a10

Apresentao

forma como as metas so estabelecidas. Elas tm de considerar o nmero de funcionrios, se h alguns de licena, afastados, em frias etc. E elas no podem ser estabelecidas de cima para baixo. Quando chegam s agncias, precisam ser discutidas e, se for o caso, reformuladas. O bancrio tem de ter o direito de debater se elas so viveis. O que muita gente no sabe que hoje no existe diferena entre banco pblico e privado quando o tema condies de trabalho. Tanto no Banco do Brasil como na Caixa Econmica Federal, quando se pergunta sobre assdio moral e presso em relao a metas abusivas, os ndices de indicao do problema so at maiores do que nos bancos privados. A diferena substancial que quem no atinge as metas nos bancos privados pode ser demitido, e nos bancos pblicos a ameaa sobre o pagamento das comisses, o que pode levar a uma remunerao inferior. Por esse motivo, o Sindicato tem discutido muito com a Caixa e o BB a garantia de travas para o descomissionamento, o que, acreditamos, diminuiria muito a presso. De qualquer forma, para o Sindicato importante que as regras sejam claras, para uma avaliao mais objetiva e justa possvel. Sem critrios claros, os superiores hierrquicos podem promover quem eles quiserem para os melhores cargos, o que facilita o assdio moral. O BB aceitou, no ano passado, que a avaliao, por exemplo, passasse a ser por ciclos de seis meses. E que s houvesse descomissionamento no caso da avaliao negativa de trs ciclos seguidos. Isso ajuda a diminuir a presso e nos d tempo para ir acumulando foras e avanar nesse debate. Alm de tudo isso, a presso que o bancrio sofre tambm muito grande, porque atualmente ele tem um salrio direto e indireto muito melhor do que a mdia dos brasileiros. Em geral o principal salrio da famlia. E isso faz com que ele receie a demisso. Mas essa boa mdia salarial fruto da organizao histrica da categoria. Foi nossa unidade nacional e a fora da participao dos bancrios que agregou um conjunto de direitos na conveno coletiva que melhorou muito a vida do trabalhador. Se hoje o bancrio tem plano de sade, vale-refeio e vale-alimentao que somados chegam a mais de 700 reais , auxlio-creche e bab e salrio mdio maior do que a mdia dos trabalhadores brasileiros, o que lhe d um certo status social, porque ele tem lutado por isso. So conquistas, e no podem ser usadas como moeda de troca para que entreguem sua qualidade de vida e a sade para os bancos. Por isso, o Sindicato faz vrias campanhas nesse sentido: recentemente a Menos Metas, Mais Sade, levada inclusive para um congresso internacional e adotada por bancrios do mundo inteiro como mote. At porque j havia uma proposta de11

Sade dos bancrios

discutir a venda responsvel de produtos e o assessoramento justo. Tema que est voltando em campanha porque o sistema financeiro insiste em vender produtos que nem sempre o cliente precisa. O banco pode ganhar, mas para isso o cliente deve ganhar tambm. Essa uma demanda do mundo inteiro. Ou seja, em todo o mundo o sistema financeiro vende produtos que o cliente no precisa. E isso tambm impacta na sade dos bancrios, porque quando esse trabalhador convence algum a fazer algo que pode lhe trazer prejuzo ou a comprar um produto de que no precisa, ele acaba convivendo com essa culpa. A realidade brasileira ainda pior, porque temos as taxas de juros mais altas do mundo. E o spread bancrio mais alto do mundo tambm. Ou seja, aqui o cliente mais explorado pelo banco. E como o bancrio no tem sada e precisa vender o mximo possvel, porque a sua remunerao e o seu emprego esto vinculados s metas da venda desses produtos, muitas vezes ele convive com situaes de culpa que lhe trazem problemas de sade. Este livro, organizado pelo professor Laerte Idal Sznelwar e coordenado por mim e pelo secretrio de Sade do Sindicato, Walcir Previtale Bruno, tem por objetivo debater esses problemas vivenciados pelos bancrios e que toda a categoria conhece muito bem. Mas, antes disso, tem como papel central o enfrentamento dessa situao com os bancos no campo cientfico e conceitual para eliminar a presso no trabalho e os diferentes tipos de abusos. Ao mesmo tempo, desejamos que o contedo desta publicao extrapole a categoria e ganhe a sociedade. Se os bancrios conseguirem implementar a venda responsvel de produtos e o assessoramento justo no somente eles ganham com isso, mas todos os cidados. Ao discutir a sade dos bancrios, este livro se aprofunda no tema de como organizado nos dias atuais o sistema financeiro no Brasil. E revela os impactos que essa organizao tem tanto para os trabalhadores como para a sociedade. Por isso, o Sindicato investiu na sua realizao como uma das prioridades do incio desta nossa nova gesto. Desejo-lhe uma boa leitura. Juvandia Moreira Leite Presidenta do Sindicato dos Bancrios e Financirios de So Paulo, Osasco e Regio

12

Prefcio

Este livro resulta de um desafio proposto pelo Sindicato dos Bancrios e Financirios de So Paulo, Osasco e Regio em trazer para o espao pblico um debate que, muitas vezes, exclusivo de crculos restritos: a sade dos trabalhadores. Nos ltimos 30 anos, o assunto tem sido uma preocupao de muitos atores sociais, como sindicalistas, profissionais da sade e dos poderes pblicos, pesquisadores de questes ligadas ao trabalho e gestores. Evidente que cada um deles discute o tema sob perspectivas diferentes. Todavia, apesar de j se saber que h problemas significativos com relao sade dos trabalhadores, as aes propostas pelos profissionais do setor de Sade, at o presente, quando muito, ajudam a mitigar o sofrimento desses por meio de tratamentos clnicos, de processos de reabilitao e de reparao de seus prejuzos financeiros. Resta a pergunta: por que o quadro no se alterou de modo significativo em direo a reais melhorias no que diz respeito sade? Nossa principal hiptese que no houve alteraes de fato que significassem um combate efetivo s mais evidentes causas do problema. Por isso, atualmente o grande debate e o principal desafio so como transformar efetivamente o trabalho, em especial na categoria bancria. No basta falar em questes da sade do trabalhador se no tratarmos do trabalho em si, no que diz respeito ao seu contedo e sua organizao. A sade no um estado, algo fixo e definitivo. Aqui ela considerada como uma construo que no pode ser isolada daquilo que, de fato, fazem as pessoas no seu dia a dia do trabalho. A perspectiva aqui adotada preconiza que o trabalho central na construo da sade. A vida profissional refora a identidade dos sujeitos e o trabalho o local mais propcio para o desenvolvimento das relaes interpessoais, para o desenvolvimento do coletivo, enfim para o desenvolvimento da cultura. Tratar questes de sade de forma isolada foi, e infelizmente ainda , muito prevalente em muitos meios, inclusive os acadmicos. A ideia de separar para poder compreender como, manipulando as variveis para identificar como elas podem influenciar um determinado sistema, apesar de ter trazido avanos cientficos considerveis, teve como consequncia uma disjuno entre aspectos que13

Sade dos bancrios

deveriam permanecer relacionados quando de sua anlise e compreenso. A se situa a questo do trabalhar das pessoas. J h mais de 20 anos, ao nos reunirmos com dirigentes de uma empresa do setor bancrio esta disjuno ficou patente. Na ocasio, propusemos, enquanto professores e pesquisadores, um trabalho de consultoria que avaliasse as questes de sade partindo do pressuposto de que seria importante alterar o trabalho e os processos de produo. O objetivo era o de combater uma epidemia de LER/Dort. Ficou claro, porm, por meio das respostas obtidas, que as questes da sade deveriam ser tratadas em separado das da produo, uma vez que os sistemas de produo haviam sido muito bem definidos e, para a empresa, no era necessrio modific-los. Esse fato, contado como um exemplo, pode ser representativo de como os sistemas de produo, no caso em bancos, ainda esto ancorados em pontos de vista que fragmentam os processos. Ao contrrio de buscar integrar os sistemas, com base em uma viso mais complexa do mundo do trabalho, mantm-se os chamados fatores ou recursos isolados, e no como interdependentes e relacionados. Antes de serem problemas de sade, as conhecidas LER/Dort e, cada vez mais, os distrbios psquicos, so consequncias, de como o trabalho e o trabalhador so encarados pelas diferentes instncias que tm poder de deciso nas empresas. Essa a origem do problema. Tratar o trabalho como algo simples, que pode ser definido com base em procedimentos rgidos, abre o caminho para que ele seja menosprezado e, sobretudo, considerado algo que no releva da dinmica da vida, mas da frieza dos procedimentos e do funcionamento das mquinas. Quando o trabalho no visto como algo vivo, as pessoas so consideradas como coisas, num processo de reificao do trabalhador. interessante notar que, em muitos crculos, inclusive, em escolas onde se ensinam temas ligados engenharia, gesto e administrao, a palavra trabalho e trabalhar no fazem mais parte das abordagens. Fica-se com a impresso que no seriam considerados como protagonistas centrais dos sistemas de produo. Parece que por meio dos automatismos possvel que as pessoas cumpram risca os procedimentos (pseudomquinas) e a produo acontea de acordo com o previsto. Mesmo em sistemas muito automatizados, a participao do ser humano fundamental, pois este o nico protagonista capaz de dar conta de algo que saia do programado. o nico que pode desenvolver estratgias para fazer frente aos eventos, ele que pode, atravs da interao e da cooperao com os outros, compreender o que se passa e construir solues inovadoras. Em instituies bancrias, o protagonismo do trabalho ainda mais importante, uma vez que a produo dos servios basicamente relacional. Pensar e agir dessa maneira, considerando o trabalho como um protagonista14

