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Vinicius Massuchetto Representac ¸˜ oes da Teoria Marxista no Software Livre Curitiba 2012

Representações da Teoria Marxista no Software Livre

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Discute a inserção tecnológica e econômica do software livre através de uma ótica marxista na sociedade da informação. A partir da definição dos conceitos utilizados, faz um resgate teórico que justifica a utilização da teoria marxista para uma análise da atual sociedade com foco nas dinâmicas informacionais, e procura identificar os conceitos de propriedade, trabalho, produção e valor segundo os paradigmas colocados pelo modelo aberto de desenvolvimento de software. O estudo busca fazer uma análise das contradições presentes no modelo de mercado da propriedade intelectual, e como ele tem aos poucos utilizado a flexibilidade e capacidade inovativa do software livre para atingir suas demandas capitalistas.

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Page 1: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

Vinicius Massuchetto

Representacoes da Teoria Marxista no Software Livre

Curitiba

2012

Page 2: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

Vinicius Massuchetto

Representacoes da Teoria Marxista no Software Livre

Trabalho de Graduacao apresentado no cursode Bacharelado em Ciencia da Computacao daUniversidade Federal do Parana como requisitoparcial para obtencao do tıtulo de Bacharel emCiencia da Computacao.

Orientador: Luis Allan Kunzle

Curitiba

2012

Page 3: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

Trabalho de Graduacao do curso de Bacharelado em Ciencia da Computacao da

Universidade Federal do Parana sob o tıtulo de Representacoes da Teoria Marxista no Software

Livre, defendido por Vinicius Massuchetto e aprovada pela banca examinadora constituıda por:

Prof. Dr. Luis Allan KunzleOrientador

Universidade Federal do Parana

Prof. Dr. Alexandre Ibrahim DireneUniversidade Federal do Parana

Prof. Dr. Andre Luiz Pires GuedesUniversidade Federal do Parana

Page 4: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

Resumo

MASSUCHETTO, Vinicius. Representacoes da Teoria Marxista no Software Livre.2012. 74 f. Trabalho de Graduacao (Bacharelado em Ciencia da Computacao) – Departamentode Informatica, Universidade Federal do Parana. Curitiba, 2012.

Discute a insercao tecnologica e economica do software livre atraves de uma oticamarxista na sociedade da informacao. A partir da definicao dos conceitos utilizados, fazum resgate teorico que justifica a utilizacao da teoria marxista para uma analise da atualsociedade com foco nas dinamicas informacionais, e procura identificar os conceitos depropriedade, trabalho, producao e valor segundo os paradigmas colocados pelo modelo abertode desenvolvimento de software. O estudo busca fazer uma analise das contradicoes presentesno modelo de mercado da propriedade intelectual, e como ele tem aos poucos utilizado aflexibilidade e capacidade inovativa do software livre para atingir suas demandas capitalistas.

Palavras-chave: software livre, marxismo, sociedade da informacao

Page 5: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

Abstract

MASSUCHETTO, Vinicius. Representations of Marxist Theory in Free Software.2012. 74 p. Undergraduate paper (BSc. Computer Science) – Information Department, FederalUniversity of Parana. Curitiba, Brazil, 2012.

Discuss the technological and economical appliances of free software through theMarxist perspective in information society. Starting from some basic concepts, aims to justifythe use of the Marxism critique to analyse our current society, and tries to identify the conceptsof property, labour, production and value in the free software paradigm. The study aims to bean analysis of intellectual property contradictions, and how this model uses the flexibility andinnovation capacity of free software to reach capitalist goals.

Keywords: free software, marxism, information society

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Lista de Figuras

Figura 2.1 Mapa historico-generativo de termos e ideias do software livre . . . . . . . . . . . . 5

Figura 3.1 Marx na Internet: “Eu avisei que estava certo sobre o capitalismo” . . . . . . . . . 21

Figura 4.1 As profecias de Marx se concretizam . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26

Figura 4.2 As quatro restricoes do capital sobre o indivıduo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28

Figura 4.3 A regulacao exercida pela GPL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31

Figura 4.4 Programar software livre e uma pratica comunista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 58

Figura 4.5 Propaganda anti-Linux da Microsoft . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60

Figura 4.6 O paradigma de inovacao segundo o modelo aberto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 64

Page 7: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

Lista de Tabelas

Tabela 4.1 Porque os membros da comunidade contribuem com o Fedora Linux . . . . . . 55

Tabela 4.2 Criterios de escolha de software livre pelas empresas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59

Page 8: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

Sumario

1 Introducao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 1

2 Conceitos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 3

2.1 Software livre . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 3

2.2 Sociedade da informacao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 6

2.3 Marxismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 10

3 Marxismo como modelo teorico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 13

3.1 Uma alternativa de analise . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 13

3.2 O marxismo na era da informacao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 17

4 Relacoes dos conceitos marxistas com o software livre. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 23

4.1 Propriedade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 23

4.2 Producao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 32

4.3 Trabalho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 39

4.4 Valor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 51

5 Conclusao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 66

Referencias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 70

Page 9: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

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1 Introducao

Introduzir um tema cruzado que envolve o marxismo e a sustentacao de seus conceitos

no mundo da computacao nao e uma tarefa facil. Alem do acumulo teorico necessario, e preciso

lidar com os estigmas e interpretacoes antagonicas que inevitavelmente surgem no decorrer das

discussoes.

Analises sociais nao sao o foco dos cursos de Ciencia da Computacao, e embora neste

contexto existam algumas dificuldades no desenvolvimento teorico de um trabalho cientıfico

com um foco social, entende-se que um olhar diferenciado nas particularidades do mercado da

informatica sejam de grande relevancia para a compreensao de nosso momento historico.

Os conceitos e metodos utilizados para as interpretacoes aqui presentes nao sao

unanimes, e introduzem visoes que tambem podem nao ser as mais adequadas para outras

construcoes teoricas. Entende-se que este e um processo intrınseco da producao academica,

e acaba sendo, no final das contas, o grande impulsor do seu desenvolvimento.

O trabalho tambem deve ser compreendido dentro de suas limitacoes como um trabalho

de graduacao, e que se propoe a ser um estudo mais breve e pontual. As analises aqui presentes

sao adaptacoes para uma nova realidade historica, e constituem uma recente vertente de estudos

socialistas que tem como foco toda a sociedade atual. A cobertura abrangente do tema e o

devido tratamento de suas minucias requer outros ambitos academicos.

O Marxismo nao e uma religiao e nao pode explicar tudo, mas pode, no entanto,

oferecer uma diretriz de analise razoavel e que leve a investigacoes que afastam o determinismo

tecnologico tao presente no trabalho fortemente tecnico do desenvolvimento de software. Antes

de mais nada, este trabalho trata-se de uma tentativa de desmembramento das questoes de nossa

sociedade segundo um ferramental teorico que de enfase as dinamicas economicas colocadas

pelo software livre.

O software da maneira como o conhecemos e um bem bastante peculiar na sociedade

atual, pois ao contrario de outros produtos que sao comercializados ha centenas de anos

seguindo a mesma metodologia de troca, o conjunto de informacoes contidas em um programa

Page 10: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

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nao obedece as regras tradicionais do mercado. A comercializacao do software – ou da

informacao, quando tratamos o software de uma maneira mais ampla – levou a criacao de novos

mecanismos regulatorios respaldados pelo estado e suas instituicoes.

Neste contexto surge o software livre de uma maneira mais informal para atender

demandas academicas, e foi aos poucos integrando-se ao mercado e hoje mostra-se como

uma alternativa viavel as mais diversas aplicacoes. Possui como aspecto central a garantia de

distribuicao das informacoes que o compoem atraves de uma licenca livre, ou licenca copyleft,

e que impede que pessoas ou organizacoes possam apropriar-se dele de maneira exclusiva.

Se para garantir que o software fosse inserido nas condicoes tradicionais de mercado

se fez necessaria a criacao de mecanismos legais, o que pode-se fazer quando estes mesmos

mecanismos sao utilizados para proteger o livre acesso a informacao?

Neste contexto, o aspecto central que torna o software livre especial e exatamente a sua

capacidade de modificar e redistribuir as relacoes economicas ate entao existentes em outros

mercados. O paradigma de comercializacao de software deixa de ser somente fundamentado

por premissas que se aplicavam ate entao a produtos materiais.

Com base nisso, o trabalho busca em um primeiro momento, conceituar sua tematica,

e logo depois subsidiar a escolha dos parametros marxistas utilizados para analise, introduzindo

tambem autores que ocupam-se da mesma perspectiva para com o que chamaremos de

‘sociedade da informacao’.

Embora a apropriacao do metodo em questao seja difıcil atraves da divisao modular

de seus conceitos, uma separacao foi feita para fins metodologicos do que se entende por

propriedade, producao, trabalho e valor. A construcao das relacoes sobre estes conceitos

tem por finalidade uma familiarizacao das dinamicas de producao de software com o sistema

capitalista, e busca discutir suas enfases e impactos na sociedade atraves da exposicao de suas

contradicoes.

Page 11: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

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2 Conceitos

2.1 Software livre

Dentre as subdivisoes dos componentes de um computador, o termo software e

constantemente dissociado em conceitos menores e que sao usados pelos autores para atender

seus respectivos contextos. Para este trabalho, no entanto, uma definicao convencional e:

[. . . ] todos os componentes funcionais nao fısicos de um computador, eportanto, nao somente os programas em si, mas tambem os dados a seremprocessados por eles. (ENGELHARDT, 2008, p. 1, traducao e grifo nosso).

Esta definicao e especialmente util para fazer a diferenciacao entre software livre e

proprietario. A Fundacao do Software Livre – uma das principais entidade em defesa da

liberdade digital, definiu as quatro liberdades do software livre (STALLMAN, 2007).

• Liberdade 0: A liberdade de executar um programa para qualquer que seja a finalidade e

em qualquer condicao;

• Liberdade 1: A liberdade de estudar um programa e de modifica-lo como for desejado –

ter acesso ao codigo-fonte e uma condicao para esta liberdade;

• Liberdade 2: A liberdade de redistribuir copias de um programa, e assim ajudar outras

pessoas a ter acesso a este programa;

• Liberdade 3: A liberdade de melhorar um programa e de distribuir novas versoes para o

publico, e assim beneficiar toda a comunidade.

Tambem e necessario fazer a distincao entre software livre e gratuito, ja que a

traducao em ingles para ambas as palavras e free, e isso acaba gerando bastante confusao no

entendimento do conceito. Embora a maior parte dos softwares livres sejam gratuitos, temos

que boa parte dos softwares gratuitos nao sao livres segundo as quatro liberdades enunciadas

acima. Nestes softwares – os chamados freewares, existe uma liberdade muitas vezes restrita

Page 12: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

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para executar o programa, mas nao podemos ver seu codigo fonte e muito menos modificar e

redistribuir copias personalizadas dele.

Muitas pessoas nao familiarizadas com o conceito e suas interacoes de mercado

perguntam-se qual a vantagem de se desenvolver produtos em software livre ja que nao se pode

vende-los. Esta visao – que sera detalhada mais a frente – e a propria interpretacao do sistema

em que vivemos sobre os conjuntos de conhecimento gerados pela humanidade. Embora

o produto de software possa ser distribuıdo gratuitamente, o que esta sendo comprado na

maioria das vezes e o conhecimento tecnico atraves do trabalho humano em instalar, modificar,

melhorar, configurar e promover treinamento sobre um determinado produto.

Neste sentido, como o trabalho e colaborativo e transparente para os desenvolvedores,

o custo e distribuıdo entre as empresas interessadas em utilizar estes softwares. Novas

funcionalidades sao introduzidas a medida que demandas sao criadas e escolhidas para

implementacao, e versoes personalizadas de um produto principal podem ser criadas para

atender requisitos especıficos.

Porem, nao somente por estas questoes e que existe a preferencia pelo software

livre. Para o mercado de software de uma maneira mais especıfica, vemos a expressao destas

vantagens sendo frequentemente enunciadas pelos autores da area. Kaminsky (2009) lista uma

serie delas, sendo as principais:

• uma maior participacao de desenvolvedores pelo mundo todo, o que resulta em um

software mais revisado e seguro, ja que mais pessoas tem acesso ao codigo-fonte e sao

capazes de identificar suas vulnerabilidades;

• o aumento da dificuldade para formacao de monopolios de prestacao de servicos, pois as

solucoes estao disponıveis tambem para outras empresas que podem a qualquer momento

obter uma copia do produto em questao e prestar os mesmos servicos em relacao a ele;

• e possıvel que os recrutadores tenham um melhor conhecimento das habilidades dos

desenvolvedores ao seleciona-los para um determinado cargo, ja e possıvel tambem ter

acesso as contribuicoes dadas por eles aos projetos de software livre.

A fim de facilitar a compreensao das dinamicas da cultura livre, Shaver (2008) propoe

um diagrama de termos e ideias que, a partir do software livre deriva outras definicoes presentes

no mercado, resultando na enfase de algumas de suas qualidades.

Page 13: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

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Figura 2.1: Mapa historico-generativo de termos e ideias do software livre

Fonte: Shaver (2008)

Para este trabalho, no entanto, o valor fornecido pelo software livre a ser mais utilizado

e elementar, e tem a ver com a ideia de liberdade tao presente na atividade de desenvolvimento

de software. Trata-se da propriedade intelectual, ou ainda de forma mais detalhada, dos direitos

sobre os diferentes tipos de usufruto das invencoes em todos os domınios da atividade humana.

Um modo interessante de definir estes usufrutos e pela analise da definicao das proprias

liberdades do software livre. Para qualquer invencao ou conhecimento que exista, podemos

identificar quem legalmente pode utiliza-la, redistribuı-la – com e sem objetivos comerciais – ou

modifica-la. No modelo proprietario do uso de bens, estas responsabilidades geralmente caem

Page 14: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

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sobre atores diferentes, cada qual com seu exercıcios sobre direitos formalmente adquiridos.

Para entender este conceito de liberdade, e preciso expandir a aplicacao do significado

e nao focar somente nos meios de acesso a bens materiais. E justamente este aprisionamento

que tem levado o conceito de software livre a ser ainda muito ligado a justificativas que no final

das contas sempre levam a argumentos de cunho financeiro.

O termo “software livre” e suscetıvel a muitas interpretacoes erroneas: aum argumento nao intencional como “software que pode ser adquirido semcusto” se encaixa tao bem quanto “software que da certas liberdades aousuario”. Resolvemos este problema publicando a definicao de softwarelivre, e por dizer “pense em ‘liberdade de expressao’, nao em ‘cervejagratis”’. Esta nao e a solucao perfeita e nao vai eliminar o problema. Umatermo correto e sem ambiguidade seria melhor, se tambem nao tivesse outrosproblemas... Toda substituicao proposta para o termo “software livre” temalgum tipo de problema semantico – e isso inclui o “software de codigoaberto”. (STALLMAN, 2007, traducao nossa).

Sem deslegitimar a importancia da viabilidade economica da implantacao de software

livre nas organizacoes, as secoes seguintes procuram discutir os programas de computador

em outros nıveis de abstracao, e consequentemente requerem o abandono de impressoes

exclusivamente estigmatizadas nao so em relacao ao software livre, mas tambem em relacao

aos modelos teoricos a serem tratados.

2.2 Sociedade da informacao

E evidente que nossa sociedade passa por uma profunda transformacao ditada pelo

desenvolvimento tecnologico, e que isto traz um impacto substancial no modo de vida que

temos. Embora nao seja consensual entre os estudiosos da area de que ja ultrapassamos um

marco que torna possıvel a definicao de um novo modelo de sociedade, e necessario para os

objetivos deste trabalho adotar um termo de tratamento a permeacao da tecnologia na sociedade.

Segundo Castells (1999), as diversas revolucoes tecnologicas ocorridas ao longo da

historia sao marcadas, basicamente, por sua penetrabilidade em todos os domınios da atividade

humana. Em outras palavras, define-se uma nova era quando as inovacoes tecnologicas induzem

uma profunda modificacao nas relacoes entre as pessoas, o que envolve inclusive as relacoes de

poder e producao em uma sistematica economica. Para Masuda (1980), a magnitude destas

transformacoes e equiparavel a outros marcos singulares da historia.

Na historia documentada, existem tres impulsos de mudanca fortes o suficientepara alterar o homem em sua essencia. A introducao da agricultura [. . . ] a

Page 15: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

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revolucao industrial [. . . ] [e] a revolucao tecnologica de processamento dainformacao [ou revolucao da informacao]. (MASUDA, 1980, grifo nosso).

Ao longo deste trabalho, os termos sociedade da informacao ou era da informacao

sao frequentemente usados, e por tratar-se de um termo bastante recente – alvo dos estudos

antropologicos que tomam por base o impacto da tecnologia na sociedade, nao existe uma

definicao universalmente aceita e muito menos um perıodo consensualmente estabelecido

para apontar marcos e eventos determinantes em termos de contextualizacao historica

(KARVALICS, 2007).

Assim, o uso do termo e colocado de modo a remeter ao novo paradigma de sociedade

em que atualmente nos encontramos, no qual a dinamica dada a informacao e seus sistemas nao

define somente o modo de funcionamento dos mercados, mas tambem orienta transformacoes

sociais, economicas e culturais.

Ha ainda, dentre os estudos sobre o impacto da tecnologia na sociedade, o surgimento

de outro termo e conceito chamado de sociedade do conhecimento. As interpretacoes

apresentadas sao variaveis, tais como:

• uma forma mais progressista de se referir a sociedade da informacao;

• uma forma mais abrangente de se referir a sociedade da informacao, sendo esta um dos

componentes da sociedade do conhecimento;

• Uma forma mais atual e que sera vez cada mais utilizada, com a gradativa substituicao de

sociedade da informacao por sociedade do conhecimento.

A partir desta confusao de atribuicoes, Karvalics (2007) defende uma separacao

artificial a fim de facilitar o estudo, evitar ambiguidades e favorecer os aprofundamentos das

pesquisas em tecnologia e sociedade. Esta separacao nos e especialmente util, visto que ambas

as terminologias – informacao e conhecimento – sao frequentemente usadas no estudo do

desenvolvimento livre de software, e que podem ser apropriadamente distinguidas. Para isso,

nos pautamos em tres principais topicos.

• Os processos de producao da informacao se dao na mente dos indivıduos, nao em

ambientes naturais ou artificialmente controlados, por mais que sua expressao possa

ocorrer em meio material.

• Os sistemas de tecnologia da informacao operam com a informacao convertida em

sımbolos, pois computadores processam nada mais do que sımbolos. Mentes e intelectos,

por sua vez, processam informacao.

Page 16: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

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• Conhecimento pode ser definido como informacao organizada, transformada e

contextualizada. Desse modo, ao falar sobre conhecimento e informacao, falamos de

dois componentes indivisıveis de um unico universo cognitivo.

Dentre as diversas definicoes nos campos social, economico, cultural, filosofico,

tecnico e educacional, existe aquela impressao popular com um tom predominantemente liberal

e progressista em relacao a aplicacao da tecnologia na sociedade, apresentando basicamente

um instrumento de melhoria da qualidade de vida, e que esta disponıvel principalmente

para oferecer agilidade, comodidade, melhores condicoes de trabalho e mais opcoes de

entretenimento.

Esta visao e, de fato, como a maior parte da populacao brasileira tem enxergado a

evolucao tecnologica. Em 2010, cerca de 95% das pessoas acreditava que o impacto que a

tecnologia causa na sociedade possui benefıcios consideravelmente maiores do que os possıveis

malefıcios, ou ao menos o mesmo grau entre benefıcio e malefıcio (TECNOLOGIA, 2010).

Uma crescente esperanca de que estas mudancas irao cada vez mais trazer melhorias

para o nosso modo de vida podem ser notadas atraves dos mesmos dados obtidos em 2006,

quando 28% das pessoas acreditava que a tecnologia trazia somente benefıcios. Em 2010,

temos que 38,9% das pessoas possuıam esta mesma opiniao (TECNOLOGIA, 2010).

Por outro lado, uma visao cientıfica um tanto menos romantica – para nao dizer

pessimista, apresenta a sociedade do conhecimento como uma reestruturacao do sistema

capitalista que teve por finalidade principal a ampliacao do poderio economico dos proprietarios

dos meios de producao, e que muito pouco tem a ver com os interesses das massas populacionais

no que se refere a melhoria da qualidade de vida (SODERBERG, 2002).

