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5 Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 20, n. 44, p. 5-10, nov. 2012 Apresentação: Robert Michels, Gramsci e a ciência política contemporânea Recebido em 1° de setembro de 2012. Aprovado em 29 de outubro de 2012. I. OS DIAGNÓSTICOS DE MICHELS Em 2011 comemoramos um século da publicação da obra clássica de Robert Michels (1876-1936). Desde sua primeira edição, sua Sociologia dos partidos políticos vem contribuindo para estimular um intenso debate sobre a relação entre democracia, partidos políticos e a organização das instituições representativas. Seu centenário é uma boa ocasião para voltarmos a esse livro a fim de rever suas presunções e proposições fundamentais. No Prefácio que René Rémond escreveu à republicação da tradução francesa em 1971 de Zur Soziologie des Parteiwesens in der modernen Demokratie (Untersuchungen über die oligarchischen Tendenzen des Gruppenlebens), ele observou que apesar de todas as insuficiências desse livro – em termos empíricos, geográficos, ideológicos e metodológicos –, Robert Michels acertou em cheio em seus diagnósticos e em seu pessimismo. Talvez fosse o caso então de dizer que nunca uma lei social elaborada a partir de um único caso foi tão previdente. Rémond lembra que o ensaio de Michels traz, em comparação com o feitio dos trabalhos mais contemporâneos de ciência política sobre o assunto, pouquíssimos dados estatísticos, nada sobre o financiamento voluntário dos partidos, nenhum estudo dos estatutos e escassas informações sobre os conflitos internos entre as cúpulas dirigentes (RÉMOND, 1971, p. 10). De acordo com a reprovação de Max Weber, a obra é uma mistura confusa entre fatos e julgamentos de valor produzida por um adepto desiludido da esquerda do SPD (Partido Social-Democrata da Quem diz organização, diz oligarquia(Robert Michels) DOSSIÊ “O CENTENÁRIO DE SOCIOLOGIA DOS PARTIDOS POLÍTICOS, DE ROBERT MICHELS” Alemanha). Michels teimava quase que apenas em reprovar os defeitos internos mais expressivos e urgentes dos socialdemocratas. Ele denunciava obsessivamente seu eleitoralismo (preocupação exclusiva em ganhar as eleições), seu parlamentarismo (a idéia segundo a qual a política se resume à atuação no parlamento) e o oportunismo pessoal dos líderes, focados nas próprias carreiras e vantagens advindas da posição de direção na organização partidária. Além disso, como se recorda, Michels estudou exclusivamente a esquerda socialista, deixando de lado os liberais democratas, a direita conservadora, os monarquistas, os republicanos, os católicos, etc. Seus exemplos incluíram só o norte da Europa e, secundariamente, a Itália. “A bem dizer”, enfatiza Rémond, “a tese de Michels é [tão- somente] uma extrapolação a partir [do caso] da social-democracia na Alemanha guilhermina” (idem, p. 11). Com base nessa falácia ecológica, nada nos garante que a sua famosa sociologia dos partidos políticos não seja enfim uma sociologia política dos partidos de massa da esquerda alemã em princípios do século XX. E que suas assertivas pessimistas sobre a política partidária dos socialistas não se resumam, afinal de contas, em “um amável ceticismo de salão ou de café reacionário” animado pelo juízo “epigramático de um polemista” (GRAMSCI, 1984, p. 110). Outras coisas também contaram contra esse livro pioneiro. O fato de ele ter sido publicado em 1911 só evidencia que o autor perdeu o melhor da festa: a ascensão do partido nazista e do partido fascista, a criação e a burocratização do partido comunista da URSS, o monopólio da direção da Section Française de l’Internationale Ouvrière

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 20, Nº 44: 5-10 NOV. 2012

Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 20, n. 44, p. 5-10, nov. 2012

Apresentação: Robert Michels, Gramsci e a ciência política contemporânea

Recebido em 1° de setembro de 2012.Aprovado em 29 de outubro de 2012.

I. OS DIAGNÓSTICOS DE MICHELS

Em 2011 comemoramos um século dapublicação da obra clássica de Robert Michels(1876-1936). Desde sua primeira edição, suaSociologia dos partidos políticos vem contribuindopara estimular um intenso debate sobre a relaçãoentre democracia, partidos políticos e aorganização das instituições representativas. Seucentenário é uma boa ocasião para voltarmos aesse livro a fim de rever suas presunções eproposições fundamentais.

