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A importância da formação científica na medicina chinesa Texto publicado no blogue: http://acupuntura.blogas-pt.com/ Recentemente vi num fórum sobre medicina chinesa uma crítica, de uma aluna nova, ao extenso currículum científico do curso. As críticas assentam na existência de disciplinas como fisiologia, anatomia ou estatística. Alguma pessoas, felizmente começam a tornar-se uma minoria, não percebem qual a utilidade da anatomia ou da fisiologia uma vez que a medicina chinesa nunca desenvolveu essas disciplinas. Também não conseguem perceber qual a utilidade da estatística num curso de medicina energética onde a ciência é considerada quase como uma superficialidade do Ocidente. Quando falamos de formação científica devemos dar atenção a 2 aspectos diferentes: (1) aprendizagem de conceitos científicos e de factos científicos acerca do funcionamento do corpo humano e (2) aprendizagem do método científico e das suas capacidades de percepção da realidade objectiva que nos rodeia. Alguns pós-modernos meio perdidos parecem contentar-se mais com conceitos vagos que conduzam a uma espécie de medicina religiosa altamente subjectiva do que a uma arte terapêutica objectiva e devidamente comprovada. Qual, então, a importância da formação científica? Há vários pontos que podemos analisar.

A Importância Da Formação Científica Da Medicina Chinesa

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será a formação científica necessária na medicina chinesa? Para quê saber física ou anatomia se os chineses não a sabiam e mesmo assim desenvolveram a medicina chinesa? Neste artigo respondo a este tipo de questões.Acompanhe o bloghttp://acupuntura.blogas-pt.com/blog/

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Page 1: A Importância Da Formação Científica Da Medicina Chinesa

A importância da formação científica na medicina chinesa

Texto publicado no blogue:

http://acupuntura.blogas-pt.com/

Recentemente vi num fórum sobre medicina chinesa uma crítica, de uma aluna

nova, ao extenso currículum científico do curso. As críticas assentam na

existência de disciplinas como fisiologia, anatomia ou estatística. Alguma

pessoas, felizmente começam a tornar-se uma minoria, não percebem qual a

utilidade da anatomia ou da fisiologia uma vez que a medicina chinesa nunca

desenvolveu essas disciplinas. Também não conseguem perceber qual a

utilidade da estatística num curso de medicina energética onde a ciência é

considerada quase como uma superficialidade do Ocidente.

Quando falamos de formação científica devemos dar atenção a 2 aspectos

diferentes: (1) aprendizagem de conceitos científicos e de factos científicos

acerca do funcionamento do corpo humano e (2) aprendizagem do método

científico e das suas capacidades de percepção da realidade objectiva que nos

rodeia. Alguns pós-modernos meio perdidos parecem contentar-se mais com

conceitos vagos que conduzam a uma espécie de medicina religiosa altamente

subjectiva do que a uma arte terapêutica objectiva e devidamente comprovada.

Qual, então, a importância da formação científica? Há vários pontos que

podemos analisar.

Em primeiro lugar, a medicina chinesa já não existe unicamente na China.

Entrou em contacto com o Ocidente e, em particular, com a ciência Ocidental.

O discurso que estas 2 não se devem misturar pois a medicina chinesa é

energética e a ciência Ocidental é reducionista é completamente falso. O

método científico pode ser usado no estudo da medicina chinesa. Podem até

ser necessárias condições especiais para a formulação de alguns estudos. Mas

o método científico continua a ser válido.

O empirismo da medicina chinesa indica que no meio de muitas afirmações

correctas podem encontrar-se muitas afirmações falsas. Só através de estudos

Page 2: A Importância Da Formação Científica Da Medicina Chinesa

controlados podemos dizer, com um mínimo de segurança. O que é verdadeiro

ou falso. E será necessário construir modelos teóricos verificáveis e credíveis

para tudo aquilo que consideremos verdadeiro. Mas para tal ser possível

precisamos de construir estudos científicos. E precisamos de os perceber.

Como podemos nós saber se a conclusão de um estudo é correcta ou não

quando não compreendemos a análise estatística dos dados? Daqui a

importância do ensino da estatística. Não se pretende que os alunos se

transformem em matemáticos competentes mas que tenham a capacidade de

analisar um estudo científico e a capacidade de formular outros estudos.

