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ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA: A concepção do homem na história do Ocidente A espécie humana manifesta suas características essenciais em todas as épocas e lugares. Por características essenciais compreende-se a inteligência, vontade, liberdade, criatividade, engenhosidade, sociabilidade, abertura ao transcendente, trabalho, etc... Afirmar que uma pessoa que vive no século XXI é mais inteligente que a humanidade na pré-história é uma afirmação falsa. Afirmar que por possuir tecnologias como internet, aviões, satélites, meios de comunicação de massa, armas sofisticadas etc..., determina um desenvolvimento do cérebro do homem moderno maior que o dá pré-história é afirmar algo falso. A história demonstrou que faz parte de nossa espécie desenvolver conhecimento e transmiti-lo para as gerações seguintes, as quais aperfeiçoam o conhecimento adquirido repassando-o novamente. Desta maneira verifica-se uma tradição contínua de desenvolvimento e aperfeiçoamento do conhecimento. Um exemplo para ilustrar esta afirmativa: digamos que um bebe sobrevive a um naufrágio. Por um acaso, foi parar em uma ilha deserta e conseguiu sobreviver às diversas dificuldades que encontrou. Por não ter recebido nenhum tipo de formação, ele provavelmente viveria como alguém da pré-história ou como um animal. A humanidade demonstra capacidade de inventar ferramentas que possibilitem sua sobrevivência e desenvolvimento. Esta característica (o homo faber) permite a constatação de que o trabalho e o uso de tecnologia em seu exercício faz parte da essência do homem. A humanidade tende à beleza, à estética, ao belo (homo aestheticus) e é aberta ao transcendente (homo religiosus). A realização de suas potencialidades depende do convívio com os outros. Por isso, é possível afirmar que a pessoa somente se conhece e se desenvolve na medida em que convive com os demais (homo socialis). Diversas características presentes na espécie humana são presentes em outros seres vivos. Contudo, o conhecimento de nossa inteligência (homo sapiens) demonstra que há na humanidade elementos que a distingue como o raciocínio abstrato, introspecção, capacidade criativa, capacidade de resolver problemas, de produzir cultura e inová-la, de produzir fogo, vestir-se e desenvolver tecnologias. Além disso, a humanidade é a única espécie dotada de liberdade e de conhecer pela intuição, ou seja, ela é capaz de uma

ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

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ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA: A concepção do homem na história do Ocidente

A espécie humana manifesta suas características essenciais em todas as épocas e lugares. Por características essenciais compreende-se a inteligência, vontade, liberdade, criatividade, engenhosidade, sociabilidade, abertura ao transcendente, trabalho, etc...

Afirmar que uma pessoa que vive no século XXI é mais inteligente que a humanidade na pré-história é uma afirmação falsa. Afirmar que por possuir tecnologias como internet, aviões, satélites, meios de comunicação de massa, armas sofisticadas etc..., determina um desenvolvimento do cérebro do homem moderno maior que o dá pré-história é afirmar algo falso. A história demonstrou que faz parte de nossa espécie desenvolver conhecimento e transmiti-lo para as gerações seguintes, as quais aperfeiçoam o conhecimento adquirido repassando-o novamente. Desta maneira verifica-se uma tradição contínua de desenvolvimento e aperfeiçoamento do conhecimento. Um exemplo para ilustrar esta afirmativa: digamos que um bebe sobrevive a um naufrágio. Por um acaso, foi parar em uma ilha deserta e conseguiu sobreviver às diversas dificuldades que encontrou. Por não ter recebido nenhum tipo de formação, ele provavelmente viveria como alguém da pré-história ou como um animal.

A humanidade demonstra capacidade de inventar ferramentas que possibilitem sua sobrevivência e desenvolvimento. Esta característica (o homo faber) permite a constatação de que o trabalho e o uso de tecnologia em seu exercício faz parte da essência do homem. A humanidade tende à beleza, à estética, ao belo (homo aestheticus) e é aberta ao transcendente (homo religiosus). A realização de suas potencialidades depende do convívio com os outros. Por isso, é possível afirmar que a pessoa somente se conhece e se desenvolve na medida em que convive com os demais (homo socialis). Diversas características presentes na espécie humana são presentes em outros seres vivos. Contudo, o conhecimento de nossa inteligência (homo sapiens) demonstra que há na humanidade elementos que a distingue como o raciocínio abstrato, introspecção, capacidade criativa, capacidade de resolver problemas, de produzir cultura e inová-la, de produzir fogo, vestir-se e desenvolver tecnologias. Além disso, a humanidade é a única espécie dotada de liberdade e de conhecer pela intuição, ou seja, ela é capaz de uma compreensão que ultrapassa os limites dados pela lógica, sentidos e emoções.

