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COMO AS INSTITUIÇÕES PENSAM MARY DOUGLAS

21801238 Como as Instituicoes Pensam Mary Douglas

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COMO

AS

INSTITUIÇÕES

PENSAM

MARY DOUGLAS

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Copyright @ 1986 by Syracuse University Press

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

__________________________________________________________ Douglas, Mary

Como as Instituições Pensam / Mary Douglas ; (tradução Carlos Eugênio Marcondes de Moura). - São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1998. (Ponta, 16) Título original: How Institutions Think Bibliografia ISBN 85-314-0455-X 1. Cognição e cultura 2. Comportamento organizacional 3. Instituições sociais – Aspectos pedagógicos 1. Título. 98-1938 CDD-306 ____________________________________________________________ Índices para catálogo sistemático: 1. Instituição: Pensamento: Sociologia 306

Mary Douglas, antropóloga, pesquisadora e professora, lecionou nas Universidades de Oxford e de Londres, na Northwestern University e atualmente é professora visitante na Princeton University.

Digitalizado a partir de software HP OCR I.R.I.S.

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SUMÁRIO

Apresentação ... ....................................................................6

Prefácio .. ............................................................................10

Introdução ... .......................................................................19

1. As Instituições Não Podem Ter Opiniões Próprias..........19

2. Dar um Desconto à Pequena Escala...............................31

3. Como os Grupos Latentes Sobrevivem...........................42

4. As Instituições se Fundamentam na Analogia.................57

5. As Instituições Conferem Identidade ...............................67

6. As Instituições Lembram-se e se Esquecem...................82

7. Um Exemplo de Esquecimento Institucional....................96

8. As Instituições Operam a Classificação.........................108

9. As Instituições Tomam Decisões de Vida e Morte ........130

Bibliografia.......................................................................... 151

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APRESENTAÇÃO

Mary Douglas apresentou a sexta Conferência Abrams na Universidade

de Siracusa, durante as duas semanas de março de 1985. O evento é

realizado mediante uma dotação da Fundação Exxon Education, em memória

de Frank W. Abrams, que foi presidente do Conselho da Standard Oil Company

(New Jersey), a qual antecedeu a Exxon, e presidente do Conselho de

Curadores da Universidade de Siracusa.

Durante toda sua vida o sr. Abrams liderou todos os esforços no sentido

de oferecer apoio à educação superior. Ele fundou o Conselho para Ajuda

Financeira à Educação, serviu como presidente do Fundo da Fundação Ford

para o Avanço da Educação e foi curador da Fundação Alfred E. Sloan. O sr.

Abrams exerceu um papel fundamental ao despertar os empresários

americanos, por meio da educação e de precedentes legais, verdadeiros

pontos de referência para a necessidade de se prestar apoio financeiro à

educação superior privada.

A Fundação Exxon Education continua a expandir inspirada no trabalho

desenvolvido por Frank Abrams. O papel de liderança da Fundação no apoio à

educação superior é certamente muito conhecido e respeitado. Somos gratos à

Fundação por seu generoso apoio a vários empreendimentos da Universidade

e sentimo-nos particularmente orgulhosos da Conferência Abrams, já que

Frank Abrams formou-se em 1912 na Universidade de Siracusa.

Um agradecimento especial é devido aos membros da Comissão de

Planejamento da Conferência Abrams, à frente da qual se encontra Guthrie S.

Birkhead, reitor da Escola Maxwell Para a Cidadania e Negócios Públicos. Com

o reitor Birkhead trabalham Michael O. Sawyer, vice-chanceler da Universidade

e professor de Direito Constitucional; Richard Oliker, reitor da Escola de

Administração; Richard D. Schwartz; Ernest I. White, professor de Direito; Chris

J. Witting, presidente do Conselho de Curadores da Universidade de Siracusa

e ~obert Payton, presidente da Fundação Exxon Education.

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Mary Douglas revelou-se uma conferencista e uma convidada

extremamente obsequiosa. Realizou cinco magníficas conferências, teve

encontros regulares com os membros do corpo docente e os alunos dos cursos

de pós-graduação, visitou classes de graduação e trouxe a marca toda especial

de seu calor humano aos dias, algumas vezes enregelados, do início da

primavera em Siracusa.

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PREFÁCIO

Este livro é o resultado de um convite feito pela Universidade de

Siracusa para realizar o sexto conjunto de conferências da série que

homenageia Frank W. Abrams. Em semelhante caso, o tema é parcialmente

indicado pela forma da ocasião. Um convite formulado pela Escola Maxwell

para a Cidadania e Assuntos Públicos exige temas com grande

desenvolvimento. Um convite para realizar conferências requer que esses

temas sejam compactados para ocupar pouco espaço. O fato de ser escolhida

como conferencista sugeria que uma síntese pessoal seria apropriada. Para

mim esse convite era irresistível, já que eu teria a oportunidade de voltar a

dizer o que tentei colocar. Dirigir-me, dessa vez, a um auditório crítico e atento

na Universidade de Siracusa significava tentar abordar o tema sob novas luzes,

torná-lo mais claro, mais convincente e, finalmente, transmiti-lo de maneira

apropriada.

Torna-se necessária uma teoria das instituições que modifique a atual

visão não-sociológica da cognição humana, bem como uma teoria cognitiva

que ofereça um suplemento às debilidades da análise institucional. O tema é

suficientemente amplo, de interesse momentâneo e pouco comentado para que

se realize uma abordagem especulativa em torno dele. Este é o primeiro livro

que eu deveria ter escrito após minha produção sobre a pesquisa de campo na

África. Em vez disso escrevi Pureza e Perigo (1966), numa tentativa de fazer

generalizações a partir da África e em relação à nossa própria condição. Meus

amigos disseram-me, naquela época, que Pureza e Perigo era um livro

obscuro, intuitivo e despreparado. Eles estavam corretos e, desde então, venho

tentando compreender os fundamentos teóricos e lógicos de que necessitaria

para apresentar uma argumentação coerente sobre o controle social da

cognição. Este volume constitui, na verdade, uma introdução post hoc. É como

um prolegômeno a Risk Acceptability (1986), que aponta um dedo acusador

para certa cegueira profissional e para uma resistência arraigada ao tema. Risk

Acceptability, por sua vez, é como uma introdução em acréscimo a Risk and

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Culture (publicado em 1982, em colaboração com Aaron Wildavsky), um livro

que demonstra como a análise antropológica das crenças públicas pode ser

aplicada ao nosso próprio caso. No entanto, Risk and Culture é a

argumentação que deveria ter vindo à luz antes que lmplicit Meanings fosse

publicado em 1970 com um ensaio intitulado “O meio-ambiente corre riscos".

Todos eles deveriam ter sido editados em ordem inversa, terminando com The

Lele of the Kasai (1963). Se isto tivesse acontecido, a Comissão das

Conferências Abrams agora estaria acolhendo a primeira dessas publicações

nas séries que ela vem promovendo. Mas como é que isto poderia ter

acontecido se fiquei tão endividada no decorrer de um tempo tão longo? Muitos

autores, jovens, velhos e alguns infelizmente mortos ajudaram-me em cada

estágio. Espero que este livro possa ser tão aceitável a ponto de romper com o

encantamento de tal forma que eu agora possa escrever para diante e não

para trás.

Este livro começa com a hostilidade dispensada a Emile Durkheim e aos

durkheimianos quando se referiram às instituições ou grupos sociais como se

eles fossem indivíduos. A própria idéia de um sistema cognitivo suprapessoal

provoca um sentimento profundo de insulto. A ofensa é indício de que, acima

do nível do indivíduo, outra hierarquia de "indivíduos" está influenciando os

membros que se situam num nível mais baixo a reagirem violentamente contra

essa ou aquela idéia. Presume-se que um indivíduo que contenha em si seres

humanos pensantes seja alguém detestável, totalitário, que constitua uma

ditadura altamente centralizada e eficaz. Por exemplo, Anthony Greenwald

recorre a Hannah Arendt e a George Orwell tendo em vista modelos totalitários

daquilo que ele classifica como os domínios do conhecimento extrapessoal

(1980). No entanto, a reflexão deixa bem claro que, em níveis mais elevados

de organização, os controles sobre os membros que a constituem, situados em

níveis mais baixos, tendem a ser mais fracos e mais difusos. Muitos

pensadores sutis e capacitados ficam de tal forma nervosos devido à crua

analogia entre a mente individual e as influências sociais que preferem

descartar o problema.

Os antropólogos, entretanto, não podem descartá-lo. Emile Durkheim, E.

Evans-Pritchard e Claude Lévi-Strauss são grandes líderes que devem ser

seguidos. O estudioso cuja marca se faz sentir de maneira mais intensa no

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tema coberto por este escrito é Robert Merton. A ele, com respeito e afeição,

dedico este livro, confiando que sua generosidade passará por cima de suas

deficiências. Meu marido merece um tributo especial. Quando dois problemas

parecem insolúveis, nossa longa experiência da vida doméstica tem sugerido

uma abordagem enviesada. Em vez de atacar de frente cada questão

separadamente, pode-se trabalhar com um conjunto de problemas para

confrontar os demais. Tal estratégia, que produz novas definições sobre aquilo

que deve ser solucionado, é que fornece a estrutura deste livro.

Durante duas deliciosas semanas gozei da afetuosa hospitalidade do

chanceler e da sra. Eggers, bem como de muitos programas e departamentos

na Universidade de Siracusa. O trabalho se fez menos penoso devido à boa

acolhida e ao apoio de Guthrie Birkhead, reitor da Escola MaxwelI, aos sábios

conselhos de Manfred Stanley (e não me esqueço das críticas construtivas e

sólidas de sua família) e à perfeita organização de James G. Gies.

Sob uma forma ou outra diferentes segmentos do livro foram objeto de

algumas tentativas. Os capítulos um e dois foram apresentados na Conferência

sobre as Categorias Corretas, patrocinada pela Fundação WennerGren, em

honra de Nelson Goodman, na Universidade Northwestern em 1985 e

agradeço a todos seus participantes pelas discussões suscitadas. Agradeço

também a Kai Erikson pela oportunidade de ensaiar partes do capítulo três

durante a Hollingshead Memorial Lecture, na Universidade de Yale. Uma

primeira versão dos capítulos seis e sete foi apresentada no painel sobre "A

Ordem Social É Possível?", no encontro da Associação Americana de

Sociologia, realizado em San Antonio em 1983. Agradeço ao presidente,

James Shorter, a permissão de publicar este estudo alentado sobre a memória

pública. Parte do capítulo nove foi divulgada no seminário de RusselI Hardin

sobre a ética, realizado na Universidade de Chicago. Meus agradecimentos a

Russell Hardin e a Alan Gewirth por suas valiosas críticas. David Bloor, Barry

Barnes e Lawrence Rosen também contribuiram com críticas importantes.

Muitos, na Universidade Northwestern, fizeram indagações e criticaram

diferentes passagens. Reid Hastie proporcionou o equilíbrio necessário e uma

pilha de referências, a partir de escritos psicológicos. Robert Welsch leu todo o

manuscrito e formulou críticas que muito me ajudaram. Andrew Leslie trabalhou

na bibliografia e Richard Kerber pesquisou as classificações relativas ao

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comércio do vinho. Helen McFaul foi a secretária ideal com que todo escritor

sonha e ela foi muito além da execução de um dever profissional.

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INTRODUÇÃO

Escrever sobre cooperação e solidariedade significa escrever, ao

mesmo tempo, sobre rejeição e desconfiança. A solidariedade envolve

indivíduos prontos para sofrer em benefício de um grupo mais amplo e sua

expectativa de que cada membro desse grupo faça o mesmo por eles. É difícil

falar sobre essas questões com distanciamento. Elas tocam em sentimentos

íntimos de lealdade e sacralidade. Qualquer pessoa que tenha aceito a

confiança, solicitado sacrifícios ou os tenha praticado voluntariamente conhece

o poder do laço social. No caso de um compromisso com a autoridade, ódio à

tirania ou algo que se situe entre esses dois extremos, o laço social é encarado

como algo que se coloca acima da questão. Há resistências às tentativas de o

expôr à luz do dia e de o investigar. Ele, no entanto, precisa ser examinado.

Toda pessoa é afetada pela qualidade da confiança que a cerca. Algumas

vezes uma firmeza simplória leva os líderes a ignorarem as necessidades

públicas. Algumas vezes a confiança tem breve duração e é frágil, dissolvendo-

se facilmente e resultando em pânico. Algumas vezes a suspeita é tão

profunda que a cooperação toma-se impossível.

Um exemplo contemporâneo ajudará a esclarecer questões abstratas.

No campo da medicina nuclear há um registro magnífico de confiança e

cooperação mútuas. Os cientistas dispõem de meios aceitáveis de conferir

reciprocamente suas afirmativas. Acreditam em seus métodos e têm fé nos

resultados, do mesmo modo que os pacientes e os médicos confiam um no

outro. Se a força da solidariedade puder ser medida pelo mero poder das

realizações, então dispomos de um exemplo eloqüente. Rosalyn Yalow

apresentou recentemente (1985) um relatório sobre a história da subdisciplina

à qual dedicou sua vida profissional. O relatório foi inspirado por indícios de

que o trabalho está para ser interrompido. Ele sofre fortes ataques devido ao

temor dos efeitos negativos da radiação nuclear. Nada do que os cientistas

possam dizer em sua defesa conseguirá dissipar a desconfiança.

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Rosalyn Yalow começou a trabalhar no Hospital Administrativo dos

Veteranos, no Bronx, nos anos de 1940, a fim de implantar um Serviço de

Radioisótopos que usaria detectores radioativos para investigar a doença.

Desde então as realizações do Serviço têm suscitado admiração. Inicialmente

os médicos usaram o iodeto de rádio para investigar a fisiologia da tiróide e

tratá-la. Ao mesmo tempo empregaram-no para medir o volume do sangue em

circulação no corpo. Isto os capacitou a desenvolver métodos experimentais de

avaliação das taxas de síntese e degradação das proteínas de soro no sangue.

Aplicar essas técnicas à circulação da insulina no corpo levou a uma ampla

revisão do que até o momento se conhecia sobre a diabetes. A partir do

sucesso obtido no tratamento da tiróide e da diabetes, o trabalho acabou

resultando no princípio do radioimunoensaio (RIE). É um modo de tipificar

processos fisiológicos administrando radioisótopos a pacientes e

acompanhando seu comportamento no corpo. As aplicações do RIE são

inúmeras em todos os campos da medicina. É empregado em amplos

programas que objetivam detectar a baixa atividade das glândulas tiróides no

recém-nascido. Trata-se de um distúrbio que não é perceptível pelos métodos

clínicos e afeta um em 4000 nascimentos nos Estados Unidos e quatro em 100

nascimentos no denominado "cinturão do bócio", na região sul dos Himalaias.

Se não for tratado rapidamente após o nascimento, resultará em retardo mental

irreversível. Desde a detecção e terapia do câncer maligno às doenças

cardíacas, parece não haver limite para a aplicação do RIE

A outra face desse impressionante registro da medicina é que milhões

de pessoas foram expostas a baixas doses de radiações nucleares e algumas

centenas de milhares a doses moderadas. O acúmulo de evidências demonstra

que uma exposição profunda a altas doses pode tomar-se rapidamente

mortífera e que a exposição crônica a doses mais moderadas pode resultar em

tumores malignos ou em morte prematura. As atuais críticas que ameaçam as

aplicações médicas do RIE levam tais perigos em consideração. Como medir o

que é uma baixa radiação? O que é uma exposição curta ou prolongada? O

medo é justificado? São indagações a que o relatório de Rosalyn Yalow

procura dar uma resposta.

O assunto é altamente técnico. Desde a alvorada da humanidade

nossos ancestrais foram expostos à radiação da radioatividade natural do solo

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e do alimento, bem como dos raios cósmicos extraterrestres. Eles constituem

os níveis da radiação do meio natural, que variam de uma região para outra.

Em média, a exposição à radiação produzida pela medicina significa um

acréscimo quase igual à radiação do meio natural. Para saber se isso é

perigoso para a saúde, é factível realizar pesquisas em regiões do mundo onde

a radiação do meio natural é particularmente elevada e então se verificará se

aqueles que foram expostos a ela apresentam taxas mais elevadas de

ocorrência de câncer. Nos Estados Unidos, sete estados apresentam radiação

do meio natural mais elevada do que os demais, porém neles a taxa de

ocorrência de câncer é mais baixa do que a taxa média da doença em todo o

país. Altitudes elevadas implicam elevada exposição à radiação, mas nos

Estados Unidos nota-se uma relação inversa entre a elevação e as leucemias e

linfomas. Um estudo cuidadoso realizado na China examinou 150 mil

camponeses da etnia han, que apresentavam essencialmente o mesmo estilo

de vida e a mesma composição genética. Metade deles viviam em uma região

de solo radioativo, onde recebiam uma exposição quase três vezes maior do

que a outra metade. A pesquisa avaliou um grande número de possíveis efeitos

da radiação sobre a saúde, mas não conseguiu detectar quaisquer diferenças

entre os habitantes das duas regiões. Assim, essa e outras investigações

levam à conclusão de que a exposição à radiação em níveis três ou até mesmo

dez vezes maiores do que a do meio natural não afeta adversamente a saúde.

Este livro não se preocupa em julgar se aquilo que Yalow denomina "um

temor fóbico à radiação" é correto ou não. Um exemplo esclarece vários outros

pontos que serão discutidos nas páginas que se seguirão. A profunda

discordância entre os cientistas que praticam a medicina nuclear, de um lado, e

um setor do público, de outro lado, ilustra a surdez seletiva, na qual nenhum

dos dois interlocutores conseguem, por ocasião de um debate, ouvir o que o

outro está dizendo. Em capítulos posteriores atribuiremos a inabilidade da

conversão a argumentos racionais ao domínio exercido pelas instituições em

nossos processos de classificação e de reconhecimento. Os praticantes da

medicina nuclear declaram que não correm riscos, em se tratando da vida de

seus pacientes, ou que estão expondo o restante da população ao perigo. Os

fóbicos nucleares negam essa afirmação, pois sabem que toda medicina

acarreta um risco. Simplesmente ignorar a questão seria desonesto. O

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conhecimento e a capacitação médicas jamais podem bastar. Ao rejeitarem a

alegação de que nenhum perigo se encontra presente, eles terão de enfocar a

situação do doente que foi salvo e de toda uma população que foi colocada em

perigo. Ninguém tem o direito de decidir quem será sacrificado pelo bem dos

outros. O argumento contrário é que os fóbicos nucleares se arrogam o direito

de tomar essa decisão, já que fazem os direitos das pessoas saudáveis vir

antes das vidas das vítimas do câncer, do diabetes, das doenças do coração e

da tiróide, além dos recém-nascidos à beira do retardo mental, que seriam

salvos por novas técnicas de diagnose e de tratamento. A resposta estratégica

consiste em declinar da honra de escolher entre as vítimas a serem

sacrificadas. Isto implica insistir que a medicina alternativa e uma dieta

equilibrada melhorariam, tanto quanto a medicina nuclear, nossas chances de

vida, caso lhes fosse dada a mesma oportunidade.

O debate entre os que são favoráveis à medicina nuclear e os que têm

fobia a ela constitui um exemplo relevante a favor e contra a solidariedade,

expresso sob forma contemporânea e sensível, pois a solidariedade não passa

de um gesto, quando não envolve sacrifício algum. No último capítulo serão

tecidas considerações sobre semelhantes escolhas. Com o intuito de preparar

o leitor, os capítulos anteriores insistirão laboriosamente na base compartilhada

do conhecimento e dos padrões morais. A conclusão a que se chegará é que

os indivíduos em crise não tomam sozinhos decisões relativas à vida e à morte.

Para dar ênfase ainda maior à nossa colocação, diremos que o raciocínio

individual não consegue resolver tais problemas. Uma resposta só parece ser

correta quando apóia o pensamento institucional que já se encontra na mente

dos indivíduos enquanto eles procuram chegar a uma decisão.

Recorreu-se a um exemplo fictício, "O processo dos exploradores

espeleólogos", para ilustrar precisamente as respostas divergentes dos

filósofos ao problema de se saber se uma pessoa deve ser sacrificada em

benefício das vidas alheias (Fuller 1949). A história passa-se no Supremo

Tribunal de um lugar chamado Newgarth, no ano de 4 300. Quatro homens

foram condenados por homicídio em um tribunal de instância inferior e o

processo subiu ao Supremo, em grau de apelação. O presidente do Tribunal

resume o acontecido. Cinco membros da Sociedade de Espeleologia decidiram

explorar uma caverna; a queda de uma enorme rocha bloqueou a única

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entrada; uma grande equipe de resgate começou a cavar um túnel através da

rocha, mas o trabalho era árduo e perigoso. Dez membros da equipe morreram

na tentativa de salvação. No vigésimo dia do desabamento foi estabelecido

contato pelo rádio e os homens aprisionados perguntaram quanto tempo

demoraria para serem resgatados. Estimou-se que o mínimo necessário seriam

mais dez dias. Eles solicitaram conselhos médicos sobre a insuficiência de

suas rações e ficaram sabendo que não poderiam esperar sobreviver por mais

dez dias. Indagaram então se teriam chances de sobreviver se consumissem a

carne de um de seus companheiros e, com muita relutância, lhes foi dito que

sim, mas ninguém − sacerdote, médico ou filósofo − se dispunha a aconselhá-

los sobre o que fazer. Depois disso cessou a comunicação pelo rádio. No

trigésimo-segundo dia do desabamento o bloqueio da entrada foi rompido e

quatro homens saíram da caverna.

Eles disseram que um deles, Roger Whetmore, havia proposto a solução

de comer a carne de um dos companheiros e sugeriu que a escolha fosse feita

por meio de um lance de dados. Mostrou então um dado que, por acaso,

trouxera. Os outros acabaram concordando e estavam para pôr o plano em

ação quando Roger Whetmore recuou, dizendo que preferia esperar mais uma

semana. Eles, no entanto, foram em frente, jogaram o dado quando chegou a

vez dele, e sendo Roger Whetmore indicado como vítima, mataram-no e

comeram-no.

Iniciando a discussão, o presidente do Tribunal expressou a opinião de

que o júri havia agido corretamente ao declará-los culpados, pois, segundo a

lei, não havia a menor dúvida quanto aos fatos; eles, por vontade própria,

haviam tirado a vida de outra pessoa. Ele propôs que o Supremo Tribunal

confirmasse a pena e solicitasse clemência à mais alta autoridade do Poder

Executivo. Seguiram-se as declarações de voto dos quatro outros juízes.

O primeiro deles afirmou que seria uma iniqüidade condená-los por

homicídio. Em vez de um pedido de clemência, propunha que fossem

inocentados. Sua argumentação invocava dois princípios distintos. Os homens,

encurralados, haviam sido geograficamente subtraídos da força da lei;

separados por uma sólida muralha de pedra, seria o mesmo que estar em uma

ilha deserta, em território estrangeiro. Em circunstâncias desesperadoras,

encontravam-se moral e legalmente no estado da natureza, e a única lei a que

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estavam sujeitos era o acordo ou contrato que firmaram entre si. Já que a vida

de dez trabalhadores havia sido sacrificada para salvá-Ios, quem quisesse

condenar os acusados deveria preparar-se para processar, pela morte

daqueles homens, quem organizou o socorro. Ele insistiu finalmente na

diferença entre o texto da lei e a interpretação de seus objetivos. Não fazia

parte dos propósitos da lei definir o homicídio para condenar aqueles homens

famintos, que poderiam ter sido movidos por uma atitude de autodefesa.

O próximo juiz discordou veementemente dessa colocação,

perguntando: "Baseados em que autoridade nos investimos em um Tribunal da

Natureza?", Absteve-se em seguida de tomar uma decisão.

O terceiro juiz também não concordou com o primeiro, insistindo que

todos os fatos demonstravam que os acusados haviam tirado a vida de seu

companheiro por vontade própria. Discordou igualmente da decisão do

presidente do Tribunal quanto ao pedido de clemência. Não cabia ao Poder

Judiciário refazer a lei ou interferir em outros departamentos do governo.

O último juiz concluiu que os acusados eram inocentes não em relação

aos fatos ou à lei, mas porque "os homens são regidos não por palavras

escritas numa folha de papel ou por teorias abstratas, mas por outros homens".

Nesse caso preciso, as pesquisas de opinião mostraram que 90% dos

entrevistados estavam a favor do perdão. Ele, entretanto, não apoiou a

recomendação do presidente do Tribunal por saber que o chefe do Executivo,

entregue a si mesmo, recusaria o perdão e estaria menos inclinado a conceder

a clemência caso uma recomendação nesse sentido partisse do Supremo

Tribunal. Assim, ele não fez recomendação alguma para o perdão, mas

favoreceu uma absolvição.

Somente o presidente do Tribunal se mostrava favorável no sentido de

solicitar clemência. Dois juízes favoreceram a absolvição; dois eram a favor da

condenação; um dos juízes se absteve. Estando o Supremo Tribunal

igualmente dividido, foi confirmada a condenação do tribunal de primeira

instância. Os homens foram sentenciados e condenados a morrer na forca.

Ao relatar essa fábula, Lon Fuller nos apresentou o padrão da opinião

jurídica vigente desde a Era de Péricles até a época em que esse texto foi

escrito. Dois dos juízes demonstraram forte simpatia pelos acusados e

recomendaram a reversão da condenação, mas por motivos diferentes. É

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evidente que o primeiro juiz não se importa absolutamente com estatutos,

conforme se queixa um de seus doutos confrades. Sente-se pessoalmente

atraído pela idéia da natureza, limitada unicamente pelo contrato entre os

indivíduos. Exprime-se de maneira comovente, como se se imaginasse na

caverna, estabelecendo um pacto e jogando para ganhar ou perder. Seus

conceitos liberais são apropriados a uma forma de sociedade na qual sua

inclinação a assumir riscos e sua prontidão em negociar fariam sentido. É tão

inerente a ele a idéia de um contrato que deixa de levar em consideração que a

vítima havia-se retirado do pacto estabelecido. Ao propor o argumento da

autodefesa ele chega até mesmo a ignorar outro fato: o de que a vítima não

apresentava ameaça alguma à vida dos acusados. Os demais juízes não

tiveram dificuldade em encontrar razões para discordar dele.

O último juiz, que também recomendou a absolvição, dificilmente parece

estar raciocinando como um advogado. Quer deixar de lado as legalidades

tolas. Sente que consegue ler os pensamentos dos acusados e considera que

seria ultrajante condená-los depois dos horrores por que passaram. Os motivos

e as emoções são o que contam para ele. Também consegue ler os

pensamentos do presidente do Executivo, ao qual é ligado por laços de família.

Aquilo que ele preconiza destina-se precisamente a fazer malograr as

motivações negativas do chefe do Executivo. Este juiz, ardiloso e afável, honra

a verdade emocional. Sua postura corresponde aos conceitos expressos pelas

seitas igualitárias fundadas para rejeitar um ritualismo desprovido de sentido e

pregar diretamente ao coração dos homens.

O terceiro juiz não se mostra nem simpático nem antipático. Para ele o

que importa é a lei, a responsabilidade dos juízes em dispensá-la e a alocação

existente de diferentes funções em um estado complexo. É um

constitucionalista e sente-se à vontade em uma sociedade baseada na

hierarquia.

Os três julgamentos expressam três filosofias jurídicas distintas. Não é

por acaso que Lon Fuller escolheu temas recorrentes na história da

jurisprudência. Esses temas surgem a cada momento por corresponderem a

formas recorrentes da vida social. Em outro escrito, nós os descrevemos como

individualistas, sectários e hierárquicos (Douglas & Wildavsky 1982). Nada fará

com que esses juízes concordem diante de uma questão de vida e morte tão

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complicada. Eles recorrem a seus compromissos institucionais para chegar a

uma reflexão. Este livro foi escrito precisamente para encorajar mais

investigações em torno do relacionamento entre as mentes e as instituições.

Para enfocar ainda mais os princípios elementares da solidariedade e da

confiança, voltemos à história no ponto em que os cinco homens ficam

sabendo que não conseguirão o sobreviver com o alimento de que dispõem.

Poderia ser um grupo de turistas de uma pequena cidade solidária.

Suponhamos que eles compartilhassem o compromisso do último juiz com os

princípios hierárquicos. Então aceitariam a idéia de que um deles poderia muito

justamente ser sacrificado em prol da sobrevivência dos demais. A idéia de

escolher a vítima por meio de um lance de dados pareceria irracional e

irresponsável. O líder assumiria toda a responsabilidade e se proporia para a

honra do sacrifício. Como o líder exerce um papel importante na comunidade

onde vivem, os demais contestariam sua decisão. Eles jamais poderiam voltar

a enfrentar a luz do dia após matar e comer o juiz de paz, o pároco ou o líder

dos escoteiros. Então o membro mais jovem e menos importante se proporia;

os demais não concordariam devido a sua juventude e a toda vida que ele teria

pela frente. Seria então a vez do mais velho, sob o pretexto de que sua vida

havia chegado ao fim e, então, entraria em cena o pai de uma numerosa

família. Durante os dez dias de seu cativeiro eles passariam o tempo todo

procurando, com muita civilidade, um princípio hierárquico satisfatório que

designasse sua vítima, mas talvez jamais chegariam a encontrá-la.

Suponhamos agora que os prisioneiros da caverna são membros de

uma seita religiosa que estão passando juntos um feriado. Ao tomar

conhecimento de que 500 toneladas de pedra bloquearam a saída eles se

rejubilam, pois se dão conta de que chegou o dia do julgamento supremo e que

estão irrevogavelmente separados de Armagedon, para sua eterna salvação.

Então passam o tempo de espera entoando hinos de louvor.

Somente os individualistas, a quem nenhum laço liga mutuamente, que

não estão imbuídos de nenhum princípio de solidariedade, acolheriam o jogo

do canibalismo como solução apropriada.

Discutindo a partir de diferentes premissas, jamais poderemos

aperfeiçoar nossa compreensão, a menos que examinemos e reformulemos

nossos pressupostos. Os capítulos que se seguem pretendem esclarecer até

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que ponto o pensamento depende das instituições. Trata-se de uma

argumentação complexa, que necessita quadros de referência muito claros.

Escolhi abordar a solidariedade e a cooperação por meio da obra de Emite

Durkheim e de Ludwik Fleck. Para eles, a verdadeira solidariedade somente é

possível na medida em que os indivíduos compartilhem as categorias de seu

pensamento. O fato desse compartilhar ser possível é algo inaceitável para

muitos filósofos. Ela contradiz os axiomas básicos da teoria do comportamento

racional, segundo os quais cada pensador é tratado como um indivíduo

soberano. No entanto, a teoria da escolha racional, desenvolvida a partir desta

estrutura axiomática, apresenta dificuldades insuperáveis no caso da

solidariedade. O plano desses escritos foi juntar essas duas abordagens,

propondo que os conceitos de Durkheim e de Fleck sejam encarados com

maior seriedade do que aconteceu precedentemente ao se discutir a natureza

do laço social. Há urna tendência de descartar Durkheim e Fleck porque eles

parecem estar afirmando que as instituições têm opiniões próprias. É claro que

as instituições não podem ter opiniões. Vale a pena dedicar um tempo à

compreensão do que esses pensadores realmente disseram.

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19

1

AS INSTITUIÇÕES NÃO PODEM TER OPINIÕES PRÓPRIAS

Não é qualquer ônibus lotado ou um ajuntamento aleatório de pessoas

que merece o nome de sociedade. É preciso que entre seus membros exista

algum pensamento e algum sentimento que se assemelhem. Isto não quer

dizer, porém, que um grupo que se associa possua atitudes próprias. Se ele

possui algo, é devido à teoria legal que o reveste de uma personalidade fictícia.

A existência legal, entretanto, não basta. Os pressupostos legais não atribuem

vezes emocionais ao grupo que se associa. Somente pelo fato de ser

legalmente constituído não se pode dizer que um grupo "comporta-se" e muito

menos que ele pensa ou sinta.

Se isso for literalmente verdade é algo implicitamente negado por boa parte do

pensamento social. A teoria marxista presume que uma classe social pode

perceber, escolher e agir de acordo com seus próprios interesses grupais. A

teoria democrática baseia-se no conceito da vontade coletiva. No entanto,

quando se trata de empreender uma análise detalhada, a teoria da escolha

racional individual só encontra dificuldades ao abordar o conceito de

comportamento coletivo. É axiomático, para a teoria, que o comportamento

racional se baseia em motivos de auto-referenciação. O indivíduo calcula o que

é aquilo que melhor atende a seus interesses e age de acordo com isso. Este é

o fundamento da teoria sobre a qual se baseia a análise econômica e política,

e, no entanto, ficamos com a impressão contrária. Nossa intuição nos diz que

os indivíduos contribuem, sim, para o bem público com generosidade, até

mesmo sem hesitações, sem a intenção óbvia de obter um benefício próprio.

Esmiuçar o significado do comportamento auto-referenciado até que cada

possível motivo desinteressado seja incluído apenas serve para tomar a teoria

em algo ocioso, inútil.

Emile Durkheim tinha outro modo de pensar a respeito do conflito entre

o indivíduo e a sociedade (Durkheim 1903, 1912). Ele o transferiu para os

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20

elementos conflitantes na pessoa. Para ele o erro inicial está em negar as

origens sociais do pensamento individual. As classificações, as operações

lógicas e as metáforas que nos guiam são dadas ao indivíduo pela sociedade.

Acima de tudo, o senso da correção apriorística de algumas idéias e a

ausência de sentido de outras são lidadas como algo que faz parte do entorno

social. Durkheim era de opinião que a reação de indignação quando

julgamentos estratificados são desafiados é uma resposta visceral devida

diretamente a um compromisso com um grupo social No seu modo de ver, o

único programa de pesquisa que explicaria como um bem coletivo é criado

seria trabalhar a questão da epistemologia.

O pensamento de Durkheim é muito adequado a nossa época. Ele

acreditava que o utilitarismo jamais seria responsável pelas bases da

sociedade civil. Na época dele, muitos dos sofisticados problemas e paradoxos

do utilitarismo não eram levados em conta. Ele, porém, estava convencido o

tempo todo de que o modelo benthamita, segundo o qual uma ordem social é

produzida automaticamente devido a ações auto-interessadas de indivíduos

racionais, era por demais limitado, já que não explicava a solidariedade grupal.

A epistemologia sociológica de Durkheim suscitou considerável oposição

e, até nossos dias, não se desenvolveu. Ao enaltecer o papel da sociedade na

organização do pensamento, ele amesquinhou o papel do indivíduo. Por isso

foi atacado como racionalista e radical. Como não explicou detaIhadamente os

passos precisos de sua argumentação funcionalista, Durkheim suscitou a

queixa oposta − não ser racional demais, mas ser atraente para o

irracionalismo. Parecia estar invocando uma entidade mística, o grupo social,

revestindo-o de poderes superorgânicos, auto-suficientes. Devido a isto foi

atacado como um teórico social conservador. Apesar dessas fraquezas, seu

conceito ainda era bom demais para ser descartado. Os recursos

epistemológicos podem ser capazes de explicar aquilo que não pode ser

explicado pela teoria do comportamento racional.

De acordo com Robert Merton, o interesse francês pela sociologia do

conhecimento era grandemente independente das prolíficas discussões sobre

a ideologia e a consciência social travadas na Alemanha naquela mesma

época. O ensaio de Merton sobre Karl Mannheim fornece elementos essenciais

para essa questão (1949). Ele assinalava que os franceses, ao escolher

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21

problemas, enfatizavam "a gama de variações entre diferentes povos, não só

no que se referia a estruturas morais e sociais, mas também no que dizia

respeito à orientação cognitiva". Por outro lado, a sociologia alemã do

conhecimento era profundamente marcada pelo hegelianismo de esquerda e

pela teoria marxista. Em suas primeiras formulações, a sociologia do

conhecimento alemã estava presa a problemas relativistas e era dominada por

intenções propagandísticas. Na medida em que tais elementos foram

gradualmente eliminados, o enfoque do assunto voltou-se muito mais para as

relações do indivíduo com a ordem social em geral. Fazia-se e ainda se faz

visla grossa em relação ao efeito da variação na ordem social. Todo o enfoque

se direcionava para os interesses. A habitual tipologia do conhecimento, por

exemplo, tendia a explicar diferentes pontos de vista de acordo com os

interesses conflitivos de diferentes setores na moderna sociedade industrial.

Não havia uma tentativa de se comparar pontos de vista baseados em tipos de

sociedade totalmente diferentes. Merton conclui seu ensaio listando as Calhas

lógicas na argumentação de Mannheim e expõe os estratagemas teóricos

empregados por este último com o objetivo de as superar. Fica bem claro que

nenhuma estrutura comparativa disciplinada poderia surgir de uma sociologia

que não se mostrava interessada na gama de variedades existentes entre

diferentes sociedades.

Os conceitos durkheimianos franceses têm sido menos assimilados pela

sociologia da ciência em comparação com a contribuição alemã. Em primeiro

lugar, eram menos impositivos devido ao fato de serem menos políticos, pois

lidavam com exemplos referentes a povos distantes e exóticos. Em segundo

lugar, a sociologia, embora possa ter abordado inicialmente questões

filosóficas e temas políticos, recebeu grande impulso para seu desenvolvimento

porque forneceu um instrumento indispensável para propósitos administrativos.

Assim, o programa intelectual de Durkheim extenuou-se.

Felizmente o atual interesse pela obra de Ludwik Fleck em tomo da

filosofia da ciência coincide com um vivo interesse pela teoria política, ao

abordar as fontes do compromisso e do altruísmo. Em seu livro sobre a

identificação da sífilis, The Genesis and Development of a Scientific Fact

(1935), Fleck elaborou e ampliou a abordagem de Durkheim. Valeria a pena

realizar uma comparação detalhada entre seus pontos de concordância e suas

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diferenças. Em várias passagens FIeck foi muito além de Durkheim; em outras

faltou-lhe a idéia central, sintetizadora. Ambos eram igualmente enfáticos em

relação à base social da cognição.

Em seu ataque tão cético às teorias causais, David Hume já havia

colocado a questão para Durkheim. Ele afirmou que em nossa experiência

encontramos apenas sucessão e freqüência, mas nenhuma lei ou necessidade.

Somos nós que atribuímos a causalidade. Citando Hume, Durkheim colocou a

mesma questão para uma platéia imaginária de filósofos apriorísticos,

desafiando-os a nos demonstrar "se detemos esta surpreendente prerrogativa

e como é possível ver certas relações em coisas cujo exame nada nos pode

revelar." Sua resposta era que as categorias de tempo, espaço e causalidade

possuem uma origem social.

Elas representam as relações mais gerais existentes entre as coisas; ultrapassando em extensão todas as outras nossas idéias, elas dominam todos os detalhes de nossa vida intelectual. Se os homens não concordassem com essas idéias essenciais em qualquer momento, se não tivessem os mesmos conceitos de tempo, espaço, causa, número etc., todo contato entre suas mentes seria impossível e, com isso, toda vida em coletividade. Assim, a sociedade não poderia abandonar as categorias relativas à livre escolha do indivíduo sem abandonar a si mesma (...) Existe um mínimo de conformidade lógica que ela não pode ultrapassar. Devido a esse motivo, ela lança mão de toda a autoridade que exerce sobre seus membros para impedir tais dissidências (...) A necessidade com a qual as categorias nos são impostas não é o efeito de simples hábitos, um jogo de que podemos livrar-nos com pouco esforço; também não é uma necessidade física ou metafísica, já que as categorias mudam em diferentes lugares e épocas; é um tipo especial de necessidade moral, que representa, para a vida intelectual, aquilo que a obrigação moral representa para a vontade (Durkheim 1912, p.29-30).