Charles Babbage, contemporaneo de Marx e considerado o pai da computacao –

inventor da maquina analıtica, um sistema mecanico que mais tarde viria a basear a construcao

dos primeiros computadores – produz trabalhos em economia polıtica sobre o ‘gerenciamento

cientıfico’ dos processos industriais – ou a busca da producao por meios exclusivamente

mecanicos (DYER-WITHEFORD, 1999). Marx (1939) identifica varias de suas constatacoes

nestes trabalhos, pois nao enxerga ali somente o proprio carater tecnocratico do capitalismo,

mas tambem um estudo estrategico para a lutas de classes. Uma crıtica a respeito dos discursos

vangloriantes da tecnologia e colocada nas anotacoes finais de O Capital – os Grundrisse,

mostrando de maneira bem clara a sua visao sobre o progresso da humanidade nos diferentes

campos do conhecimento:

‘O progresso contınuo de sabedoria e experiencia’, diz Babbage, ‘e o nosso

Page 17: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

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grande poder’. Esta progressao, este progresso social pertence e e exploradopelo capital. Todas as formas anteriores de propriedade condenam grandeparte da humanidade, os escravos, a serem puros instrumentos de trabalho.O desenvolvimento historico, polıtico, artıstico, cientıfico, etc. acontece emprivilegiados cırculos sobre suas cabecas. Mas somente o capital subjugouo progresso historico em detrimento do seu enriquecimento. (MARX, 1939,traducao nossa).

A visao popular, logicamente, e bastante diferente. Ela reflete, antes de mais nada, a

falta de formacao e questionamento em relacao a promocao das mudancas tecnologicas, e sequer

coloca os interesses dos seus principais promotores sob suspeita. Parece existir uma aceitacao

facil, generalizada e sem resistencias do discurso daqueles que propagandeiam a tecnologia

como fornecedora de solucoes presentes e amplamente disponıveis, como se a configuracao

do desenvolvimento cientıfico atual nao estivesse longe de ser voltado ao desenvolvimento

economico das minorias sociais.

Buscando descrever as peculiaridades da sociedade da informacao, alguns autores

introduziram desde a decada de 90 o conceito de ciberespaco na teoria da comunicacao. Este

conceito possui origem na ficcao cientıfica das fantasticas novelas que se passam em mundos

e circunstancias futurısticas – literatura que ficou famosa a partir da decada de 30 e que mais

tarde deu origem a cultura cyberpunk (STALLABRAS, 1996), cujo tom lırico e poetico sao

marcantes na propria literatura academica.

Assim como se diz “tem areia”, “tem agua” se diz “tem textos”,“tem mensagens” pois eles se tornam materias como se fossem fluxosjustamente porque o suporte deles nao e fixo, porque no seio do espacocibernetico qualquer elemento tem a possibilidade de interacao com qualqueroutro elemento presente. Entao, isso nao e uma utopia daqueles queexperimentaram, conhecem e participam da Internet. E como se todos os textosfizessem parte de um texto, so que e o hipertexto, um autor coletivo e que estaem transformacao permanente. E como se todas as musicas passassem a fazerparte de uma mesma polifonia virtual e potencial, como se todas as musicasfizessem parte de uma so musica, tambem ela virtual e potencial. (LEVY,1994, p. 3).

Levy (1998) define ainda de forma bastante conveniente – assim como outros autores, o

ciberespaco em um nıvel computacional como o “espaco de interconexao entre os computadores

e as memorias dos computadores”, uma rede vasta, complexa e estruturada de comunicacao.

Em relacao a contextualizacao historica do conceito de sociedade da informacao,

embora alguns autores utilizem-se dos acontecimentos ao redor das polıticas de propriedade

intelectual a partir da decada de 1950, Castells (1999) atribui esta reestruturacao da sociedade

a um momento um pouco mais tardio, e introduz o assunto da seguinte maneira:

Page 18: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

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A revolucao da tecnologia da informacao foi essencial para a implementacaode um importante processo de reestruturacao do sistema capitalista a partirda decada de 1980. No processo, o desenvolvimento e as manifestacoesdessa revolucao tecnologica foram moldados pelas logicas e interesses docapitalismo avancado, sem se limitarem as expressoes desses interesses.

Masuda (1980) esquematiza ainda, uma tabela comparativa entre a revolucao industrial

e a revolucao da informacao, e que demonstra como se deu a transformacao dos padroes de

desenvolvimento de uma revolucao para a outra. Os itens a seguir apresentam as principais

caracterısticas destes padroes para a sociedade industrial e da informacao, respectivamente.

• Inovacoes tecnologicas: Motor a vapor, amplificacao do trabalho manual; Computadores,

amplificacao do trabalho mental (conhecimento);

• Estrutura socio-economica: Produtos e servicos, industria da manufatura, fabrica como

o centro da producao; Informacao, tecnologia, industria intelectual, distribuicao da

informacao;

• Estrutura economica: Divisao do trabalho, divisao da producao; Sinergia, processos de

producao integrados;

• Valores sociais: Materiais, direitos humanos e libertacao; Eficiencia, contribuicao social

e globalismo.

Os estudos sobre tecnologia e sociedade estendem-se a uma diversidade de campos

cujos acompanhamentos nao nos cabem aprofundar neste momento, ja que esta secao visa

atender somente a uma necessidade de introducao da complexidade que e a discussao sobre

o termo sociedade da informacao, e esclarecer como se deu o processo historico de formacao

do contexto tecnologico atual. Em todo este contexto, uma definicao bastante razoavel e dada

por Matos (2002), e que e o suficiente para a tomarmos por base e evitar anacronismos quando

o termo for encontrado ao longo deste trabalho.

A sociedade da informacao e uma expressao comumente usada para designaruma forma de organizacao social, economica e cultural que tem como base,tanto material como simbolica, a informacao. Esta sociedade assim organizadaseria aquela em que vivemos. [. . . ] (MATOS, 2002, p. 12, grifo nosso).

Page 19: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

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2.3 Marxismo

Variantes do termo marxismo tem aparecido com frequencia para designar as diferentes

vertentes ideologicas que surgiram em torno dos conceitos centrais deixados pelos estudos de

Karl Marx, e acabam por causar divergencias entre os diferentes grupos que se dizem socialistas.

Por marxismo entende-se o conjunto de teorias filosoficas, economicas,sociologicas e politicas, elaboradas por Karl Marx com a colaboracao deFriedrich Engels e desenvolvidas por seus adeptos, em parte ortodoxos e empartes dissidentes. Como as tres fontes principais do marxismo indicam-se:a filosofia idealista alema (Hegel), o materialismo filosofico frances doseculo XVIII, e na economia politica inglesa do comeco do seculo XIX(INTERNACIONAL, 1993).

O metodo Marxista foi concebido atraves da necessidade de analise de uma sociedade

que difere substancialmente daquela em que vivemos. Aplicar este mesmo metodo novamente

requer uma aproximacao cautelosa e pragmatica dos conceitos ja estabelecidos, e que tenha

como objetivo preservar as linhas cientıficas que levaram a sua renomada consolidacao. A

definicao pelo que se conhece por marxismo ortodoxo e dada por Lukacs (1919) – um dos

precursores do conceito – em um artigo classico sobre o assunto.

Marxismo ortodoxo, no entanto, nao implica na aceitacao estatica e semcrıticas das investigacoes de Marx. Nao e a ‘crenca’ nesta ou naquelatese, nem a exegese de um ‘livro sagrado’. Ao contrario, ortodoxiase refere exclusivamente a metodo. E a conviccao cientıfica de que omaterialismo dialetico e a estrada para a verdade e que seus metodos podem serdesenvolvidos, expandidos e aprofundados somente atraves das linhas tracadaspor seus fundadores. E a conviccao, ainda, de que todas as tentativas deultrapassar ou ‘melhorar’ estas metodologias levaram e devem levar sempre auma maior simplicidade, trivialidade e ecleticismo. (LUKACS, 1919, traducaonossa).

Desta forma, uma analise que se proponha a um metodo ortodoxo sobre qualquer

estrutura social deve ter como alicerce o conceito central de materialismo dialetico, observando

sempre as transformacoes dos modos de producao com o entendimento de que elas acarretam

novas mudancas tambem nas relacoes sociais.

Em uma tentativa de entender melhor as crescentes e intensas transformacoes sociais

vivenciadas pela humanidade desde a epoca de Marx, e como forma de adaptacao e suprimento

de deficiencias da teoria inicial a novas analises, diversas vertentes marxistas foram iniciadas,

cada qual atendendo sua demanda e concepcao.

Uma destas vertentes resulta de estudos realizados no seculo XX denominado de

neo-marxismo, e que buscam combinar elementos de outras linhagens intelectuais com aquelas

Page 20: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

12

solidificadas no marxismo ortodoxo, introduzindo conceitos do existencialismo e gerando novas

metodologias como o marxismo analıtico e o marxismo estrutural, e tambem influenciando

novos movimentos sociais, como a nova esquerda, o movimento hippie e o estudantil.

O neo-marxismo pode ser considerado como uma resposta dos estudiosos as estrategias

de globalizacao do capitalismo, ja que muitos deles descrevem teorias de economia global e

buscam explicar os processos de monopolizacao dos mercados e concentracao das riquezas,

frequentemente inserindo novos termos e conceitos.

Porem, existem pertinentes discussoes acerca da preservacao do marxismo

convencional nestes estudos, e o quao eles estariam empregando os metodos ortodoxos

adequadamente. Neste sentido, sua eficacia no subsıdio das revolucoes tambem acabam sendo

questionadas.

A tematica marxista para o tratamento do software livre – ou em outras palavras, o

proposito de aplicacao deste modelo teorico em um processo mais especıfico da sociedade da

informacao – e tratado a seguir por uma serie de secoes que buscam justificar a escolha deste

modelo.

Page 21: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

13

3 Marxismo como modelo teorico

3.1 Uma alternativa de analise

Ja antes dos primeiros computadores, com a vertente iluminista da filosofia da

liberdade no seculo 18, este tema em concepcoes mais modernas ja era centro de debates em

busca da compreensao da complexidade humana (BRISTOW, 2010).

Em tempos em que as monarquias possuıam alto sigilo sobre o progresso tecnologico,

suas polıticas e informacoes (DORIGO, 2005), o inıcio do pensamento sobre o que de fato seria

a liberdade do homem toma grande importancia no questionamento das logicas protecionistas.

Friedrich Schiller, por exemplo, cita entre sua colecao de cartas a seguinte passagem:

A cultura, longe de nos dar liberdade, somente desenvolve novas necessidadesao longo do tempo. As correntes do mundo fısico nos apertam cada vezmais de modo que o medo da perda extingue ate o mais ardente impulso emdirecao a inovacao, enquanto a obediencia passiva e mantida como a maior dassabedorias da vida. (SCHILLER, 1909, traducao nossa).

Inumeros filosofos, matematicos e outros cientistas – dentre eles os precursores da

revolucao francesa – viriam a trabalhar sobre as primeiras perspectivas do que se conhece sobre

direitos humanos. Os trabalhos feitos por eles foram importantes para a insercao do uso da

razao em tematicas relacionadas a livre religiao, anti-escravismo, anti-colonialismo e liberdade

de expressao. Formava-se uma nova concepcao do que se entendia pelo papel de cada indivıduo

na sociedade, e quebrava-se a logica medieval do pensar (VERHOEVEN, 2011).

E evidente que dentre essa movimentacao ideologica estava presente uma intensa

preocupacao intelectual com o que se entende pela liberdade do homem, e como ela se expressa

e e tratada pela sociedade juntamente com os demais aspectos culturais (BRISTOW, 2010).

Estas concepcoes diferenciadas culminaram em mobilizacoes populares bastante

expressivas politicamente e que vieram a moldar todo o pensar ocidental ate os dias de hoje.

Tem-se que o trabalho destas pessoas e atualmente o ponto de partida implicitamente presente

em qualquer analise da sociedade que se queira realizar (BRISTOW, 2010).

Page 22: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

14

O amadurecimento das ideias iluministas possibilitou a expansao da aplicacao de

conceitos filosoficos liberais a praticamente todas as areas de interacao social existentes na

epoca. Dentre os estudos resultantes esta a importante obra de Georg Hegel, e embora sua

integracao formal a vertente iluminista nao seja um consenso entre os estudiosos da area,

existem fortes relacoes entre os conceitos por ele colocados e a heranca dos pensadores

iluministas (LESSA, 2007).

Apesar das crıticas posteriores ao seu trabalho por outros filosofos que ganharam

notoriedade por suas ideias, um aspecto a ser relevado da obra de Hegel sao as suas

relacoes entre indivıduo e mundo, ate porque mais tarde surgiriam interpretacoes de sentido

revolucionario destas relacoes, e que levariam a questionamentos fundamentais no campo

polıtico quanto a percepcao do estado, do trabalho e da producao de bens (LESSA, 2007).

Independentemente, o que ocorreu foi que, com justificativas humanistas a mao, o

modelo vigente de exploracao dos trabalhadores viria a ser questionado pelos pensadores, e que

estes acabariam por iniciar a formulacao de toda uma nova gama de interpretacoes voltadas

especificadamente as relacoes de mercado e de trabalho.

Neste contexto historico, Karl Marx elaborou trabalhos a partir de uma abordagem

metodologica que, quando tem seus conceitos colocados pela dialetica, possuem boa aceitacao

em relacao ao esclarecimento das logicas de mercado do sistema capitalista e acabam por nao so

subsidiar ideologicamente as organizacoes sociais segundo um metodo cientıfico, mas tambem

por sugerir uma agenda polıtica para a implantacao de sistemas de poder diferenciados que

venham a dividir de maneira justa os bens produzidos por uma sociedade (GIANNOTTI, 1996).

Dada a linha cronologica, e especialmente importante afirmar que Marx nao e so

herdeiro da filosofia de Hegel e dos socialistas utopicos que o antecederam, mas sim de toda a

tradicao humanista e racionalista do seculo XVIII (NETTO, 2002).

Em vida, Marx foi muito mais conhecido como militante do que como filosofo. Sua

obra foi citada por estudiosos e influenciou movimentos operarios de maneira substancial

somente a partir de sua morte. Embora existam argumentacoes que afirmam nao ser mais

possıvel fazer interpretacoes de fatos atuais atraves dos conceitos de sua obra – ja que

a sociedade passou por numerosas e intensas mudancas desde sua epoca, nao e difıcil

identificar as correspondencias do mundo de hoje com os conceitos centrais deixados por Marx

(MEKSENAS, 2008).

Muito discute-se sobre a crise da teoria marxista. Diversos governos que atribuıram

os nomes “marxismo” e “comunismo” as suas polıticas mostraram de diferentes formas e por

Page 23: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

15

diferentes razoes – assim como os governos capitalistas – uma profunda incompatibilidade a

manutencao de uma ordem social prospera. Encaixam-se aı a falencia da Uniao Sovietica, a

abertura economica de forma liberal pela China, os governos comunistas da Asia e da Africa

(GIANNOTTI, 2011), e ate Cuba – cujo embargo economico projetado pelos Estados Unidos e

sistematicamente ignorado ao direcionar crıticas as suas fragilidades economicas.

Giannotti (2011) justifica ainda, como situar a validade deste tipo de estudo em

contextos atuais, apresentando a ideia de que uma teoria nao se invalida a partir dos fracassos

historicos daqueles que se utilizaram de seu nome ou de seus conceitos – muito embora por

vezes possa ter sido somente o nome.

O colapso [dos paıses socialistas] evidenciaram que a luta contra as miserias,instaladas pelo sistema capitalista, nao implica qualquer compromisso compartidos comunistas de cunho leninista. Esse colapso reduz a po a vulgatamarxista, mas nao impede que se continue a estudar as representacoes eas relacoes sociais da otica do metabolismo que o homem mantem com anatureza, em suma, daquela que ve as relacoes sociais de producao imbricadascom o desenvolvimento das forcas produtivas. [. . . ] a obra escrita ilumina-se apartir de certas perspectivas historicas, de certos vieses que alimentam modosde pensar e de ver, inscritos em nosso cotidiano. (GIANNOTTI, 2011, p. 17,grifo nosso).

Meszaros (2010) tambem discorre sobre a adaptabilidade da teoria base para com

novos conceitos:

[. . . ] a transformacao social prevista pela visao marxista deve ser capazde avaliar as dificuldades inerentes a propria magnitude das tarefas a seremrealizadas, como tambem enfrentar as contingencias socio-historicas mutaveise inevitaveis, reexaminando as proposicoes basicas da teoria original e, senecessario, adaptando as novas circunstancias. (MESZAROS, 2010, grifonosso).

Nao so pela validade da elucidacao teorica se justifica uma analise marxista. Embora

o sistema capitalista tenha se reformulado, se globalizado e adquirido novas dinamicas de

exercıcio de poder devido ao avanco tecnologico e a sociedade da informacao, temos os

mesmos elementos conceituais mantendo os mesmos padroes: o trabalhador explorado, a forte

orientacao a propriedade, a centralizacao do lucro privado, a mais-valia e a grande desigualdade

nas relacoes de producao (MEKSENAS, 2008).

O grande valor de Marx, no entanto, vem com seu metodo. As constatacoes por

ele deixadas podem vir a mostrar interpretacoes uteis no entendimento das mudancas sociais

promovidas pela era da informacao a partir do momento que a manutencao do sistema capitalista

encontra-se ainda sobre as mesmas relacoes de poder que ele identificou.

Page 24: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

16

[. . . ] Marx foi capaz de apreender as tendencias estruturais da ordem burguesa[. . . ] porque encontrou a perspectiva teorico-metodologica capaz de lhepermitir a apreensao do movimento deste objeto [. . . ] (NETTO, 2002, grifonosso)

A principal suspeita a respeito da aplicabilidade de seu metodo na atualidade da-se pela

percepcao do imaginario coletivo de que os sistemas de informacao aos poucos substituirao

os trabalhadores, e que tao logo nao havera campo para aplicacao de uma analise marxista.

Uma interpretacao desta natureza peca em essencia por deixar de analisar um pouco mais

profundamente sobre o que e de fato a informacao, e quais suas demandas de poder, producao

e consumo em relacao a sociedade (SODERBERG, 2002).

Uma crıtica ironica e feita por Dyer-Witheford (1999) em relacao a este tipo de

posicionamento. O autor dedica todo um capıtulo para responder argumentos que negam a

compatibilidade da teoria marxista com a sociedade contemporanea:

[. . . ] se o marxismo e tido como obsoleto pela era da informacao, esomente pela luz de um certo desenvolvimento ‘informacional’ – globalizacao,pre eminencia da mıdia, tele-trabalho – e que podemos ver a completaimportancia de alguns temas presentes nos textos de Marx – por exemplo,a enfase [dos que pregam o fim do marxismo] na internacionalizacao eautomacao da producao. [. . . ] o marxismo sempre manifestara umacontınua “espectrabilidade”, uma estranha negacao em morrer e ser enterrado,e que esta profundamente conectada a natureza “espectral” e “imaterial”do tecnocapitalismo contemporaneo. (DYER-WITHEFORD, 1999, p. 8,traducao e grifo nosso).

Soderberg (2002), por sua vez, e ainda mais incisivo na tematica do software livre,

sendo um dos primeiros autores a produzir conteudo dedicado e significativo na relacao da

liberdade de software com o marxismo:

O marxismo oferece um bom modelo teorico para analise das contradicoesinerentes do regime de propriedade intelectual. O sucesso do software livreem trabalhar fora do sistema comercial de software e uma amostra do quefoi descrito por Marx ha mais de 150 anos sob as formalizacoes de forcaprodutiva e de intelecto geral. [. . . ] a historia nao se resume ao levante dasforcas produtivas que foram convenientemente mapeadas pelos exemplos domaterialismo historico, mas sao conflitos protagonizados por atores sociais,dentre eles o movimento do software livre e sua caracterıstica especialde desafiar a dominacao do capital sobre o desenvolvimento tecnologico.(SODERBERG, 2002, traducao e grifo nosso).

Para Marx, a realidade nada mais e do que um sistema de relacoes de modo que as

instancias que compoem a sociedade sao sempre complexas e constituem uma totalidade de

totalidades articuladas, estas por sua vez formadas de categorias e relacoes simples que devem

ser descortinadas para uma reconstituicao abstrata do todo (CARVALHO, 2007).

Page 25: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

17

A categoria de totalidade significa (...), de um lado, que a realidade objetivae um todo coerente em que cada elemento esta, de uma maneira ou de outra,em relacao com cada elemento e, de outro lado, que essas relacoes formam, napropria realidade objetiva, correlacoes concretas, conjuntos, unidades, ligadosentre si de maneiras completamente diversas, mas sempre determinadas(LUKaCS, 1967, p. 240).

O estudo da sociedade da informacao atraves da otica marxista busca, acima de tudo, a

identificacao, especificacao e analise destas articulacoes. Obviamente, nao e possıvel para este

estudo abranger toda uma analise desta natureza, ja que o momento de nossa sociedade abrange

relacoes suficientemente complexas de totalidades, e que nao sao passıveis de um estudo breve.