O conhecimento de algumas das principais características humanas é importante, pois permite uma visão crítica da concepção do homem desenvolvida na filosofia. Diversos pensadores procuraram conhecer a identidade humana no decorrer da história. Neste estudo será apresentado as principais reflexões sobre a concepção do homem na idade clássica, média, moderna e contemporânea.

Os que primeiro se destacaram foram os filósofos gregos.

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1. A concepção clássica do homem (séc. VI a.C. – séc. VI d.C.)

A concepção clássica do homem desenvolve-se na cultura grega arcaica a partir do século VIII a.C. A reflexão sobre o homem possuía três linhas dominantes[1]:

· Linha teológica: Havia uma nítida distinção entre o mundo dos deuses e o mundo dos homens. Os gregos viam os deuses como imortais e felizes e os homens como mortais e infelizes.

· Linha cosmológica: O homem é capaz de admirar a ordem e a beleza do universo. A admiração (thauma), segundo Platão e Aristóteles deu origem a filosofia. As cidades e a vida social devem se inspirar nesta ordem. Por isso, os gregos deram origem à ciência do comportamento chamada Ética.

· Linha antropológica: A alma humana era vista pelos gregos em uma dupla dimensão: o lado apolíneo e o lado dionisíaco. O lado apolíneo conduz o homem ao pensar e agir de forma positiva. O lado dionisíaco às forças do eros, do desejo e da paixão. O tema da alma (psyché) era apresentado como uma realidade separada do corpo e que se reencarna várias vezes na história. A figura social ideal é a do herói (sábio, guerreiro, justo).

1.1 A concepção do homem na filosofia pré-socrática

Diógenes de Apolônia (499-428 a.C.) afirmava que o homem é superior aos outros animais. Segundo ele, o homem é capaz de contemplar os astros, de produzir tecnologia, através da linguagem é capaz de manifestar seu pensamento[2]. Provavelmente, foi o primeiro filósofo a apresentar a ideia do homem como um ser dotado de natureza corporal-espiritual, cuja natureza se manifesta na cultura por meio de suas obras[3]. A individualidade do homem, a semelhança do universo, é ordenada[4].

Os Pitagóricos afirmavam que “a estrutura matemática do mundo corresponde a estrutura matemática da alma (harmonia)”[5]. Os Sofistas contribuíram conceituando o homem como um animal racional[6].

Diversos filósofos contribuíram nesse período à reflexão sobre o homem. Contudo, Sócrates foi quem estabeleceu um marco que determinou uma nova visão sobre o homem.

1.2 O conceito de alma, segundo Sócrates

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O “humano” segundo Sócrates só pode ser compreendido a partir do princípio interior presente em cada homem, ou seja, a partir de sua “alma” (psyché). A alma é a dimensão interior, é a parte mais nobre do ser humano, sua essência, a sede da areté (excelência e virtude)[7]. Ela orienta a vida humana para o justo e o injusto.

1.3 A antropologia platônica

Platão (428-348 a.C.) estabeleceu um dualismo entre corpo e alma. Segundo ele, a alma é um “princípio de movimento”, ela é ordenada por um movimento profundo para o mundo das Ideias, uma realidade transcendente. Essa concepção o levou a afirmar a imortalidade da alma. O logos e o eros precisam ser equilibrados para a contemplação do Belo absoluto[8].

1.4 Antropologia aristotélica

Aristóteles (384-322 a.C.) afirma que o homem possui uma estrutura biopsíquica, é formado por psyche e soma. A psyche humana distingue-se dos animais devido à presença da racionalidade. O ser humano é um ser ético-político, pois o homem é essencialmente destinado à vida em comum na polis, na qual se realiza como ser racional[9]. O homem é compreendido como um ser de paixão (pathê) e desejo (órexis). Além dessas dimensões da psyché, segundo ele, existe a vertente irracional (alógôs)[10].

I. A CONCEPÇÃO CLÁSSICA DO HOMEM

A cultura clássica elaborou uma imagem do homem na qual são postos em relevo dois traços fundamentais: o homem como animal que fala e discorre (zôon logikón) e o homem como animal que político (zôon politikon). Esses dois traços estão, de resto, em estreita correlação, pois só enquanto dotado do logos o homem é capaz de entrar em relação consensual com seu semelhante e instituir a comunidade política.

A imagem do homem que a cultua arcaica grega oferece é rica e complexa para a cultura ocidental. Esta imagem do homem encontra um ponto de intersecçõa e convergência no tema do destino (moira), que oferece um fio condutor da visão arcaica à visão clássica do homem.