No Prefácio que René Rémond escreveu àrepublicação da tradução francesa em 1971 deZur Soziologie des Parteiwesens in der modernenDemokratie (Untersuchungen über dieoligarchischen Tendenzen des Gruppenlebens), eleobservou que apesar de todas as insuficiênciasdesse livro – em termos empíricos, geográficos,ideológicos e metodológicos –, Robert Michelsacertou em cheio em seus diagnósticos e em seupessimismo. Talvez fosse o caso então de dizerque nunca uma lei social elaborada a partir de umúnico caso foi tão previdente.

Rémond lembra que o ensaio de Michels traz,em comparação com o feitio dos trabalhos maiscontemporâneos de ciência política sobre oassunto, pouquíssimos dados estatísticos, nadasobre o financiamento voluntário dos partidos,nenhum estudo dos estatutos e escassasinformações sobre os conflitos internos entre ascúpulas dirigentes (RÉMOND, 1971, p. 10). Deacordo com a reprovação de Max Weber, a obraé uma mistura confusa entre fatos e julgamentosde valor produzida por um adepto desiludido daesquerda do SPD (Partido Social-Democrata da

“Quem diz organização, diz oligarquia”

(Robert Michels)

DOSSIÊ “O CENTENÁRIO DE SOCIOLOGIA DOS PARTIDOSPOLÍTICOS, DE ROBERT MICHELS”

Alemanha). Michels teimava quase que apenas emreprovar os defeitos internos mais expressivos eurgentes dos socialdemocratas. Ele denunciavaobsessivamente seu eleitoralismo (preocupaçãoexclusiva em ganhar as eleições), seuparlamentarismo (a idéia segundo a qual a políticase resume à atuação no parlamento) e ooportunismo pessoal dos líderes, focados naspróprias carreiras e vantagens advindas da posiçãode direção na organização partidária. Além disso,como se recorda, Michels estudouexclusivamente a esquerda socialista, deixando delado os liberais democratas, a direita conservadora,os monarquistas, os republicanos, os católicos,etc. Seus exemplos incluíram só o norte da Europae, secundariamente, a Itália. “A bem dizer”,enfatiza Rémond, “a tese de Michels é [tão-somente] uma extrapolação a partir [do caso] dasocial-democracia na Alemanha guilhermina”(idem, p. 11). Com base nessa falácia ecológica,nada nos garante que a sua famosa sociologia dospartidos políticos não seja enfim uma sociologiapolítica dos partidos de massa da esquerda alemãem princípios do século XX. E que suas assertivaspessimistas sobre a política partidária dossocialistas não se resumam, afinal de contas, em“um amável ceticismo de salão ou de caféreacionário” animado pelo juízo “epigramático deum polemista” (GRAMSCI, 1984, p. 110).

Outras coisas também contaram contra esselivro pioneiro. O fato de ele ter sido publicado em1911 só evidencia que o autor perdeu o melhorda festa: a ascensão do partido nazista e do partidofascista, a criação e a burocratização do partidocomunista da URSS, o monopólio da direção daSection Française de l’Internationale Ouvrière

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APRESENTAÇÃO

(SFIO) por um único indivíduo por quase umquarto de século, para ficarmos no principal eirmos só até a metade do século. E, contudo, omais irônico é que todos esses exemplos são umavalidação espetacular das principais proposiçõesde Michels a respeito das conhecidas“extravagâncias das oligarquias partidárias”(POUTHIER, 1993, p. 812).

Uma contraposição rápida entre os achadosde Michels e as proposições de Gramsci tendocomo pano de fundo a democracia política e ademocracia no interior dos partidos políticosajudam a destacar a oportunidade de retornar aonosso autor.

II. MICHELS FACE A GRAMSCI

Nas sociedades democráticas modernas, opartido político é por excelência o canal darepresentação. Os partidos são (ou foram nopassado, a discutir) os mecanismos institucionaismais importantes da vocalização política. É atravésdeles que os grupos sociais costumam exprimir,de modo mais ou menos completo, suasreivindicações e interesses, assim como participar,de modo mais ou menos eficaz, da formação dasdecisões públicas. O problema da representaçãopõe, contudo, uma questão política essencial eque diz respeito à sua possibilidade, natureza egrau: como a representação poder ser efetiva,genuína e legítima? Nesse tema, A sociologia dossistemas partidários na moderna democracia (natradução literal do título) tornou-se um clássicoda Ciência Política e da Sociologia Política. E umclássico porque a pergunta de fundo desse livronão cessa de nos interpelar: a democracia é, enfim,viável (cf. MICHELS, 1971, p. 18-19; REMOND,1971, p. 14; POUTHIER, 1993, p. 812)?

