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SALA206

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Realização: Apoio: Patrocínio:Apoio Cultural:

Monitores do GRAV:Nathan Costa,

Guilherme Rebêlo, Lucas Schuina e Honório de Paula Rocha Filho

Projeto Gráfico: Kisley Gomes

Ecos Jr - Esther Radaelli(Núcleo de Jornalismo)

Diagramação:

Ecos Jr - Esther Radaelli(Núcleo de Jornalismo)

Capa:Ecos Jr - Nathan Mello dos Santos

(Núcleo de Publicidade)

Tiragem: 500 [email protected]

http://grupograv.wordpress.com

Esta publicação foi contemplada pela Lei Rubem Braga.

Conselho editorial:Alexandre Curtiss - UFESCleber Carminati - UFES

Denilson Lopes - UFRJErly Vieira Jr - UFES

José Benjamim Picado - UFFJosé Franscisco Serafim - UFBA

Orlando Lopes - UFESTadeu Capistrano - UFRJ

Daniela Zanetti - UFESVera França - UFMG

Wilberth Salgueiro - UFES

Revisão de textos:Nelson Martinelli Filho

Marihá CastroLucas dos Passos

Imagem de capa:Cena do filme “As horas vulgares”

Sala 206 - nº2out 2011, Vitória - ES

ISSN: 2176-7130

EXPEDIENTE

Sala 206 é uma publicação do Grupo de Estudos

Audiovisuais - GRAV, ligado ao Departamento de

Comunicação Social, Centro de Artes, UFES.

Coordenador do GRAV:Alexandre Curtiss

Produção editorial:Daniela Zanetti e

Alexandre Curtiss

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APRESENTAÇÃO

Com o propósito de problematizar a relação entre local e global no campo do cinema, essa edição traz artigos que discutem produções bastante singulares, sem perder de vista o que possam ter de “transcendentes”. São textos que se debruçam sobre obras de cineastas históricos e consagrados, ou de recentes produções de países orientais, de diretores cujos trabalhos vêm ganhando destaque na cinematografia mundial, mas também há análises de cinematografias menos visíveis no amplo circuito, trabalhos de realizadores capixabas.

A análise fílmica, com destaque para questões do metacinema, é a estratégia adotada por Josette Monzani para examinar as marcas autorais em Nick’s Movie, de Wim Wen-ders, enquanto Rafael de Almeida busca aprofundar a definição do chamado documen-tário experimental (ou de invenção) a partir de uma revisão de literatura acerca desse conceito e da análise de várias referências históricas.

Atento em um cinema que ganha cada vez mais destaque junto à crítica internacional, Erly Vieira Jr. escreve sobre certos filmes contemporâneos que buscam, como ca-racterística distintiva, explorar a sensorialidade a partir da ênfase estética em novas relações espaço-temporais. Teorização limítrofe, é texto exploratório e arriscado sobre um cinema que é do mundo.

A produção capixaba é o foco de dois trabalhos de fôlego e de embate. O ensaio do cineasta e crítico de cinema Rodrigo de Oliveira – um dos fundadores do GRAV e dire-tor, junto com Vitor Graize, do longa As Horas Vulgares – analisa a produção regional recente, com prioridade nos aspectos narrativos e estéticos das obras abordadas. O texto coloca em questão a tradicional crença numa supostamente desejada identida-

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de comum dessas obras. A idéia é alimentar certos discursos estabelecidos com seu oposto e suprir carências de polêmica e contradições. Um pouco mais descritivo, e tendo como base uma pesquisa coletiva de iniciação científica coordenada pelo profes-sor Alexandre Curtiss, Joyce Castello trata especificamente de aspectos do mercado e da cadeia produtiva audiovisual no Estado. De modo direto, enfoca as condições de produção, trazendo dados e números que ajudam a mapear as oportunidades e apontar as dificuldades enfrentadas pelos realizadores capixabas.

Por fim, tendo como base sua pesquisa de mestrado, Júlio Martins problematiza, por-menorizadamente, a questão das novas tecnologias, ao examinar uma espécie de “anarquia de configurações e aparatos tecnológicos” envolvidos nas operações de ar-mazenamento e o compartilhamento digital dos mais variados tipos de produtos audio-visuais. É um olhar voltado para as bases infraestruturais das novas tecnologias, aves-so à aceitação automática do que se apresenta como “novo” e isento de problemas.

E assim Sala 206 encontra seu segundo número, ainda impresso. Fruto de um projeto aprovado pela Lei Rubem Braga, da Prefeitura Municipal de Vitória, o mais provável é que daqui em diante a revista se bandeie para a plataforma on line, tanto em função da facilidade e do barateamento da produção, como também para ampliar sua circulação junto a outros públicos. Como parte do GRAV – projeto de extensão e grupo de pes-quisa em audiovisual, ligado ao Departamento de Comunicação da UFES – a idéia é a de que Sala 206 continue como espaço que reúna artigos e ensaios sobre o campo do audiovisual, seus processos e produtos, lugar de reflexão e aprendizado.

Boa leitura!Os editores.

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07Suportes, formatos de arquivos e distribuição digital: novos rumos para o Audiovisual Documentáriopor Júlio Martins

[Ensaio]O Cinema do Espírito Santo nos anos 2000: Acaso de uma imagem capixabapor Rodrigo Oliveira

A propósito de um documentário experimentalpor Rafael Almeida

Marcas de um realismo sensório no cinema mundial conteporâneopor Erly Vieira Jr.

A morte viva.Apontamentos sobre Nick´s Moviepor Josette Monzzani

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[Pesquisa]O Negócio Audiovisual no Espírito Santopor Joyce Castello

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Wim Wenders estava acompanhando a agonia de Nicholas Ray. Mais uma vez foi visitá-lo em Nova York, aproveitando um intervalo nas filmagens de Hammett. Nessa visita lhes ocorre fazer um filme juntos. E Wenders fica animado também com a ideia de poder realizar um velho desejo de fazer um filme sobre “o cine-ma, um filme que tivesse por tema as filmagens” (CIMENT, 1983, p. 310).

Nick´s movie é um oximoro: um encontro de contrários, como no verso ca-moniano. Wenders procurará resgatar a grandeza de Nick, reconstituir sua ima-gem³ deteriorada exteriormente pela doença e desdenhada por Hollywood, para mostrar o seu revés, como um ícone do cinema criativo, autoral, independente.

O roteiro. O tempo

Por onde a obra teve início? Ela foi começada sem roteiro. Diz Wenders, em entrevista sobre o filme (CIMENT, 1998, p. 308): “A primeira sequência que filmamos foi a conferência em Vassar, e esta era estritamente documental. Nós a filmamos em 35mm e em vídeo, mas só com Nick em cena”. Depois, eles voltaram à universidade para fazer mais planos, planos ficcionais que completa-riam e alargariam os sentidos dos inicialmente feitos (CIMENT, 1983, p. 308).

Na Universidade Vassar, Nick fala e mostra seu filme The lusty men – Paixão de Bravo (1952). O tema da “volta ao lugar de origem”, lugar de paz, de reencontro consigo mesmo, presente na sequência mostrada, é lançado na diegese, fica de sobreaviso no espectador e vai encontrar eco no adiantado da narrativa quando parte do último trabalho de Nick – We can´t go home again (1971-1973) – for visto por Wenders, Nick e equipe. No fechamento do tema se percebe que havia sido exposta mais uma faceta da vida de Nick: o desassossego, a busca constante de um lugar para si no mundo, do espaço do artista no mundo, através dessas duas temporalidades e constâncias aproximadas.

Nick, como Wenders, só que na direção inversa, a certa altura de sua vida (em torno de 1963/64) abandonou os Estados Unidos pela Europa. Jacques Aumont explicita essa passagem da vida de Ray:

ResumoWim Wenders procura, através do metacinema, enquanto forma narrativa, apreender a essência do cineasta Nicholas Ray, que se confunde com o ser-cinema. Apesar então de ter por horizonte a proximidade da morte de Nick, o filme consegue ser prazeroso. Nossa tarefa aqui será discutir como isso ocorre. Procuraremos, principalmente por meio de textos de Christian Metz, Philippe Dubois e Serge Daney, discutir essa questão.

palavras-chave: Wim Wen-ders; Nicholas Ray; metaci-nema; ficção/documentário.

A morte viva.Apontamentos sobre Nick´s Movie¹por Josette Monzani²

[1] Trabalho apresentado no NP de Comunicação Audiovi-sual, IX Encontro dos Grupos/Núcleos de Pesquisas em Comunicação, evento com-ponente do XXXII Congresso Brasileiro de Ciências da Co-municação, agora reformula-do para esta publicação.

[2] Profa. Dra. do Bacharelado e do Mestrado em Imagem e Som da Universidade Federal de São Carlos.

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Ray só se torna cineasta aos 35 anos (advindo do teatro e do rádio) e sua carreira acidentada, suas relações difíceis

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[4] “Nick Ray trabalhou com seus alunos do Harpur College em um filme ‘coletivo’, totalmente subjetivo e pessoal, encenan-do suas próprias relações de professor e alunos de cinema. O título, típico e simbólico, é We can´t go home again” (DUBOIS, P. Cinema, Vídeo, Godard. São Pau-lo: CosacNaify, 2004, p. 121).

Wenders, nesse filme, pode estar também, enquanto reflexiona sobre o cine-asta, vendo- se em projeção, pensando sua trajetória e o destino dela.

À medida que as filmagens tiveram início, a necessidade do roteiro deve ter se impostado. E ele deve ter sido realizado quase conjuntamente com as filmagens. O interessante aqui é que os acontecimentos, conforme foram se desenrolando na realidade, criaram o roteiro. Temos então o real, e sua trans-formação em representação, como procedimento. É o que se pode depreender de sequências como esta: logo no início do filme, vemos Nick acordando. O despertador toca. Ele acorda, desliga a TV, tosse. Está desalinhado. Reclama. A calça do seu pijama escorrega. As sequências são de um realismo intenso. Quando ele pergunta a Wenders se estava bem na filmagem, temos consciência da “farsa”. Porém, outro dado fundamental nesse momento, é que não se apaga em nós a percepção que tivemos do real estado de saúde de Nick. Como se ocorresse ao poeta fingir sentir que é dor, a dor que deveras sentia, parafrase-ando aqui Fernando Pessoa. A ação era única, com sentido duplo.

Nesse sentido, ainda na referida entrevista (CIMENT, 1998, p. 309), Wenders afirma que “Mais tarde [quando escolhemos a história de nosso filme], deci-dimos que mostraríamos como começamos a pensar nela. Então, nós escre-vemos em forma de roteiro o que tinha nos acontecido uma semana antes” (qual seja, a chegada de Wenders ao apartamento de Nick). O ponto de entrada naquela narrativa eram vários possíveis; optou-se por um deles, como veremos a seguir, não qualquer.

Uma sequência, ao longo do filme, mostra um momento no qual Ray e Wenders decidem a trama do filme e vem de Nick relacioná-la com a de O amigo americano (1977). A ideia de fazer a abertura do filme numa cena exatamente igual à outra de O amigo americano (1977) pode ter surgido em Wenders nessa oportunidade. De todo modo, a amizade dos dois ocorreu em decorrência da participação de Ray no filme anterior de Wenders e esse fato estava em latência nos dois . Em O amigo americano tratava-se da chegada ao local onde residia o pintor supostamente morto que “falsificava” seus próprios quadros para sobre-

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[3] Termo empregado por Wenders em entrevista publicada em Hollywood (Entrevistas, 1983, p. 311). Diz ainda Wenders: “Nick não é apenas um sobrevivente (de uma outra época), é a própria sobrevida, por sua vitalidade, pela juventude de suas ideias” (p. 313).

com o poder dos produtores e seu caráter supersensível tornaram-no um dos astros mais paradoxais da “política dos autores” da crítica francesa. Após um último filme hollywoodiano, Os cinquenta e cinco dias de Pequim, [...] ele vaga pela Europa durante seis anos, artista alcoólatra, um pouco perdido em seu século. É então que, “acabado”, volta a seu país, filma o processo dos Nove de Chicago e torna-se, em várias ocasiões, professor de cinema na universidade e no Strasberg Institute.

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[5] “Nick inicialmente hospe-dou Wenders quando este re-solveu mudar-se para a Amé-rica, introduziu-o nos Estados Unidos, o que os tornou muito próximos.

viver; em Nick´s movie tem-se um cineasta metaforicamente “dado por morto” pela sociedade, mas que continuava na ativa, e criativo. A correlação desses dois personagens vividos por Nick alarga por si o significado da repetição construtiva das sequências: a ponte estrita entre O amigo americano e Nick´s movie está feita. Não é necessário discorrer explicitamente sobre isso no filme. Ainda, se quisermos ir além dessa relação, segundo palavras do próprio Wenders, esse filme é, de certa forma, “antes uma continuação de You can´t go home again, de Nicholas Ray, do que de O amigo americano” (CIMENT, 1998, p. 314), dado seu experimentalismo, seu caráter de obra aberta (DUBOIS, 2004, p. 216-217).

Em modo narrativo assemelhado, num certo momento Ronee Blakley (esposa de Wenders na ocasião e intérprete da música tema do filme) e Nick vão encenar um trecho da peça King Lear. Num cenário completamente artificial, totalmente branco, composto por uma cama de hospital branca, um porta-soro e um gato preto ao lado da cama, onde se encontra deitado Nick. Há uma luz vermelha que incide sobre seu rosto; depois, sobre os olhos e o peito dele e o rosto dela. Ronee entra em cena, como se fosse a filha de Lear, e o diálogo entre eles acaba por ser sobre a doença fatal dele, entrecortado poucas vezes por falas de Lear que ele profere. Conforme bem coloca Wenders,

Mais uma vez, estabelece-se um jogo entre o narrado e o espectador, que acaba por ter informação sobre o passado de atores de Nick e de Ronee e o seu presente (real) e, na sobreposição dos dois, a significação daquela sequência, mais intensa do que se abordasse um dos momentos de cada vez e que se pode denominar como a marca da majestade do agônico rei Nick. A apresentação da interpretação parece vir para justificar o presente, dar a este as “ranhuras” desejadas por Wenders.

As filmagens. A observação dos detalhes da ação

A partir da observação de Serge Daney (2007, p. 226) a respeito desse filme, “há em todos uma tal consciência da câmera que, no limite, é essa presença que se torna o único motor do filme [...]”, pode-se depreender que há uma grande

a sequência entre Ronee e Nick talvez seja a mais artifi-cial do filme. Mas é justamente nessa cena inteiramen-te funcional que Nick fala do câncer, ou seja, da maior verdade. E foi esse o problema constante daquele filme. Era nas cenas inteiramente documentais que tínhamos dificuldade de nos aproximar da realidade. Quando in-ventávamos, podíamos por fim falar daquela realidade (CIMENT, 1988, p. 312-313).

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afinidade entre o trabalho da câmera e os protagonistas, no acompanhar e re-gistrar o atuar. Ali, vai importar pouco destacar o documental do ficcional. Eles se encontram propositalmente fundidos; um propiciando a erupção do outro.

Isso nos faz pensar na perceptível tensão interna presente nessa obra (entre o perceptível e o intuído) o que seria dizer, segundo Catherine Russell, que: “this film is characterized by a Romantic dialectic of body and conscious-ness” (1994, p. 72).

Lembremos aqui que Nick foi ator, teorizou (Ação. Sobre a direção de atores) e ensinou

técnicas de atuação. Entre seus ensinamentos está o de que

Em Nick´s movie quer-se escrever (ou inscrever), pelo registro sensível de sua atuação, uma textualidade, uma corporalidade, a pele, o charme, a dor, a respiração, um respiro – o ser Nick em vida, em presença. A ação de Nick, enfaticamente, e a construção de cada plano sonoro-visual parece aviar em nós a textura/tessitura da existência humana. Junto a esses efeitos se vão assinalando os pensamentos, os sentimentos e os desejos de Nick, tudo o que complementa um ser.

A utilização das filmagens em 35mm e em vídeo também cria isso. Há o conteúdo explícito, e há o implícito que o trabalho com duas câmeras revela. Trata-se de sugerir ao espectador o estado do ser humano, via ação e trata-mento visual. A lembrar aqui que somente na segunda montagem, a feita por Wenders, as imagens da câmera de vídeo foram introduzidas no filme. Dubois, em sua magistral análise do efeito das câmeras conjuntas no filme, mostra essas impressões também. Em síntese, uma imagem fílmica lisa, transparente

o diretor é uma espécie de tradutor, que deve falar a lin-guagem de todos os atores. [...] De maneira menos psi-cológica e mais técnica, a importância central da ação e do ator provém do fato de o desempenho do ator ser tão essencial à arte do filme que pode ocupar o lugar de qualquer outro meio expressivo, da cor, do primeiro plano etc. [...] O ideal da representação do ator é quando suas ações são tão perfeitamente corretas que sua cor-reção torna-se natural e convincente (AUMONT, 2004, p. 169-170, grifo do autor).

A apresentação da interpretação parece vir para justificar o

presente, dar a este as “ranhuras” desejadas por Wenders.

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e bem acabada: uma imagem limpa, contrastando com a imagem eletrônica, urdida, cintilante, enrugada, como que empoeirada pelas oscilações fugitivas (2004, p. 220-221).

Assistir a Nick´s movie é “conhecer” Nicholas Ray, seus gestos, seu modo de ser, sua fala, seu olhar etc., além de sua família, seus companheiros de trabalho, sua amizade com Wenders; é vê-lo trabalhando, ver seus filmes e, também, ver de perto Wim Wenders, perceber os traços que o distinguem, sua relação com os USA, com o cinema americano etc., ao mesmo tempo em se experiencia o trabalho de construção de uma obra fílmica, do princípio ao fim, do roteiro às filmagens (das ideias às imagens) e dessas à montagem, ou seja, participar da constituição da linguagem cinematográfica, vê-la estruturar-se. Há uma narrativa que se superpõe à outra e elas coexistem e dialogam. Na realidade, há até dois títulos para esse filme: Nick´s movie e Lightning over water, este último sugerido por Ray para a ficção que iriam fazer juntos.

Jean-Claude Bernardet, a propósito do cinema de poesia coloca que neste

Em Nick´s movie parece acontecer exatamente isso: Wenders, Nick, as câme-ras, as luzes, os microfones, a mesa de montagem, os técnicos, os familiares etc. são personagens, sim, são personagens porque se fazem sentir, mostram seu potencial lado a lado com os dois protagonistas e, juntamente com esses, conduzem a obra como um painel do que rodeia o cineasta e seu meio de ex-pressão: a linguagem cinematográfica. Da articulação desses elementos depre-ende-se a metáfora que, portanto, está no entre “o que foi Nick / a linguagem (narrativa) cinematográfica” e “o que é Nick / a linguagem do cinema” – grande tema geral, enfim, dessa obra. Não se pode desdenhar o fato de a motivação dos cineastas para realizar essa – mais tabu para os germânicos do que para os mediterrâneos, segundo Wenders (1988, p. 63) – que, porém, nesse caso, serve

Há uma narrativa que se superpõe à outra e elas coexistem e dialogam.

[6] Dubois fala dos duplos presentes nessa obra: “Esta bipolaridade também apare-ce em todos os níveis de Nick´s movie: em seu título duplo [...], em sua realização empreen-dida por dois cineastas, que são também seus dois atores principais; em suas duas ver-sões, uma orientada para o documentário, a outra, para a ficção [...]; em seus dois su-portes (cinema e vídeo); nos dois idiomas que ele superpõe (inglês e alemão); na aborda-gem, enfim, de uma série de temas que só fazem sentido em pares: Europa e América, pai e filho, atração e rejeição, vida e morte etc.” (2004, p. 215).

o fato dos elementos não estarem fechados numa nar-rativa homogênea, coesa e unívoca impede que a lingua-gem seja instrumentalizada, quer dizer, seja colocada a servi-ço de outra coisa, tal como um enredo ou uma exposição sobre este ou aquele assunto. O fato de que o discurso não se fecha deixa a linguagem constantemente presen-te, porque constantemente ela tem que ser observada, interrogada, trabalhada (BERNARDET, 2003, p. 10-12).

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para revelar o inevitável, o que está próximo e se instalará em breve. Sabemos, de início, o final do filme. Portanto, isso não está em questão nessa narrativa. Entretanto, a morte fica como pano de fundo, o medo do desconhecido e a angústia por ele causada permanecem.

Logo na parte inicial do filme, Wenders pergunta a Nick: “Sobre o que fala-remos no filme (que faremos juntos)?”. A que Nick responde: “About dying?”, com a câmera já a mostrá-lo. Há um corte e o plano seguinte mostra uma embar-cação navegando, com uma urna funerária (que supomos ser de Nick) e, com ela, uma câmera que gira e filma; entram a música-tema, Lightning over water, e os letreiros. Corte e a narrativa (re)começa.

O fazer o filme sendo mostrado aponta para o não-ilusionismo cinemato-gráfico, mas há uma ficção em construção ali também, como se sabe; junto ao ficcional temos o documento e ambos levam o espectador a se identificar cinematográfica e primariamente (METZ, 1983, p. 418) com o que está a se representar ali: ao lado da premência da morte e o que ela simboliza para todos, inclusive para o espectador, a realização, o gerar imagens sonoro-visuais em movi-mento – “impressões atuais de objetos ausentes” (METZ, 1983, p. 419). O enredo constitui-se então da aproximação entre esses dois aspectos, da sobreposição (de um sobre o outro), de uma condensação questionadora do parentesco da vivência da morte com a vivência da criação artística. Dos destroços surge a Beleza.

No nível da identificação cinematográfica secundária (METZ, 1983, p. 418), o espectador se aproxima intensamente de Nick e Wenders, enquanto atores em cena (cineastas), personagens deles mesmos. O caráter extremamente íntimo das imagens, dos depoimentos e do diário de Nick nos torna muito próximos dele; o medo e a insegurança de Wenders (expressos sonora e visualmente) também. Em uma sequência, para citar um ex., Wenders expõe seu “pesadelo”, seu temores com relação àquela situação e nela insere um plano de si abraçado fortemente a Nick, a destacar seu afeto e realizar uma despedida simbólica.

Vimos já alguns dos ecos de uma rede intertextual de criação ali presentes – entre outros, na apresentação de trechos de Paixão de bravo e de We can´t go home again e na evocação de O amigo americano, ou seja, no passado do cinema – responsáveis também pela ampliação dos motivos ligados à identificação primária.

Sabe-se do interesse de Wenders pelo processo de criação artística. Isso transparece nos seus muitos escritos sobre o cinema e também nos seus filmes anteriores a esse, Movimento em falso (1975), sobre o processo de criação literária, e No decurso do tempo (1975), que trata da circulação/projeção de filmes.

[7] Por ex., alguns publicados em livros: A lógica das imagens. Lisboa: Edições 70, [1988] e Emotion Pictures. Lisboa: Edições 70, [1987].

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A intertextualidade e o ser do cinema continuarão presentes nos seus filmes, dali em diante . De qualquer modo, um novo estado de cinema, o manei-rista (ou barroco), como quer Dubois (2004, p. 148-152), está ali instaurado: um cinema que tem a si mesmo como tema, junto à trama.

Nicholas Ray sempre esteve atento à experimentação estética. Sua sensibi-lidade e coragem o condenaram em Hollywood, em tempos anteriores. Dubois (2004, p. 217) comenta que

No mesmo livro, Dubois (2004, p. 217) ainda cita um artigo de Eisenschitz em que este “lembra o interesse declarado de Ray pela imagem eletrônica des-de suas primeiras experiências para a CBS em 1945 e 1954 (High Green Wall)”.

A montagem absolutamente pessoal, única e inovadora. O espaço

Bem, como se vê, Nick´s movie foi realizado sob esse signo: o pensar e construir a linguagem cinematográfica. Terminado o filme – Nick está morto –, ele é exi-bido em Cannes, em 1980. Alguns meses depois, Wenders remonta-o. Segundo Serge Daney, (2007, p. 226-227), Wenders estava certíssimo ao remontar o filme.

We can´t go home again é uma tentativa de multiplicar os formatos (super-8, 16 e 35mm) e de “embuti-los” (para não dizer “incrustá-los”) uns nos outros, no quadro to-talizante de uma única tela de projeção. Além disso, Ray experimenta a mescla dos suportes fílmico e eletrônico, utilizando o sintetizador de vídeo que lhe fornecera seu amigo, [...] Nam June Paik.

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[8] À época, já se colocava muito essa questão, a da mor-te do cinema, em função da TV e do vídeo. Penso que essa pergunta implica, na verdade, o significado do que constitui o narrar cinematográfico esteti-camente relevante. Em 1982, por ex., o próprio Wenders realizará O quarto 666, no qual tentará, através do questiona-mento a vários cineastas pre-sentes no Festival de Cannes, responder a essa pergunta. Seguindo-se imediatamente a Nick´s movie, Wenders realizará ainda Hammett (1982); O estado das coisas (1983); Paris Texas (1983); Tokyo Ga (1985); Iden-tidade de nós mesmos (1989); O céu de Lisboa (1994) e Um truque de luz (1995), todos, com variações, naturalmente, tratando do cinema, de pro-cesso de criação, de nossa relação com as imagens. Em O desprezo (1963), Godard já colocara questão assemelha-da, na forma da “morte de um certo cinema”, aquele do filme de autor, questão que também se aplica àquele realizado por Nicholas Ray.

A versão mostrada em Cannes era um filme longo, de-sagradável e muito caótico, ao qual somente podíamos aderir se disséssemos que era o real da filmagem que se encontrava também implicado. [...] Tive a impressão de que o filme não era nem aquele de Ray (morto antes do término das filmagens) nem o de Wenders (a quem a equipe criticava, numa cena que também desapareceu, por ter abandonado o filme ao partir para a Califórnia para se ocupar de outro filme, Hammett), mas o filme do montador, Peter Przygodda, e que ele testemunha-va sobre suas dificuldades e seu sofrimento. Przygodda privilegiava a figura de Ray moribundo, as idas e vindas de uma filmagem aventurosa, a infelicidade da equipe emparedada em sua impotência e sua vontade de fazer

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Wenders refaz a montagem de Peter Przygodda, ressalta-se como narrador off e destaca as músicas (suas músicas) na trilha: ou seja expõe-se. O narrador off é como nós, espectadores, em nossa posição fora de campo. O personagem off (Wenders) compartilha conosco certa posição “off”. Desse modo, portanto, seguindo aqui Metz novamente (1983, p. 426, grifo do autor), “o processo de sutura envolve a identificação primária, pois o personagem off é realmente um substituto do espectador. Ele é um espectador – um observador no interior do observado”. Wenders nos concede sua experiência de personagem off nesse filme. E nos aproxima mais de Nick (o homem/o cinema/a morte), que se torna o protagonista.