Na concepção do homem na filosofia pré-socrática é Diógenes de Apolônia (floruit entre 440 e 430 a.C.), é o primeiro pensador que tem a idéia do homem como estrutura corporal-espiritual, cuja natureza se manifesta na cultura por meio de suas obras. Ele é, pois, um ser ordenado finalisticamente em si mesmo e para o qual se ordena, de alguma maneira, a própria ordem do kósmos. Ma são os Sophistês que

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engloba o saber teórico e as habilidades práticas, revela que o homem e suas capacidades passam a sero objeto principal da filosofia.

Sócrates, na transição socrática, trata da alma (psyché) e "vida interior". A "alma" (psyché), segundo Sócrates, é a sede de uma areté (excelência ou virtude) que permite medir o homem segundo a dimensão interior na qual reside a verdadeira grandeza humana. É na "alma", que tem lugar a opção profunda que orienta a vida humana segundo o justo ou o injusto, e é ela, que constitui a verdadeira essência do homem, sede de sua verdadeira arete.

Portanto, na antropologia platônica encontra-se a relação do homem com o divino (tò theion) que se sobrepõe a todos e permanece como o motivo fundamental da antropologia platônica.Aristóteles celebra também no homem a capacidade de passar além das fronteiras de seu lugar no mundo e eleva-se pela teoria, à contemplação das realidades transcendentes e eternas.

Do fisicismo jônico, a investigação empírica da tradição da medicina e o intelectualismo finalista socrático-platônico surgem à idéia da psyché em Aristóteles como principio vital que é o ato ou a perfeição (enérgeia) de todo ser vivo e ao qual compete, com a psyché do Fedro platônico.

O homem é um ser composto (syntheton) de psyché e de sôma. A psyché é, portanto, a perfeição ou o ato (entelécheia) do corpo organizado, e essa é a sua perfeição. O homem se distingue de todos os outros seres da natureza em virtude do predicado da racionalidade: ele é um "animal racional", um zôon logikón. Ele é um zôon politikón por ser exatamente um zôon logikón, sendo a vida ética e a vida política arte de viver segundo a razão (katá tón lógon zen).

A antropologia helenística se manifesta pelas duas escolas: o Epicurismo e o Estoicismo que partem do mesmo pressuposto, ou seja, da submissão do homem ao logos como condição necessária para se alcança a eudaimonia (felicidade).

Epicuro diz que o homem é essencialmente, um ser-que-sente, e a sua lógica é a codificação de uma teoria sensista do conhecimento, segundo o qual o conhecimento humano começa e termina na sensação (aísthesis) que pode desdobrar-se em "antecipação" (prolípses) ou representações mentais e em sentimentos (pathé) de pena e prazer.

A escola estóica conheceu duas fases na época helenística, o Estoicismo antigo (séculos III-II a.C.) com Zenão de Cítio, os fundadores da escola, Cleanto e Crisipo, e o chamado Estoicismo médio (séculos II-I a.C.), com Panécio de Rodes e Possidônio de Apaméia, às quais, já na época romana, seguiu-se o chamado Estoicismo imperial, com Sêneca, Epíteto e Marco Aurélio.

No centro da antropologia estóica, está igualmente, como no Epicurismo, o problema do indivíduo, onde, trata-se fundamentalmente de definir as condições do seu "viver feliz" (eudaimonia). E entre estas obtém primazia aquelas que tornam o indivíduo independente ou assegura-lhe o senhorio de si mesmo (autárkeia).

O sistema estóico é também tripartido em Lógica, Física e Ética. O conceito fundamental do Estoicismo é o conceito de "natureza"(physis), principio universal e

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teológico, imanente a todos os seres e que os guia de acordo com a razão ou o logos. O sistema estóico segundo as três dimensões do conhecimento da verdade (lógica), do conhecimento da physis (Física) e do conhecimento do Fim (Ética).

A grande originalidade dos Estóicos que os afasta do antigo intelectualismo grego é a fusão, no homem, do passional e do intelectual, sendo a paixão considerada um juízo da razão e reservando-se assim ao Sábio o exercício verdadeiramente das paixões.

O neoplatonismo vai dar forma definitiva a uma das referências fundamentais do pensamento antropológico no Ocidente: dualismo subjetivo, alma sensível-alma inteligível, ao qual corresponde o dualismo objetivo, sensível-inteligível ou tempo-eternidade.

