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1 EPISTEMOLOGIA JURÍDICA MODERNA (uma abordagem filosófica da teoria geral do direito) (esboço não revisado - para circulação interna nas cadeiras de Filosofia do Direito da Faculdade Processus Prof. Jairo Bisol A NORMA JURÍDICA (reflexões em torno da teoria das fontes, da teoria da norma jurídica e da teoria do ordenamento jurídico)

Curso de Epistemologia Jurídica Moderna - uma abordagem filosófica (PROCESSUS)

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EPISTEMOLOGIA JURÍDICA

MODERNA

(uma abordagem filosófica da teoria

geral do direito)

(esboço não revisado - para circulação interna nas cadeiras de Filosofia do Direito da

Faculdade Processus

Prof. Jairo Bisol

A NORMA JURÍDICA

(reflexões em torno da teoria das fontes, da teoria da norma jurídica e da teoria do

ordenamento jurídico)

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Toda e qualquer norma jurídica emerge das fontes do direito, pelo que, não se

pode definir o que seja Norma Jurídica sem delimitar o que sejam estas Fontes do Direito. Se

é da essência do direito ser normatividade, não há como negar que o direito se manifesta,

através de suas fontes, enquanto norma jurídica. Deste modo, é necessário demarcar as fontes

do direito donde emergem as diversas normas jurídicas. Não se trata de uma questão simples.

Segundo a doutrina tradicional, as fontes do direito classificam-se em formais e

materiais. Fontes do jurista, nesta perspectiva, seriam apenas as fontes formais, nas quais as

decisões judiciais encontram fundamento: a lei, a jurisprudência, a doutrina e o costume,

basicamente. As demais, chamadas fontes materiais, constituídas por valorações ético-sociais,

hábitos e costumes em gestação, novas demandas de regulamentação em decorrência de

avanços tecnológicos, etc., são apenas fontes para o jurista num sentido mediato, eis dizem

respeito ao conteúdo das normas, e constituem a matéria prima utilizada para a elaboração da

lei: delas se ocupa imediatamente o legislador, já que nos sistemas de direito legislado a lei é a

fonte principal.

Adotando-se tal concepção de fontes, tende-se ao chamado formalismo jurídico, um modelo de

teoria jurídica onde a forma determina o que é e o que não é direito (v.g., qualquer conteúdo legislado é direito

porque está sob a forma legal). O jurista somente pode fazer valer o direito que está sob a forma legal,

doutrinária, jurisprudencial ou consuetudinária. Tal formalismo facilita a organização do direito enquanto

sistema de regras, exatamente por delimitar, com algum rigor, as fontes donde tais regras emergem, embora se

afaste um pouco a realidade, ou seja, não permite uma compreensão mais consistente das práticas judiciais

concretas e cotidianas dos foruns da vida, onde o jurista se vale, inelutavelmente, de valorações ético-sociais e

outros elementos normativos que não emergem das clássicas fontes do direito para construir suas decisões

judiciais. Mais do que isto, a redução do fenômeno jurídico a um critério formal opera um recorte arbitrário do

objeto de análise, podando importantes dimensões do fenômeno, tal como a inafastável dimensão axiológica,

onde se discute entre outras coisas uma Teoria da Justiça, a idéia de Pluralismo Jurídico, típica de sociedades

abertamente pluralistas, etc. Esta questão, complexa por natureza, será objeto de análise no momento adequado.

Se direito é aquilo que emerge enquanto norma de determinada fonte, ou seja,

posto sob uma determinada forma, qual a forma fundamental da norma jurídica em nosso

sistema? É a forma legal, já que o nosso sistema é um sistema de direito legislado. A lei é a

principal fonte do direito. Uns dizem que, além da Lei, têm-se a doutrina, a jurisprudência e

os costumes. Outros, recorrendo à LICC, dizem que são fontes do direito a lei, a analogia, os

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costumes e os princípios gerais do direito. Esta última classificação incorre em obtusa

imprecisão metodológica. Em primeiro lugar analogia não é fonte; é técnica de aplicação do

direito, mais especificamente de colmatação de lacunas. Já os Princípios Gerais do Direito,

ora se manifestam através da lei (princípio da reserva legal, p. exemplo), ora se manifestam

através da doutrina, pelo que, em si, não constituem fonte isoladamente. Ademais, em que

sentido os princípios gerais do direito compõe a ordem jurídica positiva? O que são tais

princípios? Como se aplicam? São questões não menos complexa, que também irão requerer

um estudo específico.

Portanto, seguindo uma concepção tradicional de fontes do direito estatal,

poderíamos sugerir sua classificação em 1) fonte principal (a lei), e 2) fontes

complementares (a jurisprudência, a doutrina e os costumes). Desse modo, é possível afirmar

que as normas jurídicas vigentes (o direito positivo estatal) emergem, ao menos em seu

núcleo de significação normativa, da lei, da jurisprudência, da doutrina e dos costumes. Mas o

que é a norma que emerge destas fontes? Que norma é essa que emerge da doutrina, por

exemplo? Toda doutrina é norma? Emerge uma norma de cada uma dessas fontes, por vez?

Pode uma norma emergir de mais de uma fonte ao mesmo tempo? Bem observado, impossível

refletir isoladamente o que sejam “fontes do direito”, sem que se determine o que sejam as

normas jurídicas que delas emergem na condição de direito positivo, ou direito vigente. Em

síntese, não se compreende o que seja fonte do direito sem determinar o que seja norma

jurídica, do mesmo modo que não se compreende o que é norma jurídica sem a definição do

que seja fonte do direito.

Ora, aqui se apresenta, por inteiro, a nossa perspectiva: o pensamento

positivista em gera parte de um conceito de fontes do direito construído na dependência da

idéia de norma jurídica. No entanto, não define o que seja norma jurídica. Salta aos olhos, o

conceito de fonte apresentado carece de uma definição de norma jurídica. Trata-se de algo

mais complexo, como veremos - e porque não dizer, determinante da própria concepção de

fontes do direito. Em outras palavras, se fonte do direito é aquilo do qual emanam normas

jurídicas, é indispensável definirmos o que seja norma jurídica para chegarmos a uma

definição de fonte. Indiscutível, o conceito daquela é um pressuposto desta.

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Por este exato viés é possível criticar Bobbio quando ele afirma que a

“importância do problema das fontes do direito está no fato de que dele depende o

estabelecimento da pertinência das normas, com que lidamos a um determinado

ordenamento jurídico” (N. Bobbio, O Positivismo Jurídico, p. ). Ora, a perspectiva correta

seria exatamente a inversa: sendo norma jurídica aquilo que emana das fontes do direito e

se organiza enquanto um ordenamento jurídico, a importância do tema norma jurídica é

fundamental, por ser pressuposto, para traçarmos o que seja fonte do direito e, por outro

ângulo, ordenamento jurídico. Aliás, mais do que a idéia de que só é possível definirmos o

que seja fonte e ordenamento jurídicos partindo de uma definição de norma jurídica, é

necessário reconhecermos que tais matérias são intrínsecas a própria concepção de norma. A

separação metodológica destes temas é vício que promove graves distorções no pensamento

jurídico positivista, eis que são estudos necessariamente interdependentes.

Destarte, de nada adianta elaboramos uma taxinomia dos ordenamentos

jurídicos segundo o critério da pluralidade e da hierarquia das fontes do direito, se não

definirmos o que seja norma jurídica, eis que uma tal classificação, como a apresentada pelo

autor, implica numa necessária pluralidade de espécies de normas jurídicas, e numa

consequente hierarquia entre elas. Ora, tal perspectiva, por sua vez, pressupõe, mais uma vez,

sem podermos evitar a repetição, uma concepção de norma jurídica. Vejamos um exemplo de

rara simplicidade: se considerarmos como duas fontes distintas do direito a lei e a

jurisprudência, como de fato o são, e se considerarmos ainda que fonte é aquilo da qual

emana norma, tenderemos a pensar na existência de “normas legais” e “normas

jurisprudenciais”, ou seja, em normas distintas e portanto, carentes de uma disposição

hierárquica. A experiência jurídica, entretanto, mostra-nos que a jurisprudência, enquanto

fonte do direito, é via de regra utilizada concomitantemente com a lei, para fixar certos

conteúdos vagos da lei, conjugando-se ambas as fontes para a definição de “uma” norma

jurídica apenas. Vide, por exemplo, a concreção dos tipos penais, quando contêm conceitos

normativos e conceitos indeterminados (“mulher honesta”, “pequeno valor”, “meio cruel”,

etc.). Em outras palavras, nos sistemas de direito legislado, o jurista utiliza-se da lei, em

primeiro lugar. Entretanto, para enfrentar a reconhecida e inafastável plurivocidade da lei,

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recorre às definições extralegais de origem jurisprudencial e doutrinária, tudo para encontrar

uma única definição normativa - uma única norma jurídica - para um único fato jurídico. O

jurista, deste modo, recorre a mais de uma fonte para elaborar uma norma jurídica, que é um

fenômeno complexo. Quebra-se, portanto, a relação “uma fonte utilizada - uma norma”. A

norma jurídica pode ser produto da correlação entre diversas fontes do direito. Desloca-se, por

decorrência, toda a perspectiva da hierarquia entre as fontes, eis que a idéia mais correta seria

a de integração entre as fontes - embora, por óbvio, não no sentido clássico de “colmatação de

lacuna”.

A postura positivista, de um modo geral, por não enfrentar com a devida

maturidade a complexidade do conceito de norma, não explicita o verdadeiro papel da teoria

das fontes do direito em sua própria concepção do jurídico. Aliás, nada de novo se nos

apresenta quando navega sob o espectro da conhecida subdivisão das fontes do direito em

delegantes e delegadas. Trata-se de perspectiva teórica desenvolvida pelo pensamento

jurídico positivista para fundamentar a soberania hierárquica absoluta da lei sobre as demais

fontes nos sistemas de direito legislado. Aliás, historicamente fundamental para a

consolidação do Moderno Estado de Direito - em especial para a massificação da crença do

ideal de liberdade sob o manto da lei e, principalmente, sob o mito da neutralidade estatal - a

suposta garantia dos cidadãos igualados pelo direito de voto. Entretanto, tais mitos são ora

desconectados com a prática judicial, ota epistemicamente insustentáveis, tal como o é o mito

da hierarquia das fontes do direito e o da completude e coerência lógica do ordenamento,

ou mesmo o mito do silogismo judiciário. Bem observando a construção das decisões

judiciais, não se trata propriamente de uma questão de hierarquia da lei em relação às demais

fontes, mas sim de fundamentação das decisões para que alcancem a necessária juridicidade.

Destarte, seria mais adequado enfrentar a classificação das fontes normativas em vinculantes

e persuasivas do que, como faz o positivismo, ao subdividir as fontes em delegantes e

delegadas. Note-se, por ser a lei vinculante, a coerência do ordenamento jurídico-legal,

embora impossível do ponto de vista absoluto, deve ser perseguida a qualquer custo. Já a

coerência entre as diversas normas jurisprudenciais é irrelevante, pois trata-se de fonte

normativa de natureza persuasiva para o aplicador do direito. Portanto, é absolutamente

normal a convivência de conteúdos normativos jurisprudenciais conflitantes.

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Os juristas, carentes de uma concepção madura de norma

jurídica e alienados nesta perspectiva histórica e política da classificação das fontes, tendem a

repetir tal idéia de hegemonia da lei em suas modernas teorias, hierarquizando as diversas

fontes do direito, sem prestarem atenção no fenômeno mais óbvio no dia a dia do direito, qual

seja, o da construção das decisões judiciais. O equívoco, ao nosso ver, reside justo na

ausência de uma concepção de norma jurídica capaz de dar conta do fenômeno mais

importante para o jurista: a concreta da aplicação do direito, ou seja, a concreção do direito.

A DIMENSÃO LEGAL DA NORMA JURÍDICA

É interessante observar que os jurista, em especial os que operam efetivamente

o sistema jurídico estatal, aplicam este sistema de normas jurídicas sem dispor de uma idéia

clara do que sejam tais normas. Em regra, quando buscam pensar uma idéia concreta da norma

jurídica a primeira imagem que lhes ocorre é a lei - ou melhor ainda, um dispositivo legal, tal

como o artigo 121 do Código Penal. Apesar da norma jurídica ser, nos sistemas de direito

legislado, fundamentalmente a lei, por certo esta não exaure o direito vigente. Se assim o

fosse, seria a única fonte reconhecida. O fato de existirem outras fontes do direito, por si, já

indica a vigência, nesses sistemas, de normatividade que emerge de outras fontes que não a

lei. Não obstante isso, ainda quando se considera a lei como fonte exclusiva da normatividade

jurídica, nem assim é razoável identificar-se a norma legal com o dispositivo de lei, tendo em

vista a precisão metodológica que o ato de aplicação do direito requer. Afinal, o que é norma

jurídica dentro de uma lei? Por exemplo: uma lei com 34 artigos é composta por 34 normas

jurídicas? O art. 4° do CCB é “uma” norma jurídica? O artigo 327 do Código Penal, que

define o que é “funcionário público” para efeito de aplicação da lei criminal é uma norma

jurídica? Onde a norma jurídica é devidamente delimitada e enunciada no processo judicial?

A sentença é uma norma jurídica? Em que medida? Qual é a estrutura de uma norma jurídica?

Qual a função que cumpre?

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Ora, tais dúvidas nos remetem à imensa imprecisão metodológica que pauta a

aplicação do direito vigente, resultante de uma deficiente compreensão e elaboração

conceitual da norma jurídica. Por óbvio, a apreensão do direito exige, antes de mais nada, o

domínio de conceitos jurídicos fundamentais, tais como este. Se pretendemos dominar o

próprio ato de “aplicação” do direito, a primeira dificuldade metodológica sobre a qual

devemos nos debruçar, sem dúvida, é justamente a definição do que seja a norma jurídica a

ser “aplicada”. Não se trata de uma tarefa fácil, embora fundamental, do ponto de vista da

qualidade da cidadania dos jurisdicionados, especialmente quando se tem em vista a

delimitação do que seja efetivamente “direito vigente”, bem como dos limites possíveis de

vinculação dos operadores a este direito, ou seja, da vinculação a uma ratio decidendi

determinada na anterioridade das decisões judiciais. Fora daí, incorre-se nos perigos do

irracionalismo jurídico. Por este viés, percebe-se desde já que uma discussão em torno do

conceito de Norma Jurídica tem o condão de trazer a balha os principais temas da

Metodologia Jurídica e, de um modo mais geral, da Teoria do Direito. Vejamos inicialmente o

campo metodológico.

Tomemos duas idéias básicas para a compreensão do que seja a norma jurídica.

A primeira, diz respeito à sua estrutura lógica. A segunda, trata-se de uma definição

funcional, ou seja, que aponta a sua função.

A ESTRUTURA LÓGICA DA NORMA JURÍDICA (definição estrutural)

A norma jurídica possui, em sua estrutura lógica minimal, duas partes: Um

suporte fático hipotético (SFH), que é uma descrição hipotética de um fato, e um preceito (P),

que é a previsão abstrata de uma conseqüência jurídica. Estes dois elementos necessariamente

tem que estar presentes, eis que compõem a estrutura minimal da norma jurídica. Logo,

N=SFH+P.

Fala-se em estrutura minimal porque, quando a norma jurídica contém uma

sanção, esta estrutura é dúplice. Aí, já não é apenas N=SFH+P. Numa norma dotada de

sanção, têm-se a seguinte estrutura dúplice: dado um determinado fato (SFH) deve ser o

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preceito (P); entretanto, dado o descumprimento do preceito devido (não P), deve ser S

(sanção). Diz-se dúplice esta estrutura por conter dois “dever ser”. Utilizando-se da

linguagem adotada por Cóssio, a norma jurídica dotada de sanção é composta por uma

endonorma e uma perinorma. Kelsen falava em uma norma primária e uma norma

secundária. Senão, vejamos:

Ex1): 1 - Dada uma dívida, deve ser o pagamento (endonorma, ou norma primária).

2 - Dado o não pagamento, deve ser a sanção (perinorma, ou norma secundária).

Ex2): 1 - Dada uma vida humana, deve ser não matar (endonorma).

2 - Dado o matar (= não-não matar), deve ser sanção (perinorma).

Assim, a estrutura minimal fica: N=SFH+P (endonorma)

ñ P+S (perinorma)

Todas as normas que contêm sanção têm esta estrutura dúplice, embora uma

parte da estrutura não apareça explicitamente no texto legal (ex: “matar alguém, pena de 6 a

20 anos”).

Para facilitar a exposição, vamos trabalhar com uma norma dotada de estrutura minimal (um

dever ser apenas). Desse modo, para facilitar a exposição, mesmo quando utilizarmos como exemplo normas

dotadas de sanção, iremos desconsiderar a parte implícita, tratando-a como se sua estrutura fosse minimal. Logo,

para que algo seja uma norma jurídica completa, ainda que contenha uma sanção, há que ter, explicitamente ao

menos, uma primeira parte (SFH), que é uma descrição hipotética de um fato, e uma segunda parte (P) que é a

previsão de uma conseqüência jurídica.

Exemplo 1

Vejamos, portanto: Diz o artigo 4º do CC: "A personalidade civil do homem começa do

nascimento com vida; mas a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro". Isso é “uma” norma?

Tem um suporte fático hipotético? Sim, o “nascimento com vida” é um fato hipotético, que pode vir a acontecer.

Tem um preceito, ou seja, uma consequência jurídica conectada ao “nascimento com vida”? Sim, o “começo da

personalidade civil”.

Aqui já estaríamos, conforme nossa definição estrutural, diante de uma norma jurídica. Mas, e

o resto do texto? Tem outro suporte fático ali? Sim, a “existência de um nascituro, desde a concepção”. Tem

outra consequência jurídica, ou seja, outro preceito? Sim, a conseqüência será a “proteção ao direito” do

nascituro. Portanto, se é correta nossa definição estrutural de norma jurídica (N=SFH+P), estamos diante de duas

normas em um único dispositivo de lei.

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Exemplo 2

Diz o artigo 327, caput, do Código Penal: “Considera-se funcionário público, para os efeitos

penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública”. Trata-

se de uma norma jurídica? É possível identificar no seu texto uma hipótese fática e uma consequência jurídica?

Por óbvio, não é possível. Trata-se de uma mera definição de funcionário público para efeitos de aplicação da lei

penal. Ora, desse modo, correta nossa definição estrutural de norma, o artigo 327 do Código Penal não constitui

norma jurídica.

Esta definição estrutural de norma tem um condão inicial de afastar,

definitivamente, um primeiro equívoco recorrente dos juristas: o conceito de norma jurídica

não se identifica com o de dispositivo legal, de modo que, se uma lei é composta por 25

artigos, dela não se pode afirmar que tenha 25 normas. Ora, se já havíamos observado a

necessidade de desfazer a falsa identidade entre “norma" e “lei", vê-se ainda que é preciso

romper a falsa identidade entre “norma” e “dispositivo legal”, ou seja, “cada dispositivo, uma

norma”.

O CONCEITO FUNCIONAL DE NORMA JURÍDICA

Passemos ao segundo conceito de norma jurídica, de natureza funcional, que irá

contribuir para a correta compreensão do direito enquanto fenômeno normativo. Esta segunda

“ferramenta” podemos deduzir, dentre outros, do princípio da reserva legal. Vejamos este

exemplo: “Não haverá crime nem pena sem lei anterior que o defina" . Ora, sendo o “crime”

um fato jurídico (ato ilícito penal), sendo a “pena” uma consequência jurídica do crime

(correspondendo ao direito subjetivo de punir e ao dever de cumpri-la) e, sendo a “lei” a

norma jurídico-penal, podemos enunciar este princípio com a seguinte formulação, mais

genérica e abrangente: “não haverá fato jurídico, nem consequência jurídica, sem norma

jurídica anterior que o defina”. Logo, o papel da norma é o de dar definição (jurídica) ao

fato jurídico, para que dele se irradie a consequência jurídica.

Eis aí uma ferramenta preciosa: o papel da norma é dar uma definição jurídica

aos fatos. Transformar os fatos em fatos jurídicos. Imprimir-lhes significação jurídica.

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Destarte, a norma de direito imprime significação jurídica aos fatos e faz com que deles se

irradiem conseqüências jurídicas, que são direitos subjetivos e deveres, no sentido largo, e que

situam-se, como vamos ver adiante, no plano da eficácia jurídica. Conseqüência jurídica é

basicamente uma relação de vida regulada pelo direito objetivo (a norma jurídica), onde um

titulariza o direito subjetivo, o outro titulariza o dever. Essa relação nós denominamos relação

jurídica.

Vejamos sob esta perspectiva o problema da fontes normativas do direito, ou

seja na norma e de suas fontes. Diz o artigo 1° do Código Penal: "Não haverá crime, nem

pena, sem lei anterior que o defina". Significa que toda definição jurídica dada a um fato

jurídico penal, só pode ser originária de um texto legal. Pergunta-se: A definição jurídica de

um crime exaure-se no texto da lei penal? Em outras palavras: a lei penal cumpre,

exclusivamente, a função de imprimir definição jurídica (função normativa) aos crimes? Por

óbvio, se radicalizarmos a nossa análise, iremos perceber que, por vezes, o aplicador da lei

penal se vale de outras fontes que não a lei para alcançar definição plena de um crime.

Vejamos alguns exemplos: 1) uma relação sexual forçada cometida pelo marido pode ser definido como crime de

estupro ou não, conforme se adote uma ou outra corrente jurisprudêncial; 2) uma constrangimento, mediante

grave ameaça, para a entrega de um valor em dinheiro, onde a vítima não se intimida, pode ser caracterizada de

tentativa de extorsão ou não caracterizar crime algum, conforme a linha jurisprudencial; 3) um assassinato

cometido com 16 facadas na vítima pode ser definido juridicamente como homicídio simples ou homicídio

qualificado por meio cruel, conforme enquadremos ou não as 16 facadas como meio cruel.

A doutrina e a jurisprudência, em diversas hipóteses, cumprem uma

função normativa complementar, ora delimitanto o alcance de alguns tipos penais, ora

definindo os limites de conceitos semanticamente vagos contidos em tais dispositivos legais,

como, por exemplo, o de “meio cruel”. Pois bem, delimitar o sentido de um conceito vago

semanticamente, visando aplicá-lo a um caso concreto, não significa o mesmo que “exercer

função normativa complementar”, ou seja, participar da definição jurídica dada ao fato? Por

óbvio, do ponto de vista metodológico, levando-se em conta os conceitos estrutural e

funcional de norma, a jurisprudência utilizada pelo penalista está compondo a norma jurídico-

penal, ou seja, definindo o crime juntamente com a lei, a despeito do princípio da reserva

legal. O mesmo ocorre quando o jurista se socorre da doutrina e jurisprudência para delimitar

o âmbito de incidência (o alcance) de um determinado dispositivo legal. Assim, é possível

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afirmar-se que o direito penal se utiliza, como fonte complementar à lei penal, da

jurisprudência e da doutrina. O que a doutrina e a jurisprudência não podem fazer no âmbito

penal em virtude do princípio da reserva legal é inovar, criar juridicidade praeter legem

(atividade integradora, consitente em identificar e colmatar lacunas da lei) ou contra legem

(construção de decisões judiciais que se opõem ao texto legal), ou seja, atuar normativamente

sem a existência de qualquer texto legal, ou então contra ele, como o se faz necessário, e

muito, no âmbito do direito de família, por exemplo.

A jurisprudência e a doutrina, nesta perspectiva, ao complementarem a

definição legal do que seja crime, ou mesmo por delimitarem o âmbito de incidência de um

determinado dispositivo legal, estão cumprindo sua função normativa. Isto é, ser “conteúdo

jurídico-normativo”, ao menos enquanto um fragmento de norma, um parte que a compõe.

Aliás, diz-se que a doutrina e a jurisprudência são fontes do direito não porque delas

emergem normas jurídicas completas e independentes – eis novamente uma falsa concepção

de norma pela qual ela surge inteira e como um dado acabado de uma das fontes do direito.

Na realidade, diz-se que a jurisprudência e a doutrina são fontes complementares em nosso

sistema, justamente porque atuam normativamente, via de regra, em torno de texto legal,

dando-lhe acabamento, melhor delimitação, complementando-o e definindo o seu alcance.

Portanto, não são normas inteiras e acabadas que emergem destas fontes, mas conteúdos

normativos de natureza fragmentária, fragmentos de norma que irão compor, uma vez

conexionados a outros fragmentos normtivos, a norma jurídica dotada de completude lógico-

normativa, ou seja, a totalidade dos conteúdos normativos que imprimem definição jurídica a

um determinado fato social. Em outras palavras, a norma completa pressupõe lógicamente

todos os fragmentos (dispositivos legais, definições e excertos jurisprudenciais e doutrinários,

conteúdos consuetudinários, etc.) que, de uma forma ou de outra, cumprem função normativa

– dar definição jurídica às inúmeras dimensões do fato judicializado.

Ora, do mesmo modo que não emanam normas jurídicas completas da doutrina

e da jurisprudência – apenas fragmentos normativos – há que se afirmar, também, que não há

norma, a rigor, que se exaure na lei. Esta, apesar de fonte principal do direito, depende da

atuação normativa complementar da jurisprudência e da doutrina para a sua adequada

aplicação.

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Bem observado, as leis recém editadas costumam ser de difícil aplicação, eis

que não receberam ainda a adequada lapidação e complementação normativa doutrinária e

jurisprudêncial.

Em outra palavras, o que se pretende afirmar aqui é que a norma jurídica do

direito estatal vigente, em seu núcleo mais significativo, é produto de uma síntese semântica

entre a lei - que constitui o seu núcleo de significação normativa - a jurisprudência e a

doutrina, que lhe são complementares, e, eventualmente, com contribuições dos costumes e

outras valorações ético-sociais.

Como vimos, em regra a definição jurídica de um crime não se exaure no texto legal.

Necessário outras ferramentas complementares que vão ajudar nesse papel de dar definição, de delimitar o fato

jurídico, de desenhar os exatos limites do fato que adquirem significação jurídica, ou seja, que contribuem na

determinação da consequência jurídica. Por exemplo: o penalista vale-se da jurisprudência para definir o que seja

meio cruel, com vista a qualificação de um crime de homicídio. Ora, aqui a função da jurisprudência está sendo a

normativa, eis que, ao emprestar fundamento, completando à operação subsuntiva que enquadra um determinado

fato concreto à regra que qualifica o homicídio pelo meio cruel, a normatividade jurisprudencial está, entre

outras coisas, delimitando não apenas o fato jurídico, como determinando os limites da própria consequência

jurídica, eis que a pena, no caso, será maior. Assim, conforme a delimitação do fato jurídico “crime”, será

possível delimitar a sua conseqüência “pena”. Então, neste exemplo, a jurisprudência tem o condão de interferir

no tempo de aprisionamento do delinqüente. Portanto, cumpre função normativa, ou seja, a de participar da

definição jurídica do fato, a despeito do artigo 1° do Código Penal.

A despeito destas observações, não é possível afirmar-se a inutilidade do princípio da reserva

legal para conter a normatividade criminal nos estreitos limites da legalidade. Antes, tal princípio e de

positivação absolutamente indispensável, e representa a vinculação máxima possível do órgão judicante ao texto

legal. Em direito penal, as fontes complementares são utilizadas exclusivamente para solucionar o problema da

plurivocidade da lei (indeterminação de sentito, ou seja, ocorrência de vários sentidos válidos e possíveis, como

dizia Kelsen em sua teoria pura). Assim, a jurisprudência criminal pode resolver ambiguidade e vagueza

semânticas dos conceitos contidos na lei penal, de modo a delimitar a sua juridicidade; entrentanto, em face do

princípio da reserva legal, jamais poderá inovar em sede normativa, como é possível em outros ramos do direito.

Ou seja, jamais uma norma penal irá emergir exclusivamente de outras fontes do direito, sem que seu núcleo

decorra imediatamente da lei. Este é o verdadeiro alcance do princípio da reserva legal. Por outro lado, é

importante que se tenha em mente: há uma ilusão legalista no princípio da reserva legal, que afirma

implicitamente que um texto legal possa conter todo o direito objetivo, e, deste modo, possa exaurir a definição

jurídica dos fatos. Essa ilusão é séria e traz profundas conseqüências práticas. Vejamos como funciona o

raciocínio normativo do penalista quando opera o sistema jurídico penal.

CARACTERÍSTICAS FUNDAMENTAIS DO DISCURSO NORMATIVO LEGAL:

TEXTO CONCISO E ELÍPTICO

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A primeira idéia que o jurista deve ter em mente, quanto busca identificar o que

seja a norma jurídica através do seu conceito funcional (a norma é composta por tudo aquilo

que cumpre a função de definir o fato jurídico em todas as suas relevâncias), é que cada fato

jurídico é juridicizado por apenas uma norma jurídica: 1 (um) fato jurídico; 1 (uma) norma

jurídica. Este critério é fundamental para mantermos o rigor metodológico. Deste modo,

podemos concluir que a dimensão legal de uma norma jurídica envolve, em regra, vários

dispositivos legais ao mesmo tempo.

A função da norma penal, como vimos, é dar a definição jurídica a um fato

social, constituindo-o como um crime. Ora, ao constituir o fato como crime por força de sua

incidência, a norma jurídica delimita-lhe a juridicidade, ou seja, os aspectos do fato concreto

que possui significação jurídica, valor jurídico. O fato é jurídico em tudo aquilo que está

previsto normativamente, ou seja, tudo aquilo que está descrito no suporte fático hipotético da

norma jurídica. Dentro destes limites normativos, avalia-se juridicamente a conduta em

concreto, com todas as suas relevâncias jurídicas, delimitando assim, por exemplo, a intenção

do agente do fato típico, suas motivações para aquele fato, sua participação no núcleo da ação

criminosa, sua idade, antecedentes criminais, sua relação com a vítima, etc.). Todas estas

relevâncias estão previstas na hipótese fática (SFH) norma jurídica que irá definir os limites

de significação jurídica daquele crime (conteúdo e extensão do fato jurídico).

Têm-se, por exemplo, que num crime de roubo cometido contra um idoso, duplamente

qualificado por uso de arma de fogo e concurso de agentes, um deles adolescente, o outro com menos de 21

anos, o núcleo da parte legal da norma jurídica que irá definir o crime é composta, no mínimo, pelos artigos 157,

§ 2º, incisos I e II, artigo 61, inciso II, alínea “h”, artigo 65, inciso I, todos eles indicando relevâncias que

compõe o suporte fático na norma (SFH), fundamentais para a correta delimitação da consequência jurídica

(conteúdo e extensão da eficácia jurídica, seja, do direito subjetivo de punir e do correspondente dever de

cumprir pena). Diz-se “o núcleo da parte legal” ou então “no mínimo” porque deixamos de indicar outros

dispositivos que irão compor esta norma penal, eis que muito óbvios, como por exemplo o artigo 14, I (crime

consumado), artigo 18, I (doloso, ou não haveria crime), artigo 26 e 27 (imputabilidade penal), etc.

Para compreender que, ao compor uma norma legal, o jurista dispõe de vários

dispositivos de lei, basta lembrar que os textos legais, além de 1)“concisos”, ou seja,

econômicos no uso de palavras, são, sobretudo, 2) “elípticos”. A elipse, como figura de

linguagem, traduz uma “omissão de palavras”, ou seja, caracteriza um enunciado que

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14

pressupõe outros que estão subentendidos e que lhe são, portanto, implícitos. Desta forma, o

texto elíptico pressupõe o que está subentendido para adquirir seu sentido completo. Ora, em

outras palavras, quando sustentamos que o texto legal é elíptico, somos obrigados a admitir

sua natureza fragmentária. Deste modo, os dispositivos legais constituem apenas fragementos

de norma jurídica, e nunca uma norma completa, ainda que eles contenham em sua estrutura,

um SFH (incompleto) e um P (também incompleto).

O “matar alguém”, por exemplo, do artigo 121 do Código Penal, é uma

evidente elipse, pressupõe uma série de outros enunciados, contidos em outros dispositivos do

código, para adquirir seu sentido completo. Pressupõe, antes de mais nada, a tipicidade

subjetiva (artigo 18) e a imputabilidade do agente (artigos 26 e 27), pressupõe que não tenha

ocorrido qualquer excludente da antijuridicidade (artigos 23, 24 e 25), pressupõe o artigo 14

para definir a sua consumação, e assim por diante, formando uma série de enunciados

subentendidos que, se tentarmos explicitá-los todos, jamais conseguiremos.

Esta característica do enunciado legal sugere a verdadeira atividade do jurista

que o aplica. Deste modo, sendo fragmentários os enunciados legais, a obra do jurista é

compô-los como forma de elaboração da norma jurídica para um determinado caso concreto.

É importante assinalar, por último, que o pensamento jurídico nunca atua de

forma abstrata, eis que só ó possível pensarmos uma norma jurídica partindo do fato concreto.

O pensamento jurídico parte do fato para a norma, e não o contrário, como tendemos supor.

Tentemos elaborar uma norma jurídica completa, que regule genericamente o homicídio, para

percebermos a dificuldade de lidarmos abstratamente com a norma jurídica.

RELAÇÕES TRANSFORMACIONAIS ENTRE FRAGMENTOS NORMATIVOS

NORMATIVOS – um modelo de racionalidadenormativa

Prova que o artigo 121 do Código Penal não constitui uma norma jurídica

completa reside no fato de que são inúmeros os fatos que se subsumem a ele e que não fazem

irradiar a consequência jurídica nele prevista. Por exemplo, uma cobra que morde o pé do

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lavrador não cumpre pena, embora tenha “matado alguém”. Do mesmo modo, o infante que

brinca com a arma de fogo do pai incauto, matando o irmão sem querer. Ou mesmo o louco

que comete homicídio, ou então o que mata para não morrer, em atitude de defesa. Todas

estas hipóteses, além de outras tantas, são exemplos de “matar alguém”, subsumindo-se, por

si só, ao artigo 121, sem que no entanto apliquem as consequências jurídicas ali previstas. É

que o artigo 121, isoladamente, não constitui uma norma jurídica. A proposição normativa

completa não pode admitir exceção, sob pena de comprometer o rigor necessário à aplicação

do direito.

Busquemos, portanto, a norma jurídica completa que regula o homicídio. Como

se viu, ela é produto de “correlações” entre inúmeros dispositivos legais, à qual daremos o

nome de relações transformacionais, o seja, um procedimento complexo que o pensamento

jurídico opera com tais dispositivos, visando construir a norma jurídica completa.

A relação transformacional de enunciados (framentos) normativos consiste,

basicamente, em “transformar” dois enuciados normativos um único apenas, mas que

contenha a normatividade de ambos. Assim, por exemplo, o pensamento jurídico opera a

relação transformacional entre o enunciado “Somente ser humano é sujeito do direito penal” e

o enuciado “matar alguém, pena 6 a 20 anos”, resultando num enunciado que contém os dois

primeiros: “Ser humano, matar alguém, pena 6 a 20 anos”. De posse deste último, busca-se

um novo enunciado para relacionar-se transformacionalmente com ele, construindo, assim,

sucessivamente, passo a passo, a norma jurídica.

