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Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012.
“Escolhei a vossa idade”: aproximações entre corpo, embelezamento e temporalidades na
cidade de Fortaleza nos anos 1920
LUCIANA ANDRADE DE ALMEIDA∗
Eu me resignei a meu corpo.
Simone de Beauvoir, La femme rompue
Eros é o mais belo, e apresso-me a dizer por qual motivo:
antes de mais nada, caro Fedro, por ser o mais jovem dos deuses
e dessa qualidade ele próprio se encarrega de ministrar-nos uma
prova evidente: é a de que fugindo, evita ser alcançado pela
velhice, que inegavelmente é em si mesma rápida, como se
depreende do fato de vir a nós mais depressa do que deveria.
Eros, de conformidade com sua própria natureza, sente
verdadeiro ódio à velhice e não suporta sua vizinhança, nem
mesmo a grande distância.
Platão, O Discurso de Agatão em O Banquete
“QUE IDADE TEM A SENHORA?”, provoca, em letras grandes, o anúncio da
Pomada Onken, em 19281. Em seguida, o texto recomenda: “Escolhei a vossa idade antes de
responder. E isso consiste numa questão de apresentar excellente pelle que representa
mocidade. USE, POIS, A Pomada Onken. Valiosa descoberta allemã”. O rosto, os braços, o
colo, as mãos e o pescoço devem ser massageados com o produto, que os livraria das ameaças
à aparência jovial, como “sardas, rugas, espinhas, por mais rebeldes que sejam”. A pomada é
“empregada diariamente por milhares de senhoras da alta sociedade brasileira, argentina,
allemã e norte-americana, que deslumbram pela sua sedutora belleza”.
Nesta propaganda, a frase “Escolhei a vossa idade” convida a senhora a exercer um
controle sobre as marcas do tempo e da vida inscritas em seu corpo. Direcionado
∗ Doutoranda em História na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), com orientação da Profª Drª Denise Bernuzzi de Sant’Anna. E-mail: [email protected]. 1 Fortaleza, O Nordeste, 5 de julho de 1928.
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Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012.
explicitamente às mulheres, coloca como opção o prolongamento da juventude, que adquire
nas entrelinhas a forma de uma responsabilidade. É construída a noção de que tanto a velhice
quanto a feiúra não são mais uma condenação inescapável, mas algo que pode ser revertido –
se a pessoa tiver vontade e meios para tal.
Ao mesmo tempo, a propaganda traz elementos que ajudam a compreender a noção de
beleza e fealdade na Fortaleza dos anos 1920, estabelecendo uma relação entre mocidade e
beleza de um lado e, de outro, velhice, sardas e rugas. A idade sobressai como fator de
distinção social: o objetivo era se parecer com as senhoras modernas da alta sociedade
brasileira e de países como Argentina ou Alemanha. Sem falar das atrizes de cinema.
O primado do rosto nos anos 1920 está relacionado ao fascínio pelo semblante das
atrizes de filmes mudos. E o cinema, como define Sevcenko, “não explica nem persuade, ele
seduz” (1998:600). A grande tela ampliou o rosto2 de uma forma jamais vista, destacando sua
expressividade e legando aos “membros inferiores” um lugar de menor destaque. As estrelas
eram feitas de luz na tela do cinema, mas também de um rosto liso e jovial, que parecia
aglutinar desejos e anseios coletivos, tomadas de uma aura deificada. “O corpo é o rosto, é o
que identifica e nos diferencia dos outros. Trata-se de um dos dados mais significativos da
modernidade”, sentencia Le Breton (2011:46). Segundo o autor, “A apreensão pelo olhar faz
do rosto do outro o essencial de sua identidade, o enraizamento mais significativo de sua
presença. É sempre pela avaliação do rosto que começa o encontro entre os atores”
(2011:158). Por isso, nada de marcas e relevos indesejados, que traem a uniformidade
desejada da pele e a tornam algo indefinido, que escapa das normas3.
Olhar na modernidade
A proposta desta comunicação é refletir sobre as múltiplas relações entre corpo e
envelhecimento, articuladas às noções de beleza e fealdade, percebidas na imprensa que
circulava entre as classes altas e médias da cidade de Fortaleza nos anos 1920. Para uma
história da velhice, Philippe Ariès aponta duas abordagens: uma que fale de seus papéis reais
na sociedade e outra de suas representações sociais (1983:47). Ao percorrer o segundo
caminho, este texto reúne propagandas, imagens, crônicas e artigos opinativos encontrados no
2 Cf. MACIEL, Ana Carolina de Moura Delfim. Encantamento do rosto. Poses e retratos de cinema. Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Sér. v.18. n.1. p. 179-205. jan.- jul. 2010. 3 Sobre este tema da pele, conferir o artigo de SANT’ANNA, 2001.