Se quer, somente, identificar algumas particularidades das articulacoes destas totalidades sem

desconsiderar uma implicacao completa e mais abrangente.

Isto quer dizer – em carater essencial para a analise marxista – que e importante

considerar que a totalidade em que o software livre esta inserido nao pode ser tomado com

o mesmo peso das outras totalidades que compoem as relacoes da sociedade.

Assim, entende-se que as perspectivas marxistas sao de razoavel utilidade para a

analise da estrutura economica e social proposta pelo software livre, e que a correlacao

desta teoria com a pratica podem vir a mostrar visoes esclarecedoras sobre o que se entende

pela liberdade de conhecimento, e quais as mudancas possıveis na sociedade a partir da

implementacao de polıticas que valorizem iniciativas relacionadas a cultura da livre informacao.

3.2 O marxismo na era da informacao

Quando adentramos em discussoes sobre tecnologia e sociedade, e comum

depararmo-nos com discussoes que decretam a decadencia do valor teorico deixado por Karl

Marx perante a vitoria do capitalismo com sua nova estrutura tecnologica. Nos dizem que a alta

tecnologia esta levando o planeta a um novo estagio civilizatorio caracterizado pela onipresenca

de computadores e sistemas de comunicacao em uma economia baseada em conhecimento e

suportada pela crescente inovacao cientıfica. Em meio a tudo isso, os socialistas sao tidos

como ultrapassados, ingenuos e utopistas, e esta e de fato a impressao geral que se constroi no

imaginario coletivo quando tenta-se introduzir conceitos como mais-valia em meio a maquinas

inteligentes, superestrutura quando boa parte do que se e construıdo e trabalhado encontra-se

somente em estado simbolico, ou mesmo em uma ditadura do proletariado sobre todo o mercado

de mıdia eletronica que nunca cessa seu crescimento (DYER-WITHEFORD, 2004).

Estas caracterısticas em relacao aos socialistas nao sao casuais. Os devidos

Page 26: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

18

comunicadores encarregaram-se de formar esta imagem, encontrando na historia os elementos

apropriados que demonstrassem a falencia socialista e o sucesso capitalista. Assistimos os

Estados Unidos da America, Japao e Europa tornarem-se grandes potencias mundiais enquanto

defendiam seu sistema economico aberto e ‘democratico’. Por outro lado, ‘ditaduras’ socialistas

como Russia e Cuba, ao mesmo tempo que bradavam o marxismo como o modelo teorico

de governo, tambem sucumbiam a falencia economica e a miseria. Esta ideia por si so ja

estabelece o ‘preconceito social’ sobre a ideia do comunismo, socialismo e marxismo, muitas

vezes rechacado sistematicamente e de forma organizada por governos neoliberais. O que se

acaba tendo, de uma maneira geral, e o impedimento da popularizacao de conceitos economicos

antagonicos aos que estao impostos em favor da alienacao e do consumo (GIANNOTTI, 2011),

distanciando cada vez mais um horizonte que quer afastar esta especie de realidade o maximo

possıvel.

[. . . ] e preciso continuar ressaltando que [as teses de Marx] nao foramdivulgados pelos canais que nossa Ciencia ou nossa Filosofia empregamnormalmente: de um lado, as universidades, os institutos de pesquisa e aspublicacoes especializadas, de outro, a mıdia e a moda. (GIANNOTTI, 2011,p. 15, grifo nosso).

O pos-guerra sem grandes crises economicas dos anos 60 e 70 apresentaram os

primeiros estudiosos de maneira especıfica da tecnologia na sociedade, e que acabaram por

prever um progresso pacıfico e sem precedentes de uma nova tendencia do mundo em ser

cada vez mais baseado em conhecimento. A linhagem destes autores e tida basicamente

como autonomista, e por vezes expressa uma oposicao explıcita ao marxismo, ignorando

completamente a tese de insustentabilidade do sistema capitalista – por tantas vezes comprovada

nas crises financeiras (DYER-WITHEFORD, 2004).

O “espectro que paira sobre o capitalismo” foi poeticamente descrito por Marx como a

propriedade autodestrutiva e conflituosa deste sistema economico que paradoxalmente passa

a comprometer sua propria estrutura de distribuicao de produtos e servicos, tendo no livre

mercado os ingredientes motivadores para que nao exista retrocedencia de endividamento

(MARX, 1887), seja ele economico, ambiental ou social.

A configuracao neoliberal de um sistema socioeconomico facilita os processos de

apropriacao das instituicoes reguladoras do estado pela iniciativa privada, caracterizando uma

sistematica de apropriacao de recursos que poderiam ser utilizados de maneira mais ampla

frente a sociedade. Tem-se um contınuo processo de externalizacao de financiamentos e custeios

que, invariavelmente, contribuem para a fragilizacao do estado e geracao de crises economicas

quando as possibilidade de socorro aos diferentes setores produtivos estao esgotadas, resultando

Page 27: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

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em um comprometimento dos demais setores em uma cascata interminavel de falencias.

Em um dos exemplares mais recentes deste fenomeno temos as deficiencias

regulatorios do mercado imobiliario nos Estados Unidos. O grande numero de investidores com

aplicacoes irresponsaveis para com o paıs gerou uma grande bolha especulativa que tornou-se

insustentavel a partir do momento que atores importantes deste cenario deixaram de aplicar

seus recursos nas bolsas de valores (WOLFF, 2008), sendo uma especie de estopim inicial para

a crise economica que ja se arrasta ha alguns anos pelos Estados Unidos e pela Europa.

Interpretacoes marxistas tendem a ser mais amplas na interpretacao das crises a ponto

de considerar um estopim de crise o mero resultado do sistema em que ele opera. Assume-se que

o capitalismo esta sempre em um estado estrutural extremamente tensionado economicamente,

o que tende tambem a agravar outras areas que comprometem a saude economica da sociedade,

tal como a ecologia e os direitos humanos (MESZAROS, 2010).

A dramatica crise financeira que experimentamos nos ultimos tres anos eapenas um aspecto da trifurcada destrutibilidade do sistema de capital. Emprimeiro lugar na esfera militar, com as interminaveis guerras do capitaldesde o comeco do imperialismo monopolista nas decadas finais do seculoXIX, e suas mais devastadoras armas de destruicao em massa nos ultimos 60anos; em segundo na intensificacao, pelo obvio impacto destrutivo do capitalna ecologia, afetando diretamente e ja colocando em risco o fundamentonatural elementar da propria existencia humana; e, em terceiro, no domınioda producao material e do desperdıcio cada vez maior, devido ao avanco da“producao destrutiva”, em lugar da outrora louvada “destruicao criativa” ou“produtiva”. Esses sao os graves problemas sistemicos de nossa crise que sopodem ser solucionados por uma completa mudanca estrutural. (MESZAROS,2010).

Apesar de algumas crises, os anos 60 ate os anos 2000 foram uma especie de

consolidacao estavel do capitalismo com sua nova sistematica globalizada de poder e processos

fordistas. Muitos autores chegaram a acreditar que sua estrondosa magnitude representava

tambem sua forma definitiva (DUPAS, 2001), ja que sua configuracao acabou por provar-se

extremamente eficaz.

Em um momento passageiro, quando eclodiu a inesperada crise do petroleo

na decada de 70, houve animo para a formulacao de mais interpretacoes antagonicas

aquelas futuristicamente tecnocraticas que estavam postas, e ajudaram a reforcar impressoes

diferenciadas em relacao ao desenvolvimento tecnologico. Porem, seguida a estabilizacao

economica, pareceu existir uma dificuldade do encontro de evidencias de que haveria mais

cedo ou mais tarde uma completa derrocada deste sistema, o que acabou por reforcar as

teses de autores autonomistas e pos-industrialistas que vieram a estabelecer novamente,

Page 28: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

20

com o dobro de intensidade, descricoes de uma futura sociedade tecnocratica bem sucedida

(DYER-WITHEFORD, 2004).

Embora producoes academicas importantes de linhagem marxista tenham ocorrido

desde a decada de 60, as analises mais ‘pessimistas’ reduziam-se somente a premonicoes

e mapeamentos de tendencias em relacao as grandes economias. O vigor do capitalismo

respaldava tambem um sentimento de remota possibilidade de que crises capazes de afetar

o nucleo economico do mundo ocorreriam, tornando baixo o interesse em teorias acerca

disso. Dupas (2001), por exemplo, discorre em tom incerto por todo um capıtulo a respeito

da tecnologia da informacao e a hegemonia dos Estados Unidos, sem ainda que houvessem

indicativos claros de uma grave crise economica naquele paıs:

Estamos diante do mais longo ciclo de crescimento economico dos EstadosUnidos, [. . . ] a questao sobre quando vira o declınio persegue o mundo todoe exige novas explicacoes. [. . . ] Ainda que varias opinioes apontem paraum ajuste futuro por conta dos desequilıbrios da chamada “nova economia”,a consolidacao da hegemonia e tao impressionante que permite a metaforade um enorme e competente polvo, com seus tentaculos fortemente agarradosna tecnologia da informacao, a alimentar-se dos mercados globais. (DUPAS,2001, p. 45, grifo nosso).

E e neste contexto de tensao e questionamentos que uma forte crise eclode em

2007, e que mais tarde acomete diferentes paıses da Europa sucessivamente. Novamente

estava colocada a evidencia da visao marxista sobre a economia, e de como se comportava

a insustentabilidade do capitalismo (WOLFF, 2008), iconizando a figura de Marx mais do que

nunca nos tempos modernos.

Page 29: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

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Figura 3.1: Marx na Internet: “Eu avisei que estava certo sobre o capitalismo”

Ilustracao do artista plastico Azlan McLennan proliferada pela Internet satirizando as

representacoes do personagem estadunidense Tio Sam, em favor da legitimidade da teoria

marxista que teria sido reforcada e trazida a pauta pela entao recente crise dos Estados Unidos

em 2007. O reaquecimento das discussoes sobre as teorias Marxistas influenciaram tanto a

producao de material academico quanto artıstico.

Fonte: McLennan (2009, traducao nossa)

Analisadas estas perspectivas, e tambem observando o reforco das discussoes causadas

por estas ultimas crises, e interessante observar a sazonalidade historica com que o discurso

marxista se intensifica nos debates sobre economia polıtica. E nesta logica a teoria marxista

parece ter-se renovado e amadurecido aos altos e baixos desde a decada de 60, revisando

concepcoes a cada nova crise economica, e obtendo a colaboracao de diversas vertentes

e interpretacoes polıticas a medida que o debate tornava-se mais relevante e aumentava a

necessidade de entendimento dos diferentes aspectos da nova sociedade (DYER-WITHEFORD,

2004).

Todas as correntes de estudos que se formaram acerca deste tema construıram

divergencias significativas entre si, especialmente quando adentramos no campo da

tecnologia. No discurso, uma pauta relevante e o distanciamento dos aspectos ortodoxos

Page 30: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

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da teoria para a construcao de novos conceitos, e este fato talvez seja uma das mais

enriquecedoras contribuicoes para o amadurecimento das discussoes e o desenvolvimento de

uma adaptabilidade dos conceitos classicos a nossa nova sociedade.

Dentre toda essa discussao desenvolveu-se o intenso discurso autonomista, ou ainda o

chamado marxismo autonomista. Esta linhagem de pensamento sobre o homem remete a sua

autonomia enquanto ser e agir, e apesar das lutas de classes continuarem a ser um elemento

central, o foco nao e mais sobre o avanco das forcas produtivas, mas sim no conflito entre

aqueles que criam e aqueles que se apropriam. As organizacoes e programas revolucionarios

tornam-se cada vez mais distantes do estado e dos partidos polıticos, e passam a ser focadas na

mudanca que a propria classe operaria e capaz de promover de maneira independente e incisiva.

O autonomismo tambem veio em resposta as novas formas de lutas em que, por

seus integrantes nao possuırem raızes e vivencias operarias, possuıam uma deficiencia – ou

resistencia – no entendimento pleno de uma postura anti-capitalista. Estariam amparados aı

os movimentos feministas, anti-racistas, ambientalistas e grupos reivindicantes de polıticas

publicas urbanas. Trata-se, em outros termos, de uma busca pelo sujeito revolucionario de

nosso tempo (GURGEL; MENDES, 2010) atraves de uma analise dentre os movimentos que

demonstram uma profunda insatisfacao com a atual estrutura da sociedade, mas que tambem

muitas vezes nao estao inseridos no sistema produtivo sob a plena condicao de explorados.

Embora a visao autonomista possa ser caracterizada pelo abandono de alguns

fortes conceitos da estrutura do raciocınio marxista (DYER-WITHEFORD, 2004), ela acaba

construindo subsıdios interessantes para analisar a estrutura da comunidade do software livre.

As visoes autonomistas trabalham, por exemplo, sobre fenomenos em que um processo de

aprendizado coletivo torna-se uma entidade produtiva por si propria (SODERBERG, 2002),

e esta e exatamente uma das caracterısticas mais fortes do software livre. Entende-se que

ignorar completamente a importancia que a informacao obteve na sociedade de hoje nao e algo

prudente a ser feito para uma analise que busca abranger as mudancas nas relacoes sociais

em um contexto atualizado. Por este motivo, este trabalho tenta relacionar alguns aspectos do

movimento autonomista com as situacoes criadas pela sociedade da informacao.

Page 31: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

23

4 Relacoes dos conceitos marxistas com o software livre

4.1 Propriedade

A definicao de ciberespaco1 vem a ser conveniente no estudo da propriedade na

sociedade da informacao, pois a Internet e o mundo da tecnologia dinamizaram a comunicacao

de tal forma a tornar a presencialidade algo subjetivo e ate mesmo desnecessario. Isto afeta

profundamente o universo do trabalho e a maneira como a propriedade pode ser exercida.

O ciberespaco na sociedade da informacao mescla-se com as dinamicas economicas,

sendo uma expressao constante de sua propria determinacao. Interpretacoes deste fenomeno

e sua permeabilidade cultural sao comumente feitas com um sentido positivo, humanizador,

ou mesmo democratizante. A tecnologia muitas vezes e justificada por si mesma na

necessidade popular sem muitos questionamentos acerca de possıveis deterioramentos dos

proprios benefıcios que os defensores de seu desenvolvimento promovem.

Embora, de fato, tenha de ser reconhecido e aproveitado o poder humanizador

e inclusivo do desenvolvimento tecnologico, nao podemos simplesmente tomar iniciativas

democratizantes como uma licenca moral para isentar praticas para a acumulacao centralizada

de riquezas, e faz-se necessario trazer a tona um discurso de combate a estas visoes meramente

tecnocraticas. Neste contexto, Stallabras (1996) introduz uma nova perspectiva sobre o

ciberespaco e define a informacao como economia em sua essencia. De acordo com esta

definicao, ao contrario do que e transmitido para as opinioes populares, a intensa permeacao do

ciberespaco na sociedade nao trata-se de um processo inclusivo, tampouco de uma substituicao

geral das demais formas de mıdias produtivas. O que vemos em curso e uma mistificada

onipresenca tecnologica em nossas vidas em detrimento do pleno acumulo capitalista.

Um outro aspecto interessante colocado por Stallabras (1996) e a de que a completa

transcendencia das limitacoes de presencialidade humana nao acontece plenamente no

ciberespaco, e que e impossıvel para as comunidades virtuais se consolidarem produtivamente

1Conforme introduzido na definicao de ‘Sociedade da Informacao’ na pagina 9.

Page 32: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

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sem ao menos um mınimo de contato presencial.

De qualquer forma, o proposito tecnicista do ciberespaco e realizar a abstracao do real

e a solidificacao do abstrato. A evolucao dos sistemas computacionais sempre pautou-se na

navegabilidade e compreensibilidade da apresentacao dos dados. Ha um constante esforco para

o aperfeicoamento de simulacoes e imitacoes das perspectivas e ambientes reais – desde a linha

de comando ate as interfaces graficas mais avancadas. Esta natureza reflexiva e fonte de diversas

especulacoes metafısicas.

Stallabras (1996) vai ainda alem neste contexto e propoe um breve exercıcio teorico

para definicao do hegelianismo tecnologico, que procura definir o ciberespaco como uma

expressao hegeliana do homem enquanto promotor da tecnologia. Neste raciocınio, se

para Hegel o real e o ideal, no ciberespaco temos que o real e reproduzido de forma

virtualmente ideal, uma vez que as realidades sao tecnicamente viabilizadas atraves de

diferentes implementacoes computacionais. Este vies teorico define o ciberespaco mais como

um foro unico da propria consciencia humana do que uma simples interface de mentes entre o

material e o abstrato.

Um exercıcio do conceito hegeliano neste sentido nos permite analisar como esta rede

estruturada de informacoes esta intrinsecamente ligada a determinacao basica do homem – o

de ser. Tambem nos mostra como e possıvel assimilar um fluxo de consciencia que reflete

a realidade de uma sociedade e de sua organizacao, adaptando dinamicas a um estado de

consciencia seja ele qual for – o que inclui assumir interpretacoes de propriedade e trabalho

em um fluxo virtual.

Nos Grundrisse, Marx discute como a revolucao dos modos de producao industrial e

agrıcola forcaram uma outra revolucao paralela nos processos sociais de producao, tal como foi

a forte reestruturacao das dinamicas de comunicacao e transporte. Esta e a introducao para o

que ele chama de “aniquilacao do espaco pelo tempo”, e que remete a natureza pouco neutra

do capitalismo em relacao as questoes geograficas (HARVEY, 2010), e que acaba sendo um

princıpio bastante promissor para o entendimento de formacao da ‘sociedade da informacao’ e

sua base imaterial.

O mais avancado desenvolvimento do capital – ou quando o capital faz-seassumir o modo de producao correspondente – ocorre nao somente quandoas relacoes de trabalho tomam a forma economica de capital fixo, mas quandotambem sao suspensas em sua forma imediata, e o capital fixo aparece comouma maquina no processo de producao [. . . ], que por sua vez nao parece sersubmedido pelas habilidades diretas de um trabalhador, mas sim como umaaplicacao tecnologica da ciencia. (MARX, 1939, grifo nosso).

Page 33: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

25

A capacidade do capitalismo em criar processos produtivos baseados em informacao

nada mais e do que uma expressao de sua excelencia cientıfica, e que e passıvel de geracao

de uma altıssima interdependencia entre os diferentes setores produtivos. No estudo desta

caracterıstica, conclusoes especialmente notorias sao deixadas em um longo paragrafo das

paginas finais do Grundrisse, e mostram a perspicacia de Marx com relacao a compreensao

das dinamicas economicas e produtivas do capitalismo. O ‘automato’ projetado para agir

propositadamente e descrito em termos da apropriacao de conhecimento:

A acumulacao de conhecimento e habilidades das forcas produtivas gerais docerebro social, e assim absorvida pelo capital como uma oposicao ao trabalho,e portanto aparece como um atributo do capital, e mais especificadamente, docapital fixo, a medida que adentra o processo de producao na propria forma demeio de producao. (MARX, 1939).

Em tom profetico Marx coloca que o capitalismo se subverteria atraves de sua propria

evolucao tecnologica. A excelencia tecnocientıfica geraria uma tamanha interdependencia das

formas de cooperacao para producao que tal configuracao exacerbaria os parametros ate entao

conhecidos sobre a propriedade (DYER-WITHEFORD, 1999).

E possıvel apontar que esta ‘metamorfose’ do mundo economico para meios e esferas

diametralmente diferentes e esperado atraves do entendimento do capitalismo em seu contexto

cientıfico e de sua incessante busca pela modificacao dos aspectos espaciais e temporais dos

processos de producao. O cenario previsto por Marx se confirma com nosso testemunho sobre

as tecnologias contemporaneas e o modo como elas ditam a regulacao do trabalho, os meios de

producao e a geracao de valor.

Page 34: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

26

Figura 4.1: As profecias de Marx se concretizam

Satira do cartunista Carlos Latuff sobre a assertividade de Marx em relacao as observacoes

feitas em 1867 na tematica do uso da tecnologia e do mecanismo de credito pelo capital. A

recente crise dos Estados Unidos vem a reforcar a atualidade de Marx, colocando-o novamente

em forte pauta nas analises do mundo economico.

Fonte: Latuff (2009)

O ciberespaco assume-se como um meio de producao propriamente dito, e torna

possıvel a geracao de valor a partir da informacao que assimila e veicula. Os alicerces da

economia tradicional sao afetados e perdem boa parte da importancia que tinham antes a medida

que outras dinamicas entram em cena. Isto traz, em essencia, uma problematica central para as

praticas capitalistas: os metodos de controle que precisam ser empregados sob propriedade de

natureza imaterial.