Ronee Blakley, cantora, tecladista e guitarrista – esposa de Wenders naque-le momento – faz a trilha, canta a música tema (Lightning over water), aparece em cena e atua ao lado de Nick, fazendo um papel assemelhado ao de Wenders com a voz off, ou seja, faz da trilha um narrador off assemelhado a nós, espectadores. Além do tema do filme, a narrativa é pontuada por solos ou duos jazzísticos, em geral, de piano e sax, música tipicamente americana, também integrante de We can´t go home again. As inserções musicais, bastante delicadas, parecem “comen-tar” o que está sendo sucedido com um ou com os dois protagonistas.

Quanto à montagem, pela inserção do vídeo, ela traz para a narrativa o espaço off, fato bem apontado por Dubois (2004, p. 224):

ou seja, Wenders busca, através também desse recurso, costurar o espectador à trama.

Concordando com Catherine Russell, a propósito de Nick´s movie, podemos afirmar que “for the storyteller, on the other hand, death is the sign of the transposition of history into narrative” (1994, p. 31). Wenders toma para si a versão-final desse relato.

Conforme nos fala o narrador da obra de Peter Handke (romancista e

não o espaço off diegético, sempre operante no filme, mas aquele que resta sempre e radicalmente fora de cena. O vídeo desvela a presença efetiva de uma equipe, de um material e de uma câmera, a preparação minu-ciosa da tomada e da direção dos atores. Ele disseca o cinema [...],

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bem feito. É certo que, ao remontar o filme, Wenders traiu alguma coisa: ele traiu o filme de Przygodda, o do-cumento puro e duro.

[9] No seu livro Emotion Pictures e na entrevista citada, a CI-MENT, Wenders fala que pri-meiro conheceu o espírito da América através da música, do Rock, com o qual se identi-ficou. Para conferir isso, basta ler o referido livro, no qual sua paixão é exposta de maneira clara.

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roteirista de Wim Wenders), A sorrow beyond dreams:

O relato busca suprir a falta, a ausência, o perdido . A criação artística, na visão de Freud (1976, p. 147-158), é impulsionada pela carência. Deve ter havido, no processo de realização desse filme, um aprofundamento da ansiedade por parte dos seus realizadores que ganhou ainda mais força, em Wenders, com a morte de Nick. É o que parece haver contaminado e estar revelado nesse fazer fílmico que nos inscreve em si, na sua angústia. Podem-se aplicar ao sentido dessa realização as belas palavras de Wenders, ao ser perguntado sobre sua razão de fazer filmes: “O cinema pode salvar a existência das coisas” (1990, p. 10).

Da mesma forma pela qual um ser humano entrega seu corpo para a pes-quisa científica após a morte, Nick entregara-se a Wenders – àquela obra, ao cinema, enfim (DANEY, 2007, p. 225). Todos os níveis do “ser” Nick – sua face e máscaras – foram oferecidos ali. Wenders, em respeito e amor ao cineasta norte-americano, opta por doar-se inteiramente também. Seu medo e sua dor – seu ser em fragmentos – são ali revelados.

A remontagem dos planos com a utilização das filmagens em vídeo (Be-tamax), ao lado daquelas em 35mm, a trilha escolhida e a voz off de Wenders ressignificaram o filme. A densidade espacial do real foi explorada. Agora os objetos e a paisagem ganham destaque; o som nos ajuda a dimensionar sua extensão.

Dubois (2004) privilegia o encontro dos dois meios (cinema e vídeo) e baseia-se nisso primordialmente para estabelecer sua precisa leitura do filme. Quer-se destacar aqui que Wenders juntou a esse traço construtivo uma edição sonora inventiva e ampliadora da significação visual.

O cineasta potencializa a montagem das imagens sonoras e visuais até atingir a iconização máxima das mesmas; elas aludem para apontar o desejado desde o princípio: mostrar as possibilidades do real. Wenders, ao assumir-se como narrador final desse filme, dobra a voz da Morte à voz da fantasia – aquela que permite estabelecer novas e múltiplas conexões entre o filme e os espectado-res. Faz-nos cúmplices. Ao reinterpretar as formas narrativas, esse cinema

A narrativa é somente um ato de memória [...] ela não mantém nada em reserva para futuro uso; ela simples-mente deriva um pequeno prazer de estados de medo e ansiedade ao formulá-los tão bem quanto possível; do gozo do horror a narrativa produz o gozo da memória (apud CORRIGAN, 1997, p. 112).

10

[10] A relação pai-filho, le-vantada a partir desse filme, já foi devidamente estudada, por ex., nos textos aqui men-cionados de Russell, Corrigan e Daney. Não nos deteremos, portanto, nesse ponto.

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possibilita ao espectador dar novas formas ao real, re-significar o mundo.Assim, nessa obra, a partir do sensível extraem-se totalidades emoti-

vas – metáforas; chega-se às imagens/figuras de emoções “como só se encontram em raros momentos, [...] imagens não vagas ou sentimentais, mas dum patético perfeitamente claro e lúcido”, para usar aqui palavras do próprio Wenders (1987, p. 85).

No deslizar da embarca-ção com as cinzas de Nick essa condição narrativa brota, plena. Em uma sequência inesquecível, de altíssima força poética, vê-se uma câ-mera a filmar “operada” pela urna de Nick. Dois projetores projetam películas ao léu. Por outra câmera (um narrador off, como nós), vemos o que

ela vê, seu visor: as imagens captadas pelo olho de Nick/o cinema. No final do filme, essa sequência volta. Um plano do alto mostra o barco

a navegar rio abaixo e, nele, a câmera/projetores/urna a caminho do mar. A trilha deixa rolar plenamente a música cujos acordes já tinham sido ouvidos parcialmente. Na diegese, a síntese do continuum espácio-temporal. Puro êxtase. O cinema como a “redenção da realidade” – como desejava Kracauer – “que-rendo significar a ternura que o cinema pode mostrar em relação à realidade” (WENDERS, 1987, p. 47).

REfERênCIAs bIblIOGRáfICAs

AUMONT, Jacques. As teorias dos cineastas. Campinas, SP: Papirus, 2004.

BERNARDET, Jean-Claude. O processo como obra. In: Folha de São Paulo: Caderno Mais, 13 de julho de 2003.

BUCHKA, Peter. Wim Wenders e seus filmes: Olhos não se compram. São Paulo: Cia. das Letras, 1987.

CORRIGAN, Timothy J. German friends and narrative murder: lightning over

O cineasta potencializa a montagem das imagens

sonoras e visuais até atingir a iconização máxima das

mesmas.

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DUBOIS, Philippe. Cinema, Vídeo, Godard. São Paulo: CosacNaify, 2004.

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WENDERS, Wim. Emotion Pictures. Lisboa: Edições 70, [1987].

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É noite, à beira das florestas que circundam o vilarejo de Nabua, no nordeste da Tailândia. Em meio ao vento que balança suavemente as copas das árvores, um tubo de luz fluorescente ilumina fracamente um pequeno descampado. Aos poucos, vemos alguns clarões rasgando o negrume quase absoluto: aparente-mente, raios ou fogos de artifício. Após longos segundos de incerta e inquietan-te contemplação, eles se revelam como uma série de imagens esbranquiçadas, projetadas numa grande tela armada nesse mesmo descampado. Em certo mo-mento, vemos a tela bastante próxima: a textura de seu tecido atravessada pela luz revela-se, quase a ponto de ser tocada. O som das explosões faz-se bastan-te presente, enquanto a noite continua a cair, e aos poucos emergem silhuetas humanas, recortadas contra a tela, e iluminadas por uma outra luz, alaranjada, que se move próxima ao chão. Depois de alguns segundos, finalmente percebe-mos se tratar de uma espécie de jogo de futebol, no qual uma bola em chamas é chutada por um grupo de jovens aldeões, posicionados entre nosso ponto de vista e a tela que ao fundo continua a projetar os clarões. Um plano geral nos dá a visão das três fontes de luz: a lâmpada tubular, as imagens projetadas na tela e a bola de fogo, que deixa por vezes um breve rastro na rasteira vegetação que se espraia pelo solo.

Após sermos apresentados, sem maiores cerimônias ou explicações, aos elementos que engendram a ação contida na cena, resta-nos acompanhar, com alguma proximidade, o movimento da bola de fogo chutada incessantemente pe-los jogadores: um desenho de luz que insiste em rasgar a escuridão. O barulho das explosões agora se confunde ao o som dos chutes na bola que, por vezes, atinge a tela de projeção, inflamando-a. Primeiro, o fogo arde em pequenas áreas, até finalmente a combustão atingir a totalidade de sua superfície. Nessa hora, revela-se uma nova fonte de luz, frontal a nosso ponto de vista: a do projetor, revelado à medida que as chamas extinguem a superfície de proje-ção. O clarão outrora projetado no tecido agora pulsa diante de nossos olhos, reverberando, quase imperceptível, na fumaça que deriva da queima, enquanto ainda ouvimos algumas explosões a ressoarem nas caixas de som conectadas ao equipamento de projeção.

Durante cerca de dez minutos, acompanhamos o desenrolar dessa cena,

ResumoEste artigo busca investigar a emergência, dentro de um certo cinema contemporâneo transnacional de um “ou-tro” realismo, marcado pela construção narrativa por am-biências, pela estética do co-tidiano e por promover, junto ao espectador, uma experi-ência mais sensorial e afeti-va que racional. Para discutir este “realismo sensório”, que por vezes se aproximaria o “realismo afetivo” propos-to por Schøllhammer (2005), buscamos nos aproximar dos estudos sobre cinema, corpo e sensorialidade de teóricos como Steve Shaviro e Laura Marks, ilustrando-o com bre-ves leituras de obras dos ci-neastas Claire Denis, Naomi Kawase, Apichatpong Weera-sethakul, Hou Hsiao-Hsien e Lucrecia Martel (comumente associados, por parte da crí-tica cinematográfica, ao ter-mo “estética do fluxo”).

palavras-chave: cinema e sensorialidade; estética do fluxo; cinema e corpo.

Marcas de um realismo sensório no cinema mundial

contemporâneopor Erly Vieira Jr.¹

[1] Erly Vieira Jr é professor do Departamento de Comunica-ção Social da Ufes e doutoran-do em Comunicação e Cultura pela UFRJ. Também é escritor e curta-metragista.

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conduzida por um quase imperceptível fiapo narrativo. Contudo, somos con-vidados a partilhar de uma intensa experiência sensorial, quase hipnótica, ao seguirmos os movimentos das diversas fontes de luz enquadradas pela câmera. Alguns planos mais aproximados sugerem uma certa tatilidade da imagem, e o desenho de som, mesclando em sutis gradações os ruídos das explosões projetadas com os sons da partida de futebol e o ambiente da floresta, conduz a uma outra experiência auditiva, em que os sons pedem para ser desvenda-dos cuidadosamente. O tempo cronológico (pouco menos de dez minutos) já não importa mais: embarcamos numa espécie de presente eterno, que nos é apresentado aos poucos (à medida que as figuras tornam-se distinguíveis em meio à penumbra), e que só se esvai ao final desse trânsito contínuo de afetos e intensidades que se efetua diante de nossos olhos, ouvidos, pele... em suma, de todo nosso corpo.

A descrição que empreendi acima corresponde a Phantoms of Nabua, curta-metragem realizado pelo tailandês Apichatpong Weerasethakul em 2009. Em meio à imersão proporcionada por um olhar atento, quase como uma lente de aumento voltada para um banal evento cotidiano, somos transportados para um outro espaço-tempo narrativo, no qual poucos dados racionais nos são disponi-bilizados (potencializados, no caso, pela ausência de diálogos), e o que sabemos da cena nos é dado pela investigação intuitiva que empreendemos a partir dos diversos estímulos sensoriais sobrevalorizados no decorrer do filme. Se, por um lado, parece uma saída “natural” deixar de lado, ainda que por alguns instan-tes, o olhar racional/psicologizante que rege o aparato de leitura de imagens em movimento ao qual estamos mais acostumados nas narrativas cinematográfi-cas, por outro, a abertura à valorização da dimensão sensorial proposta por um filme como o de Weerasethakul amplia uma sensação de “estar-com” ou “estar no mundo”, que nos transporta para junto da cena. Essa proximidade dar-se-ia não no sentido ergométrico de imersão que as tão alardeadas tecnologias tridimensionais hollywoodianas deste início de século nos proporcionam, mas sim ao instaurar uma espécie de pacto de cumplicidade entre espectador e imagem. Nele, estabelece-se uma troca de intensidades a nos dar a sensação de acompanhar o evento registrado pela câmera a partir de uma apreensão do fluxo de micro-acontecimentos cotidianos que o compõem, como se ele nos atravessasse também.

Eu poderia ter escolhido descrever outras cenas, de outros filmes reali-zados em diversas regiões do planeta, para iniciar esse texto. Por exemplo, a investigação a princípio desinteressada que a câmera faz numa oficina tipo-gráfica abandonada, passeando por entre as prensas e ferramentas, por dentro

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e por fora dos cômodos, até se deparar com duas crianças que iniciam uma brincadeira, e segui-las enquanto correm por entre becos, bosques e ruas, até parar por alguns instantes como se ela também, à maneira de um corpo huma-no, precisasse retomar o fôlego (Shara, da japonesa Naomi Kawase, 2003). Ou o jovem que atentamente escuta e grava sons numa estação, enquanto trens vão e vem, atravessando o quadro, corrigido pelas sutis flutuações de uma câmera, em modulações que se aproximam de uma respiração (Café Lumière, do taiwanês Hou Hsiao Hsien, 2003). Ou ainda os exercícios físicos, repetidos, um a um, pe-los corpos dos soldados da legião estrangeira em treinamento, acompanhados por movimentos mínimos e também flutuantes da câmera, que assumem, após uma série de repetições, um caráter quase hipnótico, podendo se prolongar de uma ação para outra – como, por exemplo, o exercício da corda bamba, ao qual se segue uma panorâmica através dos varais de roupas secando ao vento que sopra no deserto (em Bom trabalho, da francesa Claire Denis, realizado em 1999).

Em comum, tais cenas (e filmes) possuem essa predileção de uma forma de narrar na qual o sen-sorial é valorizado como dimensão primordial para o estabelecimento de uma experiência estética junto ao espectador: em lugar de se ex-

plicar tudo com ações e diálogos aos quais a narrativa está submetida, adota-se aqui um certo tom de ambigüidade visual e textual que permite a apreensão de outros sentidos inerentes à imagem. Ou seja, trata-se de uma outra pedagogia do visual e do sonoro (muitas vezes aliado a uma certa dose de tatilidade na imagem, aquilo que Laura Marks denomina uma “visualidade háptica”), que nos convida a reaprender a ver e ouvir um filme, para além de uma certa anestesia de sentidos que as convenções do cinema hegemônico (mesmo o contemporâ-neo, com suas desconstruções narrativas pós-modernas e choques percepti-vos proporcionados pela tridimensionalidade) há muito promovera em nossos corpos de espectadores.

Para se referir a esse conjunto de narrativas audiovisuais, parte da críti-ca cinematográfica adotou o termo “cinema de fluxos” ou “estética do fluxo” (expressão cunhada por Stephane Bouquet, num artigo publicado na Cahiers du cinéma, em 2002). Sob esse rótulo, são comumente incluídos filmes realizados a partir do final da década de 90 do século XX, num conjunto marcado pela ênfase numa reinserção corporal no espaço e tempo do cotidiano, presentifica-

(...) trata-se de uma outra pedagogia do visual e do

sonoro (...)

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do, traduzido como experiência sensorial mediada pela linguagem audiovisual. Aqui, a elipse temporal e a ambigüidade visual, desencadeadoras tanto de inquietudes quanto de delicadíssimos alumbramentos, conduzem a um dispo-sitivo de produção de incertezas, intensificado pela composição de imagens e ambiências que desarmam o espectador, convidando-o a imergir no espaço-tempo cênico através de uma nova relação do olhar que convida a primeiramen-te sentir, para apenas depois racionalizar.

Trata-se, aqui, de estabelecer uma nova relação com o real, não no sentido traumático como o percebido por Hal Foster (1995), pautado por uma espécie de choque perceptivo que cobre um espectro cinematográfico também bastante amplo, que vai das provocações de David Lynch e Lars Von Trier às tinturas naturalistas que colorem alguns momentos de filmes como Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, ou Hunger, de Steve MacQueen, tão exaltado por seu hiper-realismo. Pelo contrário: os “estetas” do fluxo operam no âmbito de uma investigação sutil e macroscópica do cotidiano, numa espécie de “real em tom menor” (LOPES, 2007) de poética sussurrada, situado na esfera do comum e do ordinário.

Aqui, a primazia por uma narrativa do tempo presente é outra, completa-mente diversa da do cinema de ação de Hong Kong (John Woo, Tsui Hark), ou das imagens-sensacionais produzidas pela Hollywood contemporânea (como Miami Vice ou a franquia do Homem Aranha), que serviriam de embrião para a lógica de imersão ergonômica de uma tecnologia tridimensional atualmente vendida com bastante alarde, como “um gigantesco passo adiante” na experi-ência cinematográfica pela indústria cinematográfica. Em lugar desse cinema que literalmente “envolve” o corpo do espectador por todos os lados, quase sem possibilidade de recusa à sua experiência imposta de fora pra dentro, a “estética do fluxo” parece-me uma alternativa de diluição das fronteiras entre o “dentro” e “fora”, na qual o corpo do espectador é convidado, sim, a experimentar o real em suas minúcias, em suas quase imperceptíveis modulações, deixando-se atravessar/afetar aos poucos pelas zonas de intensidade que migram pelos corpos e espaços filmados, num processo de gradual descoberta através dos estímulos oferecidos aos órgãos do sentidos.

Acredito existir, nesse cinema uma nova pedagogia do ver, ouvir e (por ve-zes) tatear a própria materialidade das imagens. Numa época em que o senso-rial é espetacularizado (e muitas vezes anestesiado), valorizar o aspecto micro em lugar do macro soa-me como um sugestivo convite à subversão da lógica industrial. Daí a adoção de uma sensorialidade (ou melhor, multi-sensorialidade) difusa, multiforme, reticular e dispersiva (e, nesse ponto, ela seria distinta das

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propostas sensoriais das vanguardas do começo do século XX ou do cinema moderno de um Tarkovski, aliando tal dimensão sensorial a conexão com a dialética memória/esquecimento). Aqui, os afetos eclodiriam dentro do plano, não necessariamente atrelados ao cerne narrativo da cena. É como se compu-sessem um registro paralelo, capaz de tensionar nossa percepção do conjunto de simultâneos microeventos e microdeslocamentos corporais registrados pela câmera, construindo um espaço-tempo narrativo que concebe o cotidiano como uma experiência de sobrevalorização sensorial, a reverberar diretamente no corpo e nos sentidos do espectador.

Podemos afirmar que este cinema que dialoga com a fluidez e efemeridade de um mundo cuja profusão de sentidos e sensações pede-nos uma intensa imersão corpórea na realidade e na multidimensionalidade cotidiana, fazendo esgarçar a trama narrativa até reduzi-la a alguns fiapos, que sirvam de porta de entrada para tal experiência. Acredito que isso esteja evidente, por exemplo, na fala da crítica Tatiana Monassa, em seu texto “Cinema-mundo”, publicado na edição 66 da Contracampo:

Daí a sensação de um constante estado de embriaguez da câmera em seu percurso pelos espaços e corpos, dialogando sensorialmente com os trans-bordamentos de um mundo que é pura mobilidade e fluidez, um “aqui-e-agora” no qual cineasta, espectador, câmera e atores estão imersos e também em movimento.

Um cinema da realidade? Conceituando o realismo sensório

Em primeiro lugar, cabe explicar que o realismo a que nos referimos aqui foge de concepções fenomenológicas que marcam as proposições de André Bazin na década de 50, ao dividir o cinema entre realizadores que comungavam de uma crença na realidade (valorização da mise-en-scène e do plano-sequência) e os partidários da crença na imagem (e da interferência direta do realizador no material fílmico através da montagem). Prefiro pensar como Steve Shaviro (1993), que propõe abandonar essa dicotomia plano X montagem e abolir a descontinuidade entre esses dois domínios, como condição fundamental para

A imagem cinematográfica como mediadora privilegiada entre o espectador, entregue ao prazer de se ir ao seu encontro, e o mundo, físico e vivo. Entregues às imagens que pulsam, podemos então pulsar junto com elas e senti-las em toda sua intensidade. (MONASSA, 2004:1).

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se pensar uma leitura da teoria cinematográfica sob o viés do corpo e de sua dimensão sensível.

Quando pensamos no cinema de Hou Hsiao Hsien, por exemplo, a idéia da mise-en-scène como uma espécie de escritura da efemeridade cotidiana parece ganhar forma. Neste caso, trata-se de um outro realismo, diferente da mise-en-scène clássica que se propunha como um ordenamento do real subordinado aos limites da cenicidade (OLIVEIRA, 2006) – o próprio olhar torna-se mais arejado, os encadeamentos narrativos afrouxam-se, submetidos à apreensão sensorial dos eventos captados pela lente de uma câmera que parece flutuar por sobre a realidade retratada, permeável a diversos elementos para além do que se está enquadrando.

Por não ter começo nem fim aparentemente delimi-táveis, e estar marcada por uma multidimensionalidade (BURKITT, 2004), já que seus diversos microeventos ocorrem aleatoriamente em caráter de simultaneidade (e por isso mesmo, desliza-ríamos de uma dimensão a outra), a experiência cotidiana assume-se como fértil terreno a ser explorado pela estética do fluxo. Não que já não houvesse incorporações anteriores do cotidano pelo cinema – e aqui, as referências são várias, desde o olhar milimé-trico e quase silencioso de Yasujiro Ozu, confessa referência para cineastas como Hou e Kawase, até experiências radicais da modernidade, como os filmes de seis, oito horas de duração de Warhol e a sucessão de eventos banais nos planos alongados de Chantal Akerman em seus primeiros filmes, especialmente em Jeanne Dielman. Contudo, podemos dizer que, nesta vertente do cinema con-temporâneo, a adoção de um olhar que tende ao microscópico e que se deixa guiar pelas sutis modulações de detalhes sonoros, cinéticos e luminosos no interior da cena recoloca a questão do cotidiano sob outra perspectiva narra-tiva: a que assume o caráter sensorial como ponto de partida para a irrupção de alumbramentos capazes de abrir a percepção do espectador para além do anestesiado olhar que já não percebe a riqueza multidimensional de um mundo em constante mobilidade. Daí pensarmos num tipo de plano em que o corte não seja dado pelo final da ação, mas sim por elementos que apontem para o cessar ou para a migração espaço-temporal dos afetos irrompidos junto ao espectador

“(..) abrir a percepção do espec-tador para além do anestesiado olhar que já não percebe a rique-za multidimensional de um mun-do em constante mobilidade.”

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durante os eventos filmados/presenciados.Afeto, por sinal, é um termo bastante recorrente ao se falar desse conjunto

de filmes. Em diversos textos críticos, abundam referências à questão dos cor-pos e afetos/afecções, seja por uma matriz spinoziana ou mesmo deleuziana.

Contudo, antes de nos determos em tais matrizes, proponho primeiramente uma outra aproximação. Karl-Erik Schøllhammer (2005), ao discutir o realismo nas artes e literatura contemporâneas², fala de uma “estética afetiva”, contra-posta à estética do efeito praticada a partir do final do século XX (e traduzida em especial no “realismo traumático” identificado por Hal Foster em seu livro The return of the real, de 1994). Trata-se aqui de uma experiência que operaria através de “singularidades afirmativas e criativas de subjetividades e inter-subjetividades afetivas” (2005:219). Nela, a obra de arte torna-se real “com a potência de um evento que envolve o sujeito sensivelmente no desdobramen-to de sua realização no mundo” (2005: 219). Ao dissolver a fronteira entre a realidade exposta e a realidade esteticamente envolvida, esse “realismo afetivo” traria a ação do sujeito para dentro do evento da obra.

Esse tipo de “suspensão” entre o eu e o outro, de “entre-lugar” por onde transitam e transferem-se afetos, poderia encontrar paralelo no cinema con-temporâneo, a partir da exploração do sensorial (óptico e háptico, vide uma certa poética do tátil nos filmes de Kawase, por exemplo) como portas de en-trada para a imersão do espectador na fugacidade do instante presente em que se desdobra a ação fílmica. Daí minha proposição de um “realismo sensório”, espécie de desdobramento do realismo afetivo proposto por Schøllhammer, em que a valorização desses aspectos sensíveis produza essa aproximação entre sujeito e obra. Afinal, tais aspectos propõem um diálogo imediato com a alteri-dade na própria dimensão do corpo, sem a necessidade de se organizar como estruturas e precedendo o sentido lingüístico: “sentir implica o corpo, mais ainda, uma necessária conexão entre o espírito e o corpo” (SODRÉ, 2006: 13).

Tal conexão nos aproxima à concepção de afeto proposta por Spinoza em sua Ética (parte III, definição III): “Por afeto, entendo as afecções do corpo pelas quais a potência de agir desse corpo é aumentada ou diminuída, favorecida ou reduzida, assim como as idéias dessas afecções”. (proposição XI, pág. 197). Para Spinoza, essas variações de intensidade da potência corporal promovidas pelos afetos é que constituiriam a força-motriz que rege as relações que regem o dualismo corpo/alma e que poderíamos estender aqui também para a pari-dade eu/outro(s). Assim sendo, podemos pensar o corpo como um continuum de intensidades variáveis, capazes de afetar outros corpos e modificar suas potências.