As linhas dominantes na formação da imagem do homem clássico são três: teológica ou religiosa, cosmológica e antropológica. A primeira dessas linhas põe em evidência a diferença entre o mundo dos deuses, seres imortais e bem aventurados, e o mundo dos mortais, que são efêmeros, infelizes e com ímpetos de orgulho (hybris) na tentativa de se igualarem aos deuses. Para uma tal atitude desmedida, a resposta dos deuses é o decreto implacável do destino (moira) que determina o fim trágico na vida dos mortais. Trata-se da situação apresentada pelo mito de Prometeu e que desperta a chamada sabedoria gnômica ou sapiencial cuja pregação tem como linha mestra a moderação (sophorosyne) traduzida em preceitos como os de "nada em excesso" e "conhece-te a ti mesmo".

A linha cosmológica da imagem do homem grego arcaico realça duas atitudes comuns às várias culturas antigas: a admiração e a contemplação da ordem do mundo. Entre os gregos, de acordo com Platão e Aristóteles, essas atitudes deram origem à Filosofia e ao estilo de vida teorética que os gregos assumem como sendo um de seus traços mais marcantes. Uma outra característica é a descoberta da correspondência entre a natureza (physis) e a ordem da cidade (polis) que deve ser instituída por leis justas. Essa correspondência será um dos motivos para a prática da ciência do agir humano (Ética), que terá uma profunda significação para a formação da ideia do homem formada do mundo ocidental. A linha cosmológica tem um ponto em comum muito importante com a linha teológica, uma vez que ambas contemplam o conceito de necessidade (anánke), inerente à ordem do mundo (kosmos), à qual deverão se submeter homens e deuses. Nessa perspectiva, um dos desafios permanentes da Filosofia será conciliar a necessidade cósmica e a liberdade humana.

Na linha antropológica, a condição humana traçada pelos gregos articula as experiências fundamentais dos homens com a relação dos homens com os deuses. Dentro de tal condição, a expressão mais conhecida é a oposição entre o apolíneo e o dionisíaco, importantes dimensões da alma grega. O apolíneo corresponde à presença do logos, lei cósmica que ordena todas coisas e capaz de trazer clareza ao pensamento e às ações. Já o dionisíaco representa o lado obscuro da alma, onde prevalecem as forças da paixão e do desejo (eros). No Banquete, Platão nos revela que uma das missões da Filosofia é a de encontrar o equilíbrio entre esses dois pólos. Outro tópico que a filosofia arcaica transmite à Antropologia Filosófica é o tema da alma que se desdobra em duas vertentes principais: a alma como sopro, dublê do

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corpo que, após a morte deste, passa a viver no mundo dos mortos, o Hades; e a representação herdada do orfismo que tem a alma como uma entidade que se separa do corpo e nele reencarna em variadas e sucessivas existências. A ideia de excelência (areté) é outra marca muito importante na visão arcaica do homem grego. Ela diz respeito à vida social e política e fixa-se na imagem do heroi contemplado com as virtudes para a guerra e para a missão civilizatória como fundador da cidade. Ao longo dos séculos, a ideia de areté passa a privilegiar a figura do sábio, um movimento que está relacionado ao declínio da aristocracia guerreira e a partir do qual a estrutura social da cidade se consolida por meio da participação democrática dos cidadãos. Às virtudes guerreira e política soma-se a virtude do trabalho nos campos, o esforço laborioso valorizado como um dos sustentáculos da pólis grega.

De acordo com o filósofo Henrique de Lima Vaz, o tema do destino (moira) é comum a todas as linhas de visão do homem na cultura grega arcaica. Dentro deste tema, elaboram-se como pensamentos o "pessimismo" e o "moralismo". O primeiro apresenta o homem como incapaz de vencer a inexorabilidade do destino, contra o qual mobiliza inutilmente suas energias (hybris), o que faz com que se revele toda a sua fragilidade e desamparo diante da moira. Já o moralismo torna predominante a concepção do homem como um ser responsável por seus atos e tenta definir o grau de ação sobre a realidade que o homem é capaz de produzir. Pode-se, a partir disso, atribuir méritos ou deméritos às atitudes individuais. As tragédias gregas retratam muito bem as duas concepções de mundo. Ésquilo é considerada um dos maiores exemplos da visão pessimista; Eurípedes, por sua vez, enquadra-se dentro da visão moralista. Em Sófocles estão presentes ambas as concepções, sendo uma das obras mais ilustrativas da fase de transição entre os dois pensamentos.

Questões e conclusões importantes.