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Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012.
jornal O Nordeste e nas revistas ilustradas Ba-Ta-Clan, A Jandaia e Ceara Illustrado4, com o
intuito de pensar sobre as formas como o envelhecimento é enunciado na imprensa e a
diversidade contida nesses discursos5.
Estudar a história da beleza, da feiúra e do corpo ou, melhor dizendo, fragmentos
dela, ganha relevância não somente por acionar importantes questões referentes aos mais
variados aspectos da vida urbana, aos movimentos da invenção do cotidiano – em especial
aqueles que dizem respeito aos sentidos, às sociabilidades, aos produtos e estabelecimentos
ligados ao universo da beleza. Para além disso, o estudo dos corpos que focaliza a beleza e a
feiúra aqui proposto constitui desafio extremamente oportuno por viabilizar a compreensão
das invenções das aparências, bem como historicizar práticas e ritos relacionados ao bem-
estar corporal e aos cuidados de si.
A este respeito, pois, cumpre atentar para os trânsitos ininterruptos dos corpos na
cidade, suas imagens, seus movimentos, gestos e posturas. Essa atitude metodológica implica
em acompanhar a fabricação de sensibilidades, a demarcação de tolerâncias e intolerâncias e,
ainda, a produção das distâncias e assimetrias entre beleza e feiúra, saúde e doença, juventude
e velhice, fragilidades e potências corporais e outros processos que, participando fortemente
da elaboração da vida de todos os dias das pessoas comuns, nos colocam a par de sentimentos,
angústias, anseios e sonhos que habitavam a capital cearense no começo do século XX.
Desde o século anterior, o processo de remodelação de Fortaleza reelabora
simultaneamente a cidade e os corpos, regido pelas promessas de modernidade. Relacionada
ao crescimento e à transformação de si e do mundo, ela suscita, em linhas gerais, a busca
incessante pela novidade, a crença na técnica e no progresso inevitável e também incertezas e
ambiguidades, coações e liberações, em muitos casos inéditas. Exigem-se mais dinamismo,
4 O jornal O Nordeste, fundado pela Liga Católica em 1922, era lido pelo padre durante a missa e o único jornal conservador católico que contava com grande aceitação entre o círculo letrado. As revistas circularam entre os ricos de Fortaleza em meados dos anos 1920, com linhas editoriais convergentes em alguns pontos. Em geral, divulgavam pequenas notícias locais e traduzidas sobre assuntos variados, um pouco de literatura, opiniões, aniversários e viagens de pessoas importantes, propagandas, discussões sobre a cidade, notas com concursos variados, que julgavam desde a beleza das mulheres até o melhor jornalista ou o melhor poeta cearense. A revista Ceará Illustrado, criada em 1925 e vendida a 1$000, apresentava-se como semanário independente, mais literário que propagandístico. Ba-Ta-Clan foi fundada em 1926 – começou custando $400, mas chegou a 1$000 – voltada ao público feminino, publicada aos sábados e de propriedade da Empreza Cearense de Annuncios, com uma proposta quase exclusiva de propagandas. Por último, A Jandaia, fundada em 1924, revista de arte, literatura e atualidades, de caráter mais frívolo, e publicada semanalmente, com valor de capa de $500 a 1$500. 5 Ao pensar em discursos, parto das formulações de Michel Foucault, pressupondo que toda sociedade engendra discursos que, no entanto, têm sua produção controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos, cuja função seria evitar seus poderes e perigos. Cf. FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 8° ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999; __________. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997; __________. A Ordem do Discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996.
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Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012.
mais higiene, saúde e aparências renovadas, tanto para o corpo quanto para o espaço urbano,
deixando o provincianismo e o atraso para trás.
Novos equipamentos e símbolos6 materializam o progresso e proporcionam aos
habitantes da cidade diversas experiências de socialibilidade, visibilidade e movimento. A
avaliação mais detalhada das aparências pode ter sido promovida, em parte, por essa
configuração que a cidade começa a adquirir. A fluidez pretendida nos deslocamentos, as
praças, o teatro, os cinemas, as lojas que aos poucos ganham vitrines transparentes e outros
espaços de convivência favorecem um constante emprego do olhar, que Le Breton define
como “o sentido hegemônico da Modernidade” (2011:161).