Prefcio

central nos sistemas de produo, desafio que deve ser proposto a todos que planejam e desenvolvem a gesto dos sistemas de produo em bancos, assim como para outros atores sociais envolvidos. Alm de ser central para a construo da sade, o trabalho tambm essencial para a produo, pois os resultados de qualidade e de produtividade dos servios dependem daquilo que as pessoas fazem individual e coletivamente. Zelar para que a produo saia a contento muito comum, uma vez que ao trabalhar respeitando exclusivamente os procedimentos, a produo, seja de um bem ou de um servio, no se concretiza. O ponto de vista aqui defendido est em consonncia com o que propem diferentes abordagens, como a ergonomia, a psicodinmica do trabalho e certas teorias organizacionais. O Sindicato prope, como um desafio para todos ns, aprofundar essa discusso, servindo como instrumento para, de fato, transformar o trabalho nos sistemas de produo do setor bancrio. Esse desafio ainda requer algumas consideraes. Para transformar o trabalho necessrio que, em primeiro lugar, fique claro que isso possvel. Qualquer discurso que afirme ser impossvel mud-lo deve ser combatido. H uma constante transformao do mundo, seja por meio das tecnologias, das relaes de fora na sociedade e do prprio conhecimento da humanidade. Todas essas transformaes em curso no permitem que aceitemos as maneiras de organizar o trabalho e definir o seu contedo como um fato inexorvel. Ainda, se as empresas assim no o fizerem, estabelecendo dispositivos que propiciem mudanas constantes, correm srios riscos em relao sua sobrevivncia. Nessa perspectiva, o envolvimento de diferentes atores, como os trabalhadores e seus representantes, fundamental para que os processos de transformao sejam mais ricos e pertinentes. A banalizao de certas prticas, como se fossem o nico caminho possvel, muito perigosa. Isso permite perenizar, ou ao menos, fazer com que durem muito tempo, situaes que esto na origem de sofrimento para muitos. Ento, no considerar esse tipo de organizao do trabalho como um fato inexorvel o primeiro passo para que transformaes efetivas se concretizem. A partir da, inovar, ousar e fazer diferente devem ser as tnicas prevalentes. Nesse sentido, que se apresenta o desafio de se reconhecer e, sobretudo, reforar a profisso do bancrio. Trata-se de uma profisso tradicional que sofreu nos ltimos anos uma profunda transformao, com a introduo de novas ferramentas de produo e, sobretudo, com a integrao de conceitos fortemente influenciados por vises mecanicistas e funcionalistas do trabalho. Essas concepes so herdeiras do taylorismo e do fordismo, que influenciaram fortemente a produo industrial e trouxeram consequncias significativas para a sociedade do sculo XX. Dentre elas, destacam-se as ideias de que se pode basear a produo em tarefas fragmentadas, onde o principal15

Sade dos bancrios

agir em conformidade com procedimentos baseados numa perspectiva onde tudo pode ser previsto, e, sobretudo, de que se pode controlar de modo imparcial as aes dos trabalhadores. Inspiradas em conceitos oriundos de teses neoliberais, mais prevalentes no final do sculo XX, diferentes formas de organizao do trabalho, muitas vezes propaladas por processos de reengenharia, cada vez mais as pessoas no trabalho foram isoladas, transformando colegas que cooperavam para que a produo seja obtida a contento, em colegas que devem competir, pois alm de atender aos clientes, vender tornou-se um dos pontos fundamentais. Para tal, modos de gesto, baseados na primazia do individual sobre o coletivo, foram implantados e desenvolvidos. Esse debate traz uma questo que particularmente incomoda e que refora a importncia do desafio que temos pela frente. O trabalho bancrio uma profisso ou, devido aos modos como tem sido a realidade atual nos bancos, tornou-se mais uma ocupao do que de fato, uma profisso? evidente que, para as pessoas, e deveria ser uma profisso. Afinal, exigido dos trabalhadores dedicao integral quilo que fazem. Cada vez mais os bancrios devem se qualificar por meio do estudo formal e de outros cursos para dar conta daquilo que as tarefas exigem. E ainda precisam ter bom tato para conseguir se relacionar com os clientes e para conseguir convenc-los a comprar determinado servio. Para tudo isso necessrio que saibam muitas coisas e que aprendam com aquilo que esto fazendo, mostrando que so competentes para atender as exigncias da produo. Afinal, uma profisso ou no? A partir do ponto de vista aqui adotado, no h dvida. Mas resta uma questo. Ser que esse ponto de vista compartilhado por projetistas e gestores que tambm so trabalhadores bancrios, principalmente quando se trata do trabalho de seus colegas que atuam em contato direto com os clientes? Como seria para aqueles que atuam na superviso e na gerncia? Aparentemente e principalmente para os trabalhadores que atuam na linha de frente, onde a questo relacional com o cliente de primeira ordem, no bem assim. De que modo poderemos mudar de fato e trilhar o caminho da construo da sade que passa pela construo e pelo reforo da profisso bancria? preciso constituir mecanismos que reforcem a perspectiva de que a carreira profissional no dependa exclusivamente de uma ascenso na hierarquia, mas que haja possibilidades mais claras e, sobretudo reconhecidas e valorizadas, de crescimento horizontal. Assim, reforar o coletivo um ponto importante, pois, em primeiro lugar o indivduo criado e se desenvolve na relao com o outro. A ideia de que as pessoas podem, vivem e se constituem individualmente falsa. Qualquer tipo de trabalho intersubjetivo e, sobretudo, o trabalho sempre feito em relao com16

Prefcio

e para o outro. Pensar que aquilo que as pessoas fazem no seu trabalho no tem tambm influncia na vida pessoal iluso. Ao longo deste livro, os leitores encontraro subsdios para sua reflexo sobre questes que, de alguma maneira, dizem respeito a todos ns. Os temas so tratados sob pontos de vista diversos, trazendo questes que, de uma forma ou de outra, refletem a realidade no setor bancrio. Os autores convidados e que aceitaram de bom grado participar deste esforo coletivo tm trabalhado com essas questes em sua trajetria profissional e, com base em sua experincia, trazem contribuies significativas para o desafio aqui lanado: mudar o cenrio prevalente na categoria. H textos oriundos de perspectivas tais como as da Psicodinmica do Trabalho, da Ergonomia, das Cincias da Sade, da Economia e do Direito. A seguir, faremos uma pequena apresentao de cada um dos captulos: No primeiro texto do livro, Juvandia Moreira Leite, presidenta do Sindicato dos Bancrios, apresenta como a entidade tem atuado nas questes relativas sade da categoria. Em seguida, Walcir Previtale aborda a pesquisa realizada pelo Sindicato com a categoria. Os resultados obtidos permitem uma sistematizao de aspectos j conhecidos e reforam a convico de que as transformaes do trabalho bancrio so fundamentais. No captulo intitulado Trabalho, subjetividade e confiana, Christophe Dejours e Isabelle Gernet propem, com base na psicodinmica do trabalho, uma leitura focada na possibilidade de, com base em prticas e em experincias comuns, desenvolver um aspecto fundamental do viver-junto: a confiana. O sonho e a experincia do sofrimento patognico so tratados por mim e Luciano Pereira. A discusso foi proposta com base na vivncia expressa por trabalhadores da categoria e baseada em princpios da psicodinmica do trabalho, da ergonomia e da sociologia. Christian du Tertre prope uma discusso fundamentada em teorias econmicas, sobre a produo nos bancos e os pressupostos que norteiam o seu projeto e gesto. O autor evidencia as dificuldades de se utilizar uma dinmica baseada no taylorismo industrial em situaes de trabalho onde predomina a relao de servio. Os dois captulos seguintes, o primeiro proposto por Duarte Rolo e o seguinte por mim e por Seiji Uchida, discutem a questo da mentira no trabalho, principalmente quando ela se torna presente quase como se fosse um pressuposto da produo da relao com o cliente. Franois Hubault trabalha, em seu captulo, a perspectiva da relao de ser17

Sade dos bancrios

vio e como ela mobiliza a subjetividade. Incorporando conceitos oriundos da economia de servios, da ergonomia da atividade e da psicodinmica do trabalho, o autor prope que essa perspectiva seja considerada como central. Aspectos da cognio, assim como outras dimenses do trabalhar, como a subjetividade, so tratados por Jlia Issy Abraho. A autora discute os desafios relacionados atividade dos trabalhadores do setor a partir de pressupostos da ergonomia e de questes subjetivas propondo um dilogo com a psicodinmica do trabalho. O captulo seguinte traz uma contribuio de colegas argentinos, Patricio Nusshold, Mario Poy e Eduardo Keegan. Eles abordam os problemas enfrentados pelos trabalhadores daquele pas em meio crise do setor, ocorrida em 2002. Gilbert Cardoso Bouyer prope um debate centrado sobre a prtica da ergonomia, principalmente quando, nas empresas e nas pesquisas desenvolvidas, no so considerados aspectos fundamentais da vivncia das pessoas. Nesse sentido, prope tambm uma discusso com pressupostos da psicodinmica do trabalho e da fenomenologia. Os problemas de sade, assim como a sua evoluo na categoria bancria, so tratados por Maria Maeno. A autora mostra como podemos relacionar as LER e os transtornos psquicos ao trabalho da categoria. Em seu texto, so evidenciadas diferentes facetas que compem a vivncia dos trabalhadores e como esses a expressam para os profissionais da sade que esto dispostos a realmente ouvi-los. Renata Paparelli escreve sobre a questo da sade mental na categoria, colocando em evidncia a questo das metas, que podem trazer um desgaste para os trabalhadores, causando distrbios que estariam na origem de muitos afastamentos. No artigo, so relatadas histrias de trabalhadores e as mudanas ocorridas no setor. O assdio moral no trabalho tratado por Lis Andra Soboll e por Rossana C. Floriano Jost. As autoras relacionam o assdio a uma patologia da solido, fruto de estratgias de gesto organizacional que privilegiam o indivduo em detrimento do coletivo. Elisabeth Zulmira Rossi faz uma reflexo a respeito dos distrbios psquicos consequentes do adoecimento por LER/Dort, principalmente frente ao fracasso do processo de reabilitao e a volta ao trabalho. A autora baseia-se tanto em aspectos tratados pela psicodinmica do trabalho e do direito, como dos processos de adoecimento e reabilitao. Os captulos seguintes abordam questes jurdicas, escritos por advogados e juzes que atuam na rea. Luis Paulo Pasotti Valente discorre acerca da possibilidade de indenizaes devidas a problemas ligados ao trabalho e as dificuldades de interpretao, por parte de juzes, das maneiras como o trabalho organizado, relevando ainda as18