Esse grande problema pode ser desdobrado,teoricamente e empiricamente, em pelos menosoutros três: a) se o partido (qualquer partido)engendra, necessariamente, uma oligarquia, queforma política seria a mais adequada paraorganizar as diferentes correntes de opinião, visõesde mundo e interesses sociais nas sociedadesmodernas? b) Se nesse contexto institucionalimpera a delegação do poder das massas aosburocratas da organização, como viabilizar, de umlado, a verdadeira representação e a participaçãoefetiva e, de outro, o controle social sobre oscomissários? c) Qual a capacidade real das massasagirem politicamente de maneira consciente e

1 O próprio pensamento de Gramsci, assim como o deLênin, sobre os problemas da organização revolucionáriasofreu, entre 1919 e 1935, transformações importantes.Enquanto os artigos publicados nos anos que precederama fundação do Partido Comunista Italiano (PCI) (1921)no Ordive Nuovo e no Avanti expressam soluções para asquestões organizatórias em termos quase idênticos ao“espontaneísmo” luxemburguista, os Cadernos do Cárcere(1929-1935) contêm uma visão completamente nova dapolítica revolucionária e do Partido (cf. LÖWY, 1962, p.151-152).

responsável (“racionalmente”, nós diríamos) sema tutela de um líder, seja ele o partido ou o chefecarismático?

Essas três indagações constituíram boa parteda agenda dos estudos políticos ao longo do séculoXX e preocuparam, com ênfases diferentes,elitistas, pluralistas, radicais, liberais,institucionalistas e marxistas. Entre esses últimos,vale lembrar aqui a discussão de um grandepensador como Antonio Gramsci, cuja teorizaçãosobre o partido revolucionário inspirou mais deuma geração de militantes socialistas1.

O problema do qual Gramsci parte é: comoconstruir um mecanismo político mediante o qualuma classe, ou uma aliança de classes, podeconquistar o poder de Estado e impor, pela via darevolução social, uma nova hegemonia? Essedesafio teórico e político, complexo por simesmo, desdobra-se em outros. Em termosgerais, trata-se do “problema dos modos e formas[políticos] que possibilitarão organizar toda amassa de trabalhadores italianos numa hierarquiaque organicamente culmina no partido”. Mas nãoa qualquer preço, e sim sob certas condiçõeslimitantes. Construir o socialismo implica apostarna “construção de um aparelho estatal que,internamente, funcione de maneira democrática,isto é, garanta liberdade a todas as tendênciasanticapitalistas, [isto é, garanta] a possibilidadede [todas essas tendências políticas] se tornarempartidos do governo proletário”. Por outro lado,o socialismo exige que esse Estado-partido “sejaexternamente uma máquina implacável queesmague as organizações do poder industrial epolítico do capitalismo” (Antonio Gramsci apudMILIBAND, 1979, p. 139; sem grifos no original).

Em uma breve seção dos Quaderni (“RobertoMichels e os partidos políticos”), o comunistaitaliano comenta alguns escritos esparsos de

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Michels e as questões colocadas por esse últimoaos políticos socialistas2.

Gramsci insiste que é preciso diferenciar ascoisas. Um problema é a democracia interna (ou,precisamente, a falta de democracia interna) daorganização partidária, fenômeno ressaltado porMichels; outro, bem diferente, é o objetivoestratégico da organização política comunista, istoé, o Estado verdadeiramente democrático. E que“para conquistar a democracia no Estado podeser necessário (ou melhor, quase sempre énecessário) um partido fortemente centralizado”(GRAMSCI, 1984, p. 108), como, aliás, ensinou-nos Lênin3. Só que, assim pensada, essa fórmulade Gramsci apenas adia o problema – em nomeda eficácia política dos meios e da justeza dosfins pretendidos – sem absolutamente resolvê-lo.A dificuldade aqui, como se percebe, é evidente:como garantir que essa organização “fortementecentralizada”, isto é, hierárquica, desigual edespótica, vá perseguir um fim – a igualdade –que é o exato oposto da sua natureza? Ou ainda:como exatamente uma vez no poder, essaorganização antidemocrática poderá serdemocraticamente controlada?