Bem observado, a proposição normativa resultante da relação transformacional acima operada

afasta a hipótese da cobra que mata o lavrador, mas não afasta as demais. Toma-se, portanto, este enunciado, o

relaciona-se com o enunciado contido no artigo 27, pelo qual “os menores de 18 (dezoito) anos são

inimputáveis”. Resultado desta relação transformacional: “Ser humano, maior de dezoito anos, matar alguém,

pena 6 a 20 anos”. Fica afastada a hipótese do infante que mata o irmão, mas não a do louco. Procede-se nova

relação transformacional, desta feita com o artigo 26, resultando que “Ser humano, maior de 18, com

desenvolvimento mental completo, inteiramente capaz de compreender o caráter ilícito do fato e de determinar-

se de acordo com esse entendimento, matar alguém, pena 6 a vinte anos”. Resta ainda, no exemplo dado, a

exceção do sujeito que mata em legítima defesa, pelo que podemos concluir que ainda não estamos diante da

norma jurídica completa. O próximo passo em direção a ela, é relacionar o enunciado normativo resultante com

o artigo 23 do CP, resultanto que “Ser humano, maior de 18, com desenvolvimento mental completo,

inteiramente capaz de compreender o caráter ilícito do fato e de determinar-se de acordo com esse

entendimento, matar alguém, desde que não em legítima defesa, pena 6 a vinte anos”.

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Deste modo, ainda que se afastem as excessões apontada, é possível encontrar

inúmeras outras excessões subsumíveis a este enunciado, onde também não se aplica a

consequência jurídica nele contida. Portanto, a norma não está ainda completa. Aliás, por mais

que tentemos, ela jamais se completará. Há um erro irrecuperável nesta estratégia: o

pensamento jurídico nunca opera abstratamente. Somente é possível alcançarmos uma norma

jurídica completa se raciocinarmos a partir de um fato concreto. O caminho do pensamento

jurídico que opera o sistema judicial parte sempre do fato concreto, sub judice, para a norma

jurídica, que se concretiza como norma completa na sentença judicial transitada em julgado.

Pelo exposto depreende-se que a norma jurídica está fragmentada em diversas

proposições espalhados pelo Código, na sua dimensão legal (As três dimensões de norma, que

se pode encontrar mais comumente em uma sentença são as dimensões legal, jurisprudência e

doutrinária). A dimensão legal encontra-se esparsa na Lei, fragmentada, já que a lei tem uma

estrutura elíptica e é preciso remontá-la para que se possa percebê-la em sua totalidade, para o

caso concreto. Em sua integralidade possível, aproximada.

Duas, portanto, são as características fundamentais do texto legal: a concisão

de linguagem e o fato de serem elípticos. São técnicas ínsitas ao domínio da elaboração

legislativa. Se não observássemos tais técnicas, as leis seriam imensas. Imaginem o código

penal, por exemplo, se repetisse a cada tipo da parte especial todas as relevâncias contidas na

parte geral, pelo que cada artigo teria um texto absurdamente gigante e repetitivo. Quando se

diz “matar alguém”, em verdade se está implicitando uma série de conteúdos normativos

contidos na parte geral, que ali definem o crime culposo, doloso, as excludentes de ilicitude,

etc., que não precisam estar reproduzidas no artigo 121, na parte especial.

Outras características do texto legal tornam complexa a sua aplicação. Deste

modo, têm-se que, apesar de conciso e elíptico, o texto legal não consegue deixar de ser

plurívoco, ou seja, ter várias possibilidades de sentido, tal como Kelsen reconhece no último

capítulo de sua Teoria Pura, admitindo interpretações diversas, ora bastante díspares, e até

mesmo contraditórias.

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NORMA E VALOR: O CARÁTER CONSUETUDINÁRIO DAS FONTES

COMPLEMENTARES DO DIREITO (COSTUMES, JURISPRUDÊNCIA E DOUTRINA)

Salvo a lei, todas as demais fontes têm uma origem consuetudinária:

gestam-se paulatinamente, ou seja, pela repetição de conduta. O costume, por exemplo, é

conduta social repetida, ou melhor, é norma que emerge da repetição de conduta social. Mas

não é só o costume que tem origem consuetudinária. Quais são as fontes complementares do

direito? A lei é a principal fonte do nosso sistema. É a fonte por excecência.

Complementarmente a ela vêm a 1) jurisprudência, 2) a doutrina e o 3) costume. Já no campo

do direito penal, tais fontes complementares são utilizadas com muitas restrições,

fudamentalmente em razão do princípio da reserva legal. Alguns autores, inclusive, não

reconhecem tais fontes no direito penal. Em outros ramos do direito elas complementam o

caráter normativo da lei, ora explicitando-a, ora até mesmo criando normatividade contra a

própria lei. Apesar do mito de que não existe jurisdição“contra legem”, o fato é que os

sistemas judiciais modernos, adotando fonte complementares, por vezes decidem contra a

ratio legis. No entanto, a excepcionalidade de tal fato afirma a regra segundo a qual se deve

jurisdicionar sempre secundum legem e, não sendo possível isto, deve-se identificar a lacuna e

criar a solução judicial praeter legem, que é atividade integradora (colmatação de lacuna).

Num processo judicial, no contraditório que ali se agita, argumenta-se

com a lei, com a doutrina, com a jurisprudência. São os principais fontes do direito no mundo

moderno. O costume que já foi o principal, hoje é o mais frágil. Eventualmente, consegue-se

arrancar uma argumento de ordem consuetudinária. Mas, o costume é de origem

consuetudinária, ele é uma norma que emerge da repetição de condutas.

O que orienta a conduta de cada pessoa humana, isoladamente

considerada? O homem, do ponto de vista de sua subjetividade, é uma personalidade, é

alguém que se conduz com um certo perfil, é uma inteligência: um sistema de conceber as

coisas da vida e de valorá-las. Uma capacidade intelectual de perceber as coisas e

capacidade anímica de valorá-las. O valor é que orienta a conduta individalmente falando. Por

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isso é muito mais normativo, do ponto de vista social, a moral e a religião do que o direito. A

maior parte das repressões que impedem atitudes antisociais não são do âmbito juridico-

normativo: são do âmbito religioso e moral.

Valor e norma, no fundo, são dois lados de uma mesma moeda. Ou

seja, se A tem uma valor e um determinado grupo comunga um valor contrário, A é

considerado diferente. Mas, se o seu valor começa a ser comungado por todos, esse valor se

transforma em norma para aquele grupo. Mas valor não é uma coisa subjetiva e norma não é

uma coisa objetiva? Aonde está a resposta para este paradoxo?

Valor é subjetivo, por óbvio. No entanto, quando nós comungamos o

mesmo valor, para efeito desse grupo esse valor torna-se objetivo, ou seja, torna-se uma

norma de conduta. Assim, norma é uma valoração objetivada pelo critério da comunhão

paulatina do valor.

Não só a fonte costume tem origem consuetudinária, ou seja,

construindo um valor que vai tomando conta e vai se objetivando pela repetição de condutas.

Isso também está na jurisprudência. E a conduta que a jurisprudência faz repetir para se

constituir enquanto norma (enquanto valoração objetivada) é a conduta decisória dos juízes.

Jurisprudência é uma norma jurídica que emerge da repetição de condutas decisórias dos

juízes, cometida nas decisões judiciais (jurisdição).

Por outro lado, a sentença, como um todo, não caracteriza apenas uma

conduta decisória. Portanto, o que gera jurisprudência - a repetição de conduta decisória -

não se confunde com “repetição de sentença judicial” porque cada sentença judicial tem

vários conteúdos decisórios. Deste modo, as sentenças judiciais podem ser díspares mas, sob

determinado aspecto elas comungam o mesmo conteúdo decisório e, neste específico aspecto

normativo, formam jurisprudência.

Isto é jurisprudência e ela traduz, também, esse fenômeno da

valoração objetivada, um valor contido em conteúdos decisórios de sentenças judiciais e que

vai sendo paulatinamente comungado entre os juízes de direito. Em regra a jurisprudência

surge complementarmente à lei justamente nesses conceitos contidos na lei típicos de uma

linguagem natural, que são conceitos valorativos e os conceitos indeterminados (que iremos

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19

estudar adiante no curso), isto é, certas palavras de uso comum, utilizadas pelo legislador, e

que carecem de um juízo de valor complementar para sua concreção, ou seja, para a sua

aplicação à uma realidade concreta que ela designa genéricamente. A concreção do conceito

de mulher honesta é dizer: Fulana de Tal é honesta. Aplicou-se um conceito a uma realidade

concreta “Fulana de Tal”.

Da mesma forma a doutrina. Quando se diz que doutrina é fonte do

direito não se quer dizer com isto que qualquer coisa escrita sobre direito é doutrina no

sentido de fonte jurídica, no sentido de ser todo e qualquer texto doutrinário dotado de um

conteúdo normativo vigente (norma). Como a doutrina pode constituir norma jurídica? Ora,

quando se tem uma opinião teórica devidamente fundamentada sob determinados textos legais

isolados, ou institutos jurídicos inteiros, pelo que tal opinião doutrinária fundamentada, ao

comentar o texto legal explicitando o seu sentido, atua complementando a legislação,

definindo alguma coisa que está indefinida no texto legal, lapidando o texto legal. Portanto,

em regra, faz o mesmo papel da jurisprudência. Às vezes a jurisprudência antecede a doutrina;

às vezes ela é posterior à jurisprudência e a comenta. Mas, a doutrina só se transforma em

norma também por um viés consuetudinário: a repetição de opinião de doutores,

devidamente fundamentadas, doutas opiniões que os romanos chamavam há 2.000 anos de

“comunis opinium doctorum”. É apenas nesse sentido que a doutrina pode ser considera fonte

do direito, ou seja, pode interferir normativamente na construção das decisões judiciais, e

sempre a partir da Lei, complementando-a, lapidando o seu sentido. Portanto, contribui para

dar um sentido mais unívoco à lei. A lei, assim, toma uma função nuclear no nosso sistema:

somos um Sistema de Direito Legislado. No entanto, as outras fontes (jurisprudência,

doutrina e constume) também operam normativamente.

Portanto, sendo a norma jurídica este fenômeno complexo em que

interferem em sua elaboração diversas fontes concomitantemente, têm-se por fundamental

desenvolver uma teoria da norma jurídica. Somente assim poderemos determinar, com maior

clareza, os limites do fato jurídico e, como decorrência, os limites das consequências jurídicas

que advém desses fatos, e devem ser jurisdicionadas nos processsos judiciais. Como se chega

a uma definição jurídica de um determinado fato, como se extrai da prova colhida o que é

jurídicamente relevante, como se articulam essas relevâncias jurídicas a respeito de se limitar

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o conteúdo e a extensão da consequência jurídica? Este é o papel do operador do Direito. O

domínio de sua atividade, por óbvio, depende destas respostas. Vejamos o que seja o fato

jurídico, e como se organiza a sua fenomenologia segundo a melhor doutrina tradicional, que

é a de Pontes de Miranda, reescrita por Marcos Bernardes de Mello no seu texto “Teoria do

Fato Jurídico: plano da existência”. Somente no interior de uma Teoria do Fato Jurídico, é

que poderemos estudar as especificidades da norma de direito privado.

Antes, porém, recapitulemos os conceitos de existência, validade e eficácia da

lei, para não confundí-los com a existência, validade e eficácia do fato jurídico, que

estudaremos a seguir.

EXISTÊNCIA, VALIDADE E EFICÁCIA DA LEI

1. A existência da lei

Quando a lei começa a tomar existência? A discussão é acadêmica e

gera um tipo de problema que não tem um sentido prático. De duas, uma: 1) quando ela é

promulgada ou 2) quando ela é publicada. É num desses 2 momentos que a lei passa a ter

existência. Ao nosso modo de ver, o debate no qual se tenta fixar num ou noutro ponto o

marco inicial da existência da lei nada mais é do que uma discussão meramente acadêmica –

não tem nenhum sentido prático. Optamos aleatóriamente pelo publicação.

Ora, se existência da lei começa com a publicação, ela não se confunde com a vigência. A lei

começa a ter vigência quando ela está apta a produzir seus efeitos, regular a cunduta humana,

enfim, ser efetivamente aplicada. Portanto, para a lei, viger é algo mais do que

simplestemente existir. Deste modo, existência é o atributo da lei durante o período de

vacatio legis, ou então entre a publicação e o termo inicial e vigência. Quando ela passa a ter

vigência começa a produzir eficácia, ou seja, paasa a incidir sobre os fatos da vida previstos

hipoteticamente em seu suporte fático, transformando-os em fatos jurídicos.

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Note-se, por último, existência e vigência da lei não se confundem com

a sua validade. Uma lei pode existir, viger e ser inválida. Mas o que vem a ser a validade da

lei? Vejamos este novo tema.

A Validade da Lei

O conceito de validade da lei parece nos conduzir a uma discussão no

âmbito material da lei. Ora, o conteúdo material da lei não pode estar em conflito como o

conteúdo de outras leis sob pena de ferir a sistematicidade do direito, a coerência lógica

interna do ordenamento jurídico, o seu respeito ao princípio aristotélico da não-contradição.

Significa que duas leis não podem regular uma mesma conduta de modo diverso. Se ocorre

uma contradição desta natureza, solucionamos com as regras de solução de conflitos de

normas: 1) se o conflito se dá entre leis hierarquicamente distintas, vale a lei hierarquicamente

superior, que revoga a hierarquicamente inferior; 2), se o conflito se dá com uma lei de

mesmo grau hierárquico, a lei mais nova é a válida, revogando a lei anterior do mesmo grau

hierárquico.

Mas, note-se: se for publicada uma lei cujo conteúdo material está em

conflito com outra lei hierarquicamente superior, ela passará a ter existência e, na data

prevista, passará também a viger. Mais do que isto, ela ingressará no ordenamento jurídico

dotada de presunção de validade, porque ela é produto de um ato legislativo, que é ato do

poder público.

O poder público só tem três tipos de atos: 1) ato judicial, 2) ato legislativo e 3) ato administrativo.

Não há um quarto gênero. Sempre que nós quisermos analisar a natureza de um ato estatal, é

necessário que o enquadremos em uma destas três espécies.

Ora, em favor de todo e qualquer ato do poder público milita presunção

de validade. Esta é uma solução procedimental que a ordem jurídica adota pois, senão,

restaria indeterminado em que momento e sob que fundamentos uma determinada lei se torna

inválida. A invalidade de uma lei não é algo que se demonstre in re ipsa. Se do ponto de vista

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da Teoria Jurídica, uma lei em conflito com outra hierarquicamente superior não tem validade,

na prática não é bem assim. Quando o poder público comete o ato legislativo, elaborando uma

lei, ela passa a ter existência, presumindo-se a sua validade, ainda que ela esteja em conflito

material com uma norma hierarquicamente superior. Se houver dúvidas sobre sua validade, ou

seja, sobre sua coerência com a ordem jurídica vigente, então ela passa pelo crivo do sistema

de controle de constitucionalidade. Deste modo, a lei pode ser objeto de uma declaração

incidental de inconstitucionalidade, que afastará sua validade para um determinado fato sub

judice, ou então ser declarada inconstitucional através do controle direto, onde passará a não

ter mais validade como regra geral. A partir daí, vamos adotar soluções problemáticas para

tratar os efeitos que porventura ela tenha produzido até então. Isto porque, em virtude de ter

sido presumida válida antes do controle de constitucionalidade declarar sua invalidade, ela

incidiu e produziu eficácia legal em diversos casos pretéritos. Mas, esta é uma questão de

difícil equacionamento prático e teórico, desdobrando-se em temas como o direito

intertemporal, complexo por natureza. Aqui conhecemos o fenômeno apenas do ponto de vista

do nosso interesse, qual seja, no âmbito uma discussão metodológica mais geral.

A eficácia legal

A lei produz seus efeitos quando, iniciada a vigência e, ocorrendo

efetivamente no mundo os fatos que ela preve hipoteticamente, passa a incidir, transformando-

os em fatos jurídicos. Destarte, a eficácia legal e composta pela incidência e pela juridicização

dos fatos.

Questiona-se: uma lei pode existir e nunca viger? Sim, é o ocorre

quando a lei promulgada e publicada, é revogada durante o período de vacatio legis, por

exemplo. Ela existiu, mais foi revogada antes de iniciar a sua vigência. Foi o que ocorreu na

segunda metade deste século, com a parte geral do Código Penal. Outra questão: A lei pode

existir, viger e nunca ser eficaz, ou seja não produzir eficácia legal? Sim, basta que durante o

período de vigência não ocorra no mundo o fato nela previsto hipotéticamente. É raro, mas

teoricamente pode acontecer, desde que a lei também regule um fato incomum, sendo

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revogada antes que tal fato ocorra no mundo. Deste modo, percebe-se a necessidade lógica da

separação destas três caracteristicas da lei.

O FATO JURÍDICO

A DOUTRINA DE PONTES DE MIRANDA

A norma, como vimos, é composta por uma descrição hipotética de um fato

(SFH) ao qual conexionamos uma consequência jurídica (P). Representamos esta estrutura da

seguinte forma: N=SFH+P, onde SFH é suporte fático hipotético e P é o preceito). Duas

maneiras de visualizarmos o fenômeno normativo jurídico:

1ª) ocorrendo SFH, deve ser P

ou melhor,

2ª) dado SFH como condição, deve ser P como imputação.

Esta Segunda proposição é mais precisa, do ponto de vista metodológico, eis que explicita a

categoria da imputação, pela qual conhecemos o mundo do dever ser - o que a categoria da causalidade cumpre

para o conhecimento do mundo do ser (dado tal fato como causa será aquele outro como consequência).

Ora, segundo a doutrina positivista tradicional - o positivismo factual de Pontes

de Miranda, que tanto influenciou nossa cultura e formação jurídica - quando o fato descrito

hipotéticamente na norma (SFH, que é suporte fático hipotético) ocorre no mundo concreto

dos fatos (SFC é suporte fático concreto, ou seja, é o fato do mundo que corresponde ao SFH;

portanto, é fato concreto que se enquadra na previsão normativa abstrata), a norma incide,

deslocando o fato concreto para o mundo jurídico, que é o mundo dos fatos jurídicos, ou seja,

fatos sociais juridicizados pela incidência de normas jurídicas. Deste modo, o mundo jurídico

pode ser pensado como um subconjunto do mundo dos fatos.

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Uma vez juridicizado, o fato se transforma em fato jurídico (v.g., um contrato,

um casamento, um crime, um ato administrativo, etc., que são fatos complexos do mundo,

previstos em normas). Do fato jurídico é que se irradia a eficácia jurídica, qual seja, o

conjunto de efeitos (consequência juídica) previstos no preceito da norma jurídica. Tais

efeitos se traduzem, basicamente, numa relação de direito, onde alguém titulariza um direito

subjetivo em desfavor de outrem que titulariza um dever.

Ora, quando a norma incide sobre o fato nela previsto, juridiciza-o, pelo que o

fato jurídico ingressa no plano da existência. A relação de direito e dever que dele se irradia

constitui o plano da eficácia jurídica. Alguns fatos jurídicos (nem todos) passam ainda pelo

plano da validade - conforme veremos no momento adequedo.

Por último, é de se observar que o direito subjetivo, enquanto categoria

eficacial (ou seja, enquanto eficácia do fato jurídico), traduz-se num poder subjetivo cujo

núcleo, segundo a doutrina tradicional, é a exigibilidade, que é a faculdade de exigir de

outrem uma conduta. A esta exigibilidade os alemães deram o nome de anspruch (BGB, art.,

expressão traduzida para a lingua portuguesa como pretensão.

Eis uma visualização gráfica deste modelo de juridicização:

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25

A incidência legal, que é o pressuposto da existência do fato jurídico, segundo

este modelo, dá-se num plano puramente lógico do direito. Diz-se plano lógico pois este

restringe-se ao mundo das idéias, do raciocínio jurídico, sem implicar necessariamente na

dimensão sociológica do direito, onde ele interfere efetivamente no mundo real. Por

exemplo: em um acidente de trânsito, a norma que regula a indenização por danos incide

lógicamente no momento do acidente, fazendo-o ingressar no mundo do direito na condição

de fato jurídico (fato com relevância para o direito, ou seja, com um “valor” jurídico

imprimido pela norma que incidiu). Trata-se, mais especificamente de um ato ilícito

absoluto, que é espécie de fato jurídico. Deste ato ilícito irá irradiar-se uma relação de

direito, na qual um dos acidentados titularizará um direito subjetivo (pretensão indenizatória,

que é crédito), e outro titularizará um dever (responsabilidade civil aquiliana, que é espécie de

obrigação).

É problemático dizer que a norma é um dado objetivo, um direito objetivo. Sempre a sua

determinação implica em interferência do operador jurídico, especualmente o juiz, em virtude do necessidade de

sua interpretação, bem como do caráter plurívoco do texto legal, isto é, pelo fato de ele possuir vários sentidos

possíveis e válidos. Se a determinação de um desses sentidos implica num ato de escolha do operador, que é ato

de vontade, então já não poderemos sustentar o caráter puramente abstrato do plano lógico do direito, eis que a

intervenção do operador através do ato hermenêutico é uma dimensão fática, é plano sociológico. Então, nisso

esse modelo falha. Mas é uma “microdimensão” que a gente pode abstrair e esse modelo pode permaneçer

válido, ou melhor, instrumental da prática judicial, como modelo de racionalidade para o operador do direito.

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26

Ainda que se saiba, com a reflexão metológica moderna, que o fenômento é um pouco mais complexo, esse

modelo de racionalidade organiza, de uma maneira global, o pensamento jurídico que se exerce dentro de um

processo judicial, conforme estamos tentando demonstrar.

Ora, segundo o modelo positivista factual que estamos estudando, todo este

“fenômeno jurídico” acima descrito não se dá no mundo concreto, mas apenas no mundo das

idéias e do raciocínio jurídico. Portanto, chama-se a esta fenomenologia de plano lógico do

direito.

Isto significa que toda a discussão inicial que se desenvolve no processo de conhecimento -

ou seja, a determinação da existência, do conteúdo e da extensão do direito subjetivo deduzido no pedido, e que,

segundo as razões expendidas pelo autor, se irradia de um determinado fato social (quaestio factis) em razão da

incidência de uma determinada norma jurídica (quaestio iuris) - é mera atividade de cognição, atividade técnica

desenvolvida por técnicos em direito: os juristas. Deste modo, fica oculta eventual dimensão política jurislativa

(atividade criadora de direito) no ato jurisdicional. Por outro lado, este modelo deve ser explorado a luz de

sua projeção processual, ou seja, amarrando suas principais categorias na teoria geral do processo, eis

que ele só encontra utilidade “prática” se organizar o nosso pensamento “prático”, que é pensamento

que opera o sistema judicial. Tal operação, como sabemos, se dá atraves do processo judicial. Fora

desta perspectiva, segundo nos parece, as teorias jurídicas tendem a um diletantismo academicista.

A dimensão sociológica do direito, por sua vez constitui-se no ato de

aplicação do direito, que nada mais é do que a realização no plano fático da dimensão lógica

do direito. Existem duas formas de aplicar o direito:

1. APLICAÇÃO ESPONTÂNEA : X indeniza Y pela batida. Y exerceu seu direito

subjetivo, sua sua pretensão indenizatória, eis que X cumpriu sua obrigação de

indenizar espontaneamente. Não se precisou ir até o Estado e pedir tutela. Assim, a

maior parte dos atos de aplicação do direito são atos espontâneos. Não há necessidade

dos operadores do Direito. Ademais, bem observado, na maior parte das aplicações

espontâneas dos direitos o que se faz é composição. Não há resitência. Há acordos.

2. APLICAÇÃO COATIVA: há resistência ao exercício do direito, surgindo um

conflito entre as partes, decorrente de um direito exercido e resistido pelo devedor.

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27

Neste caso, judicializa-se o conflito e o Estado presta tutela ao direito através de atos

jurisdicionais.

Não se deve confundir, entretanto, a fenomenologia da juridicização,

que corresponde ao plano lógico da eficácia legal, com o fenômeno da aplicação do direito,

que se da espontâneamente ou por atos de violência estatal (medidas constritivas da liberdade

e do patrimônio, em regra). A aplicação do direito corresponde ao plano sociológico, onde se

encontra o conceito de efetividade da lei, também designado por eficácia social da lei, que

diz respeito a sua efetiva aplicação – ou não - pelos órgão públicos responsáveis pela tutela

jurídico-estatal. Portanto, uma lei pode produzir eficácia legal (fato jurídico) sem contudo ter

a sua aplicação garantida pelo Estado. Assim, embora existente, válida e eficaz do ponto de

vista lógico - reunindo assim todas as características indispensáveis à transformação lógico-

normativa dos fatos nela previstos em fatos jurídicos - a lei não é eficaz do ponto de vista

social, eis que sua aplicação concreta não é efetivada pelo poder público.

Vejamos mais de perto o específico fenômeno do surgimento do

direito subjetivo e sua discussão lógico-normativa no plano processual. Retomemos para isto

o exemplo do acidente de trânsito.

X bateu no automóvel de Y por sua exclusiva culpa, causando danos.

No momento em que o automóvel de X amassa a traseira do automóvel de Y, está causando

danos ao patrimônio deste. Quando parou de amassar está definido o dano. Ali imediatamente

- e isso do ponto de vista lógico, isto é, do pensamento jurídico - incide uma norma . Qual o

núcleo dessa norma? Art. 159 do CCB. Ao incidir, a norma transforma este acidente, naquilo

em que ele se traduz em causação de dano, num específico fato jurídico: o ato ilícito absoluto.

Deste fato jurídico irradiam-se direito subjetivo e dever, conforme vimos acima. Mas tal

incidência legal e tal irradiação de efeitos jurídicos ocorre apenas do ponto de vista lógico, e

não sociológico. A incidência da norma não tem existência fática. Dá-se apenas no mundo das

idéias. Sociológico no fenomeno jurídico é o ato de aplicação do direito subjetivo que dali

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decorre. X compromete-se a pagar, ou seja acena com a aplicação espontânea do direito, eis

que se ele pagar espontâneamente, está realizado o direito subjetivo no mundo dos fatos sem

qualquer demanda judicial. No outro dia, no entanto, Y lhe telefona e quem atende é o

advogado de X. O advogado diz que seu cliente lhe havia dito que Y é que bateu no seu

carro, eu que havia culpa recíproca, por exemplo. Surge o conflito, ou seja, ao tentar exercer

seu direito espontâneamente, X encontrou resistência por parte de Y. Trata-se, portanto, de um

conflito de interesses qualificado por um direito subjetivo exercido e resistido. Para resolver

tais conflitos existem os advogados, promotores e juízes. È o Estado que irá prestar jurisdição,

cumprindo seu papel de tutelar os direitos subjetivos quando violados, por exemplo, já que ele

monopolizou para si os atos de tutela de tais direitos. Esta tutela dá-se através de um processo

judicial, onde X deduz em juízo o seu direito subjetivo, pedido que o Estado garanta o

cumprimento da obrigação correspondente. Que direito subjetivo seria este? Um direito

subjetivo de crédito. Ou melhor, uma pretensão creditícia. Deduziu a pretensão, que é a

faculdade de exigir de outrem uma conduta, um pagamento. A pretensão é um elemento

nuclear do direito subjetivo, qual seja, é a exigibilidade do direito subjetivo. Deduziu em

juízo a sua pretensão: isto se chama pedido, cuja causa de pedir é o fato jurídico, porque,

conforme vimos, o fato jurídico é a causa do direito subjetivo. O direito subjetivo é o efeito da

causa de pedir, é o efeito do fato jurídico. Por fim, temos ainda as causas próxima e remota,

ou seja, o fato e a norma, ou, em outras palavras, a questão de fato (quaestio factis) e

questão de direito (quaestio iuris).

Se este modelo apresentado acima realmente reflete o fenômeno jurídico ele é

um modelo de racionalidade que organiza o nosso pensamento, tendo em vista o melhor

exercício de nossa atividade jurídica profissional, atividade esta que se desenvolve no interior

de um processo judicial. Resta sabermos até que ponto um modelo teórico pode dar conta, de

modo coerente, do que acontece realmente no interior do processo judicial. Como poderá

imprimir sistematicidade à nossa racionalidade, coerência ao nosso raciocínio, precisão

metodológica a nossa atuaão judicial, organizando o nosso pensamento jurídico concreto, este

que atua judicialmente elaborando peças, argumentos e decisões de natureza judicial. É a

questão que nos interessa imediatamente neste curso de teoria geral de direito privado.

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Qualquer peça processual vai seguir esta lógica apresentada pelo nosso modelo:

a denúncia, o parecer, as alegações finais, uma sentença judicial, uma petição, umas contra-

razões, etc.. Vejamos um exemplo criminal:

Quando X bateu em Y havia uma criança C dentro do carro que se machucou,

pelo que X produziu lesões leves em C, conduta típica prevista art. 129 c/c artigo 14 do CP,

nuclearmente falando, eis que incidem outros dispositivos da lei penal.. Esta norma penal

incide sobre esta base fática, o acidente de trânsito, extraindo outras relevâncias jurídicas

(relevâncias criminais) que o artigo 159 do CCB não extraiu. Note-se: sob a mesma base

fática geral – o acidente de trânsito com vítima – incidiram pelo menos duas normas jurídicas:

1º) uma de direito criminal, gestando o fato jurídico crime, que é ato ilícito penal, do qual se

irradia ius puniendi, que é direito subetivo público de punir, titularizado pelo Estado, dotado

de uma pretensão punitiva correspondente a um dever de cumprir pena por parte do agente

da conduta delituosa; 2) uma de direito privado, gestando, como já vimos, um ato ilícito

civil, que é outro fato jurídico.

Portanto, no que tange ao fato jurídico criminal, ou seja o crime, para

finalizar a nossa abordagem, o Estado titulariza um direito subjetivo que dele se irradia como

eficácia jurídica. Tal “ius puniendi”, como vimos, é dotado de uma pretensão punitiva

exercível contra um “dever” genérico de cumprir pena. Essa é a relação jurídica penal. Qual

é a exigibilidade deste direito subjetivo público de punir? É uma pretensão punitiva. Ora,

agora é possível entender o pedido em sede de ação penal. Segundo a teoria do processo,

pedido é pretensão deduzida em juízo. Então qual é o pedido articulado em uma denúncia?

É pretensão punitiva deduzida em juízo, o que caracteriza um pedido condenatório, pois as

pretensões, em regra, se tutelam com atividade jurisdicional de natureza condenatória,

exercida ao final da cognição, que é atividade cognitiva desenvolvida durante a instrução

processual. Quem titulariza esse direito? O Estado. Quem representa processualmente o

Estado? O Ministério Público.

Deste modo, o modelo apresentado demonstra potencial para organizar e

instrumentalizar a atividade judicante também no âmbito criminal.

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Outro aspecto importante: O fato geral utilizado como exemplo é um só. Mas

do qual se getaram dois fato jurídicos distintos, dos quais se irradiam dois direitos subjetivos

distintos que serão tutelados por duas ações distintas. Ademais, sendo um fato de direito

privado e outro de direito criminal, não há como cumular pedidos, nem suas correspondentes

ações. Tais ações vão ter que ser tuteladas em processos distintos: um cível; outro criminal.

No entanto, se houvesse, por exemplo, outro fato criminal, como na hipótese de

X, o nosso causador do acidente com vítima, não possuir habilitação para dirigir, incidiria

sobre a mesma base fática geral uma terceira norma, esta última de direito criminal, contida na

parte criminal do Código de Trânsito, gerando um novo ato ilícito penal, com nova eficácia

jurídica, ou seja, novo direito subjetivo público de punir por parte do Estado, ao qual

corresponderia um novo pedido condenatório, uma nova ação penal. Nesta hipótese porém,

esta ação penal poderia vir cumulada com as lesões corporais, eis que de mesma natureza,

pelo que podem ser exercidas no mesmo processo, pelo mesmo titular que é o Estado, através

do mesmo representante processual que é o MP, que iria cumular um duplo pedido

condenatório na mesms denúncia, onde narraria em seu corpo dois fatos jurídicos, que são as

duas causas de pedir, uma de cada pedido.

Ora, parece que o nosso modelo dá conta de organizar as principais

questões que nos interessam para operar o direito dentro de um processo judicial. Trata-se,

portanto, de uma teoria que organiza a nossa prática e é isto que efetivamente interessa num

saber prático tal como o saber jurídico. Teorias Jurídicas sem qualquer projeção na prática

judicial é mero diletantismo acadêmico. Por outro lado, prática judicial sem articulação

teorética, via de regra, é atuação medíocre, que incide por vezes em erros grosseiros que só

atrapalham a vida dos operadores do direito, com prejuízo incalculável, não só para o Estado -

porque operar o direito implica em custos altos - como principalmente para o jurisdicionado,

porque tal atuação judicial repercute no seu patrimônio, na sua liberdade, suas esperanças,

seus sonhos... em uma só palavra, sua cidadania.

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Por outro lado, vimos que os esquemas teóricos do direito tem que nos

oferecer respostas articuladas entre o plano do direito material e o do direito processual, eis

que um se compreende a luz do outro, e que o processo existe para promover a tutela de

direitos materiais. A teoria jurídica deve oferecer aos operadores do direito, seja qual for a

área de atuação, o ponto de interseção entre o direito processual e o direito material, virtude

absolutamente escassa em nossa produção doutrinária atual. E esta é uma das maiores

carências na nossa formação.

Os processulistas, por exemplo, levaram para a “ciência autônoma” do

processo certos conceitos do direito material, tais como o de pretensão e o de ação. A a partir

daí, criou-se a maior confusão, desamarrando-se o direito processual do direito material de tal

forma que a jurisdição de segundo grau tornou-se, no âmbito do direito privado

principalmente, pura discussão formal de temas meramente processuais. No limite, em sede de

apelação, o direito a ser tutelado transformou-se num (sic) estorvo para o processo,

atrapalhando as “riquíssimas” discussões em torno das teses de direito processual.

Querem ver? Qual o conceito de pedido: Pretensão deduzida em juízo. Qual o

conceito de lide? É um conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida. Olha a

palavra pretensão. Que palavra é esta? É material ou processual? Ex. A pretende dançar com

B. que não quer dançar com A. Há um conflito de interesses. Há uma pretensão resistida, há

uma lide ? Não há uma lide aí. Porque quando se diz pretensão, não é qualquer pretensão, não

é pretensão no sentido vulgar da palavra, ou seja, no uso comum da linguagem natural. Por

certo o direito vale-se, e muito, para compor suas regras, da linguagem natural. Este é um

tema que teremos de enfrentar, pois nos oferece dificuldades de atuação. No entanto, a palavra

pretensão, aqui, está posta num sentido absolutamente técnico-jurídico. Um direito subjetivo

que existe enquanto titularidade, que existe enquanto exibilidade, que é pretensão e ele existe

enquanto impositividade que é ação. Então pretensão aque é exibilidade do direito subjetivo.

É um momento analítico do direito subjetivo. E o que é exibilidade? E a faculdade de exigir

de outrem uma conduta. A tem um direito subjetivo de dançar com B? tem a faculdade de

exigir que B dance com ele? Não. Então, A não tem pretensão. Então, não há lide. É o mesmo

que um sujeito que titulariza um crédito antes da data do vencimento: ele pode até ter a

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pretensão de receber antes do vencimento, mas o conflito daí resultante não caracteriza uma

lide, no sentido técnico, eis que não há uma pretensão no sentido técnico-jurídico, que é a

exigibilidade do direito subjetivo de crédito que surge apenas na data do vencimento.