Comparemos isto com o que escreve Fleck:

A cognição é a atividade do homem mais socialmente condicionada e o conhecimento é a suprema criação social. A própria estrutura da linguagem apresenta uma filosofia impositiva, característica daquela comunidade e até mesmo uma simples palavra pode representar uma teoria complexa (...) é banal toda teoria epistemológica que não leve em conta a dependência sociológica de lodo cognição, de maneira fundamental e detalhada (Fleck 1935, p. 42).

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Fleck foi mais longe que Durkheim ao analisar o conceito de um grupo

social. Ele introduziu vários termos especializados: a coletividade de

pensamento (equivalente ao grupo social de Durkheim) e seu estilo de

pensamento (equivalente às representações coletivas de Durkheim), que

conduz e treina a percepção e produz uma provisão de conhecimentos.

Para Fleck, o estilo de pensamento estabelece as pré-condições para

qualquer cognição e determina o que pode ser considerado uma questão

razoável e uma resposta verdadeira ou falsa. Tal estilo propicia o contexto e

fixa limites para qualquer julgamento relativo à realidade objetiva, Seu traço

essencial é que ele está oculto dos membros da coletividade de pensamento.

O indivíduo, no contexto do coletivo, nunca, ou quase nunca, tem consciência do estilo de pensamento predominante que, quase sempre, exerce uma força absolutamente compulsiva sobre seu pensamento, e com o qual não é possível discordar (Fleck, 1935, p. 41).

O estilo de pensamento de Fleck está muito próximo da idéia de um

esquema conceitual, que, de acordo com alguns filósofos, limita e controla a

cognição individual com tamanho rigor que exclui a comunicação transcultural.

Para Fleck, o estilo de pensamento é tão soberano para o pensador quanto a

representação coletiva o era na cultura primitiva, segundo defendia Durkheim.

Fleck, porém, não estava se referindo aos primitivos.

Para Durkheim, a divisão do trabalho é responsável pela grande

diferença entre a sociedade moderna e a primitiva. Para compreender a

solidariedade deveríamos examinar aquelas formas elementares de sociedade

que não dependem da troca de serviços e produtos diferenciados, De acordo

com Durkheim, nesses casos elementares, os indivíduos passam a pensar da

mesma forma, ao internalizar sua concepção de ordem social e ao sacralizá-la.

O caráter do sagrado é ser perigoso e estar exposto ao perigo, convocando

todo bom cidadão a defender seus baluartes. O universo simbólico

compartilhado e as classificações da natureza incorporam os princípios de

autoridade e coordenação. Em um sistema como esse, problemas de

legitimidade são resolvidos porque os indivíduos carregam a ordem social no

seu íntimo onde quer que vão, projetando-a na natureza. No entanto, uma

divisão avançada do trabalho destrói essa harmonia entre a moralidade, a

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sociedade e o mundo físico, substituindo-a por uma solidariedade que depende

do comportamento do mercado. Durkheim não era de opinião que a

solidariedade baseada em símbolos sagrados fosse possível na sociedade

industrial. Na época moderna a sacralidade foi transferida para o indivíduo.

Essas duas formas de solidariedade constituem a base da principal tipologia na

teoria de Durkheim (Durkheim 1893, 1895).

Fleck distinguia as comunidades de pensamento coletivo,

compreendendo os verdadeiros crentes, da comunidade de pensamento,

anteriormente membros daquela primeira, mas não necessariamente sujeitos

às coerções do estilo de pensamento. Admitia que as comunidades de

pensamento coletivo variassem de acordo com sua persistência ao longo do

tempo, das formações mais transitórias e acidentais às formações mais

estáveis. Julgava o estilo de pensamento das formações estáveis mais

disciplinado e uniforme, a exemplo do que ocorria nas associações, sindicatos

e igrejas. Fleck se deu ao trabalho de discutir a estrutura interna dos grupos.

Uma elite interna, de iniciados hierarquizados, existe no centro e a massa se

localiza nas bordas. O centro é o ponto que põe tudo em movimento. As bordas

adotam suas idéias em um sentido literal e inquestionável; a ossificação ocorre

exatamente aí. Fleck divisava muitos universos de pensamento, cada um com

seu centro e suas bordas, interceptando, separando e se fundindo. Era algo

paralelo à densidade moral presente na teoria de Durkheim. Fleck reconhecia

que a quantidade de interação podia variar; o grau de concentração e energia

no centro depende da pressão da demanda por parte das bordas externas.

Quando essa interação é forte, a questão da divergência individual mal se

coloca. Fleck não estava interessado na sacralidade ou na evolução social.

Ainda assim ele aplicava à sociedade moderna e até mesmo à ciência a idéia

durkheimiana de um estilo de pensamento soberano, o que teria horrorizado

Durkheim. Conforme disse Fleck, os durkheimianos ostentavam "um respeito

excessivo, que chegava aos limites de uma reverência pia, aos fatos

científicos" (p. 49-51). Ele ridicularizava essa atitude, achando que ela era um

obstáculo simplório à construção de uma epistemologia científica.

As afirmações de Durkheim evocam freqüentemente uma mente grupaI,

misteriosa e supra-orgânica. Fleck, com toda certeza, não pode ser acusado da

mesma falha. Sua abordagem era inteiramente positivista. Ao lidarmos com as

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críticas que afetam a ambos, a boa estratégia consiste em deixar que Durkheim

e Fleck realizem uma defesa comum. Algumas vezes Fleck tem a melhor

resposta, outras vezes, Durkheim. Lutando como aliados, de costas um para o

outro, cada um, com sua força, pode suprir a fraqueza do outro.

Em seu prefácio, o organizador-tradutor do livro de Fleck compara a

rejeição inicial que ele sofreu por parte dos resenhadores ao sucesso

instantâneo e ruidoso alcançado por Logic der Forschung, de Karl Popper,

publicado quase na mesma época (Trenn 1979, p. X). A diferença quanto à

receptividade pode ser explicada em boa parte pelo relativo vigor da

coletividade de pensamento a que cada um desses escritores pertencia.

Popper era uma personalidade bastante conhecida na prestigiosa confraria de

filósofos vienenses e Fleck, um intruso em relação à filosofia, mas gozava de

consideração. Um esboço biográfico descreve Fleck como "um humanista com

conhecimento enciclopédico" (Fleck, p. 149-53). Médico e bacteriologista, cujas

publicações e pesquisas se referiam à serologia do tifo, da sífilis e de vários

organismos patogênicos, ele não estava bem posicionado para impressionar os

filósofos. Seria mais durkheimiano adotar o próprio conceito de Fleck, segundo

o qual a coletividade de pensamento, isto é, a organização social, explica a

falta de atenção com que ele foi acolhido inicialmente. Ainda assim, é

interessante seguir a idéia do organizador da edição, segundo a qual seu

fracasso inicial foi uma questão de estilos de pensamento incompatíveis. Com

efeito, parece que os primeiros resenhadores acusaram Fleck de uma

minimização reducionista do papel do cientista. Ele foi censurado por

negligenciar as personalidades individuais na história da ciência. Sua análise

sociológica foi descartada por acrescentar pouco àquilo que Max Weber já

havia dito. No todo, foi criticado por toda sua mensagem global e não por

quaisquer elementos incidentais. O vigoroso apelo que fez a favor da

epistemologia sociológica e comparativa foi rejeitado. Os organizadores das

edições de seus livros acreditam que os tempos mudaram e que agora ocorreu

uma mudança decisiva no estilo de pensamento.

Existe certamente um novo interesse por distintos estilos de raciocínio

na história da ciência. Galileu introduziu um novo estilo de pensamento que

tomou impossíveis antigas indagações. O capítulo "Language, Truth and

Reason" ("Linguagem, Verdade e Razão"), de Ian Hacking (1982), resenha

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rapidamente inúmeros ensaios recentes e influentes na história da ciência

sobre "novos modos de raciocínio que têm início e trajetórias específicas de

desenvolvimento" (p. 51). Na maioria dos casos, entretanto, a tendência é

interessar-se pelo estilo de pensamento e não por sua relação com o

pensamento coletivo. Se a mudança de direção, em Fleck, for criativa, ela não

deverá separar estilo de pensamento de coletividade de pensamento, o que,

mais uma vez, levaria ao fracasso da parte sociológica do . empreendimento.

Thomas Kuhn foi o primeiro desde 1937 a chamar atenção para o livro

de Fleck, fazendo uma referência a ele (Kuhn 1962). Em seu prefácio à

tradução inglesa, ele exprime certas hesitações que ainda serão amplamente

compartilhadas. A posição de Fleck, afirmou, não está livre de problemas

fundamentais.

(...) para mim eles se agrupam, conforme aconteceu na primeira leitura, em tomo do conceito de uma coletividade de pensamento (...) Considero este conceito intrinsecamente equivocado e uma fonte permanente de tensão no texto de Fleck. Colocado de maneira resumida, a coletividade de pensamento parece funcionar como a mente individual em larga escala, pelo fato de muitas pessoas o possuírem (ou serem possuídas por ele). Com o intuito de explicar sua aparente autoridade legislativa, FIeck recorre repetidamente a termos emprestados do discurso sobre os indivíduos (Kuhn 1979, p. X).

Resumindo: pensamento e sentimento são para as pessoas, enquanto

indivíduos. Pode, entretanto, um grupo social pensar ou sentir? Este é o

paradoxo central, incongruente. Kuhn aprecia no livro de Fleck inúmeras

percepções, mas não a principal argumentação deste autor. Ao rejeitá-la, Kuhn

compartilha um certo mal-estar com muitos liberais. A filosofia da justiça de

John Rawls fundamenta-se em total individualismo; na sua opinião, "a

sociedade constitui um todo orgânico, com vida própria, distinta e superior à

vida de todos seus membros em suas relações mútuas" (Rawls 1971, p. 264).

É verdade que existem agora vários movimentos de idéias em cuja

direção Fleck apontava com tamanha premência. Por exemplo, podemos lidar

mais facilmente com termos desconfortáveis. Os tradutores refletiam e

rejeitavam várias alternativas para o termo denkkollectiv: "escola de

pensamento" ou "comunidade cognitiva", antes de adotarem a tradução literal,

"coletividade de pensamento". Agora, porém, o termo "universo" adquiriu um

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sentido apropriado, embora universo (incluindo os universos distinguíveis da

teologia, da antropologia e da ciência), no lugar de coletividade de

pensamento, seria um termo fiel ao conceito essencial de Fleck, ligando-o

apropriadamente às obras Ways of Worldmaking, de Goodman (1978), e a Art

Worlds, de Becker (1982). O tema de Fleck era a descoberta científica, o de

Becker, a criatividade artística, e o de Goodman, a cognição em geral.

Cada um desses pensadores muito independentes tem notável afinidade

com os demais. Becker insiste que o esforço coletivo produz uma obra de arte,

embora ela seja atribuída a determinado artista. Inclui no universo da arte,

juntamente com o artista, a colaboração anônima dos fornecedores, os

fabricantes de telas e tintas, os moldureiros, os distribuidores, os designers

gráficos dos catálogos, as galerias e o público. É um acaso histórico que faz

com que uma classe de atores no mundo artístico da pintura ocidental seja

designada individualmente e celebrada como "artistas". Em outros universos,

em outras épocas e lugares, a coletividade do estúdio ou a corporação de

ofícios sobrepuja a fama do indivíduo. Todos os universos da arte dependem

da existência de um público para a obra de arte. A interação com a solicitação

do público constitui uma parte fundamental e criativa do universo da música ou

da pintura. Fleck adotou o mesmo partido, enfatizando o papel da prática de

laboratório e o papel do apoio público.

Se não fosse o insistente clamor da opinião pública a favor do teste de sangue de Wassermann jamais teriam gozado daquele respaldo social absolutamente essencial ao desenvolvimento da relação, à sua "perfeição técnica" e à acumulação da experiência coletiva. Somente a prática laboratorial explica com facilidade porque o álcool e, posteriormente, a acetona deveriam ser tentados, além da água, tendo em vista o preparo do extrato, e porque deveriam ter sido usados órgãos saudáveis, além de órgãos atingidos pela sífilis. Muitos investigadores realizaram essas experiências quase simultaneamente, mas a verdadeira autoria se deve à coletividade, à prática do trabalho cooperativo e em equipe (FIeck, 1935, p. 77-78).

Fleck chegou mesmo ao ponto de prescrever o anonimato e a modéstia

a todos os cientistas. Este ideal democrático pode explicar em parte por que

ele escolheu o modelo russo de uma fazenda coletiva para descrever os

universos da ciência.

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28

Nelson Goodman coloca que a correção das categorias depende de

como elas se adequam a um universo. A correção, com o significado de

adequação à ação e adequação a outras categorias, corre paralelamente ao

conceito de harmonia, elaborado por Fleck, entre elementos pertencentes a um

estilo de pensamento. Quase se equipara ao conceito de Fleck, segundo o qual

a verdade, em certo sentido, é feita de ilusões (frase que perturbava Kuhn). O

modo pelo qual FIeck explicava a construção da realidade objetiva por meio

das experiências sociais da coletividade de pensamento está muito próximo da

explicação de Goodman, segundo a qual a correção se adequa à prática.

Sem a organização e a seleção de diferentes espécies, efetuada por uma tradição que se desenvolve, não existe correção ou erros de categorização, validade ou invalidade da referência indutiva, amostragem representativa ou não-representativa, uniformidade ou disparidade entre as amostragens. Assim, justificar testes tendo em vista a correção poderá consistir basicamente em demonstrar, não que eles sejam confiáveis, mas que sejam fundamentados (Goodman 1978, pp. 138-39).

Os antropólogos têm empregado modos de pensamento para referir-se aos

mesmos universos e idéias fundamentalmente entrelaçados (Horton &

Finnegan 1973).

Agora é mais fácil empregar as expressões universo da ciência, das

artes, da música ou do pensamento no lugar de coletividade de pensamento

para aquele agrupamento social que é definido por seu estilo de pensamento

próprio, pois invoca os contemporâneos laços de apoio ao conceito básico de

Fleck.

O cenário poderá estar bem preparado, mas o programa de Durkheim-

Fleck relativo à sociologia do conhecimento fracassará caso se baseie em um

erro fundamental. Duas graves objeções se levantam contra ele. A primeira

delas diz respeito a explicações funcionais imprecisas. A tese central de

Durkheim, segundo a qual a religião mantém a solidariedade do grupo social, é

uma explicação funcional. FIeck tem sua própria versão de um circuito

funcional auto-sustentável:

A estrutura geral de uma coletividade de pensamento implica que a comunicação de pensamentoa em uma coletividade,

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independentemente de conteúdo ou justificativa lógica, deveria levar, por razões sociológicas, à corroboração da estrutura de pensamento (Fleck 1935. p. 103).

Ambos eram funcionalistas. Coloca-se uma interrogação: suas argumentacoes

falham ao não proporcionar os passos lógicos necessários? Caso contrário,

poderia existir uma argumentação funcionalista melhor que justificaria as

correlações deles?

A segunda objeção diz respeito à base racional da ação coletiva. Se se

presume que os indivíduos sejam racionais e procurem seu próprio interesse,

farão alguma vez sacrifícios em benefício do grupo? E caso eles ajam contra

seu próprio interesse, que teoria de motivação humana explicaria esse

comportamento? Durkheim recorre à religião para oferecer algumas

explicações. Para Fleck, qualquer sistema de conhecimento é uma espécie de

bem público, conseqüentemente, a própria religião coloca os mesmos

problemas. Para ambos, a verdadeira questão é a emergência da própria

ordem social. As páginas que se seguem não dizem respeito a quem quer que

afirme que a ordem social nasce espontaneamente. A teoria da escolha

racional proíbe que um engajamento espontâneo se incorpore à argumentação,

sob o disfarce da religião. O engajamento que subordina os interesses

individuais a um todo social mais amplo precisa ser explicado. Para muitos

leitores de Durkheim, sua argumentação parece apoiar-se demais na religião e

se, tendo em vista os propósitos da epistemologia sociológica desses leitores,

a crença religiosa deve equacionar-se com qualquer outro sistema de

conhecimento, então a assertiva de Fleck, segundo a qual um estilo de

pensamento reina soberano sobre seu universo de pensamentos, também é

algo que parece suspeito. Como foi que surgiu essa soberania? É isso que os

teóricos da escolha racional exigem que seja explicado.

Por outro lado, a teoria da escolha racional apresenta grandes

limitações. As pessoas não parecem agir de acordo com os princípios dela

(Hardin 1982). O programa de Durkheim e Fleck pode dar uma resposta à

crítica funcionalista e à crítica da escolha racional apenas quando desenvolve

uma dupla visão do comportamento social. Uma dessas visões é cognitiva: a

existência individual de ordem, coerência e controle da incerteza. A outra visão

é transacional: a utilidade individual maximiza a atividade descrita em um

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cálculo que envolve o custo-benefício. Na maior parte deste volume pouco

diremos a respeito desta última visão, que já se encontra muito bem

representada nos escritos acadêmicos. O exemplo mal representado é o papel

desempenhado pela cognição na formação do laço social.

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31

2

DAR UM DESCONTO À PEQUENA ESCALA

As sociedades em pequena escala são diferentes. Muitos daqueles que

são bem informados sobre a dificuldade de explicar a ação coletiva no bojo da

teoria da escolha racional contentam-se em abrir exceções. A pequena escala

alarga o campo de ação dos efeitos interpessoais. Todo o campo da psicologia

localiza-se aqui, juntamente com as emoções irracionais. Quando a escala das

relações é suficientemente pequena para ser pessoal qualquer coisa pode

acontecer e a teoria da escolha racional reconhece os limites de seus

domínios. Em conseqüência, parece não existir um problema teórico em

relação ao altruísmo quando a organização social é muito pequena. Entretanto,

um exame mais detido revela que isentar as sociedades de pequena escala da

força da análise racional é algo que não resiste bem a lima crítica. Elas não

podem ser mais isentas do que as organizações religiosas. O objetivo deste

capítulo é ampliar os argumentos da escolha racional, de tal modo a abrir

aquelas áreas interditas onde não se supõe que a teoria penetre. Então a teoria

se desnuda. Ela enfrentará inelutavelmente dificuldades agudas que não

podem ser escamoteadas tomando como referência a escala ou fatores

religiosos, emocionais ou irracionais. Este passo é necessário para se

confrontar o registro empírico inoportuno. Sabemos que os indivíduos

submetem seus interesses particulares ao bem dos outros, que o

comportamento altruísta pode ser observado, que os grupos exercem uma

influência sobre o pensamento de seus membros e até mesmo desenvolvem

estilos de pensamento distintos. Sabemos isso sem dispormos de uma teoria

do comportamento que leve tal fato em conta.

Na seqüência aplicaremos a análise da ação coletiva, realizada por

Mancur Olson, às questões habitualmente disfarçadas pelos efeitos da escala.

Em The Logic Of Collective Action (1965), Olson parte da teoria econômica dos

bens públicos, mas termina por uma teoria geral da ação coletiva. Os bens

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32

públicos constituem um conceito híbrido na teoria econômica. O termo foi

adaptado para definir gastos governamentais legítimos. Se os impostos foram

recolhidos para servir objetivos públicos, estes devem se distinguir dos

benefícios individuais e ser mantidos sob o controle legislativo público. Um bem

público deve beneficiar a todos, conforme ocorre, por exemplo, com o ar não-

poluído ou, pelo menos, deve ser acessível a todos, a exemplo de uma auto-

estrada pública. Começando por exemplos escolhidos para ilustrar um

determinado problema político, o conceito se baseou em três formulações

complexas e distintas: primeiro, que o suprimento de um bem não é diminuído

pelo consumo individual; segundo, que um dos lados não pode reivindicar um

reembolso pelo fato de o ter produzido, já que ele é propiciado pela

coletividade; e terceiro, que nenhum membro da coletividade pode ser excluído

de seu uso. É, essencialmente, um tipo de bem que escapa ao mecanismo dos

preços e, assim, se esquiva da análise econômica padrão.

Segundo a formulação geral de Olson, um indivíduo que se comporta de

acordo com o interesse próprio racional não contribuirá para o bem coletivo e,

do mesmo modo, não produzirá o benefício que deseja tendo em vista seu

próprio interesse. Isto ocorre por dois motivos distintos. Uma argumentação

depende da natureza dos bens públicos, dos problemas que surgem da

necessidade de cooperação para providenciá-los e da impossibilidade de

excluir quem quer que seja de gozá-los, uma vez produzidos. A outra

argumentação depende da diminuição dos retornos para cada pessoa que

contribuiu para a produção à medida que aumenta o número de pessoas que

gozam do produto. O primeiro exemplo é muito eloqüente. O segundo, baseado

em efeitos de escala, precisa ser qualificado. Separemos essas duas questões

e comecemos apreciando o primeiro conjunto de problemas que surgem da

natureza dos bens públicos. Olson argumenta que, na medida em que a

contribuição dele não for suficiente para produzir o bem coletivo e na medida

em que, por definição, a produção desses bens depende de muitos

contribuintes, o cálculo racional do indivíduo tenderá a levá-lo a deixar de

proporcionar qualquer bem. Por um lado, sua própria contribuição tem

conseqüências limitadas. Assim como ele pode esperar que a ausência de seu

pequeno óbolo não fará diferença, poderá também esperar pegar uma carona

nas contribuições dos outros. "Pode deixar que fulano faz" é o princípio do

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33

teorema da inconseqüência formulado por Olson. Por outros motivos, ele pode

esperar que os outros sucumbam à mesma tentação de pegar uma carona e

assim, se a contribuição deles não for acessível, sua própria contribuição se

desperdiçará. Nesses exemplos, a baixa probabilidade de uma colaboração

nada tem a ver com a escala.

Estas argumentações explicam convincentemente muitas das

dificuldades enfrentadas pelas organizações voluntárias. Embora as tenha

analisado tão bem, o próprio Olson dá mais peso à argumentação da escala. É

verdade que, em certos casos, o benefício obtido por cada usuário é diminuído

por cada aumento do número total de usuários. Os parques e as estradas

públicas constituem nítidos exemplos de como o congestionamento, é um

obstáculo à fruição. Isto, porém, não se aplica a outros tipos de bens públicos,

corno a defesa nacional, a proteção de polícia, a iluminação pública, ou os

sindicatos que negociam em benefício dos trabalhadores em determinada

indústria. Talvez não possa aplicar-se à educação, se concedermos que os

benefícios resultantes de cada pessoa escolarizada são multiplicados por

maiores oportunidades proporcionadas por um discurso escolarizado.

Certamente não se aplica à criação de uma ordem social. Quanto mais

pessoas puderem ser envolvidas no sistema de confiabilidade, mais vantagens

resultarão para cada uma delas. Esta é a saída mais eficaz que responde à

interrogação de como se pode explicar a ação coletiva. O exemplo de Olson

vale com muito mais eloqüência para os problemas de confiança gerados pela

possibilidade de se pegar uma carona e isto se aplica a instâncias que são de

escala verdadeiramente muito pequenas.

De acordo com Olson, os problemas de ação coletiva tal como são

colocados na teoria da escolha racional só podem ser resolvidos por meio da

coerção ou por uma atividade que é um subproduto, de baixo custo, de ações

empreendedoras direcionadas para benefícios individuais seletivos ou por uma

mescla de ambas. Uma comunidade que não conta com nenhum desses

estímulos é atormentada pela indecisão e pela dissenção. Cada indivíduo

racional que decida ser um membro, que saiba que sanção alguma pode ser

aplicada a ele e que não existem recompensas especiais no serviço público,

calculará se ele poderia sair-se melhor sozinho, contando apenas consigo.

Quando este é o caso para todos os membros, o grupo deve permanecer

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34

latente. Enquanto tal, deve convocar um esforço combinado tendo em vista

uma atividade a curto prazo − levantamento de fundos ou protestos −, porém

não muito mais do que isto.

Olson isentou a organização religiosa de sua teoria geral. Vinte anos

mais tarde, entretanto, a isenção da organização religiosa constitui claramente

um engano. A história da religião corrobora sua teoria. Sempre que as

organizações religiosas tiveram acesso aos poderes coercitivos ou foram

capazes de oferecer recompensas seletivas de riqueza ou influência a seus

membros mais dedicados, suas religiões tiveram uma carreira estável e

florescente. E sempre que elas estiveram ausentes, quaisquer que fossem os

motivos, ocorreu uma história de fricção e cismas contínuos (Douglas &

Wildavsky 1982). Não ajuda nossa compreensão da religião para protegê-la de

um minucioso exame profano traçando em torno dela uma fronteira respeitosa.

A religião não deveria ser isenta de modo algum.

Olson também se mostra disposto a isentar pequenos grupos das

implicações de sua teoria. Ele confere uma influência decisiva à escala da

organização (Chamberlin 1982) e espera que suas observações não se

apliquem a um determinado ponto de uma escala que decresce. Se as

comunidades de pequena escala devem ser isentas assim como as

comunidades religiosas, então aquilo que Durkl1eim tem a dizer não seria

relevante, já que baseou sua argumentação em ambas.

Existe, além disso, a crença de que em algo denominado "comunidade"

os indivíduos podem colaborar desinteressadamente uns com os outros e

construir um bem comum. Em uma comunidade como esta as injunções da

escolha racional não se aplicam. Trata-se de uma idéia emotiva

extraordinariamente vigorosa.

Estas isenções aparentemente melhores à investigação analítica

representam um território não demarcado pelo qual uma pessoa pode

perambular conforme lhe agradar. Tal liberdade é prejudicial ao projeto de

Durkheim e de Fleck. As isenções não são de pouca monta ou carecem de

importância. Sua aceitação debilita a força de toda a investigação. Em

particular, as isenções desviam a atenção do interessante e pessimista

conceito de Olson relativo ao grupo latente. Ninguém que esteja empenhado

em explicar a ação coletiva pode descartar superficialmente os formidáveis

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35

problemas enfrentados por uma pequena comunidade que tenta continuar

existindo tal como é. Pior ainda é identificar as áreas isentas da vida social

como aquelas que são pequenas em escala. Isto implica afirmar que, na época

moderna, ela são poucas e carecem de importância. Porém, esta colocação é

falsa. Estamos falando de coações sistemáticas à colaboração, que se aplicam

a uma extensa gama, que vai da Associação de Pais e Professores local aos

sindicatos, aos representantes do Poder Legislativo e à cooperação

internacional (Olson 1965, pp. 66-131). É vasta a escala dos grupos latentes na

sociedade; as conseqüências de seu fracasso em se aglutinar são graves.

Assim, deveríamos nos encorajar e entrar naquela reserva toda cercada. A

essa altura a religião pode ser parcialmente deixada de lado porque é por

demais óbvio que a organização religiosa não constitui exceção ao exemplo

geral e porque algumas coisas específicas serão ditas sobre a religião e a

sacralidade em capítulos posteriores. Este é o ponto em que se devem

concentrar os efeitos de escala.

A argumentação falha pode ser expressa da seguinte maneira: a escala

pequena promove a confiança mútua; a confiança mútua é a base da

comunidade; a maior parte das organizações, caso não se baseiem em

benefícios individuais seletivos, têm seu início sob a forma de comunidades

pequenas e confiantes. Então, as características especiais da comunidade

resolvem o problema de como a ordem social pode aflorar. Muitos mantêm

que, após o nascimento inicial, por meio da experiência comunitária, o restante

da organização social pode ser explicado pelo complexo entrelaçamento de

sanções e recompensas individuais. O próprio Olson parece adotar esta visão.

As duas grandes dificuldades em aceitá-Ias são de natureza empírica e teórica.

Na prática, as sociedades de pequena escala não exemplificam a visão

idealizada da comunidade. Algumas delas promovem a confiança e outras não.

Alguém já escreveu sobre este tema já viveu alguma vez em uma aldeia? Já

leu romances? Já tentou levantar fundos É claro que existem comunidades

bem-sucedidas, mas vai contra o espírito da investigação racional selecionar

apenas os exemplos que se adequam e negligenciar tantos outros. Pode-se

indagar se isto é uma forma de investigação, uma ideologia ou uma doutrina

quase religiosa. Ela fornecerá um exemplo pertinente de um conjunto de idéias

que adquirem sua validade e, portanto, seu poder mais pelos usos

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36

reconhecíveis, no interior das instituições, do que pela força da razão. A

atração exercida pela comunidade pequena, idealizada, íntima é forte na

retórica política.

Michael Taylor apresenta o mérito especial de ter tratado a ordem social como

um bem público. Ele também se inclui entre muitos daqueles que acreditam

que as comunidades pequenas são uma forma de sociedade na qual o auto-

interesse racional não impõe o desfecho das decisões (1982). Contanto que a

comunidade seja suficientemente pequena e estável, supõe-se que seus

membros tenham a liberdade de fazer contribuições que eles manteriam em

aglomerações maiores e mais fluidas. Esta fórmula é um tanto imprecisa, pois

a questão consiste em saber como a comunidade consegue ser estável. Taylor

analisou três espécies de comunidades. Em primeiro lugar, temos as comunas

modernas (ou comunidades intencionais), estudadas por muitos. Em segundo

lugar, existem as sociedades camponesas, que geraram toda uma indústria de

pesquisa acadêmica em torno da vida campestre. Seguem-se, finalmente, as

sociedades tribais de pequena escala, descritas na literatura antropológica.

Todos os três tipos de comunidade possuem uma documentação tão vasta,

variada, repleta de detalhes, que a maior parte dos filósofos, em uma atitude

compreensível, a evitam e assim, o conceito segundo o qual as pequenas

comunidades são isentas da análise do comportamento racional, tende a

escapar aos constrangimentos impostos pela crítica.

Taylor começa localizando a comunidade no extremo, em pequena

escala, de um continuum de elementos, cada um deles vulnerável ao aumento

da escala. Assim a comunidade é, por definição, pequena, interage face a face

e é multiforme em seus relacionamentos. Em segundo lugar, a participação em

seus processos de tomada de decisão é ampla. Em terceiro lugar, os membros

da comunidade apresentam crenças e valores em comum; seu exemplo mais

perfeito seria o consenso total. Em quarto lugar, a comunidade se mantém

enquanto tal devido a uma rede de trocas recíprocas.

Taylor afirma que tais disposições tornam inaplicável a análise da

escolha racional. "Em muitas comunidades de pequena escala não se

necessita de 'incentivos seletivos' ou de controles; é racional cooperar

voluntariamente na produção do bem público da ordem social" (Taylor 1982, p.

94).

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37

Deixando de lado essa afirmativa tão pouco matizada, segundo a qual

os indivíduos que se beneficiariam do bem público na verdade combinam para

produzi-lo, precisamos saber quais são as etapas de suas negociações uns

com os outros. Qualquer ordem social envolve questões controvertidas de

justiça e moral. Taylor supõe que elas são resolvidas, em comunidades muito

pequenas, ao se instituir a igualdade econômica e a ampla participação nos

negócios públicos.

A fim de manter essa posição em relação à sociedade tribal, Taylor

precisaria excluir o governo que opera pelas associações secretas, panelinhas

e intrigas, o que equivale a grandes e arbitrárias supressões de seus próprios

exemplos de comunidade. Além disso, ele sugere que, em uma comunidade

real, a coerção física inexiste. Isto depende do que ele considera coerção. A

menos que se dê a este termo um significado muito restrito, seria sensato

eliminar desta definição muitas sociedades tribais de pequena escala. É

verdade que em muitos bandos errantes de caçadores, a igualdade e a

participação estão bem exemplificadas. Nesses bandos, porém, não é

especificamente a escala diminuta, mas outros fatores, que criam as condições

favoráveis para uma vida comunitária não-coercitiva. A dispersão da

população, a abundância de recursos destinados a satisfazer as necessidades

em um nível baixo e a fácil movimentação entre os bandos de caçadores

permite que o conflito se tome difuso graças à separação (Service 1966; Lee &

DeVore 1968). Muito provavelmente são estas as condições que a teoria de

Olson espera que os grupos latentes apresentem com abundância: o indivíduo

não tem muito a ganhar ou a perder permanecendo com o grupo; sua lealdade

muda facilmente e ele resiste prontamente a qualquer tentativa de coerção,

ameaçando cindir-se. O baixo nível do dispêndio de energia por parte desses

grupos e o baixo grau em que sua existência pressionou os recursos do meio

ambiente sugere que, pelo menos, seja corroborada a tese, segundo a qual,

quando as condições são favoráveis ao indivíduo, não se obtém muita coisa

em termos de colaboração.

David Hume afirmou que o problema da ação coletiva pode ser melhor

resolvido em comunidades muito pequenas, já que elas possuem muito pouca

coisa que seja objeto de disputas. Isto também marca um ponto a favor de

outro argumento: as comunidades pequenas fracassaram ao criar evidências

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38

muito visíveis de um benefício coletivo. Quando nos distanciamos do exemplo

especial dos bandos de caçadores, outras comunidades em pequena escala

não são visivelmente bem-sucedidas ao criar uma ordem social que proteja

efetivamente as poucas pessoas e seus modestos haveres.

Na perspectiva da antropologia, os fatores favoráveis têm menos a ver com a

escala e mais com a proporção da população que tem acesso aos recursos,

juntamente com a possibilidade de satisfazer necessidades sem obrigar

alguém a executar aquele tipo de trabalho árduo, monótono e contínuo que

tenta alguns a coagir outros a prestar serviço. Seria, entretanto, um grande erro

qualificar essas comunidades como grupos latentes no sentido empregado por

Olson. Elas, na verdade, constituem comunidades morais, persistentes e

verdadeiras. Está ocorrendo algo que não desafia a análise e nada tem a ver

com a escala, mas que é deixado de lado devido à falsa plausibilidade dos

efeitos da escala.

Suponhamos que uma forma de ordem social tenha se realizado de

certa forma; então, no segundo estágio, Michael enumera quatro maneiras

pelas quais a comunidade trabalha para manter essa ordem. Muitos outros

escritores aderiram a essa lista. Nenhuma dessas formas constitui um exemplo

convincente. A primeira dessas supostas formas extra-racionais de controle

social se apóia em ameaças e ofertas. Elas não passam de apelos ao interesse

próprio do indivíduo, Este processo é, com efeito, muito bem documentado

pelos antropólogos, porém sua análise é por demais compatível com a teoria

predominante da escolha racional para poder isentar as pequenas

comunidades de seu vigor.

A socialização é o segundo modo pelo qual se afirma, com freqüênIcia,

que a ordem social é mantida. Os adultos são expostos ao vexame público e as

crianças passam por iniciações dolorosas que as ensinam a tomar as atitudes

corretas. Podemos, entretanto, imaginar como os pais são induzidos a deixar

seus filhos passar por esses tormentos e indignidades, que fazem parte de um

padrão. As sanções coletivas são uma forma de ação coletiva. Retrair-se do

processo da socialização é outra maneira de não cooperar. O que acontece

quando uma mãe alega que seu filhinho é por demais sensível ou

excessivamente jovem? O que a impede de afastar seu filho e todas as outras

mães de afastar os seus, por meio de uma ação precipitada, que os subtrai à

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39

socialização? A resposta está em seu compromisso com determinada ordem

social. Mas não é essa escolha coletiva o que estamos tentando explicar?

A terceira maneira pela qual a ordem social é presumivelmente mantida

nas sociedades primitivas se dá pelas características estruturais daquelas

sociedades. Trata-se de uma questão sutil. Essas características não

constituem mecanismos específicos de controle social; não podem ser

separadas daquilo que é controlado, mas fornecem uma estrutura para os

controles sociais. Elas são, essencialmente, os padrões de reciprocidade,

parentesco e casamento. Entretanto, tais padrões de troca constituem a

articulação da ordem social que, em si, é apenas uma articulação do

comportamento; assim, o argumento é circular. Pode ser salvo unicamente por

uma presunção funcionalista explícita de um sistema de atividades interligadas

que mantém a si mesmo.

A característica mais amplamente demonstrada da sociedade primitiva

que, segundo se diz, mantém a ordem social, é a crença nas sanções

sobrenaturais como o medo à bruxaria, à feitiçaria ou aos ancestrais punitivos,

Se outros argumentos falham e se essas crenças carregam o principal fardo

naquele exemplo que separa a comunidade do resto do mundo, então toda a

argumentação submeteu-se a fatores irracionais, Ou a criação da comunidade

é algo que apenas os primitivos podem fazer graças a suas crenças

supersticiosas na bruxaria e nos ancestrais, ou tais crenças precisam ser

generalizadas de um modo que também se aplique à sociedade moderna.

A interpretação antropológica ortodoxa, que foi aceita durante toda a

década de 1960, assumiu um modelo auto-estabilizador, no qual cada item da

crença exerce seu papel na manutenção da ordem social. Entretanto, algumas

sublevações interessantes neste último quarto de século lançaram dúvidas

sobre a existência de tendências que contribuem para o equilíbrio nas

sociedades estudadas pelos antropólogos. Um fator é o desenvolvimento

teórico do tema e o modo como ele lida com novas descobertas. Entre estas, a

mais relevante é o crescimento da antropologia marxista crítica, cujo

materialismo histórico rejeita a ênfase homoestática da geração anterior

(Abramson 1974; Bailey & LIobera 1981; Sahlins 1976; Terray 1969). Outro

fator importante é o fim do colonialismo. Ainda outro é o desenvolvimento da

pesquisa de campo na Nova Guiné, país que não havia sido colonizado antes

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40

da pesquisa antropológica. Agora é possível pôr-se de lado e avaliar o efeito do

governo colonial sobre todos os incentivos individuais e sobre o emprego da

força.

É claro que nas condições coloniais costumava ser mais fácil imaginar

uma comunidade não-coercitiva. Já não se permitia mais às populações

sujeitas ao poder colonial prosseguir seu lucrativo tráfico de armas, marfim e

escravos. Também não Ihes era mais possível competir pela glória na caçada

às cabeças humanas, nas ousadas expedições para o roubo do gado, já não

podiam mais estender armadilhas, roubar esposas ou executar vinganças

violentas. Na economia colonial, em que o único incentivo econômico ao

trabalho era um baixo rendimento proveniente dos pagamentos à vista pelas

colheitas, era fácil supor que a comunidade original não havia oferecido

incentivos individuais ao lucro. Os registros antropológicos atuais, mais

sofisticados, mostram essas sociedades em pequena escala numa posição

jamais estática ou auto-estabilizadora, mas sendo continuamente estruturadas

por um processo de negociações e trocas racionais. As categorias do discurso

político, as bases cognitivas da ordem social são negociadas. Em qualquer

momento desse processo em que o antropólogo acione sua máquina

fotográfica e ligue seu gravador, habitualmente, conseguirá registrar alguns

equilíbrios temporários de satisfação, quando o indivíduo se encontra

momentaneamente constrangido por outros e pelo ambiente que o cerca. A

análise de custo-benefício individual aplicava-se inexorável e

esclarecedoramente à menor das microtrocas, no que se refere tanto a eles

quanto a nós. Os antropólogos testam mutuamente a credibilidade dos relatos

etnográficos examinando de perto o que eles relatam sobre o equilíbrio das

trocas recíprocas. As evidências obtidas demolem o exemplo de princípios

extra-racionais que produzem uma comunidade, em um ponto não especificado

de uma escala que diminui. E quando eles fazem ameaças e oferendas que os

indivíduos invocam com freqüência o poder dos fetiches, dos fantasmas e dos

bruxos e bruxas para atender suas solicitações. A cosmologia resultante não

forma um conjunto separado de controles sociais. Na obra de Durkheim todo o

sistema de conhecimento é visto como um bem coletivo que a comunidade

está em conjunto. É este processo que precisamos enfocar particularmente nos

próximos capítulos.