O espaço e as temporalidades, considerados aqui experiências históricas, da
contemplação ajudam a compor a noção de mundanismo. Nas palavras de Véronique
Nahoum-Grappe,
(...) é <<mundano>> todo espaço social onde os corpos sociais ou individuais se
colocam como espetáculo a eles mesmos: uma rua, um lugar público, uma sala de
estar, o teatro - contanto que nos melhores lugares -, o café, a nave de uma igreja, a
superfície da imagem etc. Todo espaço social pode ser mundano e o tempo é
utilizado para examinar, para olhar entre si: tempo da percepção oblíqua (de um
meio segundo a um meio minuto), tempo mais longo do exame visual. O tempo
mundano não é o tempo de trabalho, mas pode ser intercalado por pausas (<<
levantar o nariz >>) ou lhe suceder. Consequentemente, o espaço-tempo mundano
não pertence a um grupo social em particular. Todo grupo produz o espaço mundano
e, portanto, suas normas estéticas de dever-ter-o-ar-de-ser, uma dimensão <<
socializada >> da identidade (1995:16, tradução minha)7.
Imagens de corpos desejáveis – e sempre jovens – se multiplicam, expostas no cinema,
na propaganda, nas fotografias, nos espelhos das penteadeiras. Além disso, é “chic” aderir às
6 Praças são embelezadas entre 1902 e 1903 (como as do Ferreira, a Marquês do Herval e a da Sé) e redimensionadas com a chegada dos automóveis (1909), o Theatro José de Alencar é construído (1910) – contemporâneo ao projeto de abastecimento de água e esgoto, que só é concluído em 1920 –, a luz e os bondes elétricos aparecem com a vinda da Ceará Tramway Light and Power (1913) e dois grandes cinemas chegam à cidade (Majestic e Moderno, de 1917 e 1922, respectivamente). Cf. PONTE, 2001. 7 No original: “est « mondain » tout espace social où les corps sociaux ou individuels se donnent en spectacle à eux-mêmes : une rue, une place publique, un salon, la salle de théâtre autant que la scène, la terrasse du café, le couloir d’une usine, la nef d’une église, la surface de l’image, etc.. Tout espace social peut être mondain si le temps est pris de s’examiner (grifo meu), de se regarder entre soi : temps bref de la perception oblique (d’une demi-seconde à une demi-minute), temps plus long de l’examen visuel. Le temps mondain n’est pas le temps de travail mais il peut s’y intercaler lors des pauses (« lever le nez ») ou lui succéder (le bal). Par conséquent l’espace-temps mondain n’est pas le fait d’une couche sociale particulière. Tout groupe produit de l’espace mondain et donc ses normes esthétiques du devoir-avoir-l’aird’être, vers quoi le paraître tend, c’est-à-dire la dimension « socialisée » de l’identité”.
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Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012.
novas danças aceleradas (como o Charleston, que se tornava apreciado em especial pelos
ricos), aos esportes (a exemplo da ginástica sueca, instituída pelo Governo do Estado no final
da década de 1910 nos grupos escolares8, e outros métodos de trabalho corporal), aos banhos
de mar e a toda uma sorte de discursos médicos e higienistas, percebidos nos jornais e
revistas. Reunidos, todos esses elementos indicam o crescente interesse e o valor, inclusive do
ponto de vista comercial, que o corpo jovem, ágil e saudável desperta.
Uma série de condições sociais, culturais e materiais possibilita novas formas de
percepção de si e do outro. Nos concursos de beleza, partes do corpo, comportamentos e
gestos, especialmente os femininos, são mais avaliados, embora os critérios nem sempre
sejam bem definidos. A características que seriam objeto de julgamento variam, dos olhos aos
cabelos, passando pela estetização dos movimentos, do vestuário, da silhueta (VIGARELLO,
2006:154). A urbanização porta regras de civilidade, roupas, cuidados e trabalhos corporais a
serem seguidos por quem almeja distinção social.
É nesse processo de modernização da sociedade, nas primeiras décadas do século XX,
que as etapas da vida são diferenciadas de modo mais especializado e a ideia do
envelhecimento sofre uma sensível transformação cultural e social. A associação positiva da
velhice com a experiência e a sabedoria perde importância para um imaginário que a relaciona
com a feiúra e a doença. A definição dos lugares e das funções de cada idade também se torna
mais precisa, bem como as expectativas quanto ao vestuário e a aparência.