A outra crítica de Gramsci é, surpreendente-mente, mais incongruente ainda. Ele argumentacontra Michels que a diferença entre a democraciae a oligarquia (supõe-se, pelo contexto, que eleesteja falando de relações democráticas e relações

2 “Ao todo, Gramsci escreveu 14 parágrafos com algumareferência a Michels”. São eles: Quaderni 2, § 45, § 75 e §93; Q 3, § 59; Q 6, § 97; Q 7, § 12 e § 64; Q 8, § 148; Q 9,§ 142; Q 11, § 25, § 26 e § 66; Q 13, § 29 e Q 13, § 33.“Dentre estes parágrafos existem sete nos quais háreferência à obra de Michels, sendo que alguns sóapresentam uma referência ocasional e em outros já há umdebate da obra do autor. E os outros sete parágrafos sãoaqueles nos quais Gramsci só fez referência a algumconceito de Michels – na sua maior parte, ao conceito dechefe carismático. Entre estes textos, há apenas um textoA, oito textos B e cinco textos C. A principal nota críticade Gramsci a Michels, é um texto B, do Caderno 2 (§ 75),escrito entre 1929 e maio de 1930” (FERNANDES, 2011,p. 17). Como meu comentário não tem uma funçãoexegética, utilizo a edição temática dos Quaderni,especificamente o volume publicado no Brasil comoMaquiavel, a política e o Estado moderno (GRAMSCI,1984, p. 103-111).3 Tomo como referência para essa ideia os trabalhosbQue fazer? (1902) e Um passo à frente, dois passos atrás(1904).

oligárquicas no interior do partido socialista)resulta, no essencial, da “diferença de classe[existente] entre chefes e seguidores”. Exemploonde isso ocorreria? Naqueles mesmos sindicatose partidos social-democratas analisados porMichels. Ora, se hipoteticamente não há, oumelhor, quando não houver, no futuro, diferençade classe entre dirigentes e dirigidos, as relaçõesordinárias no partido, prevê Gramsci, seconverterão apenas em questões administrativas,já que decorrerão tão só das exigências práticas eda divisão do trabalho interno da organização, istoé, elas serão um problema “puramente técnico”.E como as massas, sem qualquer treinamentotécnico, poderão participar das tarefas dirigentesdo partido agora socialmente nivelado? Aincapacidade das massas para a direção poderáser resolvida graças à educação prática e aoaprendizado adquirido graças à “participação ativados seguidores na vida intelectual (discussões) eorganizativa do partido” (idem, p. 109). Todoproblema aqui é saber como e por que a igualdadesocial, numa esfera da vida, transformará, ipsofacto, as questões organizativas, que pertencema outro domínio, ao domínio interno da vida dospartidos, em questões meramente administrativas,abolindo o conflito e a separação política entre asordens que constituem uma organização. Emsegundo lugar, seria preciso que Gramsciexplicasse qual seria e de onde viria o interessedas cúpulas partidárias “proletárias” (mas aindaassim cúpulas) em promover a participação ativados filiados nas dicussões políticas e estratégicasda organização. Qual seria a motivação dasminorias dos funcionários do partido não pararepartir tarefas administrativas, mas paracompartilhar voluntariamente o poder?

A terceira dificuldade enfrentada por Gramsciquando comenta as análises de Michels, repletasde “palavras vazias e imprecisas”, diz respeito aodesenvolvimento, nos “partidos avançados”, ouseja, nos partidos socialistas burocraticamenteestruturados, de uma camada de intelectuais queconcentram e monopolizam muitas funçõespolíticas. A saída para isso seria criar, nesses novospartidos, uma grande camada intermediária entreos chefes políticos e as massas “capaz de servirde equilíbrio para impedir os chefes de sedesviarem” da linha correta “nos momentos decrises radicais e de elevar sempre mais [o nível eo poder da] massa” (ibidem). Novamente, essaspalavras não refutam, por si mesmas, as ideias

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APRESENTAÇÃO

“bastante confusas e esquemáticas” (ibidem) deMichels sobre os partidos, exatamente porque nãomostram como uma organização mais complexaainda pode produzir um resultado oposto àqueleminuciosamente descrito na obra pioneira do seucontemporâneo. Tudo somado, as respostas queGramsci ensaia contra as teses de Michelsparecem ser, a bem dizer, ora uma reafirmaçãode raciocínios baseados em desejos, princípios econjecturas, ora uma aposta miraculosa nointeresse da organização e dos seus comandantesem sabotar voluntariamente o seu próprio poder.