As questões que o homem levanta a respeito de si mesmo podem ser consideradas tão antigas quanto a própria existência humana. A partir do século V a. C. os sofistas trouxeram o tema para a Filosofia que, a partir de então, jamais o abandonou. A Filosofia tornou-se um modo de refletir a respeito de nossa capacidade de obter conhecimento e de nossa forma de agir eticamente em relação aos outros e em relação ao mundo que nos cerca. Para Henrique C. de Lima Vaz, cabe à Antropologia Filosófica as tarefas de formular uma definição de homem capaz de abranger tanto os aspectos abordados ao longo dos séculos pela Filosofia quanto as descobertas mais recentes das ciências do homem; fundamentar o discurso da unidade dessa pluralidade, ou seja, fazer a justificação crítica da ideia de homem; e, por último, empreender a construção de um sistema filosófico que ponha em questão a pergunta essencial: "quem é o homem?".

O que justifica esta direção dada por Lima Vaz é, principalmente, o predomínio de uma visão multifacetada de homem que começou a surgir no século XVIII devido ao fato de o homem ter se tornado objeto de estudo de diversas ciências que começaram a se desenvolver. Diante de abordagens científicas que, muitas vezes, se mostram inconciliáveis entre si, nada parece mais desafiador que a busca de uma unidade humana que parece perdida. Na perspectiva histórica, a definição de uma imagem do homem também se torna problemática, uma vez que se revela uma justaposição das virtudes humanas clássica, cristã e moderna. As soluções para este

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dilema se desdobram numa abordagem naturalista, que toma a natureza material como horizonte de definição do humano e na abordagem culturalista, que privilegia a cultura como fonte de conhecimento do homem, contrastando as manifestações humanas e as da natureza. O predomínio de um desses dois pólos na elaboração de uma visão unitária de homem leva aos reducionismos.

A fenomenologia, que destaca a consciência como a instância suprema do humano, está entre os métodos contemporâneos que buscam a síntese da imagem do homem. Para Edmund Husserl, a categoria básica de tal método é a intencionalidade que estrutura a consciência. O aprofundamento das reflexões de Husserl por seus sucessores desembocou no Existencialismo que transpôs para um segundo plano a necessidade de definição de uma essência humana. Para os existêncialistas, a essência do que somos só existe em função da existência, ou seja, é posterior a esta. Tal perspectiva considerada pós-metafísica, alarga os horizontes da responsabilidade que temos pela condução de nossas vidas uma vez que, ao invés de confiarmos em uma essência que nos é garantida a priori, por natureza, constatamos o real valor de nossa capacidade de fazer escolhas para realizarmos nosso projeto de ser. Para os fenomenólogos, o homem pode ser definido como um ser "para-si": é capaz de inteirar-se a respeito de si e das coisas e, ao inteirar-se, relacionar-se com o mundo, agir, afetar e ser afetado, conhecer e dar-se a conhecer, ter sentimentos de angústia, alegria ou desespero. Já as coisas não se dão conta de sua existência, são meros resultados de processos e forças atuantes no universo, são seres "em si".

I. A CONCEPÇÃO CLÁSSICA DO HOMEM

A cultura clássica elaborou uma imagem do homem na qual são postos em relevo dois traços fundamentais: o homem como animal que fala e discorre (zôon logikón) e o homem como animal que político (zôon politikon). Esses dois traços estão, de resto, em estreita correlação, pois só enquanto dotado do logos o homem é capaz de entrar em relação consensual com seu semelhante e instituir a comunidade política.

A imagem do homem que a cultua arcaica grega oferece é rica e complexa para a cultura ocidental. Esta imagem do homem encontra um ponto de intersecção e convergência no tema do destino (moira), que oferece um fio condutor da visão arcaica à visão clássica do homem.

Na concepção do homem na filosofia pré-socrática é Diógenes de Apolônia

(floruit entre 440 e 430 a.C.), é o primeiro pensador que tem a idéia do homem como estrutura corporal-espiritual, cuja natureza se manifesta na cultura por meio de suas obras. Ele é, pois, um ser ordenado finalisticamente em si mesmo e para o qual se ordena, de alguma maneira, a própria ordem do kósmos. Ma são os Sophistês que engloba o saber teórico e as habilidades práticas, revela que o homem e suas capacidades passam a sero objeto principal da filosofia.

Sócrates, na transição socrática, trata da alma (psyché) e "vida interior". A "alma" (psyché), segundo Sócrates, é a sede de uma areté (excelência ou virtude)

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que permite medir o homem segundo a dimensão interior na qual reside a verdadeira grandeza humana. É na "alma", que tem lugar a opção profunda que orienta a vida humana segundo o justo ou o injusto, e é ela, que constitui a verdadeira essência do homem, sede de sua verdadeira arete.

Portanto, na antropologia platônica encontra-se a relação do homem com o divino (tò theion) que se sobrepõe a todos e permanece como o motivo fundamental da antropologia platônica.Aristóteles celebra também no homem a capacidade de passar além das fronteiras de seu lugar no mundo e eleva-se pela teoria, à contemplação das realidades transcendentes e eternas.