Parece que o nosso modelo nos oferece respostas bastante técnicas sobre

questões práticas do dia-a-dia judicial. Portanto, vale a pena avançarmos na sua análise,

estudando os seus desdobramentos. Pelo que se viu, precisamos estudar não apenas uma

classificação do fato jurídico, como também uma teoria do direito subjetivo, dissecando-o

em seus diverso momentos analíticos, ou seja, enquanto titularidade, pretensão e ação

material. Façamos isto.

CLASSIFICAÇÃO DOS FATOS JURÍDICOS

Uma primeira diferenciação: Ato vs. Fato

O que significa a palavra fato? E a palavra ato? Qual a diferença entre fato e

ato? Há uma relação de gênero e espécie entre ambas? Por certo, eis que fato é uma palavra

que designa todo e qualquer fenômeno da natureza, inclusive os fenômenos culturais, a

conduta humana. Portanto, quando se fala em fato jurídico, isto significa todos os fenômenos

da natureza que foram juridicizados por força da incidência de uma norma jurídica. Ora, a

maior parte dos fenômenos juridicamente relevantes são os atos humanos, eis que o direito

regula, fundamentalmente, a conduta humana, que se promove através de atos. Mais

especificamente, o direito regula, segundo a doutrina tradicional, comportamentos humanos

em interferência intersubjetiva.

Daí decorre que as relações jurídicas sejam relações entre pessoas determinadas – individualizadas do

ponto de vista técnico-jurídico. A individualização da pessoa, estudada no interior da Teoria da

Personalidade, dá-se através da explicitação de características pessoais de cada um: nome, filiação,

data e local de nacimento, nacionalidade, estado civil, profissão e endereço, basicamente. É o que se

faz na abertura das petições ao qualificar-se determinada pessoa em um processo judicial. No entanto,

têm-se hoje uma evolução do direito no sentido de regular contutas não apenas intersubjetivas, mas

também outras de natureza transubjetivas: tratam-se dos modernos direitos coletivos, interesses

difusos, etc., tutelados via de regra pelas ações civis públicas. Nestes casos, o titular do “direito” é uma

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coletividade mais ou menos difusa, mas de qualquer forma indeterminada, ou seja, seus componentes

não estão individualizados, nem na relação de direito material, nem na relação processual.

Ora, daí decorre que a maior parte dos fatos jurídicos, no sentido lato, sejam

da espécie atos jurídicos, também no sentido lato. Em direito civil todos os negócios

jurídicos são espécies de atos jurídicos, em direito administrativo uma das categorias mais

importantes é o ato administrativo, que é um ato jurídico de direito público, um ato estatal.

Em direito penal, todos os crimes e contravenções – que são os fatos jurídicos penais – são na

verdade atos jurídicos ilícitos. Voltando-se ao direito civil, temos os ato ilícito absoluto, que

é a causação de dano à esfera patrimonial ou moral de outrem, bem como o ato ilícito

relativo, que traduz o inadimplemento enquanto fato jurídico distinto do contrato. Temos

ainda, por exemplo, os atos processuais, que são fatos jurídicos de direito processual. Enfim,

todos estes atos jurídicos acima elencados são espécies de FATO JURÍDICO. Daí a

necessidade de estudarmos, dentro da teoria do fato jurídico, uma classificação do mesmo,

uma taxionomia do fato jurídico. Ademais, a razão epistêmica, ou seja, a razão científica, tem

uma forte tendência às classificações, eis que ao construir suas “teorias”, outra coisa não faz

senão sistematizar as principais categorias, imprimindo-lhes uma organicidade, desde as

categorias mais gerais até as mais particulares. Daí decorrem as classificações.

Buscando um critério de classificação do fato jurídico

Vejamos, inicialmente, um critério natural de classificação dos atos e fatos.

Dentre os fatos, em sentido lato, temos os atos humanos e os fatos da natureza como uma

primeira divisão importante para nós. Qual a característica fundamental que diferencia os atos

humanos dos fatos naturais: ora, os atos humanos contém em seu núcleo um elemento

volitivo, ou seja, a vontade humana.

Toneladas de reflexões filosóficas sobre o problema da liberdade humana, da

responsabilidade...Isso interessaria a nós juristas? O problema da moral, das éticas deônticas.... Um

indivíduo na perspectiva por exemplo, de Kant, diz : "A liberdade humana surge justamente do livre

arbítrio. É pelo livre arbítrio que o homem se liberta dos grilhões da causalidade natural. Isso é um

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problema que interessa a nós juristas. Os fatos não são decorrência de uma causa? Nós não pensamos

no mundo dos fatos como uma relação de causa e efeito? Nós não estudamos se uma situação

astrológica atual do planeta se dá em função de uma série de causas? Não é por causa disso ou por

causa daquilo que o efeito disso causa efeito, ... causa efeito. E isso á está escrito aonde ? Na

providência divina. Ora, se tudo é produto da providência divina, temos um culpado por eu dar três

tiros na cabeça de fulano, porque foi Deus que me pôs neste mundo, e se foi Deus que me pôs neste

mundo, logo foi Deus que quis que eu fizesse isso ! Se isso fosse verdade, se essa causalidade física

amarrasse todos os fenômenos, o homem não seria responsável pela sua conduta. Então, como que o

homem se libera da causalidade física ? Através do livre arbítrio.

Então já não é mais uma seqüência de causas e efeitos, mas ele escolhe numa

determinada situação onde há várias possibilidades comportamentais, ele escolhe um comportamento

em detrimento de outro, e ele é responsável por essa escolha. Então é justamente pela vontade que

aquilo que o homem faz se traduz em ato, e por ser ato e ter vontade, ele é responsável, responde por

esse ato, por essa escolha, por essa vontade. Toda teoria moral e teoria jurídica da vontade está

montada em cima disso. Então são atos as condutas humanas que implicam em vontade. "Eu estou lá,

tomando meu drink em uma festa chique em um palácio qualquer, num cocktail, conversando com uma

dama bonita, autoridade pública, quando um gaiato passa e encosta o cigarro no braço do Jairo, que

tem uma reação e joga todo o campari em cima da dama." Houve uma ação minha ? Não, porque o ato

implica em vontade. Então tem que ter cuidado com isso, ato não é toda e qualquer conduta, no sentido

mais largo, e tem que ter a vontade, o elemento volitivo. E é por isso mesmo que o Jairo não responde

por aquilo, porque ele não teve nenhuma culpa, não há que haver culpa porque não houve ato, o que

não é ato não pode ser objeto em culpa. Bom, se contrapõe aos fatos que são os eventos da natureza...

Podemos usar esse critério para classificar os fatos jurídicos e os atos jurídicos

? Serão atos jurídicos toda conduta juridicizada, e serão fatos jurídicos stricto os eventos que

não forem conduta humana, mas apenas eventos da natureza juridicizados. É o critério de

classificação mais comum adotado pelos doutrinadores – e, o que é pior, está absolutamente

errado.

Nem toda conduta humana se juridiciza como ato jurídico ou ato-fato - que

não deixa de ser uma subespécie de ato. As vezes o resultado de uma conduta humana se

juridiciaza como fato jurídico stricto sensu. Por exemplo: se a norma descreve um evento tal

como a mistura de dois bens que se tornam, depois da mistura, inseparáveis, mas que eram

objeto de propriedade de pessoas diferentes, como é que fica o regime da propriedade depois

dessa mistura ? O artigo 615 Código Civil contém uma regra para solucionar esses casos. Ali,

a regra não descreve uma conduta humano, mas apenas o evento da mistura. Imaginemos que

a mistura tenha se dado por força de um temporal, por exemplo, em uma fazendo, que sacudiu

uma mesa e fez cair uma lata de tinta dentro da outra, tintas caríssimas, suponhamos, de

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pintores que estavam lá no final de semana, pintando uma paisagem... De quem é a tinta que

resultou da mistura? Trata-se do fato jurídico da comistão, que é um fato jurídico stricto

sensu, eis que a regra o jurisdiciza descreve apenas o fenômeno da mistura de duas

substâncias, só a parte fenomênica, a parte do evento da natureza. Agora, imaginemos que a

mistura tenha sido feita por um empregado dos donos da fazenda que estava limpando o local

e, ingenuamente, achou que seria de bom grado juntar aqueles restos de tinta. Ou seja, a

comistão deu-se por obra da conduta humana, um ato de um ser humano. Pergunta-se: neste

caso, trata-se de um ato jurídico ou um de fato jurídico stricto sensu? Pelo critério natural,

adotado pela maioria dos doutrinadores, tratar-se-ia de um ato jurídico, pois foi um ato do

empregado que se juridicizou.

No entanto, a comistão não deixa de ser um fato jurídico stricto sensu pelo

motivo de ter sido causada por ação humana. O que importa para definir-se algo como ato

juridico ou fato jurídico stricto sensu é como ele está descrito no suporte fático da norma.

Conclusão: se você quiser saber que tipo de fato jurídico se trata, você vai ter

tomar a norma jurídica e examinar em seu suporte fático o que ela está descrevendo: um ato

ou um fato? Se ela descrever uma conduta humana e seu elemento volitivo, isso aqui vai ser

um ato jurídico, se ela descrever só a conduta humana, isso aqui vai ser um ato-fato, e se ela

descrever só o evento, vai ser um fato. Eis o crítério de classificação dos fatos jurídicos

lícitos.

Se a norma descreve apenas o evento, não descreve conduta, e o evento é resultado de uma conduta,

tanto faz, ela incide no que descreve, e, portanto, faz ingressar no mundo jurídico somente aquilo que

descreveu, ou seja, apenas o evento da mistura, que é fenômeno natural. Portanto, entra no mundo

jurídico na condição de fato jurídico stricto sensu. Ora, pelo fato de somente se juridicizar a dimensão

do fato que a norma descreve a priori - o evento, no caso – conclui-se que um fato jurídico stricto

sensu pode ser produto de uma ação humana, como no exemplo acima, onde a mistura dos bens que

são inseparáveis deu-se por ato humano.

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Classificação dos fatos jurídicos

Lato sensu vs. Stricto sensu

Antes de iniciarmos a classificação do fato jurídico, vejamos o porque do uso

reiterado destas expressões latinas complementares, tal como um sobrenome, quando se trata

de fato jurídico (fato jurídico lato sensu X fato jurídico stricto sensui) ou então quando se

trata de ato jurídico (ato jurídico lato sensu X ato jurídico stricto sensui). Ora trata-se de um

problema de uso do mesmo nome tanto para o gênero como para uma das espécies

(homonímia conceitual). Ou seja, conceitos que, embora estabeleçam entre si uma relação de

gênero e espécie, recebem o mesmo nome: fato jurídico, por exemplo. Ora, quando eu falo

em fato jurídico, eu posso estar designando todos os fatos, atos e atos-fatos, lícitos ou não,

relevantes para o direito, pelo que estou falando em fato jurrídico lato sensu (ex.: Teoria do

Fato Jurídico). Posso também estar querendo designar apenas os eventos da natureza que se

juridicizam, tal como o fato jurídico “morte”, ou “nascimento”. Agora estou falando em fato

jurídico stricto sensu.

Este problema ocorre quando uso a mesma palavra ou expressão para designar

tanto o gênero quanto uma dentre as várias espécies. Fato, em sentido lato, é gênero porque

designa tanto os atos humanos como os fatos da natureza. Em sentido estrito, fato é aquilo

que não é ato, ou seja, é apenas evento da natureza. É como chamar-se o filho com o nome do

pai, pelo que teremos que usar um complemento diferenciador: junior. É só isto. O

complemento, no caso, é 1) lato sensu para o gênero e 2) stricto sensu quando se trata daquela

espécie que recebeu o mesmo nome do gênero. As vezes, quando se deixa de usar o

complemento, o uso do termo fica ambíguo, pelo que é necessário compreender o sentido

correto através do contexto no qual se emprega a expressão.

Agora nós vamos começar a trabalhar com a classificação dos fatos jurídicos.

No entanto, carecemos de um outro elemento divisor de águas, anterior a própria divisão entre

os fatos e os atos. Qual será? Vejamos.

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Qual a diferença essencial entre uma causação de dano e um contrato de

compra e venda, enquanto fatos jurídicos de direito privado? Eles são idênticos naquilo em

que ambos irradiam como eficácia relações jurídicas de direito obrigacional, ou seja,

pretensão contra obrigação de prestar. No entanto, o contrato de compra e venda é valorado

positivamente. É, portanto, um ato jurídico lato sensu lícito. Já a causação de dano constitui

um ato ilícito absoluto. Os crimes são todos ilícitos, enquanto os atos administrativos e os

atos processuais são lícitos. É preciso, portanto, estabelecer esta primeira divisão entre os

fatos jurídicos: os contrários ao direito para um lado, os não contrários ao direito para o outro.

Chamaremos os primeiros de ilícitos e os segundos de lícitos.

Vamos trabalhar primeiro os ilícitos.

1. Os Atos Ilícitos

Em primeiro lugar, somente os atos jurídicos podem ser contrários ao direito.

Ou seja, todo ilícito é um ato. Não entendemos relevante, do ponto de vista prático, a

classificação de certos fatos jurídicos lato sensu enquanto atos-fatos ilícitos, ou mesmo

fatos jurídicos strito sensu ilícitos, tal como faz Marcos Bernardes de Mello em sua Teoria

do Fato Jurídico.

Isto posto, resta a questão: existem subdivisões entre os atos ilícitos? Sim, em

direito privado é fundamenta distinguir o ato ilícito absoluto do ato ilícito relativo.

É que no âmbito do direito privado todo ato ilícito traduz-se numa violação de

direito subjetivo. O que é que significa isso ? Nós já vimos que a eficácia jurídica é

basicamente a irradiação do direito subjetivo e correspondente dever. Ora, o ato ilícito é

descumprimento de dever, portanto, é devedor violando o direito que lhe corresponde. Deste

modo, somente quem titulariza o dever pode violar o direito correspondente.

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Note-se, no entanto: se eu tenho uma promissória - onde titularizo um crédito contra

um obrigado - e vem um terceiro e rasga essa promissória, não foi o titular do dever de resgatar essa

promissória quem cometeu um ato ilícito relativo (pelo descumprimento do seu dever), e sim, um ato

ilícito absoluto daquele terceiro, eis que em relação a ele aquela promissória não traduz pretensão

creditícia, mas sim constitui objeto do meu patrimônio. Logo, rasgondo a promissória, ele violou

direito dominial. Tal direito é de natureza absoluta, ou seja, se exerce contra todos, razão pela qual um

terceiro alheio a uma relação jurídica anterior, relativa àquela promissória, pode violá-lo.

Temos, portanto, um critério para distinguir o ato ilícito absoluto do relativo.

Ora, se o meu direito relativo só pode ser exercido em relação a uma pessoa (daí a expressão

direito relativo), somente esta pessoa poderá violá-lo, dando causa a um ato ilícito relativo.

Por outro lado, se o meu direito absoluto é exercido erga omnes, ou seja, contra todos, isto

significa que qualquer um pode violá-lo, cometendo um ato ilícito absoluto. Assim, qualquer

um pode causar dano no meu automóvel, mas somente o meu devedor pode descumprir a

obrigação de pagar o que me deve na data do vencimento. Logo é a natureza do direito

violado que definirá o tipo do ato ilícito: o ato ilícito relativo é violação de direito relativo;

o ato ilícito absoluto é violação de direito absoluto.

Tal distinção é importante, no que diz respeito ao ato ilícito relativo, quando

se estuda o que se chama de tutela específica.

O descumprimento do dever que se irradia de um fato jurídico (dever é eficácia

de um fato jurídico) é novo fato jurídico, que com o original não se confunde. Gera, por sua

vez, novo direito e dever, nova relação jurídica, ou seja, nova eficácia jurídica. Quando se fala

em ato ilícito, por se tratar de violação de direito subjetivo, tem que ter cuidado, eis que há

sempre dois fatos jurídicos, duas normas, dois direitos subjetivos, duas obrigações, e não se

pode confundir uma com a outra. Vejamos um exemplo. Quando alguém bate em meu

automóvel causando dano, viola o meu direito de propriedade, que é direito absoluto eis que

eu o exerço erga omnes. Da ensejo a um ato ilícito absoluto, portanto. Mas quando eu vou a

juízo pedir tutela a minha pretensão indenizatória, eu deduzo em juízo um crédito, e não o

direito violado, que é o direito de propriedade. Compreenderam? É que o crédito se irradia

como eficácia do ato ilícito absoluto (violação do direito de propriedade, causando dano ao

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bem objeto do direito), enquanto o direito violado, a propriedade, irradia-se como eficácia de

outro fato jurídico, que pode ser, por exemplo, a tradição, ou seja, quando o vendedor do

veículo transmitiu a sua propriedade para mim (ou então por qualquer outro modo de

aquisição da propriedade móvel, regulado no CC).

2. Fatos jurídicos lato sensu lícitos

Conforme analizamos acima, para se determinar a espécie de fato jurídico que

estamos lidando, devemos tomar a norma jurídica e examinar o seu suporte fático, observar o

que ela está descrevendo, se se trata de um ato ou de um fato. Se ela descrever uma conduta

humana no seu aspecto interior, ou seja, seu elemento volitivo, quando ela incidir sobre um

fato do mundo estaremos diante de ato jurídico. Por outro lado, se ela apenas descrever a

conduta humana na sua dimensão exterior, sua incidência ira gerár um ato-fato, e se ela

descrever só o evento, vai se tratar de um fato jurídico stricto sensu.

Vejamos tais espécies mais de perto.

Para surgir um ato jurídico lato sensu, não basta a norma que o juridiciza

descrever uma conduta humana. Ela tem que conter a descrição, no núcleo de seu suporte

fático hipotético (SFH), a dimensão interna mais importante da conduta humana: o elemento

volitivo, ou seja, uma manifestação de vontade. Se ela descrever apenas o aspecto externo

da conduta, tal como “achar um objeto abandonado (res nullius), ela descreve um ato mas

tomando-o como se fosse um fato. Aqui estaremos diante de um ato que a ordem jurídica toma

como fato, ou seja, uma ato-fato jurídico.

Vejamos alguns exemplos:

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Uma norma que regula um contrato de compra e venda descreve, no núcleo de

seu suporte fático hipotético, uma manifestação de vontade bilateral, onde as partes

determinam o bem e preço para efeitos de compra e venda. Daí decorrem os efeitos jurídicos,

quais sejam, a aquisição de pretensões e obrigações recíprocas e signalagmáticas, um direito

de crédito contra uma obrigação de entregar o bem, e uma obrigação de pagar contra um

direito de receber o valor. Trata-se, portanto, de um ato jurídico lato sensu, ou, mais

especificamente, de um negócio jurídico.

E se a norma descreve uma ação humana, mas não descreve o elemento

volitivo, ou seja, não descreve nenhuma manifestação de vontade? É um ato sim, pois é o que

está descrito, mas o tratamento dado é idêntico ao dado a um fato, porque a vontade do agente

não tem relevância para o direito. Trata-se de um ato-fato.

Ora, se o saber jurídico é um saber prático, como estamos apontando desde o

início do curso, temos que indicar quais são os aspectos práticos desta separação entre os

atos-fatos e os atos jurídicos como categorias distintas. Vejamos: 1) se um incapaz comete

um contrato de compra e venda – onde a norma descreve a manifestação bilateral de vontade,

este negócio jurídico será invalido, eis que o incapaz não tem, em tese, um controle

responsável sobre a sua vontade. Para a ordem jurídica, ele não possui uma vontade

amadurecida, de modo suficiente para ter a liberdade de cometer pessoalmente atos negociais,

sem a intervenção de um responsável. Destarte, terá que ser assistido ou representado,

conforme o grau de sua incapacidade (relativa ou absoluta); 2) Já na especificação, que é

forma de aquisição da propriedade móvel, o escultor que molela uma estátua em uma pedra

de mármore, adquire a sua propriedade por força da regra contida no artigo 611 do Código

Civil. Suponhamos que o escultor seja um louco, absolutamente incapaz. Ora, a regra do art.

611, ao descrever “o trabalho em matéria prima, de modo a obter espécie nova” em seu

suporte fático hipotético, por certo descreve um ato. No entanto, não há descrição do

elemento volitivo, ou de qualquer manifestação de vontade. Portanto, trata-se de um ato-fato.

Qual é a importância disto? É que não há que se falar em ato-fato inválido, ou seja, nulo ou

anulável, tal como na hipótese do contrato de compra e venda. Apesar da incapacidade

absoluta do louco, o ato-fato da aquisição do domínio por especificação não é inválido. Em

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síntese: por ser um ato tratado como se fosse um fato, o ato-fato nunca passa pelo plano da

validade. Se existe, produz seus efeitos jurídicos, ou seja, dele se irradia direito subjetivo e

dever.

Digamos agora que o escultor é um sujeito absolutamente capaz, e que

alimentava uma imensa vontade de esculpir aquela estátua. Sob o ponto de vista de um

critério natural, se trabalho é um ato humano, com uma evidente dimensão volitiva. No

entanto, do ponto de vista do direito, ao adquirir a propriedade da estátua em decorrência do

fato jurídico lato sensu chamado especificação, a norma não descreve esta vontade.

Portanto, tal vontade é absolutamente irrelevante para o direito.

Vejamos último exemplo: um louco fugiu do manicômio e encontrou um par de

tênis jogado em uma lata de lixo, portanto, res nullius. Ele adquiriu a propriedade do tênis?

Adquiriu, por ocupação, que é outra forma de adquirir propriedade móvel (CC. Art. 592), e

que constitui-se também num ato-fato. Mas este mesmo louco, instantes após, doou este par

de tênis para um mendigo, que aceitou de plano a oferta do louco. Trata-se de um doação, que

do ponto de vista jurídico é um negógio jurídico bi-lateral (espécie de ato jurídico lato

sensu), pois depende de aceitação. Ora, ainda do ponto de vista jurídico, tal doação é nula,

embora provavelmente isto nunca venha a ser discutido em juízo, dado as circunstâncias aqui

narradas. O fato de não se discutir judicialmente esta nulidade não significa que ela não ocorra

no mundo do direito. Destarte, se por algum motivo for judicializada esta questão, o juíz irá

declarar ex officio a nulidade do negócio jurídico que se deu entre o louco e o mendigo, isto é,

a nulidade da doação em face da absoluta incapacidade do louco (CC. Art. 5º, inc. II) para os

atos da vida civil Ora, o que são os “atos da vida civil”? São os atos jurídicos lato sensu de

direito privado, consistentes em manifestações de vontade dirigidas à produção e efeitos

jurídicos lícitos.

Portanto, é absolutamente prática e relevante para a atuação judicial, a

diferenciação entre o ato jurídico e o ato-fato.

Em síntese, se a norma descreve, em seu suporta fático hipotético (SFH):

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1. CONDUTA INTERNA ou MANIFESTAÇÃO DE VONTADE = ATO JURÍDICO LATO SENSU

2. SÓ A CONDUTA EXTERNA = ATO-FATO JURÍDICO

3. SÓ O EVENTO = FATO JURÍDICO STRICTU SENSU

Repita-se, mais uma vez: o critério de conceituação e classificação dos fatos

jurídicos está no suporte fático da norma e não na natureza dos fatos em si mesmo.

3. O Ato Jurídico lato sensu e suas subdivisões

Segundo o que já vimos, quando a norma jurídico descreve em seu suporte

fátivo hipotético uma conduta humana em sua dimensão mais essencial, que é a dimensão

volitiva, trata-se de uma norma irá incidir sobre manifestações concretas de vontade, fazendo-

as ingressar no mundo jurídico na condição de atos jurídicos lato sensu. Então todos os atos

jurídicos, em sentido lato, constituem-se, basicamente, em manifestação de vontade.

Por isso mesmo tais atos submetem-se ao regime das invalidades, porque a invalidade

é uma técnica que o ordenamento jurídico se vale para proteger 1) vontades hipossuficientes (a do

menor, a do louco, a do silvícola, a do pródigo, etc), ou seja, vontades que demandam proteção, 2)

certas vontades viciadas (vícios do concentimento, tal como o erro, o dolo, a coação, etc) e 3) certas

questões de objetivo interesse público (exigências de rigor formal do ato, exigências de publicidade,

ou então ilicitude do objeto da transação, etc). Toda teoria das invalidades em direito diz respeito

somente a essa categoria: o ato jurídico lato sensu. Nenhuma das demais espécies de fato jurídico

submete-se ao plano da validade. Ou seja, todos os demais fatos jurídicos lato sensu se ingressam no

plano da existência, automaticamente irradiam efeitos jurídicos (plano da eficácia). Não há que se falar

num ato ilícito nulo ou inválido. Nem há que se falar num ato-fato ou num fato nulo ou inválido.

O sentido prático do afastamento dos atos-fatos da categoria ato jurídico,

como já vimos é este: embora a norma que juridiciza um ato-fato descreva uma ação humana,

por não descrever manifestação de vontade tal “ato juridicamente relevante” não se submete a

teoria das invalidades. Não há que se falar então num ato-fato nulo ou anulável, inválido ou

válido. E nisso reside a importância de separar o ato jurídico do ato-fato jurídico.

Agora vamos ao que nos interessa neste ítem, ou seja, o estudo do ato jurídico

lato sensu, onde buscaremos compreender a sua subdivisão em atos jurídicos stricto sensu e

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negócios jurídicos. Qual o critério e qual o sentido também dessa subdivisão? É válida essa

subdivisão? Tem algum sentido prático? Há diferença substancial entre ato jurídico stricto

sensu e negócio jurídico?

Há uma identidade substancial. Ambos traduzem nuclearmente uma

manifestação de vontade que se juridicizou. Mais ainda, tal manifestação de vontade é

dirigida a produção de efeitos jurídicos lícitos. Portanto, o ato jurídico lato sensu traduz

uma vontade que se manifesta para produzir efeitos jurídicos.

Evidentemente, não se deve olvidar que o ato ilícito, justo por ser tambem um “ato”

contém uma dimensão volitiva juridicamente relevante. Por óbvio, o elemento subjetivo, que é a

dimensão volitiva, é de fundamental importância para a teoria do delito. A uma, porque o sujeito para

ser responsabilizado criminalmente não pode ser dotado de uma vontade hipossuficiente (o louco, ou o

menor imputável não dispõem de uma vontade madura para firmar responsabilidade criminal). A duas,

porque a vontade traduz o elemento subjetivo do injusto: o dolo e a culpa. No entanto, note-se bem, em

se tratando de ato ilícito estamos diante de uma vontade dirigida ao cometimento de uma conduta

contrária ao direito, o que é substancialemente distinto de uma vontade dirigida à procução de

efeitos jurídicos lícitos. Esta é a diferença essencial no que tange ao elemento subjetivo 1) do injusto e

2) do ato lícito.

Ora, mas se ambas as categorias – ato jurídico stricto sensu e negócio jurídico -

implicam em manifestação de vontade, ou seja, são idênticas naquilo em que constituem

manifestações de vontade que se juridicizam, pergunta-se: no que elas são distintas? No que o

ato jurídico em sentido estrito é distinto do negócio jurídico? No que a emancipação de um

filho se distingue essencialmente de um contrato de compra e venda? No âmbito da autonomia

dessa vontade. Naquilo que os privatistas constumam designar por autonomia privada.

É justo nesse âmbito que se diferenciam tais categorias. Porque no ato jurídico

em sentido estrito, não apenas a manifestação de vontade já está formalmente prevista em lei,

como também os efeitos também já estão exaustivamente previstos. Ora, o sujeito se limita a

manifestar ou não manifestar a vontade nos termos da lei, porque a eficácia jurídica já está

prevista em todo o seu contéudo e alcance. Se você vai emancipar um filho, você vai

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emancipá-lo de acordo com o previsto na lei, o que significa que você não pode interferir no

desdobramento do plano da eficácia. Se você manifestou sua vontade de acordo com o

previsto na lei, gerou a emancipação, e os efeitos desta emancipação se irradiam nos limites

do que a legislação civil prevê. O plano da eficácia jurídica já está todo previsto na lei. Assim,

não se pode emancipar juridicamente um filho sob condição (ex: decido neste ato emancipar

meu filho, mas tal efeito fica condicionado a ele passar no vestibular), ou a termo (emancipo

meu filho neste ato, sendo que os efeitos somente se iniciam na próxima chuva). Esta

liberdade de interferir parcialmente no plano da eficácia é o que chamamos de âmbito da

autonomia privada - que é um espaço de relativa liberdade negocial - e só podemos exercê-la

nos negócios jurídicos.

Portanto, no negócio jurídico há possibilidade das partes interferirem.,

dentro de certos limites, no plano da eficácia. Essa é a diferença fundamental. Ora, como

vimos, você não pode emancipar um filho a termo, ou sob condição, ou mesmo emancipá-lo

para determinados atos e para outros não. Não é válida uma declaração emancipatória no

sentido de "se o Brasil ganhar a Copa emancipo meu filho". Mas é possivel entabular um

negócio jurídico nos seguintes termos: "se o Brasil ganhar a Copa vendo meu carro para você

por 10 mil reais".

Neste último caso, trata-se de uma compra e venda sob condição, exercitando

autonomia relativa quanto ao plano da eficácia; noutro caso, estou diante de um ato jurídico

sentido estrito, a emancipação, onde não se pode exercer tal autonomia privada. Essa é a

diferença específica. No âmbito dos negócios jurídicos o direito permite um espaço maior para

o exercício da autonomia privada. Permite aos sujeitos interferirem, dentro de certos limites

legais, no plano da eficácia. Por exemplo: nós podemos fazer uma compra e venda a prazo. Eu

compro o seu carro, para pagar no dia 1º. No momento em que fechamos o negócio jurídico de

compra e venda você passa a titularizar o direito de haver o preço avençado, mas a

exigibilidade deste direito subjetivo, a pretensão, só irá surgir no dia 1°, quando vence a

dívida, porque pactuamos que este nível eficacial, o da exigibilidade do direito, só surgiria

naquela data - que chamamos de “dia do vencimento”. Esse é um exemplo de exercício da

autonomia privada, onde se interfere no plano da eficácia. O direito subjetivo, portanto, pode

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surgir no plano da eficácia ainda sem pretensão. Surge o direito subjetivo como mera

titularidade, porque desde o momento do negócio ele passa a constituir meu patrimônio, pelo

que posso doá-lo, aliená-lo de qualquer modo, dá-lo em garantiva, etc. A exigibilidade deste

direito, no entanto, que é a sua pretensão, só irá surgir no dia do vencimento, por força do

acordo de vontades. Isto é autonomia privada e essa é a diferença essencial entre essas duas

categorias.

Uma última palavra sobre o tema: os melhores privatistas subdividem o fato

jurídico de direito privado em diversos níveis categoriais. A isto chamam de análise

categorial. Em cada nível categorial você analiza um aspecto da juridicidade concertente ao

fato jurídico complexo tal qual os de direito privado. Assim, chegamos a seguinte projeção:

essa compra e venda específica é uma espécie do gênero “compra e venda”, que por sua vez é

uma espécie de contrato, que por sua vez é uma espécie de negócio jurídico, que por sua vez é

uma espécie de ato jurídico lato sensu, que por sua vez é uma espécie de fato jurídico. Isso é

análise categorial. Conforme o aspecto da compra e venda que você está analisando, você

deve encontrar o âmbito categorial correto. Se você quer saber se a compra e venda existe ou

não, você está no plano da análise do fato jurídico; se você quer saber se é válido ou inválido

você está no plano da análise do ato jurídico lato sensu; se você quer saber se pode ou se não

pode ter interferência da vontade no plano da eficácia você está no plano da análise do

negócio jurídico... e assim por diante. Dependendo do problema que se apresenta no processo

civil que voce está operando, você vai saber analisar adequadamente ao enquadrar este

problema no nível categorial em que ele se origina. Mas estas são questões para se estudar em

uma cadeira de Teoria Geral do Direito Privado, em sede de pós-graduação, e não no âmbito

de uma metodologia do direito. Fica apenas a indicação: “O negócio jurídico – Existência,

Validade e Eficácia, de Antônio Junquira de Azevedo, Ed. Saraiva, 1974.

Com isto damos por encerrado nosso breve passeio no campo de uma

taxionomia do fato jurídico. Vejamos os planos da existência, validade e eficácia do fato

jurídico, rapidamente, buscando diferenciá-los da existência, validade e eficácia da lei, já

estudados neste curso.

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EXISTÊNCIA, VALIDADE E EFICÁCIA DO FATO JURÍDICO

1. O PLANO DA EXISTÊNCIA: a existência do fato jurídico

O fato jurídico ingressa no mundo jurídico – logo, passa a ter

existência – por força da incidência da lei, fenômeno que conceituamos como eficácia legal.

Ora, se uma lei é eficaz quando incide, regulando um fato social, ao incidir faz com que este

fato ingresse no mundo jurídico, passando a existir como fato jurídico. Deste modo, o

pressuposto do plano da existência do fato jurídico é a eficácia legal.

O PLANO DA VALIDADE: Elementos para uma Teoria das Nulidades

Conforme já vimos, a maior parte dos fatos jurídicos, quando passam a

ter existência por força da eficácia legal, automaticamente passam a irradiar eficácia

jurídica, ou seja, direitos subjetivos e deveres correspondentes, que se realizam sob forma de

uma relação entre o titular do direito e o titular do dever, a qual chamamos relação jurídica.

Deste modo, existindo o fato jurídica não há qualquer condição para que ele irradie eficácia

jurídica. Basta existir para que seus efeitos se irradiem automática e necessariamente. É o que

ocorre com todos os atos ilícitos, relativos ou absolutos, com todos os fatos jurídicos stricto

sensu e com todos os atos-fatos.

Portanto, apenas o ato jurídico lato sensu - ou seja, o ato jurídico

stricto sensu e o negócio jurídico - passa pelo plano da validade. E isto porque tais atos se

traduzem especificamente em manifestações de vontade dirigidas a produção de efeitos

jurídicos lícitos. Ora, como o núcleo do acontecimento que se juridiciza é justamente a

manifestação da vontade, a ordem jurídica trata de interpor um filtro entre os planos da

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existência e da eficácia do fato jurídico. Este “filtro” impõe algumas condições para que o ato

jurídico que ingressa no mundo jurídico, passando a ter existência, irradie seus efeitos. Tal

“filtro”, chamamos de plano da validade.

Ora, conforme já vimos, justo por se tratarem de manifestações de

vontade dirigidas a produção de efeitos jurídicos lícitos, tais atos submetem-se ao regime

das invalidades, uma estratégia da qual o ordenamento jurídico faz uso para proteger 1) as

vontades hipossuficientes (a do menor, a do louco, a do silvícola, a do pródigo, etc), ou seja,

vontades que demandam proteção, 2) certas vontades viciadas (vícios do concentimento, tal

como o erro, o dolo, a coação, etc) e 3) certas questões de objetivo interesse público

(exigências de rigor formal do ato, exigências de publicidade, ou então ilicitude do objeto da

transação, etc).

Deste modo, em qualquer ramo do direito onde ouver o cometimento de

manifestações de vontade dirigidas a produção de efeitos jurídicos lícitos, ou seja, onde

houverem atos jurídicos lato sensu, tais como os atos administrativos, os atos processuais ou

os atos de direito privado, ali tanto o teoria quanto a legislação irão abrir um capítulo para as

invalidades, ou seja, para as nulidades ou anulabilidades. Logo, as Teorias das Nulidades

dizem respeito apenas aos atos jurídicos e decorrem do plano da validade.