O conhecimento científico, neste caso, torna-nos melhores terapeutas uma vez

que nos dá capacidade de perceber o que está provado como válido e que

podemos usar nos nossos doentes, daquilo que não passa de afirmações

infundadas e, algumas vezes, completamente contraditórias.

Por outro lado, a ciência Ocidental permite estudar as diferentes aplicações e

explicações da medicina chinesa de forma credível e objectiva. Eu posso

afirmar que a acupunctura é usada para aliviar a dor (aplicação) e explicar que

isso se deve a alguns meridianos onde circula o Qi (explicação). Com o método

científico é-nos possível verificar se a acupunctura realmente funciona para o

tratamento da dor e se as explicações dadas para o seu funcionamento são as

correctas. O facto de funcionar não significa que as explicações dadas sejam

as melhores. Inúmeros estudos demonstraram a utilidade da acupunctura no

tratamento da dor mas nenhum conseguiu demonstrar a existência de

meridianos ou do Qi.

No entanto existem vários estudos que comprovam e explicam os efeitos da

acupunctura via sistema nervoso, principalmente. Sabendo que não existem

provas nenhumas a favor da existência dos meridianos e sabendo que esta

teoria é perfeitamente dispensável para explicar o funcionamento da

acupunctura, uma vez que existem explicações comprovadas e verificáveis

alternativas, não será preferível abandonar conceitos antigos, sem utilidade

cientifica, e abraçar conceitos novos verificados e objectivos? Cada vez mais

irão surgir explicações científicas acerca do funcionamento da medicina

Page 3: A Importância Da Formação Científica Da Medicina Chinesa

chinesa e estas explicações irão derrubar explicações tradicionais. Sem

formação científica será muito difícil aos praticantes de acupunctura

perceberem a diferença entre ciência e pseudo-ciência, entre uma prática

irresponsável e uma prática responsável, entre evoluir a medicina chinesa ou

estagnar na medicina chinesa.

Em todas as épocas existiram pessoas que deram contributos importantes para

o desenvolvimento da medicina chinesa. Agora chegou a nossa vez e o nosso

trabalho, de futuro, vai consistir em procurar explicações objectivas para os

resultados observados e forrar a medicina chinesa de credibilidade científica.

Fortalecer a medicina chinesa com uma forte base científica não se deve

confundir com eliminar a sua intervenção holista. As pessoas tendem a

confundir muito estes 2 pontos. A intervenção holista advêm da abordagem que

se faz do paciente, da capacidade de ler o seu quadro energético com os

sintomas físicos e psíquicos que o compõem. Confundir este aspecto crucial é

reduzir o holismo a meia dúzia de termos “energéticos” ou de crenças que nos

são agradáveis. Holismo não é filologia.

Em terceiro lugar, é incoerente desejar uma medicina chinesa legalizada, com

cursos homolgados e inserida no Sistema Nacional de Saúde sem praticantes

com formação científica. Como será possível comunicar com equipas médicas

ou de enfermagem, ou de fisioterapia se não compreendemos nada da

linguagem base dessas profissões? Se queremos ser uma profissão de saúde

activa e útil na sociedade civil temos de possuir a mesma linguagem que todas

as outras profissões de saúde.

É evidente que existem termos técnicos que são intrínsecos à medicina

chinesa e estranhos a todas as outras profissões de saúde como Vazio de Yin,

Humidade do Baço, etc… Mas, ao dialogar com outros profissionais, se

trocarmos esses termos pelos sintomas que os compõem, então, é possível

falar e compreender o que todos dizemos. Mas para isso precisamos de

conhecer a terminologia científica base da fisiologia médica e compreender o

seu significado (não vamos dizer que um paciente tem problemas nos seios

quando sofre de hiperplasia quística da mama).

Page 4: A Importância Da Formação Científica Da Medicina Chinesa

A comunidade chinesa de medicina chinesa tem vindo desde há muitos anos a

criar várias aproximações à medicina ocidental. Desta forma, novos pontos de

acupunctura foram descobertos (pontos extra e pontos gatilho), novas formas

de acupunctura foram desenvolvidas (crânioacupunctura, acupunctura com fio

de sutura, acupunctura com técnicas de cirurgia) e novos métodos de selecção

de pontos de acupunctura foram criados ou mais desenvolvidos (uso de pontos

gatilho, selecção de pontos de acordo com o sistema nervoso). O

reconhecimento da relação da acupunctura com o sistema nervoso levou a

uma evolução enorme no tratamento da acupunctura originando tratamentos

mais eficazes e credíveis que até aqui não existiam. Uma formação científica

sólida irá providenciar a medicina chinesa de novos tratamentos mais eficazes

e credíveis.