A estabilização das categorias etárias deu-se ao longo do século XIX, de modo que,
no século XX, pôde-se observar maior uniformidade no interior dos grupos etários,
marcação razoavelmente precisa da transição entre diferentes idades e
institucionalização de ritos de passagem, como o ingresso na escola e na
universidade e a aposentadoria (Hareven, 1995). Essa estabilização favoreceu a
formação de identidades etárias que passaram a definir, por meio de características
de conduta, crenças, hábitos corporais e ideais de satisfação, a experiência de
“habitar” cada uma dessas etapas da vida. De fato, ser criança, adolescente ou adulto
constitui grande parte da identidade dos sujeitos modernos. A crescente
institucionalização das etapas da vida e o processo de identificação dos sujeitos com
as categorias etárias atingiram praticamente todas as esferas da vida social, fazendo-
se presentes no espaço familiar, no domínio do trabalho, nas instituições do Estado,
no mercado de consumo e nas esferas de intimidade. (SILVA, 2008:157)
8 Fortaleza, Almanach do Ceará de 1920.
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Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012.
Diferente de hoje, amenizados com expressões como “terceira idade” ou “melhor
idade”, o velho e a velhice nos anos 1920 são pronunciados. São objeto do discurso. Contudo,
o corpo envelhecido não cessa de ser criticado e temido. Uma angústia suscitada, em grande
parte, pelo saber médico que circula no período.
O medo da velhice é o argumento utilizado em algumas propagandas das Pilulas de
Foster. Em um anúncio, o chamariz é o título “Receita para conservar a mocidade”, seguido
do texto: “Nada nos envelhece tanto como ter um aspecto doentio. Essa é a triste condição de
quem soffre de rins fracos e anda encurvado, gemendo com dores nas cadeiras, com
rheumatismo (...)”9. Outro anúncio das Pilulas de Foster chama a atenção do leitor com as
frases: “Coitadinha! Parece uma velha!”, para em seguida elencar os “malefícios de um
sangue envenenado” associados à ideia de velhice. Devido à “fraqueza renal”, a pessoa
sofreria de “dores de cabeça, insomnia, inchação, rheumatismo, dores lombares, inflammação
da bexiga e tantos outros males”10.
Figura 1 - O Nordeste, 25 de setembro de 1928
Na imagem, duas mulheres jovens e em pé comentam a postura inadequada e a
aparência curvada da senhora sentada, com um “aspecto doentio” que destoa do ideal de
9 Fortaleza, O Nordeste, 4 de setembro de 1928. 10 Fortaleza, O Nordeste, 25 de setembro de 1928.
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Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012.
verticalidade do corpo e do padrão estético da “linha” – cultivado na moda e por aqueles que
praticavam exercícios físicos e disciplinavam seus movimentos11.
A idade que elas mostram e a idade que eles sentem
Tia Angélica, que dá nome ao conto de Julio Dantas, publicado em 1925 na revista
Ceará Illustrado, carrega os traços da velhice e é uma incômoda lembrança da passagem do
tempo, do avanço silencioso e inevitável em direção à morte. “Devia ter sido bonita. (...) A
sua figura, majestosa na mocidade, encarquilhara, ressequira, espiritualizara-se, amarelara
como um antigo marfim, tornara-se, com a idade, leve, graciosa, finida, pequenina. Tudo
envelhecera nela – menos os olhos, muito pretos, muito vivos (...)”12. Após seu falecimento,
seus papéis escritos vêm à tona. Como este relato, mostrando uma visão resignada do
momento em que se descobre velha:
Dia 22 de Abril. – Faço hoje setenta e dois anos, e ainda gosto de ter flores no meu
quarto. Dizem que é triste envelhecer. Não acreditem. O que é triste é não saber
envelhecer. Quando eu era nova e bonita, parecia-me que havia de sofrer muito em
me vendo feia e velha. Os primeiros cabelos brancos chegaram, e eu aceitei-os com
resignação, quási com alegria, - porque percebi que me ficavam melhor do que os
pretos.13
A consciência corporal e da temporalidade são marcas importantes nos discursos sobre
o envelhecimento, em cruzamentos que podem ganhar diversas expressões, variando até de
acordo com o sexo. O texto de Ruy Barbosa, apresentado a seguir, fornece outras chaves de
compreensão, apontando que o trabalho e a atividade podem suavizar a sensação da idade que
avança, no caso do homem.