Embora tenham orientacao claramente neoliberal e defendam a ‘mao invisıvel do

mercado’ como um regulador economico ideal para a sociedade, DeLong e Froomkin (1997)

pontuam de maneira bastante conveniente os ‘pre-requisitos tecnologicos da economia de

mercado’, e que estariam sob abalo com o surgimento de uma nova ‘economia da informacao’.

• transparencia: a habilidade dos compradores em entenderem o que eles precisam e o que

esta a venda, e com isso saber o que realmente eles desejam comprar

• excludibilidade: o direito de uso de determinada mercadoria pode ser regulado, tal como

ocorre com a compra ou o aluguel

Page 35: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

27

• rivalidade: que o uso de determinada mercadoria por um indivıduo faz com que outro nao

possa utiliza-la simultaneamente

Devido a alta complexidade tecnologica dos produtos, os autores afirmam que a

transparencia das interacoes de mercado estariam sofrendo uma gradativa distorcao porque

compradores nao entendem a tecnologia perfeitamente. Este ponto e considerado bastante

sensıvel e passıvel de muita especulacao, e portanto nao sera aproveitado aqui, pois entende-se

que diversos outros fatores como a persuasao do mercado, custo, concorrencia, e a ampla

quantidade de informacoes disponıveis aos compradores torna sua defesa complicada.

No modelo industrial ha uma dependencia de materiais e recursos para a fabricacao

de produtos, e sua circulacao depende de uma complexa infraestrutura de transportes. Ja a

natureza da informacao e substancialmente diferente, sua geracao e independente do consumo

de recursos materiais e combustıveis, sua replicacao e perfeita, instantanea e automatica, seu

‘consumo’ – ou execucao – nao a deprecia e e passıvel de ser feito por inumeros indivıduos

simultaneamente sem que um venha a onerar outro por isso, e sua distribuicao e infinitamente

facilitada atraves de uma infraestrutura neural e de custo muito mais do que as que sao

necessarios para transportar outros produtos importantes de nossa economia.

E natural e esperado que frente a introducao de realidades distintas o capital passe

a aplicar sobre elas as mesmas operacoes que desenvolveu para outras que ja possuem uma

natureza estavel sob o sentido de seu controle. Frente a imaterialidade da informacao, um

dos grandes objetivos do capital recente foi criar mecanismos limitadores e controladores que

atribuam certo carater material e que venham a satisfazer a ideia de propriedade privada ao

conhecimento e a informacao.

Lessig (2006) sintetiza como sendo em quatro as restricoes de controle que o capital

emprega para que consiga formatar as dinamicas de tratamento da informacao conforme os seus

objetivos:

Page 36: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

28

Figura 4.2: As quatro restricoes do capital sobre o indivıduo

Lawrence Lessig estabelece quatro restricoes basicas da liberdade que o capitalismo deve

exercer sobre um ‘ponto patetico’ para que se torne possıvel a sua expressao no ciberespaco. O

ponto em questao representa um indivıduo subjugado.

Fonte: Lessig (2006)

• leis: regulam o comportamento no ciberespaco atraves de recursos como copyright, leis

de difamacao e classificacao etaria.

• normas sociais: assim como as leis, regulam os diferentes ambientes virtuais – tais como

os foruns, as listas de discussao e redes sociais, atraves do que e socialmente aceito pela

comunidade que os formam; contam aı os aspectos culturais e os valores morais – ou

moralistas – dos grupos sociais

• mercado: basicamente a estrutura de precos para utilizacao da informacao, tal como os

recursos paywall para acesso a notıcias em jornais, compra de filmes, musicas e livros;

admitem tambem as remuneracoes de publicidade e demais servicos

• arquitetura: codigo; o hardware e o software que constituem o ciberespaco e que definem

o nıvel de acesso dos indivıduos as informacoes, tal como barreiras de login e criptografia

Page 37: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

29

Estas quatro variantes se relacionam de maneira complexa e independente, podendo

apoiar umas as outras ou nao. Como exemplo temos o fato de que a tecnologia

(arquitetura) pode prevalecer-se frente as normas e leis, ou podem tambem trabalhar em

seu servico (LESSIG, 2006). O importante a definir e que estas restricoes podem trabalhar

independentemente, com efeitos distintos, embora a resultante de suas forcas sempre sejam

exercidas em conjunto no contexto final de subjugacao.

A partir desta analise nos e possıvel fazer um paralelo com as experiencias do

ciberespaco. Sabemos que o capital atraves de sua forte interferencia nos governos tem, ao

menos em um primeiro momento na historia, se utilizado amplamente dos sistemas jurıdicos

para a criacao de mecanismos regulatorios da informacao que se pautam sobre o conceito de

propriedade intelectual, e que eficientemente tratam de punir aqueles que se atrevem a violar

suas premissas.

Juntamente com artifıcios jurıdicos, temos tambem a forte introducao da cultura da

propriedade intelectual na sociedade. Ha todo um esforco indireto para perpetuacao da logica

de propriedade do conhecimento enquanto o ensino formal garante o supervisionamento e a

forca tecnica para manutencao do modelo.

No entanto, e interessante observar como o mercado e a arquitetura tecnologica

mesclam-se na defesa desta logica de propriedade intelectual. Um grande efetivo na producao

de software e relacionado estritamente com a adequacao da ‘arquitetura’ a praticas que possam

ser utilizadas para infringir leis de direitos autorais. Falamos aı de rotinas de seguranca

anti-copia, de diferentes tecnologias de autenticacao e uma infinidade de ‘segredos’ que

impedem a livre copia e distribuicao da informacao.

Os esforcos de desenvolvimento destes mecanismos sao subsidiados pelo proprio

mercado que os entende como necessarios para o prevalecimento de seus objetivos de

protecao da informacao – ou o de impedir com que as pessoas possam disseminar livremente

uma determinada informacao. Pode-se notadamente acompanhar a evolucao das mıdias de

armazenamento de informacao com a finalidade de impedir a copia de seu conteudo. Fitas

analogicas, por exemplo, podiam ser copiadas facilmente quando foram substituıdas por CDs

e DVDs – artefatos de tecnologia digital cuja flexibilidade para implementacao de rotinas de

protecao e infinitamente maior.

Porem, por maior que seja, a efetividade destas rotinas e breve. A venda dos

equipamentos de copia e o expertise de integrantes da comunidade ‘cracker’ – especialistas

na decifragem destes metodos de seguranca – logo propunham centenas de formas de se

copiar e reproduzir com sucesso qualquer tipo de informacao que pudesse ser comercializada.

Page 38: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

30

A resposta imediata do sistema foi a de tornar cada vez mais severa a punicao para quem

desenvolvesse estes mecanismos e tambem para quem os utilizasse.

Hoje nao somos somente passıveis de multa quando copiamos um jogo eletronico que

tem sua propriedade intelectual protegida para da-lo de presente a um amigo, mas tambem

temos o impedimento tecnologico ao ter de reproduzir corretamente uma determinada sequencia

de dados e procedimentos cuja chave e armazenada na mıdias eletronica deste jogo – a qual

inclusive somos novamente impedidos legalmente de sequer tentar analisar.

O codigo e demais estruturas tecnologicas – a chamada ‘arquitetura‘ de Lessig (2006)

– passam entao a possuir um papel central na logica da propriedade intelectual do ciberespaco.

Embora a cultura ‘cracker’ tenha especializado-se muito bem em desenvolver softwares de

engenharia reversa, a crescente interdependencia dos sistemas de informacao dificultam cada

vez mais – e em alguns casos ate eliminam o sentido – do emprego de tecnicas de quebra de

seguranca.

Neste sentido, com o codigo tomando cada vez mais o poder regulatorio da propriedade

intelectual, a autonomia para implementacao de mecanismos pelos agentes capitalistas no

ciberespaco e tambem cada vez maior, fazendo com que o capitalismo tenha no contexto atual

a ideia de propriedade intelectual mais protegida do que nunca na historia dos processos de

acumulacao (LESSIG, 2006).

O ponto crucial pelo qual constroi-se toda esta analise reside na compreensao da

constituicao do software livre, que ao utilizar os mesmos mecanismos que originalmente

visavam a propriedade de conhecimento, conseguiu constituir-se livre e perpetuar uma cultura

de desenvolvimento antagonica, aberta e distribuıda.

Ao contrario de muitas percepcoes, software livre nao e domınio publico. Muito

pelo contrario, a sua grande base e, antes de mais nada, o mesmo protecionismo jurıdico

desenvolvido para o favorecimento da propriedade intelectual. As quatro liberdades2

cuidadosamente colocadas em um formato tecnico levaram a elaboracao de licencas permissivas

com termos generalistas, porem bastante eficientes e consistentes em objetivo, impedindo que

forcas contrarias a sua proposta tenham a possibilidade de capturar ou intervir no funcionamento

esperado de sua comunidade e de suas politicas de tratamento sobre as informacoes que protege.

A natureza recursiva do software livre – em que trabalhos derivados tambem devem

ser disponibilizados, possibilita um tipo bastante peculiar de cooperacao. A regulacao exercida

pela GPL em sua comunidade e demonstrada por Pedersen (2010) atraves da ilustracao:

2Ver as quatro liberdades do software livre na pagina 3.

Page 39: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

31

Figura 4.3: A regulacao exercida pela GPL

A GPL usa o sistema de diretos autorais para fazer prevalecer a logica do livre conhecimento.

As bases sao a cooperacao entre os indivıduos, as decisoes que possuem valores comuns

dentre os integrantes das comunidades, e que produzem recursos – ou codigos – passıveis de

serem utilizados livremente e ilimitadamente.

Fonte: Pedersen (2010)

O uso do copyright para constituicao do copyleft da-se principalmente na subversao

dos poderes dos indivıduos e pequenas comunidades atraves da propria autoridade criada para

controla-los, e com isso abre privilegios de utilizacao e de decisao para toda a comunidade.

Pelas palavras do proprio Pedersen (2010):

Estruturalmente falando – com relacao as organizacoes sociais – a “unica”diferenca entre propriedade privada e a ideia de propriedade da GPLe a mudanca de foco entre a exclusao e interesses individuais para ocompartilhamento e cooperacao comunitaria. Ambas estas relacoes dao-seentre coisas e pessoas, e sao estruturadas por protocolos normativos.

O objetivo das proxima secao e discutir como se da esta distribuicao de atribuicoes em

um contexto de producao e desenvolvimento de software.

Page 40: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

32

4.2 Producao

Os conceitos de producao dados por Marx sao fortes o bastante para a interpretacao

do que conhecemos por processo de desenvolvimento de software, principalmente porque a

concepcao da tecnologia como produto ja e algo bastante consolidado na sociedade atual,

assim como sao os produtos livres, resultantes de um processo colaborativo entre diversos

desenvolvedores. A necessidade desta analise da-se pela crescente importancia que a

informacao tem tido em nossa sociedade, o que esta modificando as formas de producao que ja

conhecemos.

Em todas as formas de sociedade ha um tipo especıfico de producao quepredomina sobre o as demais, e cujas relacoes atribuem influencia nas demais.E uma iluminacao geral que banha todas as outras cores e modifica suasparticularidades. E um eter particular que determina uma gravidade especıficapara cada ser que nele se materializa. (MARX, 1939, traducao nossa).

Nao cabe a esta secao definir se ja ultrapassamos ou nao um marco historico que

define a informacao como o principal agente de producao de nossa sociedade, mas sim de

discutir seu estado atual em relacao ao software livre. Para isso, nos baseamos no capıtulo

sobre ‘propriedade’ de Harnecker (1973) no estudo do materialismo historico, que define o

conceito de direito de propriedade como:

• o direito de usar um bem

• o direito de gozar de seus frutos

• o direito de destina-lo a qualquer fim

A completude de direitos sobre um bem – o que envolve todos os direitos acima,

e a propriedade sobre ele. No entanto, nao somente esta propriedade e necessaria para

garantir a funcao de um determinado meio de producao. Uma pessoa pode ser dona de uma

fabrica e de seus equipamentos, mas essa posse de nada adianta se nao houverem operarios

contratados e todo o conjunto de aparatos que possibilita o trabalho deles, tal como treinamento

e gerenciamento da producao. A esta capacidade de colocar os meios de producao em

funcionamento e dado o nome de propriedade efetiva.

Assim, chamamos de propriedade real sobre um meio de producao quando, alem de

possuir o direito de propriedade, ha tambem a posse efetiva. Isto e, uma organizacao ou um

indivıduo so tem propriedade real sobre um meio de producao atraves de duas condicionantes:

Page 41: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

33

quando possui direitos de propriedade amparados juridicamente ou socialmente convencionados

sobre ele, e quando e capaz de coloca-lo em funcionamento a fim de cumprir os seus objetivos

de producao.

Este conceito e o que proporciona aos proprietarios dos meios de producao a condicao

de exploradores da forca de trabalho dos nao proprietarios, pois o usufruto e disposicao dos

meios de producao da-se de acordo com os seus interesses.

No contexto classico do materialismo historico, os trabalhadores nao dispoem de

recursos suficientes para colocar o processo produtivo em funcionamento. Estes recursos

podem variar desde o conhecimento necessario que envolve o processo produtivo – dada

a intensificacao da manufatura e subdivisao das tarefas, o que torna necessario que cada

trabalhador conheca somente uma pequena parte de todo o processo – ate a propria estrutura

fabril e materia prima. Assim, um trabalhador e forcado a vender a sua forca de trabalho aos

proprietarios dos meios de producao a fim de obter um salario para subsistencia (MARX, 1887).

Desta forma, e evidente que o conceito de posse efetiva e o mais forte e expressivo

dentre estas classificacoes de propriedade, ja que trata-se do instrumento principal que

possibilita a exploracao da mao de obra e geracao de capital, e que envolve o conjunto de

todas as outras definicoes de propriedade.

Os meios de producao, quando considerados no contexto do software livre, podem ser

sustentados por uma diversidade de atividades baseadas nas suas quatro liberdades3. Observa-se

antes de mais nada, que se uma liberdade infere na negacao de outra, nao se pode considerar

um produto como sendo livre.

Logo, ao poder executar, distribuir ou adaptar um software, um indivıduo faz usufruto

do trabalho de uma determinada comunidade, e detem o direito de propriedade sobre o produto,

ja que pode usar e dispor da sua copia do software para qualquer fim. Se pela definicao de

software livre qualquer indivıduo ou organizacao pode faze-lo, entao podemos considerar que o

direito de propriedade de um software livre encontra-se ‘diluıdo’ na sociedade atraves de todos

os seus integrantes.

Este aspecto de ‘diluicao na sociedade’ e que caracteriza a propriedade sobre a

producao de um software. Ao contrario dos softwares proprietarios cuja propriedade e garantida

de acordo com o poderio economico de uma pessoa ou organizacao, a obtencao de propriedade

de um software livre e substancialmente diferente. O desenvolvimento neste caso e feito por

um conjunto de desenvolvedores e empresas em um contexto aberto. Todos possuem igual

3Ver as quatro liberdades do software livre na pagina 3.

Page 42: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

34

acesso a todas as informacoes e participam do processo produtivo ao inserir cada um as suas

modificacoes no produto final.

A propriedade sobre este meio de producao consistiria no poder de definicao das

futuras modificacoes e no usufruto dos benefıcios que elas acarretariam. Ambos estes aspectos

sao constituıdos pela participacao da comunidade – seja ela corporativa ou nao, pois e ela quem

requere a demanda por modificacoes, e e tambem ela quem usufrui do produto posteriormente.

Raymond (1998) sintetiza que e possıvel adquirir propriedade sobre o sistema de

producao de um software livre das seguintes formas:

• fundando um projeto

• assumindo a propriedade

• tendo a propriedade transferida ou integrada

Fundar um projeto e algo simples e garante a propriedade automatica sobre ele. Ate

que o projeto cresca e gere divergencias de implementacao, e improvavel que exista disputa

sobre sua propriedade.

Assumir a propriedade de um software livre e quando ele encontra-se abandonado e

inativo, e quer-se aproveitar e melhorar os seus recursos. Diversos softwares sao ‘revividos’

depois de algum perıodo de latencia e passam a ser mantidos por outro grupo ou pessoa.

Por outro lado, ter a propriedade transferida ou integrada pode ser algo muito mais

restrito. A ‘transferencia’ de propriedade e quando um desenvolvedor ‘passa o bastao’ para

outro quando nao tem mais o interesse em desenvolver um produto, o que pode ser proximo ao

abandono deste software conforme colocado no item anterior.

Ser ‘integrado’ a propriedade de producao de um software livre significa fazer parte de

um nucleo ‘oficial’ de desenvolvimento e ter mao de obra admitida por um grupo autonomo ou

uma empresa responsavel por sua manutencao. Trata-se de um processo seletivo em si, e como

tal requere comprovacao de capacidade tecnica, analise de experiencias profissionais e projetos

executados anteriormente.

Este ultimo item e o que mais distancia o desenvolvimento de software livre como

sendo uma atividade voluntaria, e e de fato sob esta forma que os softwares livres mais

robustos sao desenvolvidos. Seus desenvolvedores podem ter toda a conviccao ideologica

do software livre e optar por trabalhar nele em detrimento disto, mas se relacionam com as

comunidades muito mais por aspectos profissionais. Embora neste modelo as informacoes

Page 43: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

35

estejam publicamente disponıveis como em qualquer outro projeto de software livre, o controle

da producao e a escolha de novos desenvolvedores e centralizado e nao necessariamente reflete

o desejo da maioria de seus usuarios.

No contexto industrial classico – fortemente presente nas fabricas de hoje, a producao

e uma linha com agentes bem definidos e que agem sobre determinado processo de maneira

pontual, com o devido distanciamento entre trabalho operacional e intelectual, e com facil

identificacao dos proprietarios e do meio de producao.

Este cenario nao e confirmado na producao do software livre, onde ha uma interseccao

que torna praticamente impossıvel diferenciar agentes responsaveis por trabalho intelectual e

operacional, e muito menos definir sequer um proprietario majoritario do meio de producao.

Existem exemplos de softwares livres que, ao passarem por situacoes de tensao entre

seus desenvolvedores, geraram movimentacoes que levaram a constituicao de novos produtos.

Estes conflitos muitas vezes iniciaram-se justamente por discordancias entre desenvolvedores

independentes e grandes corporacoes no que diz respeito ao futuro de determinado produto. O

chamado fork de um projeto – quando um projeto e derivado de outro – normalmente envolve

planejamento e organizacao, e seu sucesso depende bastante do respaldo de sua comunidade.

Ha uma pressao social muito forte contra o fork de projetos, e que normalmentenao ocorre sem que haja uma fundamentacao que demonstre a plenanecessidade em faze-lo, com muitas justificativas publicas e a atribuicao deum novo nome ao novo projeto. (RAYMOND, 1998, traducao nossa).

Ao contrario do que seria no meio material, possibilidades como esta sao consideradas

beneficas no processo de desenvolvimento do software livre – salvo em situacoes em que a

duplicacao do trabalho de desenvolvimento nao se interprete de forma justificavel. A natureza

abstrata do software nao causa oneracao em relacao ao produto a nenhuma das partes envolvidas

no ato da fusao ou divisao de comunidades (RAYMOND, 2000), reforcando a ideia de que existe

uma propriedade uniformemente distribuıda neste meio de producao.

Obviamente, o grupo de desenvolvedores e capaz de movimentar a producao para

constantemente renovar certo produto de software livre, mas e preciso notar o aspecto central

que torna este fato possıvel. Se um indivıduo ou organizacao possui o intuito de produzir certo

produto, e e livre para obter as ferramentas necessarias para tal, sera tambem necessario possuir

o conhecimento tecnologico para faze-lo.

O conhecimento que expressa as liberdades do software livre - executar, modificar

e redistribuir - em relacao a determinado produto, encontra-se disseminado entre todos os

integrantes de sua comunidade, pois cada um deles possui o domınio sobre determinadas secoes

Page 44: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

36

de codigo que os demais nao tiveram responsabilidade direta de criar.

Um exemplo conveniente e o Kernel do Linux, que possui secoes de codigo

independentes chamadas de modulo, e que servem para estender as funcionalidades do

nucleo do sistema. Dentre eles encontram-se os modulos do tipo driver de dispositivo, que

possibilitam ao sistema reconhecer o hardware conectado ao sistema (SALZMAN; BURIAN;

POMERANTZ, 2005).

Como sabemos, existem milhares de variantes de tipo, marca e versao de dispositivos

para serem conectados a um computador. Para funcionarem no Linux, eles usarao estes drivers

de dispositivo, e que consequentemente devem ser codificados especificadamente para cada tipo

– ou ao menos, para uma categoria especıfica – de dispositivo.