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41

A esta altura o conceito comum de uma comunidade anárquica utópica

pode ser deixado de lado como uma ilusão acalentada. A evidência

antropológica, obtida de sociedades de pequena escala, apóia a vasta

extensão da principal tese de Mancur Olson, segundo a qual, os indivíduos são

facilmente desencorajados de contribuir para o bem coletivo. Tal tese não

sustenta o ponto de vista desse autor, o qual afirma que a escala é o fator

principal. Qualquer tentativa no sentido de investigar as bases da ordem social

faz emergir as bases paradoxais do pensamento. A esse nível de abstração

não é a circularidade auto-referencial que está errada. Ao acreditar nos efeitos

da escala, a argumentação foi derrotada. Ela deixou de dar aquele passo lógico

anterior que questionaria como nascem os sistemas de conhecimento. Há

muito boas razões para acreditar que a teoria de escolha racional é inadequada

para explicar o comportamento político, Ocorre algo nos negócios cívicos que a

teoria da escolha natural não apreende. De acordo com a posição de Durkheim

e Fleck, o erro é ter ignorado o problema epistemológico. Em vez de supor que

um sistema de conhecimento passa a existir mais fácil e naturalmente, a

abordagem desses autores amplia o ceticismo quanto à possibilidade de um

conhecimento e de crenças compartilhados. Esta dúvida mais abrangente

sobre as bases da comunidade indica o caminho para uma resposta.

3

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42

COMO OS GRUPOS LATENTES SOBREVIVEM

Se a escala diminuta não dá conta da origem das comunidades

cooperativas, talvez algo mais o faça. Para explicar o fato, sem apoiar

explicitamente a abordagem funcionalista intrínseca às colocações de

Durkheim e de Fleck, várias sugestões psicológicas e sociológicas foram

apresentadas. Entretanto, as explicações psicológicas precisam ser rejeitadas

caso ultrapassem os quadros axiomáticos nos quais o problema se coloca.

Assim, podemos descartar qualquer invocação de processos que encorajem o

auto-sacrifício, pois isto satisfaz a necessidade psíquica de manter a auto-

estima ou proporciona o prazer de dar prazer aos outros. Estas satisfações

psíquicas em seu funcionamento não são suficientemente confiáveis para

carregar o peso da explicação. Se algumas vezes funcionam e algumas vezes

não, a interrogação retrocede e então indaga-se o que desencadeia as

vigorosas atitudes emocionais públicas.

Outra forma de explicação coletiva faz com que a ação coletiva dependa

do complexo entrelaçamento das múltiplas trocas recíprocas, diretas e

indiretas. De acordo com a forma forte desta explicação, o indivíduo racional

está atado a um complexo conjunto de relações, nas quais precisa agir munido

de confiança já que não lhe resta alternativa. Na forma fraca, ele tem alguma

escolha e se escolher não cooperar acabará estragando o espetáculo. Surge

então a reação: as sanções sociais serão aplicadas a fim de penalizar o

comportamento não-cooperativo. No entanto, aplicar sanções, conforme vimos

no exemplo das sociedades de pequena escala, é uma forma de ação coletiva

e necessita igualmente de uma explicação.

A objeção à forma forte nasce do conceito de alguém que se encontra

em uma situação em que a escolha não é possível. Claro que é possível, e até

mesmo acontece com freqüência, que uma pessoa se encontre sob uma

coerção tão extremada que não lhe resta escolha, a não ser obedecer. Neste

caso não existe uma questão que envolva confiança mútua e não há problema

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43

algum em tomo da livre cooperação. Quando não há escolha, já não nos

deparamos mais com aquela situação à qual se aplica a teoria da escolha

racional. Além do mais, estender este exemplo a uma amplo espectro de ações

coletivas apenas serve para camuflar o problema. Isto também nos propõe uma

visão inaceitável da ação humana. Apresenta-nos os seres humanos como

agentes passivos, que atuam sob uma coerção mais ou menos completa. Tal

argumentação depende de uma forma de determinismo sociológico que não

confere iniciativa ou bom senso aos indivíduos.

É em parte devido a essa falha que o funcionalismo sociológico vem

gozando de baixa reputação nos últimos trinta anos. Ele não tinha lugar para a

experiência subjetiva dos indivíduos, no sentido do querer e da escolha. Supor

que os indivíduos estão enredados na armadilha de um mecanismo complexo

que eles não ajudam a construir é imaginar que eles sejam objetos passivos,

como carneiros ou robôs. O pior é que, em semelhante teoria, não existe

possibilidade de explicar a mudança, a menos que ela venha de fora, como

uma força coercitiva irresistível. Presumir uma estabilidade como esta nas

relações sociais exige demais de nossa credulidade.

Dada a pobreza das explicações alternativas, cabe-nos procurar mais

cuidadosamente uma forma de argumentação funcionalista que evite tais

armadilhas e, ainda assim, satisfaça as necessidades do conceito de Durkheim

e de Fleck relativo a um grupo social que gera sua própria visão do mundo,

desenvolvendo um estilo de pensamento que sustente o padrão de interação.

Jon Elster declarou provocativamente que é quase impossível encontrar

exemplos de análise funcional na sociologia em que seja demonstrada a

presença de todos os traços logicamente exigidos de semelhante explicação

(Elster 1983). Isto não acontece apenas porque os sociólogos debatem

desatentamente, mas porque acredita que a explicação funcionalista não é

apropriada ao comportamento humano. Sua argumentação começa por uma

revisão de tipos de explicação. As explicações causais e mecânicas se aplicam

ao domínio da física. No domínio da biologia, aplicam-se as explicações

causais e funcionais. As explicações funcionais são justificadas pela teoria da

seleção natural. Nenhuma teoria geral, equivalente à evolução biológica, se

aplica ao comportamento humano. Devido a razões que Elster enumera

sucintamente, os seres humanos podem fazer coisas que os organismos

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biológicos não conseguem fazer. Eles podem empregar estratégias de espera,

podem dar um passo atrás a fim de dar dois passos à frente e podem executar

outros movimentos evasivos. O tipo explanatório, exclusivamente apropriado

ao comportamento humano, é intencional. De acordo com Elster, a combinação

de teorias causais e intencionais deveria ser suficiente para explicar tudo aquilo

que precise ser explicado no comportamento humano. Existem teorias causais

tomadas em consideração pelos seres humanos e eles podem estar mais ou

menos equivocados. Existem também intenções dos seres humanos e

decisões baseadas em teorias causais, mais ou menos consistentes,

contraditórias ou equivocadas. O tipo explanatório, exclusivamente apropriado

aos seres humanos, é intencional, mas como Elster não abre espaço para

processos que se auto-sustentam ou para conseqüências inesperadas, que

operam para fazer com que uma situação continue existindo, este autor não

tem como acolher o conceito de Durkheim e de FIeck de um grupo social que

gera, sem intenção de o fazer, pensamentos que mantêm sua própria

existência.

Elster, de modo muito claro e proveitoso, enunciou as condições que

devem ser preenchidas por uma análise funcional, corretamente

fundamentada. Embora tais condições pareçam inicialmente obscuras, elas

esclarecem imensamente as questões. Uma instituição ou padrão

comportamental, X, é explicado por sua função, Y diz respeito a um grupo e Z,

se e apenas se:

I. Y for um efeito de X;

2. Y for benéfico para Z;

3. Y não for levado em linha de conta por ações que produzem X;

4. Y ou a reação causal entre X e Y não for reconhecida por atores em Z; e

5. Y mantiver X por um circuito completo, causal, que proporciona feed-back e passa

através de Z.

Esta lista foi compilada da análise crítica de Merton ao funcionalismo

(Merton 1949) e das sugestões de Arthur Stinchcombe (1968, pp. 82&3).

Reportando-nos ao ensaio original de Merton e aos comentários

subseqüentes, é surpreendente verificar a quantidade de argumentação

funcionalista deficiente que existia naquele momento. Não é de surpreender

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45

que ele se sentisse obrigado a operar com alguma cautela metodológica.

Algumas das citações mais arrebatadas se devem aos antropólogos; alguns

exemplos vívidos, a Karl Marx; algumas observações imprudentes, a

sociólogos Influenciados pelo funcionalismo estrutural de Tallcott Parson.

Segundo a visão de Elster, a principal explicação para o predomínio

excessivo e indefensável do funcionalismo nas ciências sociais é de caráter

histórico. Ele se deve ao prestígio dos modelos biológicos usados pela teoria

evolutiva. Elster empenha-se em assinalar as diferenças essenciais entre as

explicações funcionais, biológicas e sociológicas. Ele, no entanto, jamais

distingue entre colocações funcionalistas, com intenção autenticamente

explanatória, e aquelas que são mais retóricas. Todos os vívidos exemplos

citados por Merton e encontrados nos escritos dos antropólogos pertencem a

esta última categoria. Eles foram usados para enfeitar o ataque que os

antropólogos quiseram desfechar, na década de 1950, contra a etnologia

antiquada (ou história conjectural, como era pejorativamente denominada).

Não há como negar que eles propunham um modelo cômico, merecedor das

zombarias de Merton e Elster. De acordo com estes antropólogos,

absolutamente tudo o que acontece tem uma função na manutenção do

sistema social existente.

O método passo-a-passo, adotado por Elster, é excelente, no sentido

de que reduz uma argumentação ao essencial. Uma dessas argumentações é

a seguinte: (I) Y (mais atenção à produção de alimentos) é um efeito de X

(magia ligada à horticultura): (2) Y é benéfico para toda a comunidade Z, que

consome o alimento. Esta explicação funcionalista não tem êxito porque

ninguém imagina que a magia, ligada à horticultura, não tinha a intenção de

aumentar o fornecimento de alimentos. Da mesma forma, demonstrar que a

magia ligada à pesca não tinha a pretensão final de agir como uma tecnologia

aperfeiçoada é uma explicação causal pura e simples.

A argumentação preferida de A. R. Radcliffe-Brown, segundo a qual os

rituais possuem funções que intensificam a solidariedade, poderia ser

detalhada da seguinte maneira:

I. Y (solidariedade da linhagem) é um efeito de X (culto dos ancestrais).

2. Y mantém a paz interna e a defesa externa e assim é boa para os devotos (Z):

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46

3. Assim, os produtores de X não pretendem manter Y:

4. Eles também não reconhecem qualquer ligação causal pela qual Y mantém X.

Esta tentativa de explicação funcional fracassa. Qual é exatamente o

fator causal oculto? Ele depende de fatores psicológicos (aquilo que Radclliffe-

Brown denominava "atitudes rituais"). Supõe-se que a realização deste culto

desperte aquele tipo de emoções que contribui para a solidariedade. O

exemplo de rituais que estimulam emoções é pobre. Existe alguém que jamais

não tenha se entediado numa igreja? É importante observar que isto vai

contra os princípios do método sociológico de Durkheim (Durkheim 1895), Os

fatos sociais têm de ser explicados pelos fatos sociais. Empenhar-se em

buscar explicações no nível psicológico era o que o método de Durkheim

pretendia evitar. Durkheim desviou-se de suas próprias regras metodológicas

fazendo com que o sagrado, para sua vitalidade, dependesse da excitação

emocional que nascia das grandes aglomerações. Fleck recorreu ao princípio

mais coerente, segundo o qual a confiança e a responsabilidade são pré-

requisitos da comunicação; assim, evitava a inconsistência de suspender a

racionalidade a fim de explicar a origem do pensamento racional em emoções

efervescentes, despertadas por rituais públicos em grande escala. É mais

seguro adotar os ensinamentos de Durkheim no lugar de sua prática e rejeitar

a explicação funcional, baseada em emoções que mantêm a continuidade do

sistema.

Rejeitar aqueles fatores causais que consistem em emoções também

excluiria muitos ramos bem-estabelecidos da sociologia. Por exemplo, a teoria

do desvio coloca, algumas vezes, que ser relegado a uma posição

socialmente marginal (X) produz emoções (Y) que levam os indivíduos

marginalizados a um comportamento anti-social; assim, as emoções criam um

feedback, mediante o qual a atividade retaliatória dos indivíduos

marginalizados proporciona à comunidade o benefício (não-intencional) de

normas clarificadas (Cohen 1980). O argumento funcional depende do fator

não-convincente que liga os efeitos sociais e psicológicos. Além do mais é

difícil contestar que as normas clarificadas não faziam parte do resultado que

se pretendia alcançar.

Um exame detido das alegadas funções sociais do culto aos ancestrais

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47

evidencia os mesmos pontos fracos. Alguma vez foi plausível imaginar que os

devotos não tivessem a intenção de produzir a solidariedade social? É claro

que eles agem assim. Orando ao pé do altar, os devotos do culto aos

ancestrais declaram explicitamente que os ancestrais estão irados com as

brigas entre seus descendentes. Estão se dirigindo um ao outro por meio de

evasivas. Em vez de uma argumentação débil e incompleta sobre

mecanismos ocultos de auto-sustentação, agora reconhecemos uma

colocação de nível sobre os esforços intencionais no plano da persuasão. Não

temos razões, entretanto, para acreditar que as declarações públicas sobre a

solidariedade a promoverão. Se os rituais não produzem as emoções que se

requer, os ritualistas poderiam estar perdendo seu tempo. Parece ser muito

difícil para esses primeiros antropólogos durkheimianos elaborar uma

explicação funcional completa. Os antropólogos citados por Merton e por

aqueles que citam as citações de Merton estavam tentando justificar a religião

pelos seus efeitos práticos. Infelizmente as religiões nem sempre tornam os

crentes mais leais a seus dirigentes ou mais industriosos em suas plantações

e barcos, do mesmo modo que a magia nem sempre traz peixes para suas

redes. Algumas vezes isso pode acontecer e outras vezes não. A acusação de

irracionalidade à religião primitiva estava na mente desses antropólogos (Firth

1938). A única defesa que conseguiram imaginar para a religião das pessoas

que eles estudaram era que não se tratava de algo racionalmente inteligível,

mas que apresentava alguns efeitos colaterais de aumento da solidariedade,

de indução à coragem e de estímulo ao trabalho (Firth 1940). Esses

antropólogos obtêm o pior de ambos os mundos. Não conseguem produzir um

bom argumento funcionalista. Também têm dificulJ3des com a crítica da teoria

da escolha racional.

O melhor que Radcliffe-Brown pôde fazer para justificar a crença nos

ancestrais foi elaborar um sistema inteiramente intencional (Radcliffe-Brown

1945). Ele afirma que os fiéis colaboraram para criar algo que desejavam, e

presume que tenham sido bem-sucedidos. Acontece, porém, que é

precisamente isto que precisa ser explicado. Os sacerdotes e os devotos

estão tentando fazer exatamente aquilo que, segundo a teoria política de

Oson, se supõe ser impossível ou muito improvável. Eles querem partir para

uma ação coletiva. Os devotos dos ancestrais são indivíduos racionais, cada

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48

um deles com preferências próprias em relação a como os outros deveriam

tratá-lo e como ele os quer tratar. A questão que se coloca é a seguinte: como

é que eles conseguem criar aquele bem coletivo, um acordo sobre os

ancestrais? A mesma indagação se aplica a uma crença, sobre a qual todos

estão de acordo, aos tabus ou à magia ligada à pesca, ao pecado ou aos

sacramentos, a Deus ou à Santíssima Trindade. Como é que eles constituem

sua igreja coletiva, com suas doutrinas peculiares, em vez de se perderem

todos em uma destrutiva caça à heresia? Eles são como os criadores que

levam seus carneiros para pastar em terreno comum. Se cada criador mandar

para o pasto tantos carneiros quanto quiser, a terra se tornará excessivamente

usada e todos ficarão numa situação difícil. É interesse deles cooperar, mas

eles não podem confiar em seus companheiros para exercerem controle e,

assim sendo, cada um deles deve apoderar-se daquilo que puder, enquanto

puder. Devido à falta de confiança e de solidariedade, uma pastagem como

essa será dizimada até a última folha de capim. Em outros contextos,

proprietários de manufaturas que apreciam o ar não-poluído não se

encarregam voluntariamente de arcar com os custos de aperfeiçoar seus

próprios procedimentos. Não se pode contar com os proprietários das casas

para removerem a neve das calçadas, em frente dos degraus de suas próprias

residências. Em questões de doutrina religiosa, o exemplo equivalente é que

cada indivíduo reivindique um entendimento particular com Deus e rejeite as

doutrinas que conflitam com suas crenças preferidas. O problema lógico e

prático de como se alcançar a ação coletiva aplica-se tanto à religião quanto a

outras teorias do mundo. A religião não explica. A religião tem de ser

explicada. Não podemos permitir que Durkheim, Fleck e seus amigos deixem

o problema de lado sem maiores justificativas. A exemplo de todo mundo, eles

precisam explicar com clareza os passos mágicos de sua colocação ou aceitar

a acusação de misticismo e apelo ao irracional.

Forçá-los a empreender uma defesa comum apresenta uma vantagem

singular. Durkheim podia evitar a questão da ação coletiva porque estava

lidando com primitivos e com religião. O que ele dizia a respeito desses

tópicos supostamente não se aplicaria a crenças seculares no mundo

moderno. Ele, porém, deixa de ser um ponto de referência quando se trata de

compreender nossa própria ação coletiva. Durkheim jamais tentou aplicar sua

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49

teoria a nós. Podemos ser tentados a explicar, como ele, que as idéias

científicas forçam suas evidências em relação a nossas experimentações.

Sabemos que isso vai contra a história da ciência e ao delineamento de estilos

de pensamento distintos. Fleck estava mais atualizado, ao insistir que um fato

científico não acua os pesquisadores e exige concordância. Ele nos mostrou

que foi preciso quatro séculos antes para que os avanços científicos em outros

campos fossem suficientemente importantes para estabelecer uma distinção

definitiva entre diferentes doenças, originalmente agrupadas como doenças

venéreas: "Semelhante estreiteza de pensamento prova que não foi a assim

denominada observação empírica que levou à construção e fixação do

conceito" (Fleck 1935, p. 3).

Uma abordagem à epistemologia que combine Durkheim e FIeck

impede que se conceda à ciência ou à religião um privilégio excessivo. Ciência

e religião são igualmente produtos conjuntos de um universo de pensamento;

ambas são empreendimentos improváveis, a menos que possamos explicar

como os pensadores individuais combinam para criar um bem coletivo.

Uma das críticas às colocações de Olson é a evidência prática de que

grupos que, de acordo com sua demonstração, deveriam ser considerados

latentes e, portanto, só deveriam manifestar sua existência esporadicamente,

na verdade sobrevivem, criam e mantêm alguma realização cultural comum.

Os bandos de caçadores da Austrália, Boméu e das bacias do Congo e do

Amazonas não podem ser considerados grupos latentes. Eles, na realidade,

criaram uma cultura comum que talvez não seja rica em realizações materiais,

mas que também não pode ser ignorada. Graças à orientação proporcionada

por Elster quanto ao funcionalismo, podemos elaborar uma verdadeira

argumentação funcionalista no estilo durkheimiano para explicar por que

surgem certas crenças que devem ser mantidas em comum e que, assim,

capacitam os grupos latentes a atingir algum grau de eficiência comunitária. A

colocação que se segue poderá parecer elíptica. Ela depende de uma

documentação que já foi discutida, relativa às crenças na bruxaria e na

feitiçaria, e às crenças sectárias em uma conspiração do mal, de âmbito

cósmico (Douglas 1963; Douglas & Wildavsky 1982; Douglas 1986).

A primeira dificuldade com que se depara o grupo latente de Olson é o

fato de que seus membros, por definição, não têm qualquer interesse pessoal

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forte em permanecer nele. Se os custos decorrentes da pertença ao grupo

aumentam acima dos benefícios esperados, a ameaça de se retirar é seu

principal trunfo em uma negociação. Seus membros podem usar esse fato

contra quem quer que pretenda extrair deles mais contribuições do que eles

querem dar. Qualquer membro que deseje particularmente que o grupo latente

sobreviva será vulnerável à ameaça de secessão por parte de outros

membros. Em conseqüência, os assuntos de um grupo latente serão

conduzidos por meio do veto e apoiados por ameaças de retirada. A liderança

será fraca, devido à tendência de os grandes serem explorados pelos

pequenos.

O primeiro passo consiste em reformular o que foi colocado acima como

uma explicação funcionalista para uma liderança fraca.

Ciclo A

1. Y (liderança fraca) é um efeito de X (ameaça crível, no sentido de afastar-se de Z).

2. Y é útil para Z, ao capacitar os indivíduos racionais a resistirem a solicitações

indesejáveis a seus recursos particulares.

3. Y não é propositado (e, na verdade, é deplorado).

4. Y é irreconhecível como um efeito de X.

5. Devido a um nexo causal que não se percebe, Y (liderança fraca) mantém X (a

tendência a fazer ameaças, no sentido de retirar-se), porque impede o desenvolvimento

de regulamentações coercitivas.

Isto explica uma dificuldade (liderança fraca) que um grupo como esse

enfrenta para poder alcançar seus objetivos comuns. Por outro lado, se o fato

de tomar a coerção impossível é algo que conta como uma realização, então o

grupo alcançou certo êxito. A esta altura, uma comunidade desse tipo faria

bem em instituir benefícios seletivos para os indivíduos, de acordo com Olson.

Eles poderiam planejar ter muitos outros objetivos comuns conquistados como

produtos derivados de um empreendimento auto-interessado. Talvez isto

simplesmente não seja possível. Muitas seitas, comunas e grupos sociais,

cujas circunstâncias se conformam ao modelo apresentado no Ciclo A, são

encontrados na periferia de uma sociedade mais ampla e rica ou então fora,

em lugares ermos, onde uma iniciativa empreendedora não pode obter igual

recompensa. Neste caso, os indivíduos podem realizar uma ação alternativa

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51

que terá como efeito fortalecer a base comunitária, continuando a atuar

somente de acordo com motivos que só lhe dizem respeito. O próximo ciclo

também reformula as colocações de Olson (Olson 1965, p. 41).

Ciclo B

I. Y (um limite estável, bem definido, em tomo do grupo) é um efeito de X (insistir em

igualdade e em 100% de participação).

2. Y é benéfico para Z (consolidando a participação).

3. Y não é propositado como um efeito de X.

4. Y é alcançado por um fator causal que não se percebe.

5. O limite (Y) mantém X (a regra de igualdade) que é instituído para controlar

aqueles que pegam carona. O fato de eles terem conseguido suficiente ação coletiva

para elaborar uma regra pode parecer algo menor, mas é apenas uma regra que cada

um aplicará em seu próprio interesse, ao não querer ser trapaceado por quem pega

carona. Apresenta os efeitos de um autopoliciamento, conforme será descrito no

próximo capítulo.

Esta participação de 100%, para que possa ser eficientemente

controlada, requer rígidas condições de admissão, o que constitui uma

barreira para aqueles que eventualmente pretendam participar. Como

resultado deste segundo ciclo qualquer possibilidade de benefícios individuais

seletivos que possa ter ocorrido é seriamente restringi da. Os dois ciclos, A e

B, nada mais fazem do que explicar com clareza, nos termos de Elster, o

relato de Olson sobre os problemas a que os grupos latentes estão sujeitos e

as soluções que ele descreve. Por estes dois ciclos, foi definido um grupo

social com uma forma precisa e distinta de organização, que não tem poder

coercitivo e não proporciona benefícios seletivos individuais de espécie

material. Segundo a teoria de Olson, é apenas um grupo latente. O obstáculo

a sua teoria é que, na experiência comum, os grupos sociais que

correspondem perfeitamente a essa descrição manifestam-se com muita

eficácia e continuidade. Recorreremos agora a Elster para justificarmos

Durkheim, Fleck e os antropólogos funcionalistas e para suplementar a teoria

da ação coletiva, acrescentando O' elemento cognitivo a fim de estabilizar e

legitimar o grupo social. Graças à clara descrição da forma da sociedade,

podemos agora descrever determinado padrão de crenças que justificaria os

primeiros dois ciclos, os quais, presumivelmente, surgiriam ao mesmo tempo.

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CicIo C

I. Y (crença compartilhada em uma conspiração malévola) é um efeito de X (acusações

mútuas de traição dos princípios fundantes da sociedade).

2. Y é benéfico para Z.

3. Y não é intencional.

4. Y depende de uma conexão causal que não é percebida pelos membros.

5. O nexo causal oculto é o seguinte: devido a uma liderança fraca, não se pode invocar

consenso algum para formular ou aplicar leis ou punir os desviantes (Ciclo A). A ameaça

de separação pode ser controlada indiretamente por um limite rigoroso (CicIo B), que,

automaticamente, garante que a saída terá um alto custo. Assim sendo, apenas uma

ação política indireta se toma possível; em conseqüência, existe uma tendência a

controlar um comportamento explorador acusando líderes incipientes de facções de uma

imoralidade de princípios. Não há nada mais de que se possa acusá-los, já que não

existem outras regras. A atividade de acusação, X, reforça a crença, Y, em uma

conspiração externa, porém Y mantém X.

Em vez de recorrer às crenças para explicar a coesão da sociedade,

usamos a sociedade para explicar as crenças, e elas certamente merecem

melhor explicação do que nos referenciarmos a conspirações cósmicas e

perigos satânicos. A excelente descrição que Lewis Coser faz das seitas como

uma forma de "instituição gananciosa" supõe que os perigos externos levam-

nas a exigir o engajamento incondicional de seus membros. Os perigos,

entretanto, se apresentam sempre em todos os lugares. Todas as sociedades

enfrentam perigos; nem todas são instituições gananciosas e nem todas são

bem-sucedidas em levar seus membros a reconhecer os perigos existentes.

Esta análise demonstra que o problema começa em um comprometimento

hesitante e não devido a um perigo exterior (Coser 1974).

Agora o grupo corporativo começa a se tomar plausível enquanto agente

por si mesmo. Passa a assemelhar-se ao trapaceiro que, no jogo de cartas,

força os jogadores a pegar uma carta contra sua própria vontade. Este

determinado tipo de grupo social pensa de acordo com determinados hábitos

arraigados, tem opiniões próprias. Ao escolher participar desse bando

idealista de irmãos, ninguém opta por todo um conjunto de comportamento e

de crenças. Eles, porém, caminham juntos. Todos os três ciclos se combinam

da seguinte maneira:

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I. Y (C. a crença na conspiração) é um efeito de X (A, liderança fraca e B, limites

rígidos). 2. Y é benéfico ao manter a comunidade, Z, existindo.

3. Y não faz parte das formulações de Z e, assim, nenhuma acusação insultuosa

deduplicidade se volta contra os crentes.

4. Os laços causais não são percebidos.

5. Y mantém X ao dividir a comunidade ou ao recorrer a expulsões, quando se suspeita

de traição, criando uma história que deixa os possíveis líderes nervosos.

A crítica antifuncionalista tem sido útil porque responde a objeções ao

programa de Durkheim-Fleck relativo à teoria da escolha coletiva. Os membros

do grupo latente não pretendem construir o estilo de pensamento que mantém

a forma da organização. É um produto coletivo. Por seu lado, a teoria da

escolha coletiva tem sido útil no sentido de reabilitar o funcionalismo. O nexo

causal percorre toda a organização, opondo claramente resistência às ações

de seus membros. O único pressuposto inicial necessário foi mínimo: eles

gostariam de ver a comunidade sobreviver sem desistir de sua autonomia

individual. As restrições presentes na situação permitem apenas certas

soluções. Ao adotarem a estratégia mais fácil, eles começam a percorrer

juntos uma senda que termina na construção conjunta de um estilo de

pensamento. Deve-se admitir que ele inclui elementos desagradáveis, tais

como a crença em um cosmos maligno e injusto, que abriga seres humanos

perversos. Ninguém, porém, pode esperar apreciar os resultados, quando

começa a explicar a origem da ordem social. Além do mais, uma

argumentação nesse sentido é algo que não provoca queixas contra um

reducionismo cínico. Não se trata de duplicidade. Ao reverter a argumentação

de conseqüencialidade formulada por Olson, a participação na construção do

estilo de pensamento escamoteia, para cada membro do universo de

pensamentos, a conseqüencialidade de suas próprias pequenas ações. Cada

um deles acusará seu vizinho de traição sem desconfiar que um padrão de

crença, comumente compartilhado, se fortalece com isso.

Uma palavra final pode ser necessária para explicar por que o grupo

latente e seu estilo de pensamentos constituíram o enfoque deste capítulo. É

devido ao fato de que a latência concentra com maior clareza os problemas da

ação coletiva no âmbito dos pressupostos da escolha racional. Por um lado,

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um sistema amplamente coercitivo, como uma prisão, não suscitaria

problemas de escolha coletiva. Por outro lado, um sistema regido por

princípios particulares, que busca o lucro, é facilmente compreendido, pois

esse bem coletivo, tal como pode surgir, pode ser atribuído aos produtos

derivados da atividade empreendedora individual. Em nenhum desses dois

exemplos existe um grupo construído coletivamente e mantido pelo sacrifício

intencional de membros individuais. São estes últimos que suscitam os mais

graves problemas relacionados com a ação coletiva. O grupo latente constitui

a forma mais simples, e, portanto, mais conveniente para ilustrar a ação do

estilo de pensamento na manutenção do sistema. Entretanto, não seria

verdadeiro afirmar que o mercado depende inteiramente dos motivos

individuais de auto-referenciação. Existe um comprometimento normativo em

relação ao próprio sistema de mercado, o elemento fiduciário indispensável à

manutenção dos preços e do crédito. Toma-se necessária uma análise

equivalente sobre o estilo de pensamento para explicar por que formas de

trapacear não destroem os processos do mercado. Mais uma vez uma

hierarquia complexa, combinação de coerção, múltiplas intersecções,

convenções e interesses próprios, explicam muita coisa, mas não tudo, sobre

o comprometimento dos indivíduos com o grupo mais amplo.

Na maior parte das formas de sociedade seqüências ocultas aprisionam

os indivíduos em armadilhas imprevistas e os fazem trilhar caminhos que eles

jamais escolheram. Os exemplos se acumulam. É realmente notável que Elster

tenha encontrado tão poucos. Com exceção de um exemplo anômalo, no

campo da economia, que preenche seus cinco critérios, e um no campo da

ciência política, Elster vê a paisagem social atulhada de argumentos funcionais

incompletos. Até mesmo no campo da antropologia, no qual se encontram os

piores e mais abusivos argumentos, um sólido conjunto de estudos empíricos

exemplifica uma boa explicação funcionalista. Inclusive no livro de Robert

Merton, no qual Elster localizou os principais delineamentos de seu exemplo,

existem explicações funcionalistas bem acabadas. Por exemplo, Merton

descreve uma comunidade que manipula os fundos destinados à educação e

acredita na inferioridade mental dos negros. Sua crença os justifica, quando

eles impedem a escolarização das famílias negras e se mostram

ingenuamente encantados quando as bolsas obtidas por seus próprios filhos

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55

corroboram suas crenças, justificam o modo como eles distribuem as verbas e

mantêm seu controle.

A sociologia pode se permitir tão pouco caminhar sem a argumentação

funcionalista que uma pessoa começa a encarar com desconfiança a

plataforma antifuncionalista. Por que, por exemplo, as arrebatadas declarações

dos principais antropólogos surgem com tamanho destaque nos textos de

Merton? Por volta de 1949 as pretensões de Malinowski já haviam sido

colocadas em sua exata dimensão pela diatribe de Max Gluckman contra ele

(Gluckman 1947). Por que os pronunciamentos já desacreditados de Bronislaw

Malinowski e A. R. Radcliffe-Brown ainda merecem um exame detalhado? O

modo como Elster usa a antropologia sugere uma resposta: a antropologia é

pitorescamente antiquada e divertida. Merton citou o rito da chuva dos índios

hopi como exemplo de um ritual que exerce a função social latente de

despertar emoções que apóiam a solidariedade. A dança não produz chuva

para o deserto crestado, mas exerce uma função social latente. Dando

seqüência à mesma argumentação, com a mesma ilustração, Elster referencia

a Dança de Chuva dos hopi aos trobriandeses, que vivem em ilhas férteis, bem

irrigadas. Desconfiamos que se ele referenciasse a magia da pesca oceânica

dos trobriandeses aos hopi, que habitam em terras do interior, isso não teria

importado em nada. A antropologia não importa. Não é sequer suficientemente

interessante para ser lida. Neste debate, ela serve apenas como um pretexto

para uma discussão mais séria, qualquer que seja ela. Talvez minha posição

seja enviesada. Talvez a antropologia seja um grupo latente que sobrevive

graças à crença em uma conspiração exterior. Uma coisa é certa: a sociologia

ao aceitar que nenhum argumento funciona é como cortar o nariz de alguém

ou cuspir em seu rosto. Sem uma forma funcionalista de argumentação, não

podemos começar a explicar como um universo de pensamento constrói o

estilo de pensamento que controla sua experiência.

Vale a pena notar que os detalhes que interessam tão apaixonadamente

os antropólogos são entediantes para os filósofos da ciência. Para mim,

enquanto antropóloga, os detalhes da organização tribal não parecem

intrinsecamente mais enfadonhos do que os que se encontram na história da

medicina. Os relatos antropológicos de adultério e incesto não são mais

indecorosos do que os detalhes de uma doença venérea, nem são mais

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fisicamente íntimos ou repulsivos. Os nomes dos povos estrangeiros não são

mais difíceis de se pronunciar do que gonorréia, sífilis, cancro mole e

linfogranuloma inguinal. Os filósofos da ciência empenham-se muito em

aprender a terminologia e as teorias da relatividade da física quântica. Eles, no

entanto, prestam escassa atenção ao grupo social que é o portador de um

estilo de pensamento.

Ao classificar as descobertas no campo da física ou da biologia como o

principal objeto de sua pesquisa, os filósofos da ciência já adotaram uma teoria

implícita do conhecimento. Trata-se até mesmo de algo que já foi

experimentado e rejeitado em outros âmbitos: a daquele que percebe

passivamente. Eles, implicitamente, relegaram a um segundo plano o conceito

de uma mente ativamente organizadora que, em geral, se considera mais útil

para se estudar a percepção. Assim, eles tomaram as coisas mais difíceis para

si mesmos. A partir desse ponto de partida, por eles escolhido, não

conseguirão suscitar aquela quantidade maciça de detalhes que os atormenta,

da mesma forma que atormenta os antropólogos. Ambas as investigações

estão por demais atoladas em baixos níveis de abstração para poderem lidar

com as questões suscitadas por Durkheim-Fleck.

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57

4

AS INSTITUIÇÕES SE FUNDAMENTAM NA ANALOGIA

Como um sistema de conhecimento alça vôo é o mesmo problema de

como qualquer bem coletivo é criado. Na visão de Durkheim, a base coletiva

do conhecimento é a questão com a qual se deve lidar em primeiro lugar. De

acordo com sua teoria, o laço social elementar só se forma quando os

indivíduos inserem em suas mentes um modelo da ordem social. Ele e

Ludwick Fleck criaram problemas quando escreveram que a sociedade se

comportava como se fosse uma mente em ponto grande. Está mais no espírito

de Durkheim modificar a trajetória e pensar na mente individual aparelhada

como uma sociedade em ponto pequeno. Apropriar-se de uma idéia é um

processo social. É compatível com o conceito que prevalece na filosofia da

ciência, segundo o qual uma teoria é apropriada devido a sua coerência com

outras teorias. No entanto, o fardo desta argumentação é que todo o processo

de se apropriar de uma teoria é tão social quanto cognitivo. Inversamente, a

apropriação de uma instituição constitui, em sua essência, um processo

intelectual, tanto quanto um processo econômico e político. Um enfoque nas

formas mais elementares da sociedade faz emergir aquela fonte de

legitimidade que jamais aparecerá quando se trata de equilibrar os interesses

individuais. A fim de adquirir legitimidade, toda instituição precisa de uma

fórmula que encontra sua correção na razão e na natureza. Metade de nossa

tarefa consiste em demonstrar este processo cognitivo na fundamentação da

ordem social. A outra metade da tarefa é demonstrar que o processo cognitivo

mais elementar do indivíduo depende das instituições sociais.

No mínimo uma instituição não passa de uma convenção. A definição de

David Lewis é esclarecedora: uma convenção surge quando todos os lados

têm um interesse comum na existência de uma regra que assegure a

coordenação, quando nenhum deles apresenta interesses conflitantes e

quando nenhum deles se desviará, a menos que a desejada coordenação se

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tenha perdido (Lewis 1968). Assim, nessa medida, por definição, uma

convenção se autopolicia. O fato de a aldeia A realizar seu mercado na

sextafeira ou no sábado é indiferente, contanto que ele não aconteça no

mesmo dia que o da aldeia vizinha B. Ninguém se importa qual lado da estrada

é a regra para os que guiam, mas todos querem que exista uma regra. O

conceito segundo o qual as instituições contam, desde o início, com um

autopoliciamento, é mais convincente do que o conceito que afirma que todos

os problemas se dispersam, quando a escala é suficientemente pequena.

Porém, Thomas Schelling, que tanto fez para chamar atenção para a

coordenação (1960), também reuniu muitos exemplos de quão facilmente as

convenções que se apóiam em uma base de autopoliciamento podem ser

abaladas (1978). Queremos que existam convenções sobre como os

pedestres devem atravessar a rua, mas nós mesmos as violaremos se

pudermos fazê-lo impunemente. Um número de pedestres suficiente para criar

uma massa crítica atravessará a rua e fará os carros parar, desafiando os

sinais de trânsito. As condições para que surjam convenções estáveis são

muito mais estritas do que pode parecer. As comunidades não crescem,

transformando-se em pequenas instituições e essas não se transformam em

grandes instituições seguindo qualquer processo contínuo. Para que uma

convenção passe a ser uma instituição social legítima é necessário uma

convenção cognitiva paralela que lhe dê apoio.

A economia institucional não diz praticamente nada sobre a legitimação,

embora a autoridade seja discutida algumas vezes (Arrow 1974). A fim de

tornar disponíveis para esta nova e importante discussão os conceitos de

Durkheim-Fleck sobre a legitimação, é aconselhável uma mudança da

terminologia. Tanto Durkheim como Fleck escreveram sobre o grupo social. O

termo se aplicava a todo nível de organização grupal. No restante deste

volume, a expressão instituição será usada no sentido de um agrupamento

social legitimado. A instituição em questão pode ser uma família, um jogo ou

uma cerimônia. A autoridade legitimadora pode ser pessoal, tal como um pai,

um médico, um juiz, um árbitro ou um maftre d'hôtel. Ou então pode ser difusa,

baseada na concordância comum em torno de algum princípio fundante. O que

está excluído do conceito de instituição, nestas páginas, é qualquer arranjo

prático puramente instrumental ou provisional, reconhecido enquanto tal. Aqui,

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59

presume-se que a maior parte das instituições mais estabelecidas, quando

desafiadas, sejam capazes de concatenar suas reivindicações à legitimidade

com sua adequação à natureza do universo. Uma convenção é

institucionalizada quando se indaga: "Por que você age assim?". Embora a

primeira resposta possa ser enquadrada em termos de uma conveniência

mútua em relação a um questionamento maior, a resposta final se refere ao

modo como os planetas são fixados no céu ou como os planetas e os seres

humanos se comportam naturalmente.