[2] Acerca da idéia de realis-mo proposta por Schøllham-mer, cabe aqui citar uma fala concedida em uma entrevista, bastante elucidatória de como o realismo contemporâneo não repete o caráter natu-ralista de seu antecessor no século XIX: “O realismo con-temporâneo está definido por linguagens estratégicas de representação, que apontam aos limites da representação e tentam trazer para dentro da obra algo alheio a esses limites, ou seja, a realidade tal qual, como experiência ou como fato documental” (En-trevista concedida à revista digital Digitagrama, n. 4, 2007, editada pela Universidade Es-tácio de Sá e disponível no en-dereço: <http://www.estacio.br/graduacao/cinema/digita-grama/numero4/entrevista.asp>, acesso em 22/05/2010).

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Podemos pensar o conjunto de filmes analisados como embebido por tal lógica, uma vez que seu caráter assumidamente sensorial permite que sen-sações e afetos transbordem por entre corpos (filmados e espectatoriais) e espaços. Corpos povoados por intensidades, que os adentram a partir da pele, já que estamos falando de um cinema que lida com uma relação física entre câmera e atores. É esta situação de fisicalidade (conjugada a uma percepção através do corpo inteiro), que permite a sensação de um “estar no mundo” e por ele deixar-se atravessar, que tanto nos remete à conferência de Merleau-Ponty, “O cinema e a Nova psicologia” (1945), texto fundador de toda uma linhagem de estudos sobre cinema e corpo³.

Essa concepção do corpo como superfície deslizante e povoada por inten-sidades também está presente em Deleuze e Guattari, ao falarem do corpo sem órgãos (CsO), proposição filosófica inspirada em Artaud e na Ética spinoziana, que se configuraria como uma espécie de “grau zero do corpo”, despido de significâncias e revelado na conexão de desejos e fluxos.

Se o corpo sem órgãos assume-se como uma utopia desejante, ao menos ele serve como ponto de partida para os estudos de Steve Shaviro acerca dos afetos entre o corpo sensível e o cinema. Em seu livro The cinematic body, de 1993, ele conjuga do mesmo espírito deleuziano de “mergulhar no impensado do corpo” para propor uma “estética das intensidades do corpo” na qual o cine-ma operaria como uma tecnologia de intensificação das sensações corpóreas, desestabilizando e multiplicando, ao mesmo tempo, os efeitos da subjetividade. Shaviro demonstra como o cinema produz reais efeitos no espectador (e não apenas apresenta a ele reflexões fantasmáticas, como propõe uma linhagem de leituras teóricas que se baseiam na teoria lacaniana), para daí explicar como se dá uma imersão do espectador na materialidade fragmentada e na “profundida-de sem profundidade” (no texto original, “depth without depth”) da imagem – e aqui podemos nos aproximar da experiência de imersão que um filme de Hou Hsiao Hsien, Apichatpong Weerasethakul ou Lucrecia Martel nos provocam, seja no espaço urbano multiforme atravessado por inúmeros trens em Café Lumière, na presença de algo invisível porém claustrofóbico e obsedante no suposto atropelamento em A mulher sem cabeça, ou na densidade misteriosa e fascinante da floresta de Mal dos trópicos. Trata-se, ao mesmo tempo, de um estar aqui e lá, na poltrona da sala de cinema e na superfície da imagem, percebida por toda extensão desse corpo ambivalente.

Para Shaviro, imagens produzem fluxos de tempo e sensorialidades, num processo de fascinação visual que, como nos recorda Tadeu Capistrano, seria uma pré-condição da produção de subjetividade no cinema, e não sua conseqüên-

[3] Daí derivam várias verten-tes, desde os estudos feminis-tas de Laura Mulvey e Mary Ann Doanne, até os estudos fenomenológicos de Vivian Sobchack, passando ainda por toda uma escola que estuda a noção de espectatorialidade e uma série de estudos sobre corpo e sensorialidade, como The cinematic body (Steve Sha-viro, 1993), The skin of the film (2000) e Touch (2002), ambos de Laura Marks, e The tactile eye (Jennifer Barker, 2009). Os autores desta última vertente constituem um dos principais referenciais teóricos desta pesquisa, ao tratarmos da re-lação entre corpo e cinema.

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cia, já que as percepções construídas pelo filme engendram um poder de “galva-nização espectatorial” (CAPISTRANO, 2003: 14), ativando e acelerando o corpo sensível do espectador. Shaviro, desse modo, nega uma concepção metafísica do olhar e da presença (1993: 46), em prol de uma valorização da fisicalidade/senso-rialidade/corporeidade na experiência de se assistir a um filme.

É partindo de um princípio bastante próximo que Laura Marks, em seu livro The skin of film, vai propor uma visualidade “háptica” como alternativa à hegemo-nia de uma visualidade “óptica”, dependente da separação entre o sujeito que vê e o objeto e calcada na distância existente entre estas duas instâncias para se constituir. Já a visão háptica (inspirada no uso que Alois Riegl e Deleuze fazem do termo) tende a percorrer a superfície do objeto: mais inclinada para o movi-mento do que para o foco, mais aproximada ao roçar (graze) do que ao olhar (gaze) (MARKS, 2000: 163), forçando o observador a contemplá-la por si só, microper-ceptivamente, fazendo ativar os saberes e memórias que carregamos em nossos corpos e sentidos.

Assim sendo, o háptico não só desperta a memória corporal, mas também faz confundir sujeito e objeto, anulando distâncias, com seu olhar de proximida-de extrema, feito lente de aumento. Como propõe Jennifer Barker (2009:32), o toque (do latim contigere) remete também a uma certa “contingência”, no sentido etimológico que o termo carrega (ainda que quase esquecido nos dias de hoje) de ser uma “afinidade material entre duas ou mais coisas” (no caso, os corpos do espectador, do autor e do filme). Pensemos aqui na câmera quase grudada à epi-derme em diversos momentos dos filmes de Claire Denis, talvez o exemplo mais visível dessa hapticidade traduzida em planos-detalhe reveladores do potencial hipnótico dos mínimos movimentos do corpo (como em Bom trabalho), num roçar erotizado que fascina até mesmo nos momentos mais sangrentos e supostamen-te repugnantes de Desejo e obsessão. Pensemos também na imobilidade corporal e no desequilíbrio quase vertiginoso que permeiam a cena à beira da piscina em Pântano, de Lucrecia Martel, espécie de preâmbulo a potencializar o incômodo causado pela quebra das taças que caem no chão, quase ao final da sequência. Por outro lado, essa ativação háptica das memórias do corpo podem potenciali-zar mudanças mínimas no registro de luz de um plano nos filmes de Hou Hsiao Hsien, como quando se abre uma cortina em meio a um longo plano-sequência em Adeus ao sul (quase uma lufada de calor a roçar a pele do espectador imerso na dinâmica da cena, ainda que por alguns instantes) ou na pulsante luz artificial que se reflete no teto de vidro da cena de sexo em Millennium Mambo.

Se retomarmos a ênfase no cotidiano, no banal, num realismo quase sussurrado que demarca esse cinema de fluxos, também podemos identificar,

[4] Embora nem todos os fil-mes analisados nesta pesqui-sa comunguem dessa visuali-dade háptica (que, a meu ver, restringe-se exatamente aos exemplos citados nesse pará-grafo), optei manter a haptici-dade no conjunto das caracte-rística que associo à estética do fluxo, de modo a permitir algumas interessantes refle-xões sobre a sobrevalorização sensorial que essa vertente do cinema contemporâneo promove.

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nessa predileção em se direcionar o olhar da câmera para micro-percepções, uma espécie de contemplação meditativa que cria uma zona de indistinção – ao se manipular dessa maneira o espaço e o tempo fílmicos, suspender-se-ia a percepção ordinária, convidando o es-pectador a abrir-se para uma sensorialidade extra-ordinária, intuitiva, quase clarividente: a macro-percepção do ordinário quando essa imagem “crua” é projetada na tela. Em meio a tantas minúcias, muitas vezes testemunhamos, na duração do plano, as marcas visíveis do desgaste dos corpos no tempo e no espaço, induzidas pela câmera, que a tudo registra. Em meio a imagens que roçam, esculpe-se o tempo no filme, no corpo do personagem, para enfim reverberar na corporeidade do espectador.

Se retomarmos a ênfase no cotidiano, no banal, num realismo quase sussurrado que demarca esse cinema de fluxos, também podemos identificar, nessa predileção em se direcionar o olhar da câmera para micro-percepções, uma espécie de contemplação meditativa que cria uma zona de indistinção – ao se manipular dessa maneira o espaço e o tempo fílmicos, suspender-se-ia a percepção ordinária, convidando o espectador a abrir-se para uma sensorialida-de extra-ordinária, intuitiva, quase clarividente: a macro-percepção do ordinário quando essa imagem “crua” é projetada na tela. Em meio a tantas minúcias, muitas vezes testemunhamos, na duração do plano, as marcas visíveis do desgaste dos corpos no tempo e no espaço, induzidas pela câmera, que a tudo registra. Em meio a imagens que roçam, esculpe-se o tempo no filme, no corpo do personagem, para enfim reverberar na corporeidade do espectador.

O próprio retorno a uma atitude de crença na imagem pede uma nova postura não só espectatorial, mas também narrativa: daí pensarmos numa “câmera-corpo”, em estado de “semi-embriaguez”, em especial no cinema de Naomi Kawase, como nos propõe Camila Vieira da Silva (2009), a apreender sensorialmente a intensidade da experiência que captura, possibilitando uma mediação pulsante junto ao espectador contemporâneo. Cabe a essa câmera es-coar por entre o transbordamento de afetos entre todos esses corpos filmados e o próprio corpo do espectador – e ela o faz passeando por entre os espaços, sem nunca porém buscar cristalizar ou petrificar as transições e nuances de

Por explorar minuciosamente o corpo na tela, a câmera-corpo afeta o próprio espectador, promovendo seu encontro com a alteridade (...)

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intensidades decorrentes desse encontro entre corpos diversos, construindo uma relação bastante física com o mundo que retrata. Por explorar minuciosa-mente o corpo na tela, a câmera-corpo afeta o próprio espectador, promovendo seu encontro com a alteridade (os outros corpos visto no filme), numa forma mais intensa do que a própria linguagem verbal (e nisso, um filme como Nanayo, da própria Kawase é muito mais do que uma simples metáfora desse estado das coisas).

Com a câmera-corpo, talvez nos aproximamos da proposta de Delorme, em seu artigo “Le lois de l’affection” (publicado pela Cahiers du Cinema em fevereiro de 2006): um cinema preocupado em abolir toda fronteira (inclusive entre o real e o imaginário), “justo à embriaguez”. Daí, como diz Luiz Carlos Oliveira Junior (2009), ser “absolutamente compreensível que Claire Denis trate o real e o oní-rico com o mesmo teor ontológico (cf. Desejo e obsessão, O intruso), que misture cinema fantástico com o mais cru dos realismos ao ponto da indistinção entre uma coisa e outra, e que filme corpos indecisos entre uma realidade carnal e um estado vaporoso” (OLIVEIRA, 2009: 29). Tal afirmação, eu ainda arriscaria, poderia se estender às aparições de espíritos fantasmas e animais falantes no cinema de Apichatpong Weerasethakul, à maneira como Van Sant “filma” a desencarnação do espírito do protagonista de Últimos dias, ou aos momentos que beiram o (hiper)realismo fantástico na relação menino/balão em A viagem do balão vermelho (2007), de Hou Hsiao-Hsien.

Neste caso, não precisamos reduzir a noção de realismo a uma perspectiva naturalista, tal qual pregava a concepção vigente do século XIX. Afinal, estamos falando da utilização de “efeitos de real” (FOSTER, 1994) para se criar uma experiência afetiva que envolva espectador e obra – ainda que, nesse caso, tais efeitos sejam produzidos por elementos que fogem à nossa idéia de uma realidade concreta e racional, ou que dialoguem com a dimensão do sobrena-tural e do mítico. E aqui, muitos dos efeitos de realidade produzidos por este cinema advém de um “vigoroso retorno de uma tatilidade que a era do CGI (das imagens geradas do computador) tenderia a anestesiar” (OLIVEIRA, 2006: 27). É essa sensação de tatilidade/haptcidade/proximidade, de tentar apreender de alguma forma o que há de volátil nessa imagem que talvez torne tais imagens tão presentes e intensas.

Se podemos falar de um cinema do corpo dentro do cânone moderno, que dialogue com os corpos em fluxo da contemporaneidade, podemos partir de uma série de genalogias (a serem melhor desenvolvidas e analisadas num ca-pítulo posterior). Uma primeira linhagem deriva da primazia concedida ao gesto corporal como desencadeador de afetos e organizador da dinâmica interna da

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cena: aqui, o cinema de John Cassavetes e Maurice Pialat (em especial Aos nossos amores) é uma referência central, por exemplo, nos filmes de Claire Denis – embora ela amplie esse cinema corporal ao trabalhar também uma certa ma-terialidade traduzida numa certa percepção háptica da carne (MARTIN, 2008).

Por outro lado, temos outra linhagem, derivada do tratamento rígido e desarticulador proposto por Bresson ao conceber o corpo do ator como “mo-delo” a ser esvaziado e preenchido minuciosamente, conforme o “manuseio” operado pelo cineasta: os corpos desencontrados e patéticos dos personagens de Tsai Ming Liang (que muitas vezes remetem também à comédia corporal de Jacques Tati e Buster Keaton) e a ausência deliberada de memórias corporais nos corpos migrantes de Jia Zhang-Ke são assumidamente calcados na matriz bressoniana, à qual podemos também associar como herdeiros os corpos ora em deterioração (No quarto de Vanda) ora fantasmagóricos (Juventude em marcha) dos filmes de Pedro Costa. Cabe destacar, contudo, que a matriz bressoniana, nesses três casos, difere de outra possibilidade, também herdeira de Bresson, presente na crueza da câmera seca, colada ao corpo, “reagindo a eles quase instintivamente” (MARQUES, 2008: 14), da qual os irmãos Dardenne sejam seu mais conhecido exemplo.

Uma terceira possibilidade é a dos corpos cotidianos, apresentados sem sobressaltos ou espetáculos, e neste caso podemos nos deter sobre os herdei-ros de Ozu, em especial Hou Hsiao Hsien e Kawase (embora suas câmeras “flu-tuantes” operem num registro diverso da visualidade de planos fixos do mestre japonês), mas também no minimalismo milimétrico dos gestos que atravessa a mise-en-scène de Tsai Ming-Liang e outros asiáticos como Hong Sang Soo e Edward Yang (MARTIN, 2008). Mas também podemos perceber um outro olhar sobre o cotidiano, que paga tributo diretamente à banalidade dos corpos objeti-ficados de Andy Warhol. Se, no caso do cineasta/artista visual norte-americano tal objetificação vem de uma extrema extensão da duração do plano (o que faz com que Shaviro afirme que, em lugar de representar o real, Warhol “entra” no real), podemos perceber essa mesma banalização dos corpos na imobilidade dos “corpos cansados” (AMADO, 2009) de Lucrecia Martel, ou no misto de leveza e estranhamento presente nos filmes de Apichatpong Weerasethakul.

Em qualquer das três linhagens, trata-se de uma inserção dos corpos no espaço calcada na construção de planos que, ao retratarem o aleatório de um fragmento do mundo em movimento, assumem-se como errantes e flutuantes, sem adotarem um tom psicologizante ou moralizante dos eventos retratados – aliás, falar da dimensão psicológica na caracterização dos personagens nesse cinema soa um tanto quanto inadequado, já que os personagens muitas vezes

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estão em construção durante os eventos com os quais seus corpos interagem, não servindo assim a regras dramáticas pré-estabelecidas (BRAGANÇA, 2007). O que temos aqui são planos de fruição que, ao valorizarem a presença física dos corpos, novamente estão na contramão da virtualização proposta pelo cinema tecnológico dos CGI.

Aqui, uma idéia central é a de “preenchimento”, como nos propõe Oliveira (2006: 29): em lugar do espaço lacunar ou dispersivo do cinema moderno, temos um espaço que se permite atravessar por afetos e sentidos. Esse preen-chimento muitas vezes é potencializado pelas paisagens sonoras, verdadeiros amplificadores do sentimento de fluidez e efemeridade que perpassa esse cotidiano deslizante. Se tal condição permite uma supervalorização da conexão sensorial, antecedendo a própria formação de significados (vide diversos mo-mentos nos filmes de Weerasethakul, como o travelling que se aproxima de um

exaustor, ao final de Síndro-mes e um século, por exemplo), ela também consolida o caráter de errância e fluidez dentro das imagens: “Não se trata de formas estáticas tão passíveis de análise. Essa sensação do fluxo nas artes trabalha muito mais a partir de modulações, intensidades, algo entre a música e a física.

Trata-se menos de pensar o mundo e mais de reagir a ele” (MARQUES, 2008: 20).

Para Luisa Marques, esse tipo de cinema opera através de uma “diluição narrativa”, que ela contrapõe à “desconstrução narrativa”, blocada e lúdica que caracteriza outros cinemas contemporâneos (como, por exemplo, os filmes de Iñarritu, Lars Von Trier ou Michel Gondry). Essa diluição permite que se valo-rizem elementos sensoriais, como ritmos, durações, texturas, luminosidades, indicativos da fluidez tão perseguida pela estética do fluxo.

Um exemplo marcante é o estranho esporte praticado em Phantom of Nabua (curta-metragem realizado por Apichatpong Weerasethakul em 2009), uma es-pécie de futebol jogado com uma bola em chamas por um grupo de jovens tai-landeses, num descampado, à noite. Acompanhamos o movimento de uma mas-sa luminosa esférica que arde continuamente, flutuando por entre os diversos pontos do quadro. A pouca iluminação (concentrada na pouca claridade gerada

(...) em lugar do espaço lacunar ou dispersivo do cinema mo-

derno, temos um espaço que se permite atravessar por afetos e

sentidos.

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pela bola, e por alguns clarões que vez por outra cortam o espaço, projetados numa tela estendida atrás dos jogadores) faz com que nosso olhar se desprenda da banalidade do ato captado pela câmera, e mergulhe num transe sensorial que se traduz em pequeno alumbramento quando finalmente a bola atinge uma tela (cinematográfica?) que se situa atrás de onde supostamente estaria o goleiro. Acompanhamos a tela se incendiar, como se toda a imagem fosse uma grande abstração dotada de transbordante energia cinética a impulsionar o movimento da bola luminosa. Mergulhados nesse transe, por vezes somos surpreendidos pelos clarões que o projetor lança sobre a tela, remetendo a uma imaginária tempestade tropical, não num sentido aterrorizante, tão banalizado pelo cinema de horror, mas como uma surpresa sensorial, um piscar de luz estroboscópica a rasgar a penumbra num ligeiro e fugaz clarão.

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Realizar um levantamento breve e pontual de obras que consideramos precur-soras do que na contemporaneidade tendemos a nomear como documentário experimental ou documentário de invenção é o que pretendemos. Tal esforço possui o intuito de trazer, a partir dos filmes percorridos, uma noção um pouco mais concreta, mesmo que não estanque, e posteriormente aplicável do que viria a ser essa vertente experimental do documentário. Trata-se de uma noção imprescindível para uma reflexão sobre o documentário como um gênero capaz de possibilitar a produção de discursos reflexivos, subjetivos e criativos que instaurem novas relações com a realidade.

Pensamento precursor

Acreditamos que as origens da vertente do documentário a que esse trabalho se dedica estão justamente nos pioneiros cineastas russos, de maneira especial em Vertov e sua concepção de cine-olho. Apesar da tentativa de conceituação do domínio documental ter ocorrido somente em meados de 1930, já na década anterior o teórico e cineasta russo Dziga Vertov havia desenvolvido o conceito de cine-olho – que se encontra intimamente ligado à maneira como compreen-demos o domínio documental –, fazendo-nos percebê-lo como um dos fundado-res do gênero.

O método do cine-olho, proposto por Vertov, possuía como objetivo a verdade. O cine-olho era o meio para o alcance dessa verdade, que ele definiu como seu princípio: “cinema-verdade” (kinopravda). Segundo tal princípio era preciso que a realidade fosse captada de maneira totalmente espontânea, era

ResumoA partir da análise e levan-tamento de obras que consi-deramos precursoras do que denominamos documentário experimental ou documentá-rio de invenção, pretendemos contribuir para a formulação de uma noção mais concreta desses termos, posterior-mente aplicáveis em outras pesquisas.

palavras-chave: cinema ex-perimental; cinema docu-mentário; documentário ex-perimental ou de invenção.

A propósito de um documentário experimental

por Rafael de Almeida¹

O principal, o essencial é a cine-sensação do mundo. Assim, como ponto de partida, defendemos a utilização da câmera como cine-olho, muito mais aperfeiçoada do que o olho humano, para explorar o caos dos fenômenos visuais que preenchem o espaço. O cine-olho vive e se move no tempo e no espaço, ao mesmo tempo em que colhe e fixa impressões de modo totalmente diverso da-quele do olho humano. (VERTOV, 1983: 253).

[1] Rafael de Almeida é mes-trando no Programa de Pós-Graduação em Multimeios da Universidade Estadual de Campinas e professor de Au-diovisual na Faculdade de Co-municação e Biblioteconomia da Universidade Federal de Goiás. Como realizador audio-visual, dirigiu alguns curtas, entre os quais destaca “Impej” (2007) e “A saudade é um filme sem fim” (2009). Atua como diretor, produtor e curador no MIAU (Mostra Independente do Audiovisual Universitário), festival de cinema sediado em Goiânia, desde 2008.

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preciso tomar “a vida de improviso”. Ou seja, ele era contrário a qualquer tipo de intervenção durante as filmagens, utilizando, inclusive, sem nenhuma má consciência a câmera-oculta como forma de trazer para as imagens “tragos de vida autêntica”.

Mas isso não significa que a verdade estaria naquelas imagens por si só. Era preciso que se interpretassem as possíveis relações, em um estado de la-tência, existentes entre elas e a realidade para que a verdade pudesse vir à tona. Algo assim seria possível somente pelo método do cine-olho, capaz de trazer uma nova percepção do mundo e das coisas.

Sendo assim, por um viés vertoviano, temos que a câmera não era conside-rada capaz de capturar a realidade. Nesse sentido, Vertov defendia “uma atitude de reconstrução poética dos registros do que a câmera viu” (NICHOLS, 2005: 131), em especial por perceber a máquina por um viés futurista, como modelo para o homem, e manter uma postura anti-ilusionista. Por isso o líder dos kinoks se vale de todos os recursos e procedimentos da linguagem cinematográfica possíveis, com especial importância para as noções de montagem e intervalo, tão caras para as aproximações que pretendemos apontar.

Os filmes produzidos pelo método do cine-olho estavam ininterruptamente em processo de montagem, de construção. Eram considerados resultados de um processo de criação artística, assumidamente fabricados da escolha do tema à finalização da obra. As teorias soviéticas da arte construtivista e da montagem fílmica atrelavam a capacidade de o aparato fílmico representar o mundo histórico com fidelidade fotográfica “ao desejo do cineasta de recriar o mundo numa imagem da nova sociedade revolucionária.” (NICHOLS, 2005: 133).

O intervalo – ou seja, o efeito de transição entre os planos, as correla-ções visuais sugeridas entre os planos – permitia ao cineasta construir novas percepções do mundo histórico e deixava nas obras lacunas que deveriam ser preenchidas pelo próprio espectador. Os filmes, desse modo, visavam a uma participação mental ativa do espectador e pretendiam não só decifrar o mundo,

“Cine-olho”: possibilidade de tornar visível o invisí-vel, de iluminar a escuridão, de desmascarar o que está mascarado, de transformar o que é encenado em não encenado, de fazer da mentira a verdade. “Cine-olho”, fusão de ciência e de atualidades cinematográficas, para que lutemos pela decifração comunista do mundo; ten-tativa de mostrar a verdade na tela pelo Cine-Verdade. (VERTOV, 1983: 262)

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mas também ensinar a ver.Através dos recursos de estilo (aceleração, sobre-exposição, retrocesso, va-

riação das angulações de filmagem, escala de planos etc.) era possível decom-por a vida, fragmentá-la em acontecimentos a serem rearranjados e flexionar a realidade através do dispositivo, da máquina. Tudo isso com vistas a constituir uma ligação, através do cinema, entre o proletariado de todos os países sob a plataforma da “decifração comunista do mundo”.

Dessa maneira, o que percebemos em Vertov são as bases de um verda-deiro trabalho de escritura documental e, por consequência, da tendência do documentário contemporâneo que nos propomos a pesquisar. Ele pensava na organização das imagens como forma de constituir um pensamento, de esta-belecer uma linguagem expressiva que pudesse ser compreendida de maneira universal. Chegou, assim, a registrar em suas anotações que aprendeu a escre-ver não com uma caneta, mas com uma câmera.

A concepção de Vertov “de um ‘cine-olho’ que contorna e ultrapassa a mera percepção” (TEIXEIRA, 2007: 43) é amplamente contemplada em seu filme O homem da câmera (1929), que Jacques Aumont considera “como o lugar em que o cinema se funda como teoria”, e o próprio Vertov avalia como “não apenas uma realização prática, mas também uma manifestação teórica na tela.” (MACHADO, 2006: 14).

As sinfonias

Com o florescimento da vanguarda na Europa, durante a década de 20, o cine-ma se viu liberto da obrigação de representar fielmente aquilo que se passava diante da câmera. Estendeu-se, então, rumo à compreensão das imagens captadas como material para a instauração de um cinema poético, livre, experi-mental, em contraponto ao dominante cinema narrativo de ficção¹ . As sinfonias metropolitanas foram produções documentais, inspiradas pelos movimentos de

Em O Homem da Câmera, a técnica é sempre usada em re-lação direta com os aspectos temáticos, que se sobre-põem e se inter-relacionam ao longo do filme: a velha e a nova sociedade, diferenças de classe, tecnologia e progresso social, arte e trabalho, esfera pública e esfera privada, cinema de entretenimento e “cinema-verdade”. Recursos de câmera, de laboratório e principalmente de montagem contribuem para criar contrastes, metáforas visuais e recontextualização de cenas familiares, provo-cando estranhamento e dificultando deliberadamente uma interpretação unívoca. (DA-RIN, 2006: 178-179).

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vanguarda, que privilegiavam os aspectos estilísticos, tanto da fotografia quanto da montagem, na busca de retratar um dia na vida de uma grande cidade.