Assim situamos o tema “Teoria das nulidades” (ou das invalidades, como queiram): toda teoria das

invalidades em direito diz respeito somente a essa categoria: o ato jurídico lato sensu. Nenhuma das

demais espécies de fato jurídico submete-se ao plano da validade. Ou seja, todos os demais fatos

jurídicos lato sensu se ingressam no plano da existência, automaticamente irradiam efeitos jurídicos

(plano da eficácia). Não há que se falar num ato ilícito nulo ou inválido. Nem há que se falar num ato-

fato ou num fato nulo ou inválido.No direito administrativo se promovem atos jurídicos lícitos? Sim o

ato administrativo se traduz em manifestações de vontade do poder público dirigidas à produção de

efeitos jurídicos lícitos. Então vai ter que passar pelo plano da validade, pelo que teremos que estudar

uma teoria das nulidades do ato administrativo. No direito processual ocorre algo semelhante, eis que

os atos processuais são atos jurídicos, pelo que vamos encontrar também uma teoria das nulidades

processuais.

A partir daí pudemos compreender o fundamento primeiro da teoria das

nulidades. Somente a partir de uma teoria geral do direito - tal como eu disse na primeira aula,

comparando o saber jurídico como um edifiício e colocando a teoria gera do direito como o

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andar térreo, como a base deste edifídicio, ou melhor todo o seu alicerce. Se você quiser

compreender adequadamente o edifício do saber jurídico, você terá que dominar a teoria geral

do direito. Sem ela, o máximo que você consegue é memorizar alguns de seus ambientes;

jamais compreender a sua estrutura, que é um saber mais sólido e sofisticado. Em uma só

palavra, o saber teórico aqui significa potencialidades prático-operativas do direito. A melhor

prática judicial está fundada, necessariamente, sobre bases teóricas sólidas. E por tais motivos

diferenciamos, embora inconcientemente, o Jurista de um simples operador do direito.

Vamos lidar com um pouco mais de precisão com a questão das

nulidades, aprofundando um pouquinho mais a análise do tema? O que faltou fazer para

compreender mais a fundo o tema das invalidades? Faltou deitarmos um olhar meticuloso

sobre um aspecto da norma jurídica que é o suporte fático hipotético. Nos, os operadores do

direito, somos descriteriosos em relação a questão que vou abordar: qual o critério para

definirmos, em um fato sub judice, o que é e o que não é relevante para o direito? Qual o

exato limite deste critério? Quando posso afirmar que ma determinada dimensão do fato é

relevante para o direito, mas não sob o prisma que se discute no processo – portanto,

irrelevante para aquela discussão processual?

Esta questão está relacionada a esta outra, mais geral, que

transborda os limites da discussão jurídica: o que é um fato da vida? Qual o recorte que

delimita um fato da vida? Onde começa e onde termina no tempo e no espaço um fato? Um

fato é sempre um fato, ou é um recorte arbitrário da realidade, que pode ser objeto de outros

recortes, também arbitrários? Ou seja: um fato pode ser desdobrado em infinitos outros fatos.

O recorte que dele fazemos é imagístico, indeterminado e arbitrário. Querem ver? Por

exemplo: o fato do 1000º gol do Pelé, é um fato dentro de outro fato que foi uma partida de

futebol. Mas também é um fato dentro de outro fato que foi uma carreira futebolística com

muitos gols. Mas também é um outro fato, pois foi um gol dentro de um campeonato de

futebol. Este gol, em si mesmo, quando começou? No início do jogo? No início da jogada?

Onde é o início da jogada? O gol, como fato, não é gol apenas quando a bola está cruzando a

linha da goleira? Então não há “gol de bicicleta” pois bicicleta é um tipo de chute? E assim

por diante... entenderam?

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Ora, não há como determinar-se a priori onde começa e onde

termina um fato, se ao redor dele, em direção ao exterior, existe um universo inteiro (o que é

pior, é possível afirmar-se o mesmo se navegarmos em direção ao seu interior...). Os fatos não

têm começo,meio e nem fim. Então, é a nossa cabeça, é a nossa inteligência que faz um

recorte discricionário do que é importante para nós, em cada fato da vida, gravando os

detalhes daí decorrentes, na memória. Dentro de alguns critérios de interesse que nós temos

em relação ao fato e às pessoas nele envolvidas, e armados com nossa inteligência e intuição,

nós apreendemos oue é interessante e deixamos para lá o que não nos interessa, em todos os

fatos da vida – e nem percebemos isto.

Ora, em se tratando de fatos jurídicos, não é a nossa cabeça que

faz o recorte arbitrário do que é e do que não é relevante. Aí quem faz o recorte é a norma

jurídica. Assim, a norma jurídica é a inteligência do direito.

Assim, a norma jurídica isola e diz o que é e o que não é

relevante para o direito, no fato que ela transforma em fato jurídica. Como é que a norma

jurídica diz o que é relevante, ou seja, recorta e isola o que compõe efetivamente o fato

jurídico? Ora, justo onde ela descreve as relevâncias fáticas para o direito, ou seja, em seu

suporte fático hipotético. Logo, tudo o que está descrito no suporte fático hipotético da norma

é relevante para o direito, e portanto, é recortado do “fato total”, e transformado em fato

jurídico. O que resta da totalidade do fato é irrelevante para o direito. Eis o critério que

procurávamos.

Ora, mas desta imagem acima desenvolvida, resgatamos uma

conclusão importante: o fato jurídico é produto de um recorte da realidade operado pela

norma jurídica. Sendo assim, ele também é composto por diversos fatos. Mais precisamente,

o suporte fático hipotético da norma jurídica descreve, em regra um conjunto de fatos que

compõem esta totalidade que chamamos fato jurídico. Assim, por exemplo, o suporte fático

do da compra-e-venda, em sua totalidade, descreve 1) manifestação bilateral de vontade, 2)

acordo quanto a um bem, 3) acordo quanto a um preço, 4) acordo quanto a forma de

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pagamento, 5) capacidade das partes, 6) licitude e possibilidade do objeto, 7) liberdade e

consciência do consentimento, etc.

Como vimos no primeiro capítulo, a norma jurídica só e equacionável a partir de um fato concreto. O

exercício que busca construir uma norma jurídica completa “em tese” não tem fim...

Outro exemplo: o fato jurídico usucapião. O que a norma que o regula descreve

em seu supoerte fático? 1) Posse ininterrupta, 2) mansa e pacífica, 3) ânimo de ter a coisa para

si, 4) decurso de tempo, etc. Todos estes elementos do suporte fático compõem várias

dimensões. Assim a norma que faz o recorte do que é e do que não é relevante para o

usucapião.

Surge a questão: se o fato jurídico ingressa no plano da existência por

força da incidência da norma jurídica, e se a norma em seu suporte fático descreve varios

elementos fáticos, será que todos eles têm o mesmo peso? Se uma norma tem cinco elementos

descritos no seu suporte fático hipotético, será que têm que ocorrer os cinco para que a norma

incida e gere fato jurídico? Será que a ocorrência de quatro é suficiente para a incidência da

norma e a gestação do fato jurídico? Qual a condição de incidência da norma?

Eis a chave da compreensão mais aprofundada da teoria das nulidades:

de fato, quando a norma descreve um suporte fático complexo, composto por vários elementos

fáticos tal como nos exemplos acima, se alguns desses elementos não ocorrerem no mundo

dos fatos, a norma não incide. Entretanto, outros podem não ocorrer sem comprometer a

incidência da norma e, consequentemente, o ingresso do fato jurídico no plano da

existência. No entanto, embora existindo o fato jurídico, a não ocorrencia de parte do suporte

fático vai comprometer o plano da validade - ou seja, trata-se das hipóteses de nulidade e

anulabilidade, onde o fato jurídico nulo existe, embora seja inválido, o que é diferente da

situação de simples inexistência do fato jurídico, quando a norma não chega a incidir.

Ademais, ao prejudicá-lo no plano da validade, tachando-o de inválido, o a ordem jurídica

pretende é impedir ou comprometer parcialmente o plano da eficácia. Eis o controle em que

se traduzem as invalidades.

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Fim da parte revista

Vamos aprofundar um pouco mais.

O que precisamos para compreender mais a fundo ainda a teoria das

nulidades? Teremos que classificar os elementos do suporte fático, para saber quais são de

ocorrência necessária para a incidência da norma, quais interferem apenas no âmbito da

validade e da eficácia do fato jurídico. Vejamos o que diz Pontes de Miranda.

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(parte não reescrita – linguagem discursiva)

Para que um fato jurídico exista, o pressuposto de existência fato jurídico é a

incidência da lei. O pressuposto de incidência da lei é que ocorra no mundo concreto o fato

que a lei descreve no seu suporte fático hipotético. Mas, o suporte fático hipotético em regra

não é constituído de apenas “um fato” – suporte fático hipotético simples – mas, por vários

“elementos fáticos”, ou seja, pelo que ele é chamado de suporte fático complexo:

Ex. de SFH complexo: SFH = E1 + E2 + E3 + E4

Ele tem 4 elementos fáticos.

Tal como o SFH da norma que regula o usucapião:

E1 = posse mansa e pacífica

E2 = “animus” – elemento volitivo, anímico = ter para si

E3 = lapso temporal – decurso de x anos,etc.

E5 = justo título

(Obs: a rigor, não se trata de um fato complexo constituído por múltiplos fatos. A questão é

que a realidade é sempre complexa, pelo que o conceito de “fato” é discutível. A rigor, todo

fato pode ser cindido em elementos fáticos plurais. Os fatos não existem em si mesmo, salvo

no intelecto humano. Trata-se de um recorte discricionários da realidade operado pela razão.

Bem observado, não há fatos no mundo delimitados, em si mesmo, na sua extensão temporal e

física. A sua delimitação no tempo e no espaço é obra da inteligência humana. Bem como a

sua extensão analítica, a descrição ou não de elementos internos que o compõe. No mundo do

direito, não é a inteligência subjetiva do operador jurídico que tem o condão de recortar

discricionariamente o “fato” do restante da realidade, dizendo o que é e o que não é relevante

para o direito. Antes, é a norma jurídica que tem o condão de operar este recorte, ao descrever

o que é relevante em seu SFH).

Então, as hipóteses fáticas para efeito de incidência são complexas. Aí surge uma

questão crucial para a metodologia jurídica e para o ato de aplicação do direito: Se são vários

elementos que constituem a hipótese fática da norma, todos eles têm que ocorrer no mundo

para que a norma incida? Qual o pressuposto de incidência da norma? Podem ocorrer apenas

alguns e a norma incidir? Esta é a questão.

A teoria das invalidades ou das nulidades aponta exatamente isto. Sobre este outro

específico ângulo ela nos diz: Podem ser que certos elementos do suporte fático não venham a

ocorrer no mundo e, ainda assim, a lei incide, gerando o fato jurídico.

Como vismos, não resta dúvida que, se ocorrem todos os elementos da norma no SFC

a norma incide e, incidindo, ela é condição básica para que o fato jurídico tenha existência.

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Mas quando a descrição hipotética da regra é complexa, composta por múltiplas dimensões

fáticas, não ocorrendo toda esta complexa precisão fática no mundo, a norma pode incidir?

Isto nos conduz a uma outra questão crucial, se a teoria das nulidades nos aponta este

dado novo, isto é, nos suportes fáticos hipotéticos complexos nem todos os elementos

precisam necessáriamente ocorrer no mundo fático para efeito da incidência, perqunta-se:

quais precisam ocorrer? Será que existem alguns, um ou mais de um que não ocorrendo a

norma não incide?

Ex: vamos pelo método indutivo = de um dado mais empírico em direção à conclusão

teórica. Sabemos que existem os elementos essenciais para um negócio jurídico. Quais são

esses elementos? 1) a vontade, 2) os agentes e 3) o objeto. Estes são os pressupostos de

incidência mas, existem outros elementos que vão repercutir, não na existência, mas na

validade e na eficácia: licitude do objeto, capacidade do agente, etc. Deste modo, conclui-se

qu alguns elementos do SFH complexo são essenciais para a incidência da norma., outros não.

Pelo que eles têm um valor diferenciado, um estatuto diferente, então temos que classificá-los.

.

Os elementos do suporte fático hipotético são:

1. elementos nucleares: aqueles cuja ocorrência no mundo fático é pressuposto de

incidência. Se um ou mais elementos nucleares não ocorrerem no mundo fático (v.g., se não

houver sujeito,se não houver objeto ou se não houver manifestação de vontade) não se dá a

incidência da norma, pelo que não se há que falar em existência do fato jurídico. Existir o fato

jurídcio ou não é um problema distinto da validade do fato jurídico. Se um fato jurídico não

existe, não há porque discutir sua validade e nem discutir eventuais efeitos. A inexistência do

fato jurídico significa que o fato em questão não tem significação nenhuma para o direito.

1.1. Os elementos nucleares se subdividem em : Cerne e Elementos completantes.

Isto diz respeto à Teoria do Fato Jurídico, especialmente a sua classificação, conforme

trabalhamos acima: cada espécie de fato jurídico repete sempre o mesmo cerne do suporte

fático. É o núcleo mais significativo da hipótese fática da norma, fixando a existência do fato

jurídico no espaço e no tempo, definindo fundamentalemente que espécie de fato jurídico se

trata. Vejamos um exemplo: qual é o cerne do suporte fático de todo e qualquer atos jurídicos

lato sensu? Qual o ponto mais importante do seu núcleo? É a manifestação da vontade. Todo

ato jurídico é um ato jurídico porque o núcleo do suporte fato complexo da norma jurídica

descreve, em todos eles, e fundamentalmente, uma manifestação de vontade. Então, o certe é

idêntico para todos os atos jurídicos, sejam negociais ou não, seja de direito público ou

privado, seja de direito civil, administrativo ou processual, e assim por diante.

Resumo: cada espécie de fato jurídico repete sempre o mesmo cerne que é o núcleo do núcleo

do suporte fático complexo da norma jurídica.

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2. elementos complementares: não dizem respeito, não são pressupostos de incidência

mas, que repercutem no plano da validade, da eficácia

ex: X vende um automóvel com uma procuração, só que o representado nesta

procuração estava morto. Do ponto de vista jurídico, existe um contrato de compra e venda? O

procurador não é parte no contrato. O contrato é entre o morto e X. morto não negocia porque

a primeira coisa que ocorre com a morte é a perda da personalidade. Só pode figurar numa

relação jurídica o sujeito de direitos, quem é dotado de personalidade, ainda que seja um

início de personalidade, uma quase personalidade, uma quase pessoa jurídica, ou uma quase

pessoa natural. O nascituro é uma quase pessoa natural. Fora daí não existe. Então, falta

sujeito – elemento nuclear. Então, inexiste porque não ocorre a incidência da norma.

Compromete o plano da existência. Inexiste o contrato de compra e venda. Pode existir um

crime, mas, aí é outro aspecto. Vai-se ver se esta conduta dele foi uma conduta típica, um

estelionato. Eventualmente se enquadra num tipo penal, a norma penal incide.

Este estudo do SFH é importante para aprofundar a análise de uma teoria das

validades.

Dentro dos elementos que compõem o núcleo, nem todos têm o mesmo sentido, a

mesma identidade. Há uma diferença entre eles. E é ela que vem para relaxar um pouquinho a

nossa angústia: porque a gente fica pensando, se essa teoria que é Pontes de Miranda tem

procedência e a gente tem que classificar os elementos do SFH, cada norma vou ter que

classificar? Como vou identificar em cada norma o que é o que?

SUPORTE FÁTICO COMPLEXO

Subdivide-se em

SUPORTE FÁTICO INSUFICIENTE

SUPORTE FÁTICO SUFICIENTE - DEFICIENTE

- COMPLETO

Se na maior parte das normas os suportes fáticos hipotéticos são complexos, nós temos que

ver se eles são insuficientes ou suficientes. Se os fatos que ocorreram nomundo são suficientes

para que a norma incida ou não. Por exemplo: F1, F2 e F3 fazem parte do elemento nuclear e

ocorreram, F4 não. Não ocorreu. É suficiente? É . Ocorreram os elementos nucleares é

suficiente para a incidência e para o fato dele existir mas está faltando o F4, assim, embora

seja suficiente para a incidência é deficiente, ou seja, vai comprometer. Ex.:Existem sujeito,

objeto, manifestação de vontade mas, mas, uma das partes é jurídicamente incapaz e não está

assistida. Fazem o negócio, são suficientes os elementos para que incida a norma? São. É

deficiente? É. Falta um elemento complementar. Qual? O relativamente capaz tem que estar

assistido. Então é deficiente. Compromete a validade. O negócio é inválido. Produz ou não

produz efeitos? Produz.. o negócio jurídico anulável produz efeitos até à sentença anulatória

transitada em julgado. Tem que ser anulado judicialmente ou convalidado( o assistente

ratifica).= convalidou – tornou válida = sanou o vício da invalidade. Se ele está completo,

tudo bem, é como deve ser.

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55

OBS: Isto é uma razão epistêmica, analítica, esquemática. Foi isto que a gente fêz no Direito.

Isto não existia antes quando o Direito era apenas casuístico, e não sistemático, ou seja, era uma

prudência, sem pretensões de ciência. Era uma prudência casuítica (cujas normatividades construiam-se

em tornos de casos típicos) e, portanto, não estava sistematizado neste nível. Portanto, a construção de

teorias como a do fato jurídico e a do suporte fático hipotético, com suas classificações decorrentes, é

justo o produto do esforço da razão analítica, a razão científica, epistêmica, em transformar a prudência

jurídica em uma ciência.

Por outro lado, apesar da moderna legislação decorrer de uma construção sistemática,

o ensino tende a esquecer a base teórica em nome de modelinhos de fácil apreensão

mneumônica, de fácil memorização. Se diante de uma questão qualquer, voce não consegue

resgatar a informação na estrutura de sua memória, não consegue solucionar o problema, pois

não sabe raciocinar juridicamente a questão. É o que fazemos. Nós estudamos o direito assim,

sempre querendo que o professor nos dê esquemas prontos. A teoria da validade do Direito

Privado, por exemplo, nos ensina assim:

SISTEMÁTICA LEGAL DAS VALIDADES E INVALIDADES (Código Civil)

Negócio Jurídico

existente

VÁLIDO NULO ANULÁVEL

Presença dos Ele-

mentos Essenciais do

NJ (corresponde aos

nucleares do SFH)

Presença de todos os

Elementos comple-

mentares do SFH

Ausência de certos

elementos comple-

mentares do SFH

Ausência de certos

elementos comple-

mentares do SFH

Sujeito

Objeto

Forma

Capaz, relativamente

incapaz assistido, ou

absolutamente incapaz

representado

Lícito e possível

Prescrita ou não defesa

Absolutamente

inca- paz não

represen- tado

Ilícito e impossível

Contrário à forma

prescrita ou

conforme a proibida

Relativamente inca-

paz não assistido

(objeto não diz

respeito a anulabi-

lidade)

(forma não diz

respeito à anulabi-

lidade)

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56

Manifestação da

vontade(cerne)

(obs: se faltar qq um

dentre os elementos

essenciais, o negócio

jurídico inexiste)

Livre e consciente

(manifestação da

vontade não diz

respeito a nulidade)

vícios do consenti-

mento (erro, dolo

coação, simulação,

fraude contra credo-

res)

Isto é memorizar, sem compreender a estrutura das nulidades, desde uma concepção de

norma e fato jurídico, até a compreensão dos fundamentos das nulidades, o papel que cumpre

dentre de uma ordem jurídicas regras invalidantes.

Este esquema não reflete corretamente as normas jurídicas de direito privado. O

incapaz pode fazer negócio jurídico válido desde que seja representado ou assistido, mas a

simplicação do esquema é necessário para o processo de memorização, pelo que as

informações esquemáticas são sempre incompletas, elípticas, mas que pressupõe certas coisas

que a gente não está acustumado a pensar, pois não exercitou o pensamento jurídico, e acaba

fazendo com o operador incorra em erros crassos – até mesmo os mais banais, como o do

exemplo. Tanto mais complexo o âmbito teórico-jurídico que enfrentamos para operar o

sistema jurídico, quanto mais insuficiente se mostra esta “eduação da memória” com seus

esquemas simplificadores.

Vamos fazer um pequeno ensaio disso aí no plano do Direito Penal só para ver que a

coisa não é só o âmbito de Direito Privado mas que permite algumas reflexões também no

âmbito do Direito Penal. Como se pode colocar isto aqui no âmbito do Direito Penal? Se

deslocarmos nossa reflexão para o âmbito do Direirto Penal vamos tirar algumas conclusões

interessantes, bem polêmicas, mas, bem fundamentadas:

A Norma que é a lei penal incide sobre um suporte fático concreto (tipo penal) que é

um fato da vida descrito no tipo penal, gerando um fato jurídico: o crime, que é um ato ilícito

penal.

Direito subjetivo de punir do

Estado(pretensão punitiva)

O Crime é fato jurídico que irradia eficácia jurídica = X

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57

Dever genérico de cumprir pena

Esta é a relação jurídica penal, entre o agente do ato ilícito e o Estado punidor:

pretensão punitiva X dever genérico de cumprir pena.

Se o crime ingressa no plano da Existência, automaticamente irradia Eficácia

jurídico (direito de punir e dever de cumprir pena). Entre a existência do crime e a irradiação

de efeitos jurídicos não se interpõe qualquer plano da validade, porque os atos ilícitos não se

submetem ao crivo da validade. Somente os atos jurídicos lícitos se submentem.

Mas, nós colocamos justamente aí - não um critério de validade para que o

crime possa irradiar ius puniendi e dever de cumprir pena - um pressuposto de aplicação dos

efeitos jurícos – a culpabilidade. Então, a teoria da responsabilidade criminal cumpre um

papel intermediário no âmbito da aplicação da lei penal (é um campo de estudo interessante

do direito penal).

Vamos adiante: este direito subjetivo de punir é dotado de uma exigibilidade

que se chama pretensão punitiva. Quando o código adotava uma teoria causalista da ação.

Qual era o conceito analítico de crime que nós tínhamos? Crime era fato típico, antijurídico e

culpável. Ora, o suporte fático hipotético da norma continha a tipicidade, a antijuridicidade e

culpabilidade. Nós adotamos agora a Teoria finalista da ação, onde se retirou a culpabilidade

do interior do conceito de crime, e a colocamos cumprindo um papel intemediário no âmbito

da aplicação. E ficou lá no SFH a tipicidade e a antijuridicidade.

Mas como ficou lá no SFH? O SFH não é tipicidade? Esta é uma questão em que

temos que ter cuidado. Se for a tipicidade o que ocorre? Temos que colocar dentro da

tipicidade a antijuridicidade. Não podemos colocar um elemento externo à tipicidade porque

quem descreve a contrário senso o que é antijurídico é a própria norma penal. É na norma que

está a antijuridicidade.

Como está descrita a antijuridicidade na norma? É a contrário senso, por exclusão. O

que está descrito na norma jurídico-penal são as excludentes da antijuridicidade que está

implícita na descrição típica, salvo quando naquela conduta típica, além da tipicidade, ocorrer

uma excludente de antijuridicidade. É isto que se faz. Então, ela compõe o SFH da norma. De

duas uma: ou nós dizemos – a tipicidade compõe a antijuridicidade , técnicamente seria mais

preciso, mas com implicações no restante da Teoria do Delito, que é uma questão complexa,

teríamos que analisar problemas difíceis com o teoria do erro de tipo, do erro de proibição.

Pode-se dar um exemplo mais rasteiro dessa estrutura. O que ocorria quando se

deixava a culpabilidade junto ao tipo? Entre outras coisas, só nos interessa tirar a

culpabilidade por uma questão prática, para ela tornar a aplicação da lei penal mais coerente.

Por que a teoria causalissta é menos coerente que a finalista? É bem simples.

Peguemos um exemplo prático. Peguemos o art.180 do CPB:” adquirir, receber ou ocultar,

em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou influir para aue

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terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou oculte. Pena reclusão de 1 a 4 anos e multa”. Coisa

que saiba ser produto de crime. Segundo o código anterior, crime é fato típico, antijurídico e

culpável. Então, pega-se, colaca-se uma garotada sem responsabilidade penal, sem

culpabilidade portanto, para cometer furtos e adquiro deles os bens furtados. É conduta típica

ou não? Não é típica porque o que os menores fazem não é crime de forma que falta um

elemento.

São essas repercussões fáticas que têm uma e outra teoria.

As teorias se refletem nas legislações. Quando nós adotamos uma postura

epistêmica, não apenas as teorias são sistemas conceituais mas, as leis são também sistemas

normativos. São sistemas que perseguem as máximas da lógica aristotélica, os princípios

básicos da lógica aristotélica. O princípio da não-contradição, o princípio do terceiro

excluído,...................

Pergunta : por que o ato ilícito não se submete ao princípio da validade?

Porque não tem nenhum sentido prático perquirir-se da validade ou não de um ato

contrário ao direito. Se ele vai ou não produzir efeitos. Se é possível anular, tornar nulo, por

exemplo, um crime de homicídio. Homicídio anulado serviria para dar um brinde ao infrator.

Perqunta: onde entra a capacidade aí?

Este é um problema de culpabilidade e não de validade.

Aqui há uma discussão. Gera um direito de punir mas não é aplicável do ponto de vista

lógico? Ou não gera o direito de punir e se interpõe a validade no meio para freiar a eficácia

jurídica? Esta é uma discussão para se travar. Isto está no bojo de uma teoria do delito.

Mas, não vamos entrar no bojo de uma teoria do delito. Só vamos mostrar o caráter

instrumental.

Pergunta: inaudível.

Resposta: o preceito prevê eficácia. O SFH e a antijuridicidade prevêem as

relevãncias fáticas. Aqui é direito de punir mas, do tamanho da pena. Pena de 6 a 20 anos é

direito de punir do Estado contra um dever de cumprir pena de 6 a 20 anos.

É a estrutura da norma; descreve-se uma hipótese e condiciona alguns efeitos jurídicos

aos quais chamamos “preceito”mas que poderíamos chamar “conseqüência jurídica”. Os

nomes não interessam.

Alguns sustentam que a antijuridicidade não compõe o SFH da norma. Esta não incide.

Ela evita a incidência. Outros dizem:”não, ela incide”. A antijuridicidade evita a incidência

ou não evita? Incide? Existe o crime, ela exclui a antijuridicidade ou não existe o crime

porque a norma não incide? São questões analíticas mais profundas nas quais não vamos

entrar. Mas, o modelo e este aí. Se quizermos entrar fundo na Teoria do Delito vamos ter que

partir desse modelo. É deste modelo que foi tirada a discussão acima.

Com isso chegamos a um ponto suficiente na discussão de fato jurídico. Para

demonstrar que fato jurídico é uma dimensão importante do fenômeno jurídico e a precisão

aqui é de extrema relevância porque se operamos um sistema que tutela direitos subjetivos e

comete violências a partir destas conclusões de existência ou não, de conteúdo e extensão do

direito subjetivo, o direito subjetivo tem um conteúdo tal e uma extensão tal de acordo com

aquilo que aconteceu no mundo e foi apontado como relevante porque estava descrito na

norma. Esta é a importância. Tudo o que a norma descreve o faz com um sentido de dar

juridicidade e dá juridicidade no sentido de fazer repercutir no plano da eficácia. Não há

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gorduras no SFH. O que a norma aponta como relevante é importante porque vai definir o

resultado final, dentro dos efeitos. Se perdermos um pedacinho desse fenômeno na hora que

for jurisdicionar, vai jurisdicionar errado, sem precisão. E a falta de precisão na tutela do

direito subjetivo significa perda de liberdade na cidadania. Tem-se um direito subjetivo que a

magistratura não está tutelando ou tutela parcialmente. E aí pega-se os melhores juristas e eles

dizem que o titular do direito subjetivo tem razão. Aí bate no STF, digamos que este dir.

subjetivo seja público, ex. sobre a condição de funcionário público e o STF está muito

preocupado em quebrar ou não a Fazenda Pública e aí diz que o cidadão tem o direito mas vai

ter que jurisdicionar que não tem porque do contrário a Fazenda Pública vai quebrar. Acabou.

Aí como o STF faz este tipo de jogo, o legislador não se sente com o dever de ser rigoroso na

hora de elaborar a lei.

Aqui o professor vai sair um pouco de Marcos Bernardes de Mello. Terminou o nosso passeio

por aquele livrinho.

PLANO DA EFICÁCIA JURÍDICA

Uma última palavra sobre a eficácia jurídica. O plano da eficácia vai ser

aquele onde o ato jurídico produz seus efeitos, isto é, dele irradiam direitos e deveres.

Eficácia jurídica é direito e dever. É antes de mais nada numa só palavra: relação jurídica.

Porque direitos e deveres são aspectos de uma relação. A relação regular do direito. É essa

relação em regra que se projeta no processo, formando o contraditório. Logo, eficácia jurídica,

ou plano da eficácia jurídica, é onde ocorre a relação jurídica, onde um titulariza um direito

subjetivo e outro um dever. Vejamos mais de perto o que seja o direito subjetivo para, depois,

estudarmos as diversas espécies de vínculos, ou relações jurídicas.

O DIREITO SUBJETIVO

Pretensão é uma palavra que nasceu no pensamento jurídico alemão, e

que encontra-se definido no próprio BGB. Anspruch, ou sua tradução para o português

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pretensão, está definido no BGB nuclearmente como “faculdade de exigir de outrem uma

conduta”.

Ora, mas essa “faculdade de exigir de outrem uma conduta” traduz um

poder pessoal do titular. Este status de titularizar um “poder pessoal” é o núcleo do que

chamamos juridicamente de direito subjetivo. É a própria essência do Direito Subjetivo. Ter

um poder, que pode ser uma faculdade de exigir de outrem uma conduta, é ter um direito

subjetivo.

Note-se, somente o conflito de interesse que tenha esta qualidade, ou

seja, que esteja qualificado pelo existência de uma pretensão (que é um direito subjetivo)

resistida é que caracteriza o que chamamos de lide. Pretensão, para efeitos do conceito de

lide, não é qualquer pretensão, no sentido vulgar da palavra, no sentido da linguagem natural,

mas apenas no sentido técnico: pretensão é faculdade de exigir de outrem uma conduta; a isto

chamamos de exigibilidade do direito subjetivo. Isso aponta a necessidade de deitarmos nossa

lupa, nosso olhar mais meticuloso, sobre o conceito de direito subjetivo, antes de mais nada.

É o que pretendemos fazer.

Como que a gente disseca analiticamente o conceito de direito

subjetivo? O que é uma dissecação analítica de um conceito? Por exemplo, o conceito

analítico de crime é: crime é fato típico e antijurídico. O conceito analítico de norma é:

norma é composta por um suporte fático hipotético (SFH), posto como condição de um

preceito (P). O conceito analítico de crime, portanto, é o que desdobra as estruturas

fundamentais do que constitui crime. O conceito analítico de norma, por sua vez, disseca as

partes estruturais da norma jurídica, ou seja, o SFH e o P. Qual o conceito analítico de direito

subjetivo? Quais as partes fundamentais desta estrutura chamada direito subjetivo?

Em primeiro lugar, não é possível um direito subjetivo sem titularidade,

pelo que direito subjetivo pressupõe sempre um titular. É da essência do direito subjetivo Ter

um sujeito que o titulariza (se o sujeito pode ou não ser uma pluralidade de pessoas

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indeterminadas, esta é uma questão a ser resolvida posteriormente). Temos aí um primeiro

elemento fundamental do conceito de direito subjetivo: a titularidade.

Ora, mas de que me serve a titularidade de um direito subjetivo se ela

não se traduzir em um efetivo poder pessoal? Direito subjetivo tem que traduzir um poder,

tem que ser passível de ser exercido. Ter um direito subjetivo é ter um poder, ou uma parcela

de poder.

Na evolução histórica da forma estatal de organização social, o direito

subjetivo desenvolveu-se como o modo de mitigação, por excelência, do poder absoluto do soberano.

Tanto mais os súditos titularizavam direitos subjetivos quanto menos absoluto se tornava o poder

soberano. Destarte, a evolução do Estado absoluto para o Estado Democrático de Direito, sob a

ótica jurídica, é uma história de crescente surgimento de direitos subjetivos, especialmente os direitos

subjetivos públicos que, em seu conjunto, determinam a qualidade da cidadania, ou seja, do poder dos

cidadão no qual encontra seus limites o poder estatal.

Ora, sendo o direito subjetivo um poder, trata-se de 1) um “poder fazer

(agir) pessoalmente alguma coisa” ou, do ponto de vista do exercício pessoal, apenas 2) um

“poder exigir que o outro faça”? Do ponto de vista de seu exercício pessoal, o direito

subjetivo traduz-se, no máximo, em um poder exigir que o outro o faça pois, se o devedor se

negar a fazer o que deve, o monopólio estatal da tutela jurisdicional manda que o titular do

direito se diriga ao Estado para que este o proteja, cometendo os atos necessários para a

realização do direito, ou seja, agindo para realizá-lo. Assim, toda e qualquer ação no sentido

de realização do direito – ou seja, de tutela do direito - é exclusiva do Estado em face do

monopólio estatal da tutela jurídica, caracteristica fundamental do moderno Estado de Direito.

Dois novos momentos analíticos do conceito de direito subjetivo surgiram neste parágrafo:

além de titularidade, ele também é composto por uma exigibilidade e, por fim, em situações

limítrofes, é dotado de uma impositividade, ou seja, de uma ação material cometida pelo

Estado.

Logo, a estrutura do direito subjetivo é composta por três

elementos fundamentais: 1) titularidade; 2) exigibilidade e 3) impositividade.

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Ora, nos vimos que é da natureza do direito subjetivo a

exigibilidade, ou seja, a faculdade de exigir de outrem uma conduta. Tal faculdade – ou

poder – também é conhecida pelo nome de pretensão (anspruch, em alemão). Portanto, foi

analizando o conceito de direito subjetivo que encontramos, como um de seus elementos

fudamentais, o conceito de pretensão. Se ele compõe o direito subjetivo, podemos dizer que

não há pretensão que não seja direito subjetivo. Mais precisamente, pretensão é a

exigibilidade do direito subjetivo.

Por isso que o conflito de interesses para ser lide tem que ser qualificado por

uma pretensão resistida, um direito subjetivo violado. Só há lide se o conflito de interesses se dá numa

violação de direito subjetivo, senão não há lide. Tal como no exemplo onde tirei moça para dançar e

ela não aceitou. Exerci minha pretensão de dançar com ela e ela resistiu, negando-se a realizar o que eu

pretendia. Mas não há lide, pois tal “pretensão” não compõe um direito subjetivo de dançar com ela.

Nesse sentido, tecnicamente, é que não há o conflito de interesses qualificado por uma pretensão

resistida, não era lide porque essa pretensão não traduzia exigibilidade do direito subjetivo. Tratava-se

do uso vulgar da expressão pretensão”.

Na construção do conceito de direito subjetivo há mais um momento

importante. Além de ser exigível há um momento em que ele deve ser imposto, porque exigir

de outrem uma conduta, para se realizar, depende do outro, ou seja, depende de sua boa

vontade, no sentido de conduzir-se de acordo com nossa exigência. Por isto os direitos

subjetivos dotados de pretensão são conhecidos também por direitos de prestação, já que

dependem de um ato de vontade do outro para ter sua exigibilidade respeitada.