Prefcio

prprias deficincias existentes na estrutura e nos modos de produo do poder judicirio para dar conta desses desafios. Maria Leonor Poo trata dos direitos humanos nas relaes de trabalho no Brasil e mostra a importncia da atuao sindical para que essas relaes evoluam e para que seja possvel mudar a realidade da sade dos trabalhadores. Aborda, ainda, as relaes entre os mdicos do trabalho e as empresas, que seriam questionveis luz da cidadania e que podem gerar polticas discriminatrias, assim como se constituir em mecanismos de excluso social. Raimundo Simo de Melo escreve sobre o trabalho bancrio luz das responsabilidades legais do empregador ou tomador de servios, inclusive no que diz respeito ao direito a adicionais devidos, j que o autor considera o trabalho penoso. Antonio Rebouas escreve sobre os direitos dos trabalhadores e a importncia das aes nesse campo. O autor apresenta diferentes aspectos da legislao brasileira, mostrando distintas facetas do direito relacionado ao trabalho. Desejo uma boa leitura e que esta obra inspire a ao de diferentes atores sociais rumo transformao do trabalho e consequentemente construo da sade dos trabalhadores. Laerte Idal Sznelwar

19

Bancrios no so mquinasWalcir Previtale Bruno1

IntroduoExpostos diariamente a um cotidiano de presses, intimidaes e humilhaes, tendo de se adequar a uma estrutura autoritria de comando, sujeitos competio sobre-humana imposta pelas organizaes, ameaados constantemente de demisso, impedidos de errar e obrigados a perseguir metas de produtividade cada vez mais inalcanveis. Essa a situao que a maioria dos trabalhadores do sistema bancrio brasileiro vive hoje, o que compromete tanto sua integridade fsica como mental, levando, em muitos casos, ocorrncia de graves problemas de sade. Diante desse quadro, nos ltimos anos, o Sindicato dos Bancrios de So Paulo, Osasco e Regio tem intensificado o combate s prticas abusivas no ambiente de trabalho, multiplicando as consultas categoria, produzindo debates e publicaes, estimulando denncias e prestando auxlio aos trabalhadores. Nos debates, buscamos levar categoria as relaes entre as metas abusivas, as avaliaes individualizadas de desempenho e o adoecimento, seja ele fsico ou mental. No mbito desse esforo, realizamos, entre novembro de 2010 e janeiro de 2011, uma ampla pesquisa, contratada com o Instituto Acerte, com bancrios de seis das maiores instituies financeiras do Pas: Bradesco, Ita/Unibanco, HSBC, Santander, Caixa Econmica Federal e Banco do Brasil/Nossa Caixa. Foram ouvidos 818 trabalhadores da ativa e/ou afastados por motivo de doena ocupacional, entre caixas, tcnicos, analistas, gerentes e coordenadores comerciais e administrativos. O resultado no apenas preocupante. assustador. Dos nmeros gerais aos depoimentos colhidos nas entrevistas qualitativas, a pesquisa produz um retrato sem retoques do clima de tortura psicolgica que domina as entranhas do sistema bancrio brasileiro, cujo ambiente de trabalho fonte constante de medo, angs1 Funcionrio do Bradesco e secretrio de Sade e Condies de Trabalho do Sindicato dos Bancrios de So Paulo, Osasco e Regio.

21

Sade dos bancrios

tia, frustrao, perseguio, desvios ticos, disputa desmedida entre os colegas e grande insegurana pessoal.

Orgulho de ser bancrioAlm de abordar as questes da organizao do trabalho e do assdio moral, o levantamento procurou identificar os motivos que levam a pessoa a ingressar na carreira bancria, suas expectativas de ascenso profissional e o grau de dependncia socioeconmica que mantm com o empregador. A carreira possui uma representao simblica altamente positiva entre os trabalhadores egressos em sua maioria das camadas de classes mdia e mdia baixa. Ser bancrio, na percepo apurada pela pesquisa, significa receber salrios e benefcios acima da mdia do mercado, ter situao empregatcia relativamente estvel, com garantia de boa aposentadoria, e alimentar grandes esperanas de crescer profissionalmente no interior das instituies. Entre os entrevistados, 80% possuem curso superior completo e 65% dizem que s fizeram faculdade, MBA ou ps-graduao graas s oportunidades oferecidas pelo banco. O avano nos estudos, somado ao aumento do poder de consumo e possibilidade de realizao de projetos pessoais e materiais, fazem o bancrio ser visto, no seu meio social, como aquele que subiu na vida. De todos os ouvidos na pesquisa, 82% concordaram com a frase minha famlia sente orgulho de minha carreira como bancrio. O outro lado dessa moeda a extrema dependncia dos trabalhadores com o banco, o que leva ao temor permanente da perda do emprego. No s em funo dos benefcios e do status, mas tambm porque a maioria (53%) no se sente em condies de concorrer no mercado de trabalho fora do sistema financeiro. S sei trabalhar no banco, no sei fazer mais nada..., disse um dos entrevistados dos grupos qualitativos. Instigados sobre o que representava, para eles, deixarem de ser bancrios, os trabalhadores do setor relataram grande apreenso com longos perodos de desemprego e perda imediata do poder de consumo, sem possibilidade de recuperao no curto prazo com reflexos no sustento prprio ou familiar (a grande maioria, 73%, a principal responsvel pelos proventos familiares). Esses sentimentos, ligados s necessidades objetivas de sobrevivncia, acabam gerando um comportamento de manuteno do emprego a qualquer custo do que se aproveitam as empresas para explorar mais ainda os trabalhadores, com metas cada vez mais difceis de serem alcanadas e que acabam associadas a prticas de assdio moral.22

Walcir Previtale Bruno

A organizao do trabalhoNas ltimas dcadas, o setor financeiro brasileiro desenvolveu e adotou tecnologias de ponta que modificaram radicalmente seus processos de produo, levando, entre outras consequncias, otimizao do tempo e ao aumento dos lucros. No dia a dia, porm, a categoria bancria ainda submetida a longas e cansativas jornadas, sendo uma das que mais adoece fsica e mentalmente no Brasil. So comuns, na rotina do trabalhador, a baixa tolerncia ao erro, o acmulo de tarefas, a rotina repetitiva e mecanizada, as cobranas pblicas, a ausncia de cursos de treinamento, o trabalho alm do horrio e aos fins de semana, a presso diria pelo cumprimento de metas superestimadas, a incompreenso dos processos produtivos, bem como a impossibilidade de sugerir mudanas ou melhorias nesses processos. Tudo isso contribui para multiplicar o nvel de estresse presente no cotidiano dos bancrios. Estresse diretamente ligado aos sentimentos de medo, humilhao, impotncia e frustrao. A presso para atingir as metas uma das principais causas de adoecimento, tanto pelo esforo repetitivo como pelo desgaste mental. Vale lembrar, que, no final da dcada de 1980, existiam cerca de 800 mil bancrios no Pas; hoje, o nmero gira em torno de 450 mil trabalhadores. Enquanto os lucros das instituies cresceram, diminuram os postos de trabalho. Na ltima dcada do sculo XX, foram institudos novos mtodos de gesto, somados a polticas de terceirizao, o que permitiu s empresas cortarem empregados. Nesse perodo, diversos bancos implantaram programas de demisso voluntria. Aos trabalhadores que mantiveram seus postos de trabalho, restou se adaptarem s crescentes cobranas. A nova forma de organizao de trabalho baseia-se na avaliao individualizada de desempenho. Assim, no a equipe, como um todo, que cobrada. O clima de competio para bater as metas mais altas possveis transformou os trabalhadores em rivais, adversrios. A solidariedade que norteava as relaes de trabalho acabou e deu lugar ao isolamento. O sofrimento tornou-se silencioso e banalizado. A quem sucumbir, resta a imagem de que fracassou. Muitas vezes, o trabalhador que adoece esconde a situao at mesmo de seus colegas, como se a culpa por no ter conseguido atingir nmeros exigidos pela hierarquia fosse exclusivamente sua. Mas, no, as metas no so definidas pelos trabalhadores, mas sim pela alta cpula do banco, que a repassa a um superintendente, que passa a um diretor, que distribui aos gerentes, e assim por diante. s vezes, as instituies chegam a ignorar realidades locais distintas, estabelecendo ndices iguais para agncias de bairros de diferentes classes sociais. Sempre de cima para baixo. Com relaes de trabalho fragilizadas e o ambiente competitivo, os trabalhadores no se do conta de que o inimigo no est entre eles. Somente a sua23

Sade dos bancrios

organizao far frente gesto imposta pelas instituies, que, em geral, utiliza o medo como estratgia.