E comum tambem novos drivers serem baseados em drivers antigos, em que os

desenvolvedores usam o trabalho que outros ja fizeram para implementar a compatibilidade

a uma nova placa de som, camera, impressora e outros componentes.

Como o Kernel do Linux funciona em diversos tipos de computador, nao e difıcil

concluir que e praticamente impossıvel – para nao dizer pouco util – um unico desenvolvedor

conhecer toda a sistematica de compatibilidade do sistema com uma variedade infindavel de

dispositivos. Ao inves disso, cada desenvolvedor conhece aquela fracao que lhe interessa para

seus objetivos especıficos, mas ainda assim nao deixa de utilizar o todo de funcionalidades que

foi desenvolvido e implementado anteriormente por outros grupos de desenvolvedores.

Temos desta forma, que o conhecimento necessario para implementar as rotinas de

suporte do Linux para a variedade de dispositivos disponıveis nao e tida por uma so pessoa, tao

pouco nos e possıvel afirmar que uma so empresa o tenha. Ao inves disso, cada desenvolvedor

possui uma pequena fracao deste conhecimento e que foi informatizado atraves de uma

contribuicao de codigo.

Na verdade, uma analogia pode ser estendida a qualquer outro componente de

software, sistema de hardware, ao conhecimento cientıfico ou qualquer outra construcao de

ideias, ja que nenhuma conhecimento e criado a partir do nada, e necessariamente precisa

apoiar-se em premissas ja previamente constituıdas (LEVY, 1998).

Voltando ao questionamento sobre a propriedade dos meios de producao4, temos que

a posse efetiva sobre a sistematica de producao de um software livre da-se atraves do exercıcio

do conhecimento de sua comunidade.

De uma maneira mais especıfica, a partir do momento que os conhecimentos estao4Introduzido na pagina 33.

Page 45: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

37

publicamente disponıveis, e que qualquer pessoa em potencial pode fazer parte de qualquer

comunidade de desenvolvimento, esta propriedade da producao e distribuıda em primeira

instancia a todos os seus integrantes, e de maneira mais ampla, a toda a sociedade.

Embora esta interpretacao possa ser feita diretamente, discutir a pluralidade do

software livre tambem pode ser arriscado. Raymond (2000) formalizou os diferentes modelos

de desenvolvimento sob o tıtulo de ‘A Catedral e o Bazar’, em que o modelo aberto e disponıvel

e remetido pelo ‘bazar’, e o modelo tradicional e fechado pelo ‘catedral’. Esta analise que

tornou-se popular no estudo do software livre coloca algumas vantagens do modelo ‘bazar’, e

discute, por exemplo, a sua maior eficiencia de liberacao de versoes. Alem de permitir que

mais desenvolvedores trabalhem sobre determinado produto, o ciclo de identificacao de erros,

correcoes e liberacao das versoes e muito mais rapido para o ‘bazar’ do que o ‘catedral’. Em

um exemplo mais especıfico, as versoes de testes no software livre normalmente sao liberadas

para milhares de usuarios, o que resulta em um sistema muito mais otimizado de reporte de

erros que nao e possıvel de se atingir no modelo proprietario.

Crıticos como Bezroukov (1999) apontam uma simplicidade desta analise – e

Soderberg (2002) apresenta alguns dados – ao expor que o desenvolvimento livre nao e tao

plural, e sim muito mais dependente dos princıpios organizacionais de suas comunidades, ja

que o destino do que acontece com um software livre acaba, na maioria das vezes, por ser muito

mais influenciado pelas decisoes particulares de seus lıderes do que pela comunidade de modo

geral. Isso sem contar que torna-se cada vez mais comum que grandes corporacoes invistam

pesado em software livre, buscando atender seu proprio conjunto de necessidades ao contribuir

para determinado projeto. Neste aspecto, a caracterıstica anarquica muitas vezes atribuıda ao

modelo livre fica comprometida, e a conclusao de que trata-se de uma ‘revolucao socialista’ no

meio digital fica cada vez mais distante.

Tem-se que na pratica os proprietarios de um projeto sao aqueles que possuem o direito

exclusivo reconhecido pela maioria da comunidade em redistribuir as versoes modificadas.

De acordo com as licencas comuns do software livre, todos os indivıduos saoiguais no decorrer das atividades. Mas na pratica ha uma distincao muitobem reconhecida entre os patches ‘oficiais’ que sao aprovados e integradosna evolucao do software pelos mantenedores publicamente reconhecidos,e patches independentes feitos por outros grupos e pessoas. Patchesindependentes sao incomuns e raramente confiaveis. (RAYMOND, 1998,traducao e grifo nosso).

Ohlweiler (1985) cita que a apropriacao dos fatores produtivos que permite unir o

trabalho e os meios de producao com vista a movimentar a atividade produtiva, pode ser

Page 46: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

38

competencia tanto da sociedade como um todo, ou pode tambem concentrar-se a maneira do

monopolio de um grupo social destacado. Esta circunstancia e prevista na teoria base como

um programa a ser seguido para a instauracao de uma ordem social igualitaria, e embora na

sociedade atual os termos e complexidades sejam muito maiores quando falamos do software

livre, podemos afirmar que existem tracos desta realidade, uma vez que houve a apropriacao da

capacidade produtiva de um modo coletivo.

O proprio Bezroukov (1999), que nega explicitamente qualquer correspondencia do

movimento do software livre com o marxismo, acaba por identificar algumas semelhancas e

reconhece que, ao menos as visoes sao analogas. Ao tocar em uma questao mais consensual – a

de que o desenvolvimento aberto e uma excelente alternativa para a erradicacao da desigualdade

social em ambientes digitais – ele tambem cita uma outra interpretacao interessante:

Sem nenhum contato com o mundo digital, [as criancas no Mexico] naopossuem nenhuma chance na economia global de hoje. Gracas ao GNOME,um sistema desktop aberto para o Linux, o governo mexicano esta deixandode destinar 124 milhoes de dolares para a Microsoft, e ao inves disso estausando este dinheiro para comprar computadores. Voce pode chamar issode comunismo, se quiser. Eu chamo de progresso. (BEZROUKOV, 1999,traducao e grifo nosso).

Por mais centralizado que seja o desenvolvimento de um software livre, isto nao e

argumento para descaracterizar as vantagens de termos a transparencia de codigo, e muito

menos de reconhecermos as vantagens socioeconomicas de manipulacao destes softwares. O

papel positivo a ser preenchido por este modelo vai muito alem dos laboratorios de informatica

em escolas pobres, e pode facilmente ser identificado em todas as areas do desenvolvimento

social e tecnologico.

Apesar da severa crıtica a posse efetiva da sociedade em relacao ao software livre,

Bezroukov (1999) nao explica, por exemplo, como foi possıvel que – mesmo em um processo

centralizado de desenvolvimento – poucas pessoas foram capazes de propor ideias muito mais

eficientes do que companhias multibilionarias. O potencial criativo que o aspecto livre da

informacao promove nao pode ser em nenhuma hipotese desvalorizado, e o estudo das situacoes

em que ela aflora pode nos mostrar que ha um intenso processo de apropriacao da capacidade

produtiva para a geracao de valor.

E claro que existem inumeras inconsistencias na retorica da liberdade do software livre.

A sua percepcao de mundo, ideologia e objetivos podem ser os melhores possıveis, mas o

universo de pessoas envolvidas e reduzido, uma vez que o acesso a tecnologia nao e algo que o

sistema capitalista oportuniza a todos, quanto menos a educacao para obtencao de conhecimento

na area de desenvolvimento de software.

Page 47: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

39

Outro ponto e a indevida centralidade do software livre nos debates, uma vez que

as dinamicas de propriedade da informacao sao muito mais amplas e necessitem de analises

expandidas a diversos outros setores, tal como a producao cientıfica e a industria cultural.

4.3 Trabalho

A importancia do estudo das relacoes de trabalho na sociedade da-se nao somente pela

forca em que estas dinamicas sao tratadas na teoria marxista, mas sim pela propria centralidade

que elas possuem na identificacao das diferentes eras da sociedade.

A introducao de um sistema de producao em rede expressa-se como um dos grandes

resultados da revolucao burguesa que eclodiu do sistema feudal que tinha antes como base

a posse aristocratica da terra. Para Marx, o trabalho e, acima de tudo, uma mercadoria

necessariamente tratada pelo capitalista como todas as outras, mas com um diferencial: a

capacidade da geracao de valor atraves de seu uso (NETTO, 2002).

Hoje presenciamos tambem uma profunda reorganizacao das relacoes de trabalho, e a

compreensao de como isto define a vida dos homens e forma a ordem social e essencial para

uma analise sobre a sociedade da informacao.

Marx observou que existem duas formas de fazer com que a exploracao do trabalho

seja maximizada, que e atraves do aumento da producao de modo relativo ou absoluto para

com o trabalho. O modo absoluto consiste em maximizar o tempo em que o capital consome

a forca de trabalho, o que da-se, por exemplo, pelo aumento da jornada de trabalho e pelo

estabelecimento de varios turnos de producao.

De antemao ja podemos notar que este modo e eficiente somente de uma maneira

bruta, ja que existem limitacoes fısicas dos trabalhadores – que nao podem trabalhar

indeterminadamente, e do proprio espaco temporal em que vivemos – pois o dia e um espaco de

tempo limitado. Alem do fato de que simplesmente forcar o tempo de trabalho nao possibilita

um aumento maior do que o proporcional na producao, fazendo com que ele nao seja substancial

o suficiente em termos de desenvolvimento.

Para este caso enunciou-se o modo relativo, que consiste em desenvolver as tecnicas

de trabalho, producao e ate a criacao de agrupamentos sociais para fazer com que o trabalhador

renda o maximo possıvel por tempo de trabalho, o que acaba por inferir de maneira muito mais

estrutural na sociedade e suas dinamicas de producao (MARX, 1887).

Nos Grundrisse, Marx discute sobre a natureza tecnocientıfica do capitalismo, e

Page 48: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

40

preve ate certo ponto que o domınio que o capital exerceria sobre o trabalho atraves de

maquinas dependeria cada vez menos da maximizacao relativa e absoluta do trabalho, e se

pautaria cada vez mais no desenvolvimento tecnologico. O fator principal dos sistemas de

producao se tornaria a capacidade de inovacao tecnocientıfica – o chamado “intelecto geral”

(DYER-WITHEFORD, 1999).

[. . . ] para o nıvel como a grande industria se desenvolve, a geracao de valorvem a depender menos do tempo de trabalho e da quantidade de trabalhadoresempregados do que do poder das agencias utilizado durante o tempo detrabalho, cuja ‘poderosa eficiencia’ esta fora de toda proporcao relacionada aotempo direto de trabalho empregado em sua producao, mas sim na condicaocientıfica e no progresso tecnologico, ou da aplicacao da ciencia na producao.(MARX, 1939 apud SODERBERG, 2002, traducao e grifo nosso).

Marx coloca ainda dois aspectos tecnologicos que seriam indicadores de vigor deste

novo modelo tecnocratico do capitalismo:

• Que a crescente automacao industrial viria a transformar significativamente o trabalho

no chao de fabrica, e passariam a ser necessarios somente trabalhadores com funcoes

indiretas, porem cruciais, para gerenciamento das fabricas, divididos em “trabalhadores

cientıficos” e outras “combinacoes sociais”.

• Que ocorreria a consolidacao mundial das economias para a formacao de um mercado

globalizado – o chamado “trabalho universal”.

Apesar de Marx ter indicado suas percepcoes em relacao ao futuro do trabalho, as

conclusoes e especulacoes acerca das relacoes de trabalho feitas pelos autores modernos na

era da informacao sao pouco consensuais. A configuracao que se da a venda da forca de

trabalho e substancialmente diferente a da epoca em que foi interpretada e descrita por Marx, e e

compreensıvel que ainda nao as tenhamos mapeado com a mesma precisao e aceitacao cientıfica

com que Marx fez em sua realidade.

Anteriormente era possıvel diferir categoricamente entre empregados e patroes,

exploradores e explorados, proprietarios e nao proprietarios dos meios de producao, trabalho

intelectual e operacional. Hoje todas estas relacoes parecem estar contorcidas em um grosso

caldo de atividades sociais, e sao tao variadas as interpretacoes que muitas delas colocam Marx

a prova e tentam decretar a sua falencia teorica:

A coerencia do discurso e das definicoes da economia polıtica – e dos seuscrıticos oitocentistas – se esvai. Os conceitos so sobrevivem, nesse caso, por

Page 49: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

41

alargamento, o que implica necessariamente se desamarrarem uns dos outros.Valor de uso, producao, trabalho, reproducao do capital, etc, so sobrevivemno discurso economico ou sociologico por redimensionamento, sem o qualnao encontrariam caucao na realidade: a producao e o trabalho se desligam dovalor de uso, a reproducao do capital se desliga da producao e do trabalho.(LIBERATO, 2009, p. 7).

A interpretacao a que este trabalho se propoe, no entanto, e um pouco diferente. Ela

busca tracos autonomistas5 para retirada de conclusoes razoaveis em contexto teorico – pois

ve como inevitavel a discussao transcendente a teoria base, mas tambem procura manter-se

ortodoxa nos aspectos gerais para preservar conceitos importantes que vieram a estruturar e

estabelecer o estudo marxista da sociedade.

Quando tratamos do software livre logicamente nao excluımos o seu aspecto humano,

que envolve toda a analise e desenvolvimento que qualquer produto de software exige. A

interpretacao a que este trabalho se propoe – em seu vies de desenvolvimento social – tambem

requer uma observacao mais detalhada do principal motor do software livre, que e o exercıcio

do conhecimento existente em sua comunidade – ou em outras palavras, do trabalho executado

por ela atraves de seus profissionais.

Assim sendo, podemos partir em uma generalizacao do que e este tipo de trabalho.

Nao ha um limiar determinante a estabelecer, por exemplo, pelo que se conhece entre

“desenvolvimento de software” ou “desenvolvimento de software livre”. Naturalmente, as

especificidades e tecnicalidades relacionadas as tecnologias, sistematicas e culturas dentre os

profissionais da area se diversificam, mas o trabalho tecnico, o campo do conhecimento, o

estudo necessario, o campo de atuacao e – principalmente – a natureza das atividades sao

semelhantes o suficiente para que possamos considera-las um so ramo quando a colocamos

frente as demais atividades da sociedade. Podemos tambem considerar que o trabalho

empregado no desenvolvimento de software e somente mais uma das diversas atividades

que possuem a informacao como principal instrumento e finalidade. Esta e, alias, uma das

caracterizacoes mais fortes para o conceito de sociedade da informacao, em que a economia e

o viver baseiam-se cada vez mais no setor de servicos e no valor da informacao, e boa parte de

seus trabalhadores nao esta envolvido diretamente na manufatura dos produtos em um aspecto

operacional (BELL, 1976).

Em um primeiro momento da industrializacao capitalista – e ate hoje, quando as

circunstancias permitem – relacoes absurdas de trabalho se configuram, e jornadas de trabalho

extremamente longas sao utilizadas a fim de se atingir metas de producao. A intensificacao da

luta de classes foram decisivas para desenfrear – ao menos ate certo ponto – tal processo, e hoje5Conforme colocado em relacao a visao autonomista na pagina 22.

Page 50: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

42

a liberdade para otimizar o modo de producao absoluto nao e mais algo tao plausıvel por aqueles

que compram a forca de trabalho. No entanto, nao parecem existir tantos condicionantes para

se orientar o modo de producao relativo.

Harvey (1989) para introduzir uma analise do fordismo, identifica em um contexto

historico como ocorreu a adaptacao dos empregadores em busca do balanceamento destas

formas de maximizacao da exploracao para os propositos de acumulacao, e as chama de controle

do trabalho. O resultado e um misto de repressao e cooperacao nao so nos locais de trabalho,

mas tambem na sociedade atraves da transferencia de valores para o senso comum utilizando

a educacao formal, treinamentos corporativos, persuasao – financeira, emocional, moral; e

tambem pela insercao de sentimentos comuns vangloriaveis como a etica no trabalho, lealdade

as marcas e instituicoes, patriotismo, regionalismo, identidade com a profissao, iniciativa,

humildade e solidariedade.

A expressao midiatica das grandes empresas sao os melhores exemplos de como

se da este processo. Organizacoes que poluem o meio ambiente, utilizam-se de trabalho

escravo e pagam menores salarios as mulheres possuem comerciais na TV que transparecem

uma responsabilidade social totalmente diferente. As multinacionais sempre cabe o discurso

de pleno respeito e compromisso ao paıs hospedeiro, aos grandes meios de comunicacao

financiados por forcas polıticas cabe a etica da ‘imparcialidade e princıpios jornalısticos’, e

aquelas que se utilizam do trabalho escravo chines para eletronicos cabe o senso de iniciativa e

criatividade em prol da melhoria da qualidade de vida de todos.

Os novos trabalhadores da era da informacao devem cumprir um determinado conjunto

de regras e horarios pre-estabelecidos com uma rigidez relativa, mas no contexto beneficiam-se

na relacao com o empregador quando recebe um salario que lhe permite a manutencao de um

padrao socio-cultural satisfatorio, alem de incentivos para o seu desenvolvimento profissional.

Isto e tao consolidado nos dias de hoje que a um bom empregador ja esta automaticamente

associada a imagem do bom salario e da oferta de subsıdios para o aperfeicoamento de seus

funcionarios.

Este trabalhador e o chamado trabalhador socializado na literatura dos novos marxistas

autonomistas, e remete aqueles que possuem tais favorecimentos como requisitos primordiais

para o trabalho, alem de mais um conjunto de peculiaridades ainda nao convenientemente

mapeadas pela tese base do materialismo historico. Esta nova definicao assume que estes

trabalhadores estariam aos poucos substituindo aqueles que conhecemos com perfil mais

operario, e que sao chamados de trabalhadores massificados. (NEGRI, 1991).

A segunda fase da militancia do trabalhador capitalista, que corresponde

Page 51: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

43

ao desenvolvimento de regimes Fordistas e Tayloristas, foi definido pelafigura do trabalhador massificado. A militancia deste trabalhador combinoua sua propria autovalorizacao na forma de negacao do trabalho fabril e aextensao de seu poder sobre todos os mecanismos de reproducao social. Seuprograma foi criar uma alternativa real ao sistema de poder capitalista. Aorganizacao dos grandes sindicatos, a construcao de um estado social, e oreformismo social-democratico foram todos resultantes das relacoes de forcaque o trabalhador massificado definiu e a sobredeterminacao que ele impos aodesenvolvimento capitalista. A alternativa comunista agiu nesta fase como um‘contra-poder’ dentro do processo de desenvolvimento capitalista. (HARDT;NEGRI, 2000, p. 409, traducao nossa).

Ao contrario do trabalho operario massificado com atividades de cunho automatico

ou artesanal, o dinamismo dos ofıcios na sociedade da informacao faz com que o trabalhador

precise tornar-se cada vez mais especializado. Nao trata-se de uma especializacao de aspecto

unitario, como apertar o mesmo parafuso todos os dias, mas a especializacao analıtica e

interpretativa sobre uma determinada tecnologia. Mesmo o trabalhador que encontra-se

na posicao hierarquica mais baixa necessita de um treinamento razoavel para assim poder

aplicar certo conhecimento de modo satisfatorio em um domınio de situacoes. O trabalhador,

obviamente, beneficia-se neste contexto. A medida que ele especializa-se por causa do mercado,

sua forca de trabalho torna-se cada vez mais valiosa, e sua posicao profissional cada vez mais

disputada pelos meios de producao que necessitam de seus conhecimento para gerar valor. A

este processo de investimento do capital em treinamentos e habilidades atribuımos o nome de

valorizacao.

Ha uma relacao profunda entre o trabalhador socializado e os sistemas de informacao.

Pela produtividade deste trabalhador depender de uma complexa divisao do trabalho –

que envolve constantemente um misto de tarefas gerenciais e operacionais, ha tambem a

dependencia de uma rede extremamente estruturada de informacao. Sendo assim, esta rede por

si so e capaz de abstrair e digitalizar operacoes que tornam-se atividade intelectual produtiva

(NEGRI, 1991). Isto representa uma forte maximizacao do modo relativo da producao, pois a

produtividade dos trabalhadores e extremamente automatizada e onipresente, sendo cada vez

menos o resultado de um trabalhador individual.

Um indicador claro desta nova ordem social sao as interdependencias entre seus

integrantes. Se em uma sociedade pre-capitalista as manifestacoes de dependencia entre

os homens ocorria de acordo com a proximidade territorial e familiar, hoje temos uma

tamanha rede de interacoes para geracao de bens e servicos de tal forma que nunca fomos

tao dependentes um do outro. Ja por outro lado, tambem nunca tivemos tanta certeza de que

somos independentes (NETTO, 2002).