Deste modo, exercida a exigibilidade - que é mera potência a ser

transformada em ato, ou seja, em exigência – e resistida a pretensão, o direito passa a ser um

direito violado. Surge o que chamamos de lide: conflito de interesses qualificado por uma

pretensão resistida.

Entretanto, se o direito subjetivo se limitasse a ser pura titularidade e

exigibilidade, o titular de direito violado estaria em uma situação de absoluta impotência, e de

nada lhe serviria o poder de exigir, pois não haveria como impor o direito quando o outro

resistisse à exigência, ou seja, resistisse ao exercício da pretensão. Então, o direito subjetivo

tem que traduzir-se, em um determinado momento, numa possibilidade de ser imposto ao

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devedor forçadamente, ou sejam em uma impositividade. Assim, uma vez exercida a

pretensão e resistida, o direito subjetivo torna-se violado, pelo que fica passível de ser

imposto. Impositividade é o que surge em regra com a violação do direito, mas nem sempre é

assim. A impositividade é a realização do direito de forma violenta. É um sítio da violência, e

o sistema jurídico, todos sabemos, é um sistema de violência contida. Quando o Estado

garante a impositividade do direito no processo? Na fase final do processo, na execução, que

se dá por atos de violência. Essa impositividade pode dar-se pelo próprio titular do direito?

Em regra não, em virtude do monopólio estatal da tutela jurisdicional. O exercício da

impositividade, que é imposição, é ato de violência, é ação material para realizar o direito, e

se cometido pelo próprio titular, chama-se de autotutela jurídica. Em nosso ordenamento, a

permissão do cometimento da ação material (autotutela) pelo próprio titular do direito é rara,

são excessões que servem para confirmar a regra do monopólio – tal como o desforço

nessessário, para proteger a posse, a legítima defesa, etc. , que são exercício de autotutela, de

ação material, permitido pelo Estado. Chamamos a exigibilidade do direito sujetivo de

pretensão. Agora, como se chama a impositividade do direito subjetivo? É uma dos mais

problemáticos conceitos da teoria jurídica: a ação material.

Ora, esta ação a que corresponde todo o direito, ou que é objeto de

prescrição, segundo a doutrina e a legislação vigente - e que tendemos a pensá-la como ação

processual - na verdade trata-se da ação material, que é elemento do direito subjetivo

material, ou melhor, a impostividade que o direito subjetivo alcança quando é violado. O

conceito de ação material é o de “agir para realizar o direito independentemente da vontade

alheia” (e isso é violência). Ação material traduz-se em atos violência na medida em que,

através dela, voce realiza o seu direito contra a vontade do outro. Tal ação somente pode ser

cometido pelo Estado, ao final de um processo judicial, em regra, em face da violência em que

se traduz.

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Tomemos como exemplo uma relação de crédito e débito: vendi hoje uma televisão e fiquei de receber

o valor no dia 1° do próximo mês. Quando surge a titularidade do meu direito de crédito? Hoje, no

momento em que foi entabulado o contrato de compra e venda, fechado-se o negócio como se costuma

dizer. Se eu quiser alienar esse crédito futuro, já posso, eis que enquanto direito titularizado com

pretensão a surgir a termo, faz parte do meu patrimônio e dele posso dispor. Portanto, eu já titularizei

esse crédito, dispondo de um direito subjetivo. O direito de crédito, enquanto eficácia, já se irradiou,

mas apenas no que diz respeito a sua titularidade e não a sua pretensão, que irá surgir no dia do

vencimento. E isto porque se trata de um ato de autonomia privada, onde nós interferimos no plano da

eficácia pactuando o seguinte: "eu titularizo agora o direito, porque isso é de ordem pública, mas a sua

exigibilidade (pretensão) só vai surgir dia 1°, quando então poderei exigir este crédito; você leva a

telivisão agora, pelo que lhe transmito o domínio através da tradição” Se eu exigir que o devedor

pague antes, por certo haverá um conflito de interesses. No entanto, tal conflito não estará qualificado

por uma pretensão resistida, poi s a pretensão somente surgiá no dia do vencimento. Logo, não há lide.

Mas e se eu resolver entrar mesmo assim com uma ação? Meu pedido será indeferido de plano, por

uma decisão onde serei taxado de carecedor de ação. Toda a estrutura do direito processual, confome

começamos a perceber, está montada a partir destes conceitos e da estrutura do direito subjetivo

material.

É importante observar, no entanto, que tais conceitos surgem

basicamente 1) na teoria geral do direito privado, a partir de um paradigma, um modelo que

tendemos a universalizar, qual seja, 2) o vínculo obrigacional. Ora, se pretensão é faculdade

de exigir de outrem uma conduta, só existe pretensão, tecnicamente falando, no direito de

crédito, em mais lugar nenhum. Se só existe pretensão (no sentido de anspruch) no direito de

crédito, só haverá lide nas relações creditícias? E pedido no processo (pretensão deduzida em

juízo)? Se quisermos rigor conceitual, coerência lógica em nossa teoria, a resposta será a

positiva, desde que mantenhamos os conceitos de pretensão, lide, pedido e ação nos termos

como se está lhes imprimindo definição.

Então não posso falar em divórcio litigioso, pois o divórcio não é um direito creditício. Embora eu não

posso negar que dentro do processo judicial tem várias ações. E a ação aqui é a material. Em cada

direito deduzido tem uma ação. Cumulação de pedidos é igual a cumulação de ações. Cada ação requer

uma decisão judicial distinta. O juiz pode dizer que em relação ao pedido "A" declara carecedor da

ação mas em relação ao pedido "B" e "E", não e o processo é levado adiante. Então há uma correlação

entre pedido, pretensão, direito subjetivo e ação.

O conceito de ação material pode ser explicitado de modo mais claro

quando pensamos nos espaços de franja, de exceção, onde o Estado permite a autotutela. No

desforço necessário, por exemplo, o agir para realizar o direito, garantindo a sua integridade, é

uma violência cometida pelo seu próprio titular, sem ter que ajuizar a questão: ajuizar o que,

se a ação já foi cometida e o direito tutelado pelo seu titular. O mesmo pode-se dizer em

relação a uma legitima defesa da posse ou da vida. É uma violência, uma ação para realizar o

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direito de posse ou da vida, cometida pelo próprio titular, com permissão do estado pois o mal

produzido ali é menor que o mal que seria produzido se o titular, nestas condiçoes, só pudesse

encontrar defesa para o seu direito através da via processual, pedindo que o Estado cometesse

a ação necessária para protegê-lo. Por certo, seria tarde demais. Isso que é ação material. Isso

é a impositividade do Direito. Notem ainda a importância dessas três categorias (titularidade,

pretensão e ação material): elas amarram o direito subjetivo material no direito processual.

A partir daqui, desse conceito analítico de direito subjetivo vão começar

a surgir as várias categorias que irão promover a necessária interrnediação entre o direito

material e o direito processual. Lide, por exemplo, é um conceito pré-processual. Pretensão é

um conceito de direito material, em que pese seja correto falar-se em pretensão processual,

que é outra realidade a ser discutida, e que não se confunde com pretensão material. Ação

também, existe uma material e uma processual. E titularidade? Eis a questão.

Como poderíamos organizar isso aí ? Ora, é que existe no processo dois

direitos subjetivos agitados pelo autor: um direito subjetivo material, ao qual pede-se tutela,

e um direito subjetivo público de ação, de natureza processual. O direito subjetivo público é

o direito subjetivo a tutela, porque o Estado nos tirou a autotutela. O direito subjetivo de ação

processual é se move contra o Estado. Ademais, é incondicional, ao que nos parece, e aí está

o problema. As chamadas condições da ação querem amarrar um direito subjetivo no outro,

mas o direito subjetivo público de ação é incondicional. Eu tenho o direito a tutela estatal

desde que o Estado me retirou a autotutela. Tutela não se confunde com procedência do

pedido (ou da ação, como querem os processualistas da escola de Liebman, com menor rigor).

Ora, se meu pedido ultrapassa as condições da ação e, no final, é julgado improcedente isto

significa que eu tinha ou não ação? Notaram a incongruência. Ainda que seja uma sentença

fulminante e imediata dizendo que se é carecedor da ação, o que se recebe que é tutela

jurisdicional, afinal é uma sentença, ou seja, é atividade jurisdicional. Aqui eu exerci o meu

direito de ação processual. E a rigor, se pensarmos bem, tanto faz o estado-juiz dizer no início

do processo que há, por exemplo, ilegitirnatio ad causam, ou seja, que o autor a toda

evidência não se titulariza o direito subjetivo cuja pretensão deduz em juízo, ou então, no

final, julgar improcedente o pedido porque (sic) o autor não titulariza o direito subjetivo cuja

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pretensão deduz em juízo. A rigor, é a mesma coisa. Qual a diferença substancial? Aí entra

conhsão dos processualistas, dizendo que no primeiro caso não é feito julgamento de mérito e,

no segundo, sim. Parece-me que foi julgado o mérito em ambas as decisões. Dizer que o

sujeito não titulariza o direito subjetivo é mérito, desde que mérito seja a relação jurídica

material subjacente ao processo. Tanto faz se antes ou depois da citação da parte ex adversa.

Aqui o que falta, segundo nos parece, é critério, e isso aí veio de um processualismo

exacerbado, que surgiu com o advento da teoria da autonomia da ação, onde se buscou

construir um direito processual autônomo e, no fim, o que se fez foi um formalismo

processual suficiente em si mesmo, com tal força e de tal modo que as decisões judiciais de

Segunda instância se resolviam afastando o direito material porque (sic) ele acaba

“atrapalhando o processo". Cremos que esta tenha sido uma das mais fantásticas alienações

dos jurístas deste século. Graças a Deus “esse” processualismo está em crise. O recuo desse

concepção excessivamente autonoma deu-se com a recuperação para o processo da inafastável

noção de instrumentalidade. O processo tem que ser um instrumento. A instrumentalidade

recoloca o processo onde ele deve estar: sempre a disposição do direito material, embuído da

defesa deste último. A confusão ocorreu quando o processo não mais quis ser instrumento do

direito material para ser autônomo, suficiente em si mesmo.

Por outro lado, este conceito analítico de direito subjetivo nos permitirá

compreender institutos jurídicos que são tidos por muito como (sic) incompreensíveis.

Retomemos: o direito surge com titularidade já no momento em que surge o fato jurídico. A

exigibilidade eventualmente pode surgir depois. E a irnpositividade pressupõe a violação da

exigibilidade. Ora, se tenho um direito do qual sou titular, e surge minha pretensão e vou

tentar exercer muna pretensão ao que o outro resiste, pelo que surge uma lide, um conflito de

interesses qualificado por uma pretensão resistida. Com isso meu direito adquire

irnpositividade. Mas qual a condição para que surja a irnpositividade? Há um momento sutil

entre a exigibilidade e a impositividade: o exercício da pretensão, que é sinônimo de

exigência. Vejamos este momento mais de perto, buscando maior precisão conceitual.

Page 67: Curso de Epistemologia Jurídica Moderna - uma abordagem filosófica (PROCESSUS)

67

Qual a diferença entre o exercício da pretensão e a ação material? O exercício

da pretensão encontra um limite, qual seja, a vontade do devedor. Feita a exigência, o credor

depende de um ato de vontade do devedor para ver seu crédito realizado.

Vamos supor uma dívida querable (dívida onde o credor, na dato de vencimento, é quem deve

se dirigir ao domicílio do devedor para exercer sua pretensão, para exigir o cumprimento da

obrigação). Notem como esses conceitos são fundamentais. A titularidade surge momento do

negócio jurídico, mas a pretensão só surge no dia 1°. Ora, se o credor deve ir até o domicílio

do devedor e exigir, ele encontra o limite do exercício de sua pretensão justo na vontade do

deverdor. Este, por exemplo, abre a porta e diz que não pagará. O direito estará violado,

surgindo uma impositividade. No entanto, o credor não pode agir naquele momento para

realizar seu direito, cometendo atos de violência contra o devedor, retirando-lhe patrimônio

suficiente para saldar a dívida.

Isso é importante. A parte referente a ação material é exercida pelo Estado. Mas

só surge com a violação do direito. Ora, na verdade tem que haver uma lide para que o direito

seja dotado de impositividade. Tem que haver lide porque 1º) tem que ter surgido a pretensão;

2º) tem que ter sido exercida a pretensão; 3º) tem que ter sido resistida a pretensão, de modo

que formou-se um conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida. O direito

então tomou-se passível de ser imposto, mas não pessoalmente, e sim via processual, via

Estado. Como este retirou o exercício da ação material do titular do direito, ou seja, a

autotutela, ele lhe deu um direito subjetivo de ação processual. Aí você move uma ação

processual contra o Estado e uma ação material contra o devedor. São dois direitos subjetivos:

um o direito de crédito, ou pretensão creditícia que voce move contra o devedor; o outro, um

direito subjetivo público de ação (e ação processual), que voce move contra o Estado.

Quem não domina teoricamente o conceito de direito subjetivo não será capaz

de compreender a estrutura interna de cada uma de suas espécies: 1) direito obrigacional; 2)

direito potestativo; 3) direitos personalíssimos e dominias, etc.. Jamais entenderá, por seu

turno, o fenômeno da prescrição e da decadência, institutis que estão intimamente ligados a

natureza do direito que atinge.

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68

Mais do que isto, fica difícil manejar coerentemente o conceito de ação, não

separando da ação processual a ação material, que são coisas absolutamente distintas.

Consequentemente, ninguém se entende a respeito de um conceito de ação. Está instalado o

caos. Vejamos: quando estou manejando uma ação de divórcio, esta ação é material ou

processual? É material, segundo a lógica original da teoria jurídica, antes de instalar-se o caos.

A ação processual não tem nome, é movida contra o Estado, é puro pedido de tutela. A ação

que tem nome e conteúdo é a material, que é movida contra a parte. A ação de divórcio não é

movida contra o Estado, mas contra o cônjuge. Mas, como vimos, com o advento da confusão

atual, cada qual fala de ação de forma distinta e ninguém se entende sobre o significado e

alcance do conceito. Por isso a celeuma em torno do instituto da prescrição. Uns dizem que a

prescrição atinge a ação; outros, que a prescrição atinge o direito. Convenhamos: se

prescrição atinge a ação, esta ação é a material ou a processual? Ora, se for a processual então

o que o instituto está fazendo no Código Civil? Incoerência: o instituto deveria estar regulado

no Código de Processo Civil? Então, estando no código civil, isto indica que o instituto não é

processual. Uma segunda incoerência dos que entendem ação como ação processual e

sustentam que a prescrição atinge a ação: dentro de um processo judicial, a prescrição, todos

sabemos, é questão de mérito. É o que dizem os processualistas. Dizem eles: opor prescrição

é fazer uma defesa de mérito e não uma defesa processual. Se prescrição atinge a ação e essa

ação é a processual (como quer certo processualismo) o autor não deveria ser julgado

carecedor de ação? Como pode a prescrição atingir a ação processual e ser questão de mérito

ao mesmo tempo?

Alguns autores indicam que esta ação não é a ação processual. Assim, a

prescriação atingiria a ação material. Entretanto, nem os que assim indicam o fazem com

clareza. Usam a palavra ação de maneira irresponsável, sem rigor conceitual. Se a prescrição

atinge a ação, sendo tema de mérito regulado pelo código civil, tal ação tem que ser a ação

material. Mas a ação material não cabe mais no nosso discurso jurídico, eis que não se adota

mais o conceito de ação material no estudo do direito subjetivo. De onde vem esta ação

material, portanto? Prescrição, portanto, é tema ao qual nos veremos obrigados a retomar no

momento adequado, qual seja, o do estudo do vínculo obrigacional. Somento compreendendo-

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se com maior profundidade a estrutura do direito obrigacional e que poderemos equacionar

corretamente o instituto da prescrição.

Aos pouco vai-se notando que há uma armadilha sutil neste estudo do conceito

analítico de direito subjetivo, enquanto titularidade, pretensão (exigibilidade) e ação

material (impositividade). É que esse discurso, tal como a teoria está sendo articulada,

somente se adequa para o estudo do vínculo obrigacional. O Direito, por óbvio, não se reduz

apenas a vínculos obrigacionais. Como se percebe, a teoria jurídica clássica insiste no vício de

querer imprimir universalidade a conceitos particulares. Vejamos.

Prescrição é fenômeno que atinge o direito obrigacional; pretensão é

faculdade de exigir de outrem uma conduta, ou seja, uma prestação, que ó objeto de uma

obrigação (dar, fazer ou não fazer). Logo, pretensão é um fenômeno do direito obrigacional.

Pedido, sendo pretensão deduzida em juízo, é o modo pelo qual se iniciam as ações

condenatórias, que tutelam os direitos obrigacionais (leia-se crédito). Lide, sendo conflito de

interesses qualificado por uma pretensão resistida, diz respeito apenas a direitos

obrigacionais violados. Deste modo, começamos a perceber que a teoria geral do direito

tende a ser uma teoria geral do direito obrigacional, bem como a teoria geral do processo,

tende a ser uma teoria geral da ação condenatória. Eis o que os autores mais cautelosos e

observadores chamam de fenômeno da universalização das obrigações e das ações

condenatórias.

Note-se, quando se fala em prescrição penal, em sede de direito penal, deve-se ter em mente que a

estrutura conceitual e teórica do direito penal moderno foi copiada da matriz obrigacional, daí se falar

em pretensão punitiva, prescrição da pretensão punitiva ou executória, decadência do direito de

queixa, ação penal condenatória, etc). Prescrição em direito privado refere-se a pretensão creditícia,

faculdade de exigir de outrem uma conduta. Conduta aqui se refere a prestação. Prestar é o objeto da

obrigação. O prestar pode ser um dar, um fazer ou não fazer. Tudo está montado a partir do

paradigma do vínculo obrigacional. O Direito Processual, enquanto teoria que articula-se nas

principais categorias do processo (teoria geral do processo) está montado a partir desse paradigma, e a

gente deve ter cuidado, pois, em virtude de nossa formação, nosso pensamento jurídico tende a

universalizar essas categorias, que são particulares ao direito obrigacional.

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Esse conceito de direito subjetivo tal como estamos estudando é um conceito

de direito subjetivo obrigacional (ou creditício). Portanto, até agora só estudamos a

estrutura do direito de crédito. Exemplo. Vamos ao divórcio, clássico direito Potestativo, que

é direito de constituir, desconsfituir ou modificar relação jurídica subjacente. A estrutura do

direito potestativo se traduz por ter de um lado o poder de desconstituir a relação, por

exemplo, no divórcio - poder de desconstituir relação matrimonial pré-existente. Tem

exigibilidade? Quando surge a pretensão, a faculdade de exigir de outro uma conduta? Ora,

ele não tem pretensão nenhuma, nos termos como a conceituamos. Porque exercer o direito de

divórcio não é como exercer um crédito, em que eu dependo de uma conduta, isto é, que o

outro preste, dê, faça ou não faça algo. Para exercer o direito de divórcio vão dependo de

nenhuma conduta, nenhuma prestação do outro cônjuge. Ou eu exerço e desmonto a relação

jurídica matrimonial, fulminando-a, ou não exerço. O outro simplesmente se sujeita, pois não

está numa condição de obrigado, mas sim numa condição de sujeição. É distinto, portanto, do

direito obrigacional. Ora, se o outro está numa relação de mera sujeição significa que não há

como violar o direito. Portanto, não tem pretensão, logo não pode haver lide, logo não pode

haver violação do direito, enfim, não pode haver, em tese, divórcio litigioso. Existe o

fenômeno do divórcio litigioso, mas aí o que há é cumulação de ações, conforme veremos no

estudo do direito potestativo. Ora, concluí-se, mais uma vez, que tais categorias como

pretensão, lide e pedido, fundamentais para o prodesso, não se prestam para articular uma

teoria das ações que tutelam os direitos potestativos que, conforme veremos, tratam-se das

ações constitutivas.

O divórcio em si, enquanto ação constitutiva negativa, enquanto exercício do direito potestativo de

divórcio, não pode ser litigioso. Só que um processo onde se promove uma ação de divórcio

conflituosa entre as partes, cumula-se em regra outros pedidos, ou seja, outras ações que podem ser

litigiosas. Não há um acordo prévio em relação a uma série de outros direitos que estão embutidos num

casamento, como a separação dos bens, a guarda eventual da prole, o direito a receber pensão, que tem

uma natureza mais ou menos creditícia, mas que é uma relação muito especial de crédito e débito,

passível de ensejar inclusive a prisão civil. Vários direitos que se deduzem num divórcio, além do

próprio direito Potestativo. Neste não pode haver lide, mas nos demais pode.

Ora, como conclusão deste capítulo, as reflexões que ora travamos nos conduz

a um estudo de cada uma das espécies de vínculo jurídico, buscando compreender a sua

estrutura e a estrutura de tutela judicial correspondente. Somente assim poderemos amarrar o

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direito material no direito processual, compreendento um a luz do outro. Como estratégia,

vamos adotar o conceito analítico de direito subjetivo que tratamos de desdobrar em

titularidade, pretensão e ação, e ver em cada espécie de direito subjetivo como ele se

comporta, se ele se adequa ou não à cada estrutura dos vínculo jurídicos em que os direitos

subjetivos mais tradicionais do direito privado ocorrem (vínculo obrigacional, vínculo

potestativo, vínculo dominial). Trata-se de um estudo do plano da eficácia. Entretanto,

deixamos de chamar estes vínculos - ou sejas, estas relações entre partes que titularizam

direitos e deveres num sentido lato – de relação jurídica por motivos óbvios. É que também

estes conceitos foram identificados com o direito obrigacional e incautamente universalizados.

Assim, para a doutrina tradicional, relação jurídica é o que ocorre entre um titular de uma

pretensão e o titular de uma obrigação. Portanto, o conceito de relação jurídica é identificado

apenas com o vínculo obrigacional. Ora, se relação jurídica é apenas relação de crédito e

débito, então chamemos as demais relações jurídicas (sic) de vínculos. Ademais, o tratamento

dado ao conceito tradicional de direito subjetivo (v.g. “interesse juridicamente protegido”,

que a maior parte dos usuários, incautos, não sabem ter sido retirado da jurisprudência dos

interesses cerca de um século atrás) também o identifica com o direito subjetivo obrigacional.

Segundo expressão bastante difunda nesta doutrina, o direito obrigacional é o direito

subjetivo propriamente dito (sic).

DIREITO SUBJETIVO MATERIAL E SUA CORRESPONDÊNCIA NO PROCESSO

Suporte para um estudo dos vínculos jurídicos tradicionais

INTRODUÇÃO

No capítulo anterior tratamos de desenvolver o conceito analítico de DIREITO

SUBJETIVO. Isto é, tratamos de construir um conceito de direito subjetivo que mostrasse as

partes constitutivas de sua estrutura. Vimos que direito subjetivo implicava em 1° lugar em

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titularidade. Esta é uma característica inafastável do conceito. Vimos também que não basta

o estado conferir titularidade se esta não for “titularidade de um certo poder”, e este poder é

a essencialidade do direito subjetivo. O titular do direito subjetivo titulariza um certo poder. A

esse poder originalmente se chamou de exigibilidade. O poder de exigir do devedor uma

conduta. Esta exigibilidade se enquadra também de forma original no conceito de pretensão.

Exigibilidade, portanto, é pretensão. Pretensão é um conceito que vem da pandectística alemã

e que significa faculdade de exigir de outrem uma conduta. Por último, vimos que há um

momento em que o direito subjetivo adquire uma nova potencialidade: a impostitividade.

Para conseguirmos compreender essa passagem da exigibilidade para a impositividade, isto é

do surgimento da pretensão para o surgimento da ação material foi preciso inserir entre

essas potências um atitude, um ato, uma conduta efetiva do titular do direito subjetivo: o

exercício da pretensão. Afinal, todo ato é exercício de uma potência. Assim, a exigibilidade

é potência; a exigência, é ato. Exigência é sinônimo de exercício da pretensão. Exercida a

pretensão através de atos de exigência, e encontrando resistência por parte do devedor, o

direito passa a ser dotado de ação material. Ou seja, a ação material decorre da violação do

direito. A violação do direito subjetivo traduz-se num conflito de interesses entre o titular do

direito que exerce a pretensão, exigindo o cumprimento da obrigação, e o devedor que resiste.

Portanto, um conflito de interesse qualificado por uma pretensão resistida. Aqui resgatamos

outro conceito: o de lide. Logo, ação material é o que surge com a lide. É decorrência da

violação do direito. Como não posso tutelar pessoalmente meu direito violado (autotutela), eu

deduzo meu direito subjetivo em juízo, pleiteando tutela estatal. Faço isto através do pedido,

que é pretensão deduzida em juízo. Deste modo, movo uma ação processual contra o estado

e uma ação material contra o devedor resistente e inadimplente.

Ora, diante deste resumo acima, percebemos que começamos a tecer uma rede

conceitual onde se amarram os conceitos do direito material (pretensão, ação material),

conceitos intermediarios entre o direito material e o processual (lide), e conceitos do direito

processual (pedido, ação processual). Devemos, portanto, aprofundar este estudo, eis que é um

dos mais profícuos do ponto de vista prático-jurídico. Faremos uma breve reflexaão crítica em

torno de momentos fundamentais da teoria processualista tradicional e, logo após, iremos

estudar os pontos nodais entre as categorias do direito material e as do direito processual em

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cada um dos principais vínculos de direito privado: vínculo obrigacional, vínculo potestativo e

vínculo de direito absoluto, em especial o direito de propriedade.

As condições da ação: breves reflexões críticas.

O eixo condutor de nossa amarração conceitual, por certo, foi o conceito de

pretensão (anspruch). Ora, a pretensão inserida no conceito de pedido identifica-se com o

direito subjetivo. A pretensão no conceito de lide, por sua vez, identifica-se também com

direito subjetivo. A pretensão, conceituada em si mesmo, é aquilo que traduz o que há de

essencial no direito subjetivo, é a exigibilidade do direito subjetivo, é o próprio direito

subjetivo em sua essência: a faculdade, em que ele se traduz, de exigir do devedor uma

conduta. Aí começam a ter contornos mais precisos os conceito de lide, pedido e direito

subjetivo, bem como se tornam claros os complexos embricamentos entre eles.

Por exemplo: se deduzo um pedido em juízo, pedindo tutela em um conflito obrigacional onde não há

lide – tal como o credor de dívida quesível que ajuíza uma ação antes de ir cobrar a dívida no

domicílio do devedor, conforme pactuado. O juiz vai sentenciar de plano: carecedor de ação por falta

de interesse de agir. Não há direito subjetivo violado eis que o credor ainda não exerceu a pretensão.

Não há lide. Somente depois de exercêr a pretensão, e de haver uma resistência por parte do devedor,

gestando-se uma lide, aí sim vou ter interesse em buscar a tutela jurisdicional. Deste modo, consigo

entender a carência de ação por falta de interesse de agir. As coisas estão amarradas: com a lide o

direito adquire impositividade, e aí então posso pedir tutela estatal. Carecedor de ação porque sem a

violação do direito não surge a ação material.

Na verdade, o pedido implica em uma dupla pretensão deduzida em juízo: a uma, porque ao

deduzí-lo em juízo, movo uma ação processual contra o estado, o que significa que a uma

pretensão de tutela (pedido mediato). Por outro lado, movo uma ação material contra a parte

ex adversa, pelo que deduzo também do pedido uma pretensão material (pedido imediato).

Façamos um breve passeio pelas condições da ação.

As maiores confusões sobre o tema, segundo nosso entendimento, decorre do

esforço teórico para criar-se uma ciência processualista autônoma, a partir de um conceito de

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ação que não estivesse vinculado à estrutura do conceito de direito subjetivo: eis tão almejada

autonomia da ação.

Ora, a teorização de uma excessiva autonomia do conceito de ação, apartado

do direito material, gerou um formalismo processual tão radical que o processo passou a ser

bastante a si mesmo, o local por excelência onde se discutiam intrincadas questões de direito

processual, esquecendo-se de tutelar o direito material.

O conceito de lide, por exemplo, não é processual porque independe do

processo. É pré-processual. Só que ele é importante do ponto de vista processual, porque

ocupou o vazio deixado pelo abandono do conceito de ação material, e isto decorreu da

tentativa de tornar o processo – e a sua ciência - autônomos. Assim, segundo a teoria

processualista tradicional, não se consegue tutela estatal se não formos dotados de ação.

Processual ou material? Ação processual, respondem. Seremos taxados de carecedores de

ação processual, pelo que o juíz irá encerrar o processo sem julgar o mérito. Ora, bem

analisado o processo e as decisões judiciais, nestes casos, esta tese não se sustenta. Uma

sentença que fulmina sua petição por carência de ação é, em regra, uma sentença de mérito. E,

mais, ela é tutela jurídica estatal, embora não tenha se perfectibilizado a relação processual

através da citação.

Também o fato de não Ter se perfectibilizado ao actum trium personarum não quer dizer que

não houve processo, pois, segundo a própria doutrina processual tradicional, somente no processo o juiz

desenvolve atividade judicial – atos judiciais propriamente ditos. Ora, se não houve processo, porque não houve

citatação, o que houve então? A sentença de carência de ação é ato judicial ou não? Se não for judicial é o que?

Quando o juiz diz que o autor é carecedor de ação por falta de interesse de agir,

na verdade ele diz, analizando o núcleo do mérito: “o seu direito subjetivo material não foi

violado, logo não é dotado da ação material, pelo que respondo ao seu pedido dando-lhe a

seguinte tutela: não cometo a ação material que voce almeja porque o seu direito subjetivo

não foi ainda violado, logo, você não exauriu os meios menos gravosos para o seu exercício.

Destarte, julgo-o carecedor de ação, por falta de interesse de agir”.

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Não é isso que o Estado faz na hipótese de carência de ação por falta de

interesse de agir? Não vou cometer a ação material, que é violência, ir lá pegar os bens do

devedor porque você não exerceu a pretensão. Você não exauriu os meios menos gravosos

para tentar realizar o seu direito. Interesse de agir, conforme estudamos, refere-se à exaustão

dos meios menos gravosos, e é muito menos gravoso você, dotado da pretensão, ir lá e exigir

do devedor que cumpra a obrigação. Se ele resistir ao exercício da sua pretensão, ai sim, o seu

direito será dotado de uma ação material que você tem para ir ao Estado e pedir para ele a

exerça, dentro de uma ação processual. O Estado-juiz, prestando tutela, bota a mão no

patrimônio do devedor , em nome do próprio devedor, e subrogado na pessoa deste, pega o

bem objeto da prestação e comete a declaração negocial iuri real pela qual trasmite o seu

domínio para você.

Outro exemplo: qual a diferença substancial entre uma sentença que o diz

carecedor da ação por ilegitimatio ad causam () para uma sentença que, depois de toda a

instrução do processo, diz: julgo improcedente o pedido (ou seja, o autor não titulariza,

segundo se depreende da instrução, a pretensão de direito material que ele julga titularizar? O

que significa dizer: julgo improcedente o pedido? Você não titulariza o direito subjetivo que

você diz ter. É substancialmente a mesma coisa. A única diferença é que numa hipótese o juiz

não quis fazer a cognição mais plena e, na outra, ele o fez. Parece-me outro momento típico

em que se está analisando a titularidade. Ilegitimatio ad causam é titularidade. Falta de

interesse de agir, ausência de exigibilidade, ausência do exercício da exigibilidade. Então não

surgiu impositividade. O problema é que a palavra ação foi retirada de sua origem, o direito

material, e jogada no formalismo exacerbado do pressualismo, de tal sorte que restou

absolutamente confusa e ambígua. Querem ver?

Sustentamos que os processualistas tomaram a palavra ação para si e buscaram

construir, com ela, um processo autônomo em relação ao direito material. Hoje, quando se

pensa em ação pensa em processo e vice-versa. Como se nos momentos onde a tutela do

direito é feita pelo próprio titular o que se cometesse ali não fosse uma ação material, um agir

para garantir ou realizar o direito subjetivo material (desforço necessário e legítima defesa da

posse, por exemplo. Ação é agir para realizar concretamente o direito. Ação é o momento de

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violência que um poder traduz. É justo o Poder em exercício, e Poder é violência. Poder é

poder cometer uma violência, simbólica ou material. Se eu tenho o poder de exigir uma

conduta, tenho o poder de fazer valer uma violência. Vou ter que aplicar multa, pegar o

patrimônio do devedor aleatoriamente, pegar um bem seu e passar o domínio para outrem,

retirá-lo a força de algum lugar, retiral um bem objeto do patrimônio de outrem de sua

detenão, por atos de força, e assim por diante. Essa violência, eventualmente, pode ser feita

fora do processo, pelo próprio titular, nas hipóteses autotela legitimada pela ordem pública. Já

o Estado só tutela seu direito, cometendo a ação material que o realiza, dentro de uma relação

processual. Só comete a violência através do processo. Mas isso não quer dizer que essa

violência tenha conteúdo processual. A violência tem conteúdo material: atos de realização do

direito.

Na verdade existem dois direitos subjetivos dentro de uma relação processual:

existe um direito ao qual você pede tutela, porque a autotutela foi proibida. E essa tutela é a

ação material, o conteúdo da tutela; agora o “prestar tutela”, que se dá em função da proibição

da autotutela, é atividade que depende da relação processual. Existe um direito subjetivo

material, que se agita no processo, e um direito subjetivo processual, que chamamos de

direito subjetivo público de ação. Portanto, as duas ações que se agitam no processo são

diferentes e não se deve confundí-las: a 1) ação procesual e a 2) ação material. A ação

processual, decorrente do direito subjetivo público de ação, se move contra o Estado; a ação

material, decorrente do direito subjetivo material, se move contra a parte ex adversa.

Ora, este direito subjetivo público de ação também é dotado de titularidade,

exigibilidade (pretensão processual) e impositividade (ação processual). Quem titulariza o

direito de ação? Qualquer ente dotado de personalidade. É personalíssimo esse direito, porque

o Estado desautorizou a auto tutela para toda e qualquer pessoa, pelo que tem o dever de

prestar tutela, contra o direito subjetivo público de ação. Portanto, basta a pessoa existir, ser

dotada de personoalidade, para Ter ação. Muitos processualistas entendem tal direito um mero

direito de petição, que é uma saída necessária para buscar alguma coerência na doutrina

processualista tradicional.

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Isto porque, se eu ajuízo uma ação, pedindo tutela, e não tiver direito

subjetivo, eu recebo tutela dizendo que não procede minha ação (rectius: o que não procede é

o pedido). Ora, ao ser julgado improcedente o meu pedido, eu exerci ou não uma ação?

Recebi ou não tutela? Por outro lado, se eu pedir uma tutela numa ação declaratória de

inexistência de relação jurídica eu titularizo que uma ação, ou sou carecedor? Afinal, não há

que se falar que eu titularize um direito material. Eu estou pedindo para que o juiz diga que

não existe direito material. Por certo, chamamos de ação: ação declaratória, por sinal. E o que

recebo do Estado, chamamos tutela jurisdicional. Há jurisdição. Portanto, esse direito

subjetivo público de ação não se confunde com a ação material, dotada de um conteúdo, tal

como a ação condenatória, a ação reivindicatória, a ação de usucapião, etc. (tidas como

processual, mas todas elas consituindo-se em ação material). Mais do que isto, a titularidade

deste direito público é eficácia do início da personalidade: qualquer personalidade, ou seja,

qualquer pessoa natural ou jurídico, por ser pessoa, o titulariza.