Em nossa época está na moda afirmar que as instituições sociais

codificam a informação. A elas se dá o crédito de tomar decisões rotineiras,

resolver problemas rotineiros e produzir regularmente pensamentos em favor

dos indivíduos. Este trabalho recente é de grande pertinência. No entanto

verificamos que existem muitas maneiras de falar a respeito das instituições

enquanto organizadoras da informação. Algumas vezes trata-se de um

recurso a ser comprado e vendido. Esta é a abordagem adotada pelos

economistas institucionais. O. E. WiIliamson (1975) renovou o tema por meio

de sua teoria dos efeitos exercidos pelo fornecimento da informação sobre o

mercado. Em relação a esta teoria, dois fatores contam. Um deles é como é

difícil ou custoso obter uma informação precisa sobre o mercado. O outro é o

número de firmas. Se as firmas são numerosas e a informação pode ser

obtida gratuitamente, então vale a pena ser um empreendedor independente.

Caso ocorra o contrário (poucas firmas e elevado custo de informações),

então as despesas com a transação tomam-se por demais elevadas e com

pensa assumir um emprego em uma grande empresa que possa reduzir os

custos da transação e o controle da informação. Deste modo a escolha de um

indivíduo entre trabalhar como um empreendedor independente, tendo em

vista o lucro, ou trabalhar em troca de um salário, no interior de uma

hierarquia, é tomada a partir de uma base racional depois que ele pesquisou o

ambiente econômico e, sobretudo, os custos da informação. Esta análise foi

inspirada pela famosa queixa de H. A. Simon relativa à teoria da escolha

racional, a qual atribui ao agente racional uma capacidade grotescamente

irrealista de lidar com a informação (Simon 1955). A racionalidade humana é

inerentemente limitada. A organização institucional hoje é amplamente tratada

como uma maneira de resolver os problemas que decorrem da racionalidade

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60

limitada. Recorrendo à análise de Oliver Williamson como ponto de partida,

Andrew Schotter (1981) reescreveu a descrição das instituições em termos de

informação teórica. Neste sentido, não é uma commodity mais ou menos

disponível; é qualquer coisa que valha a pena ser noticiada. Quanto mais

previsível for um componente do comportamento, menos informação ele

transmite. O foco do estudo deslocou-se do fluxo da informação (que mais se

assemelha a um fluxo de commodities, no sentido de WiIliamson) ao estudo

da quantidade de informações transmitidas por um determinado componente,

visto contra o pano de fundo de expectativas padronizadas. Esta análise,

baseada no modelo de informação elaborado por E. E. Shannon, trata as

estruturas institucionais como formas de complexidade no âmbito da

informação. A experiência passada é encapsulada nas regras de uma

instituição, de tal modo a agir como um guia daquilo que se deve esperar do

futuro. Quanto mais amplamente as instituições abrigam as expectativas, mais

elas assumem o controle das incertezas, com um efeito a mais: o

comportamento tende a conformar-se à matriz institucional. Se tamanho grau

de coordenação for alcançado, a confusão e a desordem desaparecem.

Schotter apresenta as instituições como dispositivos que minimizam a

entropia. Elas começam estabelecendo regras e normas e, eventualmente,

podem acabar acumulando todas as informações úteis. Quando tudo está

institucionalizado, nenhuma história ou nenhum outro dispositivo de

acumulação são necessários: "A instituição diz tudo" (Schotter 1981, p. 139).

Isto é bom e extremamente compatível com uma análise durkheimiana. A

única dificuldade é que não nos diz como as instituições começam e adquirem

suficiente estabilidade para fazer tudo isto. Schotter é de opinião que elas se

desenvolvem com muita facilidade a partir das convenções e de outras

estratégias descritas na teoria do jogo. Supõe que elas se desenvolvem

naturalmente, partindo de um equilíbrio entre poderes e interesses conflitantes.

Schotter é um entre muitos que subscrevem esta versão contemporânea do

funcionalismo, a qual presume, nas forças sociais, um impulso em direção ao

equilíbrio. Os antropólogos, entretanto, enfrentaram esta questão nos anos 50

e devem sentir uma certa dubiedade quanto ao fato de pressupor qualquer

impulso direcionado ao equilíbrio. Se este impulso existe, sua realização é

muito precária. O equilíbrio não pode ser pressuposto; ele deve ser

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61

demonstrado e com diferentes demonstrações para cada tipo de sociedade.

Schotter lembra-nos que a desordem é mais provável do que a ordem. Antes

que ela possa realizar seu trabalho, no sentido de reduzir a entropia, a

instituição incipiente precisa de algum princípio estabilizador que detenha sua

abdicação prematura. Tal princípio estabilizador é a naturalização das

classificações sociais. É necessário existir uma analogia por meio da qual a

estrutura social de um conjunto fundamental de relações sociais será

encontrada ou no mundo físico ou no mundo sobrenatural ou na eternidade ou

em qualquer outro lugar, contanto que não seja encarada como um arranjo

socialmente elaborado. Quando a analogia é aplicada de um determinado

conjunto de relações sociais a outro e vice-versa, e destes conjuntos à

natureza, sua estrutura formal recorrente toma-se facilmente reconhecida e

revestida de uma verdade que se autolegitima.

Podem surgir convenções sobre a divisão do trabalho, mas elas,

provavelmente, serão desafiadas o tempo todo, a menos que seu princípio

justificador possa fundamentar-se em algo mais do que as convenções. Por

exemplo, cada pessoa pode compartilhar a idéia de que deveria haver uma

divisão fixa do trabalho, de tal modo que ele não precise ser renegociado toda

vez que existe uma tarefa a ser executada. Todas essas pessoas

provavelmente terão fortes preferências no sentido de não realizar um trabalho

monótono, repetitivo, de baixo prestígio (Douglas & Isherwood 1979). A natural

distinção entre os sexos especializa as mulheres no que diz respeito à

gestação e criação dos filhos. Pressões quanto à eficiência e a distribuição do

poder podem muito bem sobrepor-se às preferências individuais, de tal modo a

produzir uma divisão sexual do trabalho, mas sempre que a coerção relaxar, o

princípio será desafiado. A analogia com a complementariedade da mão

esquerda e da mão direita e com a complementariedade do gênero constitui

um grande recurso retórico (Needham 1973). Assim, a equação "o feminino

está para o masculino assim como a esquerda está para a direita" reforça o

princípio social por meio de uma analogia física. Embora a divisão do trabalho

em si não nos leve muito longe no que se refere à organização da sociedade,

esta analogia constitui um bloco básico no sentido de uma elaboração. Veja-

se, por exemplo, o seguinte:

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62

feminino masculino

esquerda direita

povo rei

De uma simples complementariedade derivou uma hierarquia política.

Outras elaborações metafóricas sobre a direita e a esquerda distinguem as

divisões setentrionais e meridionais do reino; elas podem organizar os

dispositivos do conselho e determinar quem deve sentar-se à esquerda e à

direita do rei. Agora as principais divisões territoriais e as funções políticas

foram justificadas, baseadas em prolongamentos da mesma analogia

(Gluckman 1941). Além disso, o emprego repetido dos mesmos princípios

constitui um reforço mútuo para cada contexto. Em última análise, o sistema

está fundado na natureza, na preeminência da mão direita sobre a mão

esquerda, do norte sobre o sul, do leste sobre o oeste etc. As instituições se

prendem a uma analogia elaborada a partir do corpo. Quanto mais primitiva a

divisão do trabalho, mais a mesma analogia pode ser transposta de um

contexto social a outro. Na moderna sociedade industrial a relação analógica

da cabeça com a mão foi usada freqüentemente para justificar a estrutura de

classe, as desigualdades do sistema educacional e a divisão do trabalho entre

o trabalhador manual e o trabalhador intelectual. A analogia compartilhada é

um instrumento para legitimar um conjunto de instituições frágeis (Shapin.&

Barnes 1976).

Para saber como isto acontece temos que observar os conflitos

particulares sendo resolvidos em um fórum público. Então veremos como cada

uma das partes mobiliza a opinião pública a fim de justificar suas ações contra

a outra parte e observamos os espectadores, que não têm um interesse

especial no caso, e que ouvem um princípio geral com o qual podem ter

empatia. A analogia favorita generaliza a convenção preferida de cada pessoa.

No último capítulo, a crença religiosa surgia como uma expressão não

necessariamente eficaz dos desejos individuais no sentido de que devesse

existir solidariedade. Nenhuma razão de tipo funcional demonstrava que o

culto aos ancestrais pudesse produzir solidariedade. Parecia que o tempo e os

recursos gastos em ritos de sacrifício eram desperdiçados. Desta vez, um tipo

diferente de argumento se articula. Os ancestrais que agem do outro lado do

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63

mundo proporcionam aquela analogia naturalizante que ratifica as convenções

sociais. O enfoque não deve ser direcionado para a questão de como eles

simbolizam a estrutura da sociedade, mas como eles intervêm nela. Poder-se-

ia dizer que refestelar-se e receber o culto é, habitualmente, aquilo que menos

tempo consome entre os deveres de um ancestral. Uma descrição ampla

incluirá um controle ativo e contínuo das atividades diárias em resposta à

solicitação pública.

Fleck insistiu no fato de que a identificação da sífilis foi impedida em

determinado estágio e, em outro estágio, forçada devido à preocupação

pública. A solicitação da cura da sífilis foi mais insistente do que a solicitação

da cura da tuberculose, embora esta última, na realidade, matasse mais

vítimas. Fleck insistiu em que o desenvolvimento do conhecimento depende

de como se espera que esse conhecimento intervenha na vida prática. Pensar

tem mais a ver com a intervenção do que com a representação (Hacking

1923). O mesmo se aplica aos ancestrais: eles são conhecidos por suas

intervenções. Para reconhecer como a instituição dos ancestrais constitui um

mecanismo para a intervenção regular na vida social basta referenciar-se a

uma biblioteca repleta de boas etnografias. Muitos dos problemas dos filósofos

relativos às origens sociais da crença religiosa se devem ao fato de se tratar a

religião como algo que se desenrola numa igreja. Um engano paralelo seria

isolar o culto aos ancestrais de todo o complexo social. Afirmar que isto é uma

boa metáfora da sociedade não explica por que algumas metáforas operam

cataliticamente para promover a ação coletiva e outras não o fazem. A

metáfora é apenas uma imagem e não estamos compromissados com uma

teoria do conhecimento que seja puramente representativa. O modelo

ancestral somente se toma eficiente quando as ações dos ancestrais se

articulam com o processo social.

Quando os ancestrais intervêm, eles, habitualmente, fazem parte de um

sistema que confirma as leis de herança locais. Qualquer pessoa que queira

validar suas próprias pretensões tem de traçar sua ascendência; qualquer

pessoa interessada em contestar essas pretensões tem de questionar a

genealogia. Os ancestrais se situam onde, aparentemente, a ação está mais

quente, controlando a fraude e o vício, como se fossem uma polícia armada ou

vigilantes organizados por cada linhagem. Eles, em primeiro lugar, são

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guardiões do direito de propriedade e, em segundo lugar, da moralidilde geral,

à semelhança de uma repartição oficial que cuida dos impostos. A atividade

deles é conhecida pela taxa de dor que eles cobram devido à inadimplência. É

claro que uma repartição é servida por pessoas de carne e osso, ao passo que

os ancestrais são mortos por definição. Os vivos Ihes estão atribuindo ações.

Achamos incompleta a primeira tentativa de uma análise funcional dos

ancestrais. Agora chegamos a um tipo marxista de posição: os ancestrais

constituem uma invenção socialmente necessária. O culto muito se assemelha

a um epifenômeno de certas relações de produção. Isto melhora nossas

explicações de como as crenças podem ser aceitas?

Dificilmente, pois, ao adotarmos uma posição marxista, fizemos da

piedade um mero subproduto das reivindicações à propriedade. Descrevemos

fiéis que preferem viver numa sociedade na qual a hierarquia e a propriedade

são herdadas; cada um deles consubstancia coniventemente suas

reivindicações, invocando um ancestral poderoso. Eles tramam e inventam

seres imortais que punirão os relapsos. Recorrendo a esta abordagem, a

religião deles é uma trapaça e, por extensão, tal argumentação insulta todos

os crentes. Este novo veio com que nos deparamos é a antiga objeção ao

cinismo, nas explicações reducionistas da crença religiosa.

Examinando mais de perto, até mesmo esta fórmula cínica não funciona.

Quando cada pessoa tem um ancestral que a defende, todos os ancestrais

são desvalorizados. Suas respectivas forças se invalidam. Por que alguém

deveria tomar conhecimento deles?

Enquanto alternativa, a explicação convencionalista realiza uma longa

trajetória. Ela se iniciaria por meio de pontos de equilíbrio, nos quais todo

mundo quer ver alguma espécie de classificação do parentesco. Poder-se-ia

começar supondo uma necessidade comum mínima de cada membro da

sociedade no sentido de ter alguma área de autonomia respeitada por outros

descendentes de um bisavô. Digamos que cada um queira ser protegido da

interferência de tios e tias, primos e irmãos. Por meio de uma convenção

cognitiva emergente será concedida a cada um credibilidade, quando a

pessoa invoca seu pai morto para que ele proteja seu espaço pessoal,

contanto que ele respeite a mesma reivindicação, quando ela parte de seus

irmãos. A maioria dos cultos aos ancestrais abrange apenas convenções

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65

mínimas; eles não necessitam de sanções coercitivas para protegê-los. Para

seu autopoliciamento basta saber que o ponto em que o domínio dos

ancestrais é negado é o ponto no qual um conflito, que eles prefeririam evitar,

tem todas as condições para irromper. Mas por que envolver os mortos? Este

exemplo pragmático é forte em si. Por que simplesmente não evitar a

violência, pois, caso contrário, o conflito se desencadearia? A resposta é que a

convenção social é por demais transparente. Ela precisa de um princípio

naturalizador, a fim de conferir o brilho da legitimidade àquilo que eles querem

fazer. A analogia com a natureza opera assim: o que o progenitor natural

(digamos o lobo, no lugar do leão) representa para sua cria natural (filhotes), o

pai vivo representa para o filho vivo e o pai morto representa para o filho

morto. Retrocedendo esta colocação, ela pode justificar a mesma relação que

se invoca entre o pai do pai do pai do morto com o pai do pai do morto e com

o pai do morto, de acordo com a escala das pessoas vivas, pronta para ser

envolvida nos arranjos sociais legitimados.

Assim, as instituições sobrevivem àqueles estágios em que eram

convenções frágeis. Elas se baseiam na natureza e, em conseqüência, na

razão. Sendo naturalizadas, fazem parte da ordem do universo e, assim, estão

prontas para fundamentar a argumentação. Foram dados dois exemplos de

princípios naturalizados de organização social. Um deles é a fundamentação

de um estado primitivo a partir da analogia entre a relação entre fep1inino e

masculino e a relação entre a esquerda e a direita. Outro é a fundamentação

de uma linhagem, baseada na analogia da relação do progenitor com sua

prole. Muitas outras analogias como estas, que conferem status natural às

relações sociais, abundam na literatura antropológica.

Na história da lógica pensa-se comumente, de acordo com Mill, que a

idéia de semelhança comporta dois aspectos. Um deles se baseia na

semelhança matemática da reações, por exemplo, 2:4::3:6. Os números são

diferentes, mas a analogia se mantém porque as relações formais são as

mesmas. Em contraste com isto, existe um emprego mais vago da

semelhança entre as palavras, aberta a todos os tipos de interpretação

arbitrária. Ensina-se também que a semelhança só por si mesma é apenas

uma base precária para a inferência. As semelhanças superficiais são

enganosas. Por exemplo, a classe de itens comestíveis inclui muitos que

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66

parecem tóxicos e vice-versa. O tomate, hoje indispensável na dieta do

Ocidente, era outrora classificado como um dos vários outros frutos vermelhos

e venenosos, tais como os morangos, amoras, framboesas etc. A semelhança

superficial constitui uma base em que não se pode confiar para uma inferência

sobre o mundo. No entanto as semelhanças que proporcionam analogias

sociais favoráveis são constituídas basicamente para legitimar as instituições

sociais, e não se pretende que, a partir delas, se façam inferências sobre as

coisas físicas. Além disso, o empenho em fortalecer instituições sociais frágeis

assentando-as na natureza é derrotado tão logo seja reconhecido enquanto

tal. É por isso que as analogias fundantes precisam ser ocultas e que o

domínio do estilo de pensamento sobre o mundo do pensamento tem de ser

secreto. Deixemos, porém, de lado o conceito de que essas analogias se

fundamentam em semelhanças fortuitas. Suas propriedades matemáticas

formais constituem a base para a rica variedade de construções que se fazem

em tomo delas. De Soto demonstrou (1960) em uma série de experiências

psicológicas que os indivíduos são muito capazes de reconhecer em suas

situações sociais as propriedades matemáticas da similaridade,

complementaridade, transitividade, exclusão e inclusão. Ao recorrer a

analogias formais que inserem uma estrutura abstrata de convenções sociais

em uma estrutura abstrata imposta sobre a natureza, as instituições vão além

das dificuldades iniciais da ação coletiva.

Agora examinaremos como as analogias derivadas da natureza são

encontradas e, acima de tudo, como se chega a um acordo em relação a elas.

Isto nos leva de volta a uma questão logicamente anterior: como os indivíduos

concordam que duas coisas são semelhantes ou dessemelhantes? Onde se

encontra a uniformidade? A resposta está no fato de que a uniformidade é

conferi da àquele conjunto misturado de itens que contam como membros de

uma categoria; sua uniformidade é conferida e fixada pelas instituições.

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67

5

AS INSTITUIÇÕES CONFEREM IDENTIDADE

Já se afirmou com muita propriedade que os indivíduos sofrem devido à

limitação imposta por sua racionalidade e é verdade que, ao estruturarem as

organizações, eles ampliam sua capacidade de lidar com as informações. Já

se demonstrou como as instituições precisam ser estabelecidas por meio de

um aparato cognitivo. A conveniência múltipla, em várias transações, não cria

certeza suficiente sobre as estratégias empregadas por outra pessoa. Ela não

justifica a confiança necessária. O aparato cognitivo fundamenta as

instituições na natureza e na razão, ao descobrir que a estrutura formal das

instituições corresponde a estruturas formais em domínios não-humanos.

Em primeiro lugar, para que o discurso seja possível, é preciso que se

chegue a um acordo sobre as categorias básicas. Nada mais, a não ser as

instituições, podem definir a uniformidade. A similaridade é uma instituição. Os

elementos são designados para conjuntos nos quais as instituições encontram

suas próprias analogias na natureza. Por um lado, a energia emocional para

criar um conjunto de analogias emana de preocupações sociais. Por outro

lado, existe uma tensão entre os incentivos para que as mentes individuais

dispendam seu tempo e energia na resolução de problemas difíceis e entre a

tentação de recolher-se e deixar que as analogias fundantes da sociedade que

nos rodeia se sobreponham. É algo que lembra a colocação de Williamson

sobre os custos da transação, só que, neste exemplo, todas as vantagens

estão em juntar-se a um esforço conjunto para fazer com que as analogias

operem. Há muito poucas vantagens no ato do corsário que age seguindo

apenas sua própria bandeira. Por mais que eles tentem isolar seu trabalho, os

cientistas nunca estão completamente livres das pressões de suas próprias

sociedades contemporâneas, que são necessárias a um esforço criativo. A

teoria científica é o resultado de uma luta entre as classificações que estão

sendo desenvolvidas por um grupo de cientistas tendo em vista objetivos

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68

profissionais e as classificações que são operadas em um entorno social mais

amplo. Ambas são revesti das de emocionalidade. Ambos os tipos de

classificação dependem da interação social. Uma delas (a dos cientistas)

realiza um determinado esforço para especializar e refinar seus conceitos de

modo a torná-Ios adequados para serem usados em um discurso que difere

das idéias entrincheiradas de um grupo social mais amplo, abrangente,

embora esteja contido nelas. Não era exatamente isso que FIeck descrevia ao

historiar a emergência de uma idéia científica a partir de um entrincheiramento

místico, moral e social? Conforme veremos no próximo capítulo, as fórmulas

científicas que surgem sempre trazem as marcas de suas origens sociais.

No trabalho de tentar compreender, a desordem e a incoerência são mais

prováveis. Quando é encontrado um elevado grau de lógica e de

complexidade, esta é uma questão que provoca surpresa e precisa ser

explicada. A complexidade não significa o isomorfismo repetitivo que recria a

mesma metáfora básica em todos os contextos. Uma ordenação

verdadeiramente complexa é o resultado de um esforço contínuo. Deve existir

alguma indução para explicar por que o esforço é realizado. Fleck acreditava

que a oferta de esforço intelectual na ciência se devia à demanda, não apenas

no que se referia à quantidade de trabalho dispendido, mas também no que

dizia respeito à seleção dos problemas a ser pesquisados (Fleck 1935, p. 78).

Presumamos que na ausência de uma forte demanda (isto é, na ausência de

induções a uma concentração especializada), a classificação satisfará

necessidades mínimas, ao seguir a trajetória do mínimo esforço. Tal trajetória

levará rapidamente a uma coleção imprecisa de analogias sociais

direcionadas para a natureza e lá ela repousará em paz.

De acordo com Geoffrey LIoyd, isto descreve o estado da antiga ciência e

medicina grega. Muitos afirmariam que é uma questão de lealdade para com a

ciência grega admitir que as analogias sociais extraídas da natureza formaram

a base da maior parte da medicina praticada no mundo inteiro até os últimos

cem anos ou pouco mais. As características do antigo pensamento

especulativo grego, conforme LIoyd o descreve, baseiam-se em dois

esquemas. Um deles era um "apelo periódico a pares de opostos de vários

tipos, ambos encontrados na doutrina cosmológica geral, e em relatos sobre

fenômenos naturais" (LIoyd 1966, p. 7). O macrocosmo do mundo foi

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69

construído a partir de contrastes: ar e terra, fogo e água, calor e frio. O outro

esquema ocorreu por analogia, imprecisamente compreendida. LIoyd afirma

que houve pouco esforço para se distinguir entre a similaridade e a identidade

ou entre graus de diferença entre modos de oposições, que formam

alternativas exclusivas e exaustivas, e aqueles que não as formam. Em

relação a este tema, os antropólogos demonstraram que o macrocosmo do

mundo é construído sobre o modelo da sociedade. Seria necessário um

grande esforço para pôr em seu devido lugar as analogias sociais intrusivas. O

reconhecimento dos diferentes graus de similaridade e diferença é um

exercício muito especializado de lógica, inteiramente separado do uso da

lógica para tornar a ordem social manifesta.

Lloyd assinala corretamente que muitas sociedades primitivas empregam

classificações dicotômicas da realidade que espelham sua organização

dualista. Ao discutirmos anteriormente a convenção, argumentamos que até

mesmo as convenções que se auto-reforçam e que todo mundo gostaria que

se mantivessem, têm poucas oportunidades de sobrevivência, a menos que

possam fundamentar-se na razão e na natureza. Em um determindo ponto,

próximo do ápice de qualquer organização, a estrutura se baseia, em última

análise, numa oposição equilibrada, a exemplo do que ocorre no nível mais

elevado dos sistemas nacionais ou internacionais. No entanto, se não houver

instituições coordenadoras ou outros ordenamentos mais complexos, a

imobilização das forças hostis será a realização coletiva mais significativa que

pode ocorrer nesse nível. A ampla distribuição, em todo o mundo, de povos

caçadores organizados em metades e outros sistemas duais atesta os

esforços de se produzir algum bem coletivo, embora as tentativas nesse

sentido não sejam muito eficazes. Um sistema totêmico naturaliza o princípio

do equilíbrio mas não o conceito de relações hierárquicas que governam os

diferentes clãs totêmicos (Lévi-Strauss 1963). Por falta de incentivos ou de

oportunidade para fazer mais, os povos organizados na base das metades

decidiram equilibrar seu conflito em potencial. Em um meio ambiente difícil isto

pode ser reconhecido como uma realização notável, mas, em termos

absolutos, não passa de um pequeno triunfo enquanto organização.

Nossa primeira argumentação foi levada tão longe quanto podia ir. As

intenções individuais no sentido de construir uma instituição podem ser muito

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70

boas. Os indivíduos podem dar força a suas próprias resoluções e tentar

controlar mutuamente as ações individuais recorrendo a analogias baseadas

na natureza. A esta altura o argumento paira no ar. As mesmas tendências

fissíparas são nocivas ao bem comum não só no nível intelectual como

também no nível da colaboração social. Como uma analogia construída por

alguém vence outra analogia nas mesmas condições? Como um sistema de

conhecimento entra em órbita? Como a boa idéia de alguém compete com a

de outro alguém? Trata-se de uma questão fundamental na história da ciência.

Ter transferido os problemas do bem coletivo para a esfera intelectual não os

resolve, embora seja necessário proceder à transferência. Os problemas

relativos ao excesso de carneiros que congestionam os pastos e de carros

que congestionam as estradas deveriam ser reequacionados como problemas

relativos a idéias que se congestionam mutuamente, sempre competindo e

sempre destruindo as bases necessárias de uma investigação.

Começando tudo de novo no que diz respeito à cognição, reflita o quanto

a idéia lógica mais elementar depende da interação social. Trata-se da idéia

da similaridade ou parecença. Quando várias coisas são reconhecidas como

membros da mesma classe, o que constitui sua uniformidade? Alegar que a

similaridade explica como as coisas são classificadas juntas parece ser uma

colocação evasiva. É ingenuidade tratar a qualidade da uniformidade que

caracteriza os membros de uma classe como se ela fosse uma qualidade

inerente às coisas ou como um poder de reconhecimento inerente à mente.

Os antropólogos têm um interesse profissional na classificação de folk. Ela

conduz a muitos níveis taxonômicos e, finalmente, a julgamentos de natureza

política e moral. Uma cultura estrangeira pode funcionar sem ter uma boa

classificação científica. Os sentidos em que ela funciona são políticos,

econômicos, sociais, ecológicos. Tendo em vista o entrelaçamento de

propósitos práticos, a classificação de folk constitui um mundo que é

confiavelmente inteligível e suficientemente previsível para que se possa viver

nele. Os objetivos da classificação de folk são muito diferentes dos objetivos

da classificação científica. Esta se desenvolve para expressar uma teoria

especializada, gerada em instituições especializadas, que também possuem

suas idéias fundantes e também se baseiam na natureza. Cada grupo de

cientistas é capaz de resistir à tentação de confiar nas analogias fundantes da

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71

sociedade exterior apenas até o limite em que essas analogias são isoladas

dessa sociedade. As misteriosas complexidades da teoria econômica são

exemplos de esquemas conceituais que só podem desenvolver-se quando se

apóiam em um isolamento acadêmico, ainda que se proponham a lidar com os

problemas da sociedade mais ampla. Ainda assim, e paradoxalmente, os

economistas, quer queiram quer não, se vêem produzindo provas técnicas

altamente especializadas de opiniões que não derivam em absoluto da teoria

econômica. Por exemplo, Francis Edgeworth inspirou-se em ingressar na

economia matemática na década de 1880 devido a sua convicção de que a

teoria da utilidade era perigosamente igualitária em sua interpretação usual

(Mackenzie 1980).

A comparação das culturas torna claro que nenhuma uniformidade

superficial das propriedades explica como certos itens são atribuídos às

classes. Tudo depende de quais propriedades são selecionadas. Assim, o

improvável trio composto pelo camelo, a lebre e o texugo são classificados no

Levítico 11 como ruminantes e, portanto, pertenceriam à classe dos ungulados

ruminantes; como, porém, suas patas não são fendidas como as do restante

de sua classe, são excluídos dela. No mesmo capítulo, o porco é incluído na

classe dos ungulados; é a única criatura cuja pata é fendida e que não rumina.

No entanto, esta classificação religiosa arcaica e muitas outras classificações

contemporâneas conhecidas dos antropólogos devem suas divisões muito

mais a sua capacidade de modelar as interações dos membros da sociedade

do que a uma curiosidade desinteressada sobre o funcionamento da natureza.

Ocorre uma mudança fundamental, que parte de uma classificação

socialmente inspirada em direção a uma classificação científica. O esforço

pela objetividade constitui precisamente uma tentativa no sentido de não

permitir que classificações socialmente inspiradas não se sobreponham à

investigação. Não pode haver uma transição suave de uma classificação

socialmente inspirada para uma classificação científica. A primeira não pode

direcionar-se para a segunda ao pressionar cada vez mais sob a superfície

das coisas em sua busca do conhecimento, já que este não é um de seus

objetivos (Lévi Strauss 1962).

Os antropólogos mostram-se bem dispostos a seguir o ensinamento de

Quine, segundo o qual a identidade ou a uniformidade é conferi da aos objetos

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72

por eles se manterem no âmbito de uma estrutura teórica. Conforme sustenta

David Bloor, as teorias matemáticas são instituições e vice-versa.

Acrescentaríamos que as instituições desempenham as mesmas tarefas que a

teoria. Elas também conferem uniformidade. Uma vez desenvolvido um

esquema teórico, elementos que no estágio pré-teórico tinham dupla posição

perdem sua ambigüidade. Eles adquirem definição quando seu funcionamento

regular no interior do sistema é demonstrado. O convincente ataque de Quine

ao status independente da similaridade remonta a 1960 ou mais. A

uniformidade não é uma qualidade que possa ser reconhecida nas próprias

coisas; ela é conferida aos elementos dentro de um esquema coerente.

Em seus escritos sobre os usos da similaridade, Nelson Goodman afirma

que ela é "uma fingidora, uma impostora, uma charlatã. Ela tem, sim, seu lugar

e seus usos, porém é encontrada com freqüência onde não pertence,

professando poderes que não possui" (1972, p. 437). Medin e Murphy (1985)

contribuem com um valioso exame do trabalho psicológico sobre a coerência

conceitual, particularmente útil na medida em que, para eles, esse trabalho é

necessário para dizer a seus colegas psicólogos que a uniformidade não é

uma qualidade que pode ser reconhecida nas próprias coisas − é conferida a

elementos dentro de um esquema coerente. O conceito de uma qualidade de

similaridade continua a aflorar porque conjuntos de coisas semelhantes estão

de tal forma bem estabelecidos em determinada cultura que sua uniformidade

tem a autoridade da auto-evidência.

Construir a uniformidade é uma atividade intelectual essencial que se

mantém inobservada. Quine nos proporciona uma agradável especulação

sobre a história natural relativa ao crescimento da classificação científica. Ele

imagina que esta última parte de padrões inatos de similaridade e pelos erros

e ensaios não-guiados, caminha em direção a melhores teorias e

classificações. O conceito de similaridade inata compartilhado por nós com os

animais reconhece graus de diferença entre as qualidades sensoriais, por

exemplo, a capacidade de reconhecer gradações de cor ou de espaçamento.

Quine trata como um desenvolvimento homogêneo esse movimento que parte

de conceitos de similaridade inata para a teorização, com novos agrupamentos

das coisas em espécies.

Em algum ponto essa argumentação apresenta uma falha. Como é

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73

possível que a capacidade de discriminar tons de amarelo, elaborar outros

julgamentos de proximidade ou de distância ou outras diferenças de

qualidade, poderá levar a agrupar itens em classes? Reconhecer uma classe

de coisas significa polarizar e excluir. Envolve estabelecer fronteiras, uma

atividade bem diferente do nivelamento. Vai uma grande distância entre

reconhecer graus de diferença e criar uma classe de similaridades. Uma

atividade jamais pode levar a outra, assim como as instituições não podem

evoluir para uma completa organização da informação, ao começar por

convenções espontâneas de autopoliciamento.

Quine imagina um padrão primitivo de similaridade que, por exemplo,

apresenta o conceito de peixe, que passa a fazer parte de um padrão de

similaridade modificado, com uma classe para os peixes que exclui as baleias

e as toninhas. Recorrendo a outro exemplo, ele propõe um padrão de

similaridade modificado que vai além dos aspectos superficiais ao agrupar

ratos marsupiais e cangurus, excluindo ratos comuns. Mas de onde surgem as

classes primitivas de ratos e peixes? Ele sugere um processo de

amadurecimento.

O sentido de similaridade ou o sentido das espécies desenvolve-se, modifica-se e até mesmo torna-se múltiplo à medida que um indivíduo amadurece, contribuindo talvez para uma previsão cada vez mais confiável. Estabelecem-se finalmente padrões de similaridade que se acoplam à ciência teórica [u.] As coisas são semelhantes no sentido teórico, na medida em que constituem partes intercambiáveis da máquina cósmica revelada pela ciência (Quine 1969, p. 143).

Ele então passa a discutir as experiências de se combinar os julgamentos

de similaridade com as relações objetivas no mundo. Examina até que ponto

os diferentes ramos da ciência necessitam de diferentes medidas de

similaridade. Aborda a idéia de que os ramos da ciência poderiam ser

classificados segundo o conceito de similaridade relativa, próprios a cada um

desses ramos, e até que ponto suas diferentes sistematizações da natureza

são compatíveis e capazes de mesclar-se (p. 136). Finalmente, Quine nota

que existe um estágio final para "a maturidade de um ramo da ciência que já

não necessita mais de um conceito irredutível de similaridade e espécie. É o

estágio final, quando o vestígio animal é inteiramente incorporado à teoria" (p.

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74

138).

A história natural do crescimento e declínio das idéias de similaridade

apenas explicaria uma versão contínua do mundo. Uma ou outra qualidade

perceptiva poderia subitamente ligar-se ou desligar-se enquanto outras se

desvanecem suavemente, porém jamais todas ao mesmo tempo. No fluxo

contínuo da sensação, distintos objetos não aflorarão necessariamente. Quine

deixou sem explicação o conceito de significado lógico, a começar por um

estado que é em si, único, e não é outro estado. A transição, enganosamente

suave, para uma classificação científica é paralela à transição, enganosamente

suave, de Schotter, e que parte das convenções para as instituições estáveis.

Em seu Treatise on Logic and Scientific Method (1874) disse W. S. Jevons: "A

criança mais nova sabe qual é a diferença entre um corpo quente e um corpo

frio" (Jevons 1874, p. 24). Ao fazer esta afirmação, ele, com muita habilidade,

introduziu o conceito de corpo na classificação inata das propriedades termais.

Quine é sagaz demais para fazer isto. Ele sabe que o conceito de corpo ou

objeto precisa de mais explicações. Sempre parece surpreendente que as

discussões contemporâneas sobre o conceito de espécies naturais deveriam

escolher como exemplos de percepções elementares objetos isolados, tais

como uma maçã, um corpo, um objeto ou um animal. A idéia de que é menos

complicado reconhecer objetos do que relações abstratas remonta a muito

longe. A citação de Jevons vai mais além: "O cachorro consegue reconhecer

seu dono [...] A dignidade do intelecto começa quando se separam pontos de

concordância e pontos de diferença [...] A abstração lógica, em suma, se põe

em movimento e a mente torna-se capaz de raciocinar [...] Surgem, ao mesmo

tempo, conceitos gerais de classes de objetos". Dada a persuasão do princípio

de Quine − as espécies são partes da teoria em funcionamento e não

elementos independentes - não esperaríamos que os objetos surgissem antes

que uma teoria do mundo começasse a classificá-Ios. E seríamos mais

consistentes com a teoria de Quine ao não focalizarmos a questão de espécies

naturais, direcionando-a para itens que já foram classificados em espécies por

nossa própria cultura. O problema das espécies naturais certamente começa

com os processos elementares de classificação e os princípios empregados

para se proceder à classificação. Uma teoria do mundo precisaria começar

pela divisão, não pela classificação.

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75

Ao relatar as primeiras tentativas de um bebê em encontrar ordem no

mundo, Melanie Klein nos diz que a preocupação dominante não é verificar os

espaçamentos de qualidade (Klein 1975). Talvez seja importante começar a

indagar: "Este estado é mais quente do que aquele? Aquele estado é mais frio

do que este?" O bebê, entretanto, vê-se, desde o início, confrontado com o

problema de uma correção indutiva. Ele precisa escolher, dentre a

multiplicidade de sensações presentes, algumas bases práticas para projetar

mais além (para empregar um termo de Nelson Goodman) uma versão do

mundo que funcione (Goodman 1983). O bebê não tem hábitos em que se

apoiar e não há uma versão existente a ser refeita.

Exemplos semelhantes não levarão a descri minar as espécies. De

acordo com Klein, o urgente é saber quais são as experiências dolorosas e

agradáveis que surgem de dentro e quais as que surgem de fora. A primeira

base das espécies projetáveis é a diferença entre o self e o não-self (Klein

1975). Este sensação gostosa, ampla, que me proporciona a comida é algo

que produzi por mim mesmo? Ou, na realidade, incorporei algo que era

exterior a mim? A próxima confrontação terminará, como já aconteceu

algumas vezes, por meio de uma incorporação bem-sucedida e do ato de

dormir? Ou será uma cena tempestuosa que terminará, conforme ocorreu

algumas vezes, em rancor e aflição?

John Stuart Mill cita o relato de Coleridge, quando este analisou a política

contemporânea para o Morning Post, recorrendo à comparação entre

concordância e diferenças; ele estabeleceu um paralelo entre a França sob

Napoleão e Roma sob os primeiros Césares, a Revolução Espanhola e a

guerra das Províncias Unidas contra Felipe II e daí por diante. MiII não era de

opinião que o sistema de concordância e diferença fosse um método seguro

de se chegar a uma previsão militar, devido à escolha não-sistemática de

analogias (MiII 1888). Para o bebê, uma classificação como esta é o único

método de diferenciar gradualmente o outro e o self. As perguntas que ele

formula assemelham-se à inteligência militar. Ele precisa saber se a fonte do

leite, caso seja externa, é um seio ou vários e, sendo vários, como distinguir

os aliados dos inimigos? É o seio bom ou o seio mau? Ele está a meu favor ou

contra mim? A mais antiga interação social coloca as bases para polarizar o

mundo em classes. A sobrevivência depende de se ter suficiente energia

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76

emocional para levar adiante esse empreendimento classificatório elementar

por meio do árduo trabalho necessário para construir um mundo coerente,

viável. A interação social fornece aquele elemento que está ausente do relato

da história natural, quando ele se refere ao início da classificação.

Agora a outra metade da argumentação está colocada. Os requisitos

ntelectuais que precisam ser atendidos para que as instituições sociais sejam

estáveis combinam-se com os requisitos sociais da classificação. Ambos são

necessários às bases de uma epistemologia sociológicas e nenhum eles é

suficiente. A instituição funciona como tal ao adquirir um terceiro apoio da

energia moral de seus membros. Desenvolverei este tema no capítulo 9.

Esses três processos operam simultaneamente. Os indivíduos, à medida em

que procuram e selecionam entre as analogias existentes na natureza aquelas

a quem darão crédito, procuram e selecionam, ao mesmo tempo, seus aliados

e adversários, bem como o padrão de suas futuras relações. Ao constituir sua

versão da natureza, eles estão controlando a constituição de sua sociedade.

Em resumo, eles estão construindo uma máquina de pensar e de tomar

decisões em seu próprio interesse.

A esta altura podemos começar a acompanhar os efeitos de se ligar o

pensamento individual a um piloto automático. Em primeiro lugar, ocorre uma

poupança da energia, decorrente da codificação e da inércia institucionais.

Esse princípio tem paralelo em uma característica bem conhecida da

linguagem. O uso freqüente torna algumas palavras resistentes e não apenas

as palavras, como também suas declinações, resistem aos desenvolvimentos

sistemáticos que estão acontecendo o tempo todo. As línguas encontram-se

em constante estado de mudança, porém suas palavras mais comuns

permanecem imunes às novas inflexões. Por exemplo, o substantivo inglês

man (homem), com seu plural arcaico, men (homens), resistiu ao ímpeto

progressivo dos plurais terminados em s. Do mesmo modo as analogias

sociais mais comuns estão presentes e resistem à mudança. Elas estão

prontas para preencher vácuos nas cadeias causais, quando a exigência por

um raciocínio denso não é suficientemente forte para evocar uma

classificação complexa. Graças ao peso da inércia institucional, imagens

mutanles são consideradas suficientemente equilibradas para que a

comunicação se tome possível.

