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  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE MINAS GERAIS Programa de Ps-graduao em Direito

    USUCAPIO ESPECIAL COLETIVA NO ESTATUTO DA CIDADE

    Guilherme Raso Marques

    Belo Horizonte 2008

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  • Guilherme Raso Marques

    USUCAPIO ESPECIAL COLETIVA NO ESTATUTO DA CIDADE

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduao em Direito da Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Direito.

    Orientadora: Marinella Machado Arajo.

    Belo Horizonte 2008

  • FICHA CATALOGRFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais

    Marques, Guilherme Raso M357u Usucapio especial coletiva no Estatuto da Cidade / Guilherme Raso Marques.

    Belo Horizonte, 2008. 164f.

    Orientadora: Marinella Machado de Arajo Dissertao (Mestrado) Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais. Programa de Ps-Graduao em Direito.

    1. Usucapio. 2. Direito moradia. 3. Urbanizao. 4. Propriedade urbana. 5. Direitos fundamentais. 6. Direito urbanstico. I. Arajo, Marinella Machado de. II. Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais. Programa de Ps-Graduao em Direito. III. Ttulo.

    CDU: 347.232.4

  • Guilherme Raso Marques Usucapio Especial Coletiva no Estatuto da Cidade

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduao em Direito da Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2008.

    Professora Doutora Marinella Machado Arajo (Orientadora) PUC Minas

    Professor Doutor Jos Alfredo de O. Baracho Jnior PUC Minas

    Professor Doutor Adriano Stanley Rocha Souza PUC Minas

    Professora Doutora Betnia de Moraes Alfonsin PUC RS

  • professora Marinella Arajo, pelas infindveis horas de dedicao, incentivo e apoio e, principalmente, por me ensinar que a cincia do direito j no comporta o isolamento que outrora lhe foi imposto, sendo imprescindvel o seu dilogo com outros ramos do saber.

  • AGRADECIMENTOS

    Aos meus pais Srgio e Marisa e minha irm Juliana, por compreenderem que os momentos de ausncia tiveram o nico propsito de engrandecer o meu esprito; certamente menos do que eles prprios j o fizeram.

    minha av, aos meus tios, primos e amigos, pelo alento nas horas em que pesaram a responsabilidade e a solido.

    Aos amigos do mestrado, Anderson, Betina, Maria Anglica e Anaximandro, por compartilharem seus conhecimentos e pelo companheirismo nessa jornada.

    Em especial, aos doutores Letcia Vignoli, Lucas Siqueira e Gustavo Purepecha, pelas contribuies, pelo auxlio, pelas crticas e, mais do que isso, por entenderem o significado deste trabalho para mim.

  • Uma coisa pr idias arranjadas, outra lidar com pas de pessoas, de carne e sangue, de mil-e-tantas

    misrias... Joo Guimares Rosa (2001)

  • RESUMO

    A partir da industrializao, por volta de 1920, as grandes cidades brasileiras passaram a receber intensas levas de imigrao, provocadas pela ausncia de polticas agrrias sustentveis, pela expulso dos negros recm libertos e pela m qualidade de vida no campo. Os imigrantes eram, em quase sua totalidade, trabalhadores agrcolas desqualificados e pobres. Ao chegarem s cidades no encontravam amparo, mas enfrentavam polticas urbanas segregacionistas e pssimas condies de trabalho. Esse processo se perpetuou at a dcada de 1980, quando o perfil da imigrao mudou o foco para as cidades de mdio porte. Entretanto, a populao urbana continuava crescendo e j no ano 2000 chegou a 82% da populao brasileira. A segregao e o crescimento no planejado das cidades segregou as classes depauperadas, que se viram compelidas a habitar os locais perifricos da cidade ou as favelas. Diante dos problemas decorrentes da segregao, tais como violncia, marginalidade, epidemias, etc., a sociedade civil passou a pressionar os poderes pblicos por solues. A Constituio de 1988, promulgada em meio s presses da sociedade civil, fez constar em seu texto um captulo dedicado poltica urbana, o qual foi regulamentado pela Lei n. 10.257/01. A Lei criou instrumentos de poltica urbana, como a usucapio especial coletiva, que permite a regularizao ampla dos assentamentos informais urbanos. Ocorre que o instrumento vem sendo utilizado abaixo da sua capacidade, ou seja, tem se resumido regularizao jurdica. Assim, considerando a finalidade do instrumento, se props a sua utilizao para fins de condenao do Poder Pblico a urbanizar as reas usucapidas, dotando-as dos equipamentos e servios necessrios ao desenvolvimento dos possuidores e exerccio da cidadania. Para tanto, os possuidores devem cumular ao pedido de usucapio o pedido de tutela especfica de obrigao de fazer (urbanizar).

    Palavras-chave: Direito moradia; Urbanizao; Propriedade urbana; Usucapio - Brasil; Direitos fundamentais; Direito urbanstico

  • ABSTRACT

    Since the 1920s, brazilian cities started to receive lots of immigrants, the causes were the lack of countryside policy , the expulsion of slaves from the country and the bad quality of country way of life. Almost all the immigrants were poor and non qualified workers. When these people went to the cities they wouldnt find government help, but segregation policies and awful works. This process of immigration last until the 80s, when the immigration changed to middle size cities. However, the cities population kept growing and in the 2000 year reached 82% of the brazilian population. The segregation and the lack of urban planning policies compelled poor people to live in slums. After facing the segregation reflect, like violence, marginality, diseases, etc., the organized society started to make pressure on the government, asking for solutions. The Constitution of 1988, felling these pressures, dedicated a hole chapter to the urban policy regulation, which meaning was completed by the Law n. 10.257/01. The Law created urban policy instruments like the especial usucaption, which allows the complete regularization of the urban informal settlements, including title policies, urban interventions and preparation for the citizenship. But the instrument has been used with a reduction of its possibilities, it means that it has been used just to title land. As so, considering the meaning of the instrument, here is proposed its use to obligate the government to urbanize the occupied land making it properly to live and to provide the citizenship. To achieve this objective, the tenant must process the local government to enforce it to make the right use of the instrument.

    Key-words: Right to habitation; Urbanization; Urban property; Usucaption - Brazil; Civil rights; Urban property rights

  • LISTA DE SIGLAS

    AC Apelao Cvel ACP Ao Civil Pblica ADCT Ato das Disposies Constitucionais Transitrias AgI - Agravo de Instrumento BID Banco Interamericano de Desenvolvimento BM Banco Mundial DHESCA Plataforma Brasileira de Direitos Humanos, Econmicos, Sociais, Culturais e Ambientais CPC Cdigo de Processo Civil CR/88 Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 5.11.1988 ECID Estatuto da Cidade FJP Fundao Joo Pinheiro IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica MP Medida Provisria MS Mandado de Segurana OEA Organizao dos Estados Americanos ONU Organizao das Naes Unidas PNUD Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento PUC Minas Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais RE Recurso Extraordinrio REsp Recurso Especial RMBH Regio Metropolitana de Belo Horizonte STF Supremo Tribunal Federal STJ Superior Tribunal de Justia TJMG Tribunal de Justia do Estado de Minas Gerais UN-HABITAT United Nations Human Settlements Programm

  • SUMRIO

    1 INTRODUO............................................................................................. 12

    2 A USUCAPIO.............................................................................................. 16 2.1 Conceito, origem, natureza jurdica e elementos da usucapio.......... 16 2.2 Fundamentos e finalidades da usucapio.............................................. 22 2.2.1 O tempo como agente viabilizador da segurana jurdica................ 23 2.2.2 A posse como agente viabilizador da funo social da propriedade.....................................................................................................

    25 2.3 As modalidades de usucapio no direito brasileiro.............................. 26 2.3.1 Usucapio extraordinria (bens mveis e imveis)........................... 33 2.3.2 Usucapio ordinria (bens mveis e imveis).................................... 37 2.3.4 Usucapio quilombola........................................................................... 38 2.3.4 Usucapio especial rural....................................................................... 40 2.3.5 Usucapio especial urbana individual................................................. 45 2.3.6 Usucapio especial urbana coletiva.................................................... 58

    3 A USUCAPIO ESPECIAL URBANA COLETIVA E SUAS FUNES...... 73 3.1 A Segregao scioespacial nas cidades.............................................. 76 3.1.1 O processo de urbanizao no Brasil.................................................. 77 3.1.2 As conseqncias do processo de urbanizao brasileiro............... 83 3.2 Regularizao fundiria como resposta segregao......................... 84 3.3 A usucapio coletiva como instrumento de regularizao fundiria.. 88 3.3.1 O direito moradia................................................................................ 90 3.3.2 O direito cidade sustentvel.............................................................. 104 3.3.4 A funo social da propriedade urbana.............................................. 110 3.3.5 A forma de regularizao visada pela usucapio coletiva................ 121

    4. A INTERPRETAO CONCRETIZANTE DA USUCAPIO COLETIVA.... 128 4.1 Usucapio coletiva e omisso do Poder Pblico.................................. 132 4.1.1 A eficcia dos direitos moradia, cidade e propriedade

  • socialmente funcionalizada na dimenso prestacional.............................. 132 4.1.2 A possibilidade jurdica de cumulao de pedidos na ao de usucapio coletiva..........................................................................................

    141

    5 CONCLUSES............................................................................................. 144

    6 REFERNCIAS............................................................................................ 148

  • 1 INTRODUO

    A usucapio especial coletiva consagrada como um dos instrumentos mais eficazes para a regularizao fundiria, ao lado da instituio de zonas especiais de interesse social (art. 4, V, f do ECID), da concesso de direito real de uso (art. 4, V, g do ECID) e da concesso de uso especial para fins de moradia (art. 4, V, h do ECID), como afirma Betnia de Moraes Alfonsin1. E por que no mencionar tambm o plano diretor (art. 4, III, a do ECID) e a desapropriao com pagamento em ttulos (art. 4, V, a do ECID), que, de igual sorte, constituem instrumentos eficazes para a regularizao fundiria?

    O problema, como se pode notar, no a ausncia de meios hbeis para modificar o histrico quadro de segregao entre a cidade formal e a cidade informal, mas sim a interpretao e aplicao dos instrumentos de que dispomos para ultrapassar as fronteiras do velado apartheid no tanto racial, mas principalmente econmico que experimentam os habitantes dos centros urbanos brasileiros.

    A questo hermenutica no raramente tem sido foco de acirrados debates nos mais variados ramos do Direito. Muitas vezes, setores conservacionistas (seja por interesse ou em virtude de uma formao jurdica deficitria2) primam por interpretaes legalistas, em geral incoerentes com o ordenamento jurdico. Ignoram o que Dworkin conceituou como integridade do direito (1999, p. 271), e que, guardadas as devidas propores e respeitadas as peculiaridades do common law, poderia ser entendida como interpretao sistemtica. Ainda piores so os operadores do direito que se mantiveram estagnados em paradigmas superados e buscam, com lentes clssicas, respostas para uma sociedade banhada pelas luzes da democracia e do pluralismo. Com o Direito Urbanstico no ocorre diferente.