O homem da câmera, de Dziga Vertov, é um dos grandes representantes desse ciclo de documentários submersos pelo intento de representar os espaços ur-banos nos anos 1920. Além dele, poderíamos destacar desse movimento: Apenas as horas (1926), de Alberto Cavalcanti; Berlim, sinfonia de uma metrópole (1927), de Walter Ruttmann; Chuva (1929), de Joris Ivens; e A propósito de Nice (1930), de Jean Vigo.

O filme marco da concepção cinematográfica de Vertov inicia-se com uma espécie de prólogo: é apresentado o personagem que servirá como condutor da narrativa, um homem com a câmera voltada para as coisas que o cercam, com os olhos atentos para o mundo. E, em seguida, esse mesmo personagem adentra as coxias de um teatro vazio. Logo vemos que, na verdade, trata-se de um cinema, pois assistimos ao nosso personagem manuseando latas de filmes e um projetor. O público começa a encher a sala. As luzes se apagam. A banda está a postos. A incidência da luz sobre a película indica que o espetáculo será iniciado. E a orquestra começa a tocar vigorosamente.

Somente depois deste prólogo é que o filme nos dá a ver uma estrutura que será encontrada em outras obras das sinfonias urbanas: uma grande cidade do despertar ao anoitecer. Nesse sentido, nos perguntamos qual seria o papel des-se prólogo senão revelar, desde o primeiro instante, o aspecto de construção do objeto fílmico? Somos levados a pensar que estes minutos iniciais prepa-ram o espectador para receber o filme, que antes de ser documentário é uma obra artística, um experimento, uma visão de mundo particular que o artista compartilha com o público. Ou seja, o caráter anti-ilusionista e autorreflexivo já estão presentes antes mesmo que a película “em si”, se é que podemos chamar assim, comece a ser projetada.

Outro instante que é bastante elucidativo e confirma esta postura anti-ilusionista vertoviana se trata de quando, a partir do congelamento da imagem de uma carruagem na rua, nos são exibidos mais alguns freeze-frames – seguidos por imagens em movimento de uma tira de fotogramas, bobinas, uma sala de montagem, e o trabalho de Svilova, mulher e montadora dos filmes de Vertov, com a moviola – para depois retornarmos ao exato ponto em que a primeira imagem foi paralisada. É como se, no meio da narrativa, a voz do documentário sofresse uma inflexão para lembrar mais uma vez que tudo se trata de uma construção. O congelamento é usado como uma tentativa de resistir ao fluxo acelerado das imagens, permitindo a instauração de outro tempo na narrativa pelo gesto de parada.

[1] Daí as feições construtivis-tas e futuristas da concepção vertoviana do documentário, conforme vimos anteriormen-te.

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A cidade, as pessoas, a vida urbana, a rotina, as máquinas, o transporte, o trabalho, o descanso, o nascimento, a morte, o casamento, o divórcio; enfim, tudo que possa atingir esse operário das imagens que carrega a câmera, o olho aperfeiçoado, é utilizado para compor a narrativa. E a maneira como ela é composta, sem dúvida, é o que torna O homem da câmera o principal precursor do documentário experimental, essa tendência contemporânea do gênero que re-flete sobre os princípios de um documentário de caráter autoral, comprometido

concomitantemente com a subjetividade e a realidade.

Vimos anteriormente a importância das noções de montagem e intervalo para Vertov, e para realizar esse inventário da vida na cidade

ele se vale de planos curtos, rápidos, e dos mais variados recursos de estilo: variação de velocidade (estático, lento, acelerado, retroativo), fusões, sobre-ex-posições, animação, variação da escala de planos etc. Parte-se da colagem e da dissociação de materiais visuais, utilizando recursos não como um inventário das possibilidades técnicas e expressivas, e sim “como plataforma de formu-lação de uma cine-escritura, que se baseia na inter-relação entre a percepção humana e o processo cinematográfico” (DA-RIN, 2006: 175) – o que reforça a imposição do filme “como discurso construído e reconstruído pelo espectador através de um processo de intelecção baseado no distanciamento crítico” (DA-RIN, 2006: 179).

A câmera por vários momentos irá recuar para revelar, além das imagens, a captação das mesmas pelo homem. O olho da máquina se mostra como perso-nagem, o que nos faz crer que sempre, independente da imagem que estejamos vendo, existe uma subjetividade – se não do homem, da própria câmera. Através desses recuos o processo do fazer fílmico é acompanhado pelo espectador. Exemplo disso é a sequência em que um trem vem em direção à câmera e a montagem tenciona para um acidente através de planos curtíssimos da loco-motiva se aproximando, dos vagões do trem passando sobre a câmera, do kinok nos trilhos, e uma mulher sonhando aflitamente, acompanhados de intervalos com a tela negra, para só depois expor-se como a sequência foi criada – a partir de uma cena que revela um buraco no meio dos trilhos preparado para alojar a câmera durante a passagem do trem.

A partir de O homem da câmera é possível dizer que o cinema tornou-se ca-paz de interpretar o mundo e colocar essa leitura em reflexão ampla e apropria-

O olho da máquina se mostra como personagem (...)

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da a partir do dispositivo cinematográfico. Talvez encontremos aqui, em Vertov, as bases para uma inflexão ensaística do documentário tão comum a essa vertente que nos propomos a compreender.

Entre o experimental e o documental

E agora propomos um pequeno desvio e um retrocesso. Debruçaremos-nos de maneira bastante pontual sobre alguns filmes menores – e nem por isso menos importantes, mas certamente menos vistos. Filmes que já demonstravam uma feição documental, apesar de serem predominantemente experimentais, rumo à poética que buscamos delinear, antes mesmo do ciclo das sinfonias urbanas.

Manhatta (1921), dirigido por Charles Sheeler e Paul Strand, é considerado o primeiro filme avant-garde americano. Baseado em um poema de Walt Whitman, “Leaves of grass”, o experimento é uma poesia visual sobre a cidade de Nova York, com uso de longos e estáticos planos bem enquadrados que o munem de um ar contemplativo. Trechos do poema são regularmente inseridos em cartelas du-rante o filme, antecipando o motivo das imagens que estão por vir. “Gigantescas construções de ferro, finas, fortes, esplêndidas torres em direção aos céus”, por exemplo, vem antes de planos bastante abertos da cidade revelando altíssimos arranha-céus acompanhados de uma lentíssima movimentação de câmera de cima para baixo.

Ao apoiar-se em um poema para reforçar o caráter poético que a constru-ção narrativo-imagética pretende alcançar, o filme acaba por se revelar alta-mente contraditório, por vezes (HORAK, 2002: 28). Um instante elucidativo do que apontamos é quando, após a cartela “Este mundo arruinado com estradas de ferro”, vemos imagens bem compostas de uma grande estação de trem, com locomotivas se movendo e marcando seu trajeto com fumaça, que muito mais exalta do que denigre os caminhos abertos pelos trilhos.

Manhatta certamente foi uma obra central para o projeto de desconstrução da perspectiva renascentista na realização cinematográfica, privilegiando a re-flexividade dos pontos de vista e a multiplicidade de interpretações. No entanto, em seu desejo de trazer uma experiência cinematográfica formalmente inova-dora, em contraponto aos modelos clássicos pré-estabelecidos, os realizadores não abandonam pressupostos filosóficos que criam uma tensão entre o verbal e o não-verbal dentro do filme, conforme apontamos, entre uma perspectiva modernista e uma romântica – segundo a qual o homem continua em harmonia com a natureza (HORAK, 1995: 267).

Assim como Chuva, A ponte (1928) é outro trabalho de Joris Ivens em que o

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olhar artístico sobre um fato comum extrai poesia do ordinário. Tendo como motivo o funcionamento de uma ponte ferroviária próxima a Rotterdam, o filme se inicia com planos gerais e estáticos da ponte, para logo em seguida trazer quatro planos do cameraman, que supomos tratar-se do próprio Ivens. Inicial-mente ele está de perfil com a câmera em punho, em um plano próximo, que re-vela apenas seu rosto. O cineasta-personagem se vira de frente para a câmera, como se fosse capaz de, com seu dispositivo cinematográfico cênico, enquadrar o espectador. Temos um corte para a posição inicial (perfil) e uma fusão para a posição final (frontal). Há, ainda, mais um corte para um plano mais próximo da câmera, centralizando a objetiva, que, agora, pela ação do cinegrafista, se

aproxima ainda mais.Aqui reiteramos os apon-

tamentos feitos sobre a pre-sença corporal do cineasta durante as análises das obras de Vertov e Vigo, e damos relevância a sua recorrência. O artista-documentarista se insere no quadro como forma

de explicitar, em um nível extremo, a sua presença: ao registrar a si mesmo com a câmera, deixa como pressuposto que as imagens que antecedem e sucedem seu aparecimento estão impregnadas de si, de sua subjetividade.

Depois a narrativa segue com um plano que dá a ver toda a extensão da ponte a partir de imagens tomadas em cima do trem em movimento e da exploração de detalhes de seu funcionamento. O recurso formal que considera-mos mais recorrente são imagens abstratas alcançadas a partir de planos bem fechados de detalhes da ponte. O filme de Ivens caminhará no sentido de expor o funcionamento da ponte como uma parte vital para o sistema de transporte da região.

O francês Robert Florey dirigiu Skyscraper simphony (1929), também abordan-do a cidade de Nova York. O curta-metragem, conforme sugere o título, faz uma sinfonia a partir de imagens de arranha-céus, captadas durante apenas três manhãs, que destacavam os padrões geométricos dos edifícios.

Durante o início do filme temos a impressão de que ele em sua completude se ocupará de dar a ver imagens estáticas em contra-plongée dos prédios. No en-tanto, a partir de certo instante a câmera parece receber um sopro de vida, que a deixa bastante instável, com movimentações rápidas e desordenadas sobre as construções. Esses movimentos caóticos vez ou outra surgirão novamente,

O artista-documentarista se insere no quadro como forma

de explicitar, em um nível extremo, a sua presença (...)

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como se fossem capazes de mover as estruturas sólidas que documentam. O primeiro movimento interno ao quadro que percebemos é de uma bandeira estadunidense flamejando enquanto a câmera fazia uma suave panorâmica de baixo para cima.

A obra, em quase sua totalidade, é composta por planos cuja movimentação é causada apenas pela câmera. Somente no fim teremos um trem, carros e pessoas de passagem. Mas, infinitamente pequenos em relação à grandeza com que são filmados os edifícios, eles passam facilmente despercebidos por um olhar pouco atento. Tudo está cercado pelos prédios.

O próprio Florey compreendeu seu filme como um estudo arquitetônico dos arranha-céus, “vistos das alturas ou filmando de baixo para cima, com largos e por vezes distorcidos ângulos, tomadas com 24mm, e aceleradas panorâmicas com edição rápida”² (TAVES, 1995: 111). A montagem é marcada por fusões que em apenas um momento revelam um efeito estroboscópico sobre a imagem do topo de um prédio.

Os movimentos de vanguarda demonstram um interesse bastante restrito em documentar a natureza de forma objetiva. Pelo contrário, é a abstração da natureza que fascina o olhar, este jogo formal em uma variação infinita de padrões de forma, movimento, luz etc. (HORAK, 2002: 31).

H2O (1929), de Ralph Steiner, é um caso pontual que demonstra com clareza o que pretendemos dizer. O curta-metragem, de doze minutos, traz água, chuva, gotas, quedas d’água, rios, lagos e ondas que revelam a natureza metamórfica da água. O movimento das águas é ininterrupto, e com o passar do tempo somos envolvidos de tal maneira pelos jogos especulares instaurados na água pela luz, que as imagens vão tomando uma dimensão cada vez mais abstrata. O espectador mergulha na narrativa a ponto de ultrapassar a condição material da água para, imerso sobre essa espécie de fluido hipnótico, iniciar um devir que o transporte para onde a sensibilidade apontar.

A obra de Steiner é repleta de jogos visuais, e a dimensão mais óbvia disso é o prazer que ele tem em presentear-nos com aparentemente quase todas as variações possíveis sobre as reflexões na água, e, mais particularmente, com a superposição de tipos de realidade que aguçam a percepção do espectador para nossas possibilidades (MACDONALD, 1995: 212).

O filme termina com uma série de tomadas particularmente complexas, que cantam os prazeres perceptivos de um mundo físico enquanto nos lembram de que a natureza do que vemos é uma função que varia de acordo com a nossa disposição em examinar nossos próprios sentidos (MACDONALD, 1995: 212). Os planos são bastante rápidos, como se as imagens delirassem, para em

[2] No original: “seen from way high or from down shooting up, with wide and sometimes distorted angles, 24mm shots, and quick pan shots with fast editing.” (tradução nossa).

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seguida dar a ver o plano final que resiste a esse fluxo desenfreado: um freeze-frame de uma superfície aquática sendo tocada pela luz em vários pontos.

Em Surf and seaweed (1931), Steiner continua a explorar essa relação entre a água e a luz iniciada em H2O. Com a utilização de planos bastante próximos, ele trabalha com o movimento das ondas do mar, que ora tocam as rochas, moldan-do-as pela repetição da ação ao longo do tempo, ora se encarregam de dar vida às algas, que revelam padrões visuais cambiáveis a cada sutil movimento das águas. Já Mechanical principles (1933), também assinado por Steiner, utiliza uma construção semelhante a suas outras obras aqui abordadas; no entanto, traz como dado novo o fato de realizar uma ode à máquina. Com feições futuristas, caras a Vertov e Ruttmann, e um rigoroso senso de composição fotográfica, o filme se detém sobre detalhes de engrenagens em movimento, que geram imagens abstratas baseadas em formas geométricas.

Outro filme que merece ser destacado aqui é A Bronx morning (1931), de Jay Leyda, um tributo a um de seus fotógrafos preferidos, Eugene Atget ³. O diretor deposita um olhar lírico sobre o Bronx nas primeiras horas da manhã, enquanto as ruas ainda não estão tomadas pelos carros e pela multidão (HORAK, 2002: 29).

As primeiras tomadas são abstratamente construídas a partir de um jogo de luz e sombra, percebido na paisagem urbana, a partir da janela de um trem que passa. São imagens impregnadas de uma composição semelhante a que percebemos no prelúdio de Berlim, sinfonia de uma metrópole. É claro o interesse do artista de colocar em primeiro plano o que normalmente é tomado como plano de fundo: lojas, prédios, placas, edifícios, ruas vazias, vitrines e demais objetos que compõem esses espaços – o que é feito sempre de maneira a gerar várias visões de um determinado assunto, a partir de enquadramentos bem compostos e uma montagem que respeita o tempo interno a cada imagem.

Apesar de o olhar evitar a figura humana, durante quase todo o filme, há momentos de singela expressividade que se valem dos personagens reais, embora privilegie planos próximos que não nos permitem identificá-los: como quando se detém sobre as calçadas do bairro, ora nos dando a ver uma série de planos com senhoras diferentes a balançar carrinhos de bebê, ora trazendo um inventário de brincadeiras de criança.

“Ao longo do filme, explorando o potencial de abstração visual oferecido pela tomada em ângulo alto de sombras de pedestres na rua ou panorâmicas rápidas de pombos em voo, o processo de edição ressignifica a abstração para revelar seu alicerce na experiência comum” (URICCHIO, 1995: 299). Leyda vai tecendo sua narrativa neste jogo, entre imagens abstratas e naturalistas, para

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[4] “Throughout the film, whether exploiting the abs-tract visual potential offered by high-angle coverage of pedestrians' shadows on the street or swish-pan coverage of pigeons in flight, the editing process reframes abstraction to reveal its grounding in or-dinary experience.” – tradução nossa.

[3] Eugene Atget é um fotógra-fo francês, considerado hoje um dos maiores da história, que possui como caracterís-ticas mais relevantes de seu trabalho, as quais são bus-cadas por Leyda em A Bronx morning, a documentação de espaços urbanos vazios, que valorizavam vistas cotidianas da cidade em detrimento da figura humana.

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dar a ver, além de um retrato do Bronx, os olhos e a visão poética daquele que o gerou.

Em Portrait of a young man (1932), de Henwar Rodakiewicz, assim como perce-bemos nos filmes de Steiner, haverá uma exploração dos padrões de abstração que a natureza proporciona a olhares atentos. O filme começa com um longo letreiro: “Conforme nosso entendimento e compaixão pelas coisas, que revelam nosso caráter. Então, isto é um esforço para retratar um jovem sobre as coisas que ele gosta, e a maneira como ele gosta delas: o mar, as folhas, as nuvens, a fumaça, maquinaria, luz solar, a interação das formas e ritmos, mas acima de tudo... o mar.” Nesse sentido, o filme é uma espécie de reflexão interior do cineasta, a partir de imagens da natureza.

A obra é dividida em três movimentos. No primeiro deles, as ondas quebran-do contra as rochas, o movimento das águas, os jogos de luz instaurados entre a maleabilidade da água e outras superfícies, como areia e pedras, nos remetem à mesma sensação estética experimentada em H2O e Surf and Seaweed, de Steiner. Além disso, o diretor utiliza padrões abstratos, adquiridos a partir de closes em máquinas, o que será retomado um ano depois em Mechanical principles, também dirigido por Steiner; imagens em plano bastante fechado de fumaça, capazes de gerar belíssimos padrões visuais, que parecem dançar no espaço, comandados pelo acaso; e fogo, também em plano-detalhe.

No movimento seguinte, os materiais novos utilizados por Rodakiewicz serão folhas, galhos de árvores, o movimento gerado nesses galhos pelo vento e nuvens. E, no terceiro e último, serão retomados os materiais já utilizados. “Ao criar um filme de natureza que representa a individualidade do cameraman, a im-portância da seleção não pode ser subestimada” (HORAK, 2002: 32), informa o diretor colocando em evidência que o todo é resultado da soma de suas partes.

E, nesse sentido, o interesse de Portrait of a young man pela natureza, assim como o de outras obras de vanguarda, é revelado como uma maneira de criar metáforas visuais que expressem a subjetividade do homem. Metáforas que, usando não somente de imagens da natureza, coloquem em primeiro plano os movimentos e processos enfrentados por seus criadores no intuito de transfor-mar a obra em um espaço intersubjetivo, que permita um verdadeiro diálogo de pensamentos entre espectador e realizador. É em busca disso que caminhará o documentário experimental.

Poesia do real: o documentário em versos

Os documentários que temos nos proposto a pesquisar, se nos é permitido

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[5] “In creating a film of na-ture that represents the cameraman's individuality, the importance of selection can-not be overestimated.” – tra-dução nossa.

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algum tipo de categorização, são fortemente marcados pelo que Bill Nichols classificou como poético, em sua proposição dos modos do documentário, isto é, ele

Segundo Nichols, documentários enquadrados desse modo claramente mesclam elementos documentais e experimentais. E é justamente no encontro desses dois domínios que provavelmente encontramos “um locus por excelência da expansão e renovação das formas documentárias na contemporaneidade”. Uma “vertente formativista, de vanguarda ou experimental, atenta às preocupa-ções formais, estilísticas, expressivas, poéticas do documentário” (TEIXEIRA, 2007: 42) fazia frente ao viés realista hegemônico, como pudemos ver, desde o fim da década de 20.

Essa vertente que percebia, na precariedade do dispositivo cinematográfico e da perspectiva artificialis, um ponto de partida para a criação artística levou em conta as possibilidades instauradas por uma imagem-índice-documental que oferecia uma ordem de material riquíssimo à subjetividade dos realizadores em sua poiesis.

Isso porque colocava em primeiro plano o ato criativo, o ato produtivo das imagens em si motivadas pelo que pertence ao âmbito do subjetivo, do sensó-rio, do imaginário, do emotivo, desconsiderando, por essa perspectiva, a fabri-cação de imagens que se pautassem num mero poder homologatório do real.

Nichols acrescenta que, desde Dziga Vertov, são poucos os documenta-ristas que “adotam em seu trabalho assunção epistemológica básica de que a posição do ego em relação ao mediador do conhecimento – enquanto texto – são socialmente e formalmente construídos e devem se revelar como tal.” Ou seja, o “processo de construção de significados se sobrepõe aos significados construídos.” (NICHOLS, 2005: 64).

Nesse sentido, o que temos é que, pela perspectiva de um documentário experimental, o realizador se nutre da experiência cinematográfica e dos re-cursos estilísticos provenientes desta como maneira de impregnar o seu objeto fílmico com um discurso declaradamente subjetivo, realidade improvável de

[...] sacrifica as convenções da montagem em continui-dade, e a ideia de localização muito específica no tempo e no espaço derivada dela, para explorar associações e padrões que envolvem ritmos temporais e justaposi-ções espaciais. [...] Esse modo enfatiza mais o estado de ânimo, o tom e a o afeto do que as demonstrações de conhecimento ou ações persuasivas. (NICHOLS, 2005: 138).

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se escapar, mesmo pelo viés realista ontológico, e induzir o espectador a uma leitura muito menos documentarizante do que artística ou estética – nos termos de Odin (2005) – como forma de alcançar informações acerca da realidade do mundo e das coisas.

Dessa maneira, pode-se falar na presença de uma voz lírica nesse tipo de documentário que não se preocupa em detalhar sua constituição, mas sim fazer asserções de uma forma marcadamente pessoal.

Videoarte e documentário: diálogos

Promovendo um grande salto, de acordo com Arlindo Machado (2007), em As linhas de força do vídeo brasileiro, a irrupção do vídeo, em meados da década de 60, retoma esse espírito desconstrutivista das vanguardas do início do século e as-sume a imagem eletrônica como mídia privilegiada para a experimentação, pois, pela ontologia de sua natureza, ela é muito mais aberta e propícia às transfor-mações e anamorfoses, se relacionada à imagem fotoquímica.

Sem perder de vista o percurso que nos trouxe à imagem-vídeo, lembra-mos que segundo Bellour (1997) a imagem eletrônica pode se inclinar para, ao menos, dois caminhos. “Pode ser posta a serviço da ilusão de realidade, como a maioria das imagens-filme”, pois, apesar da diferente natureza de sua matéria, quando ela faz uso da analogia e da representação está muito próxima da imagem naturalista, apesar do caráter autorreferente do vídeo como suporte

Foi no âmago da vanguarda que se formou a ideia de um ponto de vista ou voz diferente, que rejeitasse a subordi-nação da perspectiva à exibição de atrações ou à criação de mundos fictícios. [...] A maneira de o cineasta ver as coisas assumiu prioridade sobre a demonstração da ha-bilidade da câmera de registrar fiel e precisamente tudo o que via. (NICHOLS, 2005: 124)

Não por acaso, a arte do vídeo, que se constitui tão logo os recursos técnicos se tornaram disponíveis, se definirá rapidamente como uma retórica da metamorfose: em vez da exploração da imagem consistente, estável e naturalista da figura clássica, ela se definirá resolutamente na dire-ção da distorção, da desintegração das formas, da ins-tabilidade dos enunciados e da abstração como recurso formal. (MACHADO, 2007: 26)

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que garante uma espécie de realismo da materialidade. E, além disso, ela pode seguir pelo seu caráter onipotente de (de)composição, de tal maneira que “a ilusão da realidade se veja não mais apenas transgredida [...] como no cinema experimental, mas sobretudo relativizada, chamada a vacilar continuamente sobre si mesma.” (BELLOUR, 1997: 177-178).

E é justamente nesta segunda instância que pontuamos essa vertente inven-tiva do documentário. São obras possuidoras de uma tônica que muito menos ficcionaliza uma realidade por um determinado ponto de vista, do que contempla a realidade de uma imagem indicial, pela qual é atraído o olhar do artista. Ou seja, uma poética que relativiza a natureza do olhar. Machado acrescenta que

Nesse contexto, a partir dessa posição dos realizadores como produtores de discursos parciais, temos que as principais características da videoarte serão: a mancha, como efeito pictórico; a lentidão/aceleração/repetição dos planos; a montagem interna ao quadro; o compartilhar da ideia de autoria com o espec-tador, que impulsiona ao surgimento de um novo leitor; a intermediaticidade; e a narratividade em um estado limite. Essas características serão responsá-veis por permitir um diálogo profícuo do documentário contemporâneo com a videoarte, libertando-o de qualquer pretensão realista e permitindo que ele se assuma como poesia, como experimento.

O documentário experimental irá compartilhar do que, segundo Bellour, o cinema experimental e a videoarte buscavam escapar de todas as maneiras possíveis: “a onipotência da analogia fotográfica; o realismo da representação; o regime de crença da narrativa” (BELLOUR, 1997: 176). Será situado, então,

Em geral, as diversas gerações de videastas rejeitaram qualquer tipo de representação totalizadora, deixando patente nas obras as suas próprias dúvidas e a parcia-lidade de sua intervenção, ao mesmo tempo que se in-terrogavam sobre os limites de seu gesto enunciador e sobre a capacidade de conhecer realmente o outro. Com o vídeo, aquele que aponta suas câmeras para o outro não se encontra mais necessariamente numa posição privilegiada como produtor de sentidos, não está mais autorizado a dizer toda a verdade sobre o representado, nem está apto a dar uma coerência impossível à cultu-ra enfocada. Os próprios realizadores não se encontram mais ausentes do “texto” audiovisual, nem se escondem atrás das câmeras, de modo a sugerir uma pretensa neutralidade. (MACHADO, 2007: 31)

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nessa posição em que emanações do real são matéria-prima para construções de novas realidades mediadas pelo olhar do sujeito naquele instante; em que o realismo dá lugar ao formativismo e à poesia; e a narrativa segue em frágeis linhas à beira de um abismo.

Documentário experimental: por uma conclusão

O cinema documentário em si é incapaz de gerar um conceito que recorte de maneira precisa seu campo, em relação às imagens em movimento que lidamos na atualidade. E o nosso objetivo, conforme apontamos no início, é dar conta de uma noção que vá além do próprio documentário e se situe no encontro de dois domínios: o documental e o experimental.

De acordo com Da-Rin (2004) a definição de cinema documentário não é facilitada, por se tratar de um campo vasto e diverso que abarca múltiplas ques-tões sobre o mundo e trata diretamente dele em uma variedade de temáticas, enquanto somos levados a crer que essa dificuldade em defini-lo talvez seja um movimento de resistência do próprio domínio, uma impropriedade alojadora de potências. E, como nossas pretensões são bastante específicas, não iremos nos prolongar em reflexões conceituais, objeto de estudo de inúmeras pesquisas, internas aos limites do domínio. O nosso interesse, como foi possível perceber pelo percurso que traçamos até aqui, reside em apenas uma das bordas, em uma passagem.

