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Pormenores | Maio.Junho 2010 42 / A imagem de uma casa branca com barras azuis perdida no ondular dos montes é indissociável da paisagem alente jana. São moradias baixas com telhados de inclinações suaves e características únicas que fazem das antigas casas ale nte janas exemplos vivos de como os métodos usados pelos nossos antepassados têm muito para nos ensinar em matéria de sustentabilidade e protecção do ambiente. Texto Ângela Mendes Fotografia Cortesia Arq. Henrique Schrek - VIVER EM CASAS DE TERRA A REINVENÇÃO DA CONSTRUÇÃO EM TAIPA [Arquitectura]

VIVER EM CASAS DE TERRA - A REINVENÇÃO DA CONSTRUÇÃO EM TAIPA

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Reportagem sobre a construção tradicional em Taipa no Sudoeste Alentejano. Publicada na 6ª edição da Revista Pormenores em 2010.

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A imagem de uma casa branca combarras azuis perdida no ondular dosmontes é indissociável da paisagemalentejana. São moradias baixas comtelhados de inclinações suaves ecaracterísticas únicas que fazem dasantigas casas alentejanas exemplosvivos de como os métodos usadospelos nossos antepassados têmmuito para nos ensinar em matériade sustentabilidade e protecçãodo ambiente.

Texto Ângela MendesFotografia Cortesia Arq. Henrique Schrek

-VIVER EMCASASDE TERRAA REINVENÇÃO DACONSTRUÇÃO EM TAIPA

[Arquitectura]

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Então, terá de se corrigir com outros materiais,mas sempre materiais naturais, como pedra, areias,brita, matérias totalmente naturais. Se pelo

contrário, o barro for insuficiente, terá de se irbuscar barro para misturar”.A taipa resulta desta mistura de terra com aquantidade exacta de barro com água, que vaicriar uma goma, que irá por sua vez ligar desdeo grânulo mais fino ao maior, criando-se no fundouma pedra à pressa, e quanto mais tempo aconstrução durar mais dura e resistente ficará.Não existem tempos de secagem na construçãoem taipa, podendo-se fazer imediatamente umbloco por cima do que acabou de ser feito, factoque se torna, desde logo, numa vantagem emrelação ao betão, que necessita de ter em contaesse factor. Segundo o arquitecto, “a terra no

seu conjunto, quanto mais depressa for feitamelhor. Porque depois de estar pronta, vai lançarfora a sua água, vai cozer-se naturalmente aosol e transformar-se naturalmente numa coisaquase monolítica”.Estes blocos criam uma estrutura sólida e forte,o que faz com que vigas e pilares sejamdesnecessários. Cada bloco de taipa pesasensivelmente entre uma tonelada e umatonelada e meia, e aguenta cargas como ostelhados e até mesmo um piso, sem problemas.A parede de cerca de 55 cm não necessita,portanto, de qualquer estrutura solta de betãoou ferro.

Numa altura em que tanto se apela àsustentabilidade e preservação da natureza, aconstrução em taipa, tão comum no nosso

Alentejo até à década de 60 do séculopassado, pode ser uma resposta rápida, baratae principalmente amiga do ambiente para osector da construção.O betão foi lentamente substituindo asantigas casas de taipa, e o que se apresentoucomo uma solução irá transformar-se empoucas décadas num problema. O betão temuma média de vida de 200 anos, os detritosrestantes da demolição de construçõesantigas e degradadas serão por isso umproblema que se irá pôr às gerações futuras.Feito de sílicas aquecidas a milhares de grause depois transformadas em pó, o betão ao

ser junto com a água pela primeira vezendurece, prende e cria uma espécie de cola.Mas esta é uma liga estática, única edefinitiva.O que fazer então com milhares de metroscúbicos de entulho? Enterrá-los? Afundá-losno mar? Reciclá-los?A reciclagem de detritos proveniente de obrasjá é hoje possível, mas no entanto os métodosutilizados são muito dispendiosos. A menosque se inventem métodos mais baratos eeficazes, o entulho continuará a ser espalhadopelas numerosas lixeiras ilegais a céu abertoespalhadas pelo país.