Page 52: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

44

O desenvolvimento da sociabilidade e a reducao da ponderacao dasdeterminacoes naturais e organicas por determinacoes cada vez mais sociais.Neste sentido, as dependencias ou as interdependencias nao tem manifestacaoempırica imediata. [. . . ] E proprio da sociedade capitalista constituir umarede de relacoes basicas na sociedade civil que nao aparecem como tais para oindivıduo [. . . ], assim como tornar o conjunto das relacoes humanas alienado.(NETTO, 2002, grifo nosso).

A medida de tempo da exploracao do trabalho deixou de ser a hora ou o dia util para

tornar-se simplesmente uma linha contınua de geracao permanente de valor. Embora com esta

concepcao tenhamos ido um pouco alem dos pressupostos de Marx, o metodo basico para a

geracao de valor continua sendo a exploracao do trabalho (NEGRI, 1991).

Este aspecto de desenvolvimento do trabalhador torna-se ainda mais interessante

quando analisamos o seu processo de construcao de uma autonomia propria que vai alem da

mera resistencia as dinamicas capitalistas e passa a ser um projeto de autoconstituicao atraves do

entendimento de sua forca de trabalho. Os primeiros autonomistas italianos que estabeleceram

este conceito deram a ele o nome de autovalorizzazione, a fim de remeter a autovalorizacao do

trabalhador em relacao ao seu poder produtivo.

Atraves de uma leitura detalhada dos Grundrisse, Negri (1991) diz que o conceito

de autovalorizacao esta implıcito nos conceitos desenvolvidos por Marx em relacao a classe

trabalhadora e seu programa revolucionario. A autovalorizacao do trabalhador seria um

condicionante a emergencia de um poder autonomo solidificado na maturidade organizacional

da classe trabalhadora, e seria o aspecto viabilizador para a instauracao de uma revolucao do

proletariado na sociedade da informacao.

Este conceito vem de encontro ao que Marx ja havia enunciado como o processo de

desvalorizacao do trabalhador atraves da intensificacao de tarefas mecanizadas e o interesse em

fazer com que o trabalhador massificado desconheca a totalidade do processo produtivo, e com

isso exerca uma so atividade com a finalidade de maximizacao do modo relativo de desempenho

da producao. O termo colocado em contextos autonomistas se refere a uma contraposicao a

autovalorizacao, em que o trabalhador nao somente tem o seu modo de trabalho degradado,

mas tambem todo o conjunto de ricas interconexoes e significados que as atividades produtivas

culturalmente acumulam nas comunidades (CLEAVER, 1992).

Em suma, esta releitura das dinamicas de poder e trabalho que busca identificar o

sujeito produtivo de nossa epoca enunciam um novo tipo de trabalhador que:

• depende da informacao em rede para trabalhar, tendo uma relacao muito mais ramificada

e expansiva para a geracao de mais-valia;

Page 53: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

45

• possui alguma especializacao tecnico-cientıfica em algum domınio do conhecimento, de

modo que aqueles altamente especializados sao tambem altamente valorizados;

• esta sujeito a uma jornada fixa de trabalho e outro conjunto de deveres especificados –

mesmo que muitas vezes nao seja completamente favoravel a eles;

• em contrapartida da venda da sua forca de trabalho requer uma participacao maior nos

resultados de seu empregador, assim como o desenvolvimento profissional contınuo no

exercıcio de sua profissao – a ser providenciado pelo capitalista;

• e suscetıvel as correntes sociais autonomistas pautadas na sua autovalorizacao, tendo

a oportunidade de empregar o seu poder produtivo em projetos alternativos que nao

remetam diretamente aos interesses capitalistas.

Embora alguns pontos especıficos possam ser aproveitados da visao autonomista,

esta tese possui inumeros problemas e contradicoes por acabar introduzindo muitas questoes

nao mapeadas pelo marxismo tradicional – o que faz com que se abram precedentes para o

distanciamento de conceitos estruturais, e tambem por acabar sendo reducionista – deixando de

considerar um outro conjunto importante de realidades.

Em primeiro lugar, a exploracao globalizada do trabalho nao parece ser

apropriadamente considerada, ja que boa parte da producao dos paıses com altos padroes

de vida e externalizada em carater desumano para os trabalhadores em paıses mais pobres.

Denuncias destes excessos nao faltam, pois temos a China como principal realidade no suporte

a producao de inumeros artigos consumidos em massa pelo ocidente. O emprego de estrategias

para maximizacao relativa e absoluta do subemprego nao estao so presentes, mas como

tambem nao apresentam o menor traco de crise ou interrupcao dado o sucesso do modelo. E

realmente bastante suspeito estabelecer que os trabalhadores massificados serao gradativamente

substituıdos quando a base material da sociedade da informacao – os eletronicos – tem sua

producao pautada necessariamente no subemprego massificado.

Mas ainda assim – e seguindo o exemplo, admitindo que os eletronicos possam ser

produzidos sem nenhuma especie de exploracao desumana do trabalho, terıamos tambem

que considerar outros aspectos exploratorios e que respondem bem ao marxismo, tal como

as dinamicas de utilizacao dos recursos naturais dos paıses subdesenvolvidos, pois hoje

a producao capitalista e tambem baseada na sistematica importacao de materia prima e

exportacao de impactos ambientais. Chega a ser insistente citar que mesmo nos proprios paıses

desenvolvidos ha todo um setor de servicos baseado no subemprego, tal como os balconistas em

restaurantes fast-food, servicos de limpeza e digitadores de dados mal processados por leitores

Page 54: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

46

computadorizados (DYER-WITHEFORD, 2004). A propria proposicao de uma nova classe

social aparenta ser uma generalizacao muito forte de atributos que estao presentes, na verdade,

somente em uma pequena parcela do reduzido nucleo de mercado das altas tecnologias do

capitalismo. Nucleo este que esta fortemente pautado em uma dinamica ‘tradicional’ – por

assim dizer – de exploracao da forca de trabalho.

Esta e uma perspectiva compartilhada por inumeros autores. Embora nao seja da

corrente que aqui tratamos, e curioso observar, por exemplo, como Castells (1999) discute

as tendencias da sociedade da informacao e dinamicas de poder e trabalho ao analisar

estatisticamente somente as maiores economias do mundo, sem parecer levar em conta o

processo exploratorio de exportacao de mao de obra destas economias para as demais, e que

acabam resultando em modificacoes na distribuicao do trabalho.

Em segundo lugar, e passada a ideia de que a adaptacao dos empregadores as

necessidades de maximizacao da producao capitalista acabou por atenuar as lutas de classes

ao exercer o controle do trabalho sobre as massas e, em tese satisfaze-las com a manipulacao

apropriada de valores, inclusive passando a estimular o trabalhador para o seu proprio

desenvolvimento e bonifica-lo por isso. Assim, nao se pode esquecer que essa bonificacao

e tambem em relacao ao seu salario, o que de um modo simplista e uma visao totalmente

antagonica a necessidade intrınseca do capital em invariavelmente buscar a reducao dos custos

de producao. As relacoes de trabalho na sociedade da informacao sao demasiadamente

complexas para nos permitir apontar que, mesmo com o surgimento de uma nova classe de

trabalhadores socializados, as lutas de classes seriam minimizadas (DYER-WITHEFORD,

2004).

Negri (1991) atribui ao trabalhador socializado algo que dispensaria a intervencao de

algo externo a ele, pela caracterıstica de seu trabalho e pelas redes que dele sao constituıdas.

Caracterısticas que fariam deste trabalhador um sujeito com ımpeto libertador, dado seu patamar

de liberdade criadora, desenvolvido no processo de producao (GURGEL; MENDES, 2010).

[A questao da visao autonomista e] problematica para nos, tendo emvista que a invencao intelectual ainda se apresenta, no capitalismo, comomaquina-ferramenta voltada para a demanda do capitalista. Demanda esta pormecanismos de aumento de acumulacao de seu capital. Em outras palavras,a tecnica criada, a partir de um engenheiro de computacao, por exemplo,constitui-se em meios de producao necessarios para o ciclo e processo dereproducao do capitalismo. A invencao, portanto, se apresenta neste contextocomo mais uma mercadoria e serve como motor para a criacao de novosmercados, na linha da flexibilizacao da producao, via palavras-acucar comoqualidade total. (GURGEL; MENDES, 2010, p. 35, grifo nosso).

Embora a visao colocada por Gurgel e Mendes (2010) seja absoluta demais,

Page 55: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

47

compartilhamos com eles a interpretacao de que uma suposta nova classe de trabalhadores nao

pode ser definida, e que portanto esta tese nao e satisfatoria para o entendimento das novas

dinamicas do capital aplicadas a sociedade da informacao.

As inconsistencias das teses autonomistas prosseguem, e nao e interesse desta secao

dedicar-se exclusivamente a sua contraposicao. Ao contrario, em especial a proposta colocada

pela autovalorizacao oferece subsıdios uteis para verificar a relacao do software livre no

contexto do materialismo historico. Esta tese parte de um simples pressuposto que pode ser

aceito mais facilmente: que e impossıvel para o capital obter sucesso em utilizar toda a forca

produtiva disponıvel. Se ha espaco, tempo e energia para producoes alternativas ao projeto

capitalista, entao existem projetos autonomos, independentes e, possivelmente contrapostos aos

interesses do capital, e que por isso se caracterizam por promoverem a autovalorizacao. Nao

so o software livre pode se encaixar neste quadro produtivo, mas tambem projetos importantes

que acabam colocando-se contra a ordem hegemonica, que defendem a cultural livre, e ate

ferramentas de livre dispersao da informacao como o Pirate Bay e o WikiLeaks.

Nota-se um paradoxo do sistema capitalista em relacao as habilidades que ele

precisa do trabalhador. Se por um lado e necessario o enriquecimento profissional, cultural,

crıtico e economico de uma nova classe socializada, dinamica e interconectada atraves de

uma rede autonoma e produtiva, faz-se tambem necessaria a sua desvalorizacao sistematica,

planificando-a culturalmente e tornando-a menos diversa, criativa, e o mais suscetıvel possıvel

as variacoes mercadologicas que queira-se impor.

Lyon (1994) discute a relatividade do controle que o sistema capitalista possui sobre as

forcas produtivas na era da informacao, e afirma que se em um primeiro momento o desempenho

da producao e assegurado em um mundo fısico atraves da burocracia em protocolos, normas

tecnicas e leis trabalhistas – o que por si so ja garante um consideravel controle social,

e esperado que novas formas de relacoes de trabalho tenham uma vigilancia atraves do

ciberespaco em um aspecto bastante diferente.

Um novo contexto produtivo baseado em informacao vem a fragilizar e ate a invalidar

os metodos de controle tradicionais. O alcance legal, da forca policial e das barricadas e

subjetivo, e com isso abrem-se pressupostos para o emprego de uma vigilancia tecnologica

totalitaria a fim de garantir a manutencao do sistema. Preocupantemente, esta e a forma como

de fato as novas economias liberais tem exercido esta vigilancia, pois e claro para elas que

quem exerce o controle social e aquele que detem o controle da tecnologia (LYON, 1994), e e

preciso se assegurar que os devidos agentes possuam o controle pelo fortalecimento do sistema

economico.

Page 56: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

48

Por outro lado, a explıcita dependencia da economia da informacao sobre a capacidade

comunicativa e cooperativa desta nova forca de trabalho retira parte do carater controlador da

producao dos agentes capitalistas (SODERBERG, 2002). Um indicativo minimalista sobre isto

esta nas implementacoes livres de software, em que a maior parte dos atributos presentes na

utilizacao e implementacao de um determinado software sequer esta sob o alcance decisorio

das instituicoes que dele retiram valor. Em meio a este paradigma, interpreta-se que e um papel

intrınseco para o sucesso das atividades do capital:

• o balanceamento otimizado das dinamicas de valorizacao e desvalorizacao do

trabalhador;

• a desconstrucao dos processos de autovalorizacao que tornem-se evidentes e possam, com

isso, configurar-se em potentes contraposicoes a manutencao do sistema.

Nos projetos de autovalorizacao, alem de encontrarmos a negacao ou o poder de

destruir a determinacao do capital, temos tambem uma recomposicao da classe trabalhadora

atraves da afirmacao criativa e do poder de constituicao de novas praticas, e que em muitos

casos estao construıdos sobre bases antigas, herdando e protegendo praticas culturais que

sobreviveram as tentativas de desvalorizacao feita pelo capital. Em outros casos, estes

projetos nascem de dentro do proprio capital atraves da modificacao essencial de elementos

especıficos que em algum momento ja pertenceram integralmente ao conjunto de praticas

para a acumulacao capitalista, sendo portanto, uma especie de conversao dos processos de

desvalorizacao (CLEAVER, 1992).

Embora nao seja obrigatoria, a relacao entre a negacao ao capital e a determinacao de se

afirmar atraves da autovalorizacao e bastante intrınseca. O poder deste tipo de desenvolvimento

do trabalho e o poder de preencher os espacos liberados pelo capitalismo com projetos

alternativos e autonomos, e isto muitas vezes requer a identificacao apropriada destes espacos

e de seus personagens, para entao contornar as adversidades colocadas pelo sistema que

fatalmente trabalharao contra este preenchimento.

O que torna este texto ainda mais simpatico a tese da autovalorizacao descrita por Negri

(1991), e que o conjunto de projetos que pautam-se sobre ela nao se qualificam como um projeto

social unificado e revolucionario, mas denotam uma pluralidade de instancias e possibilidades

que surgiram atraves da insatisfacao com a configuracao do sistema atual, e principalmente pelo

fato de que estes projetos autonomos nao necessariamente precisam combater o capitalismo,

mas podem tambem ser parte dele em um aspecto diferente daqueles ja existentes para a geracao

de valor.

Page 57: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

49

Para Cleaver (1992), se aceitarmos a tese de autovalorizacao e a ideia de que o

capitalismo globalizado veio em um misto complexo de formas de agir, torna-se facil a aceitacao

de que, como indivıduos, nao podemos participar de um modo autentico de todas estas formas

para entao poder analisa-las e identificar os processos de autovalorizacao que nelas ocorrem. Se

queremos entender estas relacoes – defende o autor:

Ao contrario dos teoricos do capital que podem simplesmente projetar seusproprios conceitos sobre os outros como parte do projeto capitalista emsubverter todo mundo e qualquer estrutura social para si mesmo, as lutas contratodas as formas de dominacao requerem uma negacao de tal imperialismoteorico, e de forma muito mais aberta, realizar tentativas imaginativas paraentender as formas alternativas de ser em seus proprios termos. (CLEAVER,1992, p. 24, traducao nossa).

Em todo este contexto, o valor de Negri (1991) na analise do capital esta em enxergar

os recursos de comunicacao como uma crescente area de tensao. As recentes manifestacoes na

primavera arabe e na ocupacao em Wall Street, embora ainda parecam inexpressivas frente ao

poder de acumulacao do capital, demonstram que ha um estımulo a criatividade e autonomia

partindo desta rede digital. A tese, ao menos neste aspecto, materializa-se e causa uma friccao

pequena, porem incomoda a hegemonia do capital.

A maior importancia, no entanto, esta mesmo na sobrevivencia do marxismo atraves

das correntes autonomistas, e no seu esforco em medir o impacto da tecnologia em termos

de oportunidades – nao para a consolidacao do capitalismo, mas para a luta de classes

(DYER-WITHEFORD, 2004).

A relacao destes conceitos com o software livre e bastante relativa e dividida. Ao

mesmo tempo que pode ser considerado que o fruto de qualquer contribuicao a rede de

informacoes e simplesmente uma contribuicao ao motor de acumulacao do capital6, pode-se

tambem considera-la como uma contraposicao as praticas ja consolidadas que garantem a

hegemonia do sistema.

Na visao autonomista, podemos estabelecer que a profissao de desenvolvimento de

software e um fruto da necessidade de acumulacao do capitalismo atraves da otimizacao de

operacoes, e que se da por uma rede de informacoes autonoma. Este profissional operante

sobre esta rede, como ja e sabido, necessita de prontidao para com o raciocınio logico,

conhecer bem os algoritmos que possibilitam as operacoes nas estruturas de dados, dominar

praticas de gerenciamento de codigo, e tambem estar em atualizacao constante com as novas

solucoes e tecnologias criadas por outros desenvolvedores e apresentadas nesta mesma rede

6Verificar a visao ortodoxa exposta por Gurgel e Mendes (2010) na pagina 46.

Page 58: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

50

de informacoes. Para ter este profissional a mao, o sistema regulariza suas instituicoes

educacionais para transmitir todo este conhecimento, estabelece uma faixa de remuneracao

razoavel para quem pode aplica-los, persuade a sociedade para que esta ocupacao seja encarada

com admiracao, e ate iconiza empresas heroicas que acabam por tornar-se referencia na area

para que as demais as tenham como um modelo de producao a ser seguido.

No exercıcio de seu trabalho, o desenvolvedor arquiteta a estrutura dos dados e

implementa as rotinas necessarias para que as tarefas possam ser automatizadas. Com isso

uma serie de conhecimentos sao transformados em sımbolos e armazenados sob o formato de

informacao atraves de servidores e cabos de fibra otica. Como este objeto consiste no aspecto

central desta economia localizada da sociedade da informacao, a posse em relacao ao uso e

disposicao deste recurso cabe a quem viabilizou a sua implementacao. No caso, a posse pertence

ao empregador deste profissional atraves de um conjunto proprio de mecanismos administrados

pelo estado, e introduzidos justamente para a manutencao desta forma de producao.

Como visto, a informacao colocada desta forma possui um carater nao rival7, e logo

nao se dissipa simplesmente apos a sua criacao e aquisicao. Ela pode ser copiada sem nenhuma

especie de oneracao e fica tambem preservada na mente de seus projetistas, e pode em tese ser

reproduzida por eles atraves da simples persuasao de sua forca de trabalho.

Em um contexto capitalista para a informacao comodificada, esta reproducao deve

ser controlada e distribuıda somente a quem tenha dado por ela um determinado valor

de troca considerado equivalente. Porem, se o mesmo projetista quiser reproduzir esta

informacao em um ambiente diferenciado, e no seu direito de propriedade atribuıdo pelo

proprio estado ele quiser defender que sua criacao pode ser copiada, modificada e redistribuıda

indeterminadamente por qualquer indivıduo, entao temos neste caso uma contradicao produtiva

em relacao a este recurso informacional, pois sua transferencia para novos proprietarios deixa

de ser uma atividade geradora de valor por si so, e passa a ser simplesmente uma transferencia

tecnologica.

As bases de sustentacao das primeiras adaptacoes do capitalismo a geracao de

informacao nao propunham a livre distribuicao, mas sim a distribuicao direcionada, e

devidamente cobrada. Introduzir uma nova dinamica de mercado que possibilita a livre

producao a partir da descentralizacao tecnologica era, a princıpio, impensavel, e continua sendo

vista pelo grande mercado como uma atividade antagonica e que deve ser combatida.

O ponto crucial a ser questionado neste momento e: Ate que ponto estas novas relacoes

se configuram em um modelo antagonico de desenvolvimento aquele que ja esta posto? Nao

7Ver a secao sobre informacao no contexto tecnologico na pagina 26.

Page 59: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

51

estarıamos tratando somente de mais uma adaptacao do capitalismo a outros requisitos de

mercado?

Ha um numero de empresas que trabalham exclusivamente com software livre,

assim como tambem tem crescido o numero de empresas que adotam software livre para

suas aplicacoes. Por outro lado, as grandes companhias que promovem a propriedade

intelectual tambem tem departamentos inteiros destinados somente ao estudo e implementacao

de tecnologias livres em seus negocios. O tema da liberacao de produtos proprietarios que

utilizam em sua maior parte software livre tem sido alvo de muitas crıticas daqueles que

defendem o uso justo da tecnologia e do seu retorno para a sociedade.

Independente das visoes que aproximam o software livre do capitalismo, e apesar

de existirem interesses controversos por todas as partes, o que podemos afirmar e que estas

empresas nao possuem o poder pleno de subjugar as comunidades de desenvolvimento para

seus proprios interesses, e tambem nao podem definir os fins de utilizacao dos produtos livres,

que podem, inclusive, ser usados para diminuicao do poder hegemonico sobre a propriedade

intelectual.

Por mais que o software livre possa fazer parte de um projeto capitalista, ha um

favorecimento social bastante forte na planificacao de novas tecnologias e no fomento de

inovacao. Para Merten (2001), o software livre esta tanto dentro quanto fora do capitalismo,

e tem sua existencia em parte motivada pelas oportunidades de desenvolvimento de valores que

nao sao somente feitos para a compra e venda, mas tambem tem seus benefıcios retornados para

a diminuicao da concentracao tecnologica.