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77

As instituições conferem uniformidade. Analogias socialmente

fundamentadas atribuem itens disparatados às classes e as sobrecarregam

com um conteúdo moral e político. Por exemplo, as séries que Lévi-Strauss

tomou familiares recentemente, em 1984, começam por meio da natureza que

se distingue da cultura e prosseguem em direção a vários níveis. Elementos

que se encontram do mesmo lado, na taxonomia, inevitavelmente são

classificados juntos: os homens com a cultura, as mulheres com a

animalidade.

cultura : natureza

natureza humana: natureza animal

masculino : feminino

A classificação submersa justifica uma determinada atribuição prescrita

às mulheres na divisão do trabalho, seja como trabalhadoras agrícolas e

carregadoras de carga ou como coisinhas lindas, incapazes de pensar.

Justifica também o comportamento feminino da espontaneidade, lágrimas

fáceis, carências inconsistentes e cuidados com os filhos. A teoria feminista,

na antropologia, tem muito a dizer a respeito dessas equações como

justificativas da sujeição das mulheres (Strathern 1980). Mesmo quando o

gênero feminino é associado ao lado mais estimado, ainda assim pode ser

usado para justificar o fato de as mulheres executarem as tarefas fisicamente

mais pesadas. Por exemplo, os homens de Bamenda, nos Camarões,

costumavam deixar suas mulheres realizar todo o trabalho agrícola pesado

com o pretexto de que apenas elas e Deus podiam fazer as coisas crescer

(Kaberry 1952).

Os valores elevados podem situar-se à esquerda ou à direita; quanto a seu

valor, o padrão pode receber maior ou menor peso em qualquer desses

dois polos. Um ocidental moderno, orientado para a tecnologia, daria maior

peso ao lado direito e um cristão ou muçulmano fundamentalista escolheria

o lado esquerdo como ideal, no seguinte conjunto de pares opostos:

passividade atividade

permanência mudança

antiguidade modernidade

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78

Existem muitos exemplos instrutivos no que se refere à autodefinição de

várias profissões. Os economistas são os teóricos mais vigorosos no campo

das ciências sociais. As instituições que os cercam baseiam-se em muitas

relações de pares ordenados. Seu próprio esquema da cultura muitas vezes é

assim descrito:

espiritual material

poesia e religião economia

filosofia especulativa ciência aplicada

metáfora vaga teoria rigorosa

intangíveis economistas

Este conjunto de analogias emparelha o trabalho científico com as coisas

físicas, as coisas mensuráveis e as teorias científicas. Algumas vezes os

economistas devem determinar uma escala das necessidades humanas, mas

não reconhecem que atingiram os limites de sua competência profissional. Em

vez de admitir paridade com os leigos, eles prosseguem falando com

autoridade profissional, ao mesmo tempo em que se apóiam nas analogias

instituídas da cultura ocidental (Douglas & Isherwood 1979). Isto resulta em

um desenvolvimento hierárquico do espiritual: oposição material.

espiritual : físico

luxos (música, arte) : necessidades

outras necessidades (psíquicas) : necessidades primárias (comida, abrigo)

O resultado é que os elaboradores da política e os administradores

prestam atenção nos déficits periódicos da disponibilidade dos alimentos em

vez de se voltarem para o equilíbrio das trocas que se dão na sociedade

inteira. De acordo com A. K. Sen, isto resulta em decisões desastrosas

quando a fome se manifesta (Sen 1981).

Recorreu-se a dois exemplos: o lugar das mulheres no mundo e o lugar

dos economistas no esquema das profissões. Cada um deles é escolhido para

ilustrar como a divisão do trabalho fornece autoridade a uma analogia que

localiza firmemente na natureza uma situação social estruturada. Enquanto

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79

analogia, não seria imune às dificuldades que cercam as coisas naturais. As

analogias podem ser vistas em qualquer lugar e em todos os lugares. Quando,

porém, uma analogia compara uma estrutura de autoridade ou precedência,

então o padrão social reforça os padrões lógicos e dá proeminência a essa

estrutura. Dois esforços, um social e outro intelectual, sustentam-se

mutuamente. Padrões de autoridade ou de precedência gozam de um status

privilegiado porque, conforme bem disse Thomas Schelling, suas menores

partes indivisíveis são as pessoas (Schelling 1978). Uma pessoa não pode ser

dividida, não pode estar simultaneamente em dois lugares, não pode ser ao

mesmo tempo superior e inferior no mesmo contexto, não pode ter um bolo e

comê-Io. Em algum momento existe um fim para possíveis recomposições de

padrões que envolvem as pessoas. Os padrões de autoridade ou precedência

também são privilegiados porque somos animais sociais, treinados desde a

infância para reconhecermos os materiais elementares da metáfora e da

analogia em nossa própria experiência social.

À semelhança do bricabraque, esses elementos prototeóricos estão à

nossa volta, prontos para ser postos a serviço com a finalidade de promover as

preocupações sociais mais profundas do pensador ou simplesmente para que

a eles se recorra, sendo usados toda vez que a energia necessária a um

trabalho c1assificatório independente se esgota. Lévi-Strauss (1962) inventou

a imagem do pensador como um bricoleur, o artesão amador que transforma o

relógio de parede quebrado em uma prateleira para cachimbos, a mesa

quebrada em uma chapeleira, a chapeleira em uma lâmpada e tudo em outra

coisa. O bricoleur usa tudo o que existe para realizar transformações,

recorrendo a um repertório de suprimentos. A bricolage, de acordo com Lévi-

Strauss, caracteriza o pensamento primitivo. Numa sociedade onde a

tecnologia e a divisão do trabalho foram fixadas em certo nível durante

gerações, as pessoas podem deixar seu pensamento especulativo correr solto,

mas ele não pode ir além dos limites impostos pela tecnologia estável e pelo

padrão de trabalho. Sob a forma de um jogo intelectual, aquilo que Lévi-

Strauss denominou a mente selvagem distribui a ampla gama de paralelos e

inversões sagazes, com elaboradas transformações em seu sortimento de

analogias. Lévi-Strauss aceita que a bricolage intelectual também se encontra

na sociedade moderna, mas em esconderijos e fendas protegidos da pressão

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80

em favor da mudança. Embora ele não o tenha ampliado, seu conceito de

bricabraque descreve bem as analogias recorrentes e os estilos de

pensamento que caracterizam qualquer civilização.

O determinismo biológico é um desses elementos recorrentes na história

intelectual do Ocidente. Encontra-se sempre disponível, sob uma ou outra

forma, para provar que uma onda de imigrantes ou um desprivilegiado social

são prejudicados por sua hereditariedade, enquanto os privilegiados possuem

uma constituição física mais favorável para transmitir a seus herdeiros (Gould

1981). Recorrendo a outro exemplo, aquilo que é gradual, paulatino, é

colocado repetidas vezes em oposição a uma mudança súbita e descontínua.

A natureza, Deus, a Bíblia, são invocados para apoiar um ou outra. Os

defensores do status quo tendem a achar que a natureza está a favor da

continuidade e os defensores da reforma radical fazem uma leitura um tanto

diferente da natureza. Assim, até mesmo a ciência, muito cuidadosamente

protegida das preocupações políticas comuns por sua terminologia, sua

formação e seus locai.s de trabalho segregados, demonstra a mesma

tendência em basear suas instituições em analogias com a natureza e em

achar que as estruturas mais gerais de suas controvérsias correspondem ao

debate político contemporâneo. Há uma argumentação permanente sobre o

valor da urbanidade em oposição à rusticidade ou, para colocar a questão em

outros termos, sobre a cidade como um poço de iniqüidades em oposição à

simplicidade e excelência da vida rural. Este conjunto de oposições que

invocam a natureza versus a cultura é constantemente renovado recorrendo-

se ao que sobra do bricabraque do último debate com a finalidade de propiciar

analogias naturais para qualquer novo debate que esteja politicamente em

primeiro plano.

Como a construção das analogias, a partir da natureza, com a finalidade

de apoiar o sistema social existente, é muito conhecida dos antropólogos e de

outros, as novas colocações feitas neste capítulo precisam ser reformuladas.

Não é inusitado aplicar a idéia de bricolage como forma de pensamento

institucional a problemas de escolha racional. Os dois campos da investigação,

a antropologia simbólica e a teoria da escolha racional, em geral são mantidos

bem distanciados um do outro. Em segundo lugar, vale a pena insistir nesta

questão não somente porque ela proporciona uma nova maneira de abordar os

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81

problemas da ação coletiva, mas também porque modifica nossa maneira de

pensar sobre a cognição humana. A abordagem à cognição humana só pode

se beneficiar ao reconhecer o envolvimento do indivíduo com a construção de

uma instituição a partir do início do empreendimento cognitivo. Até mesmo os

simples atos de classificar e lembrar são institucionalizados.

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82

6

AS INSTITUIÇÕES LEMBRAM-SE E ESQUECEM

A mais ou menos cada dez anos os livros didáticos tornam-se

desatualizados. Precisam de revisão parcial devido a novos avanços da

ciência ou a pesquisas mais aprofundadas dos historiadores. Isto também se

deve ao fato de que a ciência, ao que parece, tornou-se excessivamente

religiosa ou escandalosamente irreligiosa (Nelkin 1977), ou porque a história

da última década nos transmite um sentimento político equivocado (Fitzgerald

1979). Nesse período alguns lemas e chavões tomaram-se risíveis, algumas

palavras tomaram-se vazias e outras por demais sobrecarregadas, encerrando

um excesso de amargura ou de crueldade para os ouvidos modernos.

Algumas palavras contam mais e as que contam menos devem ser postas de

escanteio. O esforço revisionista não objetiva produzir o nivelamento óptico

perfeito. O espelho, caso a história o seja, distorce tanto após a revisão quanto

o fazia antes. O espelho, porém, é uma pobre metáfora da memória pública.

Aquele que busca a verdade histórica não está tentando obter uma imagem

mais nítida de sua própria face ou até mesmo uma imagem mais lisonjeira.

Remendar conscientemente e refazer são apenas uma pequena parte da

moldagem do passado. Quando observamos mais de perto a construção do

passado, verificamos que o processo tem muito pouco a ver com o passado e

tudo a ver com o presente. As instituições criam lugares sombreados no qual

nada pode ser visto e nenhuma pergunta pode ser feita. Elas fazem com que

outras áreas exibam detalhes muito bem discriminados, minuciosamente

examinados e ordenados. A história surge sob uma forma não-intencional,

como resultado de práticas direcionadas a fins imediatos, práticos. Observar

essas práticas estabelecerem princípios seletivos que iluminam certos tipos de

acontecimentos e obscurecem outros significa inspecionar a ordem social

agindo sobre as mentes individuais.

A memória pública é o sistema de armazenagem da ordem social. Pensar

sobre ela é o mais próximo que podemos chegar de uma reflexão sobre as

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83

condições de nosso próprio pensamento. Podemos acompanhar as operações

lógicas, mas é extremamente difícil pensar criticamente sobre elas. Estamos

recorrendo a um conjunto exaustivo de categorias públicas nas quais as

operações lógicas são executadas? Serão elas as categorias corretas para

nossas indagações? O que significa a correção das categorias? À parte

aquelas que submetemos a uma análise, o que devemos dizer a respeito

daquelas outras que deixamos de lado? E o que dizer de outras ordens sociais

que poderiam ter despontado para a existência mas não o fizeram? Não há

como enfrentar diretamente tais indagações. Podemos evitar enigmas

insolúveis e ainda assim obter uma resposta examinando os processos da

memória pública. Alguns padrões de acontecimentos públicos ficam

armazenados nela, outros são rejeitados.

O conceito de amnésia estrutural se fez presente na antropologia social

da Grã-Bretanha em 1940, com a publicação do livro de Evans Pritchard, The

Nuer (1940). A pesquisa de campo em que ele se baseou situa-se no início da

década de 1930. Os antropólogos já estavam alertados para a relação entre a

ordem social e a memória pela escola francesa de L'Année Sociologique e

sobretudo pelo trabalho de Halbwachs sobre a memória coletiva (1950). É

claro que Marx e Hegel já haviam chegado antes. Uma disputa sobre a

primazia da descoberta não faz parte deste capítulo. Acontece, porém, que no

mesmo período dois pensadores contemporâneos convergiram em relação ao

mesmo problema, tratando-o em termos muitos semelhantes e apresentaram

explicações muito comparáveis. Um deles é EvansPritchard e o outro, Robert

Merton, no campo da sociologia. Merton indagava por que os cientistas vivem

se esquecendo de algo que é muito óbvio e por que ficam tão surpreendidos

quando isto passa a ser objeto de sua atenção. O fato óbvio é que a ciência é

um empreendimento coletivo. Os problemas difíceis e as boas soluções se

entremeiam há séculos e se alguém realizar uma descoberta não deverá ficar

chocado ao constatar que não é o primeiro; de uma forma ou de outra é quase

certo que esse problema já havia sido notado. Em um alentado ensaio irônico,

intitulado On the Shoulders of Giants (1965), Merton reflete sobre a falta de

sentido de indagar quem foi que disse a primeira coisa. As melhores idéias e

as citações mais famosas parecem ter estado sempre presentes. O próprio

Merton, tão distanciado de reivindicar prioridades, notou que Francis Bacon,

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84

há 350 anos, esboçou uma hipótese que desse conta das múltiplas e

independentes redescobertas de uma idéia.

Os antropólogos tendem a abordar essa questão de outra maneira. São

menos inclinados a perguntar por que as pessoas esquecem. Para eles,

lembrar é a coisa especial que precisa ser explicada. A antropologia herdou

um antigo critério de adiantamento intelectual baseado na tecnologia da

guerra. O que causava estranheza era o fato de que os povos que dispunham

unicamente de flechas primitivas como armas não se lembravam de nada. A

tecnologia não é um mau critério. Existem realizações no campo da

engenharia que não poderiam ser executadas antes que o cálculo diferencial

fosse inventado e, no campo da contabilidade, triunfos administrativos que

dependem de uma partida dobrada. Algumas técnicas básicas de

discriminação, cálculo e conservação da memória podem ser um pré-requisito

para qualquer forma particular de conhecimento. Os antropólogos sempre

prestaram atenção a quaisquer habilidades, quando se trata de contar.

Mostraram-se especialmente fascinados pelas pessoas que parecem se dar

bem sem ser capazes de contar além de três. Os antigos escritores

mostraram-se muito interessados em grandes feitos da memória

desempenhados por pessoas que demonstravam baixo nível de competência

técnica. Pensava-se geralmente que o segredo estava no aprendizado

automático (Bartlett 1932, Colby & Cole 1973). Isto se ajustava ao

pressuposto de que os verdadeiros avanços intelectuais (e que,

presumivelmente, levavam a equipamentos mais sofisticados) resultavam do

fato de os indivíduos se libertarem das peias institucionais. No entanto, esta

concepção traz as marcas de um forte entrave, conforme veremos no próximo

capítulo.

Levando-se em conta as formulações opostas dessa questão, a

convergência de Robert Merton e de Evans-Pritchard quanto à mesma

solução énotável. O primeiro ficou intrigado ao observar que as múltiplas

descobertas científicas eram continuamente esquecidas; intrigou ao segundo

o fato de fixar-se com toda segurança na memória um número tão grande de

nomes que abrangiam incontáveis gerações de ancestrais. Ambos tomavam o

sistema social como sua unidade. Merton considerava o esquecimento

sistemático como parte integral da organização da ciência; Evans-Pritchard

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85

achava que a lembrança contínua fazia parte integral da organização de um

povo pastoril no Sudão. Que cientistas e que ancestrais são lembrados é a

mesma questão geral. É clássico o estudo de Evans-Pritchard de como os

processos cognitivos dos Nuer se prendem a suas instituições sociais. No

contexto de sua tecnologia muito simples, é notável que eles, em geral,

consigam lembrar-se de nove a onze gerações de seus ancestrais. Será,

porém, que se recordam de tudo isto quando, na luta, empregam apenas

lanças e porretes? Um estudo mais detido mostra que eles mais se esquecem

do que se lembram. Em se tratando de suas genealogias pessoais eles

alegam remontar ao início dos tempos, mas o intervalo de onze gerações

sequer chega a dar conta de sua história na região que habitam. Tem havido

muito esquecimento. Outro fato curioso é que, apesar do contínuo surgimento

de novas gerações, o número de progenitores conhecidos permanece

constante. Em algum momento, ao longo das gerações, muitos ancestrais são

eliminados da lista. Em algum momento, depois do fundador da tribo, de seus

dois filhos, de seus quatro netos e de seus oito bisnetos, a memória tribal

criou um buraco sem fundo e múltiplos ancestrais estão caindo dentro dele de

ponta-cabeça. Eles não estão sendo esquecidos assim, sem mais nem

menos. As forças e as fraquezas da recordação dependem de um sistema

mnemônico que é toda a ordem social. O estudo sobre os Nuer foi uma

demonstração explícita de como as instituições dirigem e controlam a

memória. As páginas que se seguem são um resumo de três livros de Evans-

Pritchard (1940, 1951 e 1956), que foram analisados em outro volume

(Douglas 1980).

Eis como a coisa funciona. Entre os Nuer, o equivalente a um processo

de validação, geralmente aceitável, é a equação fundamental: 40 cabeças de

gado ratificam um casamento. Se houvesse alguma hesitação quanto a essa

quantia fixa, as transações baseadas em sua correção teriam de ser

renegociadas. Partindo-se dessa base, todos os demais direitos são

computáveis. Para se avaliar qual a recompensa correta por se ter matado um

homem, a fórmula é ampliada: 1 mulher e sua progênie = 40 cabeças de gado

= vida de um homem. Várias definições legais derivam dessa fórmula básica.

Sob condições específicas 1 mulher = 1 homem, de tal forma que uma linha

feminina pode ser tratada como uma linha masculina. Vazios e saltos na

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86

genealogia são atenuados para que possam apresentar uma sucessão

ininterrupta de homens. Uma ficção semelhante permite que um homem morto

conte como um pai legal para uma criança gerada após sua morte. As regras

Nuer de contagem permitem a flexibilidade, sem ambigüidade ou contradição.

A memória pública dos Nuer ilustra um princípio de coerência,

entrelaçando fórmulas de ratificação, poupando a energia cognitiva. Se

estivermos interessados em saber como algumas teorias adquirem sua

longevidade, Fleck nos faria notar o serviço que elas prestam nas transações

particulares. Alguns poucos procedimentos aceitos para se fazer

reivindicações individuais controlam o conhecimento que a sociedade tem de

seu próprio passado. Os casamentos Nuer constituem pontos nodais em um

padrão regular de trocas, que classifica e introduz uma variedade de

transações em um tipo uniforme de contrato. Os Nuer têm um bom incentivo

para comparecer a casamentos e exercer em público seus relacionamentos

precisos. Um Nuer que se apresenta num casamento ou espera ganhar uma

vaca, ou terá que contribuir com um destes animais. Aqueles que contribuíram

para as despesas do noivo reivindicarão uma vaca quando a noiva se casar

daí a uma geração. Uma das cabeças de gado distribuídas por ocasião de um

casamento é destinada a um parente situado na quinta geração, após o que

outras reivindicações não serão reconhecidas. Os casamentos e a distribuição

do gado ordenam a memória do passado até o pai do pai do pai em todas as

direções. É uma proeza impressionante da memória, caso tivesse de ser

realizada por apenas uma pessoa, mas os padrões repetidos oferecem muitos

incentivos para que não sobrevenha o esquecimento e sua afirmação pública

distribui o fardo que é o ato de recordar. Assim, um conjunto de nomes, tais

como os do pai do pai de meu pai, de suas irmãs e irmãos e sua

descendência, não estarão perdidos se passarem a fazer parte da estratégia

de se validar reivindicações particulares.

Uma teoria a respeito de como o mundo deve ser governado

sobreviverá à competição se for mais do que uma teoria, por exemplo, se

puder intervir a fim de apoiar estratégias individuais que objetivem criar um

bem coletivo. A teoria Nuer de descendência patrilinear presta este serviço.

A família Nuer depende do homem para os deveres ligados ao pastoreio e

da mulher para o que diz respeito à extração e aproveitamento do leite; ela

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87

precisa pertencer a uma aldeia. Evocando, porém, os problemas

decorrentes da livre iniciativa e as tentações de deixar as tarefas coletivas

serem executadas por todo mundo, perguntaríamos como a aldeia poderia

recrutar os homens para conduzir expedições guerreiras e providenciar a

defesa? A resposta é a seguinte, como um subproduto da herança: os

rapazes só poderão conseguir o gado de que necessitam para poderem

casar se puderem provar ligações com o ancestral correto. A herança os

obriga a deixar clara sua lealdade para com o grupo. Suas coalizões

políticas se baseiam no princípio da descendência de quatro gerações de

um ancestral fundador, de seus filhos, netos e bisnetos, cada um dos quais

fundou uma unidade política. O nível de sua organização intensifica ainda

mais a recordação que eles têm de seus ancestrais. O reconhecimento de

uma fidelidade política, que passa de uma geração para outra, registra o

nome de quatro a seis gerações afastadas. A estratégia destinada a operar

reivindicações individuais registra cinco gerações próximas, num

reconhecimento que parte da direção oposta, de baixo para cima. Naquele

ponto de intersecção, situado entre o limite mais baixo de uma geração e o

limite mais alto da próxima geração situa-se o vácuo no qual sucessivas

gerações de ancestrais vivem desaparecendo.

Não se trata apenas de que não existe um motivo especial para

recordar certos nomes. Existe mesmo uma forte pressão em contrário. A

fórmula bem-sucedida é predatória. A simples consistência do uso a

reveste de poder e ela poderá até mesmo engolir a competição.

O conceito Nuer de ancestral idade possui todas estas qualidades. Ele

também enraíza seu conhecimento na natureza, pois os ancestrais

remontam a antes do início da sociedade humana. Tal conceito também se

harmoniza com sua sensibilidade política. Os Nuer são ardentemente

igualitários, individualistas e independentes. O estratagema do ancestral

que desaparece põe todo mundo em plano de igualdade com todo mundo.

A eles não convém saber mais a respeito da história passada individual. Se

o sistema político que melhor Ihes assentava fosse uma chefia hereditária,

eles teriam se lembrado de mais ancestrais ou pelo menos isso teria

acontecido com alguns deles. A realeza necessita de uma longa linhagem

para reivindicar pretensões dinásticas.

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88

Os discípulos de Evans-Pritchard desenvolveram o tema da memória

institucionalizada pública ao comparar estruturas sociais que podiam e não

podiam sustentar uma profundidade genealógica. A parte mais fascinante

dessa pesquisa põe a nu os procedimentos mediante os quais a história

genealógica é recortada, prolongada e uniformizada (Bohannon 1952, Barnes

1954). O início desse trabalho apóia uma tendência da sociologia da ciência, a

saber, o trabalho em torno da escrita de um texto que segue Merton, quando

ele se debruça sobre a questão das profecias que se auto-realizam (1949), e

Thomas Kuhn, quando ele se refere à ciência normal (1962).

Um dos motivos pelos quais foi importante percorrer passo a passo essas

remotas situações consiste em notar a eficácia pragmática da memória

pública. Isto deveria ser suficiente para que se parasse de invocar uma

coesão mística para as comunidades de pequena escala. Uma comunidade

funciona porque as transações se equilibram. O risco de uma ação

independente é controlado pelo sistema de contabilidade. As contas são

verificadas e as dívidas são cobradas do mesmo modo que Deus ou a

natureza punem os devedores por meio da doença e da morte. O estilo de

pensamento mantém o mundo do pensamento em forma ao direcionar sua

memória.

Voltemo-nos agora para os cientistas físicos em nossa própria sociedade

e observemos sua descrença quando se confrontam com fatos históricos que

não entraram para a memória pública. Seu irado repúdio à possibilidade de

que outro cientista pudesse ter verificado o mesmo fato anteriormente ou

elaborado em primeiro lugar a mesma teoria mereceu de Robert Merton uma

fina análise sociológica em torno de um ponto cego amnésico. Ela se encontra

em uma série de publicações, começando por '''Prioridades na descoberta

científica" (1957), "Únicos e múltiplos na descoberta científica" (1962) e

"Resistência ao estudo das múltiplas descobertas na ciência". A questão está

em saber por que o mesmo fato, com as hipóteses a ele associadas,

permanece durante décadas e séculos "numa condição estática, como se

fosse permanentemente condenado a uma repetição sem prolongamentos" e

então volta a surgir subitamente.

A análise demonstra que os cientistas que alcançaram o status de

estrelas, normalmente afáveis e generosos, renegam furiosamente uma

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89

descoberta anterior ou convergente, pois suas paixões são movidas pelo

modo como a ciência é organizada. Merton liga a emoção, a cognição e a

estrutura social a um sistema. Na ciência, as grandes recompensas vão para a

inovação a que se dá crédito. O conceito de descoberta original está

incrustado em todas as formas da vida institucional, juntamente com os

prêmios e a designação das plantas, animais, medidas e até mesmo doenças,

por parte dos cientistas. As relações interpessoais dos cientistas são

governadas por uma competição institucionalizada, na qual todos perdem

algo: acadêmicos que, em outros contextos, se mostram magnânimos, são

amesquinhados por seu próprio ódio destrutivo ao saberem que um

competidor reivindica precedências; mostram-se desconcertados ao se

deparar com fatos discordantes que não se adequam às suas próprias

categorias; a profissão sofre uma perda devido à práticas ligadas ao segredo,

o que contradiz a abertura intelectual; a política da ciência é induzida em erro

pela falácia de que a duplicação é evitável e constitui um desperdício.

Mantendo-se calmamente fora da controvérsia, Merton demonstra como uma

ordem social distinta gera os próprios padrões de valores, engaja os corações

de seus membros e cria uma miopia que, certamente, parece ser inevitável.

Como Merton não é um cientista social, ele pode pensar coisas sobre a ordem

social desses cientistas que são impossíveis para quem é de dentro. Após

descrever as viseiras que eles usam, podemos perguntar como esses

cientistas podem ter dado crédito ao conceito de descobertas múltiplas.

Mesmo quando Ihes falaram a respeito dessas descobertas, como é possível

que eles continuem a mantê-Ias? Os pensamentos dos cientistas se mantêm

sob o controle da rigorosa instituição da ciência, assim como os nossos se

mantêm sob o controle de outras instituições. Eles não conseguem refletir

calmamente sobre essa questão e nós também não. Precisamos de uma

técnica que nos possibilite afastarmo-nos de nossa própria sociedade,

transformando o pequeno modelo cibernético em um grande modelo com

vários compartimentos que lidam com as paixões inerentes às diferentes

formas de organização social e que demonstrem o controle que as motivações

socialmente reforçadas exercem sobre a visão individual.

Uma boa argumentação funcionalista não precisa invocar o estado

patológico para explicar o esquecimento. Em 1957, Merton encarava a

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90

resistência às múltiplas descobertas como uma reação normal a uma

instituição mal integrada. Recorrendo a termos freudianos, ele definiu a

resistência como uma negação motivada de uma realidade acessível, mas

dolorosa. Em escritos posteriores, essa parte da argumentação foi

abandonada. É mais instrutivo esperar que os efeitos peculiares de uma

organização social sobre a memória sejam mais funcionais do que

disfuncionais. Para que qualquer sistema cognitivo possa operar, certas

coisas precisam ser esquecidas. Não há como se prestar completa atenção a

tudo.

Note-se que Merton realizou uma abordagem indireta ao problema. Ele

não está indagando: "Como é que as pessoas pensam sobre as restrições que

a ordem social impõe a seu pensamento?". Ele pergunta: "Como elas são

impedidas de pensar? Quais são os pensamentos impossíveis?". Merton

demonstra que os pensamentos são descartados pelo sistema. É mais uma

pista sobre como devemos proceder a fim de irmos adiante. Abordagens

indiretas a indagações difíceis podem ser formuladas de um modo que escapa

ao dilema auto-referenciador. Pergunte às pessoas que alimentos elas comem

e elas responderão o que pensam que você pensa que elas deveriam comer.

Uma equipe de nutricionistas do Arizona certa vez imitou os arqueólogos

obtendo as informações que desejavam a partir das latas de lixo doméstico

(Rathje 1975). Os restos de comida revelam dados mais concretos sobre a

dieta alimentar do que respostas a questionários. A teoria do desvio social

constitui outro tipo de abordagem indireta à sociologia cognitiva. Ela examina

os refugos. Pode-se aplicar um excesso de interpretação a declarações

positivas sobre qual tipo de comportamento é mais prestigiado. O estudo da

aversão nos fornece evidências muito mais claras. As regras para se evitar o

comportamento repreensível bem como a punição e a purificação após um

contacto reprovável são mais claramente conhecidas e mais fáceis de omitir

(Douglas 1966). Uma teoria sociológica da rejeição pode ter bases mais

seguras do que uma teoria sociológica do valor devido à natureza pública das

penalidades e proibições que se seguem às atitudes negativas. O mesmo é

verdade no que diz respeito a nosso problema. A possibilidade de se pensar a

ordem social é revestida de infinito retomo. As influências institucionais

tomam-se aparentes por um enfoque naquilo que não se pode pensar e

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91

naquilo que não se pode recordar, acontecimentos que podemos notar ao

mesmo tempo que os observamos esgueirando-se para um outro plano, que

se situa além da lembrança.

Uma vez que um sistema social se baseia na razão e na natureza,

podemos perceber como a energia cognitiva é poupada, acompanhando-se a

carreira de uma teoria bem-sucedida. Em primeiro lugar, baseando-se no

princípio da coerência cognitiva, uma teoria que vai obter um lugar

permanente no repertório público daquilo que é conhecido precisará

entremear-se aos procedimentos que garantem outros tipos de teorias. Na

base de qualquer empreendimento cognitivo amplo encontram-se algumas

fórmulas básicas, equações de uso comum e maneiras práticas de se

proceder. Na ciência, essas técnicas compartilhadas de validação perpassam

diferentes subdisciplinas. Por exemplo, a matemática da lixiviação é

empregada na mineralogia e na oftalmologia. Do mesmo modo os Nuer

recorrem a essa fórmula para o casamento e as dívidas de sangue. Firmar um

conjunto de teorias em um determinado campo confere autoridade a um outro

conjunto, caso ele possa ser firmado mediante os mesmos procedimentos.

Isto é tão verdadeiro para as formas sociais de validação quanto para as

formas científicas.

Os ancestrais esquecidos e as descobertas científicas esquecidas

encontram-se na mesma situação. Os precursores científicos desaparecem de

vista porque jamais tiveram a oportunidade material de abrir caminho até a

superfície da memória pública. Os descobridores esquecidos são como muitos

ancestrais esquecidos. O padrão de seu malogro não é aleatório. As

estratégias destinadas a validar as reivindicações dos cientistas usam a

originalidade como o principal critério para a concessão de prêmios e

atribuições. A crença em um primeiro descobridor nada é sem os prêmios e o

renome. O costume de designar concede imediatamente uma grande

vantagem a uma originalidade que se reivindica e uma desvantagem ao fato

da descoberta. Aquilo que parece disfuncional, quando cientistas exasperados

dão demonstrações públicas de sua vaidade, pode ser encarado como o custo

que se deve pagar para se manter a corrida aberta àqueles que são velozes.

A competição, entretanto, sempre tem um preço elevado, em termos

humanos. Num contexto como esse, o princípio da redescoberta não

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92

apresenta fortes qualificações que lhe permitam ser lembrado. Boa parte das

teorias redescobertas apontam para o fato de que não foram estruturadas

originalmente a partir de uma infra-estrutura cognitiva corrente e, assim,

deixaram de fazer economias, no que se refere à energia. Freqüentemente,

quando uma nova descoberta científica foi rejeitada e deixada em estado de

inércia até mais tarde, trata-se precisamente de uma idéia desprovida de um

entrelaçamento formal com os procedimentos normais de validação. A melhor

possibilidade de sucesso está em confrontar as grandes preocupações

públicas e em explorar as grandes analogias em que se apóia o sistema

sociocognitivo.

O exemplo dos Nuer faz mais pela teoria social da memória do que o

exemplo dos cientistas. A memória institucionalizada dos Nuer explica não só

por que apenas alguns ancestrais serão lembrados, mas quais serão definidos

para a posteridade, quais desaparecerão e depois de quantas gerações. Essa

memória explica a questão relativa à sensibilidade política, bem como a

dependência em relação às técnicas aceitas de validação. A postura dos

cientistas conscientes de seu nome depende unicamente, para seu valor

explanatório, da falta de adequação entre as convenções do sistema de

nomeação e a real situação do conhecimento compartilhado. Isto sugere que a

argumentação desenvolvida nesta capítulo apóia-se excessivamente em um

exemplo exótico. Necessita-se de outro exemplo moderno, que não o dos

cientistas, a fim de ilustrar a influência do entorno social mais amplo e das

técnicas existentes de validação.

Kenneth Arrow descreveu sua própria descoberta relativa à dificuldade de

se conceituar o bem-estar social (1984). Note-se que esta descoberta, o

teorema da impossibilidade, permaneceu inativa, na sombra, despertando o

interesse de apenas algumas pessoas durante uns vinte anos e, subitamente,

tornou-se um dos conceitos dominantes da ciência no Ocidente. Sua biografia

pessoal começa com uma infância passada na época da depressão, um

interesse, quando estudante, em planejamento econômico, bem como na

lógica e na coerência; ele sentiu-se atraído pelo pressuposto da teoria do

equilíbrio geral, segundo a qual toda atividade econômica está conectada com

todas as demais. Arrow começou pela matemática dos mapas da indiferença

do consumidor e aplicou-a à teoria da firma. O que aconteceria se a firma

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93

tivesse muitos proprietários em vez do único proprietário postulado pela teoria?

Suponhamos que eles alimentassem diferentes expectativas quanto ao futuro:

então teriam diferentes preferências em relação aos investimentos.

Suponhamos que tivessem tentado chegar a uma decisão pela votação:

rapidamente ficou claro que que o voto majoritário não levaria

necessariamente a uma ordenação. A partir disso suas reflexões voltaram-se,

em 1948, para o contexto político no qual o voto majoritário era o modo normal

de conciliar as diferenças. Daí a um mês ele deparou-se com a mesma

percepção publicada por Duncan Black no Journal of Po/itical Economy (1948).

Foi então levado a reconhecer que havia um paralelismo quanto aos

problemas relativos às relações internacionais. Examinando um espectro tão

amplo de comportamento sob uma rubrica, partindo da economia para a

política nacional e chegando ao cenário internacional, ele foi capaz de elaborar

uma generalização ousada: nem o voto majoritário, nem qualquer outro modo

de agregar preferências funcionaria no sentido de definir um ordenamento.

Assim, ele formulou as condições sob as quais é impossível agregar

preferências individuais.

É claro que ele enxergava as coisas a partir de um ponto de vista muito

elevado. É claro que ele se beneficiava dos procedimentos matemáticos

existentes. O mistério não está em como ele chegou a seu teorema ou como

ele e Black convergiram sobre essa questão no mesmo ano. O mistério que

ele escolheu para comentar foi o seguinte: por que a descoberta de J. C. de

Borda, em 1781, e a formulação de Condorcet sobre a mesma descoberta, em

1785, haviam sido tão completamente esquecidas (Condorcet 1785)? Arrow

afirma que quando se deu conta, pela primeira vez, de que o voto majoritário

não levaria necessariamente a uma ordenação:

Estava convencido de que aquilo que, atualmente, denominamos o paradoxo de Condorcet não era novo. Sinto-me incapacitado para identificar a fonte de minha crença, agora que conheço a literatura anterior, já que não poderia ter visto qualquer parte desse material obscuro antes de 1946 [...] ao contrário de alguns exemplos de múltipla descoberta, este ainda continua surpreendendo-me. A matemática, afinal de contas, poderia ter sido levada adiante por Condorcet e não existe nenhum corpus ativo de literatura que suscite questões comparáveis. (Arrow, 1984, p. 129).

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A descoberta de Condorcet permaneceu na sombra durante 160 anos, até

que em 1948 e 1949, surgiram, respectivamente, dois escritos de Black e uma

monografia de Keneth Arrow. "Nem Black, nem eu tínhamos conhecimento

desse fato, quando escrevemos sobre a literatura precedente" (Arrow, 1984, p.

129).

A explicação para o fato de a literatura de Condorcet ter sido esquecida

não se deve a que o aparato da matemática, disponível no século XVIII, fosse

inadequado. A explicação para isto encontra-se em um clima diferente de

idéias, políticas e filosóficas, no qual ele elaborou suas provas. Para

Condorcet o objeto da teoria da votação consistia em encontrar a verdadeira

opinião, a verdadeira escolha social, independente dos desejos dos eleitores.

O efeito de se tomar uma decisão, por meio da votação, era encontrar uma

solução bem embasada. O papel dos eleitores consistia em expressar o grau

de entendimento que eles tinham da verdade que estava sendo procurada.

Condorcet levava em consideração o tipo de negociações que seriam feitas,

quando se contasse com um grande número de eleitores, alguns dos quais

eram ignorantes, mas, pelo menos, capazes de apresentar uma ampla gama

de experiências, e que se opunham a alguns poucos especialistas, com

maiores conhecimentos individuais. Sua descoberta foi que com mais de duas

alternativas e mais que dois votos seria possível alcançar um ordenamento

circular, mas uma alternativa como essa não poderia satisfazer a maioria do

eleitorado.

Quando se reconhece que uma maioria poderia preferia A a B e B a C,

mas C a A, a confiança na vontade de algo denominado "a maioria" fica

comprometida.

Mas por que uma descoberta como esta teria sido importante no século

XVIII? A matemática recôndita da votação circular pouco importava em um

país que estava a ponto de mergulhar na revolução e, mais tarde, a

mensagem contida naquela teoria dificilmente seria bem acolhida pelos

políticos do século XIX, cuja preocupação era ampliar as franquias e limitar o

controle político elitista. Ela ainda deve ser acolhida como algo negativo por

aqueles que depositam fé nas decisões majoritárias. O consenso liberal

baseia-se no princípio benthamita, segundo o qual a maior felicidade do maior

número de pessoas é um resultado significativo e único. A teoria só se tornará

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relevante para a ciência política no final do século XX, quando a franquia será

universal e não poderá mais ser ampliada, quando o pluralismo fará com que

o consenso seja mais difícil de se alcançar e quando será abundante o

questionamento sobre os alicerces da sociedade democrática. Uma nova

descoberta terá de ser compatível com os pressupostos políticos e filosóficos,

caso ela deva alçar vôo, para não mencionar o fato de que, mais tarde, ela

será lembrada. Não basta ficar repetindo que a memória é socialmente

estruturada. Ter chegado tão longe é um convite para se dar um passo

adiante. Em seguida, é preciso descobrir quais qualidades da vida

institucional exercem efeitos distintos sobre a recordação.

Assim como cada diferente tipo de sistema social se apóia em um tipo

específico de analogia, derivado da natureza, os sistemas sociais

competitivos são mais débeis, em sua atuação sobre a memória, do que os

sistemas atributivos. Isto deve ocorrer porque a competição afasta alguns

participantes e coloca os novatos no topo, além do que, a cada mudança de

dinastia, a memória pública necessariamente se rearranja. Em contraste, a

sociedade hierárquica complexa precisará evocar muitos pontos de referência

do passado. No entanto, a lista dos pais fundadores será apenas tão longa

quanto a lista das unidades sociais que eles fundaram. Os tratados de paz

serão referências que consignarão um status relativo a inimigos incorporados.