O sujeito pode simplesmente mover uma ação e o juiz dizer que não tem

procedência o que se pediu, o que é uma resposta do Estado, em relação ao pedido. Agora o

cometimento da ação material o Estado só vai fazer se você titularizar o direito que você diz

titularizar e, mais do que isto, se tal direito for dotado de uma impositividade: a ação material.

Quando você exerce pura ação processual, tal como na numa ação de declaratória da

inexistência de direito subjetivo material, você não está titularizando direito material nenhum,

não possui ação material, não há porque executar a sentença, ou seja, o Estado cometer a ação

material, que se traduz em ato de violência. Então você está exercendo apenas o direito

público de ação, e está recebendo tutela - no sentido de resposta estatal ao seu pedido

processual, sua pretensão processual. Não há se confundir pretensão material, que se constitui

em atos estatais de violência para realização do direito material, e pretensão processual, que se

traduz em resposta estatal ao pedido. É que há um pedido imediato, onde deduzo a pretensão

material, e um pedido mediato, onde deduzo a pretensão processual: portanto, dois são os

direitos subjetivos, e não se deve confundí-los. A teoria processualista tradicional, segundo

nos parece, faz essa confusão. Por isso, quando se fala em ação, pensamos em processo.

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A ação processual se move contra o Estado, e a material contra a parte ex

adeversa. Contra o Estado você move uma ação processual, exercendo uma pretensão de

receber tutela. Contra a parte você move uma ação material, exercendo uma pretensão de ver

atendido o seu direito subjetivo, ver cometida pelo estado a ação material que ele o proibiu de

cometer, ou seja os atos concretos para realização de seu direito.

PERGUNTA: se num processo o juiz entende que há ilegitimidade ou falta de

interesse de agir, afirmar que isso é mérito não implica estar confundindo o pedido mediato

com o imediato? Porque nesse caso o Estado estaria se recusando a analisar o pedido

imediato...

Não. O Estado vai analizar, nestes casos o pedido imedianto, a despeito de

opinião oposta. Dizer que o sujeito é carecedor de ação por ilegitimatio ad causam, conforme

já disse, significa que o sujeito não é titular do direito na relação de direito material. Ora, a

relação jurídica de direito material é justamente o mérito do processo. Ou então temos que

definir o mérito de outra forma, definição esta que eu não conheço. Por outro lado, o pedido

imediato implica, necessariamente, no pedido mediato. Não há que se confundir um e outro.

Você persegue ação material de seu direito subjetivo através do processo justo porque o

Estado lhe retirou a autotutela. Logo, se você deduz o pedido imediato, pretendendo que o

Estado cometa, por você, os atos deviolência para realizar o seu direito, ou seja, a ação

material do seu direito subjetivo, por óbvio voce está, também, deduzindo uma pretensão

processual, um pedido mediato implícito de tutela jurídica estatal, eis que está proibido de

cometer pessoalmente a ação material do seu direito.

As condições da ação traduzem uma indispensável estratégia de jurisdição

fulmitante, que evitasse a instruação processual em casos de solução evidente a primeira vista.

Sua importância para jurisdição é inquestionável, principalemente em face do excesso de

demanda em relação a estrutura do estado, de seu aparelho jurisdicional. Entretanto, o que se

questiona não é a função prática destes institutos, mas sim o seu péssimo equacionamento

teórico. Tais institutos de direito processual foram criados pelo italiano Liebman, em São

Paulo, em meados deste século, fazendo surgir importante escola processualista no Brasil. E

isto porque ele abandonou temporariamente a Itália, sua terra natal, fugindo da Segunda

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79

Guerra Mundial. Ele sustentou essa teoria quando voltou para Itália, após a guerra? Não,

apenas o fez parcialmente. E nós, no entanto, a repetimos até hoje, no mais des vezes uma

forma pouco refletida.

PERGUNTA: se o juiz vê que está ocorreu a prescriação, ele não vai analisar o

resto daquele pedido do autor. Simplesmente diz que prescreveu?

Prescrição é matéria que o juiz não examina de oficio, é uma forma de defesa

direta. Diz respeito ao mérito do pedido, é questão de mérito, portanto. Diz o réu, em sua

defesa: “reconheço a existência de direito subjetivo mas oponho a prescrição. Logo, ele

titulariza e ajuíza um direito não mais dotado de pretensão."

PERGUNTA: mas no caso, a pessoa que teve contra si reconhecida a

prescrição ainda vai ter mais uma instância para que o resto do seu pedido seja analisado?

O resto do pedido não. Cuidado. Em regra, dentro de um processo, tendemos a

exercer, sempre que possível, múltiplas ações: trata-se de cumulação de pedidos, que é o

mesmo que cumulação de ações. Cada pedido, uma ação. Por isso que é importante saber

fazer uma dissecação analítica do direito material, compreendendo a fundo a sua estrutura,

para saber o que pedir e como pedir. Por exemplo, se você ingressa com uma ação quanti

minoris, como é que articula o pedido? O que é uma ação quanti minoris? É uma ação para

diminuição de preço, porque o objeto da compra e venda apresentou um vício redibitório.

Como é que você pleiteia ao final? Você demonstra existir o contrato de compra e venda,

prova o vício redibitório do bem objeto da prestação através de alguma perícia técnica, se

necessário, e pede a modificação da relação contratual, ao final, traduzida em diminuição de

preço. Trata-se de uma ação constitutiva modificativa. Ora, voce deduz em juízo um direito

potestativo. Se for um bom advogado, aproveita e cumula uma ação condenatória para

perseguir a devolução do dinheiro paga a mais, na hipótese de procedência da ação

constitutiva. Uma simples cumulação de ações. – ou de pedidos, como queiram.

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O que aprenderemos na aula de hoje é a não confundir mais isso, através da

análise do vínculo obrigacional. Vínculo obrigacional se tutela com uma ação condenatória.

Depois nós vamos ver o vínculo Potestativo, que se tutela com uma ação constitutiva. E nós

vamos ver como é a estrutura do vínculo obrigacional,. Depois, estudaremos a natureza

jurídica do vínvulo potestativo, e como se diferencia um tipo de vínculo do outro.

Como vimos acima, o direito de diminuir preço é o poder de modificar uma

relação jurídica subjacente. Modificado, pela via judicial, o preço, resta um crédito para o

autor, em relação ao réu da ação constitutiva – o vendedor do objeto defeituoso. A ação

correspondente a este crédito, por certo não é de natureza constitutiva, mas sim condenatória.

Pois você aproveitará o mesmo processo e fará uma cumulação de pedidos, deduzindo neles

as duas ações O juiz, por sua vez, será obrigado a cometer duas decisões judiciais, o que fará

na mesma sentença. Se você for fazer, por exemplo, um concurso público para juiz de direito

você vai em primeiro lugar decidir o pedido constitutivo modificativo, em uma sentença de

natureza constitutiva. Em segundo lugar, decidirá o segundo pedido: Condeno fulano à

devolução do preço pago a mais, de acorde com a modificação de preço operada na ação

constitutiva modificativa. No final, portanto, você vai exarar uma sentença com duas decisões

judiciais: uma de natureza constitutiva e a contra, condenatória.

Por isso é importantíssimo estudar a teoria geral, apesar de uma resistência natural que alguns

estudantes oferecem: é que, aprendendo a raciocinar juridicamente, você aprende, entre outras coisas, a usar um

critério de compactação da memória. Por isso que é importante a teoria geral, em lugar da educação da memória,

que é meramente informativa, eis que aquela traduz uma educação de formação em direito, e não mera

informação jurídica.

Toda atividade judicial implica, em primeiro lugar, numa atividade cognitiva:

conhecer o direito, através da instrução processual. Depois de conhecido o direito, implica ao

menos em uma atividade declaratória: declarar o direito conhecido. Depois, então, conforme a

natureza do direito conhecido e declarado, implicará em outras espécies e atividade judicial

(constitutiva, condenatória, mandamental). Não existe uma sentença judicial que não tenha,

pelo menos, cognição e declaração – ainda que a cognição seja apenas de inexistência de

relação jurídica.

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O juiz conhece, declara e constitui. Conhece, declara e condena. Conhece, declara e modifica. Conhece, declara,

e manda (expede uma mandado de busca e apreensão), e assim por diante. Isso traz uma conclusão importante:

Se o advogado não conhece a estrutura do direito material deduzido em juízo, não saberá fazer o pedido correto.

O mesmo se diga do juiz, que acaba cometendo confusões e embaralhando o procresso, e dos promotores, que

dão pareceres completamente descabidos e atravessados.

Não quero me alongar neste tema, aprofundando o conceito de ação. Apenas

joguei com algumas idéias, teci algumas reflexões buscando alguma coerência teórica, da qual

tão carente é esta matéria. Não se nega, trata-se de um tema bastanto complexo. Pelo que,

apenas procure, através de uma abordagem mais metodológica do tema, alertá-los para o fato

do processo civil estar sustentado por uma teoria capenga, de pouco rigor lógico-

metodológico, transpassada de vícios por vezes evidentes, principalmente no que diz respeito

às tão discutidas e comentadas condições da ação. Hoje, este formalismo processual

decorrente da autonomia da ação está em franca decadência. A reflexão processual,

felizmente, busca caminhos em direção ao direito material, agitada por novos ares,

especialmente pelo princípio da instrumentalidade do processo, que outra coisa não significa,

em sua generalidade principiológica, senão um retorno do processo ao direito material.

OS PRINCIPAIS VÍNCULOS JURÍDICOS Breve estudo do plano da eficácia jurídica

INTRODUÇÃO

Antes de mais nada, cumpre delimitar o que estamos chamando de

vínculo jurídico ? Ora, os vinculum iuris, ou “vínculos jurídicos”, constituem a eficácia

jurídica fundamental que se irradia dos fatos jurídicos. Trata-se, portanto, de um estudo do

plano da eficácia do fato jurídico. São relações de direito e dever, ou seja, vínculos que se

estabelecem entre partes, determinadas ou não, onde uma titulariza um direito subjetivo e a

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outra um dever, ambos em sentido lato. Ademais, chamamos de vínculos jurídicos tais

relações de direito porque a doutrina tradicional, em sua tendência a universalização de

categorias do direito obrigacional (vínculo obrigacional), tratou de usar o termo relação

jurídica exclusivamente para os vínculos de crédito e débito. Portanto, evitamos o uso da

expressão para que não se promovam maiores confusões.

Vamos analizar o tema sob o prisma do conceito de direito subjetivo

acima estudado. O direito subjetivo é composto, do ponto de vista analítico, por 1)

titularidade, 2) pretensão e 3) ação material. Ora, nosso próximo passo é testar a

universalidade deste conceito de direito subjetivo, aplicando-o a cada um dos direitos que

ocorrem dentro dos vínculos jurídicos mais conhecidos. Quais esses clássicos vínculos

jurídicos? Vejamos:

1) o vínculo obrigacional – o mais tradicional de todos, usado como modelo e chamado de

relação jurídica. São tutelados pela ação condenatória.

2) o vínculo potestativo – correspondente aos direitos formativos e a ação constitutiva.

3) o vínculo de direito absoluto – para efeitos didáticos usaremos neste estudo o vínculo

dominial como paradigma. Mais especialmente, nosso paradigma sejá o direito de

propriedade, que é o mais clássico direito dominical. Poderíamos, também, utilizar para este

estudo os direitos da personalidade. Os direitos personalíssimos também são típicos direitos

absolutos. Optamos pelo dominial, eis que sua tutela é mais completa e poderemos, entre

outras coisas, abordar o fenômeno da universalização das ações condenatórias, pelo prisma da

transformação paulatina da reivindicatória numa subespécie daquela, onde o proprietário-

autor, ao deduzir em juízo o seu direito dominial, vê-se transformado, no transcorrer do

processo, em um mero credor contra um devedor obrigado a uma prestação interior a uma

obrigação de (sic) entregar.

(sem revisão)

Portanto vamos fazer a seguinte rota:

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1. Em primeiro lugar, analisaremos o direito obrigacional. Ele é dotado de titularidade?

-tem pretensão?

-tem ação? Esta vai ser a nossa reflexão teórica.

2. Depois vamos pegar o Direito Potestativo. Tem titularidade?

- tem pretensão?

- tem ação?

3. Ao final, estudaremos o direito de propriedade. Ele tem titularidade?

É possível se falar em pretensão dominial? O que

se deduz em juízo numa ação reivindicatória. É uma pretensão dominial? Qual a natureza da

pretensão? Você exerce um direito de propriedade contra todos? Esta pretensão que é a

exigibilidade se transforma em exercício da exigência contra todos? Ou só surge a pretensão

do vínculo de propriedade com a sua violação? Estas questões vamos ter que responder.

Estes são nossos próximos passos. Vamos começar pelo vínculo

obrigacional, analizando desde a sua estrutura até vermos que tipo de tutela ele recebe. Como

se tutela este vínculo? O direito que realiza este vínculo, como se tutela? Ora, através de uma

ação condenatória e de uma posterior execução. Não há ação constitutiva, por exemplo, que

tutele um vínculo obrigacional. Nem uma ação executiva “lato sensu”, ou uma ação

meramente declaratória serve para emprestar-lhe tutela.

A ação condenatória foi feita para tutelar este vínculo e nós vamos

entender porque. E justo pela natureza do vínculo obrigacional é que se separa a atividade

judicial de natureza cognitiva, com declaração do direito e eventual condenação final, da

atividade judicial propriamente executiva.

Resta uma questão muito séria: se a justiça está emperrada por excesso

de processos judiciais, por que nós cindimos a tutela dos créditos - tomando estes não no

sentido comum, qual seja, o de crédito pecuniário, mas no sentido jurídico geral, eis que nem

todo crédito jurídico corresponde à pecúnia. Nós temos crédito contra obrigações de fazer ou

não-fazer, por exemplo, que longe estão de corresponder à “valor em dinheiro” ou,

simplismente, pecúnia.

Por que nós cindimos a tutela aos direitos creditívios em dois processos

distintos? O vínculo obrigacional é tutelado por uma ação condenatória e nós fizemos a

separação. Tem justificativa ou não? Os Tribunais, as Varas Cíveis estão entupidas de papéis.

Para que separar em dois processos a tutela de um crédito?

Estas são as questões que precisamos enfrentar, e é por dentro da análise

estrutural de cada vínculo que nós vamos compreender estas questões. Façamos este breve

estudo dos mais tradicionais vínculos do direito privado.

1. O VÍNCULO OBRIGACIONAL

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(linguagem de sala de aula – NÃO REVISADO)

Este é um dos temas mais importantes da Teoria Geral do Direito. De

fato, o núcleo do pensamento jurídico moderno está calçado na estrutura do vínculo

obrigacional. Ele serviu de modelo para o Direito Penal e para o Direito Processual. É um

vínculo sutil, de extrema importância para o processo civilizatório, e decorrente de milênios

de sedimentação cultural.

Principais Características:

1. Vínculo intersubjetivo (traduz um direito relativo = entre pessoas determinadas).

2. Vínculo pessoal (atinge a pessoa e não o bem);

3. Transitoriedade (existe como tensão ao se realizar, se exaure);

4. Dotado de pretensão (no sentido original do conceito);

5. A pretensão pode surgir após a titularidade e desaparecer antes;

6. Violabilidade;

7. Relativa Incoercibilidade do vínculo;

8. Tutelado através de ação condenatória;

9. Preenche todas as caracteristicaas do conceito analítico de direito subjetivo.

Ou seja, é dotado de:

. Titularidade;

. Exigibilidade (pretensão material);

. Impositividade (ação material).

Analisemos, uma por uma, destas características do vínculo obrigacional.

1. É um vínculo intersubjetivo, entre sujeitos determinados, onde se realiza, portanto, um

direito relativo.

O que podemos falar sobre o vínculo?

1. É um direito de crédito relativo

O que quer dizer relativo?

Polo passivo ou devedor ----------------------- polo ativo ou credor

O que significa afirmar que este vínculo é de direito relativo? Significa dizer que o

credor só tem a faculdade de exigir de outrem uma conduta somente em relação ao devedor.

Não pode cobrar, por exemplo, do irmão do devedor. Porque o seu poder é relativo ao

devedor. Em linguagem técnica quer dizer que o polo ativo e o polo passivo são

determinados.

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O que é determinar o polo de uma relação? Determinar para o Direito uma pessoa que

titulariza um dever ou um direito ?Como determina uma pessoa em direito? temos a teoria da

personaliade, o capítulo que fala sobre a individualização da pessoa. Determinar é

individualizar.

Como se individualiza? Nome, endereço, estado civil, filiação.

Quer dizer que as pessoas são individualizáveis e quando se projeta isto no processo se

individualiza as pessoas. Pode ser que o polo seja plural, que a titularidade seja plural. O que

significa isto? Que possua mais de um titular. Mas, todos os titulares têm que ser

determinados, isto é, individualizáveis. Se é dentro de um contrato faz-se a individualização

no contrato, se vai para o processo vai se individualizar no processo.

Técnicamente relativo quer dizer isto.

Em contraposição a um direito relativo que só se exerce em relação ao devedor nós

temos o

Direito absoluto – que se exerce contra todos. São oponíveis contra todos – ex. relação

dominial.

Muito da universalização do vínculo obrigacional se dá por isto. Nós, sempre tivemos

dificuldades em trabalhar com polos indeterminados. Quando nós vamos enfrentar uma teoria

do direito absoluto, em especial dominial, vamos ver que não sabemos resolver o problema.

Não tem solução.

Não é por nada que a reivindicação acaba se transformando numa ação condenatória.

Deveria ser uma executiva “lato senso”. Porque nós não sabemos nem como equacionar

teóricamente em função da indeterminação do polo passivo. O proprietário, na hipótese, é

deteminado. É um ou vários. Mas, digamos que seja um para facilitar. O polo passivo não é

determinado. E aí? Vai se ajuizar uma ação reivindicatóra contra todos? Não tem como. A não

ser que se faça uma citação ficta.

Então, a grande dificuldade do direito de propriedade é encontrar resposta para isto.

A pretensão do direito de propriedade só surge quando há violação. Então, o violador

passa a ser o polo passivo. Aí vem a contradição. Então, ele não é exercido “erga omnes”

porque é à pretensão que se exerce.

Estamos usando vínculo mas poderíamos usar relação jurídica porque o direito

subjetivo propriamente dito é o crédito. A relação jurídica propriamente dita é de crédito e

débito e a ação condenatória que se universalizou é a tutela a isto aí.

Isto se projetou para o Direito Penal? Sim.

O que se submete à prescrição é a pretensão

Há uma separação entre processo de conhecimento e execução. Ação condenatória e

execução.

No processo penal temos : pretensão punitiva do Estado, prescrição da pretensão

punitiva do Estado. A ação condenatória e execução.

Claro que não é idêntico mas, é o modelo, é a base.

2. Vínculo Pessoal

Trata-se de característica que facilita a projeção processual do vínculo, ou seja, a

tutela, conseqüentemente. Uma característica delicada.

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O que quer dizer isto? É uma relação onde se vincula a pessoa, e não o bem.

Ex. X tem a obrigação de dar 1 automóvel a Y. Qual é o objeto da obrigação de X? O

dar. Não é o automóvel. O objeto da obrigação é a prestação.

Crédito---------------------------------------------------------------Obrigação

Então, temos aqui um crédito que é uma pretensão creditícia e aqui temos uma

obrigação

O objeto desta obrigação é uma prestação: dar, fazer, não-fazer.(são espécies de

prestação)

Na verdade, prestar é tomar uma atitude. Só existe um tipo de atitude humana: o fazer.

Mas, por ficção jurídica nós criamos a omissão como uma atitude. O não-fazer não é bem uma

prestação, é uma anti-prestação. Mas nós a tratamos como uma prestação negativa.

Fazer e não-fazer são as 2 básicas. Dar é uma espécie de fazer. O que é o dar,

enquanto prestação? É fazer transmissão de domínio ou, em outras palavras, fazer tradição.

Ou então, é fazer negócio jurídico de eficácia real (os chamados negócios iuri reais). Para se

fazer transmissão do domínio de um bem da esfera dominial de alguem é necessário, antes de

mais nada, uma manifestação de vontade desta pessoa. E se não houver manifestação de

vontade não há como transmitir o bem, retirando-o da esfera dominial do seu titular.

Mas, como o juiz faz promove, nestes casos, a tutela específica, fazendo transmitir o

bem contra a vontade do seu titular? Desenvolvemos a idéia de que o juiz subroga-se na figura

do devedor, para manifestar a vontade como se fosse o próprio devedor e, assim, transmitir o

bem. Mas esse era um problema para o qual não tínhamos saída. Ou adotávamos a teoria

dualista da obrigação e forçávamos a barra de uma tutela específica ou então, ficávamos só

com a tutela substitutiva, que é a indenização pecuniária por descumprimento de obrigação,

ou seja, resolvendo-se tudo em perdas e danos.

3. Traduz-se numa pretensão, que é a faculdade de exigir de outrem uma conduta, contra uma

obrigação, cujo objeto é uma prestação.

PRETENSÃO X OBRIGAÇÃO

4. o vinculo obrigacional é transitório

Significa que o vínculo obrigacional nasce para morrer, em se realizando.

Cria-se uma obrigação para esse vínculo se exaurir quando ela for cumprida. Realizado

o crédito, o vínculo desaparece.

Enquanto o vínculo existir e não for cumprido ele é uma tensão entre o credor e o

devedor. Diferente, por exemplo, de um vínculo dominial que não é transitório posto que uma

situação de domínio tende ao infinito. Se não se fizer nenhum negócio colocando o bem no

meio. Se a coisa não depreciar. A propriedade tende ao infinito não é uma situção de tensão

mas, de harmonia.

Se criarmos um vínculo sem transitoriedade, bastante comum no caso dos contratos de

gaveta onde se cria um vínculo em que o credor não precisa mais fazer nada, até porque com

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aquilo ali, ele amarrou o bem. Deu um alcance real numa coisa negocial. Estes contratos são

lacunosos. Se forem judicializados, o juidiciário vai dizer: este contrato é lacunoso . Contrato

não se interpreta cláusul a cláusula. Se fizermos isto, o contrato não terá lacunas. Mas se

vemos o contrato como um negócio jurídico, é uma compra e venda, é uma sessão de

direitos(hipótese do contrato de gaveta), é um pacto complexo. Pode ser que esse pacto

conteste as lacunas para que dê uma idéia do todo e dele se extraia a possibilidade da lacuna.

Se analisarmoa cláusula a cláusula, temos um fragmento e não vamos ter idéia de lacuna

porque não teremos visto o todo. A quem cabe integrar o contrato? Ao juiz. Isto é o que se

chama: hermenêutica integradora do contrato.

Ler: Karl Laren “Metodologia da Ciência do Direito no capítulo “Hermenêutica

integradora do contrato”

Ora, se é verdade que o vinculo tem que ser transitório. Se a construção do contrato

não implica em transitoriedade no vínculo. Vai lá a magistratura, preenche a lacuna e aí o

sujeito é obrigado a transferir o bem para o nome dele.

5. Incoercibilidade

Por que incoercibilidade? Porque uma pretensão é uma faculdade de exigir de outrem

uma conduta. E fazer alguém fazer alguma coisa é impossível se a pessoa não quiser fazer.

Porque o reduto da vontade é o último reduto da liberdade humana. Liberdade é a

possibilidade de comportamento. Esta é a parte externa da liberdade. A liberdade aqui, no

plano de cumprimento das obrigações, é interior. E esta é incoercível. Se o sujeito não comete

o ato de vontade, não adianta.

O que fizeram os romanos? Percebendo que realmente era incoercível o vínculo. Era

um vínculo pessoal e incoercível determinaram: paga com o corpo. Resolveram o problema.

O débito que era o único centro da obrigação. A obrigação era débito e era pessoal.

Pagava-se com o corpo este débito. Mais tarde, se transformou esta coisa unívoca que era a

obrigação em uma coisa dual. Além do débito, a obrigação tem a garantia = responsabilidade.

O que fazem hoje os negociantes? Além da garantia natural que toda obrigação tem,

eles pegam mais a garantia do fiador = responsabilidade.

Então, hoje a obrigação não é apenas débito. Obrigação hoje é

OBRIGAÇÃO = DÉBITO + RESPONSABILIDADE

Repercussões disto:

Aqui nós entramos no que nós chamamos ato ilicito relativo.

O que vimos quando classificamos o fato jurídico?

Fato jurídico – se subdivide em lícitos - ato jurídico

- fato jurídico (estrito senso)

= - ato fato jurídico

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- ilícitos - ato ilícito absoluto

- ato ilícito relativo

O que é um ato ilícito relativo? Ou um ato ilícito absoluto?

Ato ilícito é ato de violação de direito subjetivo. Se o direito subjetivo violado é um

direito absoluto o ato ilícito é absoluto. Se o direito violado é relativo o ato ilícito é relativo.

Os direitos absolutos são exercidos contra todos então, qualquer um pode violar o

direito absoluto logo, qualquer um pode cometer o ato ilícito absoluto.

Os direitos relativos são exercidos apenas contra o devedor então, somente o devedor

pode violar o direito, cometer o ato ilícito relativo.

Então, o ato ilícito relativo é violação de direito relativo. Quais são os direitos relativos

que nós conhecemos? Só dois: direito de crédito e

- direito potestativo.

- ex: direito de divórcio é um direito potestativo. Só pode ser exercido em

relação ao cônjuge.

Tem um problema: o direito potestativo é relativo mas, os direitos relativos não

dependem de um ato de vontade do outro. Se alguém quer se divorciar não depende de

nenhuma atitude do outro. Logo, eles são invioláveis. Então, só surge para ser violado o

direito relativo a algum tipo de crédito. Como conclusão final: ato ilícito relativo é sinônimo

de inadimplemento.

Norma

----------------Negócio Jurídico------------------Prestação Creditícia

incide obrigação (prestação)

- inadimplemento

Acordo de Vontades

Inadimplemento é um fato jurídico novo. É um ato ilícito relativo.

Assim, temos 2 vínculos:

1.. Temos uma norma que incide sobre um acordo de vontades e mais algumas coisas, posto

que é um Fato Social e gera um negócio jurídico. Este é o fato jurídico. No plano da eficácia

temos o vinculo obrigacional que é eficácia jurídica. Temos lá uma pretensão negocial

creditícia contra uma obrigação cujo objeto é a prestação. Este é o plano eficacial. Isto se dá

num vínculo: devedor-credor.. Polo ativo – polo passivo. Ou seja, a relação jurídica é que é o

vínculo:

2. Mas, houve o não pagamento. O inadimplemento. Surgiu a pretensão e o sujeito resistiu ao

exercício da pretensão. Houve o inadimplemento que é a existência de um negócio jurídico +

surgimento da pretensão+ não-cumprimento (violação).).

isto é uma norma mas que tem um fato mas que tem uma norma que diz:

Negócio Jurídico + Surgimento da Pretensão + Inadimplemento - ocorre o Preceito

(consequência jurídica)

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Então:

Norma jurídica

Incide e transforma isto em

Ato Ilícito Relativo

e forma o

Fato Jurídico

do qual se irradia esta consequência que é a

pretensão indenizatória

responsabilidade civil contratual que é sinônimo de

obrigação indenizável

Aqui, começamos a perceber o que é este tema que todos falam e ninguem sabe

o que é:

TUTELA ESPECÍFICA

Existem vários tipos de tutela

1. tutela específica –quando se é o credor 1) pede-se a tutela a sua pretensão creditícia ou

então 2) pede-se a tutela substitutiva

2. tutela substitutiva – é a tutela decorrente da pretensão indenizatória decorrente do ato ilícito

relativo (ato ilícito relativo é o descumprimento da obrigação original).

A dificuldade da tutela específica é visível. Na última reforma do CPC

aumentaram-se os poderes dos juizes para garantir a tutela específica mas, a característica

principal do vínculo obrigacional é a sua dependência da vontade do devedor (prestar é

cometer um ato de vontade). Colocar poderes extraordinários no juiz, tal como permitir a ele

subrogar-se na figura do devedor para cometer o ato de vontade que este se nega a cometer,

por certo ajuda a tutela da obrigação de dar, mas isto apenas enquanto o bem objeto da

obrigação ainda estiver na esfera dominial do devedor: o juiz subroga-se na sua figura do

devedor para transmiter o domínio do bem objeto da prestação. Se ele já tiver vendido o bem

para terceiro de boa fé e transmitido o domínio do mesmo, o conflito judicializado só pode

resolver-se através da tutela substitutiva. Mas, em se tratando da obrigação de fazer - como a

de pintar um quadro, por exemplo - não adianta dar poderes de subrogação ao juiz, até mesmo

porque ele não saberá pintar o dito quadro. É um problema para o juiz, nesta e em quase todos

as outras hipóteses, ter que perseguir a tutela específica. Só lhe resta fazer atos de coação

externa, tal como as chamadas “astreintes”. Ou seja, vai multando o devedor para ver se

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consegue convencê-lo a cumprir a obrigação. Se não dar certo tal estratégia, vai-se para a

tutela substitutiva, que é a indenização por perdas e danos.

O código civil argentino adotou uma postura diferente, assumindo com maior

clareza a incoercibilidade do vínculo obrigacional. Se o devedor não quizer cumprir a

obrigação não há como obrigá-lo então, vai-se direito para a tutela substitutiva. Inclusive,

permite ao devedor evitar ter seu patrimônio submetido aleatóriamente a atos de constrição,

podendo antecipar-se e quitar a indenização se não quizer cumprir a obrigação original.

Antecipa-se e indeniza. O nosso sistema diz que se o credor não aceitar, o devedor não tem o

poder de antecipar a indenização. E isto porque nós ainda apostamos na tutela específica.

O professor acha que deve ser tentada a tutela específica , ela é mais justa. Mas,

se não houver resultado parte-se para a substitutiva. Mas, do ponto de vista técnico os

argentinos têm razão.

Obrigação é moral. Jurídica é a responsabilidade. Nós tentamos imprimir

juridicidade na obrigação com a tutela específica em alguns casos se consegue, noutros não.

ex: negócio jurídico – um acordo de vontades, sinalagmático entre X e o grupo Y para fazer

show de rock. X que é empresário pagou o combinado. O grupo Y tem uma obrigação de

fazer. Qual o crédito de X? qual a prestação creditícia? O show de rock. É obrigação do grupo

Y: fazer o show. No dia do show o grupo Y não comparece. Surgiu uma pretensão

indenizatória de X. Direito de indenização. O que faz um bom advogado? Pergunta se X

ainda quer o show de rock e pede Tutela específica, requer a pretensão creditícia o show de

rock. Mas, para o caso deles se negarem a fazer o show, pede alternativamente indenização.

Ou seja, vai fazer uma cumulação de ações com pedido alternativo: Eu quero tutela específica

mas, se não for possível quero tutela substutiva. Eu tenho que deduzir dois pedidos. São 2

pedidos alternativos. Deduz o primeiro pedido com sua pretensão e coloca a causa de pedir

que é o negóciio jurídico. Causa próxima e remota. Questão de fato e questão de direito.

Alternativamente, deduz o outro pedido e vem com sua causa, seu fato jurídico próprio. Não

se deve fazer a confusão comum de achar que é um cumprimento do crédito que X já fez em

pecúnia quando na verdade é indenização. Se esta pretensão é em dinheiro facilita. Mas,

tecnicamente é assim que se organiza. Na pretensão indenizatória X não quer apenas o

dinheiro que pagou para o grupo Y, ele fêz outras despesas para o show e que ser indenizado

por tudo. A pretensão indenizatória é bem maior do que fazer show de rock.

Esta é a teoria dualista do fato. Ela é dualista por isto. Teoria dualista das

obrigações é a que está no CCB.

O CCB adotou a teoria dualista das obrigações, ou seja, a obrigação se traduz em 2 momentos

fundamentais:

1. o débito

2 .a responsabilidade.

Só que vêem em fatos jurídicos distintos.

Este primeiro fato jurídico decorre no pedido

OBS: a causa de pedir da pretensão indenizatória decorre do ato ilícito

relativo. X quer o que pagou para o grupo Y+despesas+danos morais. A eficácia do ato ilícito

relativo é muito maior em regra que a do ato jurídico pelo valor.

Sempre que houver cumulação de pedidos há cumulação de ações. Cada pedido

é uma ação. É a regra do processo. Pedido é a pretensão de direito subjetivo deduzida em

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juízo, para que o Estado cometa a ação. É cumulação de ações materiais. É melhor ver pela

ótica de ação material.

Com isto podemos situar alguns pontos da Teoria Jurídica bastante importantes.

Analisar o vínculo obrigacional, um vínculo que é paradigmático. Deu para situar o ato

jurídico relativo. O problema da tutela específica e da tutela substitutiva.

Outros comentários sobre tutela específica:

Se é verdade que o vínculo obrigacional é um vínculo pessoal porque vincula a pessoa e não

vincula o bem ,não irradia do negócio jurídico nenhuma eficácia diminutiva da relação

dominial como de outros negócios, por exemplo, outros fatos jurídicos podem irradiar uma

diminuição, uma limitação do direito de propriedade, por exemplo, uma servidão de

passagem, limita o direito de propriedade. Agora, negócio jurídico não interfere no direito de

propriedade, posto que não vincula o bem, vincula a pessoa . Não tem eficácia real nenhuma.

Em tese. Porque é pessoal. Esta é a teoria.

No entanto, ao chegar no âmbito processual, quando o juiz se subroga, incorpora o devedor e

manifesta a vontade dele, a transmissão do domínio. Será que o Estado não está imprimindo

eficácia real, atingindo um bem no plano do jurisdicional quando em jurisdição de um vínculo

que não tem este alcance? Quer dizer, não está jurisdicionando para além dos limites do

vínculo? Resta esta questão. Para o professor está pois, se o vínculo é pessoal não pode o juiz,

em sede de jurisdição, botar a mão no bem.

O professor prefere fazer como os argentinos, não entregar o bem, não tem tutela específica.

Ninguém tira o bem dele só ele mesmo.

Pergunta: e no caso do compromisso de compra e venda. O que estaria vinculado não seria o

bem?

Resposta: têm certos negócios jurídicos que têm eficácia real. São os negócios jurídicos que

vinculam o bem, o bem fica amarrado. Ex: pagamento de condomínio. São os “propter rem”.

Neste caso vincula o bem, se não for não alcança. É pessoal.

8a. aula – 06.04.1999

A Teoria Geral do Direito que nós conhecemos é de origem privatista. Somente a reflexão

mais atual introduziu pensamento do direito público. Até porque durante muito tempo, nós

estudamos matéria como direito constitucional de uma forma extremamente irresponsável –

como Teoria Geral do Estado – mas, Direito Constitucional propriamente não.

É natural isto. O berço do pensamento jurídico moderno é o direito privado. A primeira

grande codificação nos moldes em que compreendemos os códigos modernamente, isto é, um

sistema normativo, coisa que não existia nem na antigüidade, nem na Idade Média, foi um

diploma de Direito Civil.

O código mais sofisticado, a legislação mais sofisticada que o pensamento moderno elaborou

e aonde bebeu com mais intensidade nas fontes do direito romano é o Código Civil.

É natural, portanto, que uma Teoria Geral do Direito tenha nascido na modernidade por este

viés privatista.