Não compreendemos o documentário a partir de um conceito fechado e imutável, mas sim como um discurso narrativo constituído por enunciados que estabelecem asserções sobre o mundo ou sobre o próprio enunciador. Dessa maneira, o nosso horizonte está voltado, seremos repetitivos, não para um conceito estanque do domínio, mas sim para o que ele trata e, em especial, de que forma.

Nesse sentido, em nível de síntese, as proposições que realizamos até en-tão, durante as análises e reflexões, nos permitem considerar como documentário experimental, ou documentário de invenção, as obras em que os recursos estilísticos ganham relevo por operar uma reformulação na questão da verdade do docu-mentário, possibilitando que a subjetividade do realizador salte para o primeiro plano – apesar de esse salto não recobrir toda a radicalidade do cinema expe-rimental – ao utilizar criativamente potências que são singulares à natureza da própria imagem para compor seu discurso. Sendo assim, o documentário de invenção, motivado por processos intrínsecos à própria constituição do filme, lida com seus materiais de composição de maneira investigativa, experimentando

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Temos, por esse viés, a percepção do documentarista

como um artista.

os arranjos e rearranjos dos mesmos em busca de resultados não conhecidos previamente.

O que libertaria o espectador para interpretar a obra não com feições ilusionistas e especulares, mas sim conforme sua própria experiência estética, operadora de um encontro entre as subjetividades do leitor e do realizador.

Béla Balázs já indicava, de maneira bastante sutil, parte do que propomos agora. Ao referir-se, neste trecho, especificamente sobre a noção de enqua-dramento da câmera, dá a ver a infinidade de possibilidades significativas que se possui ao registrar determinado objeto. O ponto de vista documentado, para usar a expressão de Vigo, está intimamente ligado ao ponto de vista que o rea-lizador tem interesse em dar relevo. E é justamente no trato desses instrumen-tos, nas extensas possibilidades que se têm no uso de cada recurso de estilo e nas combinações possíveis entre cada escolha, arranjos e rearranjos que podem se instaurar entre eles que a narrativa documental vai sendo, camada por camada, experimentalmente construída.

Temos, por esse viés, a percepção do documentarista como um artista. Ao invés de explorar o ponto, a linha, a textura, a superfície, o volume, a luz e a cor como os pintores; se vale dos recur-

sos próprios à linguagem cinematográfica para tecer narrativas que ao falar do mundo também se permitam falar de si e dialogar com o outro, por meio de uma perspectiva construtivista que lida com diferentes materiais à procura de expe-riências estéticas a serem compartilhadas com o espectador – contribuinte da formação de discursos em que o estilo também é percebido como informação.

Todo objeto, seja homem ou animal, fenômeno natural ou artefato, possui milhares de formas, de acordo com o ângulo do qual observamos e destacamos seus contor-nos. Em cada uma das formas, definidas por milhares de contornos diferentes, podemos reconhecer sempre o mesmo objeto, pois elas sempre se assemelham ao seu modelo comum, mesmo que não se pareçam entre si. Mas cada qual expressa um ponto de vista diferente, um diferente estado de espírito. Cada ângulo visual significa uma atitude interior. Não há nada mais subjetivo do que o objetivo. (BALÁZS, 1983: 97).

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REfERênCIAs bIblIOGRáfICAs

BALÁZS, Béla. subjetividade do objeto. In: XAVIER, Ismail (Org.). A Experiência do cinema: antologia. Rio de Janeiro: Edições Graal; Embrafilme, 1983.

BELLOUR, Raymond. Entre-Imagens – foto, Cinema, Vídeo. São Paulo: Ed. Papirus, 1997.DA-RIN, Silvio. Espelho partido. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2006.

HORAK, Jan-Christopher. Paul Strand and Charles Sheeler’s Manhatta. In: HORAK, Jan-Christopher (Org.). lovers of the cinema: the first American film avant-garde, 1919-1945. Wisconsin: The University of Wisconsin Press, 1995.

_________. The film American film Avant-garde, 1919-1945. In: DIXON, Whe-eler Winston & FOSTER, Gwendolyn Audrey (Orgs.). Experimental Cinema: The Film Reader. New York: Routledge, 2002.

MACDONALD, Scott. Ralph Steiner. In: HORAK, Jan-Christopher (Org.). lovers of the cinema: the first American film avant-garde, 1919-1945. Wisconsin: The University of Wisconsin Press, 1995.

MACHADO, Arlindo. As linhas de força do vídeo brasileiro. In: MACHADO, Arlindo (Org). Made in Brasil. São Paulo: Iluminuras, 2007.

_________. O filme-ensaio. In: Intermídias, nº 5 e 6, 2006. Disponível em: http://www.intermidias.com. Último acesso em: 10/11/2009.

NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. São Paulo: Papirus, 2005.

_________. A voz do documentário. In: RAMOS, Fernão Pessoa (Org.). Teoria Contemporânea do Cinema. São Paulo: Editora Senac, 2005, v. II.

ODIN, Roger. A questão do público: uma abordagem semiopragmática. In: RA-MOS, Fernão Pessoa (Org.). Teoria Contemporânea do Cinema, Volume 2. São Paulo: Editora Senac, 2005, v. II.

TAVES, Brian. Robert florey and the Holywood Avant-Garde. In: HORAK, Jan-Christopher (Org.). Lovers of the cinema: the first American film avant-garde,

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1919-1945. Wisconsin: The University of Wisconsin Press, 1995.

TEIXEIRA, Francisco Elinaldo. Documentário Expandido – Reivenções do Do-cumentário na Contemporaneidade. In: Equipe Itaú Cultural (Org.). Sobre Fazer Documentários. São Paulo: Itaú Cultural, 2007.

VERTOV, Dziga. Extrato do AbC dos Kinoks. In: XAVIER, Ismail (Org.). A Experi-ência do cinema: antologia. Rio de Janeiro: Edições Graal; Embrafilme, 1983.

VERTOV, Dziga. nascimento do Cine-Olho (1924). In: XAVIER, Ismail (Org.). A Experiência do cinema: antologia. Rio de Janeiro: Edições Graal; Embrafilme, 1983.

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Suportes, formatos de arquivos e distribuição digital: novos rumos para o Audiovisual Documentáriopor Júlio Martins¹

Após sucessivas reviravoltas nas tecnologias (de todo tipo) que interferem no nosso dia a dia, geralmente ouve-se alguém pronunciar (ou escrever): “Éramos felizes e não sabíamos!”. Vou começar com esse bordão: éramos felizes com o videocassete e, depois, com o DVD, e não sabíamos.

O DVD morreu, mas ainda não foi sepultado: está aguardando a liberação da certidão de óbito que a indústria do cinema se recusa a emitir. O Blu-Ray está com os dias contados, mesmo com uma vida tão curta e mesmo que a indústria do cinema diga o oposto. Mal acabou de vencer a disputa com o formato DVD-HD pela preferência (do público), nem deu tempo de festejar... E adianto que essa minha opinião sobre o fim prematuro não tem relação com sua qualidade de áudio e vídeo, mas sim com o fato de ainda se constituir num suporte físico. O abandono do suporte físico foi um salto enorme e que ainda não é devida-mente comemorado pelos agentes produtores e distribuidores do audiovisual, especialmente os de curta e média-metragens.

Mas já há quem diga: “Pôxa, era tão bom colocar um disco no DVD player e tudo funcionar direitinho” (quando funcionava...). O fato é que, já faz algum tempo, entramos na era do fim do suporte físico para conteúdos sonoros ou audiovisuais. Até então, só conseguíamos exibir conteúdos sonoros e audiovi-suais em formatos pré-definidos pelas gravadoras (no caso da música) e pela indústria do cinema – especialmente a de Hollywood. Exemplos disso são os discos de vinil, fitas cassete pré-gravadas, CDs, Videocassetes VHS, DVDs e, agora, o Blu-Ray disc.

No entanto, o período de desfrute da liberdade do suporte físico parece não ter durado muito. Estamos mergulhados entre centenas de formatos de arquivo para imagem (TIF, BMP, JPG, JPEG, GIF, PNG, etc), para áudio (WAV, MP3, OGG, WMA, etc) e para audiovisual (MPEG1, MPEG2, WMV, RMVB, AVI, AVI-DV, FLV, entre mais de uma centena de outros). Qual deles serve para quê? Quem sabe? Não há quem conheça todos, porque eles surgem mais rápido (e, às vezes, tam-bém desaparecem) do que a nossa capacidade e velocidade de entendê-los. Ao mesmo tempo, cresce vertiginosamente a distribuição digital de conteúdo online inaugurada pelo Youtube e, também, a distribuição por torrents e/ou por hospeda-gem HTML, como, por exemplo, Rapidshare, 4shared, Mandamais, Depositfiles,

ResumoEste artigo trata da im-portância do fim do suporte físico para a disseminação do audiovisual e da música (embora indiretamente), as-sinala a dificuldade de se lidar com a anarquia de for-matos de arquivo de áudio e de vídeo na distribuição online descentralizada (por-tais de vídeo e downloads por torrents), e traça um breve panorama do método de distribuição digital online por torrent, já em uso (não oficialmente) há mais de 5 anos, com vistas a sugerir a sistematização de um pro-cesso de distribuição online descentralizada semelhante para audiovisuais documen-tários. Ao mesmo tempo, traz esclarecimentos sobre os formatos de arquivo de áudio e de vídeo em uso e suas apli-cações mais apropriadas.

Vídeos didáticos. Formatos de arquivo. Distribuição digi-tal

[1] Júlio Martins é professor do departamento de Comu-nicação (Centro de Artes – UFES) e pesquisador da área de som, acústica, áudio, lin-guagens sonoras e semióti-ca. Mestre em Tecnologias da Inteligência e Design Digital pela PUC-SP. É autor, coor-denador e produtor do projeto de extensão Videosfera, que se propõe a criar e produzir vídeos didáticos e instrucio-nais sobre áudio e assuntos correlatos.

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[2] Em www.amazon.com, pode ser constatado que vá-rias obras audiovisuais podem ser locadas e retiradas me-diante download;

Megaupload, etc. O VOD (Vídeo On Demand ou “vídeo sob demanda”) é, também, uma alternativa que cresce mais do que se esperava. Mas a locação, digamos digital e online², é realmente o produto novo que veio desnortear a trajetória planejada para o Blu-ray.

Então, uma questão que deve passar pela cabeça de todo profissional envolvido com a produção de audiovi-sual é: como será a distri-buição e exibição audiovisual (especialmente de documen-tários) no futuro próximo? Não há respostas ainda, mas o que está acontecendo no momento pode nos fornecer

muitas pistas e nos auxiliar numa reflexão sobre os rumos que o audiovisual poderá tomar com relação à distribuição digital e descentralizada. Mais do que isso, com o devido empenho coletivo, poderemos determiná-la. Essa reflexão é necessária, ou ficaremos à mercê dos padrões impostos pela indústria do entretenimento ou, também – o que é pior – dos padrões determinados pelo compartilhamento digital (como P2P), cuja marca é a anarquia de padrões e formatos.

Outro problema que surge é a perda de um referencial de qualidade técnica para armazenamento (de originais) e o aumento da vulnerabilidade das obras e/ou acervos, no que tange à sua durabilidade. Centenas de produtores de audiovisual estão armazenando seus originais em formatos impróprios, com baixa qualidade de áudio e de imagem. Além disso, não estão tomando as providências adequadas para o devido armazenamento e muitos nem têm feito suas cópias de segurança. Detendo-se na questão, veremos que algumas obras em película – guardadas numa lata, numa biblioteca pelo Brasil afora – podem estar muito mais seguras do que muitos vídeos feito por diversos produtores que guardam a matriz editada num DVD e no HD de seu notebook... Às vezes, só isso e mais nada! Disso se conclui que sabemos guardar muito bem o que é analógico (físico) e muito mal o que é digital.

Por fim, e não menos importante, é necessário registrar que, muito embora questões técnicas apresentadas se apliquem a todo tipo de obra audiovisual, nosso foco específico é o gênero documentário do subgênero (ou tipo) didáti-co, instrucional e/ou tutorial, que é o nosso maior foco de interesse. Enormes

Centenas de produtores de au-diovisual estão armazenando

seus originais em formatos im-próprios, com baixa qualidade

de áudio e de imagem.

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possibilidades se abriram para o documentário com a distribuição online na era digital; e o surgimento desses novos tipos é, ao mesmo tempo, reflexo disso e uma chance, como poucas, de o audiovisual (didático e instrucional) definiti-vamente ser utilizado como instrumento de uso intenso e extenso em salas de aula formais e no ensino à distância.

Essas e várias outras questões, com relação a formatos digitais, armazena-mento e distribuição, afetam diretamente o audiovisual – seja ele de qual gênero for. Elas precisam ser discutidas com um olho nas tecnologias e técnicas (do fazer e do distribuir), e com o outro numa política de distribuição democrática e legal (não underground!).

O fim da era do suporte físico

Qualquer um que se dispuser a pesquisar sobre os primórdios do cinema, da gravação de áudio e do filme sonoro, pode verificar que não são muitos os tex-tos/autores que retrocedem um pouco mais, na linha do tempo, do que a própria história do meio em análise, do invento. E esse não parece ser o melhor modo de se entender a história de um meio de comunicação tão poderoso. O cinema é muito mais do que a invenção dos dispositivos. Conhecer as circunstâncias da época em que ele surgiu e como elas permitiram que ele se difundisse e se constituísse num mercado pode nos ajudar a entender melhor seu engendra-mento e seus desdobramentos ao longo de sua evolução, sua situação atual e suas possibilidades futuras. E não só as circunstâncias que cercaram a inven-ção (da câmera, do projetor e do filme), mas, também, aquelas que cercaram cada um dos importantes saltos na evolução tecnológica do cinema como um todo.

Há uma série de questões técnicas, sociais, comportamentais, políticas, econômicas e sociais que, se consideradas, ajudam a entender a criação do cinema como negócio de um modo mais abrangente, e como as idolatradas (por alguns) leis do mercado dificultaram o desenvolvimento da produção audiovi-sual documentária e de cunho didático. Claro que não é possível examiná-las neste trabalho, dado o escopo ao qual nos propusemos. Mas podemos citar algumas questões importantes: há um elo comum nos processos de gravação de áudio e de captação e exibição de imagem em movimento para o cinema: Thomas Alva Edison. Ele é um dos heróis da América e raramente se fala de como ele interferiu no processo de criação do comércio de música gravada e de filmes como entretenimento. O cinema e a gravação de música são resultados de inventos criados e patenteados pelo seu laboratório.

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Note que justamente as duas indústrias (cinema e música gravada) que hoje se digladiam ferozmente contra a distribuição não autorizada de obras pela internet e que travam quixotescas batalhas até mesmo contra usuários domésticos, têm origem num mesmo laboratório. Obviamente a forma de exploração comercial decorreu da visão, até um tanto ingênua, que Edison tinha na época (muito adequada, e até avançada, para aquela época), pois ele jamais deve ter imaginado que o capitalismo evoluiria para um modelo globalizado (e selvagem!) e indiferente à má distribuição de renda, que é a causa de tantos problemas sociais.

Essa indústria emergente do cinema nasceu com uma forte marca mono-polista e cartelista. Edison afirmava não acreditar em qualquer invento que não proporcionasse um propósito comercial, conforme documentário da BBC³ . Lutou o quanto pode para manter essa indústria sob estrito controle. Formou o primeiro monopólio (e foi investigado pelo congresso americano por isso) com estúdios, com produtores, com um fabricante de material fotográfico (película) e com exibidores. Felizmente, o mercado sobreviveu bem a essa investida, porque, desde muito cedo, proliferaram estúdios, produtores independentes, distribuidoras, fabricantes de câmeras, projetores e, também, de filmes. E, como se sabe, onde há diversidade predominante (de agentes), tanto especialmente quanto fortemente lastreada em interesses comerciais, não há terreno fértil para crescimento – pelo menos desenfreado – de monopólios e cartéis.

Infelizmente, o mercado da gravação de música não teve a mesma sorte. Com o surgimento das primeiras rádios e da enorme possibilidade de utilização do rádio para exibir músicas gravadas ocorreu, talvez, a primeira batalha judicial da indústria da música (desde os primórdios do Vinil, representada pela RIAA – Record Industry Association of America, associação criada em 1952 para impedir que gravações de música fossem exibidas em rádios – já se exibia música ao vivo...).

Alguém consegue imaginar uma rádio sem música (gravada) na atualidade? Pois é... Mas a indústria fonográfica, com diversidade muito menor de agentes, permitiu a proliferação de um monopólio poderoso que lutou o quanto pode para não permitir que rádios exibissem músicas. Também lutou o quanto pode para impedir o lançamento do formato digital. De acordo com Knopper (2009, p. 15-34), o CD de áudio que todos conhecemos não foi obra da indústria fono-gráfica (ou por encomenda ou por incentivo dela), mas da Philips, da Sony e de muita persistência e negociação. Na verdade, as gravadoras criaram todo tipo de dificuldades para o lançamento do CD como suporte físico e para música em formato digital. Também ignoraram o quanto puderam o surgimento e o crescimento da MTV e dos clipes musicais. E, mais recentemente, se recusa-

[3] Documentário Câmera: Moving Pictures, produzido pela BBC. Exibido pela TV Cultura em 1991. (Tivemos acesso a cinco episódios gravados em VHS – copiados em DVD).

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ram a prover meios de distribuição digital de música, processaram e fecharam o Napster e – acreditem – processaram inúmeros usuários domésticos por dis-tribuir música no formato MP3 pela internet. Ainda não satisfeitos com tamanha quantidade de decisões equivocadas (a derrocada do comércio de música prova isso), criaram todos os empecilhos possíveis para a criação da Applestore, que foi a chave para o sucesso do Ipod. Sem provimento de conteúdo oficial e legal, a Apple jamais teria obtido sucesso com o Ipod (recentemente comemo-rou a marca de 100 milhões de Ipods vendidos). Para quem se interessa em conhecer essa história recente, a leitura do livro Appetite for self-destruction: The Spectacular crash of the Record Industry in the digital age (Knoper, 2009) ou Apetite para auto-destruição: A espetacular queda da industria fonográfica na era digital (trad. nossa) é obrigatória.

A criação do formato digital (e compactado) MP3 não inaugurou a era do fim do suporte – como se vê frequentemente em artigos espalhados pela internet –, pois, com a invenção dos gravadores de CD de áudio , e, mais tarde, dos gra-vadores de áudio e dados para computadores, já era possível se extrair músicas dos CDs (produzidos industrialmente) para formatos digitais, embora resultas-sem em arquivos grandes demais para os padrões de armazenamento em disco rígido para a época . O formato de áudio MP3, ao reduzir o tamanho do arquivo de áudio mantendo (conforme a taxa de bits) uma boa qualidade de áudio, abriu a trilha para o compartilhamento digital.

O suporte físico sempre foi um meio eficiente para a indústria ter total controle sobre a comercialização (nesse caso, tanto do cinema como da músi-ca). Preferencialmente, um suporte que não pudesse ser copiado pelo usuário comum. Então, pode-se imaginar a dor de cabeça que essas indústrias do entretenimento enfrentaram com a chegada dos gravadores de CD, do formato MP3, dos formatos de vídeo MPEG 1, 2 e 4, dos gravadores de DVD e, enfim, dos gravadores de Blu-ray (BRD). Sem falar no mercado, digamos paralelo, de aplicativos que eliminam travas contra cópias nos DVDs e BRDs.

Quem poderosamente sepultou o suporte físico, seja da música ou do audiovisual, foi a necessidade humana de compartilhar experiências de todo tipo, especialmente aquelas que, de algum modo, foram associadas a músicas, filmes, programas de TV e seriados. Essa necessidade encontrou sua morada na internet. O MP3 não teria proliferado espetacularmente sem a necessidade humana de compartilhar; nem a internet, por sua vez, teria se mostrado tão poderosa e invadido nossas vidas, se não fosse usada, também, para o com-partilhamento de nossas experiências, para nos comunicarmos (emails) e para nos relacionarmos (Orkut, Facebook, Unik, Sonico, etc.). O compartilhamento de

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[4] Antes do lançamento de gravadores de CDs para com-putadores, surgiram os grava-dores de CDs de áudio. Eram aparelhos modulares capazes de gravar áudio no formado do CD de áudio em discos gravá-veis (fabricados para esse fim) e que podiam ser tocados nos

CD players comuns. Na época de seu lançamento, custavam em média US$ 2.500 e cada disco virgem US$ 25 (em va-lores corrigidos resulta em mais do que o dobro disso!).

[5] Tipicamente, um compu-tador para uso profissional tí-pico Pentium II MMX (alguém se lembra disso?) era comer-cializado com discos rígidos de 20 GB; um minuto de áudio em arquivo WAV resulta em 10.336 MB e, portanto, o limite de 74 minutos de áudio (hoje já se chega a 80 minutos) do CD resultam em 764,8 MB, que, graças à eliminação de redun-dâncias, quando o conteúdo é igual nos canais direito e es-querdo de um programa es-téreo, fica reduzido a 640 MB. Um CD de 80 minutos de áu-dio resultava (e ainda resulta) em 700 MB de arquivo, quando convertido para WAV. Como se vê, não era nada prático – nem barato – se armazenar CDs de música no computador.

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música inaugurado pelo MP3 com a ajuda da internet, especialmente marcado pelo surgimento do Napster, só serviu para mostrar um pouco do que estava por vir.

Gravadoras, estúdios de cinema e grandes distribuidoras tentam a todo custo criminalizar o compartilhamento digital. E o compartilhamento de música gravada e de obras audiovisuais não pode ser visto como uma coisa só – como pretendem os agentes do interesse corporativo. A música gravada é uma peça de propaganda: é a divulgação do trabalho de um artista. Quem transformou a música em negócio foram as gravadoras, que tentaram nos fazer acreditar que isso era legítimo, por um bom tempo, enquanto podiam controlar sua distribuição através do suporte físico (ver KUSEK & LEONHARD, 2005). Mas a música existe fora do suporte. A obra gravada, o fonograma, não é “a” obra, mas uma versão dela. A obra pode ser tocada por uma banda ou artista ao vivo: a experiência in loco é insubstituível. Nem mesmo um DVD com a gravação de um concerto se aproxima dessa experiência (embora se esteja tentando de tudo: áudio multicanal 7.1, tecnologia de campo sonoro do Fraunhofer, televisores com imagem 3D, recriação de aromas, etc).

Sempre surgiram bandas e artistas com suas próprias composições, mas sem obras gravadas por uma gravadora tradicional e sem o interesse delas. O mercado dominado pelas gravadoras sempre foi tão restritivo que não demorou a surgir a produção independente: artistas que bancavam sua própria produção, gravação, prensagem e distribuição.

Já o cinema é uma narrativa criada, produzida, representada, filmada e/ou gravada, que não existe sem o suporte físico (mesmo que seja um arquivo digital como por exemplo, MPEG2, MPEG4, H264, AVCHD, MKV, MOV, etc). Cinema não pode ser representado ao vivo. A representação ao vivo é território do teatro, cujas características de linguagem são bem diferentes. O cinema, como o audiovisual, de um modo geral, ainda depende de um suporte, mesmo que virtual (como um arquivo de vídeo), já que o fim da película está bem próximo – para imensa alegria dos estúdios e distribuidoras.

Há outros indícios muito fortes do fim da era do suporte físico. Um deles é o crescimento da oferta de DVD players com porta USB capazes de exibirem arquivos de mídia e dispositivos puramente de arquivos de mídia (media player ou tocadores de mídia), com discos rígidos próprios e até mesmo com conexão de rede, compatíveis com a exibição de uma formidável quantidade de formatos de arquivos e com saídas de áudio e de vídeo de alta qualidade de imagem e de som. Isso, somado à oferta cada vez maior de locação de filmes online (ainda não dis-ponível no Brasil), já nos dá um panorama do que está por vir (ver notas finais).

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[6] Uma nova tecnologia para gravação e reprodução de áudio multicanal para salas de cinema, desenvolvida pelo Instituto Fraunhofer (o de-tentor da patente do mp3), que consiste na instalação e no posicionamento de uma grande quantidade de caixas acústicas pela sala de exibi-ção (principalmente no teto), com o objetivo de recriar um campo sonoro próximo do que experimentamos ao vivo, no mundo físico.

[7] Sigla para Universal Serial Bus ou barramento serial uni-versal.

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Outro deles foi a exterminação sumária e prematura de dois formatos de mídia que surgiram para substituir o CD, com qualidades sonoras muito supe-riores ao do CD atual: o SuperaudioCD e o DVD-Audio. Nem mesmo a qualidade de áudio muito superior foi suficiente para permitir que sobrevivessem.

Para o bem de artistas, de criadores, de músicos e de produtores... Para o bem da disponibilidade, da diversidade e do acesso democrático... Para o bem de todos aqueles que ouvem música e assistem filmes por prazer, o fim do suporte deve ser festejado com toda pompa e circunstância.

O compartilhamento digital, o crescimento do gênero documentário e o surgimento dos gêneros didático, tutorial e /ou instrucional

O assunto é complexo e extenso para ser analisado com a profundidade devida, o que não é possível aqui, mas alguns registros são necessários e pertinentes. O mercado de locação e de obras audiovisuais – que, diga-se de passagem, é outro mercado que nasceu praticamente na marra , porque o grosso do público consumidor de audiovisual não se interessava (e continua não se interessando) em comprar cópias – criou vários nichos de mercado mundiais, com consumi-dores ávidos por outro tipo de produção audiovisual que não as grandes produ-ções (os Blockbusters) de Hollywood, mas os filmes clássicos e antigos, filmes de boa qualidade de muitos outros países, um vigoroso mercado de música ao vivo (gravada) em videocassete ou DVD, os seriados de televisão de todos os tipos (dos antigos aos mais recentes) e, é claro, os documentários e os audiovisuais educativos .