Na medida em que houver pressão em relação a princípios coerentes de

organização, as histórias justificatórias do passado serão amalgamadas e

racionalizadas, como parte do processo social. A coerência e a complexidade,

em se tratando da memória pública, tenderão a corresponder à coerência e à

complexidade no nível social. Foi o que Halbwachs ensinou. Segue-se o

oposto: quanto mais as unidades sociais forem simples e isoladas, mais

simples e mais fragmentada será a memória pública, com menos referências

e menos níveis de ascensão ao início dos tempos (Rayner 1982). Quando

mais a organização social for um grupo latente, consciente dos problemas

organizacionais detalhados no terceiro capítulo, mais seus membros

invocarão uma história de perseguições e resistência. A sociedade

competitiva exalta seus heróis, a hierarquia exalta seus patriarcas e a seita,

seus mártires.

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96

7

UM EXEMPLO DE ESQUECIMENTO INSTITUCIONAL

Seja ela débil ou forte, a memória é apoiada pelas estruturas

institucionais. Cientistas, matemáticos e comunidades pastoris, mencionados

no último capítulo, são tipos de comunidades muito especializadas. A questão

atinge o alvo com maior precisão se nos voltarmos para o exemplo de um

psicólogo eminente que se especializou na questão da lembrança. Frederick

Bartlett pretendia estudar amplamente os efeitos institucionais da cognição.

Sua própria instituição o desviou do projeto. De acordo com o estilo de

pensamento de sua época, era improvável que as coerções institucionais

exercessem muita influência sobre os modernos e, assim, não valeria muito a

pena investigá-Ias. De qualquer modo, as condições experimentais em que

ele trabalhava não permitiam apreender os efeitos institucionais. Sua carreira

é um exemplo auto-referenciador da alegação, segundo a qual os psicólogos

são institucionalmente incapazes de lembrar que os seres humanos são seres

sociais. Assim que tomam consciência desse fato, esquecem-no.

Freqüentemente recordam entre si como são artificiais os parâmetros por eles

estabelecidos em relação a seu objeto de estudo. Psicólogos famosos vivem

censurando seus colegas por desprezarem ou ignorarem os fatores

institucionais, em se tratando da cognição. A literatura das ciências sociais

nos fornece inúmeros exemplos das redes cobertas desse conceito.

Leon Festinger escreveu em 1948 sobre a relação entre a difusão da

informação e o grau de integração em um grupo. Uma certa medida de

integração poderia tomar-se a base de inúmeras teorias sobre a relação entre

o conhecimento e a sociedade, mas nada se fez a esse respeito.

James Coleman é outro exemplo de destaque, na década de 1950, no

sentido de tratar as qualidades da situação social como princípios seletivos

para se obter uma informação aceitável. Comparando os julgamentos dos

médicos em relação às inovações na medicina, ele e seus colegas

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averiguaram que os médicos que estavam inseridos em uma rede profissional

integrada tomavam decisões de adotar ou não um novo remédio mais

rapidamente do que seus colegas que trabalhavam isoladamente em suas

clínicas. Esperava-se que essa pesquisa inaugurasse uma nova abordagem

nas ciências sociais na qual os relacionamentos sociais e as estruturas

sociais seriam as unidades de análise. Coleman anteviu que a nova

abordagem enfocaria o destino da informação transmitida pelas redes sociais

mais e menos integradas (Coleman 1957). No entanto, a análise referente às

redes procedeu-se sem levar a análise paralela e necessária das atitudes e

valores às mesmas alturas da sofisticação e nenhuma teoria sistemática de

sintetização foi desenvolvida.

Mais recentemente, J. M. F. Jaspers escreveu sobre o uso do conceito de

atitudes na psicologia cognitiva. Ele descobriu que a natureza social das

atitudes tem sido completamente deixada de lado. Jaspers liga o atual

aumento da insatisfação à pesquisa sobre a atitude:

Perdemos de vista a natureza coletiva das atitudes porque elas têm sido encarceradas pela psicologia social e convertidas em disposições que se prendem a respostas individuais e de natureza avaliadora, estimativa. Recentes mudanças na pesquisa sobre a atitude e nas técnicas de escalamento levaram a uma completa individualização do estudo da atitude (Jaspers & Prazer 1981, p. 116).

Deve existir centenas de queixas e percepções isoladas e de

descobertas independentes como esta. Elas tiveram um destino adverso.

Existe uma aversão profissional aos modelos de controle que inevitavelmente

cheiram a engenharia social, determinismo sociológico e a apoteose do

Grande Irmão, prefigurada em 1984, de Orwell. Em 1975, Donald Campbell

pôs o dedo na ferida. Ele afirmou que os psicólogos são de tal forma

comprometidos com o pressuposto de que o desenvolvimento psíquico

individual é restringido por convenções sociais, que eles vêem todas as

restrições convencionais e institucionais como algo errôneo. Ele fez os

psicólogos parecerem um bando romântico de cavaleiros errantes que

procuram livrar os fracos e os inválidos das reivindicações ilegítimas impostas

pela vida e pela sociedade. Para os psicólogos, é impensável o conceito de

que fatores estabilizadores poderiam ser úteis ao desenvolvimento emocional

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98

e cognitivo. Campbell afirma com todas as letras que, na psicologia, é

profissionalmente impossível afirmar o conceito de que constrangimentos

institucionais podem ser benéficos ao indivíduo. Semelhante conceito é

passível de exploração, mas não pode integrar o memorável corpus dos fatos.

A fim de contrapor a esse viés, ele recomendava veementemente que se

concedesse prioridade às fontes institucionais da estabilidade (Campbell

1975). Acontece, porém, que ele provou o que afirmava esquecendo-se

instantaneamente de seus bons conselhos. Agora ele está à procura de

fatores estabilizadores em nossa constituição biológica. No entanto, seu dedo

está apontando para a idéia que devemos explorar, a fim de compreendermos

por que nosso autoconhecimento é tão evasivo. Essa idéia é a de que o fardo

de se pensar é transferido para as instituições. Seu próprio exemplo sugere

que se trata de uma idéia inerentemente instável e, com toda certeza,

deveríamos esperar que assim fosse, tendo em vista o que já conhecemos

sobre as dificuldades de um programa de investigação auto-reflexivo.

Entretanto, visto que é importante, poderíamos nos aprofundar nas fontes de

suas fraquezas.

Sir Frederick Bartlett nasceu em 1886 e tomou-se diretor do Laboratório

de Psicologia de Cambridge, sendo editor do British Journal of Psychology

durante muito tempo. Suas pesquisas e suas atividades didáticas firmaram,

com muito sucesso, uma importante visão: a importância dos elementos

seletivos e construtivos na percepção humana. Isto era apenas metade do

que ele se propunha a fazer. A outra metade permaneceu irrealizada.

Quando Bartlett foi para o St. John's ColIege, W. H. R. Rivers

encontrava-se lá. Ele era um antropólogo, fisiólogo e psicólogo muito

influente. Rivers havia sido editor do British Journal of Psychology de 1904 a

1913. Participou da grande expedição ao Estreito de Torres em 1898, na

companhia de outros famosos psicólogos e doutores, incluindo C. S. Myers,

William McDougalI e C. S. Seligman. Era objetivo da expedição fazer um

estudo multidisciplinar da evolução da cognição humana, baseado na

população da Melanésia. A equipe era liderada por A. C. Haddon, biólogo

marinho de formação, mas que tomou-se etnólogo especializado em

Melanésia e especialista na evolução da arte primitiva.

Bartlett sempre afirmou que sua própria pesquisa era profundamente

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influenciada por Rivers e Haddon, ambos antropólogos. De Rivers adotou o

conceito segundo o qual as emoções e a cognição individuais são

institucionalizadas em formas sociais. Da investigação de Haddon sobre a

arte melanésia adotou o conceito de que um estudo experimental da cognição

deveria enfocar o processo de padronização ou de convencionalização. Em

1913, foi contratado pela Cambridge University Press para escrever um livro

sobre a convencionalização. Acredito que ambas as intenções estavam

condenadas ao fracasso desde o início.

Talvez seja difícil convencer o leitor de que esse psicólogo tão renomado

jamais tenha estado à procura de uma teoria sociológica da percepção.

Grande parte das evidências dependem do uso que Bartlett fez da obra

lnstinct and the Unconscious (1920), de Rivers. Rivers estava imbuído da

idéia de que o desenvolvimento do indivíduo e o desenvolvimento da

sociedade seguiam os mesmos processos evolutivos. Ele apresentava uma

teoria da mente, que era também uma teoria da sociedade. Sua formação

intelectual se dera no campo da medicina e da psicologia experimental. Suas

publicações se referiam à visão, fadiga, ilusões ópticas, efeito das drogas e

outros fatores que afetavam a consciência. Ele, ao mesmo tempo, era um

expedicionário antropólogo de campo, tendo ido para a Melanésia em 1898,

para a Índia em 1902 e para a Oceania em 1908 e 1914. Buscar os instintos

humanos e os colocar em padrões de cultura eram duradouras fontes de

especulação para Rivers. Sua técnica, em se tratando de relacionar o

indivíduo com a sociedade, consistia simplesmente em usar um único modelo

desenvolvimentista, no qual se poderiam detectar fendas, encontrando

paralelos entre as relações existentes entre os níveis mais elevados e os mais

baixos.

Seu pensamento havia amadurecido e já tinha 39 anos quando associou-

se a Henry Head, festejado neurologista na pesquisa sobre o sistema

nervoso. Numa famosa experiência, Head ofereceu o próprio braço, um

cirurgião fez incisões nele e Rivers formulou perguntas sobre as sensações

nos diferentes pontos, registrando as respostas de Head. Dado seu forte

comprometimento com a teoria da evolução, não foi surpreendente que a

descrição da experiência feita por Rivers (em Brain 1908) demonstrou que ela

encerrava férteis implicações evolucionistas. A pesquisa, que tornou-se

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100

paradigmática para os escritos ulteriores de Rivers, relatou a descoberta de

dois tipos de nervos sensoriais. O primeiro, que Rivers e Head denominaram

sensibilidade protopática pontilhada, deu uma resposta do tipo tudo ou nada.

Ela ocorria em um nível mais baixo de organização neural e possuía funções

difusas de localização. Cortando aqueles nervos, o paciente torna-se menos

capaz de dizer sim ou não, em se tratando das sensações que ele

experimenta e dos limites dessas sensações, mas mesmo com os nervos

intactos, ele não consegue dizer com precisão onde a dor se localiza. Em

nível mais elevado de organização, o outro tipo de nervos sensoriais, que

Rivers e Head denominaram sensibilidade epicrítica refinada, era capaz de

operar discriminações sutilmente graduadas e de uma localização precisa. No

mesmo relatório, Rivers sugeriu um meio de elaborar um modelo

evolucionista, demonstrando o desenvolvimento da humanidade a partir de

um sistema nervoso herdado ou instintivo, dominado pela função protopática

em estágio primitivo e indo em direção a um sistema que, com o avanço da

evolução, movimentava-se gradualmente no sentido de ficar sob o controle da

função epicrítica.

Evitando qualquer análise técnica mais árdua, Rivers foi capaz de

especular. Ele parecia acreditar na herança de características adquiridas e,

com toda certeza, jamais arriscou qualquer teoria que desse conta da alegada

transformação evolucionista dos seres humanos. Ele foi bem-sucedido em

sua geração, pois em vez de um instrumento analítico empregava uma

varinha mágica que usava para vencer seus opositores e para desenvolver

metáforas elegantemente aceitáveis, relativas à mente e à sociedade. A

metáfora preferida, recorrente em tudo o que ele escreveu, é um modelo de

controle no sistema nervoso, que se estende para o controle da mente e para

o controle social. Ele explica isto com muita clareza em Dreams and Primitive

Culture (1918), em que compara o mecanismo da produção dos sonhos nos

indivíduos com o mecanismo da produção dos mitos na cultura primitiva,

sempre reconhecendo sua dívida para com a genialidade de Freud. O

primitivo, em geral, sai empobrecido dessa comparação. Os povos primitivos

são representantes de estágios infantis anteriores do progresso humano

(Rivers 1918, p. 406). Este é um pensamento institucional que traz consigo

uma vingança, e constitui um ótimo exemplo para nossa coleção de velharias.

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O modelo é uma caixa com dois compartimentos sobrepostos, tendo na parte

de cima uma pequena secção, onde a função nervosa epicrítica controla os

instintos protopáticos. Ele põe o desenvolvimento do cicIo vital do indivíduo na

mesma caixa, ficando a ordem e a razão na parte de cima e as emoções

desordenadas na parte inferior. Isto se aplica à sociedade civil, estando as

instituições soberanas de controle na parte de cima, e a revolução e as

insurreições caóticas na parte de baixo. Isto também se aplica aos

administradores coloniais (compartimento de cima) que tentam controlar os

nativos (compartimento de baixo). Em um anexo introduzido por Rivers em

1922, ele adaptou a conceituação freudiana da censura ao sistema nervoso e

ao sistema social, tudo dentro de um quadro evolucionista. Ele ensinou que

cada um deles estava disposto de tal forma que, "no que se refere à função,

eles se dispõem em inúmeros níveis, um em cima do outro, formando uma

hierarquia na qual cada nível controla o que está abaixo e, por sua vez, é

controlado por aqueles que estão acima." (Rivers 1922, p. 229). Rivers

pressupôs que a história de vida de uma psique humana desenvolve uma

hierarquia de controles semelhante sobre a experiência inconsciente. A

histeria deveria ser explicada por um processo que coloca os níveis mais

elevados em estado de latência, e dá livre expansão aos níveis mais baixos,

instintivos. Isto está muito próximo do atual modelo de crescimento em

direção à maturidade moral, que ainda merece créditos na psicologia

desenvolvimentista. Rivers, entretanto, foi bastante explícito quanto a seu

comprometimento com uma teoria evolucionista e também tentou acrescentar

uma dimensão social.

Bartlett não aceitou o legado integral das idéias de Rivers ou as manteve

intactas. Por exemplo, o conceito cibernético de Rivers da relação entre

psique e sociedade é fortemente autoritário. Quando Bartlett escreveu

Psychology and the Soldier (1927), ele baseou seu escrito em lnstinct and the

Unconscious, de Rivers, e usou os principais termos deste autor − instintos,

tendências grupais e mecanismos inibitórios −, mas referindo-se a uma teoria

de feedback da relação entre o indivíduo e a sociedade, ele democratizou o

modelo com a finalidade de demonstrar que o controle pode ser consensual

(Bartlett 1927, p. 113).

Em um livro anterior, Psychology and Primitive Culture (1923), Bartlett

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102

havia ensinado enfaticamente que o indivíduo sempre é um ser social e que

as influências sociais controlam seletivamente a cognição e a emoção. Ele já

recorria amplamente ao trabalho de Rivers e comparava algo que ele e Rivers

denominavam a "camaradagem primitiva" com a "consciência coletiva" dos

escritores de L'Année Sociologique. Descrevia como, na sociedade primitiva,

o conflito é evitado por uma separação instituída − uma idéia fértil − e como a

curiosidade é colocada sob o controle institucional.

Um dos motivos pelos quais seu interesse pelo controle institucional

sobre o pensamento jamais se tornou algo além de uma especulação, se

encontra indubitavelmente em certos pressupostos evolucionistas atuais.

Bartlett e Rivers pensavam, juntamente com Durkheim, que o controle social

da curiosidade dos indivíduos, livre de quaisquer peias, era mais forte na

sociedade primitiva. O indivíduo primitivo era menos um indivíduo e mais um

autômato, que obedecia a sugestões do grupo. Esse pressuposto

evolucionista era bastante apropriado ao período do império colonial, e

municiava este último com analogias naturalizantes. Era uma auto-evidência o

fato de que o homem moderno havia perdido sua sensibilidade natural em

favor dos sinais do grupo, assim como a raça humana perdera o sentido do

olfato, tão útil nas ordens animais inferiores. Outro pressuposto

contemporâneo era o de que a memória visual também constituía uma

relíquia de um estágio menos evoluído da mente humana. Supunha-se

geralmente que Freud não havia empregado sua imaginação visual e ele

designou Charcot como un type visuel, com uma ponta de depreciação (Lewin

1969, p. 7). WiIliam James já havia notado uma tendência, no ciclo de vida, a

perder a capacidade de visualizar. Ele provavelmente não estava gracejando

ao afirmar que "Quanto mais velhos os homens e quanto mais eficazes,

enquanto pensadores, mais eles perderam sua capacidade de visualização,

como regra geral [...] Este, segundo o sr. Galton, era o caso de membros da

Royal Society" (James 1890, I:266).

Raymond Firth (1968) observa que Rivers declarava muitas vezes

possuir fraco imaginário visual. Ele, entretanto, não se sentia excluído.

Freqüentemente as imagens mediante as quais os pensamentos nos sonhos se exprimem são muito mais vívidas do que as da vida. quando

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103

estamos despertos. embora certas pessoas, nas quais o imaginário sensorial é quase ou totalmente ausente, quando em estado de vigília. possam ver e ouvir as ocorrências de um sonho como se elas, definitivamente, formassem parte da vida real. Do mesmo modo há motivos para se acreditar que o imaginário sensorial é mais vívido e necessário ao selvagem do que às pessoas civilizadas [...] entre os povos selvagens [...] [existe] um interesse quase exclusivo pelo concreto, com elevado grau de desenvolvimento de seus poderes de observação e com a precisão e a plenitude de recordação dos detalhes mais concretos (1920, p. 396).

O relato de Bartlett em relação à memória entre os povos africanos

contemporâneos sugere um misterioso processo de osmose, bastante

dessemelhante do que ele considerava ser o puro raciocínio dos modernos

(Bartlett 1932), mas um tanto próximo dos processos místicos invocados por

aqueles que acreditam que a pequenez da escala, em si, resolve problemas

de ação coletiva. Como, na sua opinião, essa faculdade quase instintual era

menos adaptada à vida moderna, Bartlett eximiu-se tacitamente da tentativa

de estudá-Ia, embora continuasse, no final, enfatizando a importância da

contribuição social à percepção.

É o que se pode dizer da influência de Rivers sobre os interesses

sociológicos de Bartlett. Voltemo-nos agora para Haddon, o outro antropólogo

a quem Bartlett prezava especialmente. O trabalho de Haddon sobre a

convencionalização na arte da Melanésia influenciou a escolha de Bartlett em

relação ao lugar da pesquisa. O poder da convenção cultural em controlar a

percepção e a recordação foi, inicialmente, o problema fundamental de

Bartlett. Ele queria descobrir como a atenção é direcionada. Esperava que os

processos perceptivos do indivíduo fossem ligados às emoções mais

profundas desse mesmo indivíduo. Tais emoções, de acordo com Rivers, são

determinadas pela forma das instituições. Bartlett parece ter estado à beira de

um colapso nervoso ao tentar escrever seu livro tão prometido sobre a

convencionalização. Ele havia lido todos os trabalhos da GestaIt sobre a

memória e chegou à conclusão de que os psicólogos alemães não poderiam

prosseguir o caminho que estavam trilhando. Bartlett queria realizar

experimentos sobre a percepção de um todo no lugar de fazer experimentos

sobre a faculdade da memória exerci da em um disparate desordenado.

James Ward já o aconselhara a pesquisar seqüências de percepções (Bartlett

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104

1932, p. 63). Tornou-se claro, porém, que ele estacou durante muito tempo,

enquanto procurava delinear um projeto experimental.

Em 1913, Norber Wiener, que naquela época tinha dezenove anos e já

possuía um doutorado em filosofia defendido na Universidade de Harvard, foi

a Cambridge trabalhar com Bertrand Russell. Bartlett confiou seu caderno de

pesquisas ao jovem e Wiener sugeriu o método experimental que haveria de

tornar Bartlett famoso: o método de reprodução serial do "escândalo russo". A

técnica consistia em usar seqüências de percepção com algum elemento

faltando ou acrescentado a um padrão, tomando nota, em seguida, de como

os observadores "elaboravam um projeto terminal antes de chegar a ele e

como relatavam ter visto detalhes que, na verdade, não estavam presentes

ali" (Bartlett 1958, p. 142). Essa pesquisa o capacitou a demonstrar

conclusivamente a organização ativa da percepção por parte daquele que

percebia, mas ela estava projetada de tal modo que jamais poderia descobrir

ou avaliar as influências sociais que dirigem a atenção.

Bartlett tornou-se um grande elaborador de experimentos. Temos

conhecimento de como eles se tomaram cada vez mais rigorosos, sutis e

sujeitos a uma classificação objetiva. É bem verdade que o projeto de

pesquisa enfocava o processo de convencionalização, mas a hipótese original

de Rivers sobre a influência institucional jamais pôde ser testada. O rigor

experimental exigia que as diferenças particulares do interesse emocional que

afetava cada indivíduo fossem estritamente excluídas. A dimensão social da

experiência era afastada dos sujeitos da pesquisa. Broadbent, que registrou a

comunicação de Bartlett no Dictionary of National Biography (1970), observou

que a contribuição especial desse autor à psicologia consistiu em mostrar que

a percepção e a lembrança são controladas por algum processo sensível aos

propósitos e interesses daquele que percebe. Entretanto, todas as ambições

que Bartlett exprimira anteriormente sobre a análise do processo seletivo

foram frustadas. Sua história é repleta de ironias. O entendido em memória

tinha conseguido esquecer seus próprios ensinamentos. Ele, que ensinava

que as intenções guiam a cognição, olvidou suas próprias intenções.

Procurando um sistema cibernético, teve a sorte extraordinária de conhecer o

futuro inventor da cibernética. Sempre estava acontecendo algo que

perturbava sua visão. Aquelas idéias, boas e frágeis, submergiram nas águas

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105

do esquecimento à espera da próxima fase no cicIo das redescobertas.

Se examinarmos sua descoberta esquecida à luz de nossa prescrição

para que um fato seja bem-sucedido, descobriremos que ela já estava

condenada desde o primeiro requisito. Nunca houve e jamais existiu, desde

então, um modo de inserir sua percepção sobre os princípios seletivos

institucionalizados nas fórmulas aceitas da pesquisa psicológica. Os

instrumentos analíticos que Rivers legou a Bartlett tinham a consistência de

uma geléia. Aquelas idéias de Bartlett que foram bem-sucedidas exploravam

um conjunto já existente de instrumentos. Para levar adiante seu trabalho ele

não precisaria modificar profundamente o capítulo que C. S. Myers escreveu

sobre o método estatístico em A Textbook of Experimental Psychology (1911).

A análise da variação, já significativa em outros ramos da psicologia,

demografia, sociologia e economia, estava ali à mão, e tomava-se cada vez

mais sofisticada. Um instrumento bem instituído pode facilmente arruinar a

carreira de uma teoria que não consegue empregá-lo. Um método unificador

bem conectado pode descartar uma idéia que não depende de sua fórmula já

autorizada. Em nível profissional restrito a contribuição de Bartlett foi

completamente positiva. No entanto, a perda de sua percepção inicial sobre o

controle social da cognição foi contraprodutiva para nossa compreensão da

cognição, bem como do tecido social.

Quem sustentaria seriamente que é errado para a sociologia tentar

desenvolver uma abordagem sistemática a fatores sociais que influenciam a

cognição? Os pressupostos que corroboram nossa teorização sociológica se

impõem de maneira um tanto pesada a esse tópico para que ele seja posto de

lado como algo trivial. Parece bastante razoável que as disciplinas aplicadas,

tais como a pesquisa de mercado, reflitam sobre as conexões entre as

atitudes e as pressões sociais. Parece até mesmo razoável que os

economistas deixem as motivações a outros especialistas − mas a quem, a

não ser os sociólogos? Afinal, trata-se do esquecimento socialmente

estruturado. O ônus da prova recai sobre aqueles que sustentam que existe

uma vasta quantidade de trabalho sobre este tema. Se o problema é bem

conhecido, não estão sendo dados passos ativos no sentido de o remediar.

Uma pesquisa de pouco fôlego que liga um fator social a uma espécie de viés

não se qualifica e muito menos uma pesquisa que mostre espaços locais

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106

lacunosos, em se tratando da cognição. É bem verdade que existe muita

investigação sendo feita sem um esquema teórico bem fundamentado. Muitas

pesquisas embarcam nesse mesmo problema, sem identificar um sistema

sociallimitado, do mesmo modo que Merton identificou um sistema de

organização da ciência e, enquanto antropólogo, identificou um grupo social.

A teoria em questão, falida, procuraria conectar de maneira sistemática a

ordem social com os processos cognitivos de seus membros.

Um único termo resume todas as qualidades que possibilitam que uma

especulação se firme e então escape ao esquecimento: o princípio da

coerência. É essencial empregar a mesma metodologia entrelaçada que

mantém unidos outros blocos de atividade científica. Tendo isto assegurado,

muito mais coisas serão acrescentadas; os pesquisadores, em nível

individual, saberão como ratificar suas reivindicações particulares e como

atrair colaboradores para uma ação coletiva; saberão o que pode ser deixado

de lado, com toda segurança, e o que precisa ser lembrado.

O princípio da coerência não se satisfaz com um dispositivo puramente

tecnológico e cognitivo. Ele também tem de basear-se em analogias com a

natureza, já aceitas. Isto significa que ele precisa ser compatível com os

valores políticos predominantes, eles próprios naturalizados. A ciência do

século XIX recebeu grande estímulo para a pesquisa sempre que os cientistas

enxergavam em seu trabalho uma analogia global que se combinava com a

natureza. Inevitavelmente, se parecer que a analogia combina com a

natureza, isto se deve ao fato de que a analogia já está em uso para que se

possam firmar pressupostos políticos dominantes. Não é a natureza que

opera a combinação, mas a sociedade. A teoria de Ernst Haeckel segundo a

qual a árvore da vida (Gould 1981, p. 114) poderia ser lida a partir do

desenvolvimento embrionário de formas mais elevadas levou a uma ampla

experimentação especulativa com a idéia da "recapitulação", aquilo que Gould

denominou uma das idéias mais influentes do final do século XIX (1981).

Gould nota que Freud e Jung eram recapitulacionistas convictos e que

Herbert Spencer emprestou sua autoridade à colocação de que "os traços

intelectuais dos incivilizados [...] são os tratos recorrentes nos filhos dos

civilizados [...] o corpo e a alma das mulheres são fileticamente mais antigos e

mais primitivos [...] enquanto o homem é mais moderno" (Gould 1981, pp. 89-

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107

90). Se Rivers alcançou grande sucesso devido a seu modelo colonial de

controle psíquico, e se Bartlett negligenciou o projeto de identificar as

pressões sociais sobre a cognição do homem moderno, o sucesso obtido por

um deles e o desvio da intenção do outro podem ser explicados pelo poder de

uma metáfora naturalizante e predominante. A metáfora do progresso

evolucionista na natureza era tão apropriada que qualquer pesquisa nela

baseada poderia reivindicar os benefícios de uma coerência geral.

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108

8

AS INSTITUIÇÕES OPERAM CLASSIFICAÇÃO

Quando as instituições operam classificações para nós, parece que

perdemos parte daquela independência que, concebivelmente, poderíamos

ter tido. Enquanto indivíduos, possuímos todos os motivos para nos

contrapormos e resistirmos a esse pensamento. Vivendo juntos, assumimos

uma responsabilidade individual que se estende a todos os membros da

comunidade. Assumimos a responsabilidade por nossos atos e ainda mais

voluntariamente por nossos pensamentos. Nossa interação social consiste em

boa parte em comunicarmos uns aos outros o que estávamos pensando

naquele determinado momento e em censurarmos os pensamentos

equivocados. Com efeito, é assim que construímos as instituições, amoldando

nossas idéias e as dos outros em um formato comum de tal modo que

possamos provar nossa correção simplesmente por meio das cifras que

revelam uma aquiescência independente. A tal ponto esta reivindicação à

independência intelectual é reconhecida como base de nossa vida social, que

a filosofia moral toma uma posição exatamente aí. Por isso é tão repugnante

o conceito de Durkheim, segundo o qual o grupo social age como uma única

mente.

Aqui o julgamento da história encobre um paradoxo. Quanto mais se

demonstra que um pensador influente vem repetindo os lemas favoritos de

sua época, mais severamente ele será denunciado por esse mesmo motivo

pela próxima geração. Sua altissonante grandeza não passava de um simples

eco do que todo mundo estava dizendo. Ele não era um original,

simplesmente copiava. Ele deveria ter-se contraposto à sua época. Não

passava de uma simples flauta, um instrumento passivo no qual o espírito de

seu tempo soprava sua balada. O desprezo é revestido particularmente de um

julgamento moral; não depunha a seu favor o fato de aderir passivamente às

últimas mudanças da opinião sobre a escravidão, a insanidade, a eugenia ou

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109

o império colonial. É a postura de superioridade moral mais fácil de se adotar

porque a crítica das instituições do passado está ajudando as estruturas

institucionais nascentes da época desse autor a estruturar sua própria defesa

contra o passado. Esta é a crítica marxista à razão, que resulta

freqüentemente em relativismo histórico. Cada período é marcado por seu

próprio estilo de pensamento, ajustado às preocupações da classe dominante.

Em cada período, uma determinada história do gênero humano abafa versões

múltiplas e contraditórias. No mesmo espírito crítico, Michel Foucault, em sua

arqueologia do pensamento ocidental, atacou todas as instituições

significativas, demonstrando como elas aprisionavam as mentes e os corpos

em camisas-de-força (1970). Ele demonstrou como o pensamento é

transferido diretamente para as instituições ou vice-versa, e como as

instituições passam por cima do pensamento individual e adaptam a forma do

corpo a suas convenções.

Uma instituição, entretanto, não pode ter propósitos. Já vimos isto nas

críticas do ensaio de Fleck sobre a gênese de um fato. Somente os indivíduos

podem intentar, planejar conscientemente e elaborar estratégias oblíquas.

Para que o insight de Foucault retenha seu vigor é necessário que ele seja

elevado a um novo patamar. No estágio da pertinência, quando a soberania

espúria de um estilo de pensamento do passado é demonstrado, a opinião

crítica perde seus fundamentos, a menos que possa encontrar um modo de

distinguir a influência do atual estilo de pensamento sobre seu próprio

pensamento e ainda justificar seus próprios julgamentos. As instituições

dirigem sistematicamente a memória individual e canalizam nossas

percepções para formas compatíveis com as relações que elas autorizam.

Elas fixam processos que são essencialmente dinâmicos, ocultam a influência

que eles exercem e suscitam emoções relativas a questões padronizadas e

que alcançam um diapasão igualmente padronizado. Acrescente-se a tudo

isso que as instituições revestem-se de correção e agem no sentido de que

sua mútua corroboração flua por todos os níveis de nosso sistema de

informação. Não é de admirar que elas nos recrutem facilmente para que nos

juntemos à sua autocontemplação narcisista. Quaisquer problemas sobre os

quais tentemos refletir são transformados automaticamente nos próprios

problemas organizacionais dessas instituições. As soluções que elas

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110

oferecem provêm unicamente da limitada gama de sua experiência. Se a

instituição é daquelas que dependem da participação, à nossa frenética

interrogação ela responderá: "Mais autoridade!". As instituições têm a patética

megalomania do computador, cuja única visão do mundo é seu próprio

programa. Para nós, a esperança de uma independência intelectual está na

resistência e o primeiro passo necessário na resistência está em descobrir

como o controle institucional é imposto à nossa mente.

A teoria social de Max Weber e a de Durkheim ilustram respectivamente

as vantagens mistas de se deixar as instituições operar suas próprias

classificações (Weber) e as dificuldades de inspecionar como elas o fazem

(Durkheim). Weber exerceu mais influência do que Durkheim. Ele estabeleceu

os termos para que se pudesse pensar sobre o modernismo e o

pósmodernismo. Seu sucesso se deve principalmente ao amplo quadro no

qual sintetizou aquilo que já era o pensamento de sua geração. Ele ofereceu

aos intelectuais de sua época uma visão da história de outras grandes

civilizações em termos das próprias instituições familiares desses mesmos

intelectuais. Durkheim e Weber focalizaram sua investigação na racionalidade

e, especificamente, na relação entre idéias e instituições. Para ambos o

interesse principal era a emergência do individualismo enquanto princípio

filosófico. No caso de Durkheim a tarefa consistia em explicar a indagação

geral do comprometimento com a ordem social, isto é, a questão da

solidariedade, que é a mesma que a ação coletiva. Ele descobriu a resposta

na classificação compartilhada. O trabalho de Durkheim sobre a origem social

da classificação possibilita um método independente de auto-inspeção. Ele

proporciona uma técnica para a análise que poderia constituir-se em uma

prova contra a distorção institucional. Para Weber, a tarefa consistia em

explicar o predomínio de determinadas idéias e ideais em um determinado

estágio de desenvolvimento institucional. Estas observações já mostram que

Durkheim havia situado sua investigação em um nível mais elevado de

abstração. Na época de Weber, as opções intelectuais instituídas eram ou de

um tipo hegeliano de idealismo (difícil e implausível, dado o clima de opinião

existente na sociologia) ou de um tipo marxista de determinismo sociológico.

Ele escolheu um meio caminho entre o idealismo e o determinismo. Tendo em

vista sua monumental contribuição à compreensão da racionalidade e das

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111

formas institucionais, não deixou a seus seguidores um método sistemático

que possibilitasse analisar essa relação com maior sutileza. Na realidade,

legou-Ihes muitíssimos problemas relativos ao que queria dizer realmente

com o espírito do protestantismo ou o espírito da época.

O modelo básico da sociedade em Weber é um equilíbrio entre os

diferentes setores institucionais. Sua principal explicação para a mudança é a

descrição das forças históricas que contribuem para o desequilíbrio. O

pensamento secular divide-se em dois setores, um deles dominado pelas

instituições do mercado e o outro pela burocracia. A racionalidade do mercado

caracteriza-se por um raciocínio prático, individual, em torno dos meios e dos

fins; a racionalidade burocrática é caracterizada pelo pensamento

institucional, isto é, pela abstração e o estabelecimento de uma rotina. A

dicotomia de Weber ainda domina a teoria política e conferiu um viés

inamovível a nossas maneiras habituais de refletir sobre as organizações (ver

Douglas 1986). Em se tratando da sociologia da religião, Weber estabelece

uma distinção entre a vida religiosa e a vida secular. Ele aparta o

comportamento secular do comportamento religioso, situando-o em um

compartimento institucional próprio. A classificação weberiana da religião

sempre segue a classificação tradicional dos papéis religiosos, que faz parte

da diferenciação regular, da vida real, das instituições religiosas. Um

pensador que classifique os fenômenos para que sejam examinados de

acordo com instituições conhecidas e visíveis poupa-se o trabalho de justificar

a classificação. Já é o esquema conceitual normal para aqueles que vivem e

pensam por meio de semelhantes instituições. Entretanto, ao proceder assim,

Weber nos propõe um intricado problema relativo à sociologia da religião.

Como a religião tem sido definida institucionalmente, e a secularização pelo

desengajamento da religião em relação às instituições, a secularização

implica nítida perda para a religião. No entanto, retirar a vida religiosa das

instituições seculares pode acontecer sem perda da fé de cada um. O ganho,

em se tratando da fé particular, e a perda da cerimônia pública não

acontecem necessariamente no mesmo processo, conforme assinalaram

muitos comentaristas. Ao abordar a história religiosa de Israel, China e Índia,

Weber emprega a estrutura institucional da sociedade ocidental. Isto lhe

possibilita recorrer ao nosso atual conceito de nossa experiência histórica em

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112

vez de reportar-se a qualquer teoria causal da mudança. No panorama das

grandes civilizações cada uma delas começa em uma comunidade primitiva

(que continua não sendo examinada). Em seguida, todas elas, em diferentes

períodos, atravessam os mesmos estágios: o estágio feudal, no qual o

equivalente da nobreza se distingue dos equivalentes do campesinato e do

qual um setor comercial emergente acabará por desviar todo o sistema para

uma cena urbana. O início é revestido de sacralidade e pasmo; a urbanização

introduz os mercados, a intelligentsia, a burocracia, o sacerdócio e também os

grupos de párias. As instituições crescerão e convergirão para aquele ponto

que agora vivenciamos e deploramos. A história se conclui com o rasgar dos

véus, a perda do encantamento, o questionamento e o fim da legitimidade. A

inverossímil narrativa proposta por um pensamento institucional como este é

que a legitimidade sempre existiu sem ser questionada, onde quer que fosse.

Que outrora tenha havido um período de legitimidade inquestionável é uma

idéia que nossas instituições usam para estigmatizar os elementos

subversivos. Por meio desse esperto recurso passa a idéia de que a

incoerência e a dúvida é algo que acaba de chegar, juntamente com os

bondes e a luz elétrica; são intrusos nada naturais naquela confiança primeva

na pequenina comunidade idílica, porém é mais plausível que a história da

humanidade esteja repleta, desde o início, de pregos cravados nos caixões

locais da autoridade.

O pesar de Weber pela passagem da infância da humanidade é adoçado

pela exaltação. O movimento moderno em direção à liberdade intelectual

significa o desafio colocado por um mundo adulto, livre de sacerdócios, magia

e outras tiranias. Os novos medos, por mais aterrorizantes que possam ser,

são medos reais e não falsas superstições; eles acarretam responsabilidades

e privilégios reais e não ilusões. A alvorada dourada de Weber é uma

contrapartida ao mitológico livro de Frazer, O Ramo Dourado, e ao modelo

colonial da psique elaborado por River (1920). Se eles falavam em coro é

porque as mesmas instituições estavam operando seus pensamentos.

Na introdução à Ética Protestante (1905), Weber afirmou que havia lido o

mais que pudera para apresentar sua argumentação com o máximo de

clareza, mas desculpou-se por haver negligenciado a etnografia. No contexto

parece, com toda certeza, uma omissão bem menor. Como é que aquelas

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113

pequeninas tribos exóticas, que tanto intrigaram Durkheim e Mauss, poderiam

apresentar qualquer relevância para seu tema? Aqui, mais uma vez, ele está

fazendo eco para aquilo que seus leitores sentem ser a verdade. Ele (e eles)

acreditam realmente que uma profunda divisão separa a experiência que

temos da sociedade daqueles povos que existem unicamente nos registros

dos exploradores, missionários e antropólogos. O mesmo acreditaram os

sociólogos desde então.

A crença é criada por uns dois rápidos acenos de mão. No primeiro

aceno Weber nos ensinou a encarar a sociedade em termos dos setores

institucionais que conhecemos; tais setores são povoados por sacerdotes,

juízes, intelectuais, elites, proprietários de terra, arrendatários e proscritos.

Nesse cenário os problemas da racionalidade são colocados como problemas

que apenas surgem com o crescimento e conflito dessas instituições. Assim,

aqueles povos cuja sociedade não diferencia claramente os juízes, os

sacerdotes, os proprietários de terras e outros setores não podem ser

relevantes para a história moderna. A Índia, a China e Israel são relevantes

porque sua história pode ser apresentada em termos de equilíbrio ou

desequilíbrio entre esses setores institucionais. Os aborígenes australianos e

os esquimós apenas escorregam entre as malhas da rede da investigação.

Passemos ao segundo aceno. O arcabouço hegeliano do modelo de

Weber pressupõe que a história das instituições do mundo registra a

constante evolução da autoconsciência. Benjamin Nelson (1981) apresenta

um sério e claro relato sobre os pressupostos weberianos da consciência

humana em desenvolvimento. Enquanto nosso interesse girar em torno do

interesse final, então haverá pouco a se ganhar do exame das fases iniciais

do movimento. Aqui oculta-se outra idéia convincente, isto é, o esnobismo do

mundo da escrita. Os povos que não registraram por escrito suas meditações

filosóficas não podem possuir princípios articulados que Ihes possibilitem

refletir sobre a ordem social.