Trabalho sem valor grande, entre os bancrios, a percepo de que seu trabalho no reconhecido e que, portanto, eles poderiam ser facilmente substitudos. Na pesquisa, 57% disseram desconhecer o processo produtivo do comeo ao fim, 47% se sentem apenas um nmero na engrenagem, 38% reclamaram da falta de treinamento, 20% consideraram a atividade repetitiva e 30% concordaram com a afirmao parece que meu trabalho no tem valor, qualquer um pode fazer o que fao. Ou como resumiu um dos entrevistados: Gostaria de mudar algumas coisas no trabalho, mas no sei da onde vem e para onde vai, ento, s posso fazer o que me mandam.... Os mais vulnerveis so os caixas, que possuem menor nvel educacional (40% ainda esto em formao no ensino superior), atendem o cliente na ponta, no podem errar e sabem que, se no demonstrarem preparo emocional e psicolgico, no sobem de posto na empresa. Para ganhar pontos, buscam se tornar imprescindveis na agncia, acumulando tarefas acima de suas responsabilidades. Em situaes de corte de pessoal, so os primeiros a ser demitidos. Todos os que trabalham nas agncias, no entanto, esto sujeitos mesma tenso e s mesmas angstias, ainda que em menor nvel do que os caixas. De tal maneira que o principal temor dos que atuam nas reas administrativas (tcnicos e analistas) justamente o de ser transferido para uma agncia. Porm, preciso ressaltar que as exigncias colocadas para os trabalhadores bancrios mudaram. Todos foram convertidos em vendedores de crditos, emprstimos, seguros e cartes de crdito, entre outros servios. Nas agncias o pessoal adoece muito mais. Hoje alm de lidar com os clientes, o funcionrio tem que saber vender. Quem est no departamento e saiu da agncia no quer nunca mais voltar, disse um funcionrio administrativo durante a pesquisa qualitativa. No que esses trabalhadores estejam livres de doenas ocupacionais. Nesses setores, mais comum a ocorrncia de Leses por Esforo Repetitivo/Distrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho (LER/Dort). Nos departamentos [a gente] fica o tempo todo teclando, vai dormir teclando... As LER/Dort so a primeira causa de adoecimento entre a categoria e so, normalmente, associadas e reconhecidas como doenas relacionadas ao trabalho. Tanto que a Previdncia Social reajustou, em 2007, o grau de risco dos bancos de24

Walcir Previtale Bruno

1% (risco leve) para 3% (risco grave) de contribuio para o Seguro de Acidente de Trabalho (SAT). Em seguida, esto os transtornos mentais, como a segunda maior causa de afastamento da categoria. Estes, porm, ainda no tm sido relacionados ao trabalho. Quando o trabalhador apresenta um quadro de depresso, estresse ou ansiedade comum associ-lo a questes pessoais, como a perda de um ente querido ou uma separao.

Metas abusivas levam a conflito moralO sistema de cumprimento de metas (principalmente para vendas de produtos financeiros aos clientes) aparece como o grande vilo entre fontes causadoras de estresse e adoecimento. Para o bancrio, a meta em si no problema, mas sim a presso extrema para super-la. Os nmeros so eloquentes. As metas dirias estipuladas pelos bancos foram consideradas abusivas por 65% dos funcionrios das agncias e por 52% dos trabalhadores dos complexos administrativos. A diferena est no fato de os primeiros lidarem diretamente com o cliente, portanto esto mais sujeitos presso por vendas. Entre os que exercem funo de caixa, esse total sobe para 72%. Entre os gerentes, a contrariedade tambm alta: 63%. Durante junho de 2010, distribumos um questionrio que foi respondido por aproximadamente 9 mil bancrios, durante a Campanha Nacional de 2010, momento de grande mobilizao da categoria. No levantamento, 68% dos trabalhadores disseram que as metas abusivas e o combate ao assdio moral eram prioridades a serem discutidas na campanha. Os bancrios relatam que os esforos que fazem para alcanar as metas no so reconhecidos pelas hierarquias imediatas. A presso para super-las diria e constante, mesmo que desvinculadas das necessidades reais do mercado. O cliente no quer comprar, no pode comprar, no precisa comprar o que oferecido, mas o bancrio obrigado a vender, o que leva a conflitos ticos e morais. Seis a cada dez caixas, segundo a pesquisa, sentem que enganam os clientes ao vender-lhes produtos. No geral, 44% dos bancrios pensam assim. Entre os gerentes, o ndice de 45%. Muitos no hesitam em desrespeitar convices pessoais e se humilhar para atingir os objetivos impostos. Mais eloquente do que os nmeros so os depoimentos colhidos durante a pesquisa. Alguns deles:Me obrigam a fazer, seno perder o emprego.25

Sade dos bancrios

Me humilho para o meu cliente, tipo, me ajuda, por favor, que depois eu te dou um mozinha. Eu minto uma taxa de juros mais alta e finjo que dou desconto especial, da posso pedir uma reciprocidade, tipo, fazer um investimento, comprar umas dez capitalizaes, qualquer coisa para bater minha meta. Ser bancrio, ser vendedor. S valorizado quem vende. E ainda tem que fazer a fila andar.

O assdio moralNesse ambiente de competio desenfreada, autoritarismo, desvalorizao profissional e insegurana proliferam as prticas caracterizadas como assdio moral. As vtimas, em geral, so os trabalhadores que no conseguem atingir as metas abusivas. Entretanto, o assdio moral atinge todos os nveis hierrquicos dentro dos bancos, inclusive aqueles trabalhadores afastados quando do retorno ao trabalho. Aqui vale reproduzir a citao de um gerente geral ouvido na pesquisa:O paradigma criado pela globalizao o do homem produtivo, que consegue no apenas alcanar, mas ultrapassar as metas fixadas, nem que para isso tenha que lutar contra sua prpria condio humana, desprezando seu semelhante, tornando-se um sujeito insensvel e sem condicionantes ticos.

uma sntese do que se verifica no interior das agncias bancrias, embora muitos trabalhadores, acostumados a aceitar como natural a cultura imposta pelo empregador, nem sempre percebam o quanto so vtimas desse processo. Isso no impede, porm, que 42% dos bancrios pesquisados ao serem confrontados com exemplos concretos do pesquisador tenham reconhecido j ter sofrido prticas de assdio moral. Os casos mais comuns so aqueles em que seu esforo no reconhecido e o grau de cobrana s aumenta. Quase a metade dos entrevistados (49%) reclamou desse tipo de assdio. Depois vm as humilhaes em pblico (44%); as promessas que no se cumprem (37%); as ameaas de demisso, ainda que veladas (34%); o bloqueio a qualquer sugesto para melhorar as condies de trabalho (33%); e a acusao de incompetente a quem no atingiu as metas do dia, mesmo que essa pessoa tenha cumprido as metas dos dias anteriores (31%). Nos depoimentos colhidos, fica evidente no s a ocorrncia de constrangimento, como tambm o clima de terror vivido pelos bancrios. A presso por venda e produtividade faz com que a cobrana seja excessiva em todas as reas e26

Walcir Previtale Bruno

setores do banco. O assdio moral est diretamente relacionado a essa questo. Mesmo se o trabalhador atingir a meta num dia, no dia seguinte ela ser maior, ou seja, sempre inatingvel. Algumas frases de bancrios traduzem essa constante cobrana e a no valorizao do esforo:Voc no vendeu nada hoje, o que aconteceu? No veio trabalhar ou trabalhou hoje para a concorrncia? Tem que vender. Pe um decoto que voc vende. Pe uma cala mais justa, salto alto. Meu gestor no aceita justificativa, por mais que diga que no deu pra fazer, que tive reunio o dia inteiro, mesmo estando na sala dele, com ele, ele me chama de incompetente. Me proibiu de fazer meu trabalho e me colocou do lado dele vendo trabalhar. Isso pra mim assdio. Para o gestor, voc tem condies de fazer sempre mais do que a meta estipulada e a voc d o mundo e se esfora um monte, se voc vende alguma coisa tipo 100.000 voc o cara, mas depois ele esquece o meu esforo e d-lhe porrada. Quando estou batendo a meta, sou cercada de carinho do meu gerente, mas se deixo de vender um dia sou chamada de incompetente na frente de todo mundo. Quando tem excesso de trabalho, meu gestor fala mansinho e pede pra trabalhar no final de semana, noite, mas depois quando peo para ir ao mdico, ele esquece e fala, voc quer ser mandada embora?

A cobrana gera um clima opressivo, fazendo com que os trabalhadores se sintam em conflito e desestabilizados emocionalmente. comum o trabalhador chegar em casa mal, o que afeta as suas relaes pessoais, com a falta de interesse por atividades que anteriormente eram prazerosas, falta de libido e outras consequncias. O assdio moral e o desgaste emocional que provoca pode at levar a vtima ao suicdio.Eu vendi o produto para o cliente sabendo que no era bom para ele, mas era bom para o banco, eu chegava mal em casa. Ns estamos a um passo de ter depresso. Hoje eu penso duas vezes antes de reclamar. Isso protege.

27

Sade dos bancrios

Estando adoecido, voc discriminado, amanh falam que voc est fazendo corpo mole, isso um assdio moral absurdo, a empresa no quer mesmo uma pessoa assim.

H muitas situaes que podem ser classificadas de assdio moral. Trata-se de ataques verbais, gestuais, ameaas, veladas ou explcitas. O objetivo controlar totalmente o processo de trabalho, utilizando-se para isso o medo do trabalhador. uma ferramenta de manuteno de terror, atingindo a dignidade e moral da pessoa. Um exemplo de assdio a empresa se sentir no direito de humilhar os trabalhadores, pelo fato de pagar bons salrios:Minha chefe fala: voc autenticadora, e caixa logo vai estar em extino, voc tem que ser promovida, tem que se mostrar, temos que ajudar o administrativo, dar suporte para gerente, para os assistentes. Mas se eu saio do caixa, j perguntam o que eu estava fazendo fora do caixa. Se no conseguimos fazer alguma tarefa, mais pra frente isso nos prejudica para termos uma promoo. J estourei, eu confesso, fiquei muito nervoso, mas depois fiquei analisando o que eu fiz e vi que o problema estava em mim. Se voc no tem um preparo, voc no sobe na empresa.

Outra situao de assdio apontada pela pesquisa quando a empresa diz que faz um favor em manter a pessoa empregada, pois no h outras oportunidades de trabalho. O medo de perder o emprego leva o trabalhador a conviver com os constrangimentos.Se eu vou duas vezes ao banheiro por dia, eles falam: T sem servio hein? E da o chefe fica de cara feia, e se enfrentar ele, ele fala que vai mandar embora ou fala pra pedir desculpa porque enfrentou ele. Eles incentivam a mudar de rea, mas no do a liberao no t feliz aqui, vai pra outro lugar. Depende de como voc pede pra mudar, seno voc acaba ficando queimado na rea com seu gestor. Se eu adoecer, eu sei que amanh no vai ter mais trabalho pra mim dentro do banco.