Em quarto lugar encontra-se o problema associado ao conhecimento científico

e ao uso de plantas medicinais. Até agora falámos unicamente da acupunctura.

No entanto a fitoterapia é o tratamento mais importante em medicina chinesa. E

encontra-se em franca expansão por todo o mundo. Mais de 50% da população

mundial trata-se com fitoterapia. Nos países desenvolvidos as pessoas cada

vez mais procuram a fitoterapia como método seguro, barato e eficaz, de

tratamento. Começam a empregar-se as biotecnologias de modo a produzir

plantas de valor terapêutico em larga escala sem alterar a sua constituição

bioquímica, de forma a poderem ser usadas com eficácia e segurança pelas

pessoas. No entanto surgem vários desafios à fitoterapia na medicina chinesa.

Apesar da medicina chinesa classificar os fitofármacos de acordo com sabores

e naturezas sendo, estas, formas de classificar sintomas, não pode fechar os

olhos ao facto desses efeitos clínicos poderem ser explicados via propriedades

farmacológicas. Isto, é claro, não inviabiliza o tipo de classificação usado em

medicina chinesa. Mas pode dar novas luzes sobre os efeitos farmacológicos

de determinadas plantas em grupos particulares de quadros clínicos.

No entanto, o problema que nos preocupa mais neste momento é o seguinte:

interacções farmacológicas entre fitoterápicos e remédios ocidentais. Já

Page 5: A Importância Da Formação Científica Da Medicina Chinesa

existem estudos, e muitos mais serão necessários, a mostrar que alguns

fitofármacos podem potencializar ou inibir os efeitos clínicos de determinados

remédios. Não podemos esperar ter uma profissão séria e responsável se não

soubermos quais dos nossos fitofármacos influenciam o tratamento médico ou

através de que processos celulares esses fitofármacos influenciam o

tratamento médico. Para isso precisamos de conhecimentos em fisiologia e

biologia celular.

Dentro da medicina nuclear existem estudos que demonstram a existência de

influência por parte de determinadas plantas em exames de diagnóstico como,

por exemplo, a marcação de eritrócitos. É errado da nossa parte fechar os

olhos a este problema e prescrever plantas ou fórmulas com plantas que vão

prejudicar a realização desse exame e, consequentemente, expor a pessoa a

radiação desnecessária e atrasar um diagnóstico médico essencial para o seu

tratamento. Mais um vez reparamos que a inserção da nossa arte no sistema

de saúde implica um contacto próximo com profissões de base cientifica e com

as quais é necessário falar em termos científicos.

Outro ramo de investigação muito importante que tem surgido, em particular na

Índia e China, é o estudo de plantas com efeitos radioprotectores. Uma vez que

não existem medicamentos satisfatórios para nos preservarem das radiações

começam a estudar-se fitofármacos. Muitos fitofármacos da medicina chinesa

já foram estudados. Uns mostraram capacidade de radioprotecção antes da

exposição à radiação e outros efeitos radioprotectores após a exposição. Isso

significa que a medicina chinesa pode vir a ter um impacto muito grande na luta

contra o cancro uma vez que possui um vasto arsenal de plantas com efeitos

radioprotectores e anti-cancerígenos.

Podemos ter acção na luta contra os efeitos secundários em pacientes

oncológicos sujeitos a radioterapia, por exemplo. Mas para isso precisamos de

uma boa formação em biologia celular e fisiopatologia médica. Por outro lado é

essencial a participação dos especialista de fitoterapia nesta área uma vez que

as plantas só devem ser prescritas em condições muito específicas. Não

vamos prescrever uma planta tónica do Yang a um paciente com plenitude

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calor só porque tem efeitos radioprotectores. Este exemplo demonstra como a

formação científica é extremamente necessária e não coloca em causa a

abordagem que fazemos do doente.

E assim, creio eu, conseguimos uma medicina chinesa individualizada pelos

seus princípios de diagnóstico, sustentada em princípios científicos e capaz de

intervir de forma rápida, eficaz e segura junto da população.