Na qualidade de contemporâneo, Durkheim caiu em todas essas

armadilhas institucionais. Ele partiu da mesma distinção básica entre

primitivos e modernos, e também as encarou pelo emprego que elas fazem de

diferentes procedimentos mentais. Seria uma tolice sugerir que ele,

igualmente com sentimentos confusos, também não subscrevesse a idéia de

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114

uma alvorada dourada da humanidade. Para ele, a graça salvacionista não

estava no interesse pela reconstrução das várias fases da evolução que se

desenrolaram do início até agora. Assim, sua teoria não é tão sobrecarregada

de pressupostos institucionalmente estabelecidos. Seu modelo evolucionista

apresenta apenas dois estágios: o estágio primitivo da solidariedade

mecânica, baseada em classificações compartilhadas, e o estágio moderno

de solidariedade orgânica, baseado na especialização econômica e na troca.

Se retirarmos as escoras evolucionistas da teoria de Weber, não sobra nada,

com exceção das séries hierárquicas de instituições. Se as retirarmos da

teoria de Durkehim, sobram-nos duas formas de comprometimento social,

uma delas cIassificatória e a outra econômica. Até mesmo Durkheim não

acreditava que a solidariedade classificatória estava associada unicamente a

estágios subdesenvolvidos da divisão do trabalho, pois dispensava muita

atenção às idéias estandartizadas do que é certo e do que é errado na

sociedade moderna.

Ler isoladamente As Formas Elementares da Vida Religiosa do restante

da obra de Durkheim é garantir sua compreensão equivocada, já que o

pensamento deste autor era um arco simples, no qual cada publicação

relevante era um pronunciamento necessário. Ele batia sempre na mesma

tecla, isto é, a perda da solidariedade classificatória. Deplorava a

impossibilidade de a substituir e as crises da identidade individual que

decorrem da ausência de classificações vigorosas que prestem apoio

publicamente compartilhadas e particularmente internalizadas. Durkheim

ensinou que as idéias publicamente padronizadas (representações coletivas)

constituem a ordem social. Reconhecia que o domínio que elas exercem

sobre o indivíduo varia quanto à força. Denominando-a densidade moral, ele

tentou medi-Ia e avaliar os efeitos de suas fraquezas. De acordo com

Durkheim, o método sociológico requer que as reações individuais sejam

tratadas como fatos psicológicos a ser estudados em um quadro de referência

da psicologia individual. Somente as representações coletivas constituem

fatos sociais e estes contam mais do que os fatos psicológicos porque a

psique individual é constituída por classificações socialmente construídas.

Como a mente já é colonizada, deveríamos pelo menos tentar examinar o

processo colonizador.

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115

Quando Durkheim escreveu com Marcel Mauss o ensaio sobre a

classificação primitiva (1903), aquilo que já era uma convicção a longo prazo

(isto é, o ato de que a solidariedade se baseia em classificações

compartilhadas) começou a tomar-se um método. É verdade que Weber

relacionou estilos diferenciados de raciocínio com tipos diferenciados de

instituições e, portanto, é verdade que este é também seu programa. No

entanto, seus avisos de que o sagrado havia sido afugentado e que agora os

indivíduos permanecem em um território sem legitimação, bem como seu

tributo ao espírito da época, exerceram um efeito soporífico. A pesada tarefa

de classificar tipos de sistemas de classificação e as atitudes morais a eles

associadas mal foi encetada. Enquanto todos os demais adotavam posturas

institucionalmente prescritas sobre a modernidade, a perda da legitimidade, o

maravilhamento e a sacralidade, Durkheim e Mauss propunham analisar até

que ponto as classificações mundanas que empregamos são projeções da

estrutura social que participam da aura da sacralidade. O sagrado de que os

weberianos sentiam falta era uma mística impossível de se analisar. O

sagrado, para Durkheim e Mauss, eram classificações mais misteriosas e

ocultas do que compartilhadas, profundamente acalentadas e violentamente

defendidas. Isto não é tudo: esse conceito do sagrado é passível de análise.

Ao escrever sobre o sagrado Durkheim tentava averiguar como as

instituições operam a classificação. Não era seu pensamento que o poder

sagrado cintila como uma propriedade inerente às constituições e aos reis,

mas exatemente o contrário. Os povos que escolheu para representar as

formas sociais elementares não possuem constituições, reis ou qualquer

autoridade coercitiva superordenada. Para os australianos, o sagrado só pode

retirar seu poder de seu próprio consenso. Sua força coercitiva, que arma o

universo inteiro com tabus punitivos com o objetivo de reforçar o

comprometimento oscilante do indivíduo, baseia-se em classificações

existentes na cabeça desse mesmo indivíduo. Baseia-se essencialmente em

classificações que dizem respeito à divisão do trabalho. Assim, a teoria do

sagrado em Durkheim não diz respeito apenas a civilizações que

desaparecem mas também se refere aos modernos, já que nós temos uma

sociedade baseada na divisão do trabalho. O livro sobre o suicídio (1897) e o

desenvolvimento do conceito de anomia constituem a melhor demonstração

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116

de que Durkheim esperava que aprendessemos sobre nós mesmos a partir

das sociedades etnográficas.

O programa de pesquisa de Durkheim inicia-se com a possibilidade de

que existe uma boa ou má adequação entre as classificações públicas e

privadas. Se a adequação é má, isto pode ocorrer por dois diferentes motivos:

o indivíduo pode rejeitar as classificações públicas e recusar a permitir que

elas exerçam qualquer domínio sobre seus próprios julgamentos ou pode

aceitar o mérito das classificações públicas, mas sabe ser incapaz de dar

conta dos padrões esperados. Finalmente as classificações públicas podem

ser relativamente coerentes ou estar em estado de incoerência. De acordo

com Durkheim, essas relações entre o estado de espírito do indivíduo e as

expectativas padronizadas de sua sociedade têm sido muito consideradas

pelos sociólogos como fontes de anomia, dando lugar a um comportamento

desviante. Com efeito, o conceito de anomia possui abundante literatura. No

entanto, o desvio geralmente não tem sido identificado pelo exame

sistemático das normas, mas pelos sinais de rejeição por parte da sociedade

principal. O desvio que resulta em mudança não é contado como anomia. Os

sociólogos têm demonstrado tendência para assimilar a complexa

argumentação do livro de Durkheim sobre o suicídio, bem como As Regras do

Método Sociológico para uma distinção, entre os de dentro e os de fora. O

programa de pesquisa é relativamente simples: observar os membros de um

grupo reclassificando seus membros desviantes, dando-Ihes o status de quem

está de fora. Em Classificação Primitiva os co-autores sugerem um programa

muito diferente. Aquilo que constitui o desvio não pode ser auferido enquanto

as dimensões da conformidade não forem delineadas. Para avaliar graus de

conformidade entre nós mesmos precisamos fazer a mesma contagem

meticulosa de categorias, verificando como o mundo físico transforma-se em

uma projeção do mundo social. Para nós é o mesmo que ocorre com os

esquimós e australianos. Precisamos usar o mesmo método de construir o

norte e o sul, a esquerda e a direita, todos eles repletos de padrões de

dominação, congregação e dispersão, não apenas para nós como também

para os chineses e os índios zuni.

É de se reconhecer que Durkheim jamais articulou semelhante programa

a moderna sociedade industrial. O estilo de pensamento de sua época

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117

comemorava com tamanha ênfase a evolução social que ele só enxergava em

tomo de si a marca da modernização com o inevitável acompanhamento de

uma incoerência cada vez maior. Aceitava aquela idéia popular segundo a

qual o homem moderno escapou do controle das instituições, compartilhada

pela maioria de seus contemporâneos. Um discípulo que queira defender a

tese principal de Durkheim, ainda que hesitando em aplicá-Ia aos modernos,

pelo menos dispõe do método deste autor como um instrumento para a

descoberta de nossas próprias representações coletivas. O grande triunfo do

pensamento institucional é tomar as instituições completamente invisíveis.

Quando os grandes pensadores de uma determinada época concordam que

os dias atuais não se assemelham a nenhum outro período e que um grande

abismo nos separa de nosso passado, temos um primeiro vislumbre de uma

classificação compartilhada. Como todas as relações sociais podem ser

analisadas como transações de mercado, a penetração deste mesmo

mercado alimenta em nós, com grande sucesso, a convicção de que

escapamos dos antigos controles institucionais, que não se referiam ao

mercado, e conquistamos uma liberdade nova e perigosa. Quando também

acreditamos que somos a primeira geração que não é controlada pela idéia do

sagrado e a primeira na qual seus componentes se vêem cara a cara uns com

os outros enquanto indivíduos reais e que, em conseqüência, somos os

primeiros a alcançar uma ampla autoconsciência, então existe,

incontestavelmente, uma representação coletiva. Ao reconhecer este fato,

Durkheim teria de admitir que a solidariedade primitiva, baseada numa

classificação compartilhada, não se perdeu completamente.

Para analisarmos nossas próprias representações coletivas deveríamos

relacionar aquilo que é compartilhado em nosso equipamento mental com

nossa experiência comum em relação à autoridade e ao trabalho. Para saber

como nos contrapormos às pressões classificatórias de nossas instituições,

gostaríamos de iniciar um exercício classificatório independente. Infelizmente

todas as classificações de que dispomos para pensar são pouco originais,

juntamente com nossa vida social. Para pensarmos sobre a sociedade temos

à mão as categorias que empregamos como membros da sociedade, que

dialogam uns com os outros sobre nós mesmos. Essas categorias de ator

funcionam em todos os níveis possíveis. No topo se situariam as regras

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118

sociais mais gerais e, na base, as mais particulares. Quando tentamos

designar itens a esse nível básico de classificações sociais gerais, mínimas,

poderemos surpreender-nos pensando em situações domésticas e

enumerando os papéis das crianças, dos adultos, dos homens e das

mulheres. Partindo desse ponto, reproduziremos automaticamente o esquema

de autoridade e a divisão do trabalho no lar, mas será muito diferente se um

indiano ou um americano estiver pensando, conforme observou com muita

sagacidade Ravindra Khare, antropólogo indiano que ensina nos Estados

Unidos (Khare 1985, p. 43). Poderemos também começar abordando os

papéis desempenhados por aqueles menos envolvidos na organização social,

os vagabundos, por exemplo, e nos deslocarmos da periferia para os centros

de influência. Poderemos ainda começar pelos bebês e subirmos na estrutura

etária. Em cada caso adotaremos as categorias usadas pelos nossos

administradores para recolher impostos, operar recenseamentos da

população e avaliar a necessidade de escolas ou prisões. Nossas mentes já

estarão percorrendo as velhas trilhas. Como é possível pensarmos sobre nós

mesmos na sociedade a não ser usando as classificações estabeleci das em

nossas instituições? Se nos voltarmos para os vários cientistas sociais

verificaremos que suas mentes estão ainda mais profundamente cativas.

Seus objetos de estudo se inserem em categorias administrativas, nas quais a

arte está separada da ciência, o afeto da cognição, a imaginação do

raciocínio. Tendo em vista fins de controle jurídico e administrativo,

encontramos pessoas rotuladas de acordo com níveis de capacidade e

verificamos que o pensamento está classificado como racional, insano,

criminoso e criminosamente insano. A tarefa de classificação, que já é

realizada por nós, é executada como um serviço para profissões instituídas.

Ao mesmo tempo em que as instituições produzem rótulos, existe um

feedback que se refere ao conceito de auto-realização, enunciado por Robert

Merton. Os rótulos estabilizam o fluxo da vida social e até mesmo criam, até

certo ponto, as realidades a que eles se aplicam. Ian Hacking abordou a

relação entre o rótulo e a realidade a partir de pistas sugeri das pelo estudo

de Michel Foucault sobre a "constituição dos sujeitos". A este processo

Hacking denomina "a construção da pessoa", ao rotulá-Ias e ao assegurar, de

várias maneiras, que elas se conformarão aos rótulos (1985). Trabalhando

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119

com as estatísticas do século que focalizavam o desvio e o controle dos

desviantes, ele sugere que a construção das pessoas é de origem recente. O

antropólogo inclina-se imediatamente a contestar. As pessoas sempre

rotularam umas às outras, com as mesmas conseqüências − os rótulos

pegam. Hacking, porém, deve estar com razão ao acrescentar que "a mera

proliferação de rótulos durante o século XIX pode ter engendrado, de modo

vasto, mais tipos de pessoas do que o mundo até então conhecera." Uma

verdadeira avalanche de cifras começou a surgir nas agências

governamentais que se dedicavam à estatística na Europa por volta de 1820.

O exercício da contagem, uma vez iniciado, gerou milhares de subdivisões.

Com a mesma velocidade com que novas categorias médicas, que até então

não haviam sido imaginadas, ou novas categorias criminais, sexuais ou

morais foram inventadas, novos tipos de pessoas apresentaram-se em hordas

para aceitarem os rótulos e viverem de acordo com eles. A receptividade a

novos rótulos sugere uma extraordinária presteza a se encaixar em novos

nichos e a deixar que o conceito do eu seja redefinido. Não é como a

nominação que, de acordo com os filósofos nominalistas, cria uma versão

particular do mundo, ao distinguir certo tipo de coisas, por exemplo, dar nome

às estrelas, colocando algumas em primeiro plano e deixando outras

desaparecer de vista. Trata-se de um processo muito mais dinâmico, pelo

qual nomes são enunciados e, sem demora, emergem novas criaturas que a

eles correspondem.

A colocação de Hacking é que as pessoas não recebem simplesmente

um novo rótulo e voltam a adquirir proeminência, mas ainda se comportando

como se comportariam caso levassem esse rótulo ou não. As novas pessoas

se comportam de maneira diferente de seu comportamento no passado.

Elaborando a diferença entre as pessoas e as coisas, diremos que aquilo que os camelos, as montanhas e os micróbios estão fazendo não depende de nossas palavras. O que acontece com os bacilos da tuberculose depende se os matamos com a vacina BCG, mas não depende da maneira como os descrevemos [...] é a vacina que mata, não nossas palavras. A ação humana é mais estreitamente ligada à disciplina humana do que a ação bacteriana (Hacking 1985. p. 13).

Hacking está estabelecendo uma distinção entre o efeito da descrição

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120

sobre os objetos inanimados e o efeito dos nomes sobre os seres humanos. A

aplicação de injeções pode matar os micróbios: "as possibilidades para os

micróbios são delimitadas pela natureza, não pelas palavras." O contraste,

porém, não é tão claro, pois não são as palavras que fazem as coisas para as

pessoas. O rótulo não é motivo para que elas modifiquem sua postura e

recomponham seus corpos. A aplicação de injeções tóxicas também poderia

matar as pessoas e os micróbios não são menos receptivos às palavras do

que os seres humanos. Tendo em vista uma comparação justa, o processo de

rotulação, em ambos os casos, faz parte de uma ação coatora mais ampla e

as plantas, os animais e os micróbios reagem ainda mais veementemente do

que os seres humanos. É bem verdade que o bacilo pode morrer, mas, em

um período muito curto, surgem novas cepas, não para se conformarem com

os rótulos, mas para os desafiarem. Surgem milhões de novos bacilos, jamais

imaginados, mas imunes aos ataques desfechados contra eles e que

recorrem a antigos rótulos. Do mesmo modo que os pervertidos sexuais, os

histéricos ou os maníaco-depressivos, os seres vivos que interagem com os

seres humanos transformam-se para se adaptar ao novo sistema

representado pelos rótulos. A diferença real pode ser que a vida fora da

sociedade humana transforma-se, afastada dos rótulos, em atitude de

autodefesa, enquanto a vida na sociedade humana transforma-se,

aproximando-se dos rótulos, na esperança de obter alívio ou vantagens.

O mérito especial de se chamar a atenção para a receptividade aos

nomes consiste em convidar os filósofos a modificar seu enfoque. Em vez de

se concentrar na nominação como um modo de indicar determinados itens,

sistemas completos de conhecimento são esclarecidos, mediante a

abordagem de Foucault. A relação entre as pessoas e as coisas que elas

nomeiam jamais é estática. Conforme diz Nelson Goodman, a relação ocorre

no interior de um sistema que evolui (1978). A nominação é apenas um

conjunto de inputs; ela se situa na superfície do processo de classificação. A

interação que Hacking descreve dá voltas e vai das pessoas que fazem as

instituições para as instituições que operam as classificações, para as

classificações que acarretam ações, para as ações que buscam nomes e para

as pessoas e outras criaturas vivas que reagem à nominação de modo

positivo ou negativo.

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121

Tendo aceitado que as pessoas classificam, também podemos

reconhecer que sua classificação pessoal possui algum grau de autonomia.

As comunidades classificam de maneira diferente. Conforme já vimos, as

instituições sobrevivem atrelando todo o processo de informação à tarefa de

se afirmarem. A comunidade instituída bloqueia a curiosidade pessoal,

organiza a memória pública e impõe heroicamente a certeza ou a incerteza.

Ao delimitar suas próprias fronteiras, ela afeta todos os níveis inferiores de

pensamento de tal modo que as pessoas se dão conta de suas próprias

identidades e classificam umas às outras por meio da afiliação à comunidade.

Como ela usa a divisão do trabalho como fonte de metáforas no intuito de

afirmar-se, o autoconhecimento e o conhecimento que a comunidade tem do

mundo deve passar por mudanças quando a organização do trabalho muda.

Quando ela alcança um novo nível de atividade econômica, novas formas de

classificação devem ser conceituadas, mas as pessoas não controlam

individualmente a classificação. Trata-se de um processo cognitivo que as

envolve da mesma maneira com que elas são envolvidas com as estratégias

e resultados finais do cenário econômico na constituição da linguagem. As

pessoas, individualmente, fazem escolhas no interior das classificações. Algo

mais governa suas escolhas, isto é, alguma necessidade de uma

comunicação mais fácil, um impulso para um novo enfoque, tendo em vista a

precisão. A mudança será uma réplica à visão de um novo tipo de

comunidade.

Por exemplo, por que motivo os vinhos tiveram seus rótulos subitamente

modificados? Os fregueses do Chesse Cellar, em Evanston, selecionam

agora seus vinhos de acordo com os nomes das variedades de uva. Será esta

uma escolha autêntica? Será que algum restaurateur tomou a decisão de não

mais oferecer os vinhos de Bordeaux, Bourgogne, Loire ou Reno, St. Emilion

ou Sauterne? O que significa para a teoria da classificação que os fregueses

agora estejam solicitando o Zinfandel, o Gamay e o Sauvignon, embora o

vinho possa proceder de Bordeaux?

A mesma moda deu novo nome aos tecidos. Eles costumavam ser

classificados pelos nomes dos lugares de sua proveniência: o xantungue e o

crepe da China vinham da China, o paisley, de Paisley, a popelina, de

Avignon, a cambraia, de Cambrai, a Iila, de Lille, o cashmere, da Caxemira, a

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122

seda de Macclesfield, de Macclesfield. Agora eles são rotulados como

algodão puro, seda pura, lã pura, náilon, poliéster ou rayon. Os sinestes de

ouro e de prata baseiam-se em seu lugar de origem, mas hoje o simples peso

muitas vezes nos diz mais. Os livros de zoologia destinados às crianças ainda

classificam as aves e os animais por regiões, as enciclopédias de mitologia

apresentam os mitos como provenientes de Grécia, Roma, da orla celta ou da

Índia. A estatística global, um sofisticado exercício interpretativo, ainda em

sua infância, recorre à abordagem do atlas mundial. Na Bíblia os rótulos

judeu, nazareno ou samaritano diziam muito sobre a pessoa. Agora, porém,

as classificações baseadas na constituição genética e status educacional,

psiquiátrico ou ocupacional fazem uma diferença. Lawrence Rosen expressou

claramente o contraste no conceito da pessoa como uma identidade

negociada no âmbito de uma comunidade. No Marrocos, a identidade social

começa com a idéia do lugar, não simplesmente o lugar de origem, mas

também a soma total das negociações e redes espacialmente delimitadas que

uma pessoa estabeleceu.

Uma parte muito considerável do caráter de um indivíduo é constituída pelo meio social do qual ele retira sua formação. Para os marroquinos, as regiões geográficas são espaços habitados, domínios nos quais as comunidades se organizam para ganhar a vida e forjar um grau de segurança [...] seu principal enfoque está na identidade das pessoas in situ porque o próprio lugar é um contexto social através do qual o indivíduo acostuma-se aos meios de criar um espaço vivido. Estar ligado a um lugar significa, portanto, não só ter um ponto de origem, mas também possuir aquelas raízes sociais, aquelas realizações humanas que são distintivas para o tipo de pessoa que alguém é (1984, p. 23).

Em outra passagem, Rosen contrasta esta visão da pessoa como alguém

que tem raízes em um grupo e em um lugar com uma visão moderna.

Assim, quando um americano pode, antes de mais nada, querer situar um outro, perguntando o que ele faz (isto é. a que ocupação se dedica) porque tal informação transmite todo um conjunto de implicações para as atitudes econômicas, sociais e políticas, no Marrocos a principal indagação é "onde estão suas origens?", pois é essa informação que, inicialmente, transmite um grau de previsibilidade sobre os tipos de laços possíveis de se estabelecer com esse homem.

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123

Alguma coisa acontece dentro de nossas cabeças quando um diferente

tipo de organização tornou obsoletas as antigas classificações segundo os

lugares. A mudança não é uma escolha proposital ou consciente. As

instituições ocultam sua influência de tal maneira que mal notamos qualquer

mudança.

Uma dessas modificações do pensamento se acha registrada na

trajetória do Dictionnaire Universal du Commerce, de Savary des Bruslon.

Savary era um funcionário da real alfândega, no reinado de Luís XIV. Seu

dicionário do comércio foi a primeira tentativa de sistematizar o conhecimento

acumulado pelos mercadores, produtores, funcionários do governo e

consumidores. A partir dela, William Reddy tenta compilar "a paisagem mental

do comércio têxtil no início do século XVllI" (Reddy 1986). "Editado pela

primeira vez entre 1723 e 1730 e reeditado, pirateado e traduzido pelo menos

mais seis vezes, entre 1741 e 1784," obteve um sucesso inicial extraordinário,

mas, por volta de 1784, a nova edição era pouco mais do que uma

inconsistente colcha de retalhos, tantas haviam sido as revisões. Tantas

coisas aconteceram em 43 anos que se necessitava de um dicionário

completamente novo, organizado de acordo com um novo esquema racional,

correspondente às mudanças ocorridas no comércio e na manufatura. No

entanto, às vésperas da revolução, uma tal mudança era impensável.

Para escrever esses documentos cIassificat6rios como guias e

dicionários, as instituições que estão a postos operam elas mesmas as

classificações. Para descrever os meandros do comércio têxtil no século

XVIII, Savary necessitou toda a perícia de um entendido. Toda pessoa que se

dedicava ao comércio exercia um conhecimento complexo, focalizado na

comunidade, baseado nos nomes dos lugares, das guildas e dos selos graças

aos quais seus produtos podiam ser reconhecidos e ter sua qualidade

garantida.

Após a revolução fracassaram várias tentativas no sentido de editar e

atualizar um dicionário até 1837, quando Guillaumin Publishers lançou um

novo dicionário, escrito por uma grande equipe de professores, comerciantes

e banqueiros. Após 50 anos de experiência com o livre comércio, a

regulamentação já não se apresenta mais como um problema: "nada se

interpõe entre o produtor e o comprador; o próprio processo de produção é,

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124

portanto, a única possível fonte de distinções para determinar o que é um

tecido". A essa altura as guildas já não existiam mais. Os resultados que elas

garantiam e que constituíam a principal preocupação de Savary foram

substituídos no dicionário por processos, materiais e custos, organizados

alfabeticamente. Novas categorias foram designadas e páginas e mais

páginas são dedicadas às matérias-primas, às plantas, a seus lugares de

origem e à fibra (suas propriedades químicas e mecânicas e o estágio de sua

transformação em fio). Algumas categorias de tecido foram ampliadas; há

menos a se dizer a respeito de variedades específicas de tecido. A produção

constitui a principal preocupação. Reddy descreve o dicionário de 1837 como

uma imensa tarefa de reelaboração do pensamento. O próprio conceito de

mercadoria havia mudado e cada mercadoria específica usada na Europa

tinha de ser concebida novamente. À medida em que Reddy analisa as

diferentes categorias nos dois dicionários, ele põe a nu um determinado tipo

de mudança na economia. A fabricação do tecido há muito foi desligada das

instituições do antigo regime. Já não corresponde mais ao gosto, no trajar, de

uma sociedade estratificada, nem às regulamentações e privilégios de um

corpo de tecelões e comerciantes urbanos, nem aos hábitos de produtores

camponeses que trabalham no interior, nem aos métodos operacionais do

governo em Versalhes. As instituições da indústria têxtil alcançaram um nível

de organização tal que um dicionário pode organizar uma lista de seus

processos e materiais independentemente daqueles pertencentes ao setor

manufatureiro de uma economia de mercado.

E o que dizer do comércio de vinhos franceses? Foi a indústria de vinhos

da Califórnia, seguindo semelhantes processos de industrialização, que forçou

de tal modo a mudança da nomenclatura que a abordagem da classificação

do vinho, em forma de atlas, que funcionou bem na Europa, já não é mais

apropriada. Os dois diagramas a seguir mostram a diferença. Seis dos mais

renomados produtores de Bordeaux e seis dos mais ambiciosos produtores

de vinhos do Vale de Napa, na Califórnia, foram escolhidos para se comparar

um com o outro, não apenas quanto à qualidade de seus vinhos mas também

no que se refere à escala. Do lado francês, a escala da produção vai de 3750

a 30000 caixas por ano. Alguns estabelecimentos vinícolas da Califórnia

produzem acima de 1.000.000 caixas anualmente, mas não é difícil

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125

emparelhar-se com a escala francesa de produção. Isso demonstra que a

escala não constitui uma diferença decisiva na mudança a ser descrita.

A produção californiana é altamente diferenciada. Cada estabelecimento

vinícola produz uma grande variedade de vinhos, cada um de uma diferente

uva, enquanto os produtores franceses tendem a especializar-se em um ou

dois vinhos e em uma mistura de uvas.

Na classificação francesa o fator geográfico é proeminente. Pode-se

começar afirmando que Bordeaux é uma região da França; no território de

Bordeaux existem regiões menores (Médoc, St. Emilion, Graves, Côtes); os

círculos concêntricos focalizam os chateaux. Surge então um princípio de

qualidade. Médoc tem uma classificação baseada no preço médio alcançado

pelo vinho ao longo dos cem anos anteriores a 1855. É fora de dúvida que

essa classificação identificava a terra mais apropriada aos vinhedos. A

classificação de acordo com a qualidade reconhece a primeira, a segunda, a

terceira e a quarta safra e, na base da escala, está um Cru Bourgeois. Abaixo

desse nível situam-se safras sem classificação. Seguindo esse critério de

qualidade, o chateau é considerado não tanto uma propriedade rural quanto

uma certa marca, de cuja reputação o proprietário é extremamente zeloso.

Como os proprietários do Médoc herdaram sua posição hierárquica da

classificação de qualidade efetuada em 1855, eles estão sujeitos a padrões

auto-impostos. Em St. Emilion, a qualidade é verificada por um comitê; alguns

dos chateaux mais famosos, os Premiers Grands Crus, têm de renovar seu

direito a um posto mais elevado na classificação a cada dez anos. Outros, os

Grands Crus, têm de submeter cada safra aos provadores de vinho. Nos dois

casos, a grande preocupação em se manter a qualidade e em se manter um

nome assemelha-se à preocupação, nesse mesmo sentido, das guildas de

tecidos. E, a exemplo das guildas, cada chateau fabrica seu próprio produto.

Dar o nome ao vinho, segundo a região e o chateau, significa condensar uma

informação que só pode ser desvendada por quem é conhecedor do assunto.

O nome traz em si um processo que já foi experimentado, uma mistura

tradicional de uvas, um solo, o declive de um vale e um clima. Ele desafia

qualquer outra racionalização. E, a exemplo das guildas de tecidos, é uma

instituição monopolística que protege o produtor. Ela pertence a um sistema

de controle alfandegário e tributário. Na Califórnia, o chateau e os nomes

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126

regionais não poderiam ser ligados aos vinhos sem violar um direito de

propriedade.

Foi esse um dos motivos pelos quais os vinhos da Califórnia só poderiam

denominar-se do tipo Bordeaux ou Bourgogne. Eles, porém, não se viram

tentados a estabelecer um vinho do tipo Vale de Napa. Com toda certeza

teriam tido condição de agir assim, se o vinho californiano tivesse sido

desenvolvido em um período anterior, antes da comercialização em larga

escala, abrangendo todo um continente, fizesse parte de seus objetivos.

Quem poderá afirmar se, a exemplo dos vinhos Bordeaux, seu produto teria

sido capaz de firmar uma identidade em tomo do Napa, inconfundível,

padronizada e, ainda assim, variada? Em vez disso eles escolheram, ou

foram levados a percorrer, a trilha da diversificação. Sua classificação baseia-

se no tipo de uva. Em nosso diagrama, dois estabelecimentos vinícolas usam,

cada um, três tipos de uva para três tipos de vinho. Um deles usa doze. A

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127

amplitude da variedade dos tipos na indústria vinícola da Califórnia muito nos

diz a respeito da especialização de um estabelecimento vinícola.

Se acompanhássemos os métodos de vinicultura ou o tratamento do vinho

nos vários estágios ou as técnicas de engarrafamento e arrolhamento, a

mesma exibição de processos experimentais e a produção de tipos

especializados de vinhos seria colocada a nosso alcance. Surgiu aquilo que

Weber denominou um tipo de racionalidade pragmática, que envolve meios e

fins, orientada para o mercado. Cada estabelecimento vinícola está

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128

procurando um espectro diversificado de vinhos especializados, em um

mercado altamente diversificado. The World Atlas of Wines (Johnson 1981),

que usa tão bem a questão do lugar para explicar os vinhos franceses, é tão

irrelevante para o cenário californiano quanto o dicionário de comércio de

Savary o era para descrever os têxteis franceses na estrutura pós-

revolucionário do século XIX, e pelos mesmos motivos. Os processos

industriais em larga escala são suas próprias instituições. Eles não podem ser

encaixados nos padrões de um controle local, da comunidade.

É assim que os nomes se modificam e é assim que as pessoas e as

coisas são remodeladas para se adequarem a novas categorias. Inicialmente

as pessoas são tentadas a sair de seus nichos devido às novas possibilidades

de se exercer ou evitar o controle. Em seguida elas elaboram novos tipos de

instituições, as instituições elaboram novos rótulos e os rótulos elaboram

novos tipos de pessoas. O próximo passo na compreensão de como

entendemos a nós mesmos consistiria em classificar tipos de instituições e

tipos de classificações que elas usam de maneira muito própria. É provável

que haja um tipo de processo classificatório distinto, que pertence a

instituições religiosas, além de outros tipos distintos, que se prendem a

instituições médicas, pedagógicas, militares e a outras instituições. Os

dicionários da indústria têxtil francesa mostram que as classificações que

emanam das instituições administrativas possuem uma base territorial,

enquanto aqueles que emanam das instituições manufatureiras focalizam a

produção. O que as classificações podem ou não fazer e a que objetivo elas

atendem é algo diferente, em cada caso que se apresenta. Uma classificação

de estilos classificatórios seria um primeiro passo positivo para se pensar

sistematicamente sobre os distintos estilos de raciocínio. Seria também um

desafio à soberania de nosso próprio estilo de pensamento institucionalizado.

A comparação das classificações como um índice de outras coisas que estão

acontecendo em nossa sociedade propicia uma pequena e provisória rota de

fuga do círculo de auto-referência. Podemos observar nossas próprias

classificações da mesma forma que podemos observar nossa própria pele e

nosso sangue em um microscópio. Podemos reconhecer as regularidades que

surgem em conjuntos inteiros de operações classificatórias do mesmo modo

que os gramáticos podem estudar as regularidades nas mudanças da sintaxe

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129

e da fonética. Não existe nada autocontraditório ou absurdo em lançar um

olhar sistemático nas classificações que nós mesmos operamos. As

dificuldades lógicas começam quando tentamos desenvolver idéias, livres de

valor, sobre a boa sociedade. Tais dificuldades, porém, precisam ser

enfrentadas se não quisermos deixar nossas buscas mergulhadas em um

caldo de relativismo filosófico. Não é de modo algum objetivo deste livro

postular que devido ao fato de as instituições elaborarem uma parte tão

grande de nosso pensamento, não possa haver comparações entre diferentes

versões do mundo, e muito menos se pretende ensinar que todas as versões

são igualmente certas ou erradas.

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130

9

AS INSTITUIÇÕES TOMAM DECISÕES DE VIDA E MORTE

Uma idéia reconfortante, porém falsa, sobre o pensamento institucional

adquiriu recentemente certa aceitação. Trata-se do conceito de que as

instituições apenas realizam o pensamento rotineiro, de baixo nível, do dia a

dia. Andrew Schotter, que descreveu tão bem as instituições como máquinas

para pensar, acredita que as decisões de menor importância são

encaminhadas para um processamento institucional, enquanto a mente do

indivíduo fica livre para ponderar questões importantes e difíceis (Schotter

1981, p. 149). Não há motivos para se acreditar em tão benevolente isenção.

É mais provável que prevaleça o contrário. O indivíduo tende a deixar as

decisões importantes para suas instituições, enquanto se ocupa com as

táticas e os detalhes. Para demonstrar este fato é melhor reformular a

questão inicial.

Insistimos acima que é altamente improvável que as instituições

poderiam emergir, sem empecilhos, de uma uma situação momentânea de

interesses convergentes e de uma mescla, não especificada, de coerção e

convenções. A experiência, aliás vasta, nos mostra o quão facilmente elas se

fragmentam e entram em colapso. O que resta a ser explicado é como as

instituições começam a se estabilizar. Tornar-se estável significa assumir

alguma forma reconhecível. É admirável como as instituições passam a

apresentar tipos estáveis que podemos reconhecer em diferentes épocas e

circunstâncias. O fato de podemos falar de uma burocracia de complexidade

bizantina ou de que podemos reconhecer os instrumentos monetários sob

uma forma exótica é a prova da existência de tipos de instituições resistentes.

A economia institucional sugere por que uma determinada forma institucional

faz mais sentido para os indivíduos racionais em determinado entorno

econômico do que em outro. Ela não explica o processo mediante o qual a

instituição se mantém, bem como aquilo que a cerca, com suficiente

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131

estabilidade para ser reconhecida pelo indivíduo que faz uma escolha

racional.

A teoria da informação chama particularmente nossa atenção para os

padrões divergentes. Ela pressupõe que para qualquer padrão toma-se

necessária uma base anterior de energia. Um padrão de determinada

complexidade, uma vez estabilizado, emprega menos energia do que aquela

de que se necessitava para fazê-lo existir. Vejamos, por exemplo, o que

acontece com o calor por debaixo de uma vasilha com água: decorre algum

tempo antes que a água comece a rodopiar e borbulhar. Se mais energia for

empregada, ela terá de ser usada por novos padrões de complexidade. Deve

existir algum meio de dissipar qualquer energia que se mostre excessiva em

relação àquilo que é necessário para manter o padrão (Prigogine 1980).

Acima e abaixo de certo ponto, o aporte extra de energia não conseguirá ser

absorvido por uma complexidade cada vez maior e haverá uma mudança

radical em todo o padrão. Por exemplo, a água se transformará em vapor.

Escrever sobre as instituições como padrões complexos de informação, como

faz Schotter, e pensar na relativa eficiência de seus canais de comunicação, a

exemplo do que faz O. E. Williamson, deveria fazer com que se levasse em

conta a quantidade de energia usada para estruturar determinado tipo de

instituição e como ela é distribuída em um padrão mais ou menos complexo.

A partir disso, chegar-se-ia a avaliar o volume de transações que essa energia

é capaz de manejar. Caso contrário a teoria da informação, na ciência política,

será meramente um objeto de decoração de vitrina, uma nova metáfora em

voga, que substituirá a metáfora funcionalista datada dos anos de 1950.

Qualquer instituição que vai manter sua forma precisa adquirir

legitimidade baseando-se de maneira muito nítida na natureza e na razão.

Então ela propiciará a seus membros um conjunto de analogias por meio das

quais se poderá explorar o mundo e com as quais se justificará a naturalidade

e a razoabilidade dos papéis instituídos, e ela poderá manter sua forma

contínua, identificável.

Assim, qualquer instituição começa a controlar a memória de seus

membros; ela os leva a esquecer experiências incompatíveis com aquela

imagem de correção que eles têm de si mesmos e traz para suas mentes

acontecimentos que apóiam uma visão da natureza que lhe é complementar.

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132

A instituição propicia as categorias dos pensamentos de seus membros,

estabelece os termos para o autoconhecimento e fixa as identidades. Tudo

isto não basta. É preciso garantir o edifício social sacralizando os princípios

de justiça.

Esta é a doutrina do sagrado tal como é enunciada por Durkheim. Todos

os demais controles exercidos pelas instituições são invisíveis, mas não o

sagrado. De acordo com Durkheim, o sagrado deve ser reconhecido por estas

três características: em primeiro lugar, ele é perigoso. Se o sagrado for

profanado, coisas terríveis acontecerão. O mundo explodirá e o profanador

será esmagado. Em segundo lugar, qualquer ataque ao sagrado suscita

emoções em sua defesa. Em terceiro lugar, ele é invocado explicitamente.

Existem palavras e nomes sagrados, lugares, livros, bandeiras e totens

sagrados. Tais símbolos tomam o sagrado tangível mas, de modo algum,

limitam seu alcance. Firmado na natureza, o sagrado reluz a partir de pontos

proeminentes para defender todas as classificações e teorias que sustentam

as instituições. Para Durkheim o sagrado é essencialmente um artefato da

sociedade. É um conjunto necessário de convenções que repousam sobre

determinada divisão do trabalho e que, é claro, produz a energia

indispensável para esse tipo de sistema (Durkheim 1893). O sagrado oferece

um esteio no qual a natureza e a sociedade se equilibram, refletindo-se

mutuamente e mantendo aquilo que se conhece de cada uma delas.

Ninguém tem muitos problemas com este conceito do sagrado. Reflita-se

sobre os totens australianos e os emblemas sagrados dos reis medievais.

Porém, de modo inconsistente, o ensinamento de David Hume, segundo o

qual a justiça é uma virtude artificial, leva a muita confusão. O conceito de que

a justiça é uma construção social, necessária, apresenta um paralelismo

exato com o conceito que Durkheim tem do sagrado, mas Hume refere-se

claramente a nós, a nossas pessoas. Ele submete nosso conceito do sagrado

a um exame minucioso. Nossa reação defensiva contra Hume é exatamente

aquilo que Durkheim teria previsto. Não podemos permitir que nossos

preceitos de justiça dependam do artifício. Semelhante ensinamento é imoral,

constitui uma ameaça a nosso sistema social, com todos seus valores e

classificações. A justiça é aquela instância que firma a legitimidade.

Por este mesmo motivo é difícil pensar nela imparcialmente. Apesar de

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133

uma ampla crença na moderna perda do mistério, o conceito de justiça ainda

permanece, até os dias de hoje, obstinadamente mistificado e recalcitrante à

análise. Se fosse o caso de pensarmos contra as pressões exercidas por

nossas instituições, este é o espaço mais difícil de se fazer essa tentativa,

pois énele que a resistência é mais forte. Em relação a isso, os antropólogos

ocupam uma posição privilegiada, pois eles registram muitas formas sociais

diversas, cada uma delas venerando seu próprio conceito de justiça.