Mas, além da Teoria Geral encontrar o seu berço no Direito Privado, dentro do Direito

Privado foi adotada uma estrutura como estrutura paradigmática, como estrutura modelar

deste pensamento. Qual é a estrutura? O vínculo obrigacional. E a partir deste modelo de

vínculo obrigacional se construíu também, modernamente, um Direito Punitivo. O Direito

Penal está construído á luz das categorias mais fundamentais do vínculo obrigacional:

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92

pretensão, prescrição, a ação condenatória, separação entre condenação e execução. O modelo

está ali no vínculo obrigacional. Este dado é importante e com ele deve-se ter cuidado.

As próprias categorias do Direito Processual e Teoria Geral do Processo foram construídas

para tutelar direito de crédito do vínculo obrigacional: pretensão creditícia, obrigação. Os

chamados direito a uma prestação, direitos de prestação.

Direito é uma conduta. O direito creditício é direito a uma conduta. Tem-se direito a um dar,

fazer ou não-fazer. Se X compra um automóvel, ele não tem direito ao automóvel. Ele tem

direito a um dar. A uma conduta. Esta é a natureza do vínculo obrigacional e ele é muito sutiu,

muito rico. E por ser um direito a conduta e conduta ser um elemento que depende de um

elemento anímico: a vontade, há uma certa incoercibilidade íncita ao vínculo obrigacional e

isto se justifica então porque nós separamos na tutela a condenação da execução.

A tutela do vínculo obrigacional, que são direitos de prestação é por natureza a ação

condenatória . Esta, nasce do vínculo obrigacional. Se hoje ela ganha outros terrenos não há

como se negar que a origem, a estrutura dela se justifica com mais coerência quando se trata

de tutelar um direito de prestação. Um direito a uma conduta. E justo por ser uma conduta,

separa a ação condenatória da execução.

E é tão ideológica, a nossa cabeça está tão preparada para pensar toda a estrutura como

vínculo obrigacional que nós para classificar as ações, nós separamos em processo de

conhecimento e em processo de execução. E o processo de conhecimento em ação

declaratória, condenatória e constitutiva. Separar conhecimento de execução é bobagem ela é

típica do vínculo obrigacional (direito de prestação) e de mais nenhum outro.

Esta é a estrutura de todo o pensamento jurídico moderno. É o que há por trás do nosso

pensamento que às vezes temos uma certa dificuldade de olhar.

Por que isto aqui? Qual a atividade que um juiz tem numa ação condenatória? Quando o

titular entra com uma petição inicial o que ocorre? Que atividade o juiz começa a tecer aqui?

Começa a tecer a atividade cognitiva. Aí vem a contestação, ele vai conhecer os argumentos

de parte a parte(atividade cognitiva), a instrução do processo e as provas. Até aqui o juiz

conheceu o Direito, atividade cognitiva. Finda a instrução o que o juiz faz numa ação

condenatória? Ele declara o direito que tem que declarar e condena – atividade declaratória,

atividade condenatória (sentença). Depois se quizer executar é um outro processo.

O que é uma sentença condenatória? Ela tem um conteúdo material. Aquilo que o sujeito que

ganhou titularuza, isto é, o seu título passa a ter exigibilidade. Ora, o juiz transforma a

pretensão creditícia num título executivo. O que nós inventamos em direito comercial? Os

títulos de crédito. O que são títulos de crédito? São os títulos que já nascem executivos. Aí

não se precisa ajuizar toda uma ação condenatória parte-se direto para a execução.

Isto é crédito e débito que não são valor em pecúnia. Tem-se crédito contra uma obrigação de

fazer. X naquele exemplo, tinha crédito de que o grupo Y realizasse um show de rock. Tem-se

um crédito de um quadro a ser pintado, crédito de não construir padaria da Quadra X,(um

crédito de não-fazer). Isto é crédito. pretensão creditícia não é dinheiro. Crédito pecuniário é

uma espécie de crédito. É o sentido vulgar da palavra . Crédito aqui é direito subjetivo de

crédito. É direito creditício, direito obrigacional, é direito dotado de uma pretensão que é uma

faculdade de exigir uma conduta: um dar, fazer ou não-fazer.

Esses vínculos de crédito e débito, esses direitos obrigacionais, esses direitos a uma prestação

se tutelam pela ação condenatória. É daí que nasce a ação condenatória. Nasce da

“contenatio” romana que é uma “actio”. A palavra ação também nasce aí porque, nos direitos

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dominiais falava-se em “vindicatio” não se falava em “actio”. A “actio” era para as

obrigações, a “vindicatio” para os direitos de senhorio.

E nós vimos que nosso conceito analítico de direito subjetivo este é justamente o direito de

crédito que é dotado de uma titularidade, de uma pretensão e de uma ação material.

Direito Subjetivo é dotado de uma titularidade

- de uma pretensão

- de uma ação material

tem esses 3 elementos.

Essa pretensão é uma faculdade de exigir uma conduta, Se o sujeito exige e o outro resiste há

uma violação e aí surge uma ação material.

Vimos que não basta ter pretensão para ter tutela estatal. Porque se deduzirmos um direito

com pretensão não violado ainda, isto é, sem ação material, vamos ter uma resposta

jurisdicional nos termos seguintes: julgo carecedor de ação. Porque embora tenha pretensão o

que falta? O modelo processual é um modelo que só serve para esse vínculo .O que falta aí? É

preciso que se tenha uma pretensão para se ajuizar uma ação mas, é preciso que haja uma lide.

O que é lide? Conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida, violada. Se tem

lide, tem ação.

Se x tem uma pretensão resistida por y. x não vai mover uma ação material contra y através

de uma ação processual contra o Estado. X move uma ação contra o Estado pedindo tutela da

sua ação contra o devedor. Pede a condenação dele, para dar executividade ao título para x

poder executar y. Se não achar conveniente não o faz. De qualquer forma tem ação desde o

começo. Se quizer ajuíza uma ação condenatória.

Lide é um conceito processual mas, só se presta ao crédito, não há outra espécie de lide.

Não há que se falar em lide no direito potestativo. Não há que se falar em lide numa ação

pauliana ou numa ação “quanti minoris” aonde entra-se com uma ação para desconstituir o

contrato de compra e venda. Há uma guerra de interesses ali, há um litígio no sentido vulgar

da palavra. Mas, não é lide no sentido técnico. Qual é o sentido técnico que nós temos da lide?

Conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida.

Agora vamos ver porque essas ações embora sejam aguerridas as posições das partes não é

uma ação litigiosa. Não tem como ser, é incoerente porque esta estrutura conceitual do

processo foi montada como toda teoria jurídica para resolver o problemas das relações de

débito-crédito: o conceito de direito subjetivo se presta para direito de crédito, os conceitos

processuais de pedido e lide só se prestam para o direito de crédito. São conceitos

fundamentais do processo.

Pedido é pretensão deduzida em juízo. Existe um direito sem pretensão o qual pedimos ao

juiz, portanto não sabemos o que se pede porque se pedido é pretensão deduzida em juízo este

conceito não serve para nada quando se trata de um outro tipo de direito que não seja crédito.

Com isso conseguimos compreender a estrutura do direito do vínculo obrigacional, o grau de

influência que ele tem no pensamento jurídico, o seu caráter modelar, paradigmático.

Vamos para o Direito Penal e está lá – ação penal é uma pretensão que se deduz em juízo.

Chama-se pretensão punitiva, “jus puniendi”, tem uma ação condenatória e mais execução

posterior embora seja omesmo processo. O modelo está aí. Foi retirado do vínculo

obrigacional.

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Mais ainda, estes direitos, os direitos subjetivos de crédito são os que se submetem à

prescrição. Prescrição da pretensão punitiva porque nós vamos ver que o que prescreve é a

pretensão de crédito e não a ação.

Outras formas de direito subjetivo:

Também é um clássico direito subjetivo embora não chamado direito subjetivo. Por isto

vamos chamá-lo de

VÍNCULO POTESTATIVO

Eis uma primeira questão: o direito potestativo – também conhecido

por direito formativo - é um direito subjetivo? Esta questão surge por imprecisões

doutrinárias. Mais uma vez, decorrendo do fenômeno da universalização das categorias do

direito obrigacional e da correspondente ação condenatória. Deste modo, a doutrina

tradicional usou chamar o direito obrigacional como direito subjetivo propriamente dito.

Isto como se os demais direitos titularizados por sujeitos, não fossem também subjetivos.

Porque não o seriam se 1º) são direitos e 2º) são titularizados por sujeitos, logo, são

subjetivos.

O que é direito subjetivo? A nossa ideologia jurídica moderna está

centrada em torno de uma visão privatista. Dentro do direito privado qual é o modelo?

Vínculo obrigacional. O que é direito subjetivo? É direito de crédito. O resto não é direito

subjetivo? Quer dizer que direito de propriedade não é direito subjetivo? Para este modelo

tradicional, não é. Quer dizer que direito potestativo não e direito subjetivo? Para o modelo

tradicional, também não é. Pelo menos não o são se ditos de uma forma apropriada, segundo

esta doutrina. Então seriam direitos subjetivos, mas não propriamente ditos. Convenhamos, é

muita incoerência, muita imprecisão metodológica a esconder inviéses de caráter

arraigadamente ideológico.

Então o que é direito subjetivo? Crédito, e acabou. É isto que está na nossa

cabeça. Será que direito potestativo não é um direito que alguém titulariza? Chamamos de

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direito potestativo então é um direito. Por que não é um direito subjetivo? Não tem um sujeito

que o titulariza? Então, por que não é um direito subjetivo? Ele não eficácia de um fato

jurídico? É. O direito subjetivo não é uma categoria eficacial, ou seja, eficácia do fato

jurídico? É. Ele não ocorrer em uma relação de direito e dever, ou seja, em uma relação

jurídica? Vai. Mas, a expressão relação jurídica, como vimos, é usada apenas para as

relações obrigacionais, ou seja, relações de crédito e débito. Há um caráter evidentemente

ideológico nesta construção. Vamos além, abordando as incongruências decorrentes da

universalização inconsequente das categorias e conceitos especificamente obrigacionais.

O que se deduz em juízo numa ação pauliana? O pedido? Qual a natureza da

ação? É condenatória? Você pede para condenar o sujeito a devolver o dinheiro na compra e

venda desfeita? Que pretensão é esta? Você tem a faculdade de exigir de outrem a devolução

do dinheiro? O que é uma ação pauliana? Qual a natureza dela? Tem pedido? Tem lide?

Aonde está a lide da ação pauliana?

Ex: x vai a uma loja. Compra um aparelho de som vai para casa e vê que o aparelho de som

está com defeito. Volta à loja e o vendedor quer lhe dar outro de outra marca. X quer daquela

marca. O vendedor diz que não outro. X diz que quer o seu dinheiro de volta. A loja não

devolve. X entra com uma ação pauliana, para desconstituir a compra e venda. Prescreve em 2

meses.

Há uma lide? Há um pedido? Qual a lide? Qual o pedido? X entra com uma ação pauliana em

virtude desse vício redibitório. Qual a lide que há entre ele e a loja? O que é lide? Conflito de

interesse qualificado por uma pretensão resistida. O que é pretensão? Faculdade de exigir de

outrem uma conduta. X tem a faculdade de exigir de outrem uma conduta anulatória da

compra e venda? Eu dependo de uma conduta para anular a compra e venda? Não. Então, não

há que falar em pretensão. Se não há que se falar em pretensão, não há que se falar em lide.

Aí está demonstrado mais uma vez que toda a teoria geral do processo está construída

em cima do vínculo obrigacional

Direito relativo – é o que se exerce relativamente a uma pessoa.

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Direito potestativo- Não há lide, ele já nasce com a ação. Não hão pretensão porque não há

lide. Não há pretensão porque não há contestação, porque ele é inviolável e o litígio só nasce

com a violação do direito.

Quem disse que a ação só surge com a violação? Uma concepção que quer tornar universais

categorias exclusivas do vínculo obrigacional.

Este é o típico direito que nasce com a ação material. A ação que está vinculada à violação é

exclusivamente a ação creditícia. A ação material de direito de crédito. O problema é que se

tenta pegar o modelinho do direito de crédito e torná-lo universal.

Este direito nasce com a ação. O que quer dizer isto? No momento em que é titularizado

automaticamente pode-se deduzi-lo em juízo que o juiz não vai dizer: carecedor de ação.

Conceito de direito potestativo

É o poder que a ordem jurídica confere ao seu titular de constituir, modificar ou desconstituir

relação jurídica subjacente.

Isto significa que para se ser titular de um direito potestativo pressupõe uma relação jurídica

subjacente.

Ex: para X ser titular do direito de divórcio pressupõe uma relação jurídica matrimonial. Para

X ser titular do direito de anulação de um contrato de compra e venda, numa ação pauliana,

pressupõe o contrato de compra e venda. Para X ser titular de um direito de opção por uma

forma de pagamento dentro de um contrato com direito potestativo depende da existência do

contrato. Pressupõe relação jurídica subjacente. Além disso, se alguém não compreender o

que é um direito potestativo deve esquecer o processo porque jamais vai compreender o que é

uma ação constitutiva.

Alguns direitos potestativos só se realizam pela via da ação processual outros pode-se realizar

diretamente, espontâneamente, se quizer, se chegar a um acordo com a outra parte. Porque o

poder potestativo é de desconstituir, depois, para cobrar é uma outra questão. Não se pode

misturar as coisas. É preciso ter precisão metodológica.

A ação pauliana desconstitue mas não resolve o problema judicial de quem a propôs. Resolve

apenas uma parte dele a de desconstituir o negócio, talvez tenha que entrar com uma ação

condenatória. Talvez possa entrar com um pedido cumulativo: primeiro deduz um direito

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potestativo de desconstituir e depois uma pretensão creditícia de condenar. Pode dentro de um

processo haver uma ação litigiosa e outra não. A potestativa, a constitutiva nunca vai ser

litigiosa. Não há litígio no sentido de conflito de interesses qualificado por uma pretensão

resistida numa ação aonde se deduz um direito potestativo porque ele é inviolável e litígio é

onde há violação do direito.

Ação constitutiva

Quando se deduz em juizo um direito potestativo, um poder de desconstituir, constituir ou

modificar uma relação jurídica.

Se X tem o poder de constituir uma ação como o Estado vai realizar este direito? ele vai

constituir por X. A atividade do juiz é constitutiva. Se X tem o poder de desconstituir, o

Estado vai exercer isto por uma ação constitutiva negativa. Vai exercer esta ação por X. Vai

desconstituir.

Isto significa que se alguém não entedeu o vínculo crédito-débito e o direito potestativo

jamais vai compreender com clareza que são ação condenatória e constitutiva. E mais ainda,

jamais vai compreender o que são prescrição e decadência porque os sistemas estão

intimamente ligados.

Ação “quanti minoris”

É uma ação constitutiva modificativa.

Tem-se o vício redibitório mas não quer desconstituir o negócio. Quer abater o preço. Então,

vai modificar a relação juridica subjacente.

Então, X entrou com uma ação “quanti minoris. O juiz vai ouvir a contestação. Vai abrir

instrução. Qual a atividade até o final da instrução? Até aqui do juiz desenvolveu atividade

cognitiva. Para terminar de realizar o direito ele precisa fazer que atividade?. É um poder

modificar um contrato de compra e venda. Vai fazer isto porque X está proibido de fazer por

si mesmo o que é autotutela. O juz vai modificar a relação jurídica subjacente. É uma ação

constitutiva modificativa. Esta ação do direito potestativo acabou. A não ser que ele tenha

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cumulado no processo outras ações. Cumulação de pedidos é cumulação de ações. Cada

pedido – uma ação.

Na ação condenatória o juiz condena alguém a dar, fazer ou não-fazer. Aqui não condena, ele

simplesmente desconstitui , constitui ou modifica a relação jurídica a relação jurídica. O

poder é unilateral.

Por isto o direito potestativo é diferente de uma tensão que é o direito obrigacional, que é uma

tensão entre credor e devedor. A tensão acaba quando o direito se realiza. Ele é transitório.

O direito potestativo é como uma arma, pode-se usá-la ou não.

A ordem jurídica conferiu a X um poder dele constituir, modificar ou extinguir relação

jurídica subjacente. Nem todo direito potestativo se submete a prazo mas,se ela, a ordem

jurídica, deu prazo passou este prazo ela tira este poder de X. E o poder é tirado com tudo:

titularidade e ação. Porque não há direito potestativo com titularidade e sem ação porque a

titularidade nasce com a ação. Estão coladas uma à outra. Titularizar um direito potestativo é

ter uma ação constitutiva. Se titularizou tem uma ação constitutiva e esta ação é material. Aí o

indivíduo move uma ação processual contra o Estado porque ele não pode desconstituir

pessoalmente, para que ele cometa a ação material que é a constituição e desconstituição

dentro do processo. São 2 ações: ação processual contra o Estado e ação material contra a

outra parte.

Deu para compreender o que é uma ação condenatória e uma ação constitutiva à luz de uma

teoria geral do direito.

PRINCÍPIO DA CONVALIDAÇÃO DO FÁTICO

Trata-se de um dos principais desdobramentos do saber prático jurídico.

Sem compreendê-lo, não há como situar adequadamente o tema prescrição e decadência.

Prescrição e decadência são temas decorrentes da essência prática da sabedoria jurídica. Isto

é, decorrem de um tema que está no núcleo da sabedoria jurídica, sendo Direito é um saber

prático. O que diz o princípio da convalidação do fático? Este princípio jurídico básico, que

está localizado modernamente no âmbito da teoria do ordenamento jurídico, e poucos juristas

lhe dedicam a atenção que merece, dado a sua importância para o ato de aplicação do direito.

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O direito, moderamente, é pensado como um todo, uma unidade, um

sistema de normas que chamamos ordenamento jurídico. A razão moderna, de índole

epistêmica, criou o conceito de ordenamento jurídico, através do qual pensamos o direito

como um todo complexo e coerente, de modo a formar uma unidade complexa, ou seja, uma

totalidade. Ora, para se ter uma totalidade, não basta se ter um somatório, um agregado de

partes desconexas. O todo do ordenamento jurídico não é um mero agregado desconexo de

normas jurídicas. Algo no ordenamento jurídico deve emprestar-lhe uma “fundamentação

unitária”, um fundamento para que o pensamos como um totalidade complexa, que é uma

unidade complexa: o ordenamento jurídico. Ou fundamento que empreste sentido unitário

para este todo, que nos permita pensá-lo, em sua complexidade, como uma unidade. O que

empresta unidade para o ordenamento jurídico é o fato dele existir para produzir a ordem

social. Trata-se de um fundamento unitário de natureza teleológica, ou seja, vamos buscar o

fundamento da unidade do todo em sua findalidade. Este é o sentido unitário que nos faz

persarmos este todo, que é o ordenamento jurídico, como “um”, como unidade: o

ordenamento jurídico.

Ora, o sentido unitário do todo se reflexe em cada uma da suas

unidades. Ou seja: se o ordemento jurídico é um todo voltado para a produação de ordem

social, cada norma que o compõe possui a mesma finalidade do todo: dever produzir, ao

incidir e regular fatos da vida, ordem social. Então, o sentido de cada uma das partes que

compõe o todo, ou seja, cada uma das normas jurídicas, é produzir ordem social. Isto porque o

sentido do todo que é dado por esta fundamentação unitária, pelo que tal sentido está em cada

uma das unidades que o compõe. Assim, cada norma jurídica serve para produzir ordem

social. Isto empresta sentido ao ato de aplicação do direito. Ou seja, fora da idéia de produzir

ordem social, a norma jurídica e o ato de sua aplicação não encontram sentido.

O direito, enquanto sabedoria prática, através da imensa experiência

civilizatória que acumula, mostrou ao homem que, se permitirmos que uma situação contrária

à norma permaneça no tempo, sem que se aplique tal norma, devemos ao final convalidar tal

situação, imprimindo-lhe validade jurídica. Isto porque, apesar de contrária ao direito, o fato

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de tal situação Ter perdurado sem a devida aplicação da norma, faz com que o ato de

aplicação desta norma implique mais em produção de desordem do que propriemente ordem

social, que é a sua principal finalidade.

Por óbvio, se deixarmos transcorrer um lapso temporário muito grande

sem aplicarmos a norma, cuja função é produzir ordem social, a uma situação que lhe é

contrária, é mais sábio convalidá-la do que aplicar a norma depois de tanta desídia. Se nós

formos aplicar a norma, lá adiante no tempo, ao invés de produzimos ordem social nós vamos

estar produzindo desordem social, ou seja, justo o contrário do objetivo da norma, e daquilo

que empresta fundamentação unitária à ordem jurídica.

Assim, o saber jurídico moldou o princípio da convalidação do fático

que diz: a situação contrária ao direito deve ser extirpada através da imediata aplicação da

norma. Se tal contrariedade ao direito permanecer no tempo sem a devida aplicação do direito,

então deve ser convalidada, porque aplicar a norma nestes casos vai causar mais desordem do

que ordem. Ou seja, vai produzir um efeito contrário ao sentido de existência e de unidade da

ordem jurídica, o que seria um contra-senso para um saber prático.

Bem observado, todo o ordenamento jurídico é perpassado por este

importante princípio. Todos os ramos do direito tem regras de convalidação de situações

fáticas a ele contrárias. No vínculo obrigacional, por exemplo, uma situação de não aplicação

da norma que realiza o direito de crédito – a tensão em que se traduz o vínculo obrigacional

caracteriza-se por ser transitória, não devendo tender ad infinitum – submete-se ao instituto da

prescrição. A prescrição fulmina o crédito como poder de cobrar uma prestação. Ou seja,

fulmina-o naquilo em que ele é fundentalmente uma exigibilidade, um poder de exigir de

outrem uma prestação.

Os direitos potestativos também nutrem uma certa convaliação da

situação de desuso do poder em que ele se traduz. Se o titular do direito potestativo não

exerce-o dentre de um prazo, perde o próprio direito de constituir, modificar ou desconstituir a

relação jurídica subjascente que lhe diz respeito.

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Os direitos dominias, em regra, sofre pela convalidação de situações de

fato contrárias a eles o que chamamos de usucapião. Se alghém titulariza uma propriedade e

não cuida dela, submete-se ao controle fático do usucapião.

Já os direitos pernsonalíssimos, dada a sua natureza, não se subemetem

a este tipo de lógica convalidativa. Diz-se, impropriamente, que eles são imprescritíveis. Em

direito penal fala-se em prescrição da pretensão punitiva, ou da pretensão executória; em

decadência do direito de queixa, sob inspiração e modelo do direito privado. Em direito

processual, fala-se em preclusão e perempção, em coisa julgada, que é a mais potente

preclusão processual.

Ora, prescrição, decadência, usucapião, coisa julgada, preclusão,

perempção, etc., são institutos que projetam o princípio da convalidação do fato nos mais

variados ramos do direito, nas suas mais variadas manifestações normativas. Já daí percebe-se

a imensa importância de tal princípio.

Vejamos mais de perto os institutos da prescrição e da decadência,

utilizando-se do nosso modelo conceitual.

PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA

A prescrição

O que diz a doutrina tradicional sobre este tema? A prescrição atinge a

ação; a decadência, o direito. Dizemos isto e pensamos: “Ora, a ação a que nos referimos, por

certo, é ação processual; já o direito, não se discute, é direito subjetivo material. É assim que

equacionamos, sem maiores questionamentos, este importante tema. Vejamos as

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incongruências e contradição que incorremos, em virtude deste acatamento irrefletido da

teoria mais comum sobre o tema.

Em primeiro lugar, ao sustentarmos que prescrição atinge a ação, vamos

ter que resolver se esta ação é material ou processual. Se sustentamos que esta ação é

processual, para não sermos incoerentes, temos que questionar porque este tema, sendo de

direito processual, é objeto de regulação pelos diplomas de direito material? Chegaremos a

conclusão, sob este ângulo específico, que a exigência de coerência nos mandará defender a

retirada da prescriçãoa dos diplomas de direito material e a insersão do tema na legislação

processual.

Se assim fosse, a prescrição não tem que estar regulada no CCB, mas sim no CPC. Se é a ação processual que

prescreve, o que está fazendo prescrição desta ação processual no CCB? Não temos que estudá-la em Teoria

Geral do Direito Privado; temos que estudá-la em Teoria Geral do Processo. Vamos ter que fazer uma

modificação tão radical em toda a estrutura do pensamento jurídico, que se torna mais fácil sustentan que a ação

que prescreve não é a processual: é a ação material.

É melhor sustentar como originariamente que prescrição é um instituto

de direito material; logo, ela atinge a ação material. Por óbvio, quando se usou pela primeira

vez a expressão “prescrição atinge a ação”, usou-se no mesmo sentido do art.75 do CCB,

regra segundo a qual “a todo direito corresponde uma ação”. Ora, corresponde, a cada

direito, uma específica ação material. Já a ação processual não é dotada de conteúdo

material, é apenas exigência de tutela contra um estado que monopolizou a tutela jurídica.

Então, dizer que prescrição atinge a ação material é mais sustentável do que afirmar-se que tal

ação é a processual.

Mas, ainda assim, vamos incorrer em contradição. O fato é que, ao

adotarmos as dívidas portáveis como modelo de nosso racioncínio, confundimos com

excessiva facilidade o dia do vencimento, que é o dia do surgimento da pretensão, com o dia

da violação do direito, quando surge a ação material, porque este dia é o mesmo. Em outras

palavras, nas dívidas portáveis, se o devedor não se dirigir ao domicílio do credor no dia do

vencimento, e cumprir a obrigação, automaticamente ele estará violoando do direito do

credor, surgindo daí a ação material.

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103

É do uso incauto das dívidas portáveis como modelo paradigmático do

raciocínio jurídico que resultou a confusão sobre o verdadeiro objeto da prescrição: a

pretensão, e não a ação material. Para desfazermos esta confusão, basta operarmos o mesmo

raciocínio com o modelo das dívidas quesíveis, onde o exercício da pretensão depende de um

ato positivo do credor, consistente em dirigir-se, no dia do vencimento ou após este dia, ao

domicílio devedor e exigir o cumprimento da obrigação. Assim, em tais dívidas, surgindo a

pretensão com o vencimento, se o credor não exercer a sua pretensão neste dia, não haverá

violação do seu direito e, logo, não surgirá a ação material. No entanto, o prazo prescricional

já estará correndo. Isto pode levar-nos a hipótese em que transcorreu todo o prazo

prescricional e o credor não exerceu a sua pretensão, não sendo portanto violado o seu direito,

não surgindo um conflito de interesses qualificado por uma pretensão exercida e resistida, ou

seja uma lida: a uma só palavra, ocorre a prescrição antes de surgir a ação. Logo, o que

prescreve não é a ação, mas sim a pretensão, a exigibilidade do direito.

Vejamos: as dívidas portáveis que são as mais comuns do comércio,embora a regra contida no artigo 950 do

CCB afirme o contrário. Tratam-se, nas relações de crédito e débito, daquelas em que o devedor porta o valor do

débito até o domicílio do credor, operando o pagamento no dia do vencimento. Em outras palavras, o local do

pagamento do pagamento é o domicílio do credor. Se o devedor não for no dia do vencimento ao domicílio do

credor e pagar, automaticamente está violando o crédito daquele. Então, o dia do vencimento e o da violação é

o mesmo, confundindo-se um com o outro. Por este singelo motivo, surge a ação no mesmo dia do surgimento

da pretensão, pelo que confundiu-se o instituto da prescrição, afirmando-se que o mesmo atinge a ação

(material). Ora, se pegarmos uma dívida quesível, vamos ver que esta conclusão é improcedente. Sendo a dívida

quesível aquela em que o credor deve dirigir-se até o domicílio do devedor e exigir o pagamento no dia do

vencimento, quando surge a sua pretensão, se ele assim não se conduzir, não exigindo o pagamento no dia do

vencimento, não exercendo a sua pretensão material, ao final do dia do pagamento têm-se a seguinte situação:

surgiu para o credor uma pretensõa, mas pelo fato dele não a Ter exercido, seu direito não foi violado, não surgiu

uma lide, nem portanto seu direito ficou dotado de uma ação material. No entanto iniciou-se a contagem do

prazo prescricional. Ademais, se ele entrar com uma ação condenatória contra o devedor, ajuizando o seu

crédito, o juiz vai declará-lo carecedor de ação. Ele ainda não tem ação. Tem pretensão, mas isto não se

confunde com a ação. Mantida esta situação, transcurso o prazo prescricional o credor perde a pretensão

material, pelo que torna-se impotente o seu direito para um cobrança via judicial, pois não haverá mais lide, nem

ação material decorrente da violação da pretensão: esta já não mais existe, fulminada que foi pelo instituto da

prescrição.

Como nas dívidas portáveis surge a pretensão e a ação no mesmo dia,

qual seja, o do vencimento, se confundiu deste modo o objeto da prescrição. Só que nas

dívidas quesíveis nem sempre no dia do vencimento surge a ação. Ora, nos dois tipos de

dívida a pretensão surge sempre no dia do vencimento – o direito passa a ser exigível. No

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104

entanto, não necessariamente o direito será violado neste mesmo dia, fazendo surgir a

impostividade, a ação material. Quando prescreve a pretensão creditício, isto significa que o

direito teve titularidade e pretensão, mas nunca teve ação. Perdeu a pretensão ficou só com a

titularidade. A titularidade permanece mas, ele não pode exigir odireito porque ele não tem

exigibilidade. Se o credor não tem a pretensão, não pode haver violação do direito.Violação é

resistência ao exercício da pretensão, logo não vai ter também a ação, que decorre justo da

violação.

Agora nos parece que ficou clara a estrutura do instituto. Os direitos nas dívidas

quesíves que não foram violados mas que já venceram há 20 anos prescrevem. Se eles não foram violados não

surgiu ação. Claro, pois o que prescreve é a pretensão. Não tendo pretensão, não se pode exercer o que não se

tem. Não vai surgir nunca a lide que é conflito de interesses qualificado por uma pretensão(que não existe mais)

resistida. Não havendo lide não surge ação. Se deduzirmos em juízo haverá uma sentença fulminante: carecedor

de ação porque não se tem pretensão.

Se pegarmos a legislação, veremos que o CCB faz a maior confusão

com o tema. A prescrição atinge só a pretensão creditícia. Atinge todos os créditos

indistintamente, dentro de alguns critérios. Então, tem o institute tem que estar localizado no

diploma de direito material, em sua parte geral. Se tem que haver regras gerais, ela tem que

estar prevista na Parte Geral do Diploma Legal.

A decadência

A decadência, por sua vez, atinge somente alguns dos direitos

potestativos, e não todos indistintamente. Por exemplo, direito potestativo de divórcio não se

submete a prazo decadencial. Então, vamos ter que tratar o instituto, na legislação, direito a

direito, pelo que ele virá espraiado na Parte Especial do Código.

Os 2 institutos têm repercussões diferentes:

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105

O direito prescrito continua no patrimônio do sujeito. Pode ser alienado, doado, ser exercido

contra o devedor na esfera privada se ele paga, se ele contrai uma nova dívida, pode ser

compensado em dívidas do credor para com o devedor.;

Os Direitos Potestativos decaem, pelo que a decadência fulmina o direito potestativo como um

todo, fazendo-o desaparecer completamente. O direito potestativo que tem um prazo para ser

exercido só pode ser exercido no prazo previsto em lei. Como nestes direitos, a titularidade

nasce com a ação, quando se titulariza um direito potestativo na verdade se está titularizando

uma ação constitutiva positiva, negativa ou modificativa. Não existe direito potestativo com

data de vencimento. Se o sujeito titulariza, ele tem o poder. Pode usar ou não. Pode deixar de

exercer o direito potestativo, de acordo com sua vontade. Mas, se ele for exercido, a outra

parte nada pode alegar como defesa, exceto decadência ou inexistência do direito.

Resumindo: o direito potestativo submete-se à decadência; o direito

obrigacional, por sua vez, tem a sua exigibilidade, a sua pretensão, submetida à prazos

prescricionais. Vejamos as incongruências do legislador civil.

Diz o Art. 177 do CCB: “As ações processuais prescrevem....”. Veja-se

a falha do legislador ao indicar que a prescrição atige a ação. Daí vem o erro. Técnicamente

correto seria afirmar-se que “as pretensões de direito material prescrevem...” . É como se diz,

hoje, com maior precisão, na legislação mais atual. Veja-se, para tanto, como o instituto está

organizado no Código do Consumidor. De qualquer forma, por certo a ação aqui afirmada é a

ação material, e não a processual. Afinal, trata-se de regra do CCB, e não do CPC.

Capítulo III – DAS CAUSAS QUE INTERROMPEM A PRESCRIÇÃO – se o legislador

colocou tudo sob o pálio da prescrição, isto significa que o que diz respeito a decadência - e

que ele colocou sob manto da prescrição – submete-se a esta regra? Por óbvio, não. Pelo que,

percebe-se que a distinção dos institutos tem um sentido prático imediato, não se traduzindo

em mera discussão acadêmica. Destarte, o operador jurídico tem que saber diferenciar entre o

que é prazo prescricional e o que é decadencial, ainda que a lei regule todes os prazos sob o

títilo de prescriçaão. Vejamos alguns exemplos do artigo 178 do CC.

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Art. 178 . Prescreve:

1o. em 10 dias....a ação do marido para anular o matrimônio contraído com mulher já

deflorada. A ação é para anular o casamento. Isto é faculdade de exigir da mulher uma

conduta? Não. É um poder de desconstituir ao qual ela se sujeita. É um poder. Um direito

potestativo. Decadência. Não se submete às regras do 178.

IIi. a ação para haver abatimento do preço da coisa móvel, rescebida com vício redibitório,

ou para rescindir o contrato e reaver o preço pago, mais perdas e danos - é um direito

potestativo modificativo. Ação constitutiva. Prazo decadencial. Aqui estão a ação pauliana e a

quanti minoris (a primeira para rescindir o contrato e a Segunda para modificar o preço);

III. ação para contestar a legitimidade do filho de sua mulher - é decadência. Ação

constitutiva.

IV.ação para anular o casamento de incapaz – constitutiva / Decadência.

V – ação dos hospedeiros.......pelo preço da hospedagem... é ação condenatória, sendo o

prazo de natureza prescricional.

E assim por diante...

Ademais, se tomarmos o direito penal, cuja estrutura conceitual

inspirou-se do direito privado, especialmente no direito obrigacional, veremos que ele diz:

prescreve a pretensão punitiva. Então, desde a origem destes conceitos, têm-se que o que

prescreve é a pretensão.

No entanto, estas categorias só funcionam adequadamente no direito de

crédito – e nos demais sistemas nele inspirados, tal como o direito penal, dentro de certas

especificidades que, por ora, não vamos observar. No entanto, nõa se dever incorrer no erro de

universalizar exageradamente estas categorias, porque elas não são universais. E este é o

grande erro da nossa formação teórica.