Do fisicismo jônico, a investigação empírica da tradição da medicina e o intelectualismo finalista socrático-platônico surgem à idéia da psyché em Aristóteles como principio vital que é o ato ou a perfeição (enérgeia) de todo ser vivo e ao qual compete, com a psyché do Fedro platônico.

O homem é um ser composto (syntheton) de psyché e de sôma. A psyché é, portanto, a perfeição ou o ato (entelécheia) do corpo organizado, e essa é a sua perfeição. O homem se distingue de todos os outros seres da natureza em virtude do predicado da racionalidade: ele é um "animal racional", um zôon logikón. Ele é um zôon politikón por ser exatamente um zôon logikón, sendo a vida ética e a vida política arte de viver segundo a razão (katá tón lógon zen).

1.5 Antropologias da Idade Helenística (séc. III a I a.C.)

Duas escolas se destacaram durante a época helenística: o epicurismo e o estoicismo. A antropologia de Epicuro é rigorosamente materialista[11]. O homem é um ser que sente. O conhecimento humano começa e termina nas sensações. Segundo ele, a psyché é um agregado de átomos que se dissolve com a morte. A finalidade da vida humana é o prazer. Por isso, o homem deve ser sereno de ânimo, não ter temor aos deuses, ter sabedoria para distinguir os verdadeiros prazeres, desvalorizar a vida política e cultivar amizades[12].

O Estoicismo buscava, assim como o Epicurismo, refletir sobre o “viver feliz”. Os filósofos dessa escola refletiram sobre as paixões como obstáculo ou auxílio para a virtude[13]. Eles afirmaram que os homens são iguais diante da natureza universal e criaram o conceito de lei natural, sobre o qual se funda o direito natural[14].

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1.6 A antropologia neoplatônica

O neoplatonismo abarca um longo período (séc. III a VI d.C). Durante esse período se unia filosofia e religião. Plotino foi um dos principais pensadores desse período. Plotino pensava o homem em sua unicidade, a liberdade é expressa na transcendência da psyché sobre a physis, a manifestação plena da sociabilidade está na vida virtuosa em sua comunhão com os semelhantes e com Deus[15].

2. A concepção cristão-medieval do homem (séc. VI ao XV d.C)

A concepção cristão-medieval era teológica. Contudo, permanecia fundamentada muitas vezes em conceitos oriundos da filosofia grega. A Bíblia e a filosofia grega eram os principais instrumentos utilizados nesse período.

2.1 Concepção bíblica do homem

Embora possua forte ligação com a antropologia grega, a concepção bíblica parte da linguagem da revelação. Por isso, o ponto de partida pressupõe a origem divina do homem.

Os principais aspectos da antropologia bíblica:

· A unidade do homem: a humanidade é imagem de Deus, chamada a viver em comunhão com ele. Esta comunhão pode ser acolhida ou não. A salvação do homem é um dom dado a quem a acolhe.

· Jesus é o arquétipo da visão sobre o homem: Para a fé cristã a humanidade é entendida a partir da pessoa de Jesus Cristo.

· A unidade de ser: a visão cristã apresenta o homem como uma triconomia: soma, psyche e pneuma (1Ts 5,23).

2.2 Concepção patrística do homem

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O gnosticismo opôs-se ao cristianismo afirmando o dualismo platônico, segundo o qual a carne é uma realidade má. No entanto, a patrística firmava-se na Encarnação afirmando a importância do “fazer-se carne” (Jo 1,14)[16].

O primeiro grande teólogo que escreveu sobre a concepção cristã do homem foi Santo Irineu de Lião. Em sua obra Adversus Haereses, afirmou que o homem é reflexo da glória de Deus[17]. Santo Agostinho apresentou o tema da liberdade e do livre-arbítrio. Afirmou que Deus está presente como interior e superior ao homem[18]. Apresentou o tema do pecado original e o da teologia da graça presentes na antropologia paulina. O principal tema antropológico abordado por Agostinho foi sobre o homem imagem de Deus. O teólogo apresenta a ressurreição de Cristo como antecipação da promessa da restituição da unidade do homem ferida com o pecado original. O homem é um ser itinerante, cuja vida é ordenada para Deus, por isso, há uma inquietação constante no coração do homem[19].

2.3 Concepção medieval do homem

A influência da filosofia grega, da patrística e de Santo Agostinho predominou nos autores medievais. Os escritos de Agostinho influenciaram fortemente até o século XII e os escritos de Aristóteles a partir do século XIII. A principal síntese da antropologia medieval se encontra em Santo Tomás de Aquino (1225-1274).