Toda a minha carreira é uma carreira constante de acção, de trabalho indefeso, de
lucta ininterrupta, e portanto, de notoria validez.
11 Cf. VIGARELLO, Georges. Le corps redressé: Histoire d’un pouvoir pédagogique. Paris: Jean-Pierre Delarge, 1978 e VEIRA, Adriane e SOUZA, Jorge Luiz. A moralidade implícita no ideal de verticalidade da postura corporal. Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 23, n. 3, p. 133-148, maio 2002. 12Fortaleza, Ceará Ilustrado, n. 53, 12 de julho de 1925. 13Fortaleza, Ceará Ilustrado, n. 53, 12 de julho de 1925.
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Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012.
O que é a velhice? Uma das mais relativas coisas humanas, se a medirmos pelos
annos. (...) Eu não me sinto velho, senão quando não tenho o que fazer. Em me
sobrando tarefa, sempre me achei moço14.
Sua preocupação era mostrar-se útil, em um tempo que a produtividade é considerada
virtude masculina. Neste mesmo artigo, Barbosa afirma que a noção de velhice não é a mesma
em toda parte. Especificidades históricas e culturais levam diferentes países a perceberem essa
fase em momentos distintos da vida. Conversando com colegas europeus, o autor concluiu
que, no Brasil, a sensação era de um caminhar da idade a passos mais bem acelerados do que
no “Velho Continente”.
(...) entre nós, dirieis hoje, ás vezes, que se amanhece a vida, envelhecendo. E' que a
juventude é velha. Ha uma pressa de envelhecer, que tudo avelhenta. A mulher ainda
não desabotoou, e jà lhe não acham frescura. O homem ainda não acabou de
pennujar, e já entorta, já derreia, já claudica (...). O homem, entre nós, adolesce aos
dez annos; aos vinte amadureceu; aos trinta começa a declinar; aos quarenta caiu
entre os velhotes.15
A positividade do progresso, o desejo de futuro e a urgência de novidades reforçariam
a sensação de uma vivência acelerada do tempo na modernidade. O tempo e as idades são
experiências mais intensas, apressadas e vertiginosas. Interessante observar com os olhos de
hoje que, em 1925, o “declínio” começa aos trinta anos e, aos quarenta, inicia a velhice.
As experiências de temporalidade vêm atravessadas por paradoxos. Por um lado, as
noções de progresso e modernidade, tão presentes na cidade em desenvolvimento, parecem
querer apressar os avanços na direção de um devir; mas essas projeções implicariam em estar
à mercê da dúvida diante de algo que se afasta do espaço da experiência. Por outro lado,
delineia-se o desejo de alargar o tempo presente (a mocidade), retardando esse futuro (a
velhice), elaborando-se através dos cuidados do corpo uma outra vivência do tempo. O ímpeto
de chegar ao futuro vinha acompanhado da vontade de prolongar o presente, a mocidade e,
por conseguinte, a beleza.
Esta ideia relaciona-se com o que François Hartog entende por “regimes de
historicidade”, que consistem nos “diferentes modos de articulação das categorias do passado,
do presente e do futuro” (HARTOG, 1997:16). Para o autor, há que se considerar no estudo da
14 Fortaleza, Ceará Ilustrado, n. 26, 4 de janeiro de 1925, p. 11. Grifo original. 15 Fortaleza, Ceará Ilustrado, n. 26, 4 de janeiro de 1925, p. 11.
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Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012.
história social as “múltiplas temporalidades e os efeitos produzidos pelos deslocamentos que
elas entretêm entre si: há o contemporâneo e o não-contemporâneo em todos os estágios, ou
melhor uma contemporaneidade do não contemporâneo” (HARTOG, 1997:18).
***
Os textos de Ruy Barbosa e Julio Dantas também levam a compreender em que
medida a percepção do envelhecimento é um processo que traz sentidos e consequências
diferentes para homens e mulheres. “As mulheres, dizem os inglezes, e muito bem, as
mulheres têm a idade que mostram; os homens, a que sentem”, afirma Ruy Barbosa.16
Para os homens, as permanências foram mais longas no que concerne às aparências.