    O Direito Urbanstico apenado justamente pelo que o torna to interessante: lidar com a propriedade. A propriedade, direito que praticamente

    1 In: Rolnik, 2006, p. 61.

    2 Refere-se formao positivo-legalista, no mbito da qual o Direito era entendido como criao

    exclusiva do legislador estatal e o sistema jurdico era estanque; no sujeito, portanto, interferncia da realidade social. lvaro Ricardo de Souza Cruz observa que essa neutralidade positivista exprimiu claramente uma opo tico-social e poltica de uma sociedade burguesa que procurava consolidar um modo de vida e um modo de produo hegemnicos, e continua o doutrinador: A neutralizao da jurisdio no tem nada de inofensivo, porque legitima uma forma de dominao por meio de uma compreenso autoritria do Direito e da Poltica... (2004, p. 80).

  • alcanou a intangibilidade com o Cdigo Civil de 1916, foi tutelada pela ordem jurdico-constitucional de 1988 sob a condicionante da funcionalizao social. Vale dizer, o direito de propriedade protegido pela Constituio Cidad, em seu art. 5, XXII, desde que vinculado a um propsito maior do que o individualismo do seu titular. A propriedade atender sua funo social (BRASIL, 1988), explicitou o inciso XXIII do art. 53.

    Alm de funcionalizar a propriedade, a Constituio de 1988 tem o mrito de inserir, pela primeira vez na histria brasileira, um captulo dedicado reforma urbana. Trata-se do segundo captulo do ttulo referente ordem econmica, o qual, em dois singelos artigos (182 e 183), definiu a base para a conceituao do que seja funo social urbana, autorizou a promulgao de lei para estabelecer as diretrizes de poltica urbana, obrigou os municpios com mais de vinte mil habitantes a elaborar seus planos diretores e criou instrumentos capazes de promover o adequado uso do solo urbano.

    Dentre os instrumentos criados, est a usucapio especial urbana (art. 183). A sua variante coletiva, contudo, s veio a ser positivada com o advento do Estatuto da Cidade, aproximadamente 13 anos mais tarde. O Estatuto, visando dotar a sociedade de um instrumento hbil para promover a regularizao de assentamentos urbanos informais ocupados por populao de baixa renda em reas privadas, instituiu a usucapio especial coletiva4.

    A rigor, a interpretao do dispositivo em comento no geraria polmica, no fossem alguns aspectos atinentes forma como ser declarada a aquisio da propriedade e as finalidades do instrumento em estudo.

    A leitura isolada do art. 10 do Estatuto da Cidade5 leva a crer que ao juiz sentenciante caber unicamente declarar adquirida a propriedade e constituir um

    3 Ainda que a funo social tenha sido positivada pela primeira vez na Constituio de 1934 e tenha

    marcado presena nos textos constitucionais que a sucederam (1937, 1946, 1967, 1969), foi na Constituio de 1988 que o princpio ganhou destaque, haja vista ter sido esta a pioneira na definio mnima de seu contedo (art. 182, 2 e art. 186). 4 Assim restou positivado o instrumento: Art. 10. As reas urbanas com mais de duzentos e

    cinqenta metros quadrados, ocupadas por populao de baixa renda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposio, onde no for possvel identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, so insuscetveis de serem usucapidas coletivamente, desde que os possuidores no sejam proprietrios de outro imvel urbano ou rural. 5 A Lei autoriza os condminos a estabelecer fraes ideais diferenciadas, desde que haja acordo

    escrito.

  • condomnio indivisvel a priori6. Mas se sustentar aqui que a interpretao literal do dispositivo no suficiente para atender mens legis do Estatuto.

    Defender-se- que a mera declarao da propriedade, desvinculada da obrigao de urbanizar a rea afetada, no promove os direitos humanos da populao atingida. preciso que os operadores do direito urbanstico desatem as amarras que os ligam ao superado paradigma liberal clssico e percebam que, ao contrrio do que sustentou Hernando de Soto (2001), a mera concesso do ttulo de propriedade no suficiente para ordenar o pleno desenvolvimento das funes sociais da cidade e, tampouco, garantir o bem-estar de seus habitantes, como prescreve o art. 182, caput, da CR/88.

    O conceito de habitantes ora exposto, cumpre registrar, no se resume aos ocupantes da rea irregular, mas inclui toda a coletividade, posto que a falta de investimento em equipamentos urbanos impede os ocupantes de se desenvolver plenamente, o que impactar negativamente nos ndices de desenvolvimento humano, como, o aumento da marginalizao, da informalidade e da violncia urbana.

    O que se prope a interpretao teleolgica do art. 10 do Estatuto da Cidade, pela adoo do mtodo sistemtico, o que se far com suporte nas teorias concretistas de Friedrich Mller (2005) e Konrad Hesse (1991), e nas teorias da argumentao jurdica de Ronald Dworkin (1999; 2001; 2002; 2005) e Jrgen Habermas (1997; 2003a, 2003b; apud Souza Cruz, 2006; 2004).

    Pretende-se condicionar a declarao de usucapio condenao do Poder Pblico a promover obras de urbanizao que assegurem o mnimo de dignidade aos habitantes das reas usucapidas, o que lhes permitiria a fixao a essas reas e o acesso aos equipamentos urbanos necessrios ao desenvolvimento de suas capacidades. Somente assim a regularizao fundiria dos assentamentos urbanos via usucapio coletiva cumpriria o ministrio que o constituinte lhe outorgou: ser um instrumento de poltica urbana capaz de garantir o bem-estar dos habitantes citadinos.

    Mas, para se construir um argumento slido, impe-se a superao de alguns obstculos, como (i) a questo da discricionariedade do Poder Pblico na escolha da convenincia e oportunidade para a realizao de investimentos em

    6 No caso de execuo de obras de urbanizao em momento posterior aquisio prescritiva,

    possvel que os condminos deliberem, por no mnimo dois teros, pela dissoluo do condomnio.

  • projetos de urbanizao; (ii) a forma como se integrar o Poder Pblico ao de usucapio, evitando-se a ofensa s garantias processuais (contraditrio e ampla defesa); e (iii) o contedo da sentena que declarar a usucapio e condenar o Poder Pblico, seus limites, a forma e o prazo para cumprimento da obrigao de urbanizar.

    Ciente dos argumentos e obstculos, pode-se apresentar o problema central a ser dirimido: A sentena que declara a usucapio especial coletiva pode condenar o Poder Pblico a executar obras e projetos que assegurem populao afetada um padro mnimo de urbanizao?

    Em resposta ao problema, extraem-se duas hipteses; a primeira, de cunho negativo, est baseada na teoria clssica da separao de poderes e nos aspectos processuais referentes ao de usucapio. Nos termos dessa hiptese, o judicirio no poderia, legitimamente, condenar o Poder Executivo a executar obras ou projetos de urbanizao sem ofensa independncia deste ltimo, conforme lhe assegura o art. 2, da CR/88. Mas, ainda que a discricionariedade do Poder Executivo sucumbisse frente aos direitos humanos dos usucapientes, a natureza especial do processo de usucapio e o contedo eminentemente declaratrio da sentena inviabilizariam a condenao do Poder Executivo.

    Por outro lado, apresenta-se o argumento favorvel condenao do Poder Executivo. Esta hiptese, por sua vez, est lastreada no primado dos direitos humanos, na limitao da discricionariedade do Poder Executivo e no postulado processual da instrumentalidade das formas. Sustentada nessas bases, a argumentao tende a afastar a discricionariedade desarrazoada, substituindo-a pela discricionariedade que vise ao melhor cumprimento da lei, como sustentado por Celso Antnio Bandeira de Mello (2003). E o cumprimento da lei, no presente caso, no pode olvidar os direitos fundamentais dos usucapientes. J em oposio aos argumentos do procedimento especial da usucapio e da natureza declaratria da sentena, ope-se o postulado da instrumentalidade das formas, segundo o qual o processo no constitui um fim em si prprio, mas o meio para se tutelarem direitos materiais. Consequentemente, seria vivel o uso, por analogia, de outras regras adjetivas para fazer valer o direito substantivo dos usucapientes.

    Enfim, so esses os argumentos para a soluo da controvrsia objeto desta dissertao. Cumpre, por ora, analisar qual hiptese se mostrar mais slida e coerente. Por oportuno, justifica-se que o presente trabalho no tem a pretenso de

  • impor uma interpretao nica e vlida universalmente, mas propor alternativas ao modelo de regularizao tido hoje como irrefutvel. O que se almeja demonstrar a insustentabilidade de polticas regulatrias baseadas unicamente na concesso de ttulos de propriedade, o que no se pode realizar sem a propositura de alternativas racionalmente defensveis.

    2 A USUCAPIO

    Antes de adentrar o tema dos efeitos desejados e possveis da usucapio especial coletiva, imprescindvel conceituar o instituto da usucapio, expor seus elementos e finalidades, bem como especificar as modalidades vigentes de usucapio, para que se possam demonstrar as semelhanas entre cada tipologia e as divergncias que justificam a sua variedade de formas. Pretende-se, com isso, demonstrar que as finalidades da usucapio especial coletiva em muito a distinguem das demais formas previstas na Constituio da Repblica CR/88 e no Cdigo Civil de Brasileiro CCB, o que justifica, at mesmo, o tratamento processual distinto.

    2.1 Conceito, origem, natureza jurdica e elementos da usucapio

    Usucapio uma palavra de origem latina (usucapio = usu + capio), em que usu significa pelo uso e capio pode ser traduzido para tomada, ou aquisio. Assim, o vocbulo usucapio (aquisio pelo uso) , em sua origem, uma palavra do gnero feminino, como observa o tratadista da usucapio, Benedito Silvrio Ribeiro (2006, p. 175).

    Apesar da conhecida origem do termo usucapio, h uma gama de autores7 que ainda opta por referenciar o substantivo no gnero masculino, o que

    7 A ttulo de exemplo, RIBEIRO (2006, p. 175) cita: Carvalho Santos, Washington de Barros Monteiro,

    Serpa Lopes, Rui Barbosa, Rubens Limogi Frana, Caio Mrio da Silva Pereira, entre tantos outros. Aos j referenciados. podem-se reunir: VENOSA (2003, p. 190); ARAJO (2005, p. 74) CARVALHO FILHO (2006, p. 119 e seguintes) e FIZA (2004, p. 744), sendo que este autor chega a afirmar que o

  • no incorreto, haja vista a consagrao do uso pela lngua portuguesa. Mesmo a legislao brasileira, por muito tempo, fez uso do vocbulo no gnero masculino, o que se pode asseverar no Cdigo Civil de 1916. O uso do gnero feminino vem se consagrando aos poucos, tendo recebido guarida do Novo Cdigo Civil (Lei n 10.406, de 10 de janeiro de 2002) e do Estatuto da Cidade (Lei n 10.257, de 10 de julho de 2001). Seguindo a tendncia legislativa e reverenciando a origem do instituto, optou-se aqui pelo uso do substantivo no gnero feminino, como de resto orientou Nelson Vaz em pesquisa sobre a grafia e gnero da usucapio (apud Ribeiro, 2006, p. 176)8.