Enfim, a criação do mercado de vídeo doméstico (home vídeo) abriu exce-lentes oportunidades para expansão do audiovisual documentário e educativo, que também foram impulsionadas pela expansão das TVs por assinatura. Foi possível ter acesso a documentários e obras desses gêneros, o que jamais seria possível antes. Isso foi só a ponta do Iceberg. O melhor estava por vir. A ideia brilhante de Shawn Fanning de associar a simplicidade de contato entre as pessoas através do IRC (Internet Relay Chat) com o compartilhamento de música (o MP3 já se tornara popular) resultou no Napster, cuja primeira versão entrou no ar em 1999 . Mas a indústria fonográfica dizimou o Napster nos tribunais, acusando-o de infringir o Copyright. Mas a ideia era boa demais para morrer. Então, vieram os filhos pródigos, mais espertos, como, por exemplo, o Kazaa e o Emule, até culminar nos sistemas P2P (sigla para Peer to Peer, algo como “de usuário para usuário”), praticamente indetectáveis e impossíveis de serem

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[8] Antes das locadoras de ví-deo, existiram os videoclubes, onde você se tornava sócio e tinha direito de retirar, por empréstimo, alguns filmes por mês. Isso era uma ativi-dade ilegal, de acordo com as distribuidoras. Foi preciso muita negociação com os líde-res desse mercado emergente de locação para se obter um permissão especial. Leia em qualquer capa de DVD e verá a inscrição “proibida a exibição pública, a locação, etc”. Só po-dia ser um delírio (da indústria do cinema) crer que um usu-ário doméstico comum com-praria uma fita VHS (depois DVD e agora o Blu-ray) apenas para assistir uma única vez.

[9] Com relação ao gênero educativo, sempre que nos referirmos a ele estamos in-cluindo os audiovisuais didá-ticos, instrucionais, tutoriais e outros mais que possam sur-gir nessa linha.

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[10] KNOPPER, Steve. Op. Cit.(125-132) – Toda a trajetória dessa brilhante iniciativa está descrita com riqueza de deta-lhes.

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restringidos. Não há um servidor central: cada usuário é um servidor potencial. Tudo o que está sendo baixado (download) num dado instante, ao mesmo tempo, está sendo enviado também (upload).

Graças ao trabalho voluntário e colaborativo de um exército de fãs, vários seriados de TV começaram a se espalhar pelo mundo (por distribuição não oficial e não autorizada), antes mesmo da distribuição oficial. Tomemos como exemplo alguns dos seriados atuais como House, Fringe, Two and a half men, Lost, Heroes, etc. O episódio passa na TV (nos EUA) à noite e, algumas horas depois, um arquivo de torrent já está disponível. No momento em que uma pessoa começa a baixar do primeiro computador (usando um aplicativo de torrent), o seu computador também passa a operar como um servidor, semeando para outros na rede, e assim por diante... Quanto mais gente baixando, mais gente seme-ando. Só tem um pequeno problema: passado o momento de pico, ninguém deixa o arquivo semeando infinitamente e, em pouco tempo, o aplicativo de torrent não consegue baixar mais nada. Trata-se de um tipo de serviço que não é autorizado pelos estúdios e gravadoras, mas também não é uma distribuição comercial, e sim gratuita; e se não se consegue baixar um arquivo porque não tem ninguém semeando, não se pode reclamar com ninguém.

Mas isso não é tudo. Um grupo de abnegados se debruça sobre o episódio para traduzir e criar legendas para outros idiomas. Em aproximadamente 24 horas (às vezes mais), as legendas do seriado estarão disponíveis para download nos portais já conhecidos (no meio underground dos torrents). Trata-se de um ar-quivo de texto minúsculo que os players de vídeo reconhecem e exibem seu con-teúdo em sincronia com o vídeo. Como se pode ver, há uma série de recursos tecnológicos em operação: gravação de vídeo, conversão, distribuição online descentralizada, trabalho colaborativo de tradução, legendagem e sincronização, hospedagem HTML (das legendas).

Esse modo de distribuição alternativa começou a se alastrar em 2005 e foi se expandindo exponencialmente à medida que o acesso à conexão de banda larga se popularizava (e caía de preço). Mas, de acordo com a Wikipédia (ver-betes Kazaa e Emule), o Kazaa foi desenvolvido em 2000 e foi com ele (embora não exclusivamente) que o compartilhamento P2P começou a se mostrar como uma possibilidade real e eficiente. Embora a feroz perseguição da RIAA conti-nuasse, já não era mais possível localizar o armazenamento dos arquivos, por-que no compartilhamento P2P não havia mais um servidor de armazenamento.

Enfim, estamos diante da mais poderosa e acessível forma de distribuição audiovisual que surgiu nos últimos anos (e, antes que ponderem a respeito, isso é muito diferente dos portais de vídeo como Youtube, Vimeo, Ted, Big

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Think, Blip TV, Atom, Blinkx, Megavideo, etc). Trata-se de um processo que pode ser sistematizado e adotado por qualquer grupo organizado. E se aqueles profissionais, pesquisadores, apreciadores e demais envolvidos com a produção e distribuição do audiovisual não arregaçarem as mangas e organizarem um sistema de distribuição descentralizada online baseado no torrent, em pouco tempo veremos a indústria do cinema e da música tentando rotular (aliás, já vêm tentando fazer isso incan-savelmente através da RIAA) isso de roubo, de crime, e criar alguma campanha publicitária para aterrorizar os usuários, disseminando mais alguma crença estapafúrdia como aquelas de que os CDs piratas estragam seu CD player, de que DVDs piratas Estragam deu DVD player... O que seria agora? Arquivos de torrents queimam o monitor de seu computador? Gastam a memória RAM do seu computador? Transmitem a gripe suína pela emissão de fótons piratas?! (ver notas finais).

O compartilhamento através do torrent é um salto enorme para a humanidade e não é exagero! E se não for apropriado por instituições oficiais acabará sendo criminalizado. Não se esqueçam de que isso já foi tentado com o projeto de lei do Senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG), que tinha a intenção de controlar a internet.

É importante não confundir a distribuição com a disponibilização online em portais de vídeo. As duas formas não são incompatíveis, mas complementares. E nenhuma das duas têm chances de substituir a televisão na forma em que está organizada.

A organização de um sistema brasileiro de distribuição de conteúdo audiovi-sual online é uma necessidade para profissionais, para pesquisadores, para agentes diversos interessados e, claro, para o grande público. Certamente, não é nada interessante para o cinema comercial, que consegue espaço nas salas de exibição e que fatura muito com isso. Mas é de longe a melhor alternativa que já surgiu para os curta e média-metragens e para o gênero documentário, que sempre tiveram dificuldades de conquistar espaço nas salas de exibição. Isso fez crescer um ramo antes praticamente restrito às enciclopédias: o

É importante não confundir a distribuição com a disponibi-lização online em portais de vídeo. As duas formas não são incompatíveis, mas comple-mentares.

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documentário de cunho didático. Hoje, pode-se falar em audiovisual didático, instrucional e/ou tutorial; um ramo que cresce sem parar e, incrivelmente, com pouco ou nenhum aproveitamento comercial e publicitário.

Com o adequado fomento, pode movimentar uma legião de professores e produtores para produzirem material didático que, então, deve ser disponibiliza-do online em discos virtuais ou mesmo por torrents.

Citarei um exemplo atual (há muitos e bons, mas escolhi esse): procure por “o mago da física” no Youtube. Trata-se de uma ótima coleção de vídeos de exemplificação de fenômenos físicos feitos pelo físico e professor Amadeu Albino Júnior, de Natal (RN). Com o fomento adequado seria possível melhorar o acabamento dos vídeos, melhorar a captação de áudio e, com a distribuição online, seria possível para qualquer professor de qualquer canto do país baixar e usar em sala; e o que é melhor: com alta qualidade de imagem e de som, muito necessária para certas explicações, sem depender de um padrão de transmissão como o da TV aberta ou por assinatura, por exemplo. Há muitos outros bons exemplos não necessariamente produzidos por professores, mas, no meio disso tudo, há centenas de milhares de vídeos amadores com explicações e afirma-ções de caráter duvidoso, e outro tanto de pura brincadeira. Como diferenciá-los?

Como poderia um professor do ensino fundamental julgar se um vídeo qualquer (que ele achou interessante para usar em sala de aula) não contém in-formações incorretas? Por isso é preciso se dispor da intermediação de alguma instância, algum tipo de conselho, que possa lhe assegurar não estar usando obras audiovisuais com incorreções conceituais.

Nesse ponto, basta lembrar que o Brasil é muito grande e há muitas locali-dades sem internet e outras com internet por linha discada, ainda, mas que dis-põem de recursos audiovisuais para exibição. Além disso, é muito diferente se colocar 40 alunos numa sala de computadores – cada um assistindo os vídeos por sua conta – conversando sem parar, de um professor passar um vídeo para depois explicar a teoria.

Um sistema de distribuição online de vídeos didáticos e instrucionais é um instrumental de trabalho espetacular para professores do ensino fundamental, mas, claro, também para o segundo grau e superior. E implica na discussão, na definição e na organização de várias questões. O audiovisual é um formidável instrumento de ensino, mas infelizmente está atrelado a uma forma de distribui-ção comercial que impede sua disseminação. Valentini e Soares (2005) traçaram um rico e diversificado panorama da aprendizagem em ambientes virtuais, mas o ano de lançamento da obra coincide com o de criação do Youtube; uma edição

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[11] Falar em atual em relação ao assunto que estamos tra-tando é uma armadilha. Daqui a alguns meses e anos, talvez o exemplo nem esteja mais disponível online para ser ve-rificado. Então sugiro que se-jamos condescendentes com essa noção de “atual” que se envelhecerá rapidamente, como quase tudo na internet. Mas é disso, também, que es-tamos tentando tratar neste artigo: há coisas boas demais para envelhecerem e desapa-recerem!

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atualizada certamente não poderia excluir o auxílio do audiovisual. Os cursos de graduação e pós-graduação à distância estão usando extensamente o vídeo como instrumento didático, muito embora com uma qualidade técnica, na maio-ria das vezes, ruim.

É preciso, realmente, um esforço coletivo no sentido de se criar um siste-ma de distribuição online P2P oficial. É preciso formar grupos de discussão e pensar em como usar isso profissional e organizadamente. Criar pontos de semeadura fixos em instituições como universidades, ou como já vem sendo articulado através das redes de TVs universitárias (Rede Ifes), para distribuição de conteúdo.

Contudo, esse é um momento em que, infelizmente, é trazida à tona a dis-cussão dos direitos autorais. Parece ser inevitável. Mas uma coisa precisa ficar clara diante da nova realidade que se apresenta: é preciso criar novas fontes de renda para os profissionais e autores envolvidos, para não dependerem exclu-sivamente da comercialização. Com relação à indústria fonográfica, de acordo com Ronaldo Lemos “O que se pode pensar que vai acontecer é a mudança da noção de música como mercadoria para serviço. As gravadoras já discu-tem aqui e ali, de que os consumidores venham a pagar por música não mais como produto, mas como serviço público, com água, luz ou gás”. Claro que há diferenças estruturais entre a indústria fonográfica e a indústria do cinema. Mas caminho semelhante (ao proposto por Lemos) deve ser pensado pela indústria do audiovisual alternativa (com relação ao documentário e ao educativo). Para se entender as questões que surgem a todo instante sobre o compartilhamento digital, inclusive sobre as questões mencionadas por Lemos (op.cit.) é indis-pensável a leitura do livro The Future of Music: Manifesto for the digital music Revolution (KUSEK & LEONHARD, 2005) ou O futuro da Música: manifesto em prol da revolução da música digital (trad. nossa).

O grosso desse tipo de produção (documentários e educativos de curtas e médias metragens) raramente chega às TVs. Quando muito, conseguem algum espaço em canais da TV a cabo. Quem produz quer que sua produção seja vista. E há um manancial fabuloso de obras originais, criativas e de alta qualidade. Este é um momento raro, em que os agentes desse mercado estão com a faca e o queijo nas mãos, que pode, inclusive, levar os canais convencionais a repensa-rem seus métodos de seleção de programação. Não é algo impensável. Dezenas de programas das emissoras estabelecidas (canais abertos e a cabo) estão utili-zando vídeos capturados da internet sem pagar nada por isso (mas deveriam).

Então, por que esperar por esses canais antiquados de distribuição, orien-tados exclusivamente por interesses econômicos, se o que se apresenta agora

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[12] Entrevista à CARTA CAPI-TAL, edição de 28 de novem-bro de 2007, p.58.

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é infinitamente mais poderoso? Não precisamos mais deles! E, certamente, não sou o único vislumbrando essas possibilidades; há outros, mas é preciso partir para a ação, para a definição de uma política.

É preciso enfrentar esse tabu dos direitos autorais. É preciso conceder permissão total à livre distribuição e, mais, fomentar o P2P para distribuição de

conteúdo legal. É preciso fazer com coragem e com determinação. Uma gota no oceano faz diferença, sim. O Linux, se não nocauteou a Microsoft, lhe deu um baita soco no estômago.

Claro que alguém do ramo pode argumentar que já há várias iniciativas para exibição online de obras

como, por exemplo, o excelente Porta Curtas patrocinado pela Petrobrás. Con-tudo, só se pode assisti-los por streaming, via internet, estando online. Sim, é verdade, mas trata-se da distribuição do arquivo para o interessado exibir onde quiser e, evidentemente, com qualidade muito melhor. A qualidade (de vídeo e de áudio) dos arquivos online, embora tenham melhorado muito, ainda estão distantes da qualidade de um MPEG2 ou MPEG2-HD, ou mesmo de um AVI-X-Vid (ou Div-X). Há iniciativas interessantes como, por exemplo, a da Samsung, de colocar em alguns modelos de TVs o recurso de acesso à rede wireless para exibição de vídeos do Youtube . Mas, sinceramente, com a alta qualidade de imagem disponível nas TVs atuais, assistir os vídeos do Youtube, Vimeo, Me-gavideo (entre outros) numa TV de plasma, LCD ou LED, mesmo na resolução média 1366 x 768 (abaixo da Full HD, 1920 x 1080), é desanimador, mesmo com os vídeos ditos HD (High Definition ou alta definição) desses portais. A alta resolu-ção das TVs mostra muitos defeitos da compactação. Não dá para ignorar.

Recentemente, a TV Câmara começou a disponibilizar seus programas online, exatamente do modo como estamos propondo. Qualquer interessado pode baixar o arquivo de vídeo inteiro do um programa que lhe interessar (da emissora), com boa qualidade de imagem e de áudio.

Mesmo que esses detalhes técnicos todos sejam superados e/ou aperfeiço-ados para a disponibilização online, ainda resta uma questão: a inclusão digital. É garantido que todos (especialmente aquela parcela da população com menor renda) terão acesso à banda larga, em todos os cantos do país?

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[13] Desconheço os detalhes, porque os anúncios que en-contrei, ao pesquisar, não es-pecificavam em profundidade. Mas Certamente há algum tipo de Browser gravado num chip, na própria TV. Também fica sem resposta (no mo-mento) como seria a navega-ção pelo controle.

Então, é preciso pensar em meios práticos de se usar o

trabalho colaborativo e as redes P2P em favor da difusão do audiovisual documentário.

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Então, é preciso pensar em meios práticos de se usar o trabalho colabora-tivo e as redes P2P em favor da difusão do audiovisual documentário. Isso não se aplica à indústria do cinema, aquela fundada no entretenimento e no lucro. Mas mesmo parte dela se beneficiaria enormemente de um processo de distri-buição legal e sem restrições (para localidades onde a obra não foi distribuída oficialmente). Sabe-se que uma quantidade significativa de filmes de ótima qualidade jamais chega às salas de cinema e, outro tanto, que mesmo sendo lançado em DVD e/ou BRD, jamais chegam às locadoras e às lojas de vários países (o Brasil é um desses!). Que prejuízo teria um cineasta em permitir que sua obra seja distribuída e assistida por um público que, de outro modo, ele não conseguiria alcançar? Claro que profissionais de outras nacionalidades e cultu-ras podem pensar muito diferente em relação às suas obras. Mas não é preciso esperar por eles. Pode-se mudar a nossa mentalidade, daqui pra frente, com relação ao modo como iremos produzir e distribuir o audiovisual, especialmente os documentários e os educativos. É previsível que uma mudança em nossos hábitos influencie mudanças em outras culturas e nos seus agentes também.

Enfim, há uma transformação em processo nos meios de comunicação convencionais. A TV Globo, acionista da NET (provedora de TV a cabo, internet e Voip), ciente dessas mudanças, já vem criando vários canais destinados à TV por assinatura. Hoje, são vinte e dois e o número continua crescendo. Então, caro assinante, se você tem um pacote de canais básico da NET, metade do que está disponível é da Globo. As operadoras de telefonia móvel fazem enorme pressão para entrar no mercado de broadcast, especialmente aquele direcio-nado à telefonia móvel. É uma briga para gigantes e já começam a contabilizar pequenas conquistas. Não se pode afirmar com certeza qual modelo vai predo-minar, nem se o atual, de canais abertos, vai continuar.

Mas, definitivamente, o que não pode acontecer é uma discussão acerca de um sistema de distribuição audiovisual alternativo pautada pelos interesses dos grandes grupos. Por isso, há uma urgência na discussão, na proposição e na adoção de um modelo de distribuição online.

formatos de arquivos de áudio e vídeo e armazenamento de originais

Como se pode ver, o compartilhamento digital somente se alastrou, porque foram criados os meios e as condições tecnológicas para que os arquivos de imagem, de áudio e de vídeo fossem reduzidos a tamanhos razoáveis (formatos compactados) para serem transmitidos pela internet. Claro que o que impulsio-

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Mas, quanto maior for a taxa de compressão, pior a

qualidade de áudio e de vídeo.

nou e impulsiona isso é a necessidade humana de compartilhar experiências. Sem formatos compactados, não teríamos tido o Napster, o Ipod, o Iphone (talvez...), agora o Ipad, o Kazza, o Emule e as Redes P2P. Pensem no Youtube

exibindo um vídeo no formato AVI-DV com 200 Mb por mi-nuto, ao invés de um arquivo flash (FLV) com cerca de 12 MB/min. Imaginem um usuá-rio do Orkut subindo 10 fotos, de 3 MP (megapixels) cada, no formato TIFF ou BMP com

seus 10 MB (cada foto!).Bom, e aí também tem o problema da visualização: sem os formatos compactados, como é que alguém conseguiria visualizar essas imagens? Mas, também, sem a necessidade humana de compartilhar conheci-mento e experiência, nada disso teria sentido em ser desenvolvido.

O caso da música é mais dramático, pois um CD inteiro (80 min) no for-mato WAV resulta em 700 Mb. Com a expansão da banda larga não parece ser difícil baixar um arquivo com esse tamanho atualmente: o problema é armaze-nar isso. Os zilhões de MP3 players de música (os baratinhos que são encon-trados em qualquer loja ou mesmo nos camelôs) têm capacidade de 1 a 2 GB: só caberiam 2 CDs por vez. Quem aceitaria isso? A julgar pelos anúncios que vemos nos canais de compras e anúncios da internet e/ou lojas virtuais, parece que o brasileiro quer número... Quer carregar 500, 1.000, 2.000 músicas num MP3 player... Não importa a qualidade (sonora) delas.

Arquivos compactados são extremamente necessários na distribuição e na exibição de audiovisual atualmente. Na verdade, essenciais. Entretanto, é pre-ciso saber usá-los corretamente conforme a aplicação. Arquivos comprimidos introduzem perdas na qualidade de áudio e de vídeo. Descartando-se a infor-mação julgada como redundante e/ou imperceptível (no áudio e no vídeo) são economizados muitos bytes e o tamanho final do arquivo se reduz muito. Mas, quanto maior for a taxa de compressão, pior a qualidade de áudio e de vídeo (embora o tamanho do arquivo se reduza muito, e vice-versa). E, então, surgem dúvidas: Quando se deve usar um ou outro? Por quê?

Entre os agentes desse meio audiovisual, não há quem não sonhe com aquele botãozinho mágico num aplicativo que, ao ser apertado, escolhe o formato adequado e, além disso, lava, passa, cozinha, atende ao telefone e ainda inventa uma desculpa esfarrapada para o seu(a) namorado(a) por você não es-tar em casa... É preciso parar de sonhar e colocar os pés no chão. Por mais que

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se escutem promessas de fabricantes/desenvolvedores de aplicativos, não há caminho fácil. É preciso entender os formatos e suas aplicações. O meio digital oferece diversidade de possibilidades, mas que devem ser usadas com respon-sabilidade, o que, por sua vez, requer conhecimento do que se está usando. É preciso arregaçar as mangas, pesquisar, experimentar, ler.

Durante um debate sobre a TV Digital no programa Ver TV (TV Câmara), uma professora ligada a uma TV Universitária, a certa altura, quando a dis-cussão entrou num assunto mais técnico, começou a falar nas vantagens do sistema escolhido e das diferenças entre o MPEG 2 e o MPEG 4, e o fato desse último ser o mais avançado tecnologicamente, o que não é totalmente correto. Esses reducionismos ajudam a espalhar concepções incorretas. O MPEG4 é, sim, mais avançado tecnologicamente, mas não proporciona melhor qualida-de de imagem. Proporciona, sim, mais compactação de áudio e de vídeo com menor degradação da imagem e do som. É ótimo para codificar o sinal da TV digital, mas muito ruim para armazenar originais.

A imagem no formato MPEG2 continua com alta qualidade e melhor do que a do MPEG4. Pode ser dimensionada até mesmo para o dito Full HD (1920 x 1080 linhas) e resultar em vídeo de alta qualidade com som até mesmo em PCM (ou descompactado). O arquivo será enorme e obviamente não se prestará à distribuição, mas é muito adequado para armazenamento da obra na versão final. Mesmo que ela sofra inúmeras reduções e/ou conversões para exibição em diversos meios.

Mas os meios convencionais de comunicação de massa têm um poder de penetração fabuloso e, certamente, essas poucas palavras, ditas num contexto específico (no programa citado) se somarão a muitas outras e ajudarão a criar uma ideia oposta: de que o MPEG4 é tecnologicamente superior em todos os sentidos. E muitos vão armazenar seus originais – como já estão fazendo, infelizmente – em formatos altamente comprimidos, seduzidos pela promessa de redução de tamanho de arquivo.

Não há milagres. Quem é produtor, diretor de uma obra ou, ainda, o armaze-nador oficial (se terceirizado) tem a obrigação de tomar todas as providências para a guarda dos originais nos formatos (físicos ou digitais) com a maior quali-dade possível. Esse é o tipo de coisa que se pode aprender bem com a indústria cinematográfica, especialmente aquela capitaneada por Hollywood. Como será que converteram filmes antigos para Videocassete? A partir de alguma cópia esquecida em alguma sala de cinema? E Para DVDs? Será que fizeram a partir dos videotapes gerados para duplicar os videocassetes? E para o Blu-Ray... Será que vão criar BRDs a partir dos DVDs? Eles são organizados mesmo. Sempre

14 [14] MPEG significa Moving Pictures Expert Group. Sigla para grupo de pesquisadores e profissionais, da indústria de Broadcast, que se reuniu diversas vezes para criar pa-drões de compressão de ima-gem em movimento e áudio para uso em DVD, TV por sa-télite, Videoconferência, Câ-meras de vídeo, Videotapes, etc. Os padrões definidos se transformam em normas ISO. Daí, são adotados por todas as indústrias que fabricam equi-pamentos e desenvolvem sof-twares para gravação e edição de vídeo. O número que vem depois da sigla expressa a ordem de desenvolvimento e também a aplicação. Nenhum deles é melhor do que o outro, embora apresentem resulta-dos diferentes. Na verdade, eles se destinam a aplicações diferentes (O que é melhor? Um Toyota Corolla ou uma F10 cabine dupla? Um ônibus Leito ou um Gol?) O MPEG 3 foi abandonado e não existe, uma vez que os requisitos do MPEG 2 atendiam satisfato-riamente as necessidades do DVD. MPEG 3 não é a mesma coisa que MP3. Este é um for-mato de compressão de áudio de terceira geração (existiu a primeira, o MP1, e a segunda, o MP2). Os formatos MPEG1, 2 e 4 contém dentro deles os sub-formatos, ou layers MP1, 2 ou 3 para o áudio.

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mantém seus originais armazenados em lugares apropriados. E outra lição muito boa que vem de lá: toda cópia e/ou conversão de um arquivo para outro formato sempre é feita a partir do original, com a melhor qualidade possível de imagem e de som.

Embora o digital nos coloque diante de um enorme leque de opções, por outro lado traz responsabilidades inerentes para os produtores e que precisam ser assumidas. Embora possa se parecer uma preocupação obsessiva, é preci-so realmente redobrar o cuidado com o armazenamento de originais digitais ou digitalizados. É preciso ter cópias em formatos com a maior qualidade possível em diversos suportes e em localidades diferentes. Embora existam atualmente meios seguros de armazenamento, nenhum deles é totalmente imune a falhas. Então, é preciso se fazer cópias em CDs, DVDs, BRDs, discos rígidos (internos e externos), pendrives, cartões de memória e, também, num meio que independa do computador, como, por exemplo, um formato de vídeo em fita (Mini-DV, DVC Pro, HDV). Acreditem: as fitas magnéticas, quando bem armazenadas, são incri-velmente estáveis e duradouras (estamos falando de armazenamento de vídeo na forma de dados).

Não se trata de fazer cópias num ou noutro formato e suporte, mas em vários – e mais de uma cópia – para serem guardadas em localidades diferen-tes. Enquanto o disco rígido de estado sólido (SSD-HD) não substituir definiti-vamente os atuais, com partes mecânicas, ainda existe a chance de um dia ligar o computador e ler aquela mensagenzinha famigerada: “Boot failure – No System disk. Insert system disc and press a key” (falha de inicialização – coloque disco com sistema e pressione uma tecla). Aí você sabe que perdeu um monte de coisas importantes (se não fez as cópias de segurança).

AnEXO: notas finais

Este artigo começou a ser escrito em fevereiro de 2009 e precisou ser atua-lizado várias vezes porque, como se pode ver, trata de um tema em constante evolução e aperfeiçoamento, sem que quaisquer agentes tenham controle. Por esse motivo criamos um apêndice com a finalidade de atualizar e/ou acres-centar algumas informações a respeito do assunto tratado, na medida em que forem acontecendo. Procure no Googledocs pelo usuário [email protected] e/ou pelo documento com o título Suportes, formatos de arquivo e distribuição digital – Apêndice ou pelo cód. [ sala206apendicejcms1506 (tudo junto sem acento, como escrito) ].