Por muito tempo, barba e cabelos brancos eram ostentados, pois remetiam ao poder e
inspiravam respeito. “Mesmo os jovens procuravam tornar suas aparências mais velhas para
representá-las como de austeridade e respeitabilidade” (MATOS, 2011:138). O
envelhecimento (ou , no caso deles, a “experiência”), era associado ao ganho de posições
sociais e de prestígio. Nos anos 1920, as revistas ilustradas de Fortaleza começam a trazer
retratos de homens importantes, porém de aparência mais juvenil, sem barba ou bigode, com
pequenas variações nas poses. Mas este efeito não é imediato e a neutralidade do “sexo de
luto”, vestido de preto, no dizer de Baudelaire, se impõe. Sem ameaçar o primado da
autoridade masculina.
Já as mulheres, até meados do XIX, eram representadas nas fotografias como
matronas, com semblante severo. O que remetia a poder ou dignididade passou a significar,
nas primeiras décadas do novo século, uma tradição associada a um passado a ser esquecido
em nome do futuro. Em uma época de redefinição de valores, a sabedoria ou a ancestralidade
ancoradas nos velhos de antigamente não tinham a mesma importância. As figuras femininas
austeras, ao contrário dos pares masculinos, praticamente desaparecem da imprensa no século
XX. Mães e avós de preto dão lugar às moças e às mulheres maduras de aparência jovial.
Os traços mais finos, a pele lisa, o olhar sorridente e penetrante, corpos mais
visíveis, liberados de trajes pesados e escuros, certa sensualidade devida à utilização
de trajes coloridos, mas também do movimento dado às formas, enfim, vários
elementos dessa pintura moderna concorrem para compor retratos de mulheres
16 Fortaleza, Ceará Ilustrado, n. 26, 4 de janeiro de 1925, p. 11.
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Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012.
rejuvenescidas, se comparadas àquelas da pintura do final do século (SCHPUN,
1999:101).
Uma ironia: embora leves, as aparências tinham mais peso para as mulheres do que
para os homens. Nos anos 1920, “Se os trunfos de sedução contam mais, a velhice também
ameaça mais” (SCHPUN, 1999:100). Na “Página Feminina” em uma edição de Ba-Ta-Clan,
fica clara a tensão entre imagens de mulheres de duas gerações diferentes, ilustrando um
artigo que fazia ode à moda atual, “bem de accordo com a mulher moderna”.
Figura 2 - Ba-Ta-Clan, n. 12, 1926
A dualidade está lançada com várias chaves possíveis, no trânsito entre modernidade e
tradição, beleza e feiúra, saúde e doença, juventude e velhice. No “hontem e hoje”, a senhora
com rugas, vestido comprido e cabelos cobertos com um lenço tem sua pose rígida ressaltada
diante do contraste com a jovem de cabelos curtos à la garçonne, vestido que deixa pernas,
braços e colo à mostra e movimentos mais livres, além de ostentar um cigarro.
As intenções em favorecer a aparência “moderna” fazem ainda mais sentido ao
lembrar que Ba-Ta-Clan é uma revista voltada ao público feminino, publicada aos sábados e
de propriedade da Empreza Cearense de Annuncios. Suas propagandas reforçam a
positividade da juventude e da novidade que movimentam o crescente mercado de produtos,
os mais variados. Por exemplo: uma bela mulher e um cigarro “novos” são a felicidade. Eles é
que são capazes de proporcionar prazer e satisfação aos habitantes de uma cidade que
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Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012.
aspirava o progresso e queria se identificar com os hábitos tidos como modernos e
cosmopolitas.
Figura 3 - Ba-Ta-Clan, n. 9, 28 de agosto de 1926
Ao contrário dos homens, o envelhecimento da mulher leva ao afastamento e à perda
de prestígio na sociedade. Além disso, no momento em que as propagandas e os discursos
médicos e higienistas multiplicam as associações entre beleza e saúde, enaltecem as
características e a conservação do corpo jovem, como uma pele rosada, cabelos fortes e com
cor, barriga e seios firmes. Feiúra e velhice passam a ser vividas como um drama.
“Diferentemente de nossas avós, não nos preocupamos mais em salvar nossas almas, mas em
salvar nosso corpo, da desgraça da rejeição social” (DEL PRIORE, 2000:11).