CONSTRUÇÃO EM TAIPA – CONSTRUÇÃORÁPIDA E ECONÓMICA

Já imaginou construir a sua casa maioritariamentecom terra que retira do seu terreno?E juntar depois materiais igualmente recicláveis,como madeiras e vidros, e construir uma casaem materiais totalmente recicláveis e ainda porcima construir uma habitação energeticamenteeficiente?Para Henrique Schreck, Arquitecto e entusiastada construção em Taipa, a técnica resgatada aosnossos antepassados torna todas estas suposiçõespossíveis e as vantagens não param por aqui.“A mão-de-obra e o tempo de execução sãomenores e a terra está aqui à mão. São sónecessárias umas ferramentas, e estas são sempre

as mesmas. Isto é o meu ovo de Colombo,digamos”.Para fazer taipa, é necessário apenas ter terra quecontenha barro, e em quantidade certa para oefeito pretendido. Este é um ponto essencial,pois é o garante de uma construção durável eeficaz, como nos explica Henrique Schreck, “oúnico problema tem a ver com a terra, se terábarro na quantidade certa para este efeito. Porexemplo, se tiver barro a mais pode ser prejudicial.Como a terra é misturada com a água, depoisde seca, vai diminuir de volume e pode estalarcomo um prato de cerâmica, feito de uma massamal preparada. Pode estalar quando vai ao forno.

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Outra vantagem desta técnica, é a eliminaçãode humidades e bolores, uma vez que todosos materiais utilizados na construção são

porosos, a terra, os revestimentos de cal eareia permitem à casa “respirar”.

CONSTRUÇÃO ECOLÓGICA EENERGETICAMENTE SUSTENTÁVEL

As casas construídas em taipa são ecológicas,desde logo porque a energia despendida nasua construção é reduzida. Corta-se nasemissões de dióxido de carbono provocadaspelo transporte de matérias, e principalmentenos enormes gastos energéticos que muitosdesses materiais requerem para serem

produzidos.Um dia mais tarde, quando a casa for demolida,o barro volta à terra, desmanchando-se, logopodendo voltar a fazer-se outra casa com osmesmos materiais. Outros materiais presentes naconstrução em taipa, como a cal, são tambémbastante apreciados pelas terras, principalmentese a terra for ácida, acabando por funcionarcomo uma base.Vidros e madeiras são matérias vulgarmenterecicladas nos nossos dias. Utilizam-se tijoleirase telhas de barro, igualmente recicláveis, e atéos revestimentos de cortiça podem encontrarnovas utilizações.

Mas todas estas vantagens reportam apenaspara um futuro distante, enquanto que a casafeita em taipa traz vantagens energéticas mais

imediatas e de igual valor ecológico.As casas de taipa são conhecidas pelastemperaturas frescas, que no Verão mantêm noseu interior. “Têm um ar condicionado natural”,afirma Henrique Schreck, apresentando o exemploda sua própria habitação. “Se o Verão for muitoquente, lá mais para o fim da estação começaa sentir-se que a casa já não tem a temperaturado início do verão. Está menos fresca, emboranunca suba acima dos 26 graus. Normalmente,mantém-se entre os 22º e os 24º. E 22º é atemperatura ideal para se ter no Inverno.Quando estão 40º na rua e 24º dentro de casa,têm-se uma temperatura agradável no interior

da casa. Se o Verão é mais quente ou dura maisdo que o habitual, a temperatura sobe, mas essefacto faz com que a casa leve mais tempo aarrefecer, o que a tornará mais confortável noInverno. É efectivamente um ar condicionadonatural, que compensa de uma estação para aoutra, o que é fantástico em termos energéticos”.E é uma troca de energias passiva, os materiaiscompensando de uma estação para a outra esem intervenção humana, permitindo níveis deconforto elevados no interior da casa, reduzindodeste modo os gastos energéticos com oaquecimento no Inverno e com o arrefecimentono Verão.