4.4 Valor

Marx abre as secoes iniciais do Capital discutindo a geracao de valor e a natureza dos

commodities, e define conceitos que tornam-se essenciais para a apropriacao de toda sua tese

sobre o capitalismo. Este e o motivo pelo qual a parte final da analise presente neste trabalho

tem esta tematica, pois entende-se que a essencia do que se conhece pelas dinamicas do software

livre reside na percepcao de valor que a sociedade possui sobre os sistemas de informacao.

Ja ha mais de um seculo desde as primeiras constatacoes de Marx sobre a revolucao

burguesa, vivemos ainda em um sistema pautado fortemente pela propriedade dos meios de

producao e pelas relacoes de trabalho. A descaracterizacao de uma analise marxista desta

sociedade seria somente viavel se nao fosse possıvel observar estes dois complexos atributos

relacionarem-se um com outro tendo por finalidade a geracao de valor.

Page 60: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

52

Os esforcos conduzidos pelo capital para fazer com que o simples transito da

informacao seja capaz de gerar valor atraves de concessao e comercializacao tomou a atencao

de muitas analises sobre a sociedade da informacao e o seu principal produto, o que levou a

frequente utilizacao do termo ‘comodificacao da informacao’.

A utilizacao do termo commodity e bem anterior a Marx. Shakespeare a coloca

poeticamente frente a tangibilidade de comercializacao de magoas, sentimentos e doencas;

David Ricardo e Adam Smith tambem perseguem suas analises economicas atraves de conceitos

por eles apropriadamente definidos; e assim por diante ate as bolsas de valores atuais e o mais

recente sentido de comercializacao da informacao (NOAM, 2001).

Para fins de parametrizacao contextual, podemos tomar brevemente as observacoes de

Noam (2001) em suas tentativas de identificar os aspectos negativos do termo ‘comodificacao

da informacao’ nos diferentes significados por ele encontrados:

• massificacao da informacao: refere-se a imensa quantidade de informacao gerada pela

sociedade da informacao com o passar do tempo;

• homogeneizacao da informacao: definicao advinda de produtos unitariamente

indiferenciaveis e comercializados somente em grandes quantidades, e que se

reproduziriam na era da informacao atraves de veiculacao sobre quantidade, tal como

nos comerciais de TV;

• baixo custo da informacao: devido a competitividade do mercado e acelerada geracao de

informacao, ela tem se tornado cada vez mais barata;

• controle por grandes empresas: expansao relativa da nocao de propriedade intelectual e

que levaria a um oligopolio da geracao de informacao;

• comercializacao da informacao: momento em que a informacao torna-se um bem privado,

produzida e vendida de acordo com o lucro que estas atividades geram.

O interesse aqui – ja que estamos tratando de software – e discutir os dois ultimos

aspectos em especial, e que estao intimamente interligados na logica de oligopolio da producao

e venda de software.

Para Marx, um commodity e – dentre variantes – um produto ou um servico que

esta oferecido no mercado e que foi gerado por trabalho humano, e constitui o objeto base

para o desenvolvimento de sua teoria do valor-trabalho. E compulsorio para o capitalismo

atribuir propriedade a logica de se comodificar uma mercadoria, pois assim da-se sentido a sua

Page 61: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

53

compra e venda pelo princıpio da excludibilidade e rivalidade, e torna possıvel sua alienacao

– a transferencia de seu direito de posse de modo defensavel por alguma legislacao – que seja

formal ou social.

O comum acordo que geralmente se faz neste ato de transferencia de propriedade e o

pagamento, e que necessita na maioria das vezes que o vendedor possua o direito de alienar

sua mercadoria – seja por mecanismos de protecionismo industrial, alvaras, registros de posse,

acordo social, entre outros.

May (2001) argumenta que existem tres principais fatores que sustentam a propriedade

intelectual e tornam esta operacao de transferencia socialmente aceita a partir do ponto em que

ha o reconhecimento de propriedade por uma das partes. Segundo ele, aceitamos que alguem e

dono de uma ideia porque:

• as pessoas buscam ser recompensadas por serem criativas;

• os autores possuem identificacao com suas obras;

• o mercado sempre busca um uso eficiente dos recursos.

Em uma percepcao social, o direito de propriedade ‘adquirido’ sobre um produto

recem-criado e, antes de mais nada, um direito moral em favorecimento de seu criador, ja

que aquele que o criou empreendeu certo tempo e esforco para faze-lo, e logo, tem tambem

o direito de usa-lo ou vende-lo para benefıcio proprio. Este e um aspecto central das discussoes

sobre direito de propriedade, em que muitas vezes assumem-se as patentes e a copyright como

um instrumento de estımulo a inovacao e esforco individual, e que os artistas, pesquisadores e

industriais irao perseguir a recompensa pelo desenvolvimento de novos produtos.

O segundo aspecto diz respeito ao carater pessoal do processo criativo, o que e

especialmente notavel no mundo artıstico – e tambem, mais recentemente no mercado da

tecnologia. Musicas, filmes e livros deixam transparecer com bastante facilidade as ideologias,

conviccoes e determinacoes de seus autores, assim como os mais novos aparelhos eletronicos

que, embora sejam o resultado do trabalho de centenas de pessoas, nao raramente possuem uma

figura humana mercadologicamente alocada a responsabilidade de sua criacao.

May (2001) explica esta relacao segundo a tese de Hegel de que o reconhecimento de

um indivıduo como ator social reside em sua propriedade, ja que e nela que ele deposita um

sentimento de protecao em relacao a forcas externas que interfiram em sua integridade social,

tal como como a coercao do estado e a ameaca de concorrentes. O estado, neste sentido, age

Page 62: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

54

com o poder de barganha de garantir o direito a propriedade enquanto reivindica dos indivıduos

as devidas contribuicoes para manutencao de um determinado sistema economico.

Por ultimo, ha um argumento de tom mais economicista sobre o uso eficiente de

recursos. Em um contexto historico, a propriedade surgiu da necessidade que os indivıduos

perceberam em alocar recursos entre si de modo que os benefıcios e custos sobre esta posse

se tornasse modular – em outras palavras, que se pudesse atribuir fronteiras nas relacoes entre

indivıduos e recursos, e quem se beneficia e se onera com ele. O desenvolvimento sistematico

desta caracterıstica permitiu a formacao de mercados cada vez maiores, pois com a acumulacao

de benefıcios vinha tambem a influencia e o poder de negociacao a medida que o mercado

possuıa interesse em um recurso.

Com esta configuracao, se deu um sentido cada vez maior a logica de tentar

continuamente externalizar os custos que uma determinada posse acarreta. A ‘eficiencia’ de um

recurso acaba sendo, em grande parte, a quantidade de custos de sua propriedade que se pode

externalizar, mas tambem o interesse que a sociedade possui em sua obtencao. Este interesse

ocorre do ponto de visto economico quando um produto ou servico tem escassez – a existencia

de mais demanda do que oferta, e somente com esta caracterıstica e possıvel introduzir um

produto ou servico em um mercado.

Ao contrario de possuir qualquer relacao com a escassez, a informacao pode ser

multiplicada a ordens virtualmente infinitas ja que nao possui excludibilidade nem rivalidade.

Para dar a ela um preco e torna-la passıvel de comercializacao e necessario antes de mais

nada criar mecanismos que a tornem escassa, e e este o principal objetivo da estrutura

jurıdico-polıtica que assegura a propriedade de conhecimento. Como a escassez e uma variavel

importante para definicao dos precos e constituicao da eficiencia de um mercado, somente sendo

proprietaria e que ela pode ser compatıvel com as ‘leis’ e dinamicas capitalistas.

Culturas que nao possuem escassez de determinados recursos geralmente desenvolvem

formas de transacao que sao baseadas no valor de uso dos bens, e embora a reciprocidade exista

de diferentes formas, ela nao necessariamente esta presente em termos de benefıcios de mercado

entre as partes que comercializam. Este tipo de economia e a chamada economia do dom, e que

apresenta-se como contraria a economia de mercado.

A Internet e as dinamicas sociais que a envolvem sao tidas como a mais forte expressao

da ‘cultura do dom’ na atualidade, em que a informacao e trocada sem nenhuma expectativa

aparentemente imediata de reciprocidade. Isso ocorre em meios colaborativos como as redes

‘piratas’ de compartilhamento de arquivos, sites de comunidades para suporte tecnico e troca

gratuita de informacoes, projetos colaborativos como a Wikipedia, e nas comunidades de

Page 63: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

55

desenvolvimento de software livre. Os participantes destas atividades nao necessariamente

buscam uma remuneracao material ou financeira, mas o fazem pelo prestıgio de participacao

e construcao de projetos, pelo dispendio e exercıcio da criatividade, pelo reconhecimento, pelo

senso de colaboratividade, dentre outros motivos.

Ao contrario das economias de mercado – em que a condicao de controle para usar e

realizar transacoes e um status social, Raymond (1998) argumenta que no caso do software

livre a reciprocidade reside em um conjunto de relacoes de sua comunidade que envolve

principalmente o reconhecimento e o prestıgio entre seus membros.

[. . . ] a sociedade de hackers do software livre e de fato uma cultura do dom.Dentro dela nao ha nenhuma restricao seria as ‘necessidades de sobrevivencia’– espaco em disco, banda de Internet, poder computacional. O software elivremente compartilhado. Esta abundancia cria uma situacao em que a unicamedida competitiva de sucesso e a reputacao de um indivıduo para com os seuspares. (RAYMOND, 1998, traducao e grifo nosso).

Em uma pesquisa sobre a comunidade de desenvolvimento da distribuicao Fedora

Linux, Harrelson (2011) procura saber o motivo pelo qual os membros desta comunidade

contribuem para o projeto. O resultado de sua pesquisa para a pergunta “O que lhe motiva

a dedicar tempo e habilidade tecnica ao Projeto Fedora?” e mostrado na tabela 4.1.

Tabela 4.1: Porque os membros da comunidade contribuem com o Fedora Linux

Motivacao Geral Muito Importante Importante

Aprender pelo prazer de aprender 42% 43%

Retornar a comunidade 41% 34%

Trabalhar colaborativamente com pessoas inteligentes 39% 36%

Tornar o mundo um lugar melhor 39% 20%

Paixao e felicidade pessoais 39% 44%

Ajudar os outros 37% 41%

Orgulho e realizacao 31% 38%

Ser respeitado e valorizado pelas contribuicoes 26% 30%

Benefıcios de carreira por capacitacao e experiencia 16% 39%

Formacao de uma rede de contatos pessoal e profissional 15% 29%

Resultado da pergunta “O que lhe motiva a dedicar tempo e habilidade tecnica ao Projeto

Fedora?”, feita com 103 desenvolvedores do Fedora Linux em uma pesquisa sobre

antropologia e a cultura do software livre.

Fonte: Harrelson (2011, traducao nossa)

Page 64: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

56

Vemos que o crescimento profissional e a formacao de contatos sao aspectos

importantes para os desenvolvedores, mas ainda assim o senso de cooperacao e a ideologia

do software livre ultrapassam qualquer outro motivo que os leve a trabalhar em um projeto

comum. Uma outra pesquisa mais ampla feita na Alemanha com 2784 desenvolvedores

identifica o mesmo aspecto primario como motivo de contribuicao aos projetos, e observa

que embora os estudantes e desenvolvedores ‘independentes’ tenham um papel importante nas

comunidades, na maioria dos casos as questoes crucialmente tecnicas, o nucleo dos projetos e a

lideranca ficam a cargo de profissionais dedicados e que compoem a ‘elite’ de uma comunidade

(INFONOMICS, 2002).

Uma pesquisa de Ghosh e Prakash (2000) pode complementar estes resultados. Eles

concluıram que, em media, 72,3% da base de codigo dos projetos de software livre sao advindos

do trabalho de cerca de 10% de seus desenvolvedores, sendo que os 10 mais atuantes – que

compoem 0,08% do total, sao responsaveis por 19,8% das contribuicoes.

Sao varios os motivos pelos quais poucos desenvolvedores possuem uma carga

de trabalho maior: Trabalho de lideranca, centralizacao das atividades mais importantes –

como a selecao e aplicacao de patches, e acima de tudo, de uma ‘dedicacao exclusiva’

remunerada. Neste contexto, pode-se dizer que o software livre contem pouca contribuicao

espontaneamente voluntaria no sentido financeiro, ja que mesmo aqueles que nao possuem uma

remuneracao direta para com sua colaboracao possuem, em algum momento, uma repercussao

profissional no exercıcio da atividade. A maioria dos desenvolvedores do Kernel do Linux, por

exemplo, sao devidamente remunerados por esta atividade (CORBET; KROAH-HARTMAN;

MCPHERSON, 2012).

Percebemos, neste ponto, que quando se trata de conhecimento na comunidade do

software livre – codigo, estruturacao de procedimentos, bibliotecas – o que menos importa e

justamente o fator da propriedade – ou quem e o autor de determinada parte do codigo. Este tipo

de tratamento a um commodity e extremamente peculiar do ponto de vista da logica capitalista,

pois o que possibilita a definicao de valor de um bem ou servico e justamente sua essencia de

propriedade e a quem se destina as parcelas de comercializacao.

Em seus manuscritos sobre economia e filosofia de 1844, Marx discute por todo um

capıtulo sobre o comportamento esperado do comunismo em relacao a propriedade.

[. . . ] o comunismo e a expressao positiva da anulacao da propriedade privada –ou propriedade universal em um primeiro momento. [. . . ] seu formato basicotrata-se de uma generalizacao e consumacao [da propriedade privada]. [. . . ]A comunidade e somente uma comunidade de trabalho, e de igualdade deriquezas pagas pelo capital comum – pela comunidade como um capitalista

Page 65: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

57

universal. Ambos os lados desta relacao podem ser levantados para umauniversalidade imaginada – o trabalho como uma categoria em que cadapessoa e colocada, e capital como uma reconhecida universalidade e poderda comunidade. (MARX, 1954, p. 42, traducao e grifo nosso).

Parafraseando Marx, o comunismo e uma possibilidade colocada pela propria situacao

da burguesia, cuja concentracao de recursos o proletariado deve subverter em seu proprio

favor para a fundacao de um novo modelo de sociedade. A partir do momento em que o

software livre subverte a logica capitalista para com a informacao e funda um novo sistema

de producao baseado na livre propriedade e na economia do dom, torna-se tentador – porem,

muito pouco prudente – fazer uma comparacao direta e afirmar que o software livre e uma

expressao comunista da sociedade da informacao.

Nao por acaso este contexto e explorado por alguns autores enquanto desperta a ira

de outros. (BARBROOK, 2000), em defesa da ideia do que ele batiza de ‘cibercomunismo’,

afirma atraves da traducao de termos e da comparacao de momentos historicos que a sociedade

estadunidense esta em um processo silencioso de caminhar para um comunismo tecnologico, o

qual todos participam, mas nao e a ninguem permitido refletir.

A maioria dos usuarios da Internet ja participam das relacoes produtivas docibercomunismo. Todos os dias, eles enviam e-mails, discutem em forunse listas de discussao, participam de conferencias online. Nao ha nenhumanecessidade em vender informacao como um commodity, ja que trabalhamespontaneamente juntos pela circulacao de valor. [. . . ] Ocupados emsuplantar o capitalismo, os estadunidenses estao construindo o futuro utopicono presente: o cibercomunismo.

Raymond (2001), por outro lado, diz que esta comparacao e absurda porque o

software livre, acima de tudo, nao forca as pessoas a compartilharem o resultado de seu

trabalho. O software livre permite que qualquer pessoa possa adaptar e melhorar um programa,

mas nao implica que suas modificacoes tenham de ser divulgadas, e nem as impede de

serem comercializadas – o que por si so implode um possıvel paralelo com as dinamicas de

propriedade em um regime comunista.

Houveram seguidas tentativas dos grandes grupos corporativos em condenar a

pratica colaborativa, afirmando que ela atrofia o potencial criativo, a producao cultural e o

desenvolvimento tecnologico por nao estimular artistas e pesquisadores a perseguirem a geracao

de conhecimento. Artistas famosos, porta-vozes e presidentes de grandes corporacoes foram a

publico defender claramente a logica de apropriacao do conhecimento atraves de mecanismos

coercitivos que caracterizam a colaboracao como ‘pirataria’, e que a enquadram em uma

categoria generalista de crime cibernetico ao qual poucos utilizadores da Internet estariam –

dadas as profundas dinamicas de colaboracao da atualidade – apropriadamente isentos.

Page 66: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

58

No contexto da comparacao do software livre com o comunismo, esta retorica vem

de encontro ao que os governos capitalistas ocidentais sempre fizeram com as administracoes

socialistas na Europa Oriental, Asia e America Latina – acusando-as de ineficiencia social,

falencia do potencial produtivo, e de ‘demonizar’ sua essencia em um sentido moral.

Figura 4.4: Programar software livre e uma pratica comunista

“Quando voce programa software livre, esta programando comunismo – Um lembrete dos seus

amigos da Microsoft”.

Adaptacao de uma satira para o contexto do software livre e o comunismo. Esta arte tambem e

utilizada para ironizar a caracterizacao do modelo social de outros aspectos da cultura

colaborativa – tal como o compartilhamento de musicas e filmes na Internet.

Fonte: Erickson (2007, traducao nossa)

Porem, toda esta rotulacao do software livre parece ser de pouca utilidade em meio a

magnitude de conceitos que uma compreensao da sociedade da informacao exige. Ao subverter

a logica da propriedade e com isso ser capaz de mobilizar mao de obra para geracao de valor,

o software livre configura-se como uma expressao bastante diferenciada de economia, mas nao

isenta-se da pratica de acumulacao ‘convencional’ do sistema capitalista.

Internamente – nas dinamicas entre seus membros e comunidades – ha uma plena

Page 67: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

59

resolucao de um modelo praticamente utopico e que demonstra um funcionamento cada vez

mais vigoroso. No entanto, as relacoes ‘externas’ que o software livre movimenta parece

obedecer a mesma logica capitalista que ele anteriormente subverteu.

Em pesquisas feitas com empresas de tecnologia da informacao que utilizam e

desenvolvem software livre, Skok et al. (2012) obteve os principais criterios considerados na

escolha delas por tecnologias livres, conforme mostrado na tabela 4.2 para as edicoes de 2009

a 2012 da coleta de dados.

Tabela 4.2: Criterios de escolha de software livre pelas empresas

2009 2010 2011 2012

Menores custos Menores custos Liberdade de

comercializacao

Liberdade de

comercializacao

Melhor seguranca Liberdade de

comercializacao

Menores custos Menores custos

Liberdade de

comercializacao

Ritmo de inovacao Flexibilidade Qualidade

Ordem dos criterios para escolha do software livre na implementacao de solucoes segundo

pesquisa feita com 740 empresas do ramo de tecnologia da informacao.

Fonte: Skok et al. (2012, traducao nossa)

Em muitos aspectos, uma vez prontos e empacotados os softwares livres acabam sendo

na pratica, equivalentes aos softwares proprietarios. Corporativamente, os criterios pelos quais

eles sao escolhidos para utilizacao sao os mesmos dos softwares proprietarios. Em outras

palavras e, segundo a pesquisa de Skok et al. (2012), se um software proprietario vir a oferecer

melhor custo e condicoes mais permissivas de comercializacao, e possıvel que tenha tambem

mais chances de ser escolhido no lugar de um software livre caso os demais quesitos sejam bem

avaliados.

O software livre – mais especificadamente o Linux, tem apresentado um contınuo

crescimento no mercado de tecnologia da informacao desde o seu lancamento em 1991. Embora

em 2012 a fatia de computadores pessoais seja ainda muito pequena – cerca de 1,5%, tem-se

que mais de 63% do mercado de servidores e mais de 92% do mercado de supercomputadores

e dominado pelo Linux (WIKIPEDIA, 2012).

Em um primeiro momento da observacao deste crescimento, empresas com negocios

fortemente pautados na propriedade intelectual como a Microsoft entenderam este avanco como

Page 68: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

60

uma ameaca, e logo trataram de investir em campanhas de marketing que – com variantes de

intensidade – desqualificam o modelo aberto de desenvolvimento. Os argumentos giram em

torno da suposta maior suscetividade a falhas devido ao carater exposto de codigo, e maior

custo de implantacao devido ao treinamento e mao de obra especializada necessarias.

Figura 4.5: Propaganda anti-Linux da Microsoft

Propaganda do sistema operacional Windows 2000 que tem a chamada principal: “Um sistema

operacional aberto nao tem somente vantagens”, e descritivo: “Um sistema operacional aberto

sofre muitas mudancas. Com o Windows 2000 voce tem todos os servicos em uma so fonte.