    A usucapio tem natureza jurdica de direito subjetivo, passvel de tutela judicial tanto ativa (ao de usucapio) quanto passiva (arguio de usucapio em defesa)9. Contudo, a usucapio quando argida em defesa de aes petitrias ou possessrias, em regra, no acarreta a declarao de propriedade pelo juiz. A declarao do direito em via contestatria somente permitida na usucapio especial rural (art. 7 da Lei 6.969/81) e na especial urbana, por fora do art. 13 do Estatuto da Cidade, que prescreve:

    Art. 13. A usucapio especial de imvel urbano poder ser invocada como matria de defesa, valendo a sentena que a reconhecer como ttulo para registro no cartrio de registro de imveis. (BRASIL, 2001).

    A usucapio uma forma originria de aquisio da propriedade10 pelo exerccio da posse prolongada no tempo. Tempo e posse constituem, portanto, o ncleo da usucapio, sendo denominados por alguns como elementos primrios (Arajo, 2005, p. 02). Outros elementos, e.g., a boa-f, o justo ttulo e o animus domini esto presentes em algumas modalidades de usucapio, mas no constituem elementos necessrios para a conceituao do instituto.

    emprego da palavra usucapio no gnero feminino antigo e pedante, embora ressalve ter sido a forma adotada pelo Cdigo Civil de 2002 e pelo Estatuto da Cidade (Lei n. 10.257/01). 8 O gramtico Rocha Lima tambm referendou as concluses de Nelson Vaz (2000, p. 76).

    9 A smula n. 237 do Supremo Tribunal Federal pacificou a matria ao dispor: O usucapio pode ser

    argido em defesa. (BRASIL, 2004). 10

    Note-se que, a despeito de a doutrina se referir usualmente usucapio como forma de aquisio da propriedade, tal instituto tambm hbil para promover a aquisio de outros direitos reais, por exemplo, a superfcie, as servides, o usufruto, o uso e a habitao, a exemplo do que dispe a smula 193 do Superior Tribunal de Justia, in verbis: O direito de uso de linha telefnica pode ser adquirido por usucapio (BRASIL, 2004). Sobre a possibilidade de usucapio sobre domnio til, vide, tambm, o seguinte aresto: STJ. Recurso Especial n. 10.986/RS 3 Turma. Rel. Min. Eduardo Ribeiro. DJ: 9/3/92.

  • O elemento tempo opera na usucapio de forma inversa como o faz na prescrio. Nesta o decurso de determinado lapso temporal provoca a perda do direito de agir, ao passo que naquela o transcurso do tempo gera para o possuidor de um bem o direito de ser declarado seu proprietrio. Em virtude da relativa identidade dos institutos, parte da doutrina se refere usucapio como prescrio aquisitiva e prescrio como prescrio extintiva.

    A terminologia prescrio aquisitiva tambm adotada pelo cdigo civil francs (art. 2.219), quando atribui prescrio uma dupla funo, veja-se: La prescription est un moyen d'acqurir ou de se librer par un certain laps de temps, et sous les conditions dtermines par la loi11. Na esteira da legislao francesa, o cdigo argentino dispe: Artculo 3948: La prescripcin para adquirir, es un derecho por el cual el poseedor de una cosa inmueble, adquiere la propiedad de ella por la continuacin de la posesin, durante el tiempo fijado por la ley12. E tambm outros pases adotam essa dupla terminologia, a exemplo da Espanha, Chile e Colmbia, como registra Arajo (2005, p. 65, 68 e 70).

    Ressalta, ainda, Fbio Caldas de Arajo (2005, p. 33-46), que o uso da terminologia prescrio aquisitiva para designar a usucapio se deve a Justiniano. Roma conhecia, at o sculo VI, duas modalidade de prescrio para as aes que hoje se denominam reivindicatrias: a praescriptio longi temporis e a praescriptio longissimi temporis. Tais institutos no eram hbeis para promover a declarao de propriedade, prestando-se apenas para afastar o direito do reivindicante. No sculo VI, Justiniano unificou a usucapio e a praescriptio, conglobao que foi absorvida sculos mais tarde pelas Ordenaes Afonsinas, Manuelinas e Filipinas. Mas, apesar da unificao, os comentadores das Ordenaes Filipinas j distinguiam a prescrio aquisitiva da extintiva. Na atualidade, no se noticiam problemas na aplicao dos institutos. Trata-se, a bem da verdade, de simples divergncia na nomenclatura. No Brasil, optou-se pelo termo usucapio, mas no incorreta a

    11 FRANCE. Code Civil, du 5 mars 1803. Disponvel em:

    http://www.legifrance.gouv.fr/WAspad/VisuArticleCode?commun=&code=&h0=CCIVILL0.rcv&h1=4&h3=287. Acesso em: 30 dez. 2007. 12

    ARGENTINA. Cdigo Civil de Le Repblica Argentina, de 25 de septiembre de 1869. Disponvel em: http://www. jusneuquen.gov.ar/share/legislacion/leyes/codigos_nacionales/CC_aindice.htm. Acesso em 30 de dezembro de 2007.

  • utilizao do termo prescrio aquisitiva13, o qual jamais seria confundido com a prescrio pura, j que esta no gera o direito aquisio de bens.

    O elemento posse, por seu turno, tem gerado mais discusses do que o elemento tempo, implcito no conceito de prescrio. A posse e seu controverso conceito, sua natureza, funo e proteo so de suma importncia, j que, a rigor, so as caractersticas da posse que determinam a modalidade de usucapio a ser adotada em um ou outro caso. Tambm a finalidade da posse influenciar o lapso temporal estabelecido legalmente para a declarao da usucapio.

    Duas teorias se embatem na definio do que seja posse: a teoria subjetiva de Friedrich Karl Von Savigny e a teoria objetiva de Rudolf von Ihering14. O primeiro, baseado no embrio da posse romana, a possessio, sustentou ser a posse um estado de fato, caracterizado pela submisso de um bem vontade de uma pessoa, que o tem sua disposio (corpus), dele usufruindo como se proprietrio fosse, ou seja, com animus domini (Arajo, 2005, p. 120). J Ihering, em obra que contesta a teoria subjetiva15, define a posse como um interesse a que a os homens houveram por bem conceder proteo jurdica. Destarte, visto que um interesse protegido por lei no algo seno um direito, Ihering assim concebeu a posse:

    A questo do interesse jurdico da posse foi conferida por lei, at p-la fora de toda a discusso, somente pelo fato de se lhe ter concedido proteo jurdica. Desse modo, a posse foi reconhecida como um interesse que reclama proteo e digno de obt-la; e todo o interesse que a lei protege deve receber do jurista o nome de direito, considerando-se como instituio jurdica o conjunto dos princpios que a ela se referem. A posse, como relao da pessoa com a coisa, um direito; como parte do sistema jurdico, uma instituio de direito. (IHERING, 2002, p. 37-38, grifo nosso).

    Para Ihering, os elementos animus e corpus, tais como os concebeu Savigny, existem, mas no so relevantes para a caracterizao da posse, uma vez que a posse no se verifica pela anlise da inteno da pessoa ou pela deteno fsica de algo. A posse se verifica pelo uso que o possuidor confere coisa, ou

    13 Fbio Caldas de Arajo sustenta a impropriedade do termo prescrio aquisitiva, apesar de afirmar

    que a usucapio e a praescriptio foram unificadas por Justiniano: Importante salientar que a prpria tendncia em equiparar o usucapio com a prescrio aquisitiva por aqueles que entendem tratar-se do mesmo fenmeno jurdico no encontra guarida no Direito Romano, onde ambos os institutos possuem origem e finalidades diversas. Certo, porm, que Justiniano, observando o efeito gerado por ambos os institutos, unificou-os, como veremos em seguida. (2005, p. 34). 14

    Desconsidera aqui a posio defendida pelos glosadores, pois se pretende apontar as teorias modernas, ainda hoje objeto de discusso. 15

    Em severa crtica teoria subjetiva, Ihering chega a afirmar que a obra de Savigny no fez justia nem ao direito romano nem importncia prtica da posse. (IHERING, 2002, p. 61).

  • melhor, pelo proveito econmico que dela extrai. Portanto os elementos anmicos so desconsiderados na teoria objetiva, e a posse caracterizada pela exterioridade dos atos do possuidor; pelo desejo de proceder como se procede o dono, ainda que sem pretender s-lo (FIZA, 2004, p. 804). A posse se verifica pela proximidade dos atos do possuidor com os atos de um eventual proprietrio. Assim observa Ihering:

    Por que razo a posse protege-se pelo direito? No certamente para dar ao possuidor a grande satisfao de ter o poder fsico sobre uma coisa, mas para tornar possvel o uso econmico dela e relao s suas necessidades. A partir daqui tudo se esclarece. No se recolhem em sua casa os matriais de construo, etc., etc.; no se depositam em pleno campo dinheiro, mveis, objetos preciosos e outras coisas mais. Cada qual sabe o que deve fazer dessas coisas, segundo sua diversidade, e este aspecto normal da relao do proprietrio com a coisa que constitui a posse. (IHERING, 2002, p. 44).

    primeira leitura, o Cdigo Civil Brasileiro - CCB (Lei n. 10.406/2002) e mesmo o Cdigo Civil de 1916 parecem no ter adotado, uniformemente, a teoria objetiva ou subjetiva. Sugere, pelo contrrio, haver mixado as teorias. Na conceituao da posse e na previso de seus efeitos, os diplomas legais teriam adotado a teoria objetiva. o que indica a leitura dos arts. 1.196, 1.204 e 1.233, do Cdigo em vigor16 (esses dispositivos correspondem, respectivamente, aos arts. 485, 493 e 520 do Cdigo Bevilqua). Mas, ao dispor sobre a usucapio, os cdigos teriam mantido o animismo caracterstico da teoria de Savigny, ao exigir, como elemento da usucapio, a posse com animus domini. o que indicam os arts. 1.238, 1.239 e 1.240 (o art. 1.238 do Cdigo em vigor corresponde ao art. 550 do Cdigo de 1916, mas os demais no encontram correspondncia no cdigo revogado).

    Contudo a leitura atenta da obra de Ihering afasta qualquer dvida sobre a teoria adotada pelos cdigos civis brasileiros de 1916 e 2002. Eles adotaram a teoria objetiva, e a exigncia de animus domini como causa possessionis no descaracteriza a teoria de Ihering. Este autor jamais negou a existncia de elementos volitivos na posse, apenas sustentou que esses elementos, por serem

    16 Art. 1.196. Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exerccio, pleno ou no, de

    algum dos poderes inerentes propriedade; Art. 1.204. Adquire-se a posse desde o momento em que se torna possvel o exerccio, em nome prprio, de qualquer dos poderes inerentes propriedade; Art. 1.223. Perde-se a posse quando cessa, embora contra a vontade do possuidor, o poder sobre o bem, ao qual se refere o art. 1.196. (BRASIL, 2004).

