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ESTUDO ACERCA DO JUSTO TÍTULO NA USUCAPIÃO
ORDINÁRIA, COM EXAME DA EVOLUÇÃO DOS
INSTITUTOS DA POSSE, DA PROPRIEDADE E DA
USUCAPIÃO
ROGÉRIO RIBEIRO DOMINGUES
Professor de Direito Civil na Universidade Candido Mendes.
Advogado.
A usucapião ordinária requer, além da posse ad usucapionem e do
decurso do tempo, o justo título e a boa fé. A conceituação do justo título, no entanto,
é objeto de controvérsias, tanto doutrinárias quando jurisprudenciais, havendo
expressivas divergências quanto ao seu real significado.
Título, em verdade, “é o fundamento de determinado direito”, como
afirma José Carlos de Moraes Salles1. ―É o ato ou fato de que resulta um direito ou
uma obrigação‖. Coelho da Rocha2, em suas Instituições de Direito Civil Portuguez,
cuja primeira edição é de 1843, esclarece que “A palavra título, na linguagem vulgar,
e muitas vezes na forense, significa o documento, que serve para provar os direitos,
ou obrigações. Porém no sentido jurídico dizemos “título”, ou, como se diz em
Direito Romano, a causa dos direitos; como o contracto, a successão, a filiação, a
minoridare, etc.”, no que é acompanhado por Ribas3, que, em 1883, afirma que “A
palavra título na linguagem vulgar e por vezes na forense, significa o documento com
que se provão, ou se pretende provar, os direitos e obrigações. Mas, na technologia
jurídica, título é o fundamento da acquisição dos direitos, ou a causa dos direitos.
Assim, título da posse é a causa donde ella provém”. Amaral Meira entende
igualmente quando diz “Por justo título, entende-se um acto translativo de direito.
1 JOSÉ CARLOS DE MORAES SALLES – Usucapião – 4ª edição - 1997, pág. 80.
2 COELHO DA ROCHA – Instituições de Direito Civil Portuguez – edição de 1907 – Tomo I - § 53 – pág. 33.
3 ANTONIO JOAQUIM RIBAS – Da Posse e das Ações Possessórias – capítulo III - § 1° - pág. 69.
2
Título é o facto que, considerado na ordem moral, produz o direito e a obrigação.
Título é a causa de possuir, como a successão, a compra e venda, etc. Vulgarmente
chama-se o instrumento escripto de título. É esse um modo metonymico de se
exprimir, em que não há rigor technico, tomando-se o signal pela cousa designada,
ou seja, o formal extrínseco pelo próprio título”4. Acrescenta ainda, ao comentar a
usucapião ordinária ―que o possuidor possua com justo título, isto é, que a sua posse
tenha origem em uma causa ou facto que revista forma de direito, como, por exemplo,
a acquisição pela compra ou sucessão‖5. Com a mesma orientação Darcy Bessone
6
diz que ―a palavra título não é empregada no sentido de instrumento ou documento.
Comporta, em Direito, mais de uma acepção. Ela é usada no sentido de instrumento
ou documento, mas, no caso, não é esse o sentido em que a lei a emprega. Título,
aqui, é o fato gerador do direito, o fato do qual a posse deriva. A justiça do título diz
respeito à sua aptidão, em princípio, para constituir ou transmitir o direito‖.
Desse modo, título justo, nos termos do artigo 1242, do Código
Civil, há de ser o ato ou fato jurídico que, em tese, transfira a propriedade, mas que,
por força de um vício, não acarreta a transferência. Orlando Gomes7 diz que ―três são
as causas que impedem sua eficácia: 1°, a aquisição a “non domino”, isto é, o fato de
não ser o transmitente dono da coisa; 2°, a aquisição “a domino” na qual o
transmitente não goza do direito de dispor, ou transfere por ato nulo de direito; 3°, o
erro no modo de aquisição.‖ A essas três hipóteses podemos acrescentar a do herdeiro
aparente, que, supondo-se herdeiro, arrecada, com boa fé, a herança. Aliás, a boa fé
há de estar sempre presente, inclusive nas causas enumeradas por Orlando Gomes,
sem o que o título não será justo.
Portanto, justo título, é qualquer ato jurídico, ou mesmo fato
jurídico, como ocorre na sucessão aparente, que, em tese, transfira a propriedade, não
4 LEOPOLDINO AMARAL MEIRA – Estudo da Posse e das Ações Possessórias – edição de 1928 – capítulo III - § 3° - n° 85 –
pág. 130.