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É comum hoje em dia se ouvir relatos de cineastas que tem problemas na hora de preencher as fichas de inscrições para a participação em festivais de cinema. Ficção, documentário ou experimental (em alguns até vídeo-arte), rótulos que já não cabem no tipo de cinema híbrido que se produz atualmente, sobretudo na esfera do vídeo digital. De uma informação, no entanto, esses mesmos cineastas não se ressentem de dar: é fácil dizer o Estado de origem dos filmes. Receber um “ES” depois do título do filme demarca um endereço de produção, antes de tudo. Mas o que significa ser “um filme do Espírito Santo”? Que tipo de condicionamentos envolve o trabalho de um diretor na hora de reali-zar um projeto a tal ponto que o resultado daquilo se torne um “filme capixaba”?

Já desde o final dos anos 70, no ambiente do cinema internacional, as demarcações nacionais foram sendo deixadas de lado em nome de um certo universalismo. Uma época de co-produções entre diversos países, cineastas de um lugar filmando em outro com o dinheiro de um terceiro, e em algum momen-to a idéia de que um filme fosse brasileiro ou francês foi substituída pela origem do próprio cineasta: O Leão de Sete Cabeças foi rodado no Congo, com dinheiro francês, fruto do roteiro de um italiano, e ainda assim ele só pode ser consi-derado parte da filmografia brasileira porque era Glauber Rocha o agenciador de toda essa desterritorialização. E o que inúmeros estudos tentaram fazer de 1971 até aqui, sem sucesso aparente, mas ainda assim dedicados a uma questão real, foi investigar o que havia de tão obviamente brasileiro na maneira com que cada um daqueles planos foi rodado que nos deixasse a impressão clara de ser “coisa nossa”. Glauber talvez seja um exemplo complexo porque foi o respon-sável, em grande parte, pela própria idéia da existência de um cinema nacional com origem e destino bem definidos (ainda na fase jornalística, em seu Revisão Crítica do Cinema Brasileiro). Mas mesma sensação se experimenta ainda hoje quando vemos um projeto internacional de Walter Salles ou Fernando Meirelles, por exemplo. E já avançamos do ponto em que se tentava localizar o específico brasileiro no manuseio da câmera. Ser brasileiro é mais do que simplesmente uma relação de escritura imagética. Mas ainda não sabemos exatamente que “mais” é esse.

[Ensaio]O Cinema do Espírito Santo nos Anos 2000: Acaso de uma Imagem Capixaba?por Rodigo de Oliveira¹

[1] Cineasta, crítico e curador da área de cinema, Rodrigo de Oliveira é um dos fundadores do Grav.

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No caso do cinema produzido dentro do país, o risco de banalizar a discus-são é ainda maior. Admite-se o regionalismo audiovisual como aqueles mapas lúdicos que se encontram nos livros infantis, onde cada estado ganha um desenho de seus produtos típicos ao lado – e por muito tempo insistiu-se que o mais capixaba dos filmes seria aquele passado no interior de uma banda de congo, onde se serviria uma moqueca enquanto a turma não se dirigia a alguma fincada de mastro ou procissão ao Convento da Penha. Quando uma secretaria de Estado promove um edital nos moldes do que produziu a Coleção Audio-visual Identidades, de dois anos atrás, o problema se desloca para os objetos. São filmes cujo tema é a tradição identitária local: o que eles filmam é capixaba. Não se tem dúvida da origem daquilo que está em cena, o jongo, a moqueca, os pomeranos – mas a imagem, como um todo, é capixaba? Não é, a princípio. Ti-cumbi, curta do carioca Elyseu Visconti realizado em 1971 sobre a festa folclóri-ca de Conceição da Barra ainda é o maior filme sobre uma manifestação dessa natureza no Estado, e ainda assim não se pede do olhar do cineasta nenhum processo de naturalização com seu objeto para que todos comunguem de uma mesma origem no real.

Mas outros fatores entram em ação nessa questão espinhosa, e eles dizem respeito também ao tempo e as contingências da produção, tanto quanto ao espaço. E essa é sim uma origem comum: os atores podem ser de fora, os cineastas idem, nenhum traço identitário mais evidente precisa aparecer, e o cinema feito no Espírito Santo acaba carregando, sim, alguma proximidade, mesmo quando se trate de projetos bem díspares. Para além de tudo aquilo que faz o cinema ser cinema pensando, sobretudo, pelo viés da autoria (um cineasta oferece, em filme, aquilo que experimento diante do mundo e retrabalha em seu interior, e esse mundo é tão vasto quanto ele quiser que seja), as condições específicas de uma época e um lugar são levadas à construção desse olhar de maneira incontestável. O cinema feito aqui é visto, primordialmente, aqui tam-bém. Há um senso de classe cinematográfica, de pares, de comunidade (com todos os desafetos incluídos no meio). Há uma janela de diálogo estabelecida na divisão da mesma estrutura de produção – leis de incentivo locais, financia-mento independente, filmes de escola – e de um mesmo espaço de exibição, de circulação de imagens e sentidos. Isso fica tanto mais evidente quando chegamos diretamente aos produtos desse diálogo, aos filmes em si. Aqui se fará um recorte bem específico dos últimos filmes produzidos pela geração de cineastas que despontou no Espírito Santo nos anos 2000, pessoas de idades e trajetórias pessoais bem diversas, mas que em algum momento se reúnem em torno de um mesmo propósito: falam a partir e sobre o hoje (mesmo quando

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localizam suas tramas no passado ou no futuro), e falam com a língua do hoje (mesmo que utilizem como artifício o cinema de gênero, a narrativa histórica ou a experimentação vanguardista). Cada filme observa o outro, mesmo que não haja essa consciência dos realizadores na hora de colocar suas histórias em imagem. E todos esses filmes observam a maturidade do cinema feito aqui nestes últimos anos.

“Quem é bom já nasce feito”

O primeiro dado relevante dessa geração em que o apoio financeiro estatal se estabilizou e onde as novas tecnologias proporciona-ram alguma disseminação dos meios de produção é que, forçada por esses dois fatores, ela se obrigou à conseqüência. Já não se trata de um ambiente cinematográfico que comporta apenas esforços isolados e esporádicos, projetos únicos numa carreira que logo depois seria sustada. Há uma continuidade evidente, seja por que vias for (mesmo totalmente independentes do incentivo fiscal, Gui Castor e Rodrigo Aragão conseguiram produzir com regularidade nos últimos anos). Mas essa continuidade não se deu apenas pela recorrência de aprovações na lei. Há um desdobramento artístico imediato, que é a chance de se ter um projeto de cine-ma, de espalhar pelos filmes a evolução de uma plataforma de propostas para a arte, para a vida, para a relação entre espectador e obra. O curso da história cuidou de não fazer repetir algumas frivolidades do tipo de Mundo Cão (2002), de Sáskia Sá e Escolhas (2003), de Ana Cristina Murta. Não que se tenha perdido a ligeireza do humor e das convenções dramáticas destes dois filmes: é que boa parte dos filmes de hoje (os bons filmes) é consciente de uma responsabilidade autoral que, no começo da década, ainda tinha o direito de se diluir em nome da retomada de uma atividade em um espaço ainda carente de um volume de expe-riências maior. É curioso reparar, inclusive, que os filmes de um Ricardo Sá se aproximem tanto mais de uma potência de cinema, e não apenas de exercícios automáticos de realização, quanto mais ele dialogue com essa veia humorística dada ao pastiche – não há documentário de retomada de terra quilombola ou projeto contra degradação ambiental que se soe mais político que sua invenção marginal de Enquanto Houver Fantasia, e é justamente pela compreensão de que mesmo a mais frívola das imagens tem o poder de intervir diretamente neste

O cinema feito aqui é visto, primordialmente, aqui também.

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projeto de cinema (e de mundo, por que não) que o cineasta anuncia. Mesmo Sáskia Sá, quando retoma a direção em A Fuga, já parece mais firme na eleição de um universo de abordagem e de um olhar que ofereça firmeza e propósito a este universo, e o trabalho como produtora e atriz de Ana Cristina Murta pos-terior a seu curta só confirma o faro para a associação a esse tipo de visão em escala do processo cinematográfico local.

Ter um projeto de cinema significa fazer escolhas, e fazer escolhas significa não só eleger um caminho como abandonar todos os outros que se deixou de lado (mes-

mo que, mais adiante, opte-se por tomar rumos diversos). E as imagens produ-zidas no interior dessas escolhas falam muito mais do que poderia se absorver de dúzias de entrevistas com seus realizadores – e elas falam muito sobre a natureza de cada um deles. Tomemos os filmes de Gui Castor: é possível perce-ber uma trajetória muito clara da construção de seu olhar apenas por aquilo que seus filmes nos dão a saber. E há ali um sentido de urgência e agilidade tipica-mente juvenis. Cineasta de pulsões muito mais que de articulações, fica patente nos longas-metragens Anjo Preto e Harmonia do Inferno uma volúpia desmedida sobre seus objetos de interesse – algo que, curiosamente, nunca passa por abuso ou julgamento moral, duas armadilhas desse tipo de documentário das quais Castor escapa mais por sorte que por consciência. É uma vontade de tudo ver, de tudo absorver, um tipo de crença totalizante na imagem que diretores mais escolados como o Marcus Konká de Meninos da Guarani não se arriscam a ceder. São marcas destes dois filmes os exames microscópicos de Castor faz com seus personagens, primeiro Edson Papo-Furado e depois Elvira Pereira da Boa Morte, quando são investigados por uma câmera absurdamente próxima de seus rostos quase como se o filme quisesse absorver a energia dessa gente por osmose, ou como se fosse mesmo a câmera a mediadora absoluta da rela-ção entre cineasta e objeto. Ali, a câmera se porta quase exclusivamente como instrumento de registro, e nunca como agente de significação: vê-se muito, vê-se tudo nos mínimos detalhes, mas a paciência da observação ainda não faz parte do manual do cineasta.

E isso diz muito respeito à frase que um sambista diz em Anjo Preto e que serve como subtítulo dessa seção: parece que, diante de personagens tão bons – e por isso mesmo, já “feitos”, já prontos em toda sua complexidade – o cine-asta pudesse abdicar da construção, da dialética entre planos, do seu próprio

Ter um projeto de cinema significa fazer escolhas.

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ímpeto de dar o sentido que lhe parece mais justo àquilo que, da boca de um compositor ou de uma catadora de lixo, surge já como verdade a ser absorvida sem hesitação. Montando depoimentos dados por Papo-Furado nos dias de hoje com aqueles filmados por Carlos Alberto Perim nos anos 90, é possível perce-ber a recorrência de seu discurso, às vezes dito com as mesmíssimas palavras, de tal modo que vinte anos não façam diferença para o sentido de suas frases. Elas eram firmes lá e continuam aqui, e às vezes ouvir não é o bastante como trabalho de um cineasta. Anjo Preto fica sempre melhor quando se dispõe ao ris-co de falar por conta própria, de devolver a Papo-Furado as perguntas que ele lança para câmera, de estabelecer um diálogo real entre o que se põe à frente e atrás do aparato cinematográfico. Não à toa, o filme que começa tão preso aos rostos, olhos e boca de seus personagens termina com um espetáculo solo em plano aberto de Papo-Furado, onde podemos ver seu corpo por inteiro, frágil e forte, engraçado e trágico, dançando em casa.

Não falo aqui de um desrespeito primordial na relação com os objetos (so-bretudo com personagens e situações reais, mas não somente). Mas é a con-sideração de que tudo está dito e que estes objetos tem propriedade exclusiva sobre suas trajetórias que marcam a diferença entre um cineasta e um simples filmador. É o que surge em documentários recentes de Ricardo Sá, sobretudo em Assim Caminha Regência (2005), Sapo no Pé do Boi Sempre Sai Pisado (2006) e A Retomada do Linharinho (2008), onde os discursos naturais desses ambientes abordados ainda se chocam com os discursos pré-estabelecidos do próprio cineasta (sempre na vertente político-militante). Não há espaço para respiro, não há disposição real em absorver desses ambientes mais do que eles estão programados a oferecer, nem calma para se perguntar até que ponto a validade da agenda política anterior à realização do filme se confirma uma vez que o cineasta se encontra com este universo recortado do real (e é por isso que o grande projeto de impacto político do cinema capixaba recente continua a ser Não é Só Uma Passagem, vídeo de 2005 de Igor Pontini sobre as manifestações estudantis contrárias ao aumento da tarifa do transporte público naquele ano, e muito porque não só há respiro, como ele é ofegante: o filme que participa da manifestação e toma tiro da polícia tanto quanto aqueles a quem registra em imagem, cinema e realidade colados de maneira radical).

Há ainda um temor fundamental que atravessa boa parte dos filmes dessa safra, os bons e os maus, que é o medo do fora-de-quadro. Extremamente concentrados em extrair os sentimentos que se condensam no interior das imagens, muitos cineastas relegam à segundo plano aquilo que não vemos, aquilo que não está dentro da imagem mas que, como todo o resto, a condi-

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ciona. Não há tensão nos limites do enquadramento, não há nada que possa perturbar a ordem das imagens, nada que surja de fora, desse espaço imaginá-rio (porque não-visto) e se impõe também como dado do espaço real (porque agora visto, impresso no fotograma). É o que se dá na ficção de A Fuga ou A Passageira (2006), onde o atropelo de uma série de situações dramáticas soa

sempre como o cumprimento de uma listagem de situações e nunca como uma história que, ficcional que seja, é tão vibrante e tão necessária que consiga oferecer mais do que

um encadeamento de frases de impacto. A negação da idéia de que há vida para além daquilo que coube aos filmes mostrar é a principal razão da previsibilidade de algumas dessas imagens. No caso de A Fuga, a figura de Sebastião Modesto é forte o bastante para nos fazer imaginar que, para dentro dele (a alma também é algo a que os filmes não se arriscam a filmar), há um abismo de sensações e memórias muito mais fascinantes que aquelas que o filme decidiu encenar, e é talvez a permanência tão misteriosa desse sujeito em cena que torne todo o resto tão pálido. Paradoxalmente, não há para onde fugir: não se oferece ao per-sonagem um espaço por fora ou por detrás da imagem onde ele possa existir, e isso fragiliza sua presença no interior dela. Nesse sentido, há um plano preciso em N’Goma – Jongos do Sul Capixaba (2009), de Leonardo Gomes e João Moraes que ilustra uma alternativa a esse impasse. Uma mulher relembra a história do pai ausente e da vida dura que teve na infância por causa desse abandono, e o tempo inteiro a câmera a registra num plano fixo tomado do lado de fora de sua casa, com ela colocada à janela, bem no canto do quadro, com a parede ocupan-do o resto todo. Câmera e personagem não estão sequer no mesmo ambiente, e a janela (metáfora mais que batida para o efeito-cinema) serve como um peque-no portal para o absoluto desconhecido. Lá atrás da mulher está tudo escuro, tal qual uma tela preta que se coloca pequena dentro do quadro. Mais importante que tudo: se esta mulher decidir que sua conversa com os cineastas terminou, que já não quer se mostrar, ou simplesmente que quer deixar de ser objeto de atenção por um segundo, ela pode se afastar e mergulhar nesse escuro, retirar-se do quadro e da imagem. Neste momento, a prerrogativa da montagem passa a ser do personagem, e não do realizador. Ela não fará isso, mas o filme lhe ofereceu a possibilidade de se ausentar dele quando quisesse.

Nada está tão feito a ponto do cineasta não poder intervir, nem que esta sua vontade de atuação esteja simplesmente na disposição em deixar o tempo

Nada está tão feito a ponto do cineasta não poder intervir (...)

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correr diante da câmera, a esperar que esse real pronto e encerrado em si mesmo apresente alguma fissura (e, naturalmente, alguma beleza e poesia). Em N’Goma, tudo é posto a significar por associação, nunca reiteração ou chancela. A imagem de moscas pousadas num arame farpado no meio de um pasto em Presidente Kennedy só pode surgir no filme porque, antes, ouvíramos duas senhoras negras, representantes dessa tradição ancestral do jongo, sugerirem ao filme que é exatamente esta a relação que mantém com o mundo. Admite-se apanhar da mãe na infância, pois esse é um gesto de educação, mas não se admite apanhar de um senhor de engenho: o primeiro vira lição repassada aos filhos, o segundo vira música repassadas a toda uma comunidade. A senhora seguinte conta que nunca sai sozinha de casa, mas ao oferecer sua solução para o impasse, menciona uma faca artesanal e a presença de espíritos que a acompanham desde pequena. As moscas no arame deixam de ser simples metáfora da trajetória dessas mulheres para se transformarem num desdobra-mento físico, no mundo real, para isso que elas experimentam cotidianamente. E para conseguir enxergar a natureza que cerca um determinado grupo de pessoas contando a história desse grupo, é preciso a consciência de que mesmo aquilo que é muito bom ainda assim não está completamente feito – não enquanto houver um cineasta disposto a completar a moldura com as suas próprias descobertas.

“bem-vindos à ilha da fantasia: aqui só se diverte quem consegue sonhar”

Outro filme de João Moraes, este em parceria com Eduardo Souza Lima, é exemplo bem definidor de uma postura que seria adotada, em medidas diferen-tes, por diversos outros cineastas nessa última década. Em O Evangelho Segundo Seu João (2006), conhecemos um mestre da Folia de Reis que, para explicar as origens de sua manifestação folclórica, chega a reinventar a Bíblia. E em nenhum momento duvida-se que João Inácio tenha o direito à reescritura da história sagrada (ela mesma uma reescritura livre do real, em certo sentido), e o filme não duvida desse poder. Pelo contrário: admitindo a ilusão que serve tão bem à realidade do personagem, o que veremos é um trajeto ainda mais complexo que o de N’Goma, pois agora os cineastas buscarão no mundo os indícios que corroborem dessa ilusão, e assim o relato de uma explosão de fu-maça oferecido pelo folião se transforma naturalmente no plano de uma nuvem no céu que, recortado da maneira certa e com o tempo preciso (prerrogativas básicas da função do cineasta: saber onde colocar a câmera e quando cortar),

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é a transliteração perfeita daquele relato. Mais ainda, esse sujeito que vira o cristianismo pelo avesso é filmado no interior de uma igreja, sinal maior da gentileza que o filme tem para com seu personagem – mesmo consciente das falhas no discurso, não comungar dessa fantasia, não transformá-la em imagem de cinema articulada, seria ir contra a tudo o pendor incrível para a oralidade desse senhor oferecia.

São filmes que se permitem sonhar, onde o único terreno pronto e seguro é o da linguagem cinematográfica e suas convenções e desventuras, porque todo o resto está aí para ser construído. O que seria Manada (2005), de Luiza Lubiana, se não uma espécie de refundação da mitologia criadora do povo capi-xaba? Ainda impressiona o vigor com que o filme nos apresenta um mundo tão particular, tão híbrido em todas as suas misturas de referências, e ainda con-segue nos convencer (por 15 minutos que seja) que aquele também pode ser o nosso mundo, que não há fantasia que não possa soar tão orgânica e, portanto, tão paradoxalmente real. A mulher branca perdida no deserto – sabemos que é Itaúnas, mas cremos no deserto – que parte em busca de um novo coração e o encontra com o guerreiro de uma tribo de caçadores de búfalo tem uma trajetória tão errática quanto a da própria câmera, que também procura por algo novo e faz do céu o espaço de suas tentativas. Vários planos terminam com um giro da câmera na direção do céu, o mesmo em que uma manada de búfalos se desenhou na imaginação da mulher branca. É como se, para se efetivar como mitologia renovada, esta história precisasse cumprir o mesmo caminho de todas as outras histórias: primeiro uma impressão, uma suspeita do homem na relação com os fenômenos naturais, depois o encontro com iguais, a formação de comunidades e aí então a ratificação dessa história em lenda oficial e tradi-ção oral. Como o mestre folião de O Evangelho Segundo Seu João, Manada termina com um narrador discorrendo em palavras tudo aquilo que viramos no filme, como se confirmasse a entrada dessa fantasia no mundo das coisas reais.

É do delírio com essas coisas reais que vive também Enquanto Houver Fan-tasia, um irmão distante, mas igualmente poderoso, de A Sabotagem da Moqueca Real, filme que Ricardo Sá fizera quatro anos antes. Habitando o espaço urbano da capital e de Vila Velha, o filme talvez se localize num futuro próximo ou sim-plesmente numa dimensão paralela que ocupa o mesmo lugar da original, mas de todo modo novamente vemos uma história de refundação do mito formador, dessa vez encenado através do pastiche. Seu Manoelzinho posa como mestre de cerimônias desse universo parecido com um desenho animado rodado em live-action como se fosse um Orson Welles marginal para um Pasolini púbere (e isso porque eis aqui um filme católico e comunista ao mesmo tempo, tal qual

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o cineasta italiano). E o mais curioso de sua presença ali é que, repensando as idéias dos grandes símbolos identitários capixabas, Ricardo Sá coloca uma banda de congo para receber visitantes no aeroporto no melhor estilo macum-ba-para-turista, enquanto o tratamento dado a Manoelzinho é de um respeito e admiração notáveis – eis o correspondente direto da panela de barro para o cinema daqui, um cineasta rupestre, como alguns dos desenhos em pedra que aparecem em Manada. Mas diference de Luiza Lubiana, aqui Ricardo Sá encerra esse novo começo da história dentro da própria história, forjando um palco total das representações da origem onde se misturam um arremedo de presépio, a crucificação de Cristo e a trama de um amor proibido entre uma índia, um via-jante dos tempos pré-coloniais e um rapper bastante limitado. Conviver com a cidade significa transcendê-la e transformá-la nessa ilha da fantasia onde nada é certo e, por isso mesmo, tudo é passível de se fazer. Mas essas são os finais felizes. Para outros cineastas, o encarceramento no espaço urbano e também no espaço rural os força a lidar com a materialidade desses lugares, e buscar alternativas que não demandem novas realidades ou novas origens.

“fazer cinema é uma coisa boa na vida”

Dois dos traços mais marcantes dessa geração foram anunciados já bem no começo da década, com os filmes que devolveram a fé do cinema local de que algo produzido aqui podia (e tinha o direito) de alcançar alguma relevância para além dos limites do Estado. Em Macabéia (2000) está posta uma relação problemática com o espaço urbano contemporâneo que, com forças iguais, oferece oportunidades para o encontro e a troca de afetos e, ao mesmo tempo, é espaço para o funeral dessas ilusões. Já Baseado em Estórias Reais (2002) traz uma primeira postura diante desse ruído, que é a possibilidade da bipartição dos relatos, de modo a que se complementem, se relativizem ou simplesmente se oponham numa dialética do drama.

Nunca Mais Vi Erica (2006), de Lizandro Nunes, talvez seja o exemplo mais acabado desses dois traços. Primeiro, o filme estabelece uma belíssima rela-ção com um espaço afetivo muito caro a várias gerações (a Rua da Lama), e registra isso de maneira sem igual nos últimos anos – temos aqui talvez o filme mais bem fotografado da década, não só porque use muito inteligentemente a flutuação da câmera pela geografia humana do lugar e saiba recortar bem este espaço mas, sobretudo, porque o tempo inteiro a câmera está significando este espaço, compondo rostos com as luzes da cidade, rostos com outros rostos, objetos com objetos, criando relações que exigem que se volte ao filme muitas

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vezes para aproveitar esses detalhes. Até que, como numa sessão de cinema em que o projecionista confunde os rolos, tenha início um filme completamente diferente, este de horror e perversidade, de uma degradação da experiência hu-mana que em nenhum momento podia ser antevista na primeira parte. Erica, a louca, se revela apenas por intervenções de montagem, em que vemos sua ex-pressão transtornada por um mal que, ainda no bar, sequer sonhávamos existir. E, no entanto, depois que toda a tragédia se dá (e ela é gráfica), o filme retorna no tempo e nos mostra que a maquinação deste mal se deu ainda naquele espa-ço aparentemente generoso e seguro. Um dos problemas desta cidade é que ela não aponta criminosos e inocentes, todos devidamente embalados no plano-sequência de abertura, mas cujo julgamento o filme promove sem nos preparar para isso. E os criminosos saem ilesos.

Na passagem para os interiores, a dinâmica não muda muito. É curioso observar, por exemplo, com um filme como Até Quando (2008), de Gustavo Moraes oferece aparências diametralmente opostas entre espaços e narrativas complementares, mas sempre com os sinais invertidos. Cabe ao dourado da praia as mais gélidas considerações, onde um pai vai ao limite da ética na ten-tativa de salvar seu filho, mas é estranhamente no ambiente frio e cinzento no hospital em que a criança se trata que encontramos o verdadeiro calor do filme – e mesmo que se relacionem, o primeiro espaço nunca consegue se aproximar do segundo, e por mais que acompanhemos o drama deste pai, é no filho e nas relações que ele estabelece dentro do hospitais que se localiza a verdadeira identificação. Já em Avenca (2009), de Erly Vieira Jr., o calor dos interiores é factual, repele naturalmente esta mulher solitária em casa à rua. Seus contatos com o resto do mundo são todos “institucionais”, digamos: vizinhos barulhen-tos, um celular que só recebe mensagens de propaganda da operadora, uma caixa de correio que não traz nenhuma correspondência pessoal. Ela até tenta escapar para um outro espaço similar (busca alguma coisa nos classificados de um jornal), mas logo abandona a idéia. Reclusa em suas manias, ela parece finalmente se libertar dessa armadilha auto-imposta mas, quando chega à rua, não consegue se comunicar também com o que ela oferece, e passa a repetir seus gestos no interior (limpar poeira obsessivamente), só que agora em escala maior. O palco do desterro apenas se amplia, mas não convoca a uma transfor-mação. O que se tem, no fim das contas, é apenas um corpo que parece falir por desistência e com o qual a câmera não assume nunca a postura de testemunha, mas a de cúmplice mesmo.