  • demasiadamente subjetivos, no tm o condo de caracterizar o instituto. este o entendimento de Fbio Caldas de Arajo:

    A base da discrdia entre ambas teorias [subjetiva e objetiva] concentra-se no animus possidendi. Ihering no nega sua existncia, mas combate a idia de que a posse possa ser caracterizada por elementos anmicos de difcil demonstrao ftica. A manifestao de vontade s ganha importncia quando concretizada atravs de atos jurdicos que possibilitem efeitos visveis. Da a importncia da exterioridade dos atos possessrios, os quais representam a visibilidade do direito de propriedade. (2005, p.121).

    De fato, sustentar que o animus domini exigido para a caracterizao da posse ad usucapionem tenha natureza volitiva seria admitir a impossibilidade de se provar a posse nos autos da ao de usucapio. O que se prova, ao contrrio, a prtica de atos pelo possuidor que exteriorizam o animus domini. E, como foi sustentado acima, a exteriorizao dos elementos volitivos o que importa para a caracterizao da posse na teoria objetiva.

    Conceituada a posse, passa-se verificao do seu sujeito, objeto e sua classificao.

    Podem possuir todas as pessoas que gozem de capacidade, sejam pessoas naturais ou jurdicas (arts. 1, 2 e 45 do Cdigo Civil de 2002). Quanto ao objeto, podem ser possudos os bens sobre os quais possvel demonstrar a exteriorizao do poder ftico, sejam corpreos ou incorpreos (Arajo, 2005, p. 124). Vale notar que a posse de bens incorpreos, e.g., de direitos, incomum, mas no impossvel. Deve-se atentar, unicamente, para a possibilidade de tais bens ou direitos serem passveis de uso, gozo ou fruio17.

    A posse se classifica em direta, ou indireta; justa ou injusta; de boa-f ou de m-f; com justo ttulo; ad interdicta e ad usucapionem (Fiza, 2004, p. 812-814).

    direta a posse exercida sem interposta pessoa, ou seja, quando o possuidor quem exerce diretamente um dos direitos inerentes propriedade. Por outro lado, indireta a posse quando o possuidor se vale de interposta pessoa para exercer o uso, gozo ou fruio do bem possudo (por exemplo, quando um possuidor contrata um meeiro para lavrar a terra possuda). A pessoa que conserva a posse em nome de outro denominado detentor (art. 1.198 do Cdigo Civil).

    17 Como registrado em nota alhures, o direito de uso de linha telefnica, quando tal sistemtica era

    comum, podia ser objeto de usucapio. o que prescreve a smula 193 do Superior Tribunal de Justia. (BRASIL, 2004).

  • O conceito de posse justa determinado por excluso. O Cdigo Civil, em seu art. 1.200, prescreve: justa a posse que no for violenta, clandestina ou precria (BRASIL, 2004). Assim, justa ser a posse obtida por meios pacficos, pblica e que tenha sido adquirida diretamente, sem subterfgios. Injusta, por sua vez, a posse obtida nos moldes condenados pelo citado dispositivo.

    J a divergncia entre posse de boa e m-f ser solucionada pelas circunstncias que demonstrem o nimo do possuidor18. Ser de bona fide a posse obtida que ignora os obstculos que impedem a aquisio da coisa (art. 1.201 do Cdigo Civil). De m-f ser a posse obtida sabendo-se das irregularidades que impedem a aquisio.

    A posse com justo ttulo aquela em que o possuidor porta um documento supostamente competente para o registro da transferncia da propriedade, mas, por conter vcio formal ou material, inbil para promover a transferncia da propriedade. Nas palavras esclarecedoras de Farias e Rosenvald, Trata-se de um ttulo que, em tese, apresenta-se como instrumento formalmente idneo a transferir a propriedade, malgrado apresente algum defeito que impea a sua aquisio (2006, p.280-281).

    Posse ad interdicta aquela protegida pelos interditos possessrios (ao de manuteno na posse, reintegrao de posse e interdito proibitrio).

    Quanto posse ad usucapionem, conceituada como aquela que contempla os requisitos necessrios aquisio da propriedade pela via da prescrio aquisitiva, em geral contnua, incontestada e com animus domini. Contudo as variadas modalidades de usucapio no permitem conceituar, de forma universal, como se daria a posse ad usucapionem. Cada tipologia de usucapio ir requerer determinados elementos na posse. Assim, as caractersticas da posse ad usucapionem sero tratadas uma a uma, nos tpicos pertinentes s modalidades de usucapio.

    2.2 Fundamentos e finalidades da usucapio

    18 Note-se, mais uma vez, que no se trata de subjetivao da posse, pois o que ser investigado

    para a classificao da posse no o nimo em si, mas os fatos e aes que demonstrem a inteno do possuidor. Assim, claro o art. 1.202 do Cdigo Civil, o qual prescreve: A posse de boa-f s perde este carter no caso e desde o momento em que as circunstncias faam presumir que o possuidor no ignora que possui indevidamente. (BRASIL, 2004, grifo nosso).

  • Vistos a origem, o conceito, a natureza jurdica e os elementos primrios da usucapio, cumpre inquirir seus fundamentos e suas finalidades.

    Os elementos primrios da usucapio dizem muito sobre seus fundamentos. Tempo e posse apontam para as bases da usucapio, o que almeja o instituto, ou melhor, qual interesse coletivo este direito subjetivo pretende tutelar.

    O tempo sinaliza na usucapio o interesse humano em consolidar situaes que se perpetuam, visando, desde os primrdios do instituto, no direito romano, segurana das relaes interpessoais, ou como se denomina hoje, a segurana jurdica.

    A posse, por sua vez, aponta para a necessidade de se conferir aos bens jurdicos uma funo; um uso que, alm do puro ttulo de propriedade, propicie vantagens sociedade, ou seja, a propriedade deve contemplar uma funo social que justifique a sua proteo.

    Segurana jurdica e funo social da propriedade so, portanto, os fundamentos da usucapio. Passa-se, assim, anlise de cada um desses fundamentos justificadores da prescrio aquisitiva.

    2.2.1 O tempo como agente viabilizador da segurana jurdica

    O tempo tem sido, desde a civilizao romana, um fator sedimentador das relaes jurdicas, a exemplo dos institutos da usucapio e da praescriptio, como relatado anteriormente. Hoje, uma rpida digresso no direito material brasileiro mostra a influncia do tempo na consolidao das relaes humanas19. , por exemplo, o lapso temporal que determina a abertura da sucesso de um ausente (arts. 26 e 37 do Cdigo Civil), a capacidade civil (art. 4, I, do Cdigo Civil) e o prazo para se requerer o adimplemento de uma obrigao (pagamento de um

    19E no ocorre diferente no direito aliengena. Como se teve a oportunidade de demonstrar no tpico 2.1, a prescrio aquisitiva e extintiva fator determinante para o reconhecimento de direitos em pases como a Frana, Argentina, Espanha, Chile e Colmbia. Alm desses, pases como a Alemanha, Portugal, Itlia, Sua contm em seus ordenamentos regras sobre a aquisio da propriedade pela posse prolongada no tempo (ARAJO, 2005, p. 53 a 72). Certamente muitos outros tambm o fazem.

  • dbito) ou mesmo para se pleitear um direito (decadncia, prescrio e usucapio). Enfim, o tempo de suma importncia para o direito e, em especial para a usucapio, por transformar um direito limitado (posse) em um direito pleno (propriedade).

    Mas a relao tempo e direito no se justifica em si mesma. Explica-se, outrossim, pela capacidade que o tempo tem de sedimentar relaes humanas, o que perseguido pelo direito.

    A certeza nas relaes humanas fator de segurana, seja porque uma relao consolidada mais conhecida pelas pessoas e, consequentemente, mais respeitada, seja porque afasta dvidas e interpretaes dissonantes, o que invariavelmente evita os litgios. Portanto, visando segurana jurdica que o direito reconhece o tempo como fator de consolidao de atos, fatos e negcios.

    Jos Joaquim Gomes Canotilho, aclamado constitucionalista portugus, professa sobre a segurana jurdica:

    O homem necessita de segurana para conduzir, planificar e conformar autnoma e responsavelmente a sua vida. Por isso, desde cedo se consideram os princpios da segurana jurdica e da proteo da confiana como elementos constitutivos do Estado de direito. (2003, p. 257).

    Ainda que se tenha referido mais aos aspectos jurdicos do que aos sociolgicos e mencionado a segurana como princpio do Estado de Direito, Canotilho andou bem ao afirmar que as relaes humanas requerem um ambiente estvel para se desenvolver. Realmente, a histria mostra que os homens buscam estabilidade nas relaes. Fronteiras no definidas e instabilidade poltica, no raras vezes, tm ocasionado guerras e conflitos20.

    Por essa razo, o direito busca a estabilidade, visando colocar as pessoas a salvo de dvidas, instabilidades e indefinies. E foi no tempo que o direito encontrou um critrio vlido, posto ser objetivo e facilmente apurvel.

    Assim sendo, no demais afirmar que o tempo agente viabilizador da segurana jurdica.

    20 A disputa por terras na regio da Cisjordnia desencadeou a Primeira Guerra rabe-Israelense

    (1948-1949), cujos reflexos originaram outras trs guerras (Guerra de Suez, em 1956; Guerra dos Seis Dias, em 1967; e Guerra de Yom Kippur, em 1973). Ainda hoje a regio afetada por conflitos, em virtude das disputas entre judeus e muulmanos pelos territrios sagrados do Oriente Mdio. Em Angola, com o fim do colonialismo, a disputa pelo poder poltico provocou uma guerra civil que se estendeu por longos 20 anos, ocasionando mais de 500 mil mortes. (VICENTINO, 1997, p. 447-450).

  • 2.2.2 A posse como agente viabilizador da funo social da propriedade

    A posse, como explanado acima, decorre do exerccio de algum dos poderes inerentes propriedade (art. 1.196 do CCB). Nos termos do Cdigo Civil Brasileiro, art. 1.228, O proprietrio tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reav-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha. (BRASIL, 2004).

    Segundo Ihering, a posse ... constitui a condio de fato da utilizao econmica da propriedade e conclui ser ela ... elemento indispensvel da propriedade. (2002, p. 28). Para a teoria objetiva, mesmo o possuidor quem confere funo ao bem. Ainda segundo Ihering, o proprietrio no possuidor no aufere vantagem econmica do bem, pois A utilizao econmica da propriedade tem por condio a posse. A propriedade sem a posse seria um tesouro sem a chave para abri-lo, uma rvore frutfera sem a competente escada para colher-lhes os frutos. (2002, p. 08).

    Partindo da teoria objetiva adotada pelo direito civil ptrio, chega-se concluso que a funo econmica exercida por quem detm a posse e no pelo titular do domnio. Mas at que ponto essa funo econmica estaria associada funo social? A usucapio, em qualquer de suas modalidades, estaria associada ao cumprimento da funo social da propriedade? No necessariamente.