5LEOPOLDINO AMARAL MEIRA – obra citada – capítulo VII - § 2° - n° 126 - pág. 158.
6 DARCY BESSONE – Direitos Reais – edição de 1988 – pág. 272.
7 ORLANDO GOMES – Direitos Reais – 8ª edição – 1983 – pág. 152.
3
tendo atingido seu objetivo por força de algum vício, não sendo requisito para sua
configuração que seja registrado, sequer escrito, podendo ser verbal, como por
exemplo a compra e venda verbal, na qual o comprador tenha sido imitido na posse, a
qual, sem dúvida, decorre de um ato jurídico — a compra e venda — que, em tese, é
fundamento (título) para a aquisição da propriedade, mas que, no caso concreto, por
ser verbal, não é passível de registro, como é óbvio, embora, sem qualquer dúvida,
constitua justo fundamento para a posse, com a convicção de que não há obrigação de
restituir a coisa possuída, ou seja, com animus domini. Até mesmo o preço não
precisa estar quitado, como pode ocorrer no compromisso de compra e venda de um
imóvel em que o compromissário comprador tenha pago parte do preço, obrigando-se
a pagar o restante no momento da celebração do contrato público de compra e venda,
que não tenha se efetivado independentemente de culpa sua. Mesmo que haja culpa, é
preciso verificar o momento de sua ocorrência — que caracteriza a cessação da boa fé
—, pois se for após o decurso do prazo da usucapião, não afastaria o justo título, já
consumado, não podendo, no entanto, haver culpa do adquirente antes do
perfazimento do prazo decenal, vez que a boa fé no nosso direito, assim como no
direito alemão, deve existir em todo o período da posse para que haja usucapião
ordinária, ao contrário do direito romano, ou mesmo do direito francês e do direito
italiano, onde prevalece o princípio mala fides superveniens non nocet. Nesse caso a
usucapião ordinária não se completaria por falta de boa fé e de justo título, que se
esvairia no exato instante em que cessasse a boa fé.
Entretanto, esse entendimento não é acolhido por toda a doutrina,
sendo forçoso reconhecer que prevalece nos tribunais tese oposta em que se exige até
mesmo o registro para caracterização do justo título. Clovis Bevilaqua sustenta em
seus comentários ao artigo 551, do Código Civil de 1916, que o título deve ser justo
segundo as formas do direito, entre as quais está a transcrição. No mesmo sentido
aponta Serpa Lopes quando diz que ―em se tratando de posse de coisa imóvel, justo
título é o que se encontra transcrito no Registro de Imóveis, condição “sine qua non”
da ação reivindicatória8”, embora reconheça que ―tal exigência da transcrição só é
exigível para os títulos negociáveis em que a transcrição no Registro de Imóveis
8 MANUEL MARIA DE SERPA LOPES – Curso de Direito Civil - volume 6 – 2ª edição – 1962 – pág. 142.
4
opera com valor constitutivo. Um título hereditário, por exemplo, já não pode estar
submetido rigorosamente a esta regra, porquanto o efeito de sua transcrição é
meramente secundário a despeito de obrigatório‖9. Washington de Barros Monteiro
10
diz que a lei exige que o título seja justo, isto é, se ache formalizado e devidamente
transcrito, sendo acompanhado por Carvalho Santos, ao comentar o artigo 551, do
Código Civil de 1916. Lenine Nequete11
, enumerando os requisitos do justo título,
lembra que os atos sujeitos à transcrição “só revestem a característica de justos
títulos depois de cumprida essa formalidade”.
Opondo-se à necessidade do registro do título para que seja justo,
Pontes de Miranda12
afirma que é patente a superfetação da ação de usucapião, se há
boa fé e houve transcrição do título, pois seria usucapir de si mesmo, acrescentando
que a pretensão de ser dono descombina com o título transcrito, por ser a transcrição
também um modo de aquisição da propriedade, não se podendo adquirir o já
adquirido. Apesar desse entendimento, Pontes, equivocadamente, lembra que a falta
de registro impede a usucapião ordinária contra alguém que não seja a própria pessoa
que transferiu o domínio por escrito particular13
, o que importa em exigir o registro do
título, exceto se a pretensão se dirigir contra o transmitente.