Alguns produtos propagam o sucesso em reverter a marcha do envelhecimento, como
a Pasta Russa, anunciada em página inteira no Almanach do Ceará de 1920. Desenvolvida
pelo doutor G. Ricabal, aumentaria “progressivamente o BUSTO da Mulher, dando
FORMOZURA E ELEGANCIA. DESENVOLVE, FORTIFICA E AFORMOSEA os SEIOS
Fazendo CRESCER E ENDURECENDO rapidamente por mais molles e cahidos que sejam
!!!”. Lado a lado, uma imagem da mulher com seios desnudos e outra com profundo decote,
mostrando o resultado “Dois mezes depois do tratamento”.17
17 Fortaleza, Almanach do Ceará, 1920.
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Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012.
Figura 4 - Almanach do Ceará de 1920
O discurso de conservar a beleza já era acompanhado de algumas variações, como a do
anúncio acima, que propõe modificar o que é natural em busca de uma aparência mais
atraente e conveniente com os novos padrões de corpo feminino, revelado nos vestidos da
moda, que enaltecem o colo, os braços, os tornozelos. E a Pasta Russa não só pretende
aumentar o busto como deve “curar” os seios flácidos, do mesmo modo que se trata uma
doença.
O dever da beleza18 é delas, enquanto a aparência masculina permanece neutra do
ponto de vista estético e não se atualiza no mesmo passo, aprofundando as diferenças entre os
sexos. “A beleza acentua a feminilidade e a primeira é percebida como estratégia específica
da segunda. O mais belo homem perde seu tempo e sua virilidade se ele sabe que é belo”
(Nahoum-Grappe, 1988:14, tradução minha)19.
Entre a vertigem e o pêndulo
O envelhecimento e a morte são depreciados e desnaturalizados, para serem
silenciados posteriormente. Novas exigências se impõem sobre os corpos, mais expostos,
requisitados e dessacralizados – especialmente os femininos. Os considerados velhos, pouco
atraentes e improdutivos são postos à margem, como uma incômoda lembrança do atraso, da
lentidão, da tradição e de um passado que deve ser superado. De acordo com Le Breton,
18 Cf. Perrot, 1998 e Sant’Anna, 1994. 19 No original: “La beauté accentue la féminité, et de plus la première est perçue comme la stratégie spécifique de la seconde. Le trop bel homme perd son temps et sa virilité s’il sait qu’il est beau. La femme laide perd sa féminité”.
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Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012.
A velhice é hoje esse “Continente cinza” delimitando uma população indecisa, um
pouco lunar, extraviada da Modernidade. O tempo não está mais na experiência e na
memória. Ele tampouco está no corpo deteriorado. A pessoa idosa resvala
lentamente para fora do campo simbólico, transgride os valores centrais da
Modernidade: a juventude, a sedução, a vitalidade, o trabalho. (...) Lembrete da
precariedade e da fragilidade da condição humana, ela é o rosto mesmo da alteridade
absoluta. Imagem intolerável de um envelhecimento que atinge todas as coisas em
uma sociedade que cultua a juventude e não sabe mais simbolizar o fato de
envelhecer ou de morrer. (2011: 224)
A velhice é repelida e indesejada, por reduzir a pessoa a seu corpo, doente e com
pouca mobilidade. Também encerra um paradoxo: escapa às normas da beleza e é elemento
de instabilidade, ao mesmo tempo a reforça e lembra que o belo existe.
Como tal, essa noção de velhice é uma construção histórica cujo horizonte são os
anseios de modernidade que marcam as primeiras décadas do século XX. Diferentes
entrecruzamentos entre corpo e tempo produzem múltiplas vivência das idades e outras
sensibilidades em relação à marcha da vida. Atuando na redefinição do conceito de velhice, os
discursos médicos, higienistas e das propagandas proliferam com base em referenciais como a
pele com rugas, a postura curvada, a firmeza das carnes e o surgimento de enfermidades.
O investimento nas aparências em busca da conservação da juventude e,
posteriormente, da reversão do tempo inscrito no corpo, tem pesos diferentes para homens e
mulheres – embora ambos passem a temer o envelhecimento e a morte, que são “os dois
inomináveis da Modernidade” e “os lugares da anomalia” (LE BRETON, 2011:224-225).
As aparências e a experiência do tempo para os velhos não têm mais lugar e se
distanciam do hedonismo da modernidade, colocando as pessoas diante da crueza
perturbadora do devir e do limite humano, que é a morte. Saem a vertigem e a potência de
vida, para entrar em cena um pêndulo irreversível, que marca um incômodo compasso de
espera a ser silenciado.
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Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012.
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