Essa é uma evolução notável dentro deste panorama de filmes: o redimen-sionamento do corpo humano dentro do espaço arquitetônico do cinema e as

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maneiras como, em não se podendo reformar espaços, o que se refunda é a própria história do homem. Em registros fabulares diversos, é o que fazem Saudosa (2005), também de Erly, No Princípio era o Verbo (2005), de Virginia Jorge e Agrados para Cloê (2008), de Jefinho Pinheiro. “E o verbo se fez carne, e armou tenda entre nós”, é o que diz a inscrição bíblica que abre o filme de Virginia. Há agora uma possibilidade real de transformação da experiência humana pela palavra, pelo confronto verbalizado com as intenções desse mundo inabitável, e o resultado disso é uma reconfiguração física mesmo, da própria carne. É o menino que vira caixa de papelão para escutar melhor aquilo que os ruídos da cidade o impedem de perceber, a forja de um casal improvável na merendeira de meia-idade e de um pré-adolescente, a tentativa de materializar num objeto presenteável (o agrado que nunca vemos) aquilo que os próprios corpos, de alguma maneira, se encarregam de fazer. Gente cega, travestida, e uma menina que carrega tatuagens que revelam seus segredos, mas que ela preserva apenas para o encontro libertador com um rapaz que passa o tempo inteiro an-dando, ainda que manco. A metalinguagem é um desdobramento natural neste momento em que, brechtianamente, os homens passam a ser, ao mesmo tempo personagens e narradores de si mesmo, os atores passam a trabalhar num regi-me de distanciamento (naturalista, com Virginia, e não-naturalista com Jefinho e Erly), tornando sua expressão corporal um elemento passível de citação. E uma outra humanidade só pode engendrar um outro tipo de cinema.

É onde parece estar Meninos (2009), de Ursula Dart, um filme que já aponta para os próximos dez anos desta história do cinema capixaba que ainda está por se descobrir: é o resumo de todas essas características traçadas até aqui e, ao mesmo tempo, o primeiro passo adiante. Entre todos os meninos que sur-gem no teste de elenco que abre o filme, Ursula parece escolher um dos mais desinteressantes, não completamente conquistado pelo encanto de protagonizar um filme, e que resume suas atividades fora da escola com um “eu fico brincan-do com meus carrinhos sozinho” – portanto, um personagem completamente disponível à feitura, e que, ao longo do filme, transformará nossa idéia do que é ser interessante e “bom”, como dizia o sambista lá de Anjo Preto. A dinâmica estabelecida entre a câmera e o menino abre mundos inteiros para fora da ima-gem (sobretudo quando relaciona o menino à televisão que ele insistentemente assiste, ela mesma um universo de imagens dentro da imagem, uma janela à sua maneira). Há um encarceramento evidente e literal, uma vez que o menino abandona os grandes espaços abertos da escola e da rua para se trancar em casa por trás de uma grade que merece atenção especial do filme, e ao mesmo tempo nunca se tenta governar a libertação que os pequenos elementos que

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preenchem seu cotidiano possam lhe oferecer – nunca saberemos com quem ele brincava de virar figurinhas ou com quem lutava com uma espada de plásti-co, mas o vimos em seu formato menino-da-caixa-de-papelão, vendo e ouvindo coisas que a nós não são dadas a conhecer, mas que sua simples presença e agitação em quadro afirmam estar lá, uma forma particular de fantasia. E quanto ao corpo? Observamos a mecânica da vida deste menino, mas ele não parece fazer nada diferente do que normalmente faz. O que se corporifica aqui é a câmera. É ela quem se faz carne, que se apresenta como objeto da ação mesmo que nunca apareça, que peça para não ser notada. O filme participa da solidão do menino, e assim se faz companheira dele e, ao mesmo tempo, tão solitária quanto ele. No último plano de Meninos, depois que a mãe do garoto chega do trabalho e agora cumpre o papel que Ursula cumprira até então, vemos um plano geral do lado de fora da casa, o portão fechado e aquele espaço já vedado à câmera. E é palpável que, neste momento, o filme sinta saudade de tudo o que acabou de viver. Não é uma imagem nostálgica, mas uma imagem que experi-menta a nostalgia, como se fosse gente. E é.

E, no entanto, ela está longe de ser definidora da “imagem capixaba”, por-que essa talvez não exista mesmo. Mas há todo um cinema que se debate com essa questão, e isso porque são filmes que dizem res-peito intimamente ao tempo

e ao espaço em que foram realizados, e muitas vezes nos fazem substituir o mundo real por esse mundo registrado de formas tão diversas por todos esses cineastas. Não entendemos o cinema feito aqui quando buscamos suas chaves de compreensão numa idéia do que seja o Espírito Santo. Mas o Espírito Santo, certamente, fica um pouco mais fácil de entender quando chegamos aos filmes que nele se realizaram. E há ainda muitas gerações pela frente.

(...) são filmes que dizem respeito intimamente ao tempo

e ao espaço em que foram realizados (...)

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Logo se completam duas décadas que o cinema do país passou por seu mo-mento de, provavelmente, maior desarticulação. Em um não tão longínquo 1992, diante de uma política de estado comprometida em não mais financiar projetos, somada a uma baixa de público observada mundialmente a partir da ampliação da cultura televisiva e do VHS, apenas dois filmes nacionais foram lançados no mercado exibidor (Filme B, 2008). Constituiu-se, então, a ocasião perfeita para o retorno esmagador de circulação de títulos estadunidenses, fato verificado até hoje já em um cenário distinto para produtores e espectadores.

Do tempo em que o filme nacional era considerado praticamente um gênero único – não importando se a obra em questão era um documentário ou uma ficção, ou seja, tudo estava embutido na amálgama pejorativa chamada “filme brasileiro” – e do mesmo tempo em que até aqueles mais versados na lingua-gem cinematográfica tinham seus momentos de “cumprir tabela” ao prestigiar a cinematografia do país, caminhou-se até 2010. Nesse ano, a ficção Tropa de Elite 2 tornou-se a produção mais vista da história do cinema brasileiro e também a maior bilheteria registrada. E não coube, exclusivamente, ao filme de José Padilha a tarefa de rebocar espectadores para as salas de exibição, uma vez que a comédia, a temática infantil e a temática espiritualista também foram primor-diais para participação de mercado do cinema nacional chegar a 18% - o mesmo dado em 1992 apontava para uma participação de 0,5% (FILME B, 2010).

Diante do tom otimista, parece fácil desprezar as tantas sessões de Bruna Surfistinha ou os já incontáveis filmes da “franquia” Chico Xavier mantidos, com fôlego, em cartaz. No câmbio de impressões da crítica informal de cinema entre amigos, é possível se dar ao luxo de dizer: “Desta vez eu passo, o filme brasi-leiro não anda mais tão precisado de mim. Quando sair em DVD, quem sabe...”. Em contrapartida, enquanto o cara cinéfilo já se sente à vontade para recusar uma ou outra história, um público mais irrestrito, com origens e referências múltiplas, volta a ser arrebatado pelo filme nacional capaz de chegar até ele por meio de grandes salas, no mesmo lugar onde, ocasionalmente, assiste a su-perproduções. Todavia, para chegar a frequentar o mesmo espaço em que está esse público vultoso, é preciso ter o suporte de uma distribuidora, tarefa que parece ainda complicada para a grande maioria das produções, feitas, via de

[Pesquisa]O negócio audiovisual no Espírito Santo por Joyce Castello1

[1] A autora é graduanda do curso de Comunicação Social - Jornalismo da Ufes e coube a ela a tarefa organizar em forma de artigo um trabalho construído coletivamente. Participaram também da pes-quisa, financiada pela Fapes (Fundo de Amparo à Pesquisa do Espírito Santo), os seguin-tes colegas: Carolina Ruas, Cristiana Euclydes, Haroldo Lima, Karina Araújo e Ra-phael De Angeli. As reflexões contidas aqui fazem parte do estudo A Referência Perseguida – Produção de Sentido e Identidade no Audiovisual Capixaba Contem-porâneo, coordenado pelo prof. Alexandre Curtiss e realizado pelo Grav (Grupo de Estudos Audiovisuais – projeto de ex-tensão e pesquisa inscrito no CNPq) durante o ano de 2010.

ResumoO artigo traz um relato de pesquisa sobre o cenário da produção audiovisual lo-cal, com foco nos modos de funcionamento da cadeia produtiva neste setor, consi-derando o incremento da in-dústria audiovsiual em todo o país. Aborda desde questões relativas ao contexto da rea-lização no ES e da busca de incentivos pelos produtores locais até a formação de pú-blico através de iniciativas de ampliação do circuito exibi-dor alternativo.

Palavras chaves: audiovisual capixaba, cadeia produtiva

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regra, com orçamento apertado e sem inserção midiática. Isso ocorre porque, apesar do bom momento, dois gargalos ainda se impõem de modo severo: o da distribuição e o da exibição.

Fora os problemas mais pontuais de distribuição e exibição, a produção comporta debilidades e ajuda a compor um tripé que pode parecer dissolvido frente aos sucessos emplacados pelo eixo Rio-São Paulo, mas que no vizinho Espírito Santo constitui uma barreira visivelmente sólida. Nenhum capixaba vai abrir mão de conferir um filme local em cartaz no shopping por motivo simples: não existe esse filme por lá. Os agentes locais precisam constantemente buscar formas alternativas de circulação de seus produtos e é raro conseguir viabilizá-los comercialmente.

Percepções sobre o mercado local

Até então, poucas reflexões foram elaboradas sobre o cenário local de cinema e vídeo que, em pouco tempo, tem sido capaz de buscar um entendimento mais mercadológico de sua produção por meio de rodadas de negócio; de apontar para uma maior institucionalização do setor, ao buscar profissionalização e investimentos; e de resgatar para si o ânimo e as condições necessárias para a realização de longas-metragens – quando, os curtas-metragens de ficção são o carro-chefe de um catálogo a ser incrementado.

O trabalho de formação de uma cadeia audiovisual capixaba exige – sim, exige – o fortalecimento dos meios de produção e, sobremaneira, o dos meios de distribuição e de exibição, ainda tão precários e frágeis, para ser capaz de engendrar verdadeiros elos complementares para o setor. De outro modo, devem continuar bastante decalcadas de uma realidade mercadológica as ten-tativas de superar a descontínua produção de curtas-metragens independentes, distribuídos de forma artesanal/amadora e exibidos, na maior parte, no circuito de festivais de cinema e nas escassas parcerias conseguidas com canais de televisão.

Em outra frente rumo a uma cadeia produtiva profícua, também existe a missão de formar público para além das salas de cinema multiplex, que rara-mente contemplam a produção local em suas programações. Dentro do regime possível de contrapartidas encontradas, é prevalente o circuito exibidor paralelo, composto por festivais, mostras, pelo movimento cineclubista e pelos pró-prios cineclubes, espaços geralmente interessados em pensar e difundir obras cinematográficas de diversos gêneros e formatos. Não porventura, a sede do Conselho Nacional de Cineclubes (CNC) está localizada no município de Vila

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Velha e, atualmente, há 31 cineclubes estaduais entre os filiados. De modo orga-nizado, os articuladores locais têm se movimentado pela criação e consolidação de um órgão para atuar em nível estadual, capaz de gerar ações coesas, de criar frentes de representação junto ao CNC e de pressionar o poder público de maneira propositiva. Um estatuto e um plano estratégico já foram aprovados e a ideia é não permitir que o projeto atual estacione, tal qual o de uma Federa-ção Capixaba de Cineclubes, que apesar das contribuições até a década de 90, encontra-se fora de atividade desde então.

A relação com os meios de incentivo

Durante os anos 2000, o número de filmes catalogados pela ABD Capixaba (Associação Brasileira de Documentaristas e Curta-Metragistas) ultrapassou os 50 títulos, reiterando o curta-metragem de ficção como o principal produto audiovisual do estado. A “predileção” pelo curta pode ser explicada, em parte, por questões estratégicas, uma vez que os recursos disponíveis, públicos ou privados, limitam a realização de projetos maiores. A principal financiadora desse formato tem sido a Lei Municipal de Vitória n.º 3.730/1991, que lançou o “Projeto Cultural Rubem Braga”. A Lei Rubem Braga concede incentivos fiscais a empresas estabelecidas na cidade de Vitória que financiam projetos culturais selecionados por sua Comissão Normativa.

Por ser uma lei municipal direcionada para projetos culturais de diversas naturezas, a Lei Rubem Braga adota medidas de renúncia fiscal e a Câmara de Vereadores aprova orçamentos anuais entre 2 e 3 milhões de Reais – dos quais são destinados a projetos ligados a cinema algo em torno de R$ 500 e R$ 600 mil, em um retrospecto recente. Com o interesse crescente em se produzir ci-nema em todo o estado, logo ficou claro que somente uma lei municipal não se-ria o suficiente para financiar a demanda de projetos propostos. Principalmente porque a lei se compromete em beneficiar apenas os produtores residentes na capital, excluindo os demais 77 municípios do processo.

Em vista da carência de meios de incentivo, a experiência da Lei Rubem Braga foi expandida para outros municípios da região metropolitana. Cada lei municipal foi formulada com suas particularidades, mas todas se baseiam no mesmo mecanismo de renúncia fiscal para incentivar projetos culturais e, em comum, costumam manter a prática de picotar seus orçamento já reduzidos en-tre um número maior de proposições, de modo a levar à frente uma política que, plenamente, não contempla ninguém. A ciranda do incentivo tocada por essas bandas acaba por impor, no caso aos projetos audiovisuais, muitas vezes uma

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completa reformulação – e até mesmo descaracterização – do que foi aprovado, em virtude dos cortes na verba designada para a proposta. A proposta recebe o aval, mas impera a ressalva do dinheiro e, aí, é pegar ou largar.

Se as esferas municipais trabalham exclusivamente com a renúncia fiscal, um crescimento no volume de verbas destinadas à atividade tem sido observa-do, em grande parte, em decorrência do maior número de editais lançados pelo Governo Estadual. A partir de 2009, começou a vigorar o Fundo de Cultura do Estado do Espírito Santo (Funcultura), de onde são extraídos os recursos distri-buídos. São cerca de R$ 2 milhões investidos diretamente em projetos culturais de toda natureza e, já no primeiro ano, a Secretaria de Cultura do Estado do Espírito Santo (Secult-ES) empenhou parte dessa verba para o lançamento do primeiro edital de longa-metragem de baixo custo, concedendo ao proponente R$ 500 mil para execução do roteiro selecionado. Nesse caso, se o projeto que corresponde a um quarto de toda a verba disponível já é de baixo-orçamento, é fácil supor que o restante do montante, dividido para todos os outros agentes culturais, não vai ter a abrangência necessária. De todo modo, não parece justo deixar de contemplar um formato ou uma manifestação por ser mais dispendio-sa, seja ela qual for. A questão esbarra, novamente, na escassez de recursos que rondam a cultura.

Os diretores Rodrigo de Oliveira e Vitor Graize filmaram no ano seguinte, entre as cidades de Anchieta e Vitória, As Horas Vulgares, projeto contemplado pelo edital de longa-metragem de baixo-orçamento. A obra finalizada deve ser lançada em breve e o edital foi reaberto até outubro de 2011 para que um novo projeto ganhe financiamento público. É justamente essa sucessão de aconte-cimentos que deve, aos poucos, confrontar a ideia inicial de que o estado, por meio de financiamento público, só comporta a produção de um longa a cada dois anos – intervalo de tempo estipulado entre cada edição do edital. Ainda a favor da produção local, vale dizer que, só em 2010, pelo menos outros três títu-los foram realizados em solo capixaba: A onda da vida de José Carlos Muleta, um filme de surfe e aventura patrocinado por empresas privadas; La Serena, ficção em vídeo de Giandro Gomes, gravado no município de Muniz Freire (produção de baixo orçamento produzido com financiamento do município); e A Noite dos Chupa-Cabras, ficção de horror de Rodrigo Aragão.

Situação semelhante só havia ocorrido em 1992, quando foram produzidos Vagas para moças de fino trato, de Paulo Thiago; Lamarca, de Sérgio Rezende; Fica Comigo, de Tizuka Yamasaki; e O amor está no ar, de Amylton de Almeida – todos financiados pelo Banco de Desenvolvimento do Espírito Santo (Ban-des). Naquela época, cada projeto contemplado recebia o dinheiro e, depois de

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pronto, as ações do filme eram passadas ao poder do banco credor, que recebia pelos eventuais lucros, no esforço de quitar o valor financiado. Tais produções estavam reunidas em torno da iniciativa de um pólo de cinema local que tão logo deixou de existir, acompanhando o restante da cinematografia nacional, esvaziada de investimentos.

Em 2011, os investimentos do Governo do Estado em cultura devem alcan-çar R$ 90,7 milhões (0,7% do orçamento), valor que supera com folga o ano anterior (R$ 34,5 milhões - 0,3% do orçamento). O grande porém é que, via de regra, esses recursos só atendem ao elo de produção de cinema e vídeo, dei-xando a distribuição e a exibição à mercê de acasos – a iniciativa privada local, por exemplo, não conserva a tradição de apoiar ou patrocinar iniciativas sem retorno de marketing garantido.

Os mecanismos de incentivo federal que, por sua vez, têm representado um importante estímulo à produção cinematográfica do país desde a Era da Retomada, ainda não conseguiram contemplar de forma satisfatória os projetos do Espírito Santo. A Lei Rouanet, um dos mais volumosos mecanismos para o incentivo à cultura do país, tem cerca de 80% dos recursos captados pela região sudeste. Entretanto, o Espírito Santo, aparece com uma participação em torno de 1%, segundo os dados do Ministério da Cultura (MinC) para o período de 2003 a 2009.

A porcentagem exposta demonstra a fragilidade dos produtores culturais do estado em acessar os recursos federais, mas nota-se também a quantidade inexpressiva de projetos submetidos à seleção. Em 2009 e 2010, relatórios do MinC divulgaram que os proponentes da Região Sudeste apresentaram 8.516 projetos para serem avaliados segundo as regras do mecenato (Lei Rouanet). Do total apresentado, têm-se 99 projetos, ou seja, 1,16% de todas as propostas do Sudeste levadas à apreciação do governo em primeira instância.

A dificuldade em acessar recursos, por falta de informação ou por dificul-dades jurídicas – ainda que várias ressalvas mereçam ser feitas à Rouanet –, traduz um mercado instável e ainda desorientado diante das demandas de profissionalização do setor. A falta de estratégia sugere a necessidade de investimentos também para a capacitação de profissionais, assim como a or-ganização dos agentes audiovisuais em associações que formulem propostas e alcancem maturidade para estruturar o nicho e compreender o mercado e seus elos produtivos.

É chamada também a participação da iniciativa privada, necessária para consolidar uma cadeia audiovisual saudável não limitada a recursos públicos. Na construção dessa integração entre realizadores, setores público e privado,

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algumas propostas atuais mostram-se consistentes, como a estruturação de um novo Pólo Estadual de Cinema para atuar com diretrizes bem estabelecidas no fortalecimento do audiovisual, qualificar mão de obra, gerar empregos, ter bom trânsito em TVs locais e atrair investimentos. Paralela a essa estrutura, o Go-verno Estadual também considera a criação de uma Film Comission (FC) que deve atuar no intuito de atrair diretores e produtores para que vídeos e filmes sejam feitos em locações capixabas. Ao trabalhar em parceria com o setor de turismo, surgem possibilidades de investimento, principalmente, em decorrência da variedade de paisagens a serem exploradas – praias, montanhas, mangues e serras - sem a necessidade de grandes deslocamentos.

Para evitar a provável desvantagem em relação à competição estrangeira por locações, o poder público considera apresentar facilidades como isenção tributária, serviços grátis de despachantes aduaneiros, assessoria de legislação e de planejamento estratégico. Em caráter complementar, deve ser pensada a necessidade de capacitar os profissionais para preencher toda a sorte de cargos disponibilizados pelo setor.

Em uma consonância prévia, a própria academia já cuidou de criar condi-ções para que novos agentes qualifiquem-se para atuar no ramo de cinema e vídeo. No segundo semestre de 2010, começaram as aulas de graduação da habilitação de Audiovisual pelo Departamento de Comunicação Social (Depcom) da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), a fim de formar academica-mente mais agentes para o setor.

Entendimento mercadológico

A despeito das boas perspectivas percebidas aqui e acolá – o filme nacional voltou a ter público e prestígio –, não é tão pertinente falar em indústria cinema-tográfica no Brasil. Ao trazer a questão para a dinâmica local, um estudo inédito da cadeia produtiva do estado, apresentado pelo Instituto Gênesis da PUC-Rio (2010), demonstra que mais da metade das produtoras mapeadas tem menos de cinco anos de funcionamento e quase 90% constituem-se como micro ou pequenas empresas. A partir desses dados, é possível inferir que o setor, apesar de ainda instável, se organiza, aos poucos, como um modelo de negócio pertinente.

No âmbito nacional, as micro, pequenas e médias empresas são as orga-nizações privadas mais comuns no setor cultural. Contra a imprevisibilidade do mercado e a dificuldade de tornar visíveis seus projetos, essas instituições correspondem, segundo Yúdice (2007), a 93% do contingente que opera no se-

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tor cultural brasileiro. Frente a um mainstream bem estabelecido e consolidado, resta a essa maioria “reduzida” buscar alternativas para a promoção e distribui-ção de iniciativas que contemplem a diversidade das expressões culturais. Sem a companhia das grandes empresas, as produtoras do estado de maior destaque e economia saudável são justamente aquelas caracterizadas por trabalhar em áreas diversificadas, como a produção de festivais e eventos ligados ao audiovi-sual e a realização de oficinas de formação. Além das frequentes parcerias em que o poder público é cliente ou financiador das ações propostas.

Na ocasião da pesquisa de campo do Gênesis, foram entrevistados os responsáveis por 26 produtoras nos municípios de Vitória e Vila Velha. É certo que esse número não compreende a totalidade de agentes envolvidos no ne-gócio audiovisual, mas os dados obtidos junto aos profissionais consultados já permitem especular, por exemplo, sobre algumas tendências no setor. Recor-rentemente, não é viável que a finalidade única dos trabalhos seja a produção de filmes.

No mesmo cenário, a terceirização de serviços é constante e pode ser expli-cada a partir dos três gargalos de produção identificados: carência de mão de obra; falta de treinamento; e escassez de profissionais qualificados. Além dos gargalos, “o estado não dispõe de infraestrutura suficiente e atualizada para dar conta da dinamicidade e das constantes inovações tecnológicas” (INSTITUTO GÊNESIS DA PUC-RIO, 2010) do segmento.

Organizações como a ABD Capixaba têm o mérito de reunir e quantificar os agentes do audiovisual surgidos isoladamente no Espírito Santo, fornecendo-lhes um ponto de referência. No mercado local, cuja maior parte dos reali-zadores atua de maneira independente, uma organização instituída torna-se indispensável para lidar com as demandas políticas e proteger os interesses do setor, inclusive no que concerne à reivindicação de políticas públicas a distri-buição do acesso às leis de incentivo fiscal.

Em relatório apresentado durante o Seminário de Comercialização de Conteúdos Audiovisuais de Curta Duração (Curta e Mercado), promovido pela Associação Kinoforum durante o 21º Festival Internacional de Curtas-Metragens

Quanto às atividades desenvolvidas pelas produtoras entrevistadas, há uma primazia em torno da produção de “documentários” (assinalado por 42% das entre-vistadas); seguido por “campanhas políticas”; “cober-tura de eventos sociais (festas e etc.)”; “produção de eventos culturais” e “produção publicitária”, nesta or-dem. (INSTITUTO GÊNESIS DA PUC-RIO, 2010, p158)

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de São Paulo, exibidores e distribuidores apontaram novamente para a parti-cipação inexpressiva do estado nas grades de programação. Alexandre Cunha, representante do Canal Brasil, principal veículo de televisão na exibição de curtas-metragens, revela que dos 1.231 vídeos (dados apurados até julho de 2010) passados no canal, somente cinco são capixabas. Isso representa 0,4% da produção nacional, sendo que 69% do que foi veiculado é originário da região Sudeste. Segundo ele, essa participação pouca expressiva é resultado da “falta de informação sobre como divulgar o seu produto e do pouco planejamento de janelas para exibição” (CUNHA, 2010).

Pesquisa: A Referência Perseguida

A disposição para elaborar, ainda que em caráter incipiente, um estudo crítico sobre a cadeia audiovisual local, surgiu no grupo Grav (Grupo de Estudos Au-diovisuais – projeto de extensão e pesquisa inscrito no CNPq). Foi necessário ir a campo para documentar as situações e personagens dispersas no microcos-mo de vídeo e cinema capixaba, compondo-se assim um trabalho com um tom etnográfico – a iniciativa acadêmica valeu-se, principalmente, de entrevistas.

Para adentrar por entre as dinâmicas mercadológicas locais, a pesquisa A Referência Perseguida – Produção de Sentido e Identidade no Audiovisual Capixaba Contemporâneo, realizada em 2010, pelo grupo, com o financiamento da Fapes (Fundo de Amparo à Pesquisa do Espírito Santo), optou por pormenorizar o trabalho de cinco produtoras locais. Em frentes de atuação distintas, elas são capazes de sinalizar para um incremento das atividades ligadas ao segmento de cinema e vídeo, além de contribuírem, por meio de seus trabalhos, para que o investimento em cultura seja encarado cada vez mais como um investimento viável, gerador de empregos e renda.

Por sua relevância histórica, cultural e mercadológica, foram escolhidas as seguintes produtoras: i) Verve Produções e Consultoria, primeira produtora a ser legalmente fundada no Estado, e que atualmente mescla trabalhos de consultoria ambiental com projetos cinematográficos; ii) a Mirabólica Comércio, Assessoria e Consultoria Ltda., tida como a empresa de maior caráter comercial e comprometida com o desenvolvimento de linguagens para o vídeo e para a TV; iii) a Fábulas Negras Produções Artísticas Ltda., metonimicamente repre-sentada por Rodrigo Aragão, responsável por tramas de horror de baixo custo e de bastante prestígio no circuito alternativo; iv) a Galpão Produções Artísticas e Culturais Ltda., identificada como a produtora com maior volume de negócios, e que trabalha fortemente com a participação em editais e leis de incentivo; e v)

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a Patuleia Filmes e Produções Ltda., que se destaca no filão de documentários autorais e na oferta de oficinas de formação audiovisual. Como é possível verifi-car, cada produtora percorre trajetórias distintas e por isso mantém perfis bem definidos, o que possibilita a atuação em nichos, de modo a atender demandas específicas do mercado.

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Esta revista foi produzida pelo Grupo de Estudos Audiovisuais da Universidade Federal do Espírito Santo. Os textos foram compostos pelas tipografias Aaux, DinPro e Aachen. O papel utilizado para o miolo foi o Offset 90g/m² e Supremo 250g/m² para a capa. Impresso na Gráfica GSA, Vitória - Espírito Santo. Setembro de 2011.

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