A propósito da argumentação de Pontes de Miranda no sentido de
que se “houve transcrição do título, operou-se a transferência e, assim, patente é a
superfetação da ação de usucapião: seria usucapir de si mesmo,” Tupinambá Miguel
Castro do Nascimento14
afirma, na edição de 1984, de seu livro sobre usucapião, que
―Este argumento já nos convenceu em edições anteriores, mas, na verdade, é
9 MANUEL MARIA DE SERPA LOPES – obra citada – pág. 556.
10 WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO – Curso de Direito Civil – 3° volume – 33ª edição – 1997 – pág. 122.
11 LENINE NEQUETE – Da Prescrição Aquisitiva – 3ª edição – 1981 – Capitulo VI – 44 – págs. 211 e 212.
12 PONTES DE MIRANDA – Tratado de Direito Privado – Tomo XI – 3ª edição – 1971 – § 1197 – 4 – e - pág. 143;
13 PONTES DE MIRANDA – obra citada – § 1197 – 4 – e - pág. 145: Cumpre notar que se está a raciocinar com título que tem
eficácia em relação ao interessado que se apresenta contra a usucapião. Não se pode apresentar como título, para se adquirir, por
usucapião contra alguém, escrito particular que não tem efeito ―erga omnes‖.
14 TUPINAMBÁ MIGUEL CASTRO DO NASCIMENTO – Usucapião (comum e especial) – edição de 1984 – n° 11 – pág. 98.
5
sofismático. O título viciado, embora registrado, pode ser anulado e o registro
cancelado. A presunção que advém da transcrição é, sabidamente, “juris tantum” e,
comprovado o vício, torna-se ineficaz. Assim, usucapir com base num título viciado e
registrado não é usucapir coisa própria; é usucapir bem que, no futuro, poderia ser
reivindicado por outrem. Desta forma, o argumento do ilustre tratadista tenta
comprovar bem mais do que pode comprovar e, por isso, não tem a força que se lhe
deu.” É de se indagar, no entanto, estando o título de propriedade registrado em nome
do possuidor, embora viciado e passível de desconstituição, contra quem seria
proposta a ação de usucapião, mormente considerando que o possuidor, in casu,
estaria de boa fé e não saberia do vício de seu título. Com efeito, parece-nos que, se o
título viciado encontra-se registrado em nome do possuidor, estando este de boa fé, a
ação de usucapião só poderia ser proposta contra o proprietário, em cujo prejuízo foi
registrado o título viciado do possuidor, após ter sido desconstituído em ação por
aquele movida, após o decurso do prazo da usucapião breve. Isso porque, se o
proprietário desconstituir o título viciado antes do termo do referido prazo, a boa fé do
possuidor se esvairia e a futura ação de usucapião seria desprovida por falta de boa fé,
com a conseqüente injustiça do título. É que se o possuidor está de boa fé, que é
exigida em todo o tempo da posse, não sabendo do vicio de seu título, não há como se
cogitar da propositura de ação de usucapião. Se o legítimo proprietário propuser a
ação de desconstituição antes do término do prazo qüinqüenal previsto no § único, do
artigo 1242, do atual Código Civil, o possuidor não mais poderia alegar a boa fé
decorrente de seu título e não poderia usucapir. Todavia, se a mencionada ação de
desconstituição for proposta após o escoamento do prazo da usucapião ordinária com
título registrado, que atualmente é de cinco anos, e a desconstituição for declarada na
sentença que a acolher, poderá o possuidor então propor ação de usucapião contra o
proprietário, que, a esta altura, terá em seu nome registrado o domínio do imóvel em
questão. Essa ação de usucapião deverá ser provida, voltando a ser o imóvel
registrado em nome do possuidor, dessa vez por força da sentença que acolheu sua
pretensão na ação de usucapião, não mais pelo título, que foi desconstituído. Todavia,
apesar de refutar a argumentação de Pontes de Miranda, Tupinambá Miguel15
conclui
corretamente pela desnecessidade do registro, afirmando com acerto que “O
15 TUPINAMBÁ MIGUEL CASTRO DO NASCIMENTO – obra citada – n° 11 – pág. 100.
6
usucapião ordinário não visa, entretanto, regularizar o título, que se encontra com
vícios e irregularidades. O justo título é a base para constituição do direito real
através da posse prolongada e só isto. Constituído o “jus in re” pelo usucapião, o
título não mais interessa. O fato que gerou a transferência foi a posse que se protraiu
no tempo. Não há que se confundir o requisito para o usucapião de breve tempo — o
justo título com irregularidades — com a ratificação do título e sua regularidade, o
que não acontece no usucapião”.