    A posse ad usucapionem nem sempre estar associada funo social da propriedade. Isso porque a reunio dos requisitos para usucapir no implica o acatamento s normas que condicionam o uso socialmente adequando do bem. perfeitamente possvel que um possuidor adquira a propriedade de um imvel urbano por via da usucapio extraordinria ou ordinria, mas no confira ao imvel uso em conformidade com o plano diretor, o que consistiria em ofensa ao princpio da funo social da propriedade urbana (182, 2, da CR/88). Mas esse ponto ser mais bem abordado em tpico seguinte.

  • O que vale ser registrado, por ora, que a posse se constitui no vetor capaz de conferir propriedade uma funo econmica e, em determinadas ocasies, uma funo social.

    Tecidas essas consideraes sobre os fundamentos da usucapio (tempo/segurana jurdica e posse/funo social), resta perquirir a finalidade da usucapio, o que no chega a representar um desafio, em vista do que j foi explanado.

    A usucapio est embasada na segurana jurdica e na funo econmica dos bens passveis de aquisio, podendo, tambm, ser relacionada funo social da propriedade em alguns casos. Dessa forma, pode-se sustentar ser a usucapio um direito subjetivo que tem, como finalidade, regularizar uma situao ftico-jurdica consolidada pelo tempo, para viabilizar ao possuidor de um bem o exerccio pleno dos direitos inerentes propriedade. Em outras palavras, trata-se de regularizar uma posse, transformando-a em propriedade, para permitir seu uso, gozo e disposio, alm do direito de sequela, pela via petitria.

    Em vista da sua finalidade, a usucapio representa muito em um pas como este, onde se erigiu, desde os tempos coloniais, uma poltica fundiria excludente e elitista, a se concluir que a terra sua posse e uso um dos problemas de justia mais crticos do Brasil (SANTOS, 1995, p. 25). Cumpre, portanto, trazer colao o magistrio de Fbio Caldas de Arajo, para quem:

    A funo de consolidao do domnio, de eliminao da incerteza e de manuteno da posse justa fornece ao usucapio uma importncia invulgar como instituto de estabilizao social, principalmente em um pas marcado pelos conflitos fundirios. (2005, P. 51).

    Feitas as necessrias consideraes introdutrias sobre a usucapio, passa-se anlise das modalidades vigentes no direito brasileiro.

    2.3 As modalidades de usucapio no direito brasileiro

    Vigem, na atualidade, oito modalidades de usucapio, a saber: (i) usucapio ordinria e (ii) extraordinria de bens mveis, (iii) ordinria e (iv) extraordinria de

  • imveis, (v) especial rural (ou pro labore), (vi) especial urbana individual; (vii) usucapio especial urbana coletiva; e (viii) usucapio quilombola21.

    H, ainda, quem defenda a existncia do que poderia se constituir em outra modalidade, um instituto hbrido de usucapio e desapropriao22. Trata-se do instituto previsto nos 4 e 5, do art. 1.228 do Cdigo Civil. Prescrevem os aludidos dispositivos:

    Art. 1.228. O proprietrio tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reav-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha. 1 O direito de propriedade deve ser exercido em consonncia com as suas finalidades econmicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especfica, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilbrio ecolgico e o patrimnio artstico, bem como evitada a poluio do ar e das guas. 2 So defesos os atos que no trazem ao proprietrio qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados com pela inteno de prejudicar outrem. 3 O proprietrio pode ser privado da coisa, nos casos de desapropriao, por necessidade ou utilidade pblica ou interesse social, bem como no de requisio, em caso de perigo pblico iminente. 4 O proprietrio tambm pode ser privado da coisa se o imvel reivindicado consistir em extensa rea, na posse ininterrupta e de boa-f, por mais de 5 (cinco) anos, de considervel nmero de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e servios considerados pelo juiz de interesse social e econmico relevante. 5 No caso do pargrafo antecedente, o juiz fixar a justa indenizao devida ao proprietrio; pago o preo, valer a sentena como ttulo para o registro do imvel em nome dos possuidores. (BRASIL, 2004, grifos nossos).

    Contudo o dispositivo citado em muito se destoa da usucapio. A primeira e mais destacvel diferena est na forma de reconhecimento do direito. Como assenta o 4, O proprietrio tambm pode ser privado da coisa se o imvel reivindicado consistir em extensa rea... (BRASIL, 2004). Note-se que o dispositivo descreveu o objeto do direito, qual seja, o imvel reivindicado. Impossibilitou-se, com isso, que o titular do direito, seja ele quem for23, pleiteie, por ao prpria, o

    21 Trata-se do direito subjetivo dos remanescentes quilombolas de ter reconhecida a propriedade

    sobre terras h muito ocupadas por esses refugiados do sistema escravagista imperial, o qual est previsto no art. 68 do Ato das Disposies Constitucionais Transitrias, como afirma Silva(2002). 22

    Joel Dias Figueira Jnior (2005, p.123) atribui ao instituto a natureza hbrida; Slvio de Salvo Venosa (2003, p. 205), a seu turno, enxerga semelhanas entre o instituto previsto nos 4 e 5 do art. 1.228 do CCB e a usucapio especial coletiva prevista no art.10 do Estatuto da Cidade. Pablo Stolze Gagliano (2004, p. 61) atribui a natureza de prescrio aquisitiva ao instituto em comento. 23

    A redao do dispositivo no deixa claro quem o titular do direito, o poder pblico ou os possuidores. Isto justifica as divergncias na doutrina, sendo que alguns entendem se tratar de uma hiptese de desapropriao e outros de uma modalidade de usucapio, como afirma GAGLIANO (2004, p. 60).

  • reconhecimento do direito expresso nos dispositivos citados. O titular somente poder arguir a aplicao dos pargrafos 4 e 5 do art. 1.228 do CCB se o proprietrio ingressar em juzo com ao reivindicatria.

    Outra notvel divergncia entre o instituto sob exame e a usucapio diz respeito indenizao a ser fixada pelo juiz como condio para a transcrio da sentena perante o sistema registral. Nos termos do 5, ... o juiz fixar a justa indenizao devida ao proprietrio; pago o preo, valer a sentena como ttulo para o registro do imvel em nome dos possuidores. (BRASIL, 2004). de se questionar se a aquisio do imvel no presente caso se daria de forma originria ou derivada.

    Como demonstrado no tpico 2.1, o vocbulo usucapio tem origem latina (usucapio = usu + capio) e significa aquisio (capio) pelo uso (usu). Conceitua-se como aquisio originria da propriedade pelo exerccio da posse durante determinado tempo. O conceito e a origem da usucapio so suficientes para diferenci-la do instituto previsto nos pargrafos 4 e 5 do art. 1.228 do CCB, ainda mais quando se tm em vista as disposies do citado 5, segundo o qual a aquisio no se dar pelo uso, mas pelo pagamento de indenizao.

    No se nega que o instituto em comento exija a posse prolongada no tempo (cinco anos) para a aquisio do domnio, mas esta somente se efetivar com o pagamento da indenizao, condicionante que retira o carter originrio da aquisio. Pelo que se apreende da leitura do art. 1.228, o pagamento da indenizao ser realizado em momento posterior sentena. E no poderia ocorrer diferente, j que ser na sentena que o juiz reconhecer o direito e fixar a indenizao, quando, ento, ser oportunizado o pagamento. A sentena, portanto, ainda que contenha a previso de registro, no ttulo hbil transferncia do domnio, sendo imprescindvel a prova do pagamento da indenizao. Assim, o registro no poder ser realizado na forma do art. 226 da Lei de Registros Pblicos (Lei n. 6.015/1973), referenciando apenas o mandado judicial24, como ocorre na usucapio. O registro dever mencionar, tambm, o pagamento da indenizao, e a sua escriturao dever ser feita nos moldes do art. 176, III, b, 5, da Lei de Registros Pblicos, como ocorre na transferncia da propriedade.

    24 O art. 945 do Cdigo de Processo Civil dispe sobre o registro da sentena de usucapio da

    seguinte forma: A sentena que julgar procedente a ao ser transcrita, mediante mandado, no registro de imveis, satisfeitas as obrigaes fiscais. (BRASIL, 1973).

  • Como se pode asseverar, o instituto previsto nos pargrafos 4 e 5 do art. 1.228 do CCB deveras controverso, sendo unssona a opinio da doutrina sobre uma nica questo: a funo social do instituto25. Mas tambm esta caracterstica pode ser questionada.

    A doutrina tem, de forma predominante, atribudo ao novo instituto a funo de regularizar a posse de rea ocupadas por populao de baixa renda, como ressaltam GAGLIANO (2004, p. 60), BARROSO (2005, p. 133), VENOSA (2003, p.205) e FIZA (2004, p.798)26. Mas os requisitos para a aplicao do instituto em tela dificilmente permitiriam a este promover a regularizao de reas possudas por populao de baixa renda. Isto porque a aplicao do instituto hbrido, o qual tambm recebe a denominao de desapropriao judicial (BARROSO, 2005, p. 131), requer posse de boa-f, a realizao de obras ou servios de interesse social e econmico, alm do pagamento de justa indenizao. Tais requisitos dificultam a incidncia da desapropriao judicial em reas possudas por populao de baixa renda.

    O primeiro requisito (ou obstculo) para o acesso ao novel instituto pelas classes depauperadas posse de boa-f. A boa-f se caracteriza pela ignorncia do vcio que impede a aquisio da coisa (art. 1.201 do CCB). Notadamente, as reas possudas por populao de baixa renda so objeto de invaso ou ocupao, e os possuidores, no mais das vezes, tm conhecimento da irregularidade que macula a aquisio das reas. Portanto o atendimento ao primeiro requisito j estaria comprometido.

    Mas supondo-se que se trate de possuidores que ignorem o vcio da coisa possuda, o que s se pode conceber em uma compra irregular, pois, no estado atual dos meios de comunicao, quase inconcebvel que algum possua imvel pensando se tratar de coisa regular, ainda outro requisito obstaria a aplicao dos 4 e 5, do art. 1.228 do CCB: a realizao de obras ou servios de interesse social e econmico. A dificuldade neste aspecto se refere aos investimentos de carter econmico, ou melhor, na interpretao do que seja interesse econmico. Se interesse econmico se expressar na capacidade da ocupao gerar riqueza, a apresentao pelo reivindicante de plano de uso da rea para a implantao de

    25 Entre outros, FIGUEIRA JNIOR (2005); BARROSO (2005); VENOSA (2003); FIZA (2004) e

    ARAJO (2005). 26

    Este doutrinador chega a afirmar, quanto aos possuidores, que pode tratar-se de pessoas muito pobres, o que inviabilizaria a indenizao. (2004, p. 798).

  • empreendimento de grande porte seria suficiente para causar reflexos economicamente mais favorveis do que a manuteno da ocupao. Assim, o interesse econmico penderia em favor do reivindicante. Mas esse obstculo pode ser superado com uma interpretao coerente, que sopese o interesse social e o econmico.