28

Walcir Previtale Bruno

As doenasA organizao degradada do trabalho, as metas abusivas e o assdio constante fazem com que a categoria tenha conscincia dos riscos sua sade. Segundo a pesquisa, dois teros dos bancrios (66%) acreditam que o ambiente de trabalho em que vivem pode levar ao adoecimento. E 54% consideram que eles adoecem mais do que outras categorias profissionais. Apresentados a uma lista de 14 sintomas ligados integridade fsica e emocional, nada menos do que 84% dos entrevistados afirmaram sentir vrios deles em frequncia maior do que o normal. Os mais comuns so: estresse (65%); dificuldade para relaxar (52%); fadiga constante (47%); formigamento em ombros, braos ou mos (40%) e desmotivao (39%). Embora nas posies inferiores da lista, tambm so altos os ndices dos que tm constantes dores de cabea (33%), dores de estmago ou gastrite nervosa (30%), dificuldade em dormir, mesmo nos fins de semana (28%), vontade de chorar sem motivo aparente (28%) e sentimento de inferioridade (26%). A percepo de que o bancrio adoece mais do que outras categorias mostrase verdadeira a partir da constatao, tambm revelada pela pesquisa, de que cada um dos entrevistados apresenta em mdia 4,7 sintomas da lista de 14. E o principal deles estresse com frequncia acima do normal, que acomete 65% dos bancrios est muito acima da mdia da populao, que segundo estudos de 30%. Entre os caixas, mais uma vez, os nmeros explodem: 76%. At por conta dessa situao de estresse, o bancrio s se d conta do problema que est vivendo quando ele j est muito desenvolvido e tem chances de cura menor. Alguns depoimentos:No comeo doa muito meu brao, fui no mdico e ele quis engessar, mas no deixei, pois o meu chefe ia precisar de mim. Tinha medo de falar que doa muito para fazer o meu trabalho, ia no banheiro chorar, mas no demonstrava de jeito nenhum. No sabia por que me sentia sempre cansada, com dores no corpo, no conseguia dormir, mas sentia que no podia falar para ningum sobre isso, nem dava tempo de ir no mdico. Imagine pedir alguns dias de licena por causa das dores que sentia, pois nem mesmo sair de frias era possvel, pois corria o risco de quando chegar estar tudo mudado e no ter lugar mais para mim.29

Sade dos bancrios

O afastamentoO perfil dos bancrios que se afastam por problemas de sade acentua o ciclo de perversidades do sistema. Em sua maioria, so profissionais exemplares, daqueles que do a vida pelo banco em busca de reconhecimento e ascenso. Assumem tarefas acima de suas responsabilidades, esto sempre disponveis para horas extras e finais de semana, aceitam a presso e defendem as regras impostas pelo banco. Com salrios, abonos, extras, etc., os bancrios se transformam no principal provedor do oramento familiar. Isso faz com que eles no tenham tempo para a famlia, para os amigos e nem para cuidar de si mesmos. Essas condies, em geral, agravam os sintomas, e o afastamento acaba se tornando inevitvel. Nessa hora, ele percebe que o esforo de anos j no vale nada. Com as licenas mdicas, comea o processo de isolamento e discriminao, tanto dos gestores como dos colegas. Tambm aqui, os depoimentos colhidos na pesquisa so contundentes:Fui no mdico e ele mandou fazer fisioterapia, mas voc acha que falei pro banco? T louco, eu no. Com a doena muda tudo, sabemos de antemo que perderemos tudo que lutamos a vida inteira. Quando meus funcionrios ficam doentes, j sei o que fazer com eles nada nunca mais. Tinha vergonha de ir buscar meu salrio na agncia, parecia que todos me culpavam, que eu no queria trabalhar, que eu no estava doente.

Tem incio, ento, uma longa lista de perdas: perda do status, da rotina de trabalho, do poder de compra, das relaes sociais, da autoestima, da estabilidade no crculo familiar, entre outras, alm do surgimento de limitaes fsicas impostas por algumas das doenas. As percias mdicas (durante as quais o bancrio tem que provar que a doena foi causada pelo trabalho) e o retorno agncia em condies humilhantes (ele visto como incapacitado e acaba colocado em funes menores) fazem parte de um processo desgastante que agravam ainda mais as condies de sade do empregado.

30

Walcir Previtale Bruno

ConclusoO resultado dessa pesquisa, a mais ampla j realizada no Brasil sobre o tema, mostra com clareza a necessidade urgente de intervir na organizao do trabalho. perceptvel entre a categoria que o sistema de metas imposto de cima para baixo, sem conexo com as realidades de mercado, est relacionado s prticas de assdio moral. O bancrio identifica que as metas abusivas so o principal fator de estresse e adoecimento. Temos feito vrios esforos para levar esse debate aos trabalhadores e alterar esse ambiente e relaes de trabalho degradados. Nem os bancrios, nem o Sindicato so contra o estabelecimento de metas de produtividade, mas preciso desenvolver uma relao democrtica e justa, de maneira que a opinio do trabalhador tenha peso em sua definio, pondo fim aos abusos, s presses e s humilhaes aqui relatadas. As metas devem ser estabelecidas de forma coletiva, pelo conjunto dos trabalhadores, e devem ser levadas em conta questes como: porte da unidade, localizao, nmero de funcionrio, carteira de clientes, perfil econmico da regio etc. Alm disso, preciso haver espaos de dilogo, onde os trabalhadores possam discutir os reais motivos que levaram ao no cumprimento de uma determinada meta. O fato de oito entre dez bancrios declararem ter sofrido pelo menos um sintoma de problemas fsicos e mentais e, em mdia, terem quatro sintomas concomitantes, mostra que a categoria bancria se encontra em franco processo de adoecimento e que trabalha igualmente em um ambiente de trabalho doente. E que ao do Sindicato ainda mais necessria. Por outro lado, os bancos precisam investir rapidamente em programas de preveno, reabilitao profissional, bem como ampliar suas aes de sade e segurana no trabalho (SST). O nosso objetivo que o trabalhador bancrio tenha uma vida mais digna e saudvel. Sem opresso, humilhao e adoecimento. Menos metas e mais sade.

31

Trabalho, subjetividade e confianaChristophe Dejours1 Isabelle Gernet2

IntroduoNeste artigo, os autores propem uma discusso sobre a questo da confiana nas situaes de trabalho. apresentada uma definio de trabalho que parte do princpio de uma subjetividade e que se torna pertinente permitindo uma leitura mais crtica dos fenmenos clnicos como os suicdios nos locais de trabalho. De acordo com essa definio, o trabalho no se caracteriza apenas por um empenho individual, mas implica relaes entre os agentes que lideram a construo e a formalizao das regras de trabalho. Estas regras representam, em princpio, formas efetivas de cooperao que devem ser distintas das formas prescritas da coordenao. Dessas formas de cooperao no trabalho depende a construo da confiana. Aquilo que estaria envolvido com a gesto, em relao s condies compatveis com o desenvolvimento da confiana no trabalho, tratado no final do captulo. A anlise, como um todo, est baseada na teoria e em resultados clnicos de pesquisas em psicodinmica do trabalho, desenvolvidas principalmente na Frana, no Brasil e no Canad nos ltimos 30 anos. A investigao clnica de constrangimentos revela aspectos particulares na subjetividade do relacionamento com o trabalho, que pem em prova construes tericas como os dispositivos de interveno. A introduo de novos mtodos de gesto, associada a ferramentas especficas, como as novas tecnologias de informao e comunicao (NTIC), transformam profundamente o trabalho e colocam em questo as relaes entre trabalho e subjetividade. Hoje em dia, a questo da sade mental e fsica no trabalho encarada com base na apario e na recrudes1 Professor titular da cadeira Psychanalyse Sant Travail, Conservatoire National des Arts et Mtiers, diretor da equipe de pesquisa Psychodynamique du Travail et de lAction. 2 Matre de Confrences, Universit Paris Descartes, membro da equipe de pesquisa Psychodynamique du Travail et de lAction.

33

Sade dos bancrios

cncia de entidades clnicas no campo da psicopatologia do trabalho: patologias de sobrecarga, hiperativismo profissional, depresses, suicdios, patologias pstraumticas ou, ainda, assdios, so as formas mais frequentes. Na primeira parte do captulo, ns apresentaremos como possvel defender uma anlise do trabalho que leve em conta a subjetividade. Dessa definio, decorre uma concepo crtica sobre a vulnerabilidade individual, que ser abordada em uma segunda parte. Enfim, na parte final, ns mostraremos em que a anlise das transformaes atuais do mundo do trabalho pode se beneficiar de uma reflexo sobre o papel da confiana nas relaes de trabalho.