III. O SEMINÁRIO “O CENTENÁRIO DE SO-CIOLOGIA DOS PARTIDOS POLÍTICOS,DE ROBERT MICHELS”

Para refletir sobre a contribuição e o estatutoteórico de Sociologia dos partidos políticos4, foirealizado no segundo semestre de 2011, noPrograma de Pós-Graduação em Ciência Políticada Universidade Federal de São Carlos, o seminário“O centenário de Sociologia dos partidospolíticos, de Robert Michels”5.

4 Esse é o título do livro em português adotado nestedossiê por razões de uniformidade. A tradução disponívelno Brasil foi feita pela editora da Universidade de Brasília(UnB) em 1982 a partir da edição francesa. A primeiraversão do livro em francês apareceu em 1914 e essatradução foi feita tendo como base a primeira edição italianado texto. Falta aí toda uma parte e a totalidade das notas(a tradução estadunidense da Free Press, de 1962, tambémtem como base a edição francesa abreviada). Em 1971 aeditora Flammarion reeditou o livro conservando o títulode 1914 – Les Partis politiques. Essai sur les tendancesoligarchiques des démocraties – que é um tanto diferentedo original alemão: Zur Soziologie des Parteiwesens inder modernen Demokratie (Untersuchungen über dieoligarchischen Tendenzen des Gruppenlebens) [Sobre asociologia do sistema de partidos na democracia moderna(estudos das tendências oligárquicas de vida em grupo)].Uma segunda edição alemã aumentada apareceu em 1925e este é o texto estabelecido. Em 1966 foi publicada umatradução italiana a partir dessa última edição: La sociologiadel partito politico nella democrazia moderna (Bologna:Il Mulino) com um importante prefácio de Juan Linz. Asinformações bibliográficas foram obtidas a partir dePouthier (1993, p. 814-815).

5 Esse seminário ocorreu no dia 28 de agosto de 2011 econtou com a participação dos colegas André Marenco(Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs)),Rachel Meneguello (Universidade Estadual de Campinas(Unicamp)), Valeriano Costa (Unicamp), MárioGrynszpan (Fundação Getúlio Vargas (FGV)), CláudioCouto (Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP)),Pedro Ribeiro (Universidade Federal de São Carlos

(UFSCar)) e Maria do Socorro Braga (Ufscar). Para arealização desse evento foi fundamental o financiamentoda Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal de NívelSuperior (Capes). Para a divulgação contamos ainda como apoio da Associação Brasileira de Ciência Política(ABCP), do Departamento de Ciência Política daUniversidade de São Paulo (USP), do Núcleo de Pesquisade Políticas Públicas (Nupps) da USP e da Revista deSociologia Política da Universidade Federal do Paraná(UFPR).

Nessa ocasião foi lançado o desafio depublicarmos os trabalhos aí apresentados paramarcar a data, o qual foi muito bem aceito peloseditores da Revista de Sociologia Política, já quea Sociologia Política de Michels tem tudo a vercom o perfil e o foco do periódico. Comoresultado desse esforço, resultou esse dossiê queconta com valiosas contribuições que orapassamos a apresentar, destacando e sumarizandoos principais aspectos analisados nos textos.

O artigo de Mario Grynszpan procura mostrarcomo a história da ciência política nos EstadosUnidos pode ser compreendida a partir da históriada recepção das edições, traduções e comentárioscríticos do principal livro de Robert Michels. Apartir de uma competente e acurada SociologiaHistórica da circulação e da recepção deSociologia dos partidos políticos, Grynszpanrevela quando e como o pessimismo sociológicode Michels converteu-se em realismo científico ecomo esse realismo pôde construir uma base parao pluralismo democrático.

Pedro Floriano Ribeiro apresenta minuciosaanálise a respeito das principais concepções einfluências teóricas e políticas de Michels naconstrução de sua obra. Busca também identificaras mais relevantes mudanças entre a primeiraedição, de 1911, e a segunda, de 1925. Ademais,realiza interessante análise genética desse estudopioneiro, contextualizando-o e indicando algunsfatos biográficos prévios à sua publicação e nointervalo entre as duas edições.

Já Cláudio Couto tem como principal focodiscutir a utilidade científica do conceito de“oligarquia” originalmente criado por Michels,buscando uma definição ao mesmo tempo maisprecisa e mais operacionalizável desse termo. Paraisso Couto retoma a contribuição michelianafundamental, partindo de um conceitoessencialmente descritivo e não normativo deoligarquia, aproveita trabalhos posteriores sobre

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o assunto e elabora um modelo institucional deanálise que permite examinar processos deoligarquização de organizações sociais e políticas.