    Insupervel, por outro lado, seria o requisito da justa indenizao. Nos termos do 5 do art. 1.228 do CCB, os ocupantes devem indenizar o proprietrio para viabilizar a aquisio do domnio da rea. A indenizao deve, ademais, ser justa. O quantum indenizatrio implica, portanto, a reflexo do valor de mercado, acrescido de lucros cessantes, danos emergentes e juros compensatrios, como j assentou a doutrina e a jurisprudncia27. Quando muito, seria usado, como padro, o valor venal do imvel, em analogia desapropriao para fins urbansticos, na forma do 2, do art. 8 do Estatuto da Cidade. Entretanto, qualquer que seja a frmula de clculo adotada, a indenizao no poderia ser aviltante, j que, conforme designao do termo, indenizao significa deixar indene, ou seja, sem dano28.

    Fato que se os ocupantes de baixa renda dispusessem de recursos para adquirir a propriedade pelo valor de mercado, ou mesmo propriedade de qualidade inferior, correspondente ao valor venal do imvel ocupado, certamente o fariam, como alternativa ocupao. Mas os ocupantes de baixa renda obviamente no dispem de tais recursos, o que torna impossvel o pagamento da indenizao e, por consequncia, invivel a aplicao do novo instrumento.

    Conclui-se, assim, que o instrumento no se presta regularizao da posse de reas ocupadas por populao de baixa renda, mas pode se prestar, por exemplo, regularizao de reas ocupadas por classes abastadas, adquiridas em loteamentos irregulares, que no podem ser registradas devido sua localizao em reas pertencentes a outrem, ou mesmo em reas pblicas, j que inexiste restrio legal aplicao desta modalidade de desapropriao em bens pblicos. Tal instituto resolveria o caso, por exemplo, dos Condomnios Solar de Braslia e Ville de Montaigne, ambos situados em terrenos pblicos na Capital Federal. Esses condomnios residenciais de classe mdia e mdia-alta, como relata Ana Carolina

    27 Vide: CARVALHO FILHO (2006, p. 710); MELLO (2006, p. 840-844). Na jurisprudncia, vide

    smulas 618 e 561 do STF e 69 e 113 do STJ. 28

    No se partilha do entendimento manifestado por Csar Fiza, para quem, ao fixar a justa indenizao, ao proprietrio, o juiz dever levar em conta a condio scio-econmica dos possuidores, a fim de no inviabilizar a aquisio da propriedade por eles. (2004, p. 798).

  • FIGUEIR LONGO (2007, p. 4), foram regularizados pela Lei 9.262/1996, mediante o pagamento de indenizao pelos ocupantes, sem que se procedesse necessria licitao29.

    Com essas observaes, pretende-se desmascarar um instrumento supostamente editado para promover a funo social da propriedade, mas que, na verdade, omite uma forma de regularizar a propriedade de parte da elite brasileira, que insiste em adquirir terrenos e fazer edificaes irregulares30, por exemplo, em reas de preservao ambiental, o que se observa, com frequncia, em condomnios situados em terrenos da marinha e em reservas florestais.

    Resta, assim, a alternativa de interpretar o novel instrumento com lentes democrticas e sociais, permitindo, por exemplo, que a boa-f aqui exposta seja interpretada no com o rigor do art. 1.201 do CCB, mas como princpio geral do direito, ou seja, deve-se perquirir no o conhecimento da irregularidade, mas a inteno de lesar algum (no sentido de culpa, emprestado do Direito Penal). Com esse sentido, a boa-f estaria presente nas ocupaes por populao de baixa renda, j que os possuidores, em tais casos, no infringem a lei por opo ou por qualquer impulso de lesar o proprietrio. Na verdade, as ocupaes, via de regra, configuram formas pacficas de resistncia, um puro estado de necessidade31.

    Tambm o conceito de interesse econmico e social se dever ater aos princpios constitucionais, em especial queles positivados nos incisos III e VII do art. 173 da Constituio, quais sejam, a funo social da propriedade e a reduo das desigualdades sociais.

    Por fim, a indenizao dever ser aplicada com critrios que possibilitem a aquisio da propriedade pelos possuidores de baixa renda, sem que se reduza o valor, como pretende FIZA (2004, p. 798), mas, talvez, parcelando o dbito e condicionando a transferncia do domnio sua quitao32. Ainda assim, o

    29 Ana Carolina Figueir Longo afirma, com propriedade, que a regularizao ofendeu o princpio da

    isonomia, uma vez que oportunizou a aquisio dos imveis pelos abastados ocupantes independentemente de licitao (2007, p. 8-9). 30

    Interessante caso de condomnio irregular de classe alta denunciado por Regina Lins em A (i)legalidade (in)aceitvel? O caso do empreendimento residencial Vista Atlntica, Macei, Alagoas.(In: FERNANDES; ALFONSIN, 2003). 31

    Sobre o nimo dos ocupantes, este quesito ser tratado mais frente, no tpico referente usucapio especial e regularizao fundiria. 32

    Tambm no se partilha do entendimento exposto por BARROSO (2005, p.136), segundo o qual a indenizao deveria ser arcada pelo Poder Pblico competente para a desapropriao, posto que estar-se-ia, com, isso obrigando o Estado a despender recursos de que muitas vezes no dispe para a completa satisfao do direito moradia de uma parcela da populao. Sustentar-se-, mais frente, que obrigar o Poder Pblico a realizar investimentos que assegurem um padro de vida

  • instrumento dificilmente se aplicar aos ocupantes depauperados, mas pode ser que se constitua em instrumento eficaz para aqueles que no se enquadram no conceito de miserveis, mas que, devido baixa renda, tambm no tenham acesso ao mercado imobilirio.

    Assim, como de resto se tem observado, caber aos operadores do direito a misso de colmatar as lacunas deixadas pelo legislador ordinrio, o que dever ser feito de forma coerente e sistemtica, respeitando os princpios vigentes, em especial o da funo social da propriedade e o da reduo das desigualdades sociais, sob pena de se transformar o direito previsto nos 4 e 5, do art. 1.228 do CCB em instrumento de apropriao de terras pblicas e infrao s normas ambientais pela elite nacional.

    Retomando o tema das modalidades de usucapio, pode-se agrupar as modalidades de usucapio em trs categorias, para as quais se prope a seguinte denominao: i) usucapies instrumentais; ii) usucapies privatistas; e iii) usucapio afirmativa.

    No primeiro grupo, inserem-se as usucapies especiais (urbana individual, urbana coletiva e rural); no segundo, esto englobadas as usucapies ordinrias e extraordinrias, tanto de bens mveis, quanto de imveis, e o terceiro grupo, por fim, composto pela usucapio quilombola. A classificao se justifica na medida em que as finalidades especficas da usucapio em cada grupo so distintas, ainda que a finalidade geral tratada no tpico 2.233 e respectivos subitens seja comum aos trs grupos.

    A designao conferida ao primeiro grupo se justifica pela insero dos institutos em polticas pblicas e a consequente conformao do seu uso s diretrizes e princpios estabelecidos na Constituio e em leis especiais. A usucapio, nesses casos, classificada como instrumento de poltica pblica, seja urbana ou rural. A interpretao e aplicao dessas modalidades, cumpre registrar, so indissociveis do princpio da funo social da propriedade.

    minimamente adequado vivel e cogente, mas essa obrigao deve estar vinculada a uma poltica, no bojo da qual sero alocados recursos, definidas prioridades etc. O tema ser abordado com mais profundidade e clareza no tpico referente aos efeitos da sentena da usucapio especial coletiva. 33

    Na oportunidade, se afirmou que a finalidade da usucapio regularizar uma situao ftico-jurdica (posse), para viabilizar o exerccio pleno dos direitos inerentes propriedade, em vista do interesse econmico, ou mesmo social. Esta finalidade tem carter geral, aplicando-se a todas as modalidades. Contudo as diferentes modalidades tm finalidades especficas, as quais sero tratadas caso a caso.

  • Lado outro, a denominao conferida ao segundo grupo se deve ao seu desatrelamento a qualquer razo metaindividual. Tais institutos se prestam, pelo menos imediatamente, a tutelar interesses privados. No se nega, todavia, que mediatamente possam promover o bem social, mas esta constitui sua finalidade reflexa, como em regra, verificvel em toda a espcie de direito.

    O terceiro grupo recebe a denominao afirmativo porque a modalidade de usucapio que o compe constitui um direito no extensivo aos demais cidados. A medida, contudo, no constitui privilgio, mas ao tendente a alar ao patamar comum pessoas cuja histria demonstra terem sido foco das mais variadas formas de preconceito e excluso. Trata-se do que hodiernamente se conceitua como ao afirmativa34.

    O presente estudo priorizar as usucapies instrumentais, principalmente a usucapio especial coletiva, mas torna-se imperiosa a exposio de cada modalidade, mesmo que sucintamente, para fins de comparao. o que se passa a fazer.

    2.3.1 Usucapio extraordinria (bens mveis e imveis)

    Conforme relata ARAJO (2005, p. 40-41), a usucapio extraordinria sucednea da praescriptio longissimi temporis, instituto romano criado no perodo ps-clssico, no decorrer da reforma jurdica iniciada pelo imperador Constantino. Tratava-se de prescrio do direito de reivindicar um imvel, sem, contudo, outorgar a propriedade ao possuidor.

    Durante a reforma de Justiniano, no sc. VI, a praescriptio longissimi temporis passou a ser concebida como forma de aquisio dos terrenos orientais, tendo, ao cabo da reforma, se tornado modo de aquisio da propriedade em

    34 Guilherme Pea de Moraes define aes afirmativas como polticas ou programas pblicos ou

    privados que objetivam conceder algum tipo de benefcio a minorias ou grupos sociais que se encontrem em condies desvantajosas em determinado contexto social, em razo de discriminaes, existentes ou passadas, como as pessoas portadoras de deficincia fsica, idosos, ndios, mulheres e negros, ao teor de trs consideraes acerca da sua origem, meios e fins. (MORAES, 2004, p. 108).

  • qualquer parte do Imprio. Neste ltimo caso, os requisitos eram a posse por 30 anos35 e a boa-f.

    No direito brasileiro, at o advento do Cdigo Civil de 1916, a legislao sobre a usucapio era esparsa e vigoravam trs espcies de usucapio, como relata Arajo:

    Primeiramente, a prescrio ordinria, que se consumava em trs, dez ou vinte anos. A seguir, a prescrio extraordinria, que se completava em trinta e quarenta anos (longissimi praescriptio temporis) e, por fim, a prescrio imemorial... (2005, p. 48).

    Com a promulgao do Cdigo Civil de 1916, foi extinta a usucapio imemorial, subsistindo, apenas, as modalidades extraordinria e ordinria. Nos termos da redao original, os prazos para a prescrio extraordinria eram de dez anos para bens mveis e trinta anos para imveis. modalidade ordinria aplicavam-se os prazos de trs anos para bens mveis e dez ou vinte anos para imveis, conforme presentes ou ausentes os proprietrios (Arajo, 2005, p. 48).