Qual definio de trabalho?As descries em psicodinmica do trabalho tm sua origem na investigao clnica das situaes de trabalho e permitem propor uma definio do trabalho organizado em torno daquilo que est implicado, do ponto de vista humano, o fato de trabalhar. Essa concepo se distingue das abordagens mais clssicas, que designam o trabalho como uma relao salarial ou a uma atividade de produo social. A psicodinmica do trabalho apoia esta definio sobre uma descoberta fundamental da ergonomia, a saber: a irredutibilidade e a discrepncia entre o trabalho prescrito e o trabalho efetivo. As descries produzidas pelos ergonomistas permitem diferenciar a tarefa que corresponde aos objetivos a serem atingidos, e a atividade que corresponde quilo que feito concretamente pelo trabalhador na tentativa de atingi-los. Independentemente da preciso das instrues e das prescries dadas pela organizao do trabalho, sempre ocorrem imprevistos ou mau funcionamento, de tal maneira que o respeito escrupuloso das prescries no permitiria que se atingissem os objetivos se um trabalhador delas no se distanciasse, no as transgredisse. Em outros termos, se as prescries so respeitadas ao p da letra, como numa operao-padro, nada funciona. Por outro lado, a criatividade, a cooperao e, ainda, a confiana, escapam de uma descrio e no podem ser prescritas. Para executar a tarefa designada , ento, necessrio que o trabalhador demonstre engenhosidade, iniciativa e inventividade. O trabalho , portanto, definido como o conjunto de atividades desenvolvidas por aqueles e aquelas que trabalham para enfrentar aquilo que no prescrito pela organizao do trabalho. Essa busca do melhor compromisso entre as exigncias da tarefa e as intenes do sujeito envolve uma mobilizao da subjetividade na sua totalidade, independentemente do grau de automatizao da tarefa. O trabalho exige que se ponha em prtica o saber-fazer e habilidades precisamente em que o conhecimento e a tcnica so insuficientes ou falhos para assegurar o domnio do processo de trabalho. , na verdade, sempre pela falha ou pelo fracasso que se pode conhecer a discrepncia entre o prescrito34

Christophe Dejours | Isabelle Gernet

e o efetivo. Pelo fato de que o mundo real resiste ao seu domnio, o sujeito se encontra em confronto com a dvida, com a hesitao, com os erros que acarretam uma impresso de fracasso do conhecimento, dos procedimentos, do saber-fazer. A experincia do trabalho , antes de tudo, uma experincia afetiva na qual preciso suportar o fracasso e ser capaz de se familiarizar com o real para adquirir um conhecimento par corps3 da mquina, da ferramenta ou da matria a ser tratada. Por meio da anlise dos processos subjetivos mobilizados no encontro com o trabalho, a psicodinmica do trabalho se dirige para a defesa da tese da centralidade do trabalho para a subjetividade com o objetivo de identificar as condies nas quais este estruturante ou, ao contrrio, patognico para a sade mental. Em que medida a situao de trabalho pode oferecer um cenrio que permita ao sujeito a realizao de sua identidade? E em que medida esta mesma situao pode fragilizar a subjetividade?

Real do trabalho, qualidade do trabalho e vulnerabilidadeO surgimento de suicdios nos locais de trabalho, nos anos de 1990, traz srios problemas do ponto de vista da anlise das suas causas e das relaes com o trabalho. A maioria dos clnicos defende uma concepo etiolgica da passagem ao ato suicida baseada na vulnerabilidade psicolgica. Entretanto, o argumento da vulnerabilidade ou da predisposio psicolgica se mostra insuficiente para explicar os suicdios que se produzem nos locais de trabalho. Parece, na verdade, que um nmero importante de casos de suicdio no trabalho cometido por sujeitos particularmente eficazes no plano profissional, bem apreciados pelos colegas e pela hierarquia, e que no apresentavam nenhum antecedente psiquitrico. Como compreender, ento, que sujeitos particularmente engajados no seu trabalho se suicidem? Uma anlise da relao entre qualidade do trabalho e a subjetividade se revela, neste caso, necessria. O encontro com o real, ns sugerimos anteriormente, conduz os sujeitos a se valerem de truques, jeitos, astcias, habilidades que revelam um exerccio particular da inteligncia, que, frequentemente passam despercebidos, fato que conduz utilizao, por vezes, como pretexto de desqualificao. Entretanto, trabalhar desenvolver a inteligncia para enfrentar o real que resiste. Esta inteligncia no aquela descrita pelas teorias clssicas da Psicologia, Sociologia ou da Lingustica, habitualmente definida como uma atividade cognitiva de resoluo de problemas. A inteligncia em questo uma forma descrita a partir da anlise de situaes3 Nota do Tradutor: Em uma citao ao p da letra, par corps poderia ser substituda, em portugus, por por corpo, ou de corpo, numa aproximao com outra expresso mais corrente de cor, que se refere a um aprendizado de corao, adquirido, de memria, interior. O par corps do texto em questo reivindicaria, portanto, um conhecimento corporal da mquina.

35

Sade dos bancrios

de trabalho comuns, que se caracteriza pelo fato de que o sujeito no conhece a soluo do problema encontrado: trata-se, ento, de uma inteligncia inventiva (DETIENNE; VERNANT, 1978). Diversas condies mobilizam esta inteligncia. O sujeito se mostra capaz de inventividade: se, possuindo uma verdadeira habilidade tcnica ele encontra, ainda assim, o real e experimenta o fracasso; se ele est apto a enfrentar o fracasso; se ele consegue se familiarizar com o real e tolera o pensamento que, mesmo alm do tempo de trabalho, possa ser, s vezes, por ele invadido na sua vida privada. A determinao do sujeito em encontrar uma soluo para o problema oriundo da situao do trabalho exige uma mobilizao de seu desejo e sua vontade e, ento, um esforo psquico constante que pode levar at insnia. Em outros termos, para se tornar hbil, preciso se engajar integralmente, o que muito custoso psiquicamente. O investimento psquico determina o modo de se implicar subjetivamente na tarefa e contribui para sustentar o engajamento em um trabalho de qualidade. Para o clnico, aquilo que mobiliza as pessoas no trabalho tem suas razes nos enigmas deixados pela infncia. O que h de mais frgil est igualmente na origem da possibilidade de se mobilizar no trabalho na tentativa de superar, graas prova do trabalho, os fracassos da histria singular. l onde atua o n da vulnerabilidade, onde se encontra tambm o esprito da inteligncia, do investimento apaixonado no trabalho e do talento. Quando o sujeito descompensa, revelam-se as falhas e fragilidades que foram exploradas anteriormente no encontro com o trabalho. O prazer obtido da relao com o trabalho depende da retribuio por meio do: sucesso na capacidade de resolver problemas; e do reconhecimento do trabalho formulado por outros. O trabalho no pode ser descrito por uma formulao solipsista, j que esto sempre implicadas relaes com outros (os colegas, a hierarquia, osclientes). O aparecimento dos suicdios no seria, portanto, uma evidncia de aumento de falhas ou de vulnerabilidades prprias dos indivduos contemporneos, j que a vulnerabilidade est nos prprios fundamentos da construo da identidade singular atravs da relao subjetiva com o trabalho. Os suicdios nos locais de trabalho seriam o sinal de que alguma coisa mudou na economia das relaes entre o ser humano e o trabalho.

A confiana: uma questo pertinente?Se o trabalho pode permitir a superao de falhas geradas pelas histrias singulares e representar um poderoso meio pelo qual a identidade pode se estabilizar, ento a privao de trabalho e o desemprego de longo prazo fragilizam a sade36

Christophe Dejours | Isabelle Gernet

mental. Sabe-se tambm que certas formas de organizao do trabalho podem contribuir para o aparecimento de distrbios psicopatolgicos (depresses, patologias do assdio e suicdios, por exemplo). Desde o final dos anos 1980, remanejamentos importantes modificaram profundamente as formas de organizao do trabalho, especialmente a partir da introduo massiva dos mtodos de gesto (SENNET, 1998). Nas novas formas de organizao, o privilgio acordado gesto gera distores nas relaes que o trabalho permite que se mantenha com o real. A referncia exclusiva aos custos conduz ao agravamento das contradies entre a rentabilidade e a qualidade; ela desestrutura o sentido do trabalho, uma vez que no mbito da mobilizao psicolgica, o que importa. A referncia aos valores econmicos no ausente, mas secundria. Por outro lado, a propagao de formas de controle oriunda da gesto por objetivos vem acompanhada de um chamado autonomia e responsabilidade de cada um na gesto. Essas distores levam a uma desqualificao do trabalho, daquilo que constitui o trabalho benfeito e de qualidade e trazem uma perda progressiva das referncias aos valores da profisso. Qualidade total e avaliao individualizada do desempenho so as principais ferramentas que caracterizam o cerne da gesto no que diz respeito ao aspecto qualitativo do trabalho, a partir da crena na possibilidade de avaliar quantitativamente o objeto trabalho. Os meios utilizados consistem, essencialmente, em acompanhar os resultados do trabalho (prticas de controle e de reporting) e no o trabalho ele mesmo, fato que engendra uma concorrncia dramtica entre os servios e entre os colegas devido implementao de um sistema de premiao ou, s vezes, de ameaas visando a um controle do comprometimento e da responsabilidade individuais nos resultados coletivos. Por meio de condutas desleais, a confiana e a ajuda mtua desaparecem, o reino do cada um por si. Nesse contexto, os bons resultados dos colegas acabam representando uma ameaa. Trata-se ento, para cada um, de suportar a solido em um clima potencialmente hostil. As modalidades desta solido e deste isolamento devem ser analisadas no detalhe, seguindo aquilo que H. Arendt (1973) teorizou sob o termo de desolao (loneliness). O desaparecimento do senso comum fragilizaria eletivamente as prticas de resistncia coletiva face dominao e injustia. Quando um ataque injusto se produz contra um dos trabalhadores, as marcas de solidariedade so cada vez mais inexistentes. Para a vtima da injustia resta a perplexidade, fato que agrava a situao. Do ponto de vista clnico, a deteriorao do senso comum de justia altera as capacidades de pensamento: o sujeito no sabe mais o que bom ou ruim, justo ou injusto. O impacto subjetivo da ameaa (transferncia como punio ou mesmo a recusa de um pedido de transferncia como punio) torna-se, ento, mais importante. O sujeito vive a experincia, e no apenas a injustia, mas tambm37