Para André Marenco e Maria Izabel Noll apredição de Robert Michels sobre a inevitabilidadeda conversão de todas as organizações partidáriasem oligarquias estaria temporalmente delimitadaa um contexto específico, marcado pela expansãodo sufrágio universal e pela integração nacompetição eleitoral de candidatos populares,combinado a reformas eleitorais (em especial, asubstituição do voto majoritário pelarepresentação proporcional). A validade da leiférrea micheliana, portanto, estaria circunscritaapenas ao período de predomínio dos partidos demassa, e seria estruturada em um tripé formadopelo a) ativismo voluntário, b) finanças coletivase c) ideologias partidárias como vantagenscomparativas na competição eleitoral e suadisponibilidade oligopólica por dirigentespartidários.

Já Ingrid Sarti revisita o tema da alternativaentre participação e representação e como eleimpactou a história e a doutrina dos partidossocialistas. No contexto atual, em que o anúncioda crise e do esgotamento da forma “partido” écada vez mais insistente, como ler Michels? E,principalmente, como ler Michels depois que, noclima ideológico da Guerra Fria, sua obra foiassimilada pela crítica liberal como um diagnósticomais do que fiel do partido único da UniãoSoviética? O artigo de Sarti faz um importante

Adriano Codato ([email protected]) é Doutor em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas(Unicamp), Professor de Ciência Política na Universidade Federal do Paraná (UFPR) e coordenador doObservatório de elites políticas e sociais do Brasil (http://observatory-elites.org).

Maria do Socorro Sousa Braga ([email protected]) é Doutora em Ciência Política pelaUniversidade de São Paulo (USP) e professora da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar).

FERNANDES, R. C. F. 2011. Oligarquia etransformismo: a crítica de Gramsci a Michels.Campinas. Dissertação (Mestrado em CiênciaPolítica). Universidade Estadual de Campinas.

GRAMSCI, A. 1984. Roberto Michels e ospartidos políticos. In: _____. Maquiavel, a

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

política e o Estado moderno. Rio de Janeiro:Civilização Brasileira.

LÖWY, M. 1962. Consciência de classe e partidorevolucionário. Revista Brasiliense, São Paulo,n. 41, maio-jun.

balanço da literatura que busca alternativas ao viéshoje dominante contra a forma partido eantissocialista.

Por fim, Maria do Socorro Sousa Braga buscaresgatar os pressupostos da tese de Michels arespeito da dinâmica organizacional dos partidospolíticos marcada por duas tendênciassupostamente antagônicas: a propensão àconcentração de poderes nas mãos de umaoligarquia, de um lado, e, de outro, a aspiração departicipação pelos demais integrantes nas decisõesintrapartidárias. Além disso, discute como a obrade Michels influenciou estudiosos do fenômenopartidário vinculados à perspectiva organizacionalcontemporânea.

Em síntese, cem anos depois, a tese da “lei deferro da oligarquia”, cunhada por Michels, segue,conforme os artigos arrolados neste dossiê, comoreferência controversa, porém fundamental nãosó nos debates sobre a democracia interna dospartidos políticos, mas também nas discussõessobre a possibilidade alcançarmos umademocracia substantiva em outras organizações(sindicatos, associações de classe, grêmios deestudantes, clubes políticos) e na gestão dospróprios Estados nacionais contemporâneos. Areflexão plural e crítica sobre essa obra clássicae duradoura desenvolvida durante o seminário deSão Carlos, seguida por sua publicação nessedossiê, com certeza é uma excelente mostra dapersistência das questões que esse livro de 1911levanta ainda hoje entre os cientistas políticos.

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APRESENTAÇÃO

MICHELS, R. 1971. Les Partis politiques. Essaisur les tendances oligarchiques desdémocraties. Paris: Flammarion.

MILIBAND, R. 1979. Marxismo e política. Riode Janeiro: Zahar.

POUTHIER, J.-L. 1993. Michels, Roberto, 1876-1936. In: CHATELET, F. ; DUHAMEL, O. &PISER, E. (orgs.). Dicionário de obraspolíticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

RÉMOND, R. 1971. Préface. In: MICHELS, R.1971. Les Partis politiques. Essai sur lestendances oligarchiques des démocraties.Paris: Flammarion.