Assim voce economiza tempo e dinheiro.”

Fonte: Sixgun (2009, traducao nossa)

Embora no passado a Microsoft tenha se utilizado de secoes de codigo de varios

projetos licenciados sob a BSD, e curioso como hoje ela preocupa-se em combater o Linux.

O motivo vem principalmente da natureza do copyleft, pois o Linux encontra-se liberado sob

a GPL – uma licenca ‘verdadeiramente livre’, ou ‘nao corrompıvel’. Ao contrario da BSD,

que permite a liberacao de codigo em formato proprietario, a GPL condiciona que sistemas

derivados, se distribuıdos, devem tambem estar sob os mesmos termos, e acaba assim por

favorecer a distribuicao do conhecimento quando se trata da comercializacao deste codigo.

Este combate dicotomizado entre livre e proprietario que a industria da informacao

admite para a questao do software acaba levando a uma serie de contradicoes de ambas as

partes. Ao mesmo tempo que a sobrevivencia do software livre depende em grande parte de sua

capacidade competitiva e de comercializacao para com os softwares proprietarios, empresas

Page 69: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

61

como a Microsoft e Apple – dentre outras que comercializam sistemas operacionais, por

exemplo – incorporaram fracoes de codigo originalmente livres em suas plataformas.

Mais recentemente, estas mesmas empresas – tradicionalmente conhecidas por um

posicionamento sistematicamente contra o software livre – tem cada vez mais reconhecido

o potencial de benefıcios do software livre e se aproximado das comunidades, direcionando

recursos de seus departamentos a pesquisa, incorporacao e contribuicao de conhecimento livre.

No relatorio do desenvolvimento do Kernel do Linux de 2012, feito anualmente pela Linux

Foundation, a Microsoft pela primeira vez apareceu entre as 20 empresas que mais contribuıram

para o projeto, com 688 modificacoes aceitas – cerca de 2.000 linhas de codigo (CORBET;

KROAH-HARTMAN; MCPHERSON, 2012) – ironicamente, mais contribuicoes do que a

Canonical, empresa que promove o Ubuntu, a distribuicao Linux mais utilizada no mundo.

[. . . ] a empresa que uma vez chamou o Linux de um “cancer”, hoje estatrabalhando dentro do modelo de desenvolvimento colaborativo para oferecerseus esforcos de virtualizacao aos seus clientes. Devido ao Linux ter alcancadoum estado de ubiquidade, em que tanto os mercados de computadorescorporativos e moveis estao confiando no sistema operacional, a Microsoftesta claramente trabalhando para se adaptar (FOUNDATION, 2012, grifo etraducao nossa).

Ja a Red Hat, a principal distribuicao Linux comercial, e a principal empresa que

contribui para o desenvolvimento do Kernel (CORBET; KROAH-HARTMAN; MCPHERSON,

2012), e realiza estas contribuicoes em um ambito totalmente diferente ao vender servicos,

suporte tecnico e acesso a uma rede de atualizacoes de seguranca automatizada. Como nao

se pode tornar um trabalho derivado do Linux proprietario, a Red Hat persuade seus clientes

a ‘comprarem’ um software que eles poderiam ter de graca ao vender, acima de tudo, uma

percepcao de seguranca em relacao ao produto e sua manutencao. Este e, de fato, o modo como

boa parte do software livre e ‘comercializado’.

Embora os softwares livres sejam capazes de dedicar parte de seu sucesso e recursos

para a viabilizacao de projetos que procuram combater os efeitos do capitalismo – tal

como a democratizacao do acesso a informacao, inclusao digital e expansao do conceito de

propriedade a outras realidades – eles acabam sendo, sobretudo, uma incorporacao das logicas

de propriedade atraves de outros nıveis relacionais do mercado da informacao.

O surgimento de novas plataformas digitais acaba intensificando ainda mais esta

complexidade. O Google, assim como as grandes redes sociais – Twitter e Facebook, somente

existem porque investiram fortemente no desenvolvimento de tecnologias livres ja previamente

existentes, mas acabaram nao retornando – ou retornaram muito pouco – estas melhorias para o

cırculo de colaboracao da qual as retiraram primeiramente.

Page 70: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

62

De maneira analoga e um tanto quanto mais integradas a cultura do software livre,

empresas menores assumem a lideranca no desenvolvimento de projetos livres que sustentam

seus negocios, instituindo uma especie de cırculo proprio de monopolio cujos principais

esforcos, muitas vezes, nao remete a vontade da maioria dos utilizadores daquele software,

mais sim a prestacao de seus servicos, mesmo que para isso acabem utilizando contribuicoes

externas a estrutura de profissionais que controla e remunera diretamente.

No entanto, uma das mais novas e bem sucedidas formas de utilizacao de tecnologias

livres da-se no mercado de aparelhos moveis. A Google lidera este segmento com o Android,

um sistema operacional baseado no Linux e cuidadosamente liberado de forma modular e sob

licencas livres. Muito embora o nucleo deste sistema deva sempre ser mantido em GPL –

devido a sua derivacao do kernel do Linux, existem muitos aplicativos proprietarios integrados,

e a maioria do codigo livre nele presente esta sob as licencas Apache, BSD ou MIT, e serve

para que basicamente os fabricantes dos aparelhos e desenvolvedores de aplicativos possam

modifica-lo e gerar produtos proprietarios (STALLMAN, 2011).

Este modelo torna-se bastante interessante para a Google, ja que ela passa a ter

assistencia da comunidade para desenvolvimento do Android ao mesmo tempo que encoraja o

desenvolvimento de aplicativos proprietarios e reforca a utilizacao de outros produtos e servicos

que presta na Internet. Um modelo ‘totalmente aberto’, com ampla utilizacao da GPL, seria

ilogico dentre os objetivos que a Google possui com o Android. Mueller (2011) afirma que

ao ‘capturar’ fragmentos de codigo livre e incorpora-lo no Android, a Google infringe uma

seria violacao da GPL e da propriedade intelectual, e supoe como seria uma suposta ‘liberacao

completa’ do Android:

O Android iria diretamente de encontro as estrategias da Google. Todosseriam livres para usar, modificar e redistribuir todo o software afetado. Comoresultado, nao haveria oportunidade de rendimento para os desenvolvedoresdas aplicacoes, e os fabricantes de aparelhos baseados em Android naopoderiam mais diferenciar seus produtos dos add-ons proprietarios. Qualquersoftware que eles publicassem se tornaria automaticamente disponıvel atravesdos termos da GPL. Os precos e margens [de lucro] cairiam inevitavelmente.(MUELLER, 2011, grifo e traducao nossa).

Desse modo, como e perfeitamente possıvel a uma organizacao qualquer utilizar-se

do software livre para tornar sua expressao economica cada vez mais relevante no proposito

capitalista, tem-se que ela precisa, acima de outras acoes, subjugar o trabalho de uma

comunidade de desenvolvimento – por mais que isto torne-se moralmente justificavel atraves de

uma igual contribuicao ao projeto. Empresas que operam agressivamente neste sentido tendem

a gerar algumas controversias e que acabam na mobilizacao da comunidade para contraposicao

Page 71: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

63

e, em alguns casos, a geracao de forks.

Apos a aquisicao da Sun Microsystems pela Oracle, movidos pela incerteza da nova

corporacao em manter o aspecto livre do sistema de banco de dados MySQL, foi criado o projeto

MariaDB com o objetivo de manter ıntegro o licenciamento GPL da base de codigo. A Oracle

e acusada pela comunidade de ter abandonado o projeto e de nao mais contribuir com o seu

desenvolvimento, e que teria com isso interesses proprios ao favorecer os seus sistemas de banco

de dados proprietarios (WILLIAMS, 2012). Casos como este repetem-se de maneira similar,

tal como o provedor de acesso remoto OpenSSH – criado quando seu antecessor tornou-se

proprietario, as ferramentas de escritorio LibreOffice – que especialmente no Brasil enfrentou

diversas batalhas judiciais devido a marcas registradas, a distribuicao Linux Mageia – criada

tambem pela falta de confianca de seus desenvolvedores no aspecto livre e seguro do Mandriva

Linux, e por fim o Android – que gerou o Replicant, uma versao independente e totalmente

livre desenvolvida frente as limitacoes colocadas pela Google para com o software livre neste

projeto.

E verdade que muitos softwares livres deixam de ser desenvolvidos por falta de

interesse, mas mesmo assim parece existir um limite abstrato que as empresas devem obedecer

em relacao a inferencia estrategica e jurıdica que podem ter sobre um software livre a fim de

serem ‘aceitas’ nas respectivas comunidades de desenvolvimento. Softwares livres que possuem

valor agregado no mercado da tecnologia raramente sao tomados em benefıcio proprio por uma

empresa sem que uma comunidade independente demonstre tambem que e capaz de manter

versoes alternativas e de alocar recursos a parte de uma apropriacao considerada abusiva.

Em casos mais polarizados, dado um monopolio de mercado colocado por uma

grande empresa desenvolvedora de software, os concorrentes podem buscar outra especie de

monopolio atraves do software livre ao ofertarem servicos e atualizacoes especıficas, o que

pode ser encarado como uma forma de adaptacao e maximizacao de lucros frente a uma

corrente hegemonica. Em um outro caso e que vem sendo cada vez mais recorrente, e o

de que empresas utilizam-se do trabalho feito nas comunidades e apropriam-se de recursos

livres, embora estejam completamente de acordo com os termos legais das licencas copyleft

envolvidas, a empregam com uma otica proprietaria para a geracao de novos produtos e servicos.

A busca por um novo modelo de desenvolvimento e pautada na percepcao de diversos

aspectos que no final das contas acabam convergindo em uma natureza economica e de melhor

competitividade. O software livre permite uma forte externalizacao de custos, facilita a criacao

de correntes de inovacao e pulveriza os recursos em forma de conhecimento que sao necessarios

para a producao. Chesbrough, Vanhaverbeke e West (2006) representam este novo paradigma

Page 72: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

64

de inovacao atraves da figura 4.4

Figura 4.6: O paradigma de inovacao segundo o modelo aberto

A producao de bens e servicos e representado atraves de um funil em cuja base esta toda a base

tecnologica aplicavel a um mercado seletivo que esta na outra ponta. O modelo aberto

caracteriza-se pela diversidade de formas pelas quais uma determinada tecnologia pode vir a

ser empregada no mercado atraves da insercao de novos mercados e fontes de recursos.

Fonte: Chesbrough, Vanhaverbeke e West (2006)

Nesta nova realidade bem mais diversa e dinamica, os conflitos que regem o mercado

e o direcionamento do valor nele gerado parecem estar fortemente presentes no domınio sobre

o fluxo dos recursos e na propria detencao da informacao em si, cada contexto tratando com

pesos diferentes estas duas variantes.

Em primeiro momento, e ate o modo como este estudo interpreta a forma como ainda

ocorre a maior parte das dinamicas economicas no contexto da sociedade da informacao, ha a

disputa pela propria posse do imaterial, seja ele como um mero commodity ou como informacao

estrategica de producao. Neste sentido foram desenvolvidas formas de regulacao que viessem

a possibilitar a adequada comercializacao da informacao, e acaba constituindo uma dinamica

presente em varias realidades, seja ela da producao cultural ou tecnologica.

Sobre esta primeira logica os mercados baseados em tecnologias livres se

Page 73: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

65

desenvolveram e acabaram em um segundo momento dependendo muito mais de como os

recursos sao alocados para giro de inovacao e producao, e para isso moldam os aspectos

jurıdicos, sociais e culturais em busca do domınio sobre a canalizacao do valor gerado nesta

movimentacao. Esta moldagem e por si so geradora de uma serie de conflitos e contradicoes,

em que empresas e comunidades introduzem questoes legais e eticas acerca do domınio

tecnologico, e empreeendem grande esforco de producao em diferentes vertentes a fim de

garantir a geracao de produtos considerados adequados segundo suas perspectivas de mercado,

sejam elas eticas ou financeiras.

Contradicoes nao faltam as dinamicas economicas que envolvem os projetos de codigo

livre, e nao e o objetivo deste estudo avaliar os princıpios eticos destas relacoes. Exemplificar

algumas destas incoerencias, no entanto, serve para demonstrar a dificuldade necessaria de

identificacao de conflitos na totalidade social que e a producao de software livre e a sua

inferencia nos processos de acumulacao capitalista, cuja analise detalhada talvez venha a

envolver mais algumas totalidades que possuem cada qual sua propria dinamica diferenciada

de disputas.

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66

5 Conclusao

A liberdade em suas diferentes formas para com a sociedade e uma longa tematica

trazida por varias correntes de pensadores atraves da historia. O Iluminismo foi uma expressao

mais moderna e humanizadora neste sentido, e trouxe aos autores posteriores uma posicao mais

focada na expressao do homem com o mundo e seus pares. Teve nos direitos humanos boa

parte de sua incorporacao, e a medida que quebravam a logica medieval do pensar, tambem

investigavam as praticas economicas que estavam em curso, mostrando que a propriedade e

as relacoes de trabalho eram eficientes respostas para perguntas emancipadoras e de carater

libertario.

Como heranca de toda esta tradicao humanista e racionalista, o metodo marxista surge

como uma forma bem aceita de analise da logica de producao burguesa, e ainda propunha

formas de contraposicao atraves da organizacao. Dado o impressionante crescimento das

economias baseadas em informacao desde a decada de 80, alguns autores consideraram esta

percepcao de analise ampla o suficiente para ser passıvel de utilizacao em nossa sociedade atual.

Com a consolidacao dos monopolios informacionais e uma primeira evidencia do software livre

durante a decada de 90, iniciaram-se os estudos a respeito da cultura colaborativa, do monopolio

da informacao e dos modelos de inovacao tecnologica, e logo vieram as primeiras interpretacoes

de cunho revolucionario do software livre.

A partir desta necessidade de entender as dinamicas reguladas pela informacao, ha

uma contradicao evidente na literatura que aponta o alargamento excessivo que as correntes

‘neomarxistas’ teriam dado aos conceitos basicos. Ao realizar os exercıcios teoricos de uma

nova sociedade, autores teriam identificado novos conceitos, novas entidades e com isso teriam

se afastado demais da teoria base. No entanto, entende-se que a extrapolacao circundante e

ponderada e necessaria, e pode vir a trazer reflexoes esclarecedoras para o entendimento de

nossa sociedade, e assim procurou explorar as relacoes entre alguns conceitos pontuais: a nocao

de propriedade, meios de producao, trabalho e geracao de valor, e com isso construir uma

analise da inferencia do software livre dentro da realidade de producao de software na sociedade

da informacao.

Page 75: Representações da Teoria Marxista no Software Livre

67

O aspecto que torna a economia da sociedade da informacao mais peculiar reside no

seu carater imaterial, e no paradigma de ausencia de custo e tempo para copia e reproducao

de uma mercadoria. Esta caracterıstica traz uma serie de dinamicas ainda mais aceleradas e

complexas para a sociedade, modificando profundamente as relacoes de trabalho e propriedade.

Os meios de producao, antes dependentes da propriedade da terra, localizacao geografica e de

uma estrutura industrial, passam a ser baseados cada vez mais em simplorias vias de veiculacao

da informacao regidas por software. A producao independe do tempo em si, e pode ser gerada

e absorvida com um grau pequeno de presencialidade, digitalizando a atividade intelectual e

tornando-a produtiva.

Estas nova economia fez com que o mercado se adaptasse em diferentes direcoes

para fazer valer a informacao as suas tecnicas tradicionais de comercializacao – a chamada

‘comodificacao da informacao’. Mas a producao de software e tambem a producao cultural

depararam-se com uma completa falencia de tentativas em instituir um completo regime de

copyright, e impedir que qualquer informacao legalmente protegida fosse redistribuıda. Os

artifıcios tecnologicos empregados em pouco foram pareos para as redes de compartilhamento

de arquivos e para a perspicacia tecnica de engenharia reversa dos crackers, condenacoes legais

mostraram-se insuficientes, e o discurso de culpabilizacao moral para que os consumidores

fossem justos com os artistas e produtoras nao pareceu repercutir em favor da propriedade

intelectual.

Dentro das proprias condicionantes que a copyright coloca, o exito do software livre

esta justamente em sua capacidade de subverte-la e utilizar seus proprios termos para objetivos

antagonicos, e assim garantir que softwares derivados de licencas livres devam tambem ter seu

codigo publicado de forma aberta. A principal contradicao colocada pelo software livre reside

nesta caracterıstica, que e a de eliminar os artifıcios reguladores sobre a informacao, tornando-a

amplamente disponıvel e retirando-a de qualquer economia que venha a condicionar a escassez

de commodities.

A producao destes softwares livres organiza-se de forma bastante peculiar e complexa

atraves da rede de computadores e suas comunidades. Extingue-se a figura do proprietario legal,

ganhador de royalties e detentor das decisoes. As comunidades de desenvolvimento passam

a exercer este papel atraves de seu conhecimento e esforco intelectual, e definem quais os

rumos de determinado software atraves de seus proprios criterios e organizacao, atribuindo a

seus membros diferentes nıveis de gerencia e grau influencia nas decisoes. Com naturalidade

estas comunidades formam-se, dividem-se, criam comunidades menores e dependentes, e

dissolvem-se na descontinuacao de projetos, sem perder a alta flexibilidade e capacidade

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inovativa.

As escolhas possıveis para o mercado corporativo em relacao ao software livre parecem

ser o combate direto a sua ideologia – frente que parece perder forca com a intensificacao

da cultura colaborativa, ou o uso deste modelo segundo estrategias de distribuicao de codigo

– pratica que tem sido cada vez mais recorrente. As novas adaptacoes para tornar a

distributividade de codigo rentavel por si so normalmente equilibram-se em um limiar entre

o livre e o proprietario, entre o permissivo e o proibido, entre o copyright e o copyleft.

Toda e qualquer retorica revolucionaria que ja foi anteriormente atribuıda ao software livre

parece esvair-se com a adaptacao capitalista a sua realidade. Embora a popularizacao de

uma tecnologia e seu crescimento sejam pautados nos modelos livres, as praticas economicas

tradicionais sempre permanecem de uma maneira ou outra com a informacao encapsulada em

uma fracao comodificada.

Os conflitos tornam-se evidentes quando existem tentativas de proteger o aspecto

verdadeiramente livre dos softwares ao manter as condicoes de livre redistribuicao – uma

iniciativa geralmente tomada pelas comunidades atraves do entendimento de que o monopolio

sobre um projeto de software livre e prejudicial porque acaba tendendo no atendimento

de demandas comerciais centradas no negocio do monopolista, e deixam de atender um

interesse mais amplo e que poderia melhor estimular a inovacao e popularizacao. Neste

contexto, governos e entidades sem fins lucrativos – como as fundacoes e cooperativas de

desenvolvimento, acabam atuando como importantes reguladores na viabilizacao de interesses

mais coletivos.

O software livre opera tanto ‘dentro quanto fora’ do capitalismo, e e capaz de mover

diferentes formas mais criativas e dinamicas de acumulacao, como tambem pode promover

meios libertadores da insercao tecnologica na sociedade. Ao assistir as grandes corporacoes

apropriando-se de seus ideais e construindo verdadeiros imperios economicos, nao podemos

simplesmente ignorar e nem deixar de fomentar o potencial revolucionario de um unico

desenvolvedor autonomo, empregando sozinho sua capacidade intelectual em busca de uma

alternativa, pois foi nestas mesmas condicoes que boa parte dos mais importantes softwares

livres surgiram.

A tentativa de buscar tracos marxistas na totalidade da tecnologia da informacao nao

exclui nenhuma outra condicao presente nas demais complexidades do sistema capitalista. Para

que um computador de ultima geracao possa executar um aplicativo segundo todas as premissas

da liberdade de conhecimento, e provavel que diversas praticas desumanas tenham sido

empregadas durante a fabricacao deste dispositivo, tal como a geracao de impactos ambientais

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69

irresponsaveis e a utilizacao de trabalho escravo; sempre obedecendo a logica monopolista e

globalizada que permite uma maximizacao da acumulacao de valor. O materialismo historico

percorre inumeros escopos e sao de incrıvel diversidade, e acaba revelando no software livre

somente uma parcela de um senso de igualdade social.

Embora o software livre nao garanta uma economia da informacao igualitaria que

pluralize o acesso a tecnologia e que ofereca a todos as mesmas condicoes, uma sociedade

que verdadeiramente incorpore estas caracterısticas nao somente utilizara codigos livres com

exclusividade, mas tambem nao vera sentido na propriedade do conhecimento em toda a

extensao da atividade humana.

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