COMO SE FAZ UMA CASA EM TAIPA

A terra tira-se do próprio terreno,retirando-se primeiro a camada orgânicae indo-se depois buscar a camadainorgânica, que é onde se encontra obarro, caso a terra o tenha. Por vezes, énecessário acrescentar barro ou pedra,para “corrigir” a terra, de modo a que estatenha as características ideais para aconstrução. A terra deverá estar húmida,mas não poderá estar “ensopada”.Depois, a terra é introduzida dentro dascofragens de madeira, que formam um

molde onde irá ser calcada com um pilão,sendo prensada camada a camada.Ao chegar ao fim, o taipal é retirado emontado novamente, recomeçando oprocesso, que demora cerca de uma hora.Cada bloco tem cerca de dois metros decomprimento, meio metro de largura emeio metro de altura.A construção deve ser iniciada,preferencialmente, na Primavera, quandoas temperaturas são ainda amenas.Deste modo, a taipa vai perdendo aágua lentamente, chegando ao pino doVerão praticamente seca. Ao fazer esteprocesso lentamente, o material estalamenos e cria resistência. Desde queeste processo esteja terminado, podecolocar-se o telhado e iniciar a fase deacabamentos.A partir daqui, é uma casa como outraqualquer, exceptuando os materiais queconstituem as suas paredes, terra e cal.

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ORIGEM DA TAIPA

É uma técnica milenar, com mais de 11 milanos de vida, com origem incerta, mas jáconhecida pelos romanos e árabes.Existem edifícios construídos com taipana América Latina, no Extremo Oriente,na América do Sul, em África e na Europa,sempre em latitudes não muito distantesdo equador.Desde que a terra tenha característicasa condizer, a taipa está presente, sendoque dois terços da população mundialvivem “debaixo de terra”.

“Durante o Inverno, a temperatura da casa,sem aquecimento, baixa até aos 14º. Nessecaso, necessito apenas de a aquecer um

pouco mais, mas tal como a casa não deixaentrar o frio, também não deixa sair o calor,e essa parte é que é muito importante. Muitasvezes, aquece-se uma casa, mas o calorperde-se para o exterior, desperdiçandograndes quantidades de energia”, reforçaHenrique Schreck.

TÉCNICA ANCESTRAL RECUPERADA NOSÚLTIMOS ANOS

No Alentejo, a construção em taipa foiabandonada quase por completo nos últimos 60

anos. Mas para Henrique Schreck, compreendero que fazer com os detritos provocados pelaconstrução em betão, é uma questão que lheocupa a mente, desde os seus tempos defaculdade. Daí que tenha começado a procuraralternativas. Construiu a casa onde habita hásensivelmente 12 anos, erigindo as paredes dasua casa em 33 dias e a partir daí praticamentejá não trabalha com betão.Henrique Schreck conta-nos que no início nãofoi uma tarefa fácil, principalmente porque oconhecimento sobre esta técnica estavaquase perdido e não havia ninguém quetrabalhasse a taipa.

Mas num esforço de recuperação de memoriasperdidas, foi possível contactar com pessoas quehaviam trabalhado em obras há mais de 60 anos,

e que foram juntando conhecimentos e reunindoesforços, para a formação de equipas capazesde construir casas em taipa.O ensinamento mais importante, é o reconhecerdas características da terra, perceber como seescolhe e como se rectificam as falhas.O único inimigo da taipa é a chuva. “A taipa écomo um cubo de açúcar. Enquanto está seco,pode-se pressionar à vontade, que aguenta, masse o pusermos dentro de um copo de água, eledesfaz-se”, saliente Henrique Schrek. A humidadecom que a terra é moldada, é o limite da taipa,um ponto de equilíbrio que se adquire com aexperiência. Depois de estar seca, passados

100 anos a taipa aguenta toda a quantidade deágua que apanhar. Exemplo disso, são os inúmerosmonumentos de taipa existentes um pouco portodo o mundo.Hoje em dia existem mais de 10 empresas naregião a trabalhar nesta área de construção, queestá a crescer um pouco por todo o litoralalentejano e no Algarve. Aparece não só emcasas de habitação familiar, mas também emedifícios públicos, aldeamentos turísticos,restaurantes e até mesmo ginásios.Henrique Schreck diz-nos que ainda há algumaresistência por parte da população em geral, emrelação à taipa, por ser associada à pobreza

vivida pelos seus antepassados nos antigos montesalentejanos, em que as casas de taipa tinhamchão de terra batida e nem sequer possuíam

casa de banho.No entanto, essa imagem pertence ao passado,sendo possível hoje construir uma habitação emtaipa e beneficiar de todos os confortos deuma habitação moderna. E é possível fazê-lobeneficiando o ambiente e construindo imóveistotalmente integrados na paisagem alentejana.A casa branca de barras azuis faz afinal parte deum imaginário, que devemos preservar. [P]