    A Lei n. 2.437/55 alterou a redao original dos artigos que dispunham sobre a usucapio (arts. 550, 551, 619 e 698), reduzindo os prazos de ambas as modalidades. Passou a vigorar o prazo de vinte anos para a usucapio extraordinria de bens imveis, cinco anos para bens mveis e, para a modalidade ordinria, os prazos passaram a ser de quinze ou dez anos, conforme presentes ou ausentes, e trs anos para bens mveis.

    A edio do Cdigo de 2002 seguiu a tendncia de reduo do prazo prescricional, tendo fixado o prazo da modalidade extraordinria em quinze anos, conforme dispositivo ora transcrito:

    Art. 1.238. Aquele que, por 15 (quinze) anos, sem interrupo, nem oposio, possuir como seu um imvel, adquiri-lhe a propriedade, independentemente de ttulo e boa-f; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentena, a qual servir de ttulo para o registro no Cartrio de Registro de Imveis. (BRASIL, 2004).

    Contudo o pargrafo nico do artigo 1.238 autoriza a reduo do prazo prescricional para 10 anos se o possuidor houver estabelecido no imvel sua moradia habitual, ou nele houver realizado obras e servios de carter produtivo

    35 Segundo ARAJO (2005, p. 41), o prazo seria de 40 anos se o imvel fosse de propriedade da

    Imperatriz, do Imperador, do fisco, da Igreja e os destinados s causae piae.

  • (Brasil, 2004). Tal hiptese demonstra a preocupao do legislador com a questo econmica e social da posse, em clara tendncia social-democrtica.

    A usucapio extraordinria, como se percebe no dispositivo, exige como nicos requisitos a posse e o animus domini36, prescindindo da boa-f e do justo ttulo. A longevidade do prazo constituiu, para o legislador, desde a edio do Cdigo de 1916, requisito suficiente para retirar qualquer mcula da posse.

    No que se refere usucapio extraordinria de bens mveis, o Cdigo de 2002 assim a previu: Art. 1.261. Se a posse da coisa mvel se prolongar por 5 (cinco) anos, produzir usucapio, independentemente de ttulo ou boa-f. (BRASIL, 2004). Como se infere, o dispositivo repetiu a norma prevista no art. 619 do Cdigo de 1916.

    Quanto usucapio de bens mveis, frequente na doutrina a meno sua escassa utilizao. Isso se deve, em parte, dificuldade que o ordenamento jurdico ops ao apossamento de coisa alheia mvel ou semovente, j que tais condutas constituem, no mais das vezes, crime de furto37, apropriao indbita38 ou receptao39, o que no ocorre com a ocupao de terras40.

    Mas a pouca utilizao do instituto tambm devida desnecessidade de registro dos bens mveis, o que torna dispensvel o reconhecimento da propriedade. Quando muito, exige-se o cadastro dos bens mveis para sua circulao, como o caso de automveis. Contudo, pouco provvel que algum se aproprie de um automvel de outrem sem o dolo especfico de algum dos tipos acima citados. A usucapio extraordinria subsistiria em casos como esse, mas o possuidor se exporia ao risco de uma investigao criminal, o que o desencorajaria a pleitear a regularizao da propriedade.

    36 O animus domini, para qualquer modalidade de usucapio, ser aquele defendido por Ihering,

    conforme j sustentado, ou seja, a aparncia de dono perante a sociedade, a qual se desvela no aproveito econmico do bem e no exerccio de direitos inerentes propriedade. 37

    O crime de furto est previsto no art. 155 do Cdigo Penal: Art. 155. Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia mvel: Pena recluso, de 1 (um) a 4 (quatro) anos e multa. (BRASIL, 1940). 38

    O crime de apropriao indbita est previsto no art. 168 do Cdigo Penal: Apropriar-se de coisa alheia mvel, de que tem a posse ou a deteno: Pena recluso, de 1 (um) a 4 (quatro) anos e multa. (BRASIL, 1940). 39

    O crime de receptao est previsto no art. 180 do Cdigo Penal: Art. 180. Adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em proveito prprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou influir para que terceiro, de boa-f, a adquira, receba ou oculte: Pena recluso, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. (BRASIL, 1940). 40

    Somente a invaso mediante o uso de violncia contra pessoa ou em concurso de mais de duas pessoas constitui crime de esbulho possessrio (art. 161, II do Cdigo Penal). A pena prevista para esse crime de deteno de um a seis meses e multa. Ainda assim, note-se que a pena bem mais branda do que as penas previstas para os tipos de furto, apropriao indbita e receptao.

  • Poder-se-ia citar mais uma gama de razes para o baixo ndice de aplicao do instituto da usucapio extraordinria de bens mveis, como a mora da marcha processual, os custos da demanda, o desgaste do litgio, entre inmeros outros, mas a razo mais plausvel, a despeito das j sustentadas, o intuito que move os usucapientes.

    Pode-se afirmar, sem sombra de dvida, que o problema brasileiro fundirio e no, propriamente, a carncia de recursos. Explica-se: h no Brasil, como em todos os pases perifricos, enorme carncia de recursos. Contudo, o que visto com mais indignao e inconformidade pela populao a abastana de terras e o seu baixssimo ndice de aproveitamento41. Isso leva a um conformismo da populao e at mesmo a certa permissividade das autoridades pblicas no que se refere s ocupaes, invases e assentamentos informais, fora, claro, a dificuldade de fiscalizao.

    Alm disso, na maioria das ocupaes, invases e assentamentos, os possuidores esto impelidos por uma razo superior a seus prprios desejos. Essas pessoas agem assim em manifesto exerccio do direito sobrevivncia e, em virtude disso, esto amparadas pela excludente de antijuridicidade denominada estado de necessidade justificante42, o que impede sua punio.

    No caso de bens mveis no se pode, via de regra, sustentar o estado de necessidade justificante, o que sujeita os possuidores de m-f s penas previstas em lei.

    A funo da usucapio extraordinria , como se manifestou alhures, mais de natureza privada do que pblica. A prescrio aquisitiva, nesta modalidade, se destina a conferir ao possuidor os direitos inerentes propriedade, o que no deixa de ter uma funo econmica, mas no necessariamente estar imbuda de um propsito social.

    Nesta modalidade no se requer qualquer caracterstica especial do possuidor ou da posse, a no ser, quanto a esta, o animus domini, que se reflete no proveito econmico da coisa. O objeto, ademais, no precisa ter qualquer caracterstica especial, podendo se tratar de imvel de qualquer dimenso ou

    41 Sobre a questo fundiria no Brasil, tratou de forma notvel Fbio Alves dos Santos (1995).

    42 ZAFFARONI e PIERANGELI (2006, p. 560) lecionam que o estado de necessidade justificante

    ocorre quando males entram em coliso e certa pessoa obrigada a praticar uma conduta antijurdica para defender-se de outra de igual ou de maior gravidade. No presente caso, os males a que esto sujeitos os ocupantes, quais sejam, completo abandono material e risco de vida, justificam a ofensa ao direito de propriedade alheio.

  • caracterstica (rural ou urbano). Assim, este instituto pode beneficiar desde possuidores de baixa renda, at latifundirios, mesmo que o imvel seja improdutvel43.

    2.3.2 Usucapio ordinria (bens mveis e imveis)

    A usucapio ordinria tem como antecedente histrico a usucapio, que remonta ao perodo arcaico romano, em fase anterior Lei das XII tbuas, datada de 455 a.C.44

    No direito brasileiro, at o advento do Cdigo Civil de 1916, a usucapio ordinria estava prevista em instrumentos normativos diversos (ordenaes e legislao esparsa) e a sua consumao requeria a posse por trs, dez ou vinte anos.

    Com a promulgao do Cdigo Civil de 1916, o prazo de cinco anos foi fixado para a usucapio de bens mveis e, para imveis, o prazo passou a ser de dez anos entre presentes e vinte anos entre ausentes.

    Conforme pargrafo nico do art. 551 do Cdigo Bevilqua (BRASIL, 2004), eram considerados presentes os moradores do mesmo municpio e ausentes os moradores de municpios diversos.

    A Lei n. 2.437/55 alterou as disposies do art. 551 que regiam a usucapio ordinria, reduzindo o prazo para a aquisio de bens imveis entre ausentes de vinte, para quinze anos, e o prazo para aquisio de bens mveis de cinco, para trs anos. O prazo de cinco anos, contudo, permaneceu para aquisio de bens mveis na forma da usucapio extraordinria (BRASIL, 1955).

    Com a vigncia do Cdigo de 2002, as disposies relativas usucapio de bens mveis no sofreram alteraes. J a usucapio ordinria de bens imveis teve o prazo reduzido para dez anos, no se cogitando mais prazos distintos para ausentes e presentes. Assim est redigido o dispositivo:

    43 Registra-se que o imvel improdutivo no impossibilita a usucapio, pois possvel que o

    possuidor dele se utilize abaixo dos padres legais que determinam a produtividade do imvel. Assim se teria o uso com animus domini, requisito suficiente da posse ad usucapionem extraordinrio. 44

    Segundo FARIAS e ROSENVALD (2006, p. 260), a usucapio era utilizada para a aquisio de bens mveis e imveis, mediante a posse continuada pelo perodo de um ou dois anos, mas somente poderia ser utilizada por cidados romanos. Arajo justifica que o exguo prazo encontra razo na pequena dimenso territorial de Roma (2005, p. 34).

  • Art. 1.242. Adquire tambm a propriedade do imvel aquele que, contnua e incontestadamente, com justo ttulo e boa-f, o possuir por 10 (dez) anos.

    Pargrafo nico. Ser de 5 (cinco) anos o prazo previsto neste artigo se o imvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartrio, cancelada posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econmico. (BRASIL, 2004).

    A usucapio ordinria requer a presena de dois requisitos, alm da posse com animus domini. So eles o justo ttulo e a boa-f, sobre os quais j foram tecidos os necessrios comentrios.

    Note-se que, da mesma forma como o fez o art. 1.238, referente usucapio extraordinria, foi inserida no art. 1.242 do CCB uma hiptese de reduo do prazo. Neste caso, para que o possuidor se beneficie da reduo para cinco anos, dever comprovar a aquisio onerosa do imvel, a qual tenha sido registrada em cartrio e posteriormente, cancelada. Soma-se a esta a condicionante da realizao de investimentos de interesse social ou econmico ou o uso para moradia.

    Os critrios para o arrefecimento do prazo so bastante rigorosos, tanto mais porque restringem o justo ttulo escritura pblica de compra e venda, o que limitar a aplicao da norma aos casos de falsas escrituras, ou outros vcios nos documentos, como a falta de outorga uxria. Entretanto o novo dispositivo no deixa de representar um avano em relao legislao revogada.