3. A concepção moderna do homem (séc. XV a XVIII)

Na modernidade surgem diversas antropologias. A história da concepção moderna do homem passa por uma sucessão de perfis filosóficos.

3.1 A concepção do homem no humanismo

A Renascença (séc. XIV ao XVI) é conhecida como idade do humanismo. A literatura antropológica desse período é muito vasta. O tema da dignidade foi muito abordado durante a renascença.

O humanismo rompe com a visão teocêntrica e inaugura uma antropologia antropocêntrica, onde o homem é considerado em si mesmo. O homem é visto como o centro da criação, possuidor de uma dignidade natural, inerente à sua própria natureza, um microcosmo que reproduz em si a harmonia do cosmo[20]. Portanto, este período retoma os ideais gregos e romanos que exaltam o homem em sua plenitude e valorizam a vida terrena[21].

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O tema do homem universalis[22] surgiu neste período com as grandes navegações. O principal problema com a descoberta de novos povos era sobre a unidade e igualdade da natureza humana. Contudo, esta questão possuía uma forte conotação política[23].

A antropologia da Renascença rompe com a imagem medieval cristã do homem e inaugura a imagem racionalista do homem que prevalece nos séculos XVII e XVIII.

3.2 A concepção racionalista do homem

O tema do homem racional presente na filosofia grega é retomado a partir do séc. XVII em uma nova perspectiva. O ser humano e a vida passam a serem explicadas à luz do mecanicismo[24].

René Descartes (1596-1650) estabelece-se uma visão dualista do ser humano. O espírito, pensamento que pensa a si mesmo e que oferece consciência de si, está em oposição ao corpo-máquina e à natureza enquanto um agregado de objetos sem alma[25].

O empirismo inglês (séc. XVII) foi uma importante versão do racionalismo. John Locke (1632-1704) foi seu principal representante. A antropologia de Locke traçou a imagem do ser humano que prevaleceu nos séculos XVIII e XIX[26]. Segundo ele, o que distingue o homem é o trabalho de seu corpo e a obra de suas mãos, cujo produto, incorporado ao Estado lhe oferece uma propriedade[27]. O indivíduo e Deus são os únicos soberanos na sociedade. Nela o indivíduo encontra sua autonomia no isolamento de sua vida privada[28].

3.3 A ideia do homem na época da Ilustração

O movimento conhecido como idade da Ilustração estende-se de 1680 a 1780. Ele surgiu com a antropologia de Locke e com o mecanicismo de Newton. Os ideais da Ilustração influenciaram a política, filosofia, religião, ciência, literatura, arte. A partir do século XVIII o “espírito” da Ilustração passa a ser uma característica da civilização ocidental[29]. A Razão passou a ser encarada como infalível, a história passou a ser analisada a partir da noção de progresso da Razão. A tarefa do homem é levar a termo as obras da Razão[30].

O termo humanidade recebeu um significado nitidamente secularizado. Lima Vaz comenta:

A compreensão do homem que a Ilustração tem em vista não dá primazia à sua relação com o divino ou com Deus, como nas antropologias clássica ou cristão-

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medieval. Nela ocupa o lugar central a relação com os outros homens e a assunção dos indivíduos na majestosa hipóstase da Humanidade, que A. Comte divinizará[31].

Voltaire, Diderot, Espinoza, Gusdorf foram alguns dos principais pensadores desse período. O ideal revolucionário marcou profundamente esta época que visava uma nova ordem mundial. A Revolução Francesa encarnou radicalmente os ideais da Ilustração[32]. A Antropologia como ciência se estabelece neste tempo. O ser humano passou a ser analisado em seu contexto geográfico e cultural.

4. As concepções do homem na filosofia contemporânea

A designação filosofia contemporânea abarca os séculos XIX e XX.

4.1 A concepção do homem no Idealismo alemão

O Romantismo foi um movimento de sensibilidade e ideias que foi se formando ao longo do século XVIII. Ele deve ser compreendido em suas origens para que seja possível compreender a concepção do homem no Idealismo alemão.

Os autores da corrente pré-romântica eram resistentes às ideias iluministas mecanicistas de Newton e empiristas de Locke. Enfatizavam a primazia do sentimento sobre a razão. Jean Jacques Rousseau (1712-1778) foi um dos representantes desse movimento. Desenvolveu uma antropologia que se opõe tanto à antropologia clássica de tipo platônico, quanto à antropologia cristão-medieval. Ele rejeita toda forma de transcendência, a cultura e a moral existente[33].

Herder em sua antropologia afirmava que o homem é um ser de linguagem, a qual é a própria forma humana da racionalidade e não um dom divino[34]. Segundo ele, o homem se distingue do animal, pois enquanto os animais são presos ao mundo circundante do instinto, o homem é aberto infinitamente ao mundo propriamente humano[35].