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107

O VÍNCULO DE DIREITO ABSOLUTO

(em especial o direito de propriedade)

Bem observado, o aspecto mais importante desse estudo detalhado e sistemático do vínculo

obrigacional e do vínculo, antes de mais nada, é que ele nos qualifica para a compreensão da

a forma de tutela processual pela qual estes direitos são protegidos, ou seja, a espécie de ação

pela qual recebem tutela judicial. Este é o elo indissociável entre a teoria geral do direito e a

teoria geral do processo. Em síntese, se quisermos dominar o direito processual teremos que

compreendê-lo à luz do direito material. O saber jurídico, antes de mais nada, é um saber

prático, embora não seja exatamente uma construção teórica superficial. É absolutamente

ingênuo e improdutivo o estudo compartimentalizado que promovemos nos cursos jurídicos:

de um lado, o direito material; de outro, completamente distante, o processual. Chega-se a

estimular, em certos casos, até mesmo uma disputa entre as matérias. O direito processual

lutou exitosamente pela sua autonomia científica, e o que acabou se criando foi um estúpido

abismo entre duas coisas que devem ser indissociáveis: de nada serve um direito material que

não disponha de uma adequada estratégia processual que o garanta tutela eficaz; é

absolutamente inócuo uma sofisticada teoria processual que não de conta de potencializar,

eficazmente, os direitos subjetivos materiais.

Na verdade, o jurista ao estudar o direito para aplicá-lo ao caso concreto, promove uma

permanente e silenciosa reconstrução do próprio direito enquanto objeto do conhecimento.

Esta é uma nota de especificidade da teoria jurídica. O direito é antes de mais nada uma teoria

aplicada. Ademais, trata-se de um objeto cultural e não natural. Desse modo, é fácil

compreender que nós construímos uma teoria processual exercitando o processo, ou seja,

tutelando alguma espécie de direito material. Por exemplo: nós teorizamos a atividade judicial

constitutiva a partir da experiência da tutela processual dos direitos potestativos, eis que o

exercício de tais direitos demandam esta espécie de atividade judicial. Afinal, eles se

traduzem no poder que o titular dispões de constituir relação jurídica subjacente.

Se separamos teoricamente a atividade jurisdicional em 1) cognitiva, 2) declaratória, 3)

condenatória, 4) constitutiva e 5) mandamental, é porque tais as atividades do juiz refletem

demandas de tutela de direitos materiais específicos, com estruturas específicas, cada qual

exigindo uma atuação estatal diferenciada. Conforme a estrutura de direito material o juiz vai

se utilizar de uma dessas formas de atuação. Por isso, temos que estudar um à luz do outro,

sob pena de não compreendermos, por exemplo, que uma sentença constitutiva existe para

tutelar um direito potestativo. Ou mesmo a sentença condenatória, que torna-se

incompreensível sem um estudo razoavelmente profundo da estrutura do vínculo obrigacional.

Só então é possível compreender, por sua vez, porque as ações condenatórias transbordaram

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108

os limites da tutela dos vínculos obrigacionais. Isso é um fenômeno milenar, que iniciou-se

desde a fase final de evolução do Direito Romano, há quase dois milênios, e que avança seus

desdobramentos até os dias de hoje.

O direito absoluto

Os principais direitos absolutos que conhecemos desde o direito privado

são 1) os direitos dominiais e 2) os direitos personalíssimos. Usemos os primeiros como

paradigma para nosso estudo, especialmente o direito de propriedade, que é o principal direito

dominial. Trata-se de um direito absoluto e real porque, em primeiro lugar, se exerce contra

todos e, em segundo, porque vincula o bem patrimonial e não eventual “pessoa” (este último,

tal como nos direito pessoais).

Ora, se a segunda coisa que temos que fazer para estudar o direito

absoluto (além de adotar um paradigma, tal como fizemos com o direito de propriedade) é

termos o cuidado para não confundir o que significa exercê-los, eis que em regra, pensamos

em exercer um direito que ele é violado, e há duas espécies significativamente distintas de

violação do direito de propriedade. Não há que se confundir, a violação do direito de

propriedade consistente em infligir um dano ao bem objeto deste direito é um ato jurídico à

parte, um ato ilícito absoluto que gera eficácia jurídica própria, novo direito subjetivo e novo

dever, desta feita consistentes respectivamente em pretensão indenizatória (que é direito

obrigacional, pois é crédito) e responsabilidade civil aquiliana (que é obrigação de indenizar,

cuja prestação é dar valor correspondente ao menoscabo patrimonial sofrido pelo lesado).

Portanto, quando a violação ao nosso direito patrimonial consiste em causação de dano,

deduzimos em juízo um pretensão indenizatória , que é direito novo, exigindo a condenação

do réu na obrigação de indenizar, de modo a repor o bem objeto de nossa propriedade ao

status quo ante.

Exemplo: se tenho um automóvel, que está na minha esfera dominial, é patrimônio,

e tem o valor de R$ 20.000,00. Paro numa dessas faixas de pedestre e vem um carro e bate no meu automóvel,

causando um dano e diminuindo o valor desse meu bem para R$ 15.000,00. Houve diminuição patrimonial?

Houve violação do direito de propriedade? Qual é o objeto da propriedade? Será que isso é violação? De certa

forma sim, houve uma violação do direito de propriedade. Só que para esse tipo de violação, causação de

dano, a ordem jurídica deu a solução. Diz que isso é um novo fato jurídico. Se existe um fato jurídico do qual

se irradia o direito de propriedade, a causação de dano é um novo fato jurídico do qual se irradia direito de

crédito, uma obrigação. Qual o nome que se dá a essa obrigação? Responsabilidade civil aquiliana. Então

não vou deduzir em juízo o meu direito de propriedade e dizer que ele foi violado. Eu vou deduzir em juízo um

direito de crédito decorrente do ato ilícito, que é um ato de violação do direito de propriedade. Tem essa

sutileza. E isso está fora também e não nos interessa porque como desta violação surge um novo fato jurídico

do qual se irradia crédito e débito, peço tutela referida a estes. E qual a ação que tutela crédito e débito? É a

ação condenatória. Resolvido. Este aí não tem nenhum problema de judicialização. Nós estamos estudando os

direitos aqui para compreender a sua judicialização. Aqui é fácil: o ato ilícito - causação de dano - gera

direito à indenização (crédito), contra a responsabilidade civil (obrigação), então vou pedir a tutela através de

uma ação condenatória. Na petição inicial vou descrever o acidente, vou demonstrar o dano e também o

vínculo causal entre a ação e o dano e vou pedir o crédito, que se pede através de uma condenação. Condena-

se o sujeito a cumprir a obrigação, a dar um valor. O juiz dá a sentença, liquida-se a mesma e na execução

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resolve-se o problema. Isso é crédito e débito. Então essa violação, causação de dano, não nos interessa,

porque não se deduz em juízo o direito de propriedade.

Não há que se confundir pretensões indenizatórias por dano ao bem

objeto do direito dominial com a dedução em juízo do próprio direito de propriedade. E

quando isto ocorre? Qual a espécie de violação que nos move a deduzir em juízo o próprio

direito de propriedade. Ora, isto ocorre tipicamente na “ação” reivindicatória, justo quando

exercemos o chamado direito de seqüela, um dos poderes que constituem o direito de

propriedade.

Pois bem, vamos começar pelo fim: Qual a natureza da ação

reivindicatória? Como o ordenamento jurídico a trata? Todos sabemos, ela é considerada pela

doutrina como uma ação condenatória. Mas porque ação condenatória, se estas se prestam

estruturalmente para tutelar crédito, ou melhor, pretensão creditícia, que é faculdade de exigir

de outrem uma prestação. Essa prestação, que é uma conduta do devedor, pode ser um dar

valor, dar coisa certa ou incerta, pode ser um fazer ou não fazer. Que espécie de conduta

corresponderia ao direito patrimonial? Um dar?

Ora, com o fenômeno da personalização dos direitos reais, e a

correspondente transformação da reivindicatória numa ação condenatória, criou-se uma nova

espécie de obrigação, a qual chamamos obrigação de entregar. Eis a sutileza: pelo fato de nós

termos transformado a reivindicatória em uma ação condenatória, tivemos que criar uma nova

categoria obrigacional: obrigação de entregar, que é uma subespécie da obrigação de dar.

Mas qual é a diferença entre a obrigação de dar e a de entregar? Na de

dar, o bem objeto da prestação está na esfera dominial do devedor. Vocês se lembram daquela

figura na tutela específica dessa obrigação, o que o juiz tem que fazer? Como o juiz faz para

prestar tutela específica? Quero que ele dê coisa certa. Mas o bem objeto da obrigação está na

esfera dominial dele, logo somente ele pode tirar o bem de sua esfera dominial. É um ato de

vontade. Como o juiz faz? Subroga-se na figura do devedor ( o prof. chama isso de

"incorporação espiritual") e como se este fosse, comete a manifestação de vontade capaz de

transmitir o domínio, e desincorpora.

Pois bem, na obrigação de entregar não tem esse problema. Por quê?

Porque o bem objeto da prestação está na esfera dominial do credor. Não há transferência de

domínio. Ora, já dá para perceber que não tem nenhum sentido tutelar o direito de propriedade

através de uma ação condenatória. Mostrarei o porquê. Por que no final de uma ação

condenatória que está tutelando crédito contra obrigação de dar coisa certa, o juiz diz que

realmente o sujeito comprou o automóvel tal, amarelo, logo existe o direito, e ele declara esse

direito, e em vez de condenar o outro a cumprir a obrigação, ele faz é mandar, vai exercer a

atividade mandamental e não declaratória? Ele expede um mandado de busca e apreensão para

aquele carro amarelo, e entrego-o para o autor. O que faltou aí? Eu transmiti através desse

mandado a posse, mas o automóvel continua na propriedade do devedor. Por esse justo

motivo, estudamos que nas ações condenatórias o juiz condena e fica aguardando, para ver se

entre a condenação e a execução o devedor devidamente condenado não resolve cumprir a

obrigação, o que é muito mais fácil.

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Mas não tem esse problema nas ações reivindicatórias. Ao final o juiz conhece o direito e

declara: "ele é proprietário". O que está faltando agora? Só a inversão da posse. Como se

resolve isto? Mandado de busca e apreensão. É um absurdo. Então vocês que são advogados

bem preparados sabem que o direito de propriedade não existe. Se chegar um cliente, e tiver

um problema referente a violação do direito de propriedade que não for dano, mas que o bem

objeto da propriedade dele está lá sobre o controle de um terceiro que não quer entregar,

vocês, em primeiro lugar não vão entrar com uma ação reivindicatória, porque aí a seara é

polêmica. Uns acham que é condenatória, outros acham que pode ser mandamental. E você

não sabe o que o juiz acha. O que você vai fazer? Vai entrar com uma ação indiscutivelmente

mandamental. Qual é ela? Não se vai discutir a propriedade vai se discutir a posse. Todo

advogado que lida nessa área não vai entrar com reivindicatória, e sim com possessória,

porque essa transformação da ação reivindicatória em condenatória acabou com a força

daquela. Se fizer isso vai transformar o seu cliente que é proprietário, em credor. O sujeito era

proprietário e vira credor. Então discute-se a posse só.

Tanto é verdade que se vocês forem ao fórum e verificarem quantas ações reivindicatórias tem

lá, contar-se-ão nos dedos. Em compensação as possessórias contam-se aos montes. Mais do

que isso se forem analisar dentro de todas as possessórias em quantas o sujeito é proprietário,

veriam que tal ocorreria na maior parte delas. Agora se o cliente de vocês for cabeça dura e

quiser ajuizar a reivindicatória, o que se irá fazer? Bom, não posso fazer uma loteria. Então o

que vou requerer ao final: como se fosse condenatória ou como mandamental? São dois

requerimentos diferentes, são formas diferentes de se fazer a petição inicial. Requeiro a

condenação do outro a entregar ou requeiro a expedição de mandado de busca e apreensão, se

for móvel, ou de imissão na posse se for imóvel? O que o advogado faz numa hora dessas?

PEDIDOS CUMULADOS ALTERNATIVOS. Qual você prefere: prefiro que o juiz considere

a mandamental, então requeiro primeiro isso, e caso assim não entenda a condenatória.

Resolvido o problema. Se pegar um bom juiz, ele poderá dizer: "não vou por essa doutrina

que está toda furada. Não tem que fazer a transmissão de domínio, obrigação de entregar é

balela, não vou ficar entulhando o fórum de processos pois acarretará mais uma execução".

Logo, mandado de busca e apreensão ou de imissão na posse ao final. Então ele vai conhecer

do direito, executo, mando resolver, fechou o processo e acabou o problema. O que há por trás

desse meu discurso. Por que a coisa é assim, meio sem rumo, sem definição? Porque nós não

sabemos organizar teoricamente o vínculo dominial, o vínculo absoluto. E toda organização

de base de um direito subjetivo, a organização teórica, a construção analítica desse conceito,

está voltada para sua judicialização, para forma como vai ser tutelada.

Ora, presta estudar o vínculo obrigacional para compreender o porquê

da ação condenatória e saber operar o sistema, quando se tratar desse direito. Presta estudar

direito potestativo para conhecer as constitutivas, e também saber operar o sistema quando se

deparar com um direito dessa natureza. Agora, quando se depara com um direito absoluto não

tem como se estudar porque não há uma teoria organizada. E é isto que se reflete no plano

processual, e por isso que resolvi começar pelo fim para mostrar a bagunça.

Primeiro, o vínculo é entre titularidades. Quando um vínculo jurídico é entre titularidades

temos de um lado um direito e do outro um dever. O direito obrigacional é um pretensão

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creditícia contra uma obrigação. O direito potestativo é um poder contra uma sujeição. E no

direito absoluto, dominial? Nós dividimos o direito subjetivo em titularidade, exigibilidade e

impositividade. Nos vimos que o direito de crédito tem os três. O direito potestativo tem a

titularidade e a impositividade juntas. O direito subjetivo tem um titular; a exigibilidade é o

exigir de outrem uma conduta, um dar, fazer ou não fazer, que é uma prestação; e a

impositividade é o que chamamos de ação, só surge no direito de crédito se for violado.

Sempre que alguém for titular de um direito potestativo ele já tem ação, já tem impositividade.

Eles vêm juntos, não tem mais que se falar em pretensão, e ele é inviolável. O que tem desde

logo é a exigibilidade, que se transforma em exigência, momento em que o devedor pode

resistir, não cumprindo a prestação correspondente.

O direito de propriedade tem impositividade, como todo direito tem. Ele tem pretensão e

ação??? Essa é a questão. Mostrei para vocês que toda teoria jurídica é construída a partir de

um vínculo paradigmático que é o vínculo obrigacional. Pedido é pretensão deduzida em

juízo. Então como será o pedido em face de um direito potestativo, que não tem pretensão?

Este conceito de pedido não se presta para o direito potestativo.

Lide é o conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida.

Bom, então seria forçoso concluirmos que não há lide relativa a um direito potestativo.

Conclusão: Essa estrutura da teoria geral do processo só se presta para

o modelo original, de direito obrigacional. Para o direito potestativo nós vimos que ela não

presta. Ela tem terríveis deficiências metodólogicas, porque, por exemplo, é óbvio que tem

que haver um pedido no direito potestativo, mas ele não é a pretensão deduzida em juízo

porque não há pretensão.

E no direito absoluto, direito de propriedade, existe uma pretensão?

Direito de propriedade é dotado de uma pretensão? Essa é a questão. Ele pode ser violado?

Como se viola o direito de propriedade? Ele tem impositividade ante a uma suposta violação?

Posso pedir tutela do direito de propriedade antes de ele ser violado? Pode haver uma tutela

protetiva e não apenas satisfativa de uma relação? Cabe tutela antecipada protetiva ante uma

situação de risco ao direito de propriedade?

O direito subjetivo só existe na medida em que ele seja tutelado. Ora

para discutir-se a capacidade de tutelar-se um direito de propriedade nós temos que discutir

isso aí. Porque na medida em que nós fixarmos esses conceitos vamos organizar a forma de

tutela deles. E esses conceitos não existem para mero diletantismo ou para conhecimento para

aprofundar teoria jurídica. É para aplicação mesmo - é como eu peço, se eu sou advogado.

Como eu dou um parecer, se eu sou um promotor. Ou ainda como eu decido, se eu sou um

juiz. Diz respeito à natureza de atividade que eu imprimo aqui.

Ele é ou não dotado de pretensão? E essa pretensão é em que sentido?

Faculdade de exigir de outrem uma conduta? Vamos procurar, experimentar. Quais são as

formas de conduta que existem? Fazer ou não fazer (dar é simples fazer a prestação). O titular

do direito absoluto exerce ele erga omnes. Então aqui há um indeterminação, uma não

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definição no pólo passivo. Ora, exercer um direito é exercer a pretensão. Exercemos a

pretensão e sendo ela resistida surge a lide. Então, se o direito de propriedade é um direito que

se exerce erga omnes, o que se exerce é a pretensão à a pretensão nos direitos absolutos é

exercida contra todos. Todos teriam uma obrigação, obrigação essa que é de não fazer. Essa é

uma saída teórica. Parte da doutrina se socorre dessa saída. O direito é um direito absoluto, o

que se exerce é a pretensão, ele é dotado de pretensão, e se exerce essa pretensão contra todos

numa obrigação de não fazer.

Como eu judicializo isso? Aqui está o problema. Se ele não precisa ser

violado, mas já tem pretensão, então eu vou deduzir essa pretensão em juízo e isso vai ser meu

pedido. Mas o que eu peço, quem eu mando citar? Deduzo em juízo minha pretensão dominial

e mando citar todos, menos eu? Nós temos a tendência em fixar um violador para poder

guerrear com ele no processo. Se vocês pararem para analisar, o que eu estou fazendo aqui é

balela, porque não existe uma ação que faça isso. O que existem são medidas protetivas da

posse, da propriedade não existem. Então esse esquema não serve para nada, porque eu não

tenho pretensão antes da violação. Eu não tenho pretensão deduzível em juízo.

Uma segunda saída teórica: o direito de propriedade não tem pretensão.

A proteção do direito de propriedade surge com a violação. A titularidade se exerce contra o

violador, e a pretensão só surge após a violação. Ora, violação nós já vimos que não é a

causação de dano porque essa tem uma solução em sede de crédito e débito - ação

condenatória. Violação aqui na hipótese é aquilo que faz você deduzir em juízo o seu direito

de propriedade, que se traduz em direito de seqüela - perseguir o bem com quem estiver e

aonde ele estiver. Então essa violação é apenas o sujeito que está com a situação desse bem

irregular, ilegítima, ilegal.

O violador está com o bem objeto da propriedade, impedindo que você

exercite seu direito. A pretensão a ser deduzida é dirigida ao violador e nisso você tem a

pretensão como faculdade de exigir de outrem um fazer ou não fazer? Agora se transformou

num fazer. Obrigação de fazer, mais especificamente um entregar, que seria um dar relativo

ou no sentido de domínio. Essa teoria tem um sentido prático, porque tem um alcance

processual, e é isso que nos interessa. Pretensão contra uma obrigação de entregar.

São essas as duas soluções teóricas que nós temos em relação ao direito

de propriedade. Qual seria a repercussão disso aí? Não fazemos na verdade muito uso prático.

O mais prático é buscarmos a tutela da propriedade alegando a posse. Abre-se um campo

imenso, fundamental, difícil, cheio de sutilezas e armadilhas que se chama POSSE. E a posse

é o que ocupa, na verdade, com mais vigor, essa judicialização dos direitos senhorios. É com

esse viés que você encontra mais vigor na tutela judicial. Uma solução teórica não tem

nenhum sentido prático, foge da realidade, a outra tem um sentido prático mas faz com que o

direito perca sua força. Transforma uma reivindicatória em uma condenatória e perde

totalmente a força, e o que mantém a força são as ações possessórias. Aí vocês verão que as

possessórias são ações propriamente mandamentais, tal como deveria ser a reivindicatória.

Qual é o problema que se encontra no direito de propriedade? O núcleo do problema está no

pólo passivo, ele é um direito de exclusão, e o pensamento jurídico moderno, como usou um

paradigma do direito obrigacional, só está acostumado a lidar com vínculos intersubjetivos,

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vínculos facilmente judicializáveis, pois na hora de se transformar a relação de direito

material ou vínculo em processo, as partes do vínculo transformamos em partes do processo.

Agora preste atenção: não necessariamente um vínculo entre partes, no

direito material, tem que ser judicializado entre essas partes. Esse é um conceito pós moderno,

que vai envolver conceitos de última geração ( interesses difusos, direitos coletivos etc, que

estão começando a habitar a nova orientação jurídica, como vemos no Código do

Consumidor, na Lei do Meio Ambiente). E isso traz terríveis conseqüências. A construção da

teoria dos direitos difusos em sede de direito material é importante para que possamos

organizar o processo. Se a auto-tutela está proibida, então nós temos que ter um processo

muito bem organizado. Porque se você tem um direito subjetivo mas não tem como ser

tutelado, você na verdade não tem coisa nenhuma. A sua cidadania também é a capacidade

que o Estado tem de tutelar seus direitos. Se você titulariza inúmeros direitos, mas que o

sistema jurisdicional não consegue tutelar porque eles não são bem organizados, teoricamente

você não tem nada.

Com isso a gente encerra a primeira parte do curso, mas não sem antes

fazer um pequeno resgate. Tudo o que tentamos até agora foi abraçar a teoria jurídica, sempre

com um olho na prática, e construir uma teoria coerente. Nós pegamos os diversos conceitos

que nos entregam desamarrados - direito subjetivo, pretensão, lide, pedido - e tentamos

amarrar tudo, analisando caso a caso. A titularidade, impositividade, ação, norma, fato

jurídico - fazendo um exercício, tentando amarrar tudo. Começamos por norma - é possível

nós, operadores do sistema jurídico, termos um conceito bem prático do que seja norma

jurídica? E fato jurídico? Se norma é difícil, este se torna ainda mais complicado porque o fato

jurídico é produto da incidência daquela, segundo o modelo por nós adotado. Se a norma é

problemática, o fato jurídico necessariamente é problemático.

Vamos para o plano da eficácia, categorias eficaciais. É vínculo

fundamentalmente o que estudaremos. Começamos a puxar os conceitos de teoria geral do

processo e tentamos amarrar. Qual a conclusão básica a que chegamos? Há muita contradição

na teoria jurídica, muita incompletude, muita incoerência. A teoria geral do direito não prima

por esses critérios de cientificidade, embora ela se pretenda científica. Científica em que

sentido? No sentido de ocultar esses defeitos para se mostrar como uma teoria científica.

Como é uma teoria científica? É uma construção conceitual coerente, sem contradição interna.

Você pode pegar o teste do princípio aristotélico da não contradição e atravessar a teoria. Não

têm conceitos que estão em contradição. Ela (teoria jurídica) não é um sistema conceitual

fechado. Ela persegue ser um sistema conceitual. Se você consegue amarrar o conceito de

ação aqui, desamarra o de pedido ali; se amarra o de pretensão, desamarra outro ali adiante e

nunca conseguimos amarrar tudo, e jamais vamos conseguir. Mas o que nos importa aqui é

perder um pouco o medo de que a coisa é angustiante mesmo. Perder essa perspectiva do

concursando de que deve haver solução para tudo, enquanto ele enche a cabeça com muitas

informações ao invés de aprender a processá-las. Quando encaramos o sistema para operar,

vemos que temos que dominar teoria geral. Temos que saber pedir. Saber porque pedimos

assim, mas não só decorar, mas processar a informação. Aprender a pensar. Normalmente, se

pega um monte de informações e se tenta manter dentro da cabeça, mas aí, se coloca de um

lado vaza do outro. A idéia é ter um programa de compactação, para saber onde achar a

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informação. Claro, que isso não é fácil. Requer um pouco de esforço. Isso aí que estudamos é

metodologia jurídica, não é hermenêutica ainda, pois não posso entra numa discussão

hermenêutica se não organizar o que eu sei que vocês tinham deficiência.

A primeira coisa que quis mostrar a vocês com essa revisão é que a

teoria jurídica não é um sistema fechado. Se não é um sistema fechado, se tenho razão nisso

que lhes mostrei, que é um sistema incompleto, impreciso, como posso querer acreditar que

uma decisão judicial vai ser construída silogisticamente. Norma = premissa maior. Já vi que

norma é um problema. Fato = premissa menor, mas já vi que não trabalho com fato, trabalho

com prova, o que é difícil, é uma sintaxe distinta, pois a teoria da prova tem uma sintaxe

própria, seu próprio discurso. Não chega a sentença como conclusão. Então o fenômeno é um

pouco mais complicado do que isso. Como é que vou acreditar no mito da plenitude do

ordenamento jurídico, se nesse não consigo plenitude nem na teoria que há por trás dele? Não

dá.

Então o pensamento jurídico tem uma natureza um pouco diferenciada

do pensamento científico, que é um pensamento sistemático, lógico-dedutivo, que pressupõe

um sistema conceitual completo para que possamos navegar nele, através de meros atos de

conhecimento. Então o pensamento jurídico tem áreas em que você não navega por meio de

atos de cognição, isto é, por um raciocínio lógico-dedutivo, silogístico. E se você não

consegue navegar silogisticamente você não consegue demonstrar, pois o silogismo é uma

forma de demonstração. Se você não demonstra vai fazer o quê? Se você está com um

processo e tem que decidir? Se você não tem a capacidade de demonstrar porque não tem o

alcance, porque não é um problema organizado num sistema fechado, então você tem que dar

uma solução que não vai ser uma resposta fechada. Não vai ser demonstração vai ser

persuasão. E aí nós entramos na lógica do razoável. Você persuade usando argumentos,

entrando na teoria da argumentação. E isso interessa muito porque nós operamos

intuitivamente numa teoria da argumentação, entrando com conceitos de verossimilhança, de

pontos de vista argumentativos, como se busca isso, o que é logus do razoável. E em direito a

gente faz isso. Muito mais se é razoável na construção de uma decisão judicial do que se é

lógico-dedutivo. Então nós temos que aprender um pouquinho, para potencializar sua

capacidade de argumentar, dominando as técnicas de argumentação explicitamente e não mais

intuitivamente.

OUTRA SAÍDA

Como eu judicializo isso? Aqui está o problema. Se ele não precisa ser violado, eis que já é

dotado de uma pretensão, então eu vou deduzir essa pretensão em juízo e isso vai ser meu

pedido. Mas o que eu peço, quem eu mando citar? Deduzo em juízo minha pretensão dominial

e mando citar todos, menos eu? Nós temos a tendência em fixar um violador para poder

guerrear com ele no processo. Se vocês pararem para analisar, o que eu estou fazendo aqui é

balela, porque não existe uma ação que faça isso. O que existem são medidas protetivas da

posse, da propriedade não existem. Então esse esquema não serve para nada, porque eu não

tenho pretensão antes da violação. Eu não tenho pretensão deduzível em juízo.

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Uma saída é adotarmos que a pretensão dominial se exerce contra todos, antes da violação por

parte de alguém. Ora, com tal violação surge a ação material, mas somente contra o violador.

O direito de propriedade, portanto, nasce com pretensão, exercível erga omnes. A proteção do

direito de propriedade, no entanto, somente surge com a violação. A ação material decorrente

da violação da pretensão dominial surge apenas contra o violador; contra os demais

permanece a pura pretensão, ou exigibilidade de abstenção. Portanto, não é a pretensão que

surge após a violação, como quer parte da doutrina. Ora, violação nós já vimos que não é a

causação de dano porque essa tem uma solução em sede de crédito e débito - ação

condenatória. Violação aqui na hipótese é aquilo que faz você deduzir em juízo o seu direito

de propriedade, que se traduz em direito de seqüela - perseguir o bem com quem estiver e

aonde ele estiver. Então essa violação é apenas o sujeito que está com a situação desse bem

irregular, ilegítima, ilegal.

CONCLUSÕES GERAIS

A petição inicial é composto de duas partes: a exposição dos fatos e seus

fundamentos jurídicos e o pedido (requerimento, onde se estabelece a pretensão).

Pedido é pretensão deduzida em juízo - pretensão é faculdade de exigir de outro

uma conduta (conceito nascido e definido no código civil alemão). Logo, pedido é faculdade de

exigir de outro uma conduta, deduzida em juízo. A faculdade que alguém titulariza de exigir de

outrem uma conduta é o direito subjetivo, logo, o pedido é o direito subjetivo deduzido em

juízo.

Nós aprendemos também em processo que todo pedido tem uma causa de pedir, que é

o fato jurídico- o que dá causa ao direito objetivo é n fato jurídico. No requerimento, nós deduzimos o

nosso pedido, mas antes descrevemos a causa do nosso pedido. Causa de pedir é o próprio fato

jurídico, pedido é de tutela (realização no mundo) de próprio direito objetivo. Causa próxima do

pedido é o direito objetivo, e a causa remota é o fato social. Direito de crédito - causa de pedir = fato

jurídico = negócio jurídico, ato ilícito (duas causas q geram o direito objetivo obrigacional ). Ex.:

responsabilidade civil, obrigação de indenizar - fato social: alargamento do automóvel causando dano

- norma: art. 159, c/c. É a partir desse modelo que se organiza e concretiza o pensamento jurídico ao

se deduzir a pretensão em juízo.

O processo serve para realizar o direito objetivo material. Essa é a utilidade

prática do modelo = organização do pensamento para se redigir uma petição inicial. Esse modelo já

não é tão sofisticado, tão perfeito quando se trata de fazer Alegações Finais. Na hora de se discutir

mais aprofundadamente, porque mais adiante no processo, o q vai se discutir como tese jurídica vai se

tornar complexo, porque a outra parte também vem com argumentos opostos, de fato e de direito

objetivo. Digamos que nesse processo q estamos trabalhando, os argumentos sejam só de fato - será

então uma questão de prova, discutir a prova, qual foi o fato; o direito objetivo não se discute. O

âmbito de maior discussão está no fato. Isso ocorre muito no ato penal, que é um direito objetivo mais

preciso, mas objetivo, ao contrário do direito de família, p. exemplo, onde a discussão jurídica é

enorme, porque nós temos hoje um direito objetivo de família que é mais lacunoso do que difícil, e se

discute se tal regra foi revogada ou estar em vigor.

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Se um desses elementos é polêmico, é polêmico qual foi o real fato

jurídico que aconteceu, e quais são os direitos subjetivos e suas extensões. Sempre tem um

aspecto polêmico; os processos mais simples são menos polêmicos, no que diz respeito à

questio iuris e questão factis, que são os grandes debates no processo.

Apesar dessa capacidade desse modelo de organizar nosso pensamento, nós

começamos a traçar algumas reflexões por área, mais aprofundadas, como se colocássemos uma

lupa em determinada parte do modelo e nós começamos neste momento a compreender que há uma

profunda dificuldade em se definir, por exemplo, o que seja norma jurídica.

Ora, inclusive as conclusões que começamos a estabelecer sobre o conceito de norma

indicam a impossibilidade desse modelo. Então, se ao mesmo tempo o modelo ajuda-nos a organizar

o pensamento jurídico, ele tem lá suas deficiências. Não por isso perde sua utilidade, pois não há um

modelo absoluto no direito.

A inteligência está em extrair dos diversos modelos, até mesmo dos mais arcaicos, a

sua utilidade.

O pensamento que nos referimos é aquele para se colocar em prática o direito

objetivo, como operadores do direito que somos; para construir uma petição inicial, uma cota

ministerial etc.

Essa idéia de que a norma existe como um dado objetivo capaz de incidir logicamente é

extremamente censurável, isto é, uma norma que juridiciza, que gera um fato jurídico inflacionado do

qual se irradiam direitos subjetivos antes mesmo do processo. O dia subjetivo não é algo inquestionável

ou indiscutível, pois quando o juiz dá unta sentença ele delimita se o ato subjetivo existe, qual o seu

conteúdo e qual a sua extensão, e mais do que isso transitou em julgado a decisão e passou o prazo da

ação anulatória ~ só aí se pode dizer que efetivamente se tem um ato subjetivo.- Esse sim é indiscutível.

Nós juristas não trabalhamos com realidade físicas, e sim humanas,

e como tais, falhas. Logo esse modelo não é algo absolutamente perfeito, absoluto ou preciso. É apenas

um parâmetro.

Existiram no mundo clássico três formas de saber: a episteme (teoria do pensamento -

noção de verdadeiro ou falso) - é um pensamento q já está organizado num conceito conceitual,

raciocínios que se podem demonstrar, científico; a gotsa, que é o senso comum, o saber popular e a

prolise, que é a seara do conhecimento, do saber humano que são irredutíveis ao sistema, são certas

dimensões que envolvem juízos éticos, deônticos, que você não pode reduzir a um sistema, a um

conceito de justiça. Ora, se é irredutível ao sistema é impossível tecermos qualquer consideração sobre

a justiça ou injustiça de uma determinada realidade? Não, só se precisa passar ao nível da persuasão, e

a prólise é exatamente isso. O direito é assim, trabalha com persuasão.

Por exemplo, quando se diz que o homicídio ocorreu com todas as

qualificadoras, ao se classificar o que é motivo fútil, meio cruel, utiliza-se da persuasão, de critérios

subjetivos e valorativos. O juízo do "houve a morte" é objetivo, é decorrente de um exame de corpo de

delito. Mas o demais é decorrente do nível da tópica, da teoria da argumentação - "o mais razoável nessa

circunstância é admitirmos que o meio é cruel" (não existe verdade absoluta, e sim razoabilidade - é por

isso que existe o princípio dúbio pro réu).

Esse modelo peca por ser muito epistêmico, muito científico, porque quer achar possível

que a norma incida logicamente. E a norma não é um dado acabado.

Teorias nada mais são do que conceitos mais gerais passando para

conceitos mais especiais.

A norma tem no mínimo uma descrição hipotética de um fato mais a aplicação de uma

conseqüência jurídica (preceito). A norma cumpre um papel de juridicizar o fato social - tudo aquilo que

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transforma o fato social em fato jurídico é norma. Tudo aquilo que imprime significação jurídica é

norma.

É preciso saber tudo o que é jurídico para saber qual é o direito e qual

é o dever. discute-se num processo não apenas a existência ou inexistência de um direito subjetivo,

discute-se qual o seu conteúdo, qual a sua extensão (ex.: valor do crédito).

Norma não é igual a lei. Apenas uma parte da norma é legal. Norma

é lei e mais alguma coisa.

A definição nu conceito de uma norma, em regra, envolve vários dispositivos.

Só nós quisermos procurar uma norma no ordenamento jurídico não

a vamos encontrar, porque estaríamos procurando uma norma em tese, e ela não existe. A norma não é

uru dado, e o pensamento jurídico -que constrói decisões judiciais ao decidir qual é a norma parte do

fato, e alio da norma geral para o fato. Esse modelo parte da norma! O pensamento que elabora, que

alcança, que chega à norma é um pensamento que parte do fato. E a norma individual nada mais é do

que a própria sentença.- E esta usa pelo menos duas leis (norma > lei ).

Naquilo que a norma não é legal, ela é complementada pela doutrina, jurisprudência e

costumes, que são as fontes do direito. Ora, para se fazer uma norma jurídica você navega em todas

as fontes do direito, e essa norma vai juridicizar um fato, e dele vai irradiar um direito e um dever.

Esse fato pode receber a incidência de mais de . uma norma, formando mais de um

fato jurídico, mais de um dever e mais de um direito, que não se confundem, são independentes.

Não se pode confundir elementos que fazem parte de uma norma com outra. Ex.: não se pedir

indenização contra a União pelo art. 159 e colocar no meio da argumentação jurídica a

responsabilidade objetiva do Estado.

A norma não pode incidir Logicamente, é complexa, existem verias possibilidades,

ou pelo menos mais de uma hipótese de incidência ~m alguns casos. sempre há um mínimo de

possibilidade de interpretação. A norma é

fluida, e nessa fluidez é que entra a atuação, a discricionariedade do operador de direito. A norma

necessita, assim, de um mediador, que é o Juiz.

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