Sade dos bancrios

a traio dos outros. Os outros vivem a experincia do medo e da covardia. Esses ltimos so levados a colaborar com atos que eles mesmos reprovariam, experimentando a sua prpria covardia. o conjunto da dinmica do reconhecimento que se v aqui desestabilizado por conta da ruptura do contrato moral firmado com a empresa. O sujeito que trabalha contribui com a empresa e com a sociedade na espera de uma retribuio simblica na forma de reconhecimento. Essa retribuio moral ou simblica se ampara essencialmente em avaliaes qualitativas do trabalho, que se apoiam: por um lado, na utilidade econmica, tcnica ou social da contribuio a partir de julgamentos formulados essencialmente pela hierarquia (julgamento de utilidade); por outro lado, na conformidade do trabalho com relao s regras da arte e da profisso, proferida pelos pares (julgamento de beleza). Essas provas, em particular o julgamento de beleza, tm um papel maior na identidade, j que conferem ao trabalhador seu pertencimento a uma comunidade, a um coletivo no trabalho. Por meio do reconhecimento da qualidade do trabalho efetuado, a identidade singular pode se consolidar. Ao contrrio, quando este reconhecimento recusado ou retirado, para a identidade, existem riscos de desestabilizao. Que explicao poderamos propor para o fato de que os sujeitos no reagem injustia e parecem abandonar todas as suas responsabilidades ante a seus colegas? Parece que, com base nas investigaes clnicas, os requisitos de ao coletiva no so mais mobilizveis no contexto das novas formas de organizao do trabalho. O combate contra a injustia e a responsabilidade com relao a outrem, s so assumidos, como riscos subjetivos, se houver confiana no outro. A constatao atual a de que a confiana no meio do trabalho est gravemente comprometida. Como proceder para rebater esta constatao? Antes de querer saber quais so os impulsos da confiana no trabalho, faz-se necessrio que se proponha uma definio. A confiana aparece como um problema complexo para o qual a contribuio da anlise clnica se revela insuficiente. Os clnicos apresentam-se normalmente como especialistas da desconfiana, j que ela aparece como sintoma central em muitas patologias mentais (como, por exemplo, a paranoia). Constata-se, entretanto, que a confiana se apresenta antes como um problema tico de filosofia moral do que como uma questo clnica. Uma anlise proposta pela filosofia moral se faz necessria antes que se pretenda uma retomada da discusso sobre a confiana no trabalho com base em um ponto de vista do clnico. Nas obras moralistas religiosas, a confiana considerada como um requisito frente a Deus, enquanto objeto de maior legitimidade, ou38

Christophe Dejours | Isabelle Gernet

ainda, nico da confiana. Esta dimenso faz com que apaream conflitos de interpretao que so importantes face concepo moderna de confiana. De fato, para A. Baier (2004, p. 354), confiar em uma pessoa se colocar em um estado de dependncia ou prolongar um estado de dependncia aos cuidados da competncia e da boa vontade desta pessoa. aceitar estar vulnervel e admitir que o depositrio da sua confiana exerce um poder sobre si ou sobre qualquer coisa de importante para si. Existe, entre as concepes religiosa e laica, uma diferena radical na apreciao relativa s relaes entre aquele que confia e aquele que o depositrio. Na concepo teolgica, aquele que confia tambm aquele que est do lado do dever (de obedecer). Na concepo poltica do governo (Locke ou Hobbes), este que o depositrio da confiana que tem o dever de se mostrar digno. Nas relaes de confiana no trabalho, como identificar quem que tem o dever com relao ao outro? aquele que oferece segurana ou aquele que aceita? A confiana se apresenta, a priori, como algo honroso e desejvel. Entretanto, a confiana est longe de ser sempre louvada ou elogiada por todos os pensadores. Alguns, como Descartes, pronunciam reservas importantes em relao confiana. Desta maneira, no que diz respeito ao mdico, Descartes afirma que preciso sempre desconfiar e que melhor voltar-se a si mesmo, assim como Montaigne, que se mostrava reticente frente figura do educador. Essa desconfiana relacionada aos profissionais da educao e da sade, assim como a que se direciona aos dirigentes do Estado e da Igreja, acompanhada de uma proporcional confiana em si. Esses autores crticos defendem, ento, no o recurso da confiana no outro, mas o recurso da confiana em si. Quais so os impulsos da confiana em si? Em Descartes, os impulsos da confiana pessoal esto baseados na razo, e o uso da razo possvel para todos ns. Ao mesmo tempo, a partir do desenvolvimento terico da Psicologia e da Psicanlise, possvel se opor a certos aspectos dessa anlise. As disciplinas como a Filosofia ou a Sociologia omitem aquilo que J. Laplanche chama de a situao antropolgica fundamental,com base na qual o sujeito se insere no mundo sempre por meio da vulnerabilidade, da desigualdade, da dominao e da dependncia (LAPLANCHE, 1997). Antes de se tornar adulto, preciso ter sido criana, e ser criana inevitavelmente experimentar dependncia com relao aos outros. As teorias recentes do care mostram que a vulnerabilidade, a ateno e o cuidado no dizem respeito apenas s crianas, mas ao conjunto dos sujeitos e, especialmente, aqueles que esto engajados no mundo do trabalho (TRONTO, 1993). Descartes teoriza sobre um sujeito adulto, dotado de razo, mas para o clnico, mesmo o mais razovel entre ns experimenta aquilo que da criana persiste no adulto. Na39

Sade dos bancrios

perspectiva moderna mais recente, confiar arriscar certos aspectos do seu futuro apostando na lealdade da pessoa em quem se confiou. precisamente nessa perspectiva que se encontra a problemtica da confiana na relao com o trabalho, j que a confiana tem uma ligao direta com a experincia da prpria vulnerabilidade, notadamente no que diz respeito ao risco que se incorre quando se est engajado no trabalho. A relao subjetiva com o trabalho supe, j foi dito, experimentar a prpria vulnerabilidade na luta pela prpria identidade e pela expectativa por reconhecimento justo da sua contribuio pelos outros (pares, chefes, subordinados e clientes). Se recusamos ver na relao de confiana um simples clculo racional resultante de um estado conotativo-cognitivo e tentarmos encar-la como um sentimento, ento, a confiana aparece como um sentimento de entusiasmo. O que inspira a confiana? Responder a esta questo remete a uma questo de tica e no de psicologia, sublinhando a figura filosfica da promessa. A fidelidade promessa feita primordial, j que, pela sua promessa, uma pessoa livre convida outra a lhe voluntariamente ter confiana (BAIER, 2004). Mas a promessa tem um papel essencial no trabalho? Certamente, entretanto somente a referncia promessa seria insuficiente, j que, como lembra Hume, a promessa um dispositivo que permite aumentar o clima e a confiana e no instaur-lo (HUME, seo III, 1751). Outra alternativa promessa seria o contrato, o que Descartes admite ser til no mbito do comrcio e que a punio desejada, talvez necessria para remediar a inconstncia das almas fracas (BAIER, 2004; DESCARTES, seo III, 1637). A problemtica do contrato, mais do que aquela da promessa, compreendida na perspectiva rousseauniana, poderia ter um papel fundamental no somente no comrcio, mas igualmente nas relaes de trabalho. Existe de fato, no mbito do Direito, uma corrente de anlise que interpreta as patologias mentais ligadas ao trabalho como o resultado da traio e da violao do contrato de confiana que une a empresa ao seu assalariado. Mas existe alguma outra via de anlise que trate da construo das relaes de confiana no trabalho? Uma resposta afirmativa possvel quando se faz um desvio para a anlise da relao com o trabalho e mais particularmente pela questo da cooperao que no funciona sem uma relao de confiana. No h cooperao possvel no trabalho sem confiana. A referncia cooperao traz um ponto de vista original para a anlise das origens da construo das relaes de confiana, diferente daquela proposta pelos pensadores. A confiana est fundamentada, com base na clnica do trabalho, sobre a referncia regra ou mais exatamente sobre o respeito s regras de trabalho. A anlise deve, ento, ser deslocada para as modalidades de construo dessas regras. Nossa hiptese principal atm-se ao postulado segundo o qual na construo de regras que reside o poder de reconstituir a40

Christophe Dejours | Isabelle Gernet

confiana nas relaes de trabalho. Em outros termos, a cooperao no funciona sem relaes de confiana estruturadas pela referncia e no respeito s regras do trabalho. Da mesma maneira que existe uma distino entre a tarefa e a atividade, existe uma diferena entre os procedimentos transmitidos e as ordens que remetem coordenao, de um lado, e cooperao, de outro. Da mesma maneira que a subverso dos procedimentos e das regras impostas est no corao da inteligncia individual no trabalho, a cooperao se distingue da coordenao prescrita porque ela se apoia em regras de trabalho que so constitudas por aqueles que trabalham juntos, para subverter a organizao prescrita do trabalho. A cooperao o fruto de uma luta contra a coordenao. Esta luta no visa destruio da coordenao, mas pretende ajust-la, a fim de que ela se torne mais compatvel com as dificuldades imprevistas que surgem no real do trabalho. O momento mais importante na construo das regras se encontra na existncia de um espao de deliberao. Este espao existe em encontros nos quais os sujeitos se juntam, confrontam seus pontos de vista e procuram tornar inteligvel para os outros a maneira pela qual eles procedem para trabalhar. O trabalho, para se configurar como um objeto de discusso, deve tornar-se visvel, j que, no essencial, ele se caracteriza pela sua invisibilidade, devido ao engajamento subjetivo que ele pressupe. passando pela palavra dos sujeitos que se torna possvel acessar aquilo que se constitui como o prprio trabalho vivo. J que o trabalho exige do corpo uma mobilizao que experimente o medo, a dvida, a perplexidade, o prazer do xito So, geralmente, as mudanas sentidas pelo corpo (barulhos, cheiros, calor e, ainda, tdio) que mobilizam a curiosidade e a busca por uma soluo. O conhecimento do mundo pelo corpo denominado corpropriao4 (HENRY, 1987). O conhecimento do mundo resulta em um conhecimento sensvel que difcil de explicitar com palavras, mesmo para aquele que faz, no sentido em que a inteligncia do corpo est sempre frente de sua simbolizao. Contudo, no processo de deliberao, trata-se, para cada um, de dizer como foi que se procede e tambm de mostrar suas insuficincias, suas impercias, at mesmo seus fracassos. O risco de se expor s ser possvel se existir confiana nos outros, porque tornar visvel e explcito o trabalho concreto so comumente encarados como difceis e arriscados. Aceitar a contradio que vem de outrem e suportar que se tornem explcitas suas falhas engaja o sujeito com relao ao outro, ele se torna responsvel por seus atos com relao a si prprio e com relao aos outros. A referncia ao processo de deliberao traz uma contribuio original sobre a questo da responsabilidade,4 N. do T: No original, a expresso corpspropriation composta pela aglutinao dos dois termos corps (corpo) e appropriation (apropriao), da a justificativa da escolha ter sido guiada pelo mesmo processo de composio da expresso.