    A finalidade da usucapio ordinria, como ocorre com a modalidade extraordinria, tutelar interesses privados, no necessariamente vinculados funo social da propriedade. Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald admitem que a modalidade prevista no pargrafo nico do art. 1.242 retromencionado tem como mister a observao do princpio funcionalizador social (2006, p. 287). No entanto, como j sustentado, o interesse econmico nem sempre estar atrelado ao interesse social, a no ser que, em sua interpretao, sejam observados os princpios norteadores da ordem econmica nacional, dentre eles a prpria funo social da propriedade, prevista no art. 170, III, da CR/88, e a reduo das desigualdades regionais e sociais, prevista no art. 170, VII, da CR/88 (BRASIL, 1988).

  • 2.3.4 Usucapio quilombola

    A usucapio que se convencionou denominar quilombola matria pouco abordada pela doutrina. Os manuais de direitos reais, as obras especializadas e mesmo os tratados de usucapio sequer mencionam sua existncia. Um nico autor parece ter reconhecido no Ato das Disposies Constitucionais Transitrias uma norma que, devido s caractersticas, pode ser enquadrada como uma modalidade de usucapio.

    Cludio Teixeira da Silva (2002) reconheceu no art. 68 do Ato das Disposies Constitucionais Transitrias ADCT uma modalidade de prescrio aquisitiva. Dispe o texto:

    Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os ttulos respectivos. (BRASIL, 1988).

    Duas razes levam a crer se tratar de usucapio. A primeira diz respeito presena dos elementos gerais da usucapio (tempo e posse). A posse requisito manifestado no trecho que estejam ocupando.... J o tempo est implcito no substantivo remanescentes e no tempo verbal utilizado (estejam presente do subjuntivo). Certifica-se pelo sujeito da orao e pelo tempo verbal que os possuidores so sucessores dos antigos fundadores das comunidades quilombolas e que se encontrem, at a promulgao da Constituio de 1988, na posse das terras historicamente ocupadas por sua linhagem.

    A outra razo para se sustentar que a norma em referncia constitui uma modalidade de usucapio a aquisio mediante declarao, independentemente de contraprestao.

    O nico ponto que destoa das modalidades autodenominadas usucapio a possibilidade de reconhecimento do direito pela via administrativa, o que, alis, constitui a regra na usucapio quilombola.

    A segunda parte do art. 68 do ADCT estabelece que o Estado deve emitir os ttulos de propriedade aos possuidores. Contudo tal prerrogativa no afasta a possibilidade de pleitear, em juzo, o reconhecimento da propriedade, em caso de

  • negativa do Estado a reconhecer o domnio45. Isso porque a recusa do Estado implica a ofensa a um direito, o qual deve ser objeto de tutela pelo judicirio, se for provocado. Trata-se da regra do amplo acesso justia, prevista no art. 5, XXXV, da CR/88 (BRASIL, 1988).

    Assim, pela exegese do artigo em comento, trata-se, inegavelmente, de modalidade de usucapio, concluso a que chegou Cludio Teixeira da Silva, in verbis:

    Ora, a aquisio da propriedade disciplinada no art. 68 do ADCT rene esses dois elementos, porque o dispositivo, de um lado, reconhece a posse centenria, contnua e pacfica dos remanescentes sobre as terras dos quilombos (posse prolongada), e, de outro, atesta que eles a exerciam em 05.10.1988 com inteno de dono (posse qualificada). Pode-se afirmar, portanto, que essa norma constitucional versa sobre espcie singular46 de usucapio. (2002, p. 82).

    A finalidade desta tipologia de prescrio aquisitiva minorar os danos infligidos populao negra durante o perodo escravagista, reconhecendo-se aos descendentes dos antigos escravos revoltosos o direito terra que seus remotos ascendentes conquistaram em sofrida resistncia. O instituto, por bvio, no deixa de ter relevncia social, posto que a regalia outorgada pelo constituinte tende a minorar o dficit econmico-social em que se encontram os quilombolas.

    2.3.4 Usucapio especial rural

    A usucapio especial rural foi a primeira modalidade a ser constitucionalizada. Foi positivada na Constituio de 1934, em seu art. 12547 e,

    45 Neste aspecto, note-se que a Relatoria Nacional para os Direitos Humanos Moradia Adequada e

    Terra Urbana da Plataforma DhESCA Brasil (entidade ligada ONU) constatou, em uma misso realizada na Baixada Fluminense (Estado do Rio de Janeiro), que Comunidades quilombolas, tanto urbanas quanto rurais, tambm no esto tendo o direito ao reconhecimento de suas terras. (In: RODRIGUES, 2007, p.113). 46

    A denominao singular conferida pelo autor se deve, segundo este, a trs razes: i) a impossibilidade de ocorrncia daquela modalidade de usucapio aps a promulgao da constituio, ainda que a ao ou requerimento sejam propostos somente aps a promulgao; ii) a sua aplicabilidade restringida aos remanescentes das comunidades quilombolas; e iii) possibilidade de aquisio de terras pblicas, posto inexistir qualquer restrio quanto titularidade dos bens usucapidos. (SILVA, 2002, p. 83). 47

    Assim previa o dispositivo: Art 125 - Todo brasileiro que, no sendo proprietrio rural ou urbano, ocupar, por dez anos contnuos, sem oposio nem reconhecimento de domnio alheio, um trecho de

  • desde ento, jamais deixou de vigorar no ordenamento jurdico brasileiro. Certo, porm, que no tenha figurado no texto constitucional de 1967, nem mesmo aps a outorga da Emenda n. 1, de 1969, como registram FARIAS e ROSENVALD (2006, p. 303). Mas a sua anterior previso no Estatuto da Terra (Lei n. 4.504/64), sob a gide da Constituio de 1946, garantiu a vigncia do instituto mesmo durante a ditadura militar, ainda que com texto diverso daquele previsto na Constituio de 1934, como se pode asseverar:

    Art. 98. Todo aquele que, no sendo proprietrio rural nem urbano, ocupar por dez anos ininterruptos, sem oposio nem reconhecimento de domnio alheio, tornando-o produtivo por seu trabalho, e tendo nele sua morada, trecho de terra com rea caracterizada como suficiente para, por seu cultivo direto pelo lavrador e sua famlia, garantir-lhes a subsistncia, o progresso social e econmico, nas dimenses fixadas por esta Lei, para o mdulo de propriedade, adquirir-lhe- o domnio, mediante sentena declaratria devidamente transcrita. (BRASIL, 1964).

    O art. 98 do Estatuto da Terra s foi revogado dezessete anos mais tarde, com a edio da Lei n. 6.969/81, que disps sobre a aquisio de imveis mediante usucapio especial rural. Assim dispunha a Lei da Usucapio Rural:

    Art. 1 Todo aquele que, no sendo proprietrio rural nem urbano, possuir como sua, por 5 (cinco) anos ininterruptos, sem oposio, rea rural contnua, no excedente de 25 (vinte e cinco) hectares, e a houver tornado produtiva com seu trabalho e nela tiver sua morada, adquirir-lhe- o domnio, independentemente de justo ttulo e boa-f, podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentena, a qual servir de ttulo para transcrio no Registro de Imveis. (BRASIL, 1981).

    A promulgao da Constituio da Repblica de 1988 alterou substancialmente as disposies da Lei n. 6.969/81. O prprio art. 1, que define a usucapio especial rural, no foi recepcionado pela nova ordem constitucional. O art. 191 da Constituio Cidad majorou a dimenso mxima do imvel a ser usucapido, alm de no exigir a continuidade da rea e prever que trabalho da famlia tambm cumpre o requisito pro labore. Assim est redigido o texto constitucional:

    Art. 191. Aquele que, no sendo proprietrio de imvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposio, rea de terra, em zona rural, no superior a cinqenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua famlia, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe- a propriedade. (BRASIL, 1988).

    terra at dez hectares, tornando-o produtivo por seu trabalho e tendo nele a sua morada, adquirir o domnio do solo, mediante sentena declaratria devidamente transcrita. (BRASIL, 1934).

  • Outros artigos da Lei da Usucapio Rural tambm no foram recepcionados, a exemplo dos arts. 2 e 3, que preveem a usucapio de terras devolutas e a preferncia para reassentamento em caso de ocupao de reas de preservao ambiental, reas imprescindveis para a segurana nacional e outras de natureza pblica48.

    Alguns dispositivos da Lei n. 6.969/81, mesmo que recepcionados pela CR/88, foram revogados pela legislao posterior, como o caso do art. 5, que previa a adoo do procedimento sumarssimo para o processamento da ao de usucapio especial rural49. Mas, ainda assim, a Lei da Usucapio permanece em vigor, e contm dispositivos de grande valia para o julgamento das causas e o reconhecimento do direito dos possuidores, a exemplo do art. 7, que autoriza o registro da sentena quando a usucapio for evocada em defesa, e do art. 9, que assegura a proteo policial ao possuidor durante a tramitao do feito, quando este o requerer.

    A edio do Cdigo Civil de 2002 no inovou no que tange usucapio especial rural, tambm denominada pro labore50, tendo se limitado a transcrever o dispositivo contido no art. 191 da Constituio de 1988.

    Quanto definio das finalidades da usucapio especial rural, pode-se afirmar que no tarefa fcil. A dificuldade, no entanto, no est em encontrar vantagens no instrumento de poltica rural, mas em delimitar as finalidades primordiais, haja vista a abrangncia do impacto desse instrumento nas questes sociais.

    Como se afirmou antes, a usucapio especial rural est inserida no grupo das usucapies instrumentais, o que condiciona sua interpretao e aplicao. Vale dizer, a usucapio especial rural um dos instrumentos que viabilizaro o alcance dos objetivos traados para a poltica agrcola e fundiria, hoje previstos no captulo III, do ttulo VII, da Constituio de 1988 e no Estatuto da Terra (arts. 1 e 2).

    48 O pargrafo nico do art. 191 da CR/88 vedou a prescrio aquisitiva sobre imveis pblicos.

    49 A Lei dos Juizados Especiais (Lei n. 9.099/95) revogou o art. 5 da Lei n. 6.969/81, ao dispor, em

    seus arts. 1, 2 e 3, que o procedimento sumarssimo somente se aplica s causas de menor complexidade, o que certamente no o caso da usucapio, que, no raras vezes, demanda percias e a anlise de documentao de contedo afeto a outros ramos do saber (agronomia, engenharia etc.). 50

    A nomenclatura usucapio pro labore j no prpria para referenciar a usucapio especial rural, haja vista a nova modalidade prevista no pargrafo nico do art. 1.238, do Cdigo Civil, que tambm premia o possuidor que realizar servios na rea possuda.

  • A Constituio estabeleceu diretrizes gerais para a poltica agrcola51 e fundiria, vinculando-as reforma agrria52, nos termos do art. 187, pargrafo 2. Entre as diretrizes, esto o estmulo produo, o que se d por via reflexa, pela garantia de crdito e incentivos fiscais (art. 187, I), garantia de preos justos e de comercializao dos produtos do campo (art. 187, II), assistncia tcnica e incentivo ao uso de tecnologia (art. 187, III), garantia de habitao para o trabalhador rural (art. 187, VIII), entre outras aes. Tambm coube Constituio definir parmetros mnimos para o cumprimento da funo social da propriedade rural, o que o fez na forma do art