As ideias filosóficas presentes no Romantismo foram formuladas pelos filósofos do Idealismo alemão. Hegel, foi um dos principais pensadores idealistas.

4.2 A concepção hegeliana do homem

Page 13: ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

Hegel, dentre as diversas contribuições à concepção do homem na idade contemporânea, vê na história o “progresso na consciência da liberdade”, ou seja, a humanidade manifesta cada vez mais o seu ser livre[36].

Conclusão

O presente estudo se propôs apenas a elencar algumas das principais reflexões a respeito da concepção do homem na humanidade. Contudo, a partir da panorâmica realizada é possível identificar a constante secularização da imagem humana após o período do Iluminismo. O homem torna-se cada vez mais concebido em seu aspecto material. Destaca-se o trabalho, o homem máquina, a busca pelo prazer, a liberdade e racionalidade que se manifesta na produção técnica e científica. Contudo, as afirmativas sobre o homem atual não são capazes de negar absolutamente sua dimensão psíquica e espiritual. Para a teologia e para a fé, o homem é dotado de uma unidade de corpo e alma criada à imagem e semelhança de Deus. A humanidade é dotada de racionalidade, pois participa da glória de seu criador, é dotada de liberdade para acolher a comunhão com ele neste mundo e na vida eterna. Além disso, é capaz de amar, pois somente o amor é capaz de conduzir o convívio humano à maturidade e dignidade a qual é chamado.

BIBLIOGRAFIA

LANDMANN, Michael. De Homine. Der Mensch im Spiegel seiner Gedanken, 1962.

VAZ, Henrique Lima. Antropologia Filosófica. V.1. São Paulo: Edições Loyola, 2004.

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MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da Filosofia. Dos pré-socráticos a Wittgenstein. 13ª Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010.

ROBLE, Odilon. Conhecimento do homem, da Natureza e da Sociedade. Curitiba: IESDE, 2009.

GUSDORF, Georges. Les sciences humaines et la pensèe occidental. Les origins des sciences humaines. II. Paris: Payot,1967.

TOTARO, Francesco. Non di solo lavoro. Ontologia della persona ed etica del lavoro nell passaggio di civiltà. Milano: Vita e Pensiero, 1998.

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[1] VAZ, Henrique Lima. Antropologia Filosófica, 20-23.

[2] Cf. M. Landmann, De Homine, 53-64.

[3] Cf. VAZ, Henrique Lima. Antropologia Filosófica I, 24.

[4] Cf. Idem, 25.

[5] Ibidem, 25.

[6] Cf. Idem, 27.

[7] Cf. Idem, 28.

[8] Idem, 30-32.

[9] Cf. Idem, 36-38.

[10] Cf. Idem 39.

[11] Cf. Idem, 41.

[12] Cf. Ibidem, 41.

[13] Cf. Idem, 43.

[14] Cf. Idem, 44.

[15] Cf. Idem, 47.

[16] Cf. Idem, 53.

[17] Cf. Irineu, Adversus Haereses, Livro III.

[18] Cf. VAZ, Cláudio Henrique Lima. Antropologia Filosófica, I, 55.

[19] Cf. Idem, 57.

[20] Cf. MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da Filosofia. Dos pré-socráticos a Wittgenstein. 13ª Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010, 144

[21] Cf. ROBLE, Odilon. Conhecimento do homem, da Natureza e da Sociedade. Curitiba: IESDE, 2009, 55.

[22] Cf. GUSDORF, Georges. Les sciences humaines et la pensèe occidental, II, 307-329.

[23] Cf. VAZ, Cláudio Henrique Lima. Antropologia Filosófica, I, 70.

[24] Cf. Idem, 71.

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[25] Cf. DESMOND, William. A Filosofia e seus outros modos do ser e do pensar. São Paulo: Edições Loyola, 2000, 123.

[26] Cf. VAZ, Cláudio Henrique Lima. Antropologia Filosófica, I, 79.

[27] Cf. TOTARO, Francesco. Non di solo lavoro. Ontologia della persona ed etica del lavoro nell passaggio di civiltà. Milano: Vita e Pensiero, 1998, 57.

[28] Cf. VAZ, Cláudio Henrique Lima. Antropologia Filosófica, I, 80.

[29] Cf. Idem, 85-86.

[30] Cf. Ibidem, 86.

[31] Idem, 88.

[32]Cf. Ibidem, 88.

[33] Cf. Idem, 102.

[34] Cf. Ibidem, 102.

[35] Cf. Idem, 103.

[36] Cf. Idem, 107.