41

Sade dos bancrios

prxima daquela que deriva do pensamento de Lvinas (1906 - 1995). Para ela, a tica seria concebida no como uma reflexo individual, mas como o fruto de uma relao que o sujeito mantm com outros sujeitos (BEVAN, CORVELLEC, 2007). O ponto suplementar trazido pela clnica do trabalho est no fato de que as relaes entre os sujeitos so aqui estruturadas pela centralizao do trabalho. Procurar mostrar aquilo que se fez se traduz, imediatamente, em uma obrigao de justificao. Os argumentos utilizados no so apenas tcnicos, mas so tambm temperados com outros elementos mais subjetivos de carter opinativo. O espao de deliberao , ento, um espao onde as pessoas formulam opinies. Quando a atividade de deliberao sobre o trabalho funciona, possvel produzir um consenso na forma de acordos entre as pessoas, com relao quilo que ou no eficaz para se produzir um trabalho de qualidade. O somatrio de vrios acordos se estabiliza, em seguida, sob a forma de regra de trabalho. A confiana se constri na capacidade dos sujeitos de mostrarem que eles conhecem as regras e que as respeitam; que eles tambm so capazes de burl-las, uma vez que a regra no pode se reduzir a uma aplicao estrita. A regra evolutiva e beneficia a contribuio ativa e renovada daqueles que trabalham juntos. A atividade de produo de regras de trabalho denomina-se atividade dentica. A anlise da construo das regras de trabalho representa uma maneira de poder reconstituir a confiana nas relaes de trabalho uma vez que a responsabilidade se torna (novamente) compartilhada e representa um dos maiores requisitos da ao. Em outros termos , em primeiro lugar, na atividade dentica que se encontram os fundamentos da confiana entre as pessoas, que se distingue da inspirao ou do contrato, uma vez que as regras tm, por funo, estabilizar aquilo sobre o que os sujeitos podem trabalhar juntos e de constituir uma equipe ou um coletivo de trabalho. Conjurar o medo e a solido pela perpetuao da cooperao permite a renovao da capacidade de convvio e do viver junto, associados com a eficcia tcnica. Uma vez que toda regra de trabalho uma regra que visa eficcia de ordem tcnica, mas tambm a manuteno e renovao do mundo social, atravs do viver junto. A confiana aparece, ento, como um elo indispensvel para pensar os impulsos da sade mental no trabalho.

ConclusoA anlise clnica do trabalho, quando concede um lugar central subjetividade, de um lado, e a materialidade do trabalho, de outro, contribui na defesa de uma posio crtica da responsabilidade, na qual o sujeito se encontra engajado com relao a outrem pelo fato de trabalhar. A questo da confiana torna-se um referencial particularmente pertinente para dar conta das transformaes das42

Christophe Dejours | Isabelle Gernet

modalidades de organizao do trabalho e de seus efeitos naqueles e naquelas que trabalham. Em um contexto em que as concepes de gesto do trabalho contribuem para aumentar a carga de trabalho, para comprometer os valores ticos do trabalho benfeito, e para desmantelar os espaos informais de convivncia, faz-se urgente repensarmos modos de cooperao no trabalho.

RefernciasARENDT, H. The Origins of Totalitarism. [S.l]: Mariner Books, 1973. BAIER, A. C. Confiance, Dictionnaire dEthique et de Philosophie Morale. Tome 1. Paris: PUF, 2004. p. 353-359. BEVAN, D.; CORVELLEC, H. The impossibility of corporate ethics: for a Levinasian approach to managerial ethics, Business Ethics: A European Review, [S.l], v. 16, n. 3, p. 208-219, 2007. DESCARTES, R. Discourse on method and meditations. New York: The Liberal Art Press, 1960. DETIENNE, M.; VERNANT, JP. Cunning Intelligence in Greek Culture and Society. [S.l]: Harvester Press, Humanities Press edition, 1978. HENRY, M. La barbarie. Paris: PUF, 1987. HONNETH, A. Work and Instrumental Action. Journal of Critical Theory and Modernity, [S.l], n. 26, p. 31-54, 1982. HUME, D. (1751) An Enquiry concerning the Principles of Morals. New York: CW. Hendel Editions, 1955. LAPLANCHE, J. The Theory of Seduction and the Problem of the Other. The International Journal of Psychoanalysis, [S.l], n. 78, p. 653-666, 1997. SENNET, R., The Corrosion of Charater: the Personnal Consequences of Work in the New Capitalism. [S.l]: Norton and Company, 1998. TRONTO, J. Moral Boundaries: a Political Argument for an Ethic of care. [S.l]: Routledge, 1993.

43

Trajetrias de trabalhadores bancrios entre o sonho e o real do sofrimento patognicoLaerte Idal Sznelwar1 Luciano Pereira2

IntroduoComo podemos caracterizar as trajetrias de diferentes trabalhadores bancrios? Nosso objetivo aqui no buscar uma generalizao respaldada por uma amostragem considerada estatisticamente vlida, mas sim, com base em relatos de sujeitos sobre suas trajetrias profissionais, entender e refletir sobre a vivncia no e do trabalho, vivncia essa constituda por desejos e iluses, pelos constrangimentos da organizao do trabalho, pelo sofrimento patognico, a doena e a busca de reabilitao. Em princpio, se nos ativermos aos preceitos da psicodinmica do trabalho, a histria de qualquer sujeito que trabalha poderia e seria bem-vindo que assim o fosse ser construda de modo a torna-se um profissional cada vez mais realizado e que trilhasse caminhos que o possibilitassem se emancipar. Alm disso, a construo de uma narrativa pessoal mediada favoravelmente pelo trabalho poderia ser um caminho para a construo de sua sade, j que esta fortemente imbricada com o reconhecimento de sua contribuio (DEJOURS, 2008b). Ao tratarmos de sujeitos, no estamos nos referindo a seres isolados que vivem restritos ao que ocorre no mbito da sua vida psquica, pois o que intrasubjetivo resulta, de alguma maneira, daquilo que intersubjetivo. Uma vez que os seres humanos so seres relacionais, o que somos resulta da inter-relao com o outro. Com relao ao trabalho isso da maior validade, pois aquilo que fazemos,1 Mdico, doutor em Ergonomia, ps-doutor em Psicodinmica do Trabalho e professor do Departamento de Engenharia de Produo da Escola Politcnica da Universidade de So Paulo (USP). 2 Graduado em Cincias Sociais e doutor em Filosofia, ambos pela Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da USP. Atualmente, leciona Sociologia na Facamp.

45

Sade dos bancrios

aquilo que nos tornamos fazendo e aquilo que conseguimos por meio da vida profissional passa pelo que os outros acham, pelo que os outros nos propiciam e como ns mesmos agimos com os outros. Em outras palavras, o trabalho tem sempre conotaes coletivas e a busca de emancipao no trabalho se d, principalmente, atravs das mais diferentes formas de cooperao (DEJOURS, 2009). Mas esses processos no se estruturam pela harmonia entre as partes. Pelo contrrio, eles s podem ser entendidos pelo confronto entre os desejos e as ideias de cada um e as possibilidades que os modos de organizar o trabalho propiciam. Isto , os sujeitos se vm diante do real que, de uma maneira ou de outra, resiste quilo que o sujeito faz. Trabalhar significa agir em um contexto heterodeterminado, cujas possibilidades de transformao esto, muitas vezes, distantes do poder que cada um tem para interferir na situao de trabalho. As possibilidades de resistncia dos sujeitos s situaes consideradas como injustas e como propcias ao desencadeamento de sofrimento patognico no seriam o fruto de uma benesse concedida. Mudanas no trabalho ocorrem por causa da resistncia de cada um e do encadeamento de aes coletivas, ainda mais quando este est permeado por relaes de opresso. Para tanto, necessrio um posicionamento no mundo que no seria o mais prevalente, uma vez que, a grande maioria das pessoas luta para se manter empregada e includa na sociedade como algum til. Assim, o fato de colaborar com um sistema que, no final das contas, seria deletrio para a sua sade e para o seu desenvolvimento como profissional e cidado, no deixa de ser uma escolha. Escolha complicada, mas compreensvel, uma vez que, por motivos os mais justos, as pessoas se sujeitam situao que lhe parece imutvel, abrindo assim o caminho para a submisso (MOLINIER, 2006). A alienao no tomada aqui como um dado, mas como um desfecho possvel da relao com o trabalho (DEJOURS, 2008a). Nesse caso, uma de suas vias seria a de que, ao aceitar certas condies impostas, as pessoas encontram possibilidades de trabalhar, vivendo a expectativa, s vezes ilusria, de que conseguiro galgar melhores posies em uma determinada empresa ou profisso, obtendo assim melhores condies para realizar seus sonhos. No se trata de esquecer a presso exercida sobre os trabalhadores pela reestruturao produtiva no sistema bancrio brasileiro, principalmente nos anos 1990 (JINKINGS, 2002). Todos os nossos entrevistados comearam suas carreiras entre o final dos anos 1980 e incio dos anos 1990, ou seja, alm de terem vivenciado os efeitos da reestruturao, conviveram com altas taxas de desemprego caractersticas deste perodo. No entanto, nesta mesma poca, as inmeras variaes em torno da ideologia do capital humano (LPEZ-RUIZ, 2004) passam a povoar o imaginrio46

Laerte Idal Sznelwar | Luciano Pereira

social. Ento, o culto ao esforo individual, valorizao da formao permanente e ascenso social ganharam fora, enfraquecendo os coletivos de trabalho e sindicatos. Quando esse imaginrio confrontado com o mundo do trabalho, aliado ao medo do desemprego, ele mostra toda a sua fora; pois o horizonte da desiluso se descortina cotidianamente, enquanto o sonho pode ser mantido por dcadas. Mudar esse cenrio, criar condies para que o trabalho seja, de fato, um meio de emancipao para a grande maioria dos trabalhadores que atuam no setor bancrio-financeiro, um