O conceito das virtudes artificiais em Hume é fundamental para seu

programa cético (1739, 1751). Fazia parte de seu ataque todas as teorias de

conceitos inatos, quer se referissem à causalidade, lei natural ou propriedade

privada. Seu construtivismo radical faz dele exatamente o filósofo dos

antropólogos. Quando se trata da questão de encontrar estruturas lógicas na

natureza, Hume afirma que tudo que vemos são freqüências e, a partir delas,

criamos hábitos e expectativas. Quando se trata da justiça natural, tudo o que

podemos saber é que precisamos de interações regulamentadas; para

satisfazer a essa necessidade, desenvolvemos princípios. Do mesmo modo o

conceito de justiça não é a mesma reação natural que se tem em relação a

uma emoção ou a um desejo. Enquanto sistema intelectual, possui uma

espécie de naturalidade de segunda categoria, pois é uma condição

necessária para a sociedade humana. Elaborado precisamente com o objetivo

de justificar e estabilizar as instituições, esse conceito baseia-se em

convenções, exatamente de acordo com o mesmo sentido acima citado

encontrado em David Lewis (1969). Assim, nenhum único elemento da justiça

possui uma correção inata; para ser correto ele depende de sua generalidade,

de sua coerência esquemática e adequa-se a outros princípios gerais aceitos.

A justiça é um sistema intelectual mais ou menos satisfatório, cujo propósito é

garantir a coordenação de um determinado conjunto de instituições.

Se isto acabar se revelando ser logicamente incontestável e, ainda

assim, inaceitável para os filósofos que, por outro lado, são muito consistentes

no que se refere à lógica, enxergaremos nesse fato uma outra instância do

poder que tem o sagrado de suscitar uma defesa emocional. Por exemplo, o

filósofo vitoriano que editou com dedicação as obra Inquiry e Treatise, de

Hume, rejeitou sem a menor hesitação seu conceito de justiça, tratandoo

como uma aberração, como a travessura provocadora de um enfant terrible

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134

L.A. Selby-Bigge achou que a argumentação de Hume em relação à justiça

era inábil, desajeitada, ininteligível e desnecessária: "Fica bem claro sua

pretensão de que essa argumentação fosse ofensiva" (Selby-Bigge 1893 p.

XXVIII).

A abordagem de Hume não nos permite recusar o nome de justiça a um

sistema simplesmente porque não se harmoniza com nosso sistema. Sob o

risco de parecerem preconceituosos, dificilmente os filósofos poderão descartar

todas as civilizações que precedem a nossa, considerando-as carentes de

julgamento moral. Em outros contextos eles não permitem uns aos outros

recorrer à intuição ou a um inefável senso de retidão. Quando Hercules Poiret

surpreendeu a Condessa Rossakoff com jóias roubadas, ela negou qualquer

justiça intuitiva inerente à propriedade privada: "Eis o que sinto: por que uma

pessoa deve possuir algo mais do que outra?" (Christie 1935). O problema, ao

se tentar defender um princípio imutável da justiça, não está no fato de que

todo mundo enxerga uma coisa auto-evidente. Regras que para nós,

modernos, hoje parecem monstruosamente injustas não chocavam nossos

ancestrais como sendo algo errôneo. A escravidão e a sujeição das mulheres

são vulneráveis aos mesmos argumentos que Hume empregou contra o direito

intuitivo à propriedade.

A posse já não é mais a questão política proeminente em nossos dias.

Nossas próprias instituições colocaram a igualdade como uma prioridade

suprema. Como seria o contrário, numa sociedade que dispersou os direitos à

propriedade privada entre acionistas e companhias de seguro e está

caminhando para uma organização vertical das profissões? Os segmentos

verticais necessitam recrutar e promover o talento: a igualdade de

oportunidades constitui sua condição necessária (Perkin 1969). As instituições

requerem que a igualdade de acesso seja incorporada aos princípios

fundamentais, legitimadores. Elas invocam a falta da igualdade para

deslegitimar os regimes rivais. Elas enumeram sociedades odiosas,

estratificadas segundo camadas horizontais, que se dispõem como uma

pirâmide, com seu topo. Este é, no entanto, outro modo de organizar,

recorrendo a outra energia e a outra base de comunicação, com seus próprios

princípios legitimadores apropriados.

Sempre que as nações ocidentais colonizam uma antiga civilização, este

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135

conflito entre conceitos de justiça acarreta tensões. Em Bali, os colonizadores

holandeses se depararam com dois sistemas de justiça: ao nível das aldeias a

igualdade era mantida pelo antigo sistema balinês; em outros níveis os códigos

legais expressavam a influência de um sistema hindu hierárquico. O primeiro

exemplo era aceitável para os administradores holandeses e o último era

horrendo. Em se tratando dos códigos legais, alguém que:

cometesse uma ofensa contra alguém de uma casta elevada engendrava circunstâncias agravantes, ao passo que na situação oposta presumiam-se circunstâncias atenuantes. Um sudra que ofendesse seriamente um brahmana era condenado à morte; a um brahmana que ofendesse um sudra simplesmente se solicitava o pagamento de umas poucas moedas. Se um inferior causa um dano corporal a um superior, disso resulta uma punição por meio da mutilação, tal como cortar as mãos ou os pés (Boon 1977, p. 49, citando a Encyclopedia of the Dutch East lndies, publicada em 1917).

James Boon observa que essas punições severas e prejudiciais

consternavam os observadores ocidentais e que:

lendo nas entrelinhas dos relatórios posteriores a 1849, torna-se óbvio que nenhuma explicação simples em torno de uma opressão cega poderia explicar o apoio plebeu a tais diferenças. Os estratos mais baixos pareciam acreditar que seus superiores meceriam penalidades mais amenas ao praticarem ostensivamente a mesma ofensa. Os administradores holandeses em Bali poderiam ter tido a capacidade de aceitar uma hierarquia radical no que se referia aos títulos, à instrução, à propriedade, ao mérito religioso e assim por diante, porém jamais a aceitariam em se tratando de procedimentos legais, sobretudo os criminais. No conflito entre dois sistemas legais é que podemos sentir melhor a comoção provocada por aquele relato histórico e pelo fracassso mútuo em compreender, por parte do Antigo Oriente e do Novo Ocidente (p. 49).

Posto que a qualidade, como um direito natural ou como um princípio

universal, ainda constitui a mais destacada diferença entre o sistema ocidental

e muitos outros sistemas de justiça, não basta simplesmente deixar os últimos

de lado, considerando-os obviamente injustos. E, no entanto, existem muitos

filósofos proeminentes que agem exatamente assim.

Consideremos a tentativa de Alan Gewirth no sentido de estabelecer um

supremo princípio de moralidade, do qual dependem todos os demais

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136

princípios morais, e de recorrer a esse princípio para provar que a

desigualdade é injusta. A argumentação de Reason and Morality (1978) é

acadêmica, impressionante e verdadeiramente sedutora. Sua estratégia

consiste em desencavar aquilo que está logicamente embutido no conceito de

um agente racional. Os agentes querem alcançar seus objetivos e, portanto,

querem liberdade para agir e o bem-estar necessário à ação. As carências são

intrínsecas ao conceito de ação e, assim, as carências dos agentes

transformamse em reivindicações. Reconhecendo que suas próprias

reivindicações são válidas em contraposição aos demais agentes, o agerite

racional, tendo em vista a consistência, precisa admitir que as mesmas

exigências, feitas por outros agentes, são válidas em relação às suas. Não

reconhecer aquilo que está implicado em uma ação natural significa agir contra

a razão. A partir desta base lógica, o esquema de Gewirth estende-se a

princípios morais substantivos, incluindo a qualidade necessária dos agentes.

Tomando como premissa os desejos de um agente racional, Gewirth

formulou uma argumentação baseada em carências logicamente derivadas e

em uma adequação semelhante àquela empregada pelos teólogos do século

XII. Com a finalidade de resolver uma controvertida questão - teria a Virgem

Maria nascido sem o pecado original? - eles propuseram em primeiro lugar que

Deus haveria de querê-Ia concebida sem mácula, como algo incrustado no

conceito de Deus; em segundo lugar, recorreram à argumentação de que Deus

é onipotente, e daí decorre que teria sido perfeitamente possível para Ele fazer

o que queria. Isto levou à triunfal conclusão de que Ele agiu nesse sentido.

Uma forma enfatiza seu desejo: potuit, voIuit, fecit. Outra enfatiza a adequação

implícita no esquema lógico: potuit, decuit, ergo fecit. Já se afirmou que Alan

Gewirth é refratário a objeções padronizadas ao argumento ontológico que

postula a existência de Deus (Nielson 1984). Ele e os escolásticos possuem

uma argumentação que depende de se desvelar as implicações lógicas de

certas palavras - o que mais a lógica poderia fazer? Dissemos, porém, o

suficiente em capítulos anteriores para demonstrar que o conjunto de idéias

que constituem o significado de uma palavra é o produto do pensamento

institucional.

A partir de sua publicação PrincipIe of Generic Consistency, Gewirth

espera elaborar não só apenas a correção da igualdade mas também deixar

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137

patente o erro que é o assassinato e a escravidão (1978). Mas a que se refere

o assassinato? O autor afirma que ele diz respeito ao ato de matar seres

humanos inocentes que tem por motivo ou como natureza apenas o proveito e

a gratificação do desejo. E a que se refere a inocência? Se as outras

categorias do pensamento são culturalmente definidas, então permite-se que a

culpa, a inocência, a opressão e a coerção constituam exceções? Conforme

assinala Lena Jayyusi, as categorias da lei se inserem em um quadro

normativo e moral, ligado a responsabilidades, e imersos na ordem prática

cotidiana (Jayyusi 1984, p. 4). Ela argumenta, por exemplo, que

descontextualizar os conceitos de coerção e opressão, tais como foram

desenvolvidos no Ocidente, e aplicá-los às instituições soviéticas é uma

colocação fora do lugar, sob o ponto de vista da lógica. O emprego do termo

"coerção" pressupõe a relevância de direitos cuja infringência motiva a

descrição. Se um sistema político e social nega direitos à acumulação privada

do capital, então o fato de uma pessoa ser privada daquilo para o qual não

existe um direito anterior não se configura como algo opressivo ou coercitivo no

mesmo sentido que esses termos assumiriam em outros contextos. O

programa que Jayyusi advoga estudará a prática ligada ao diálogo e as regras

que apresentem relevância. É uma lástima que isso dependa tanto da fala e

não inclua as estruturas de poder e os padrões de interação. Sem essa

dimensão, a construção moral presente nos conceitos verbais não pode ser

atribuída a outra fonte de evidências e, assim, a interpretação de tais conceitos

não pode ser validada de maneira independente. Lena Jayyusi está dando

apenas um passo preliminar em direção à classificação dos sistemas de

categoria. Um exercício de maior abrangência classificaria ao mesmo tempo a

ordem social.

Sem recorrer à religião, ao intuitivismo ou às idéias inatas, é muito difícil

defender um princípio substantivo de justiça como algo universalmente correto.

Brian Barry é outro conhecido filósofo que quer defender o princípio da

igualdade e discorda do conceito de justiça tal como é elaborado por Hume,

que vê nela uma virtude artificial. De acordo com a teoria de Hume, a

necessidade de um conceito de justiça surgiria apenas sob certas

circunstâncias. Ele jamais se faria presente em condições de perfeita

tranqüilidade e afluência, pois não haveria necessidade de um princípio

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138

regulador universal. Ele jamais despontaria quando um dos lados fosse

detentor de um poder irresistível, pois os poderosos não se dispõem a permitir

que princípios gerais afetem suas ações motivadas pelo auto-interesse. Para

Hume, os padrões formais e padronizados de justiça somente são exercidos

entre iguais e que se encontram em situação de proximidade. Barry verifica

que pode aplicar de maneira expressiva tais padrões a relações desiguais e

que sua aplicabilidade demonstra que a justiça se baseia em princípios, não

em convenções.

Quando tomamos padrões de justiça em relação aos quais haveria concordância por um grupo de iguais e os aplicamos para condenarmos uma sociedade permeada por sistemática discriminação grupal, estamos, em certo sentido, fazendo uso de critérios externos e independentes (Barry, 1978, p. 225).

Para Barry, a possibilidade de podermos discutir a exploração desenfreada

em termos de justiça constitui um ponto decisivo contra Hume. O fato de

podermos aplicar o conceito de injustiça demonstra, em sua opinião, que esse

conceito é universal e independe de circunstâncias locais. Alguém poderá, por

exemplo, consentir livremente em um acordo injusto por acreditar, de modo

incorreto, que ele é exigido pela justiça.

Suponhos que, em determinada sociedade, fosse universalmente aceito que algumas pessoas, devido ao nascimento, tivessem direito a privilégios econômicos e sociais. Não haveria conflitos em torno da distribuição e, no entanto, diríamos, com toda certeza, que esse sistema social era injusto (Barry 1978, p. 219).

Nessas opiniões, Barry está expressando os princípios legitimadores das

convenções criadas para manter um determinado conjunto de instituições, isto

é, aquelas da sociedade ocidental industrial. Para nós, entretanto, que

internalizamos a justiça dessas instituições, essa desigualdade é claramente

injusta. Quanto maior for a discriminação causada pelo nascimento e a brecha

que separa os interesses das diferentes classes, mais condenaremos sua

desigualdade. No entanto, por maior que seja a veemência com que

sustentamos nossos princípios de justiça, eles ainda são os princípios que se

fizeram presentes nos últimos duzentos anos, ao lado da emergência de um

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139

sistema econômico baseado no contrato individual. Voltando-se de um padrão

horizontal de integração para um padrão vertical, que depende de elevar os

indivíduos independentes da base para o topo, todo o sistema de informação

tem de ser transformado. Quando a perturbação atingiu determinado ponto, as

estruturas dissipadoras já não conseguem mais manter o padrão. Em primeiro

lugar, as analogias fundantes precisam ser revistas. Louis Dumont detectou os

esforços realizados no século XVIII no sentido de reenfocar sua ideologia,

afastando-a das metáforas orgânicas. Ele mostra que a parábola da abelha

industriosa, que se encontra em Mandeville, significou um marco, em se

tratando de subtrair o pensamento ocidental aos modelos hierárquicos da

sociedade, direcionando-o para uma justificativa do individualismo (Dumont

1977, pp. 83-104).

Quando a analogia com a natureza é modificada, o sistema de justiça

também necessita uma revisão. Agora ele tem de promover o movimento

vertical dos indivíduos, em vez de contê-Ios em suas camadas horizontais. O

resultado foi a sacralização de uma sociedade baseada num uso extravagante

da energia, sem precedentes na história mundial. Trata-se de uma sociedade

que usa a igualdade dos indivíduos para justificar-se, mas nas comparações da

justiça, efetuadas em âmbito mundial, sua ascendência econômica e seus

esforços para manter sua vantagem desigual tomam-se difíceis de justificar

pelos seus próprios princípios de legitimação. Podemos juntarnos a Barry no

sentimento da indignação, da pena e da vergonha diante da exploração dos

fracos. Nossos sentimentos humanos nada fazem para deixar de lado a

argumentação de Hume.

De acordo com Hume, as virtudes artificiais serão conhecidas por sua

coerência interna em um sistema abstrato que harmoniza as interações

cotidianas em determinada sociedade. Barry está defendendo um conceito

absoluto de justiça. Onde mais se poderá encontrá-Io, a não ser na intuição?

Ele afirma:

Se alguém conseguir ler uma história da colonização européia na Austrália e nas Américas ou uma história da escravidão negra sem admitir que está lendo a história de uma injustiça monstruosa, duvido que qualquer coisa que eu possa dizer terá a possibilidade de convencê-Io (Barry 1978, p.22).

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140

Em outras palavras, esse sentimento é, em última análise, incomunicável.

Se Gewirth recorreu ao argumento ontológico em nome da igualdade, Barry,

em se tratando da mesma causa, adotou algo muito semelhante àjustificativa

de Rudolph Otto, quando esse se refere à experiência mística. Se o leitor

jamais passou por uma experiência mística, se jamais sentiu o Mysterium

Tremelldum, se o sentido do numinoso lhe é estranho, então, declara Otto, o

teólogo luterano, nada do que eu puder dizer o convencerá: o sentimento é

incomunicável. A resposta de Hume à Condessa Rossakoff, bem como a

resposta dada aos filósofos que tinham intuições contrárias, seria a de recordar

que o funcionamento de uma sociedade depende, até certo ponto, da

coerência, e que um resumo abstrato dos princípios interligados sobre os quais

ela repousa promove a coordenação. Uma vez formulado, o artifício adquire

venerabilidade. Durkheim conseguia explicar por que, a exemplo de um muro

coberto de hera, em uma universidade nova, a justiça parece estar presente

desde sempre. Ela teria de existir muito antes que os seres humanos viessem

ao mundo e, assim, ela parece antiga e imutável, como um dos artefatos da

natureza, e acima dos desafios.

A essa altura a questão relativa ao relativismo moral torna-se urgente.

Teria essa argumentação destruído os alicerces em que se apóia? Colocando a

coisa em termos bem crus, o fato é que as opiniões morais são preparadas

pelas instituições sociais. É muito raro e difícil para um indivíduo escolher uma

postura moral a partir de uma base racional individual. Nesse caso, nossos

próprios julgamentos estão igualmente preparados em nossas próprias

instituições sociais. Assim, a questão é que não temos como comparar seu

valor: tudo o que podemos fazer é descrever. Jamais podemos afirmar que a

justiça requer a igualdade, defende a propriedade privada ou censura a

escravidão. Reduzimos todos os julgamentos morais a expressões das

diferentes sociedades.

Várias questões parecem estar misturadas. O pior de tudo é a

responsabilidade de se cair em contradições e absurdos. Ainda em termos de

negatividade segue-se o conceito de que a total tolerância a qualquer tipo de

comportamento surgiria em uma seqüência lógica. O menos prejudicial é o

conceito de que, por termos afirmado que as idéias morais constituem parte

essencial das instituições sociais, elas não podem ser comparadas ou

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julgadas, o que também não é verdade.

Baseando-nos nos princípios de Hume, podemos dizer que um sistema é

mais justo do que outro. Podemos afirmá-lo a partir de duas avaliações, uma

delas lógica e a outra, prática. De acordo com seus ensinamentos, um sistema

de justiça é concebido expressamente para proporcionar princípios coerentes a

partir dos quais se possa organizar o comportamento social. Assim, podemos

comparar sistemas de justiça em relação à sua coerência. Esta é a tarefa

habitual da jurisprudência histórica. A reforma judicial é freqüentemente

justificada sob o pretexto da incoerência entre os princípios que estão sendo

usados. De acordo com Hume, a arbitrariedade derrota o objetivo essencial da

justiça. Podemos comparar a quantidade de regras arbitrárias. Assim, não há

problema quanto a esta questão. Quanto à avaliação prática, podemos

começar indagando com que eficiência um sistema de justiça realiza a tarefa

de proporcionar princípios abstratos para regulamentar o comportamento. Ele

seria por demais misterioso, secreto e ramificador para ser compreendido.

Mediante testes simples podemos decidir se o sistema de justiça de

determinado país, digamos de uma potência colonial, se relaciona com

suficiente precisão ao contexto de outro lugar, digamos a África. Por exemplo,

será que a antiga lei da era Tudor, relativa à prática da bruxaria na Inglaterra,

ajudava os policiais locais a lidar com acusações de bruxaria no Sudão? As leis

ocidentais contra a bigamia funcionam bem no sentido de regrar questões

entre os poIígamos muçulmanos em Londres? Ou, em outro tipo de teste

prático, será o sistema de justiça eficiente? Os tribunais não serão por demais

distanciados dos centros da população? Os juristas fazem estas e outras

comparações de sistemas de justiça o tempo todo. Ao agir assim não são

obrigados, em absoluto, a aplicar os princípios corroborantes de suas próprias

instituições. Os testes de coerência e não arbitrariedade, complexidade e

praticidade, não são preferências subjetivas. É tão correto estudar

objetivamente os sistemas humanos de justiça quanto medir o comprimento do

pé humano, desde o calcanhar até o dedão. Os sistemas podem ser

comparados como sistemas. A única coisa impossível de se fazer é atribuir

determinadas virtudes; a bondade, por exemplo, aos animais ou aos idosos, ou

então a igualdade e encontrar um meio de provar que ela é sempre

indiscutivelmente certa e melhor.

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Finalmente, reconhecer a origem social dos conceitos de justiça não nos

obriga a deixarmos de estabelecer julgamentos entre os sistemas. Eles podem

ser julgados melhores ou piores, de acordo com a compreensão que tivermos

de seus pressupostos. Suponhamos que um sistema de justiça presumisse que

apenas um terço da população que se submetesse a suas regras fosse

inteiramente humano. Seríamos objetivos em se tratando dos motivos que

teríamos para pensar que os outros dois terços eram seres humanos. A essa

altura a questão do relativismo moral fundiu-se com indagações sobre o que é

real e o que é ilusório no mundo. Espero que não haja necessidade de recorrer

à argumentação sobre o realismo. O que foi dito acima não coloca em dúvida

que se trata de testes objetivos das versões certas e erradas do mundo e como

ele funciona. Por exemplo, imagine-se um sistema de justiça que punisse as

pessoas por aquilo que se afirmou que elas fizeram nos sonhos de outras

pessoas. Não seria difícil demonstrar que semelhante sistema delimita as

responsabilidades de acordo com uma versão errônea da realidade e uma

versão errônea da responsabilidade humana, a tal ponto que não poderia ser

organizado coerentemente em torno de qualquer questão prática. O modo

como os seres humanos são, o fato de que eles caminham eretos e não podem

estar em dois lugares ao mesmo tempo, são incorporados como parte de

qualquer sistema de justiça. Algumas experiências e o estudo das condições

da vida se reportaram ao plano de fundo da existência. Tudo o que está sendo

colocado aqui e em todo este livro é que a experiência cumulativa do mundo

deveria incorporar explicitamente a natureza social da cognição e do

julgamento.

O pressuposto preferido, que sugere que os seres humanos não são

essencialmente seres sociais, é suficientemente forte para impedir-nos de ver

como eles se comportam de fato. O que acontece quando a lei é revogada? A

natureza assume tudo? Temos dito que a natureza é culturalmente definida,

que as mentes individuais são povoadas com atitudes culturalmente

determinadas. E então o que acontece? O próprio Hume supôs que, por

ocasião de uma situação em que a fome reinasse, cada um se apropriaria

daquilo de que necessitasse para sobreviver, mandando às favas o conceito de

propriedade privada. Parte da demonstração que Hume fazia de sua

artificialidade consistia em demonstrar que os critérios de justiça seriam

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143

suspensos, em se tratando de uma situação de inanição. Outros filósofos

concordam. No entanto, as pessoas famintas não se sublevam e se apoderam

do alimento que está diante delas. A mera existência da força não é tudo que

as impede de saquear as lojas. Em uma família ou em uma aldeia que passa

por semelhante crise quem passa fome e morre, ou quem come e vive, não é

algo inteiramente fortuito, nem depende da força. As pessoas mais fortes e

mais numerosas nem sempre se apoderam de tudo quando chegam as crises

trágicas. A história mostra que a fome não revoga automaticamente as

convenções. Ela não introduz algo como uma lei natural de direitos iguais. Ao

adotarmos semelhante pressuposto, explicamos pelas leis naturais nossas

próprias idéias de eqüidade. É como se admitíssemos que, quando a natureza

se impõe, faz aquilo que sabíamos que deveríamos ter feito o tempo todo, isto

é, distribuir igualmente. O comportamento, numa situação de crise, depende de

quais padrões de justiça foram internalizados, do que as instituições

legitimaram.

Algumas vezes se observou um conflito entre agências internacionais de

ajuda e funcionários locais. Os agentes internacionais do Ocidente

industrializado tentam distribuir alimentos de maneira eqüitativa. A igualdade

dos direitos à sobrevivência é um princípio inquestionável. Consternados, eles

verificam que não conseguem recrutar representantes das instituições locais

para ajudá-los em seu trabalho. Para dar a comida tão rapidamente quanto

possível os existentes canais de distribuição seriam os mais eficientes e os

mais aceitáveis para um país atingido pela fome. Mas não! Assim que os

habitantes locais são incluídos no esquema que Ihes proporcionará alívio, o

alimento é desviado. Os mais pobres sempre são os mais vulneráveis em uma

situação de fome. A comida, porém, não chega até eles. O açambarcamento, o

roubo, a exploração, a recriminação e a indignação hipócrita fazem parte da

sinistra história do socorro à fome.

William Torry é um antropólogo que vem estudando respostas e reações à

fome (Torry 1984). Ele observou-a em contextos de aldeias ou províncias

isoladas, onde nenhuma ajuda estrangeira é disponível. Tal experiência levou-

o a questionar se a crise calamitosa está provocando uma ruptura das normas.

Em vez disso ele verificou que a comunidade deixa de lado seu conjunto

regular de princípios morais e adota um conjunto regular de emergência. O

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144

sistema de emergência não é uma revogação de todos os princípios. Torry não

vê um colapso das convenções. Pelo contrário, o sistema de emergência

começa por um gradual tensionamento e estreitamento dos princípios

distributivos normais. Já se antevê que não haverá comida suficiente para todo

mundo. O sistema de emergência começa a dar rações diminutas aos que se

encontram em desvantagem, aos marginais, aos politicamente ineficazes.

Proteger aqueles que estão no comando e aqueles que já gozam de vantagens

resulta em que as instituições fundamentais serão preservadas e os habituais

canais de comunicação serão mantidos abertos. O efeito é conservar alguns

níveis mínimos de operações. À medida que a crise se aprofunda, e Torry

observa, ele testemunha, horrorizado, uma destruição sistemática de certas

categorias de pessoas. Ele consegue reconhecer quem está predestinado a

morrer de inanição, o mesmo acontecendo com as vítimas. Ele percebe como

se dará a vitimação pelos processos de seleção do sistema social existente.

Quaisquer que sejam os princípios normativos de exclusão dos privilégios ou

da segurança - seja devido ao nascimento, à profissão, ao sexo, ou por

definições em torno do desvio e da criminalidade essas exclusões habituais

apontam para quem receberá menos, à medida que os recursos diminuem, e

quem finalmente será excluído ou deixado para trás, a fim de morrer de fome.

Para grande surpresa de Torry, as vítimas pré-estabelecidas aceitam seu

destino com docilidade. Quando a carestia chega ao fim, algumas dentre elas

podem ter sobrevivido, mas, com toda certeza, terão perdido filhos e parentes.

Torry observa como a vida comunitária é retomada. Dada a cruel iniqüidade do

que aconteceu, ele se põe a imaginar se os sobreviventes demonstrarão

ressentimento contra quem os explorou. Não é o caso. Eles reconhecem que o

fado de suas famílias é adequado e parte normal das condições de crise.

Compreendem que a elite jamais correu perigo. Retomam com gratidão seus

antigos relacionamentos de prestação de serviços, sem ressentimentos. A

aceitação de que foram vítimas indica, para Torry, que ele testemunhou não a

destruição da ordem social, mas sua afirmação.

Será esta uma história sinistra? Torry fica a imaginar se a moralidade

dessa crise tomou o desastre maior ou menor do que seria, caso tivesse

acontecido o contrário. O fato de parecer que a recuperação foi mais rápida

expressa um dilema favorito dos filósofos morais. Deveríamos atentar para as

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145

conseqüências de nossas escolhas ou deveríamos fazer aquilo que é

inelutavelmente correto? Se todos, em um barco salva-vidas, acabarão

morrendo caso a água for distribuída igualmente, e se houver uma boa

oportunidade de que alguns serão salvos, caso a distribuição seja restrita,

então o que deveria ser feito? E se a seleção for correta, quem deveria ser

salvo? A elite hereditária? Os mais talentosos? Os mais valentes? Os mais

fracos?

Este é o problema com que se debateram aqueles exploradores

prisioneiros na caverna, sem alimento. É o tipo de problema insolúvel, se for

apresentado aos indivíduos como um enigma intelectual. Em primeiro lugar, o

exemplo é isolado de todo contexto institucional. A justiça nada tem a ver com

casos isolados. Em segundo lugar, os indivíduos normalmente encaminham

tais decisões às instituições. Nenhum raciocínio elaborado por particulares

pode encontrar a resposta. As mais profundas decisões relativas à justiça não

são tomadas pelos indivíduos enquanto tal, por indivíduos que pensam no

interior ou em nome das instituições. A única maneira segundo a qual um

sistema de justiça existe é pelo desempenho cotidiano das necessidades

institucionais. Se isto for reconhecido, pareceria que os filósofos que defendem

a escolha racional fracassam em enfocar aquele ponto em que é exercida a

escolha racional. Em se tratando desta argumentação, escolher racionalmente

não significa escolher intermitentemente entre crises ou preferências

particulares, mas escolher continuamente entre instituições sociais. Segue-se

que a filosofia moral é um empreendimento impossível se, desde o início, não

colocar restrições ao pensamento institucional. Portanto, que ninguém se

reconforte com a reflexão segundo a qual os primitivos pensam através de

suas instituições, enquanto os modernos tomam as grandes decisões

individualmente. Este pensamento é um exemplo de como deixar as

instituições elaborar o pensamento.

Na rica sociedade industrial do Ocidente, um novo avanço médico pode

criar o mesmo dilema que a fome ou o que acontece no barco salvavidas.

Existe hoje uma literatura significativa sobre a reação de diferentes países à

escolha política suscitada por ocasião do início da história da diálise renal. O

Centro do Rim Artificial de Seattle adotou os seguintes princípios:

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146

Julgava-se que uma pessoa "merecedora" de ter sua vida preservada por um tratamento caro e raro, tal como a diálise crônica, teria qualidades tais como a decência e a responsabilidade. Qualquer história de desvio social, tal como um prontuário criminal, qualquer sugestão de que a vida conjugal da pessoa não era intacta e livre de escândalos, constituiriam suficiente contra-indicações para a seleção. O candidato preferencial seria uma pessoa que teria demonstrado realizações por sua dedicação ao trabalho e sucesso em sua profissão, que freqüentava a igreja, participava de grupos e era ativamente envolvido com questões comunitárias (Fox & Swarez 1974, p. 247).

Supondo que houvesse muitas pessoas na iminência de morrer devido à

ausência de tratamento, então não se poderia aplicar um critério

discriminatório. Qual será a melhor política? Existem duas grandes diferenças

entre a situação na moderna Seattle industrial e as pequenas comunidades

assoladas pela fome, que lutam contra aquilo que, formalmente, constitui o

mesmo problema. Em primeiro lugar, o Comitê de Seattle era secreto. Talvez,

por esse motivo, ele mereceu o comentário de um psiquiatra e de um

advogado, segundo o qual "a justiça exige um método mais imparcial do que

as consciências descontroladas, os vieses incorporados e as fantasias de um

comitê secreto" (Barry 1978, pp. 212-13).

Em segundo lugar, a diálise dos rins era uma invenção novíssima e,

assim, não havia instituições que estabelecessem as prioridades.

Presumivelmente, no exemplo da comunidade assolada pela fome, que recorre

a uma justiça de emergência, todo mundo internalizou as regras. Algo muito

semelhante à decisão do Comitê de Seattle provavelmente seria aplicada sem

questionamentos, caso o presidente dos Estados Unidos se tornasse vítima de

uma doença dos rins. Ele seria passado para o primeiro lugar da fila e ninguém

protestaria. A consciência do exemplo de Seattle parece fantástica e

descontrolada porque ninguém aceita seus julgamentos sobre o sucesso e o

escândalo como algo legítimo. O que teria sido realmente fantástico? Talvez

reservar o tratamento somente para salvar as vidas dos detentos que

cumpriam condenações perpétuas, de tal modo que a justiça não fosse

derrotada por suas mortes desnecessárias. Mas o que mais poderia ser levado

em conta enquanto fantasia sobre a justiça, numa comunidade que teria

concordado sobre a legitimidade de suas instituições?

Bem ou mal, uma comunidade pode fazer com que suas vítimas pré-

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147

estabelecidas consigam suportar o impacto da crise e resolver suas decisões

quanto à designação, permitindo que suas instituições façam a escolha, mas

somente quando ela conferiu legitimidade a essas instituições. Não é de se

estranhar que Guido Calabresi (Calabresi & Babbitt 1978, p. 36), acredita que a

designação, por meio de instituições políticas responsáveis e confiáveis, seja

insatisfatória. É o preço que se paga por se viver numa sociedade plural, na

qual a legitimidade é sempre objeto de dúvida.

Quando os indivíduos discordam sobre a justiça elementar, seu conflito

mais insolúvel se dá entre instituições baseadas em princípios incompatíveis.

Quanto mais grave o conflito, mais útil será compreender as instituições que

estão elaborando a maior parte do pensamento. A exortação não ajudará. A

promulgação de leis contra a discriminação de nada valerá. Não ajudou as

mulheres africanas o fato de a Liga das Nações adotar resoluções contra à

poligamia e a clitoridectomia. Pregar contra o espancamento das esposas e o

abuso praticado contra crianças não tem mais possibilidades de mostrar-se

eficaz do que pregar contra o álcool e o abuso das drogas, o racismo ou o

sexismo. Somente as instituições que passam por um processo de mudança

podem ajudar. Deveríamos nos dirigir a elas e não aos indivíduos, e nos

dirigirmos a elas continuamente, não apenas em situações de crise.

Assim, deveríamos perguntar o que acontece com a diplomacia quando

diferentes tipos de instituições entram em conflito. Entre instituições do mesmo

tipo, baseadas nas mesmas analogias a partir da natureza, e firmadas nos

mesmos conceitos de justiça, a diplomacia tem uma chance. No entanto, a

diplomacia entre diferentes tipos de instituições geralmente fracassará. Os

avisos serão interpretados erroneamente. Os apelos à natureza e à razão, que

comprometam uma das partes, parecerão infantis ou fraudulentos à outra parte.

Uma vez reconhecido que as instituições legitimadas tomam as grandes

decisões, muito mais coisas seriam modificadas. Os psicólogos não mais

poderiam afirmar que esta ampliação das funções cognitivas é um assunto

banal, que deve permanecer sem ser estudado, em favor do crescimento moral

e perceptual, em estado de incultura, das crianças. Uma vez reconhecido que

as grandes decisões sempre implicam princípios éticos, então os filósofos não

enfocariam, com um único propósito, os dilemas morais individuais. Michael

Sandel escreveu eficazmente contra o viés que presenteia a teoria social como

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148

um agente individual, desonerado, aistórico. Ele demonstra como a teoria apóia

a autocontradição, no interesse amor a defender os pressupostos da filosofia

liberal (Sandel 1982). Uma teoria da justiça tem de alcançar o equilíbrio entre

as teorias da ação humana, por um lado, e as teorias da comunidade, por outro

lado. Se, na teoria da justiça, a assim denominada comunidade é de uma

espécie que jamais penetra nas mentes de seus membros, se sua experiência

compartilhada não faz diferença quanto a suas necessidades e em nada

contribui para sua auto-definição ou para seus conceitos de mérito, então muita

coisa está errada com a teoria. Seu conceito do eu desintegra-se e seu

conceito de comunidade se contradiz ao longo da argumentação. Sandel

contrapõe esta crítica ao livro Theory of Justice, de autoria de John Rawls

(1971), mas ela se aplica amplamente a muitas atuais discussões sobre a

justiça, a comunidade e o eu. Rawls descreve duas teorias da comunidade,

ambas individualistas e nenhuma delas suficiente para corresponder à

experiência ordinária da ação humana. E, afinal de contas, a premissa dos

princípios da justiça precisa "denotar alguma semelhança com as condições de

criaturas discernivelmente humanas" (Sandel 1982, p. 430). No primeiro relato

instrumental sobre a comunidade, de autoria de Rawls, as pessoas que

cooperam são governadas unicamente por motivações que obedecem ao auto-

interesse, e o bem da comunidade consiste em elas alcançarem seus objetivos

individuais. De acordo com esse relato, a própria comunidade é externa às

aspirações e interesses desses indivíduos. No segundo relato de Rawls, a

visão que ele adota é denominada por Sandel conceito sentimental da

comunidade. Ela é, em parte, interna àqueles que se sujeitam à cooperação,

pois atinge seus sentimentos. Ambas as concepções pressupõem que o sujeito

é individuado separadamente ou antes da experiência comunitária, de tal modo

que as fronteiras do eu do sujeito são fixadas independentemente das

situações e, presumivelmente, são incapazes de se modificar. Sandel, por sua

vez, procura um terceiro conceito, mediante o qual o eu seria profundamente

penetrado pela comunidade, e assim a identidade seria até mesmo constituída

por ele.

De acordo com esta vigorosa visão, afirmar que os membros de uma sociedade são ligados por um sentido de comunidade não significa

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149

simplesmente dizer que muitos desses membros professam sentimentos comunitários e perseguem objetivos comunitários, mas sim que eles concebem sua identidade [...] como algo definido, até certo ponto, pela comunidade de que fazem parte. Para eles, a comunidade descreve não apenas o que eles possuem, enquanto concidadãos, mas também o que eles são, não um relacionamento que eles escolheram (como ocorre em uma associação voluntária), mas uma ligação que eles descobrem, não meramente um atributo. mas algo que constitui sua identidade. Em contraste com os conceitos instrumentais e sentimentais de comunidade, poderíamos descrever esta vigorosa visão como um conceito constitutivo (SandeI1982. p. 150).

A vigorosa visão requer uma completa revisão do vocabulário e uma

modificação de pressupostos. Em vez de a filosofia moral começar por um

conceito do indivíduo como agente soberano, para quem a livre escolha

constitui a condição essencial, Sandel sugere que o agente humano é

essencialmente alguém que precisa descobrir (não escolher) seus fins, e que

a comunidade propicia os meios de autodescoberta. Em vez de estar centrado

nas condições da escolha, um diferente tipo de filosofia moral se centraria nas

condições em que se dá o autoconhecimento. Para quem quer que tenha se

interessado pela teoria do conhecimento de Durkheim, isto não deixa de ser

reconfortante. Durkheim e Fleck ensinaram que cada tipo de comunidade é

um mundo de pensamentos, que se expressa em seu próprio estilo de pensar,

penetrando as mentes de seus membros, definindo a experiência deles, e

estabelecendo os polos de sua compreensão moral. Este programa sempre

pareceu cru, não experimentado e precisava de muito trabalho para tomá-Io

aceitável. Apesar de toda sua percepção e de sua correção, a tendência que

a ele se contrapunha parecia forte demais. Sandel, porém, remete o programa

a eras passadas: estar engajado na autodescoberta, procurar na comunidade

com o objetivo de encontrar os próprios fins, é ser um ente humano "como os

antigos o concebiam" (Sandel 1982, p. 22). A tradição é antiga e esses

cenários já foram desenhados antes, na literatura e na filosofia. Somente por

meio de um viés proposital e de um esforço extraordinariamente disciplinado

foi possível erigir uma teoria do comportamento humano cujo relato formal do

raciocínio somente considera os motivos que dizem respeito à própria pessoa

e uma teoria que não tem meios possíveis de incluir mentes direcionadas para

a comunidade ou o altruísmo e muito menos para o heroísmo, exceto como

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150

uma aberração. O programa de Durkheim-FIeck aponta para um caminho de

retomo. Por bem ou por mal os indivíduos compartilham seus pensamentos e

eles, até certo ponto, harmonizam suas preferências. Eles não têm outros

meios de tomar as grandes decisões a não ser na esfera das instituições que

eles constroem.

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