A desnecessidade do registro é sustentada por diversos autores,
como Orlando Gomes16
, Caio Mário da Silva Pereira17
, José Carlos de Moraes
Salles18
e Valter Farid Antonio Junior19
, tendo este último, com muita propriedade,
esclarecido que ―a aferição da justiça do título independe do seu registro e se
consuma com a constatação de que seria, em abstrato, apto à transferência do direito
de propriedade, que só não ocorre em razão de vício desconhecido pelas partes. O
título, por si só, constitui o negócio jurídico capaz de explicar juridicamente a posse
exercida por seu titular (“justa causa possessionis”) e, consequentemente, o
imprescindível “animus domini”, de forma a tornar prescindível o registro para
demonstrar esses requisitos”, equivocando-se apenas ao exigir que o vício seja
desconhecido pelas partes, quando basta que seja desconhecido pelo adquirente, com
exceção do vício de forma, que pode até mesmo ser por ele conhecido, como será
demonstrado neste estudo. Benedito Silvério Ribeiro20
lembra que “exigir que o
título, para ser justo, deve estar registrado, além de ser válido, certo e real,
conduziria a já estar totalmente adquirido o domínio, o que seria cabível desde que
16 ORLANDO GOMES – obra citada – pág. 152.
17 CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA – Instituições de Direito Civil – volume IV – 12ª edição – 1997 – pág. 112.
18 JOSÉ CARLOS DE MORAES SALLES – obra citada – pág. 85: E o fazemos em consideração à circunstância de que a
exigência de transcrição ou registro do título acarretaria a quase impossibilidade da utilização prática da usucapião ordinário
previsto pelo art. 551 do Código Civil, com evidente desatenção ao espírito daquela norma, que é, exatamente, o de converter em
situação de direito situações de fato, no tocante à posse, já de longa data constituídas (dez anos entre presentes ou quinze entre
ausentes). Nem foi por outra razão que Pontes de Miranda afirmou. ―Se o título foi transcrito e houve boa-fé, se transferiu a
propriedade, - portanto, é absurdo exigir-se para o usucapião título justo transcrito e boa-fé‖.
19 VALTER FARID ANTONIO JUNIOR – Compromisso de Compra e Venda – 2009 – pág. 140;
20 BENEDITO SILVERIO RIBEIRO – Tratado de Usucapião – 6ª edição – 2008 – 2° Tomo – capítulo XXI – n° 200 – pág. 808;
7
obedecidas todas as formalidades legais intrínsicas ou extrínsicas, afastada, assim, a
possibilidade de promover usucapião ordinária”. Podemos dizer que afastada, assim,
também estaria qualquer espécie de usucapião, não só a ordinária. Lourenço Mário
Prunes21
, por sua vez, vai mais longe e pergunta: ―Para quê usucapião? Em síntese,
para concluir: entendemos que qualquer papel que traduza um negócio real e que
contenha todos os requisitos caracterizadores da transação, com preço pago, ou
mesmo sem preço (se o negócio não é oneroso como a doação), representa justo
título”. Marcel Planiol22
, em seu Traité Elementaire de Droit Civil, tratando desse
tema no direito francês, que, como o nosso, não exige no texto legal o registro, afirma
que não existe razão para acrescentar essa exigência.
Também Lafayette23
dispensa o registro apenas o exigindo para que
possa prevalecer contra hipotecas inscritas, constituídas no mesmo imóvel, em
consonância com o Decreto 3453, de 26/4/1865, único texto legal que menciona o
registro, vez que os defensores de sua necessidade não invocam texto de lei, mas sim
interpretações nascidas em textos doutrinários, que repetem outros textos, como
assinala Lourenço Mario Prunes24
.
Até mesmo no direito italiano, onde o artigo 1159, do Código Civil,
requer título registrado para a usucapião ordinária, Roberto de Ruggiero25
diz que o
título ou justa causa é ―o fato externo que exprime como a posse atual tenha surgido
sem lesão do possuidor anterior‖, alertando que ―não se deve, pois, confundir com o
21 LOURENÇO MÁRIO PRUNES – Da Usucapião de Imóveis – 1ª Parte – capítulo VIII - pág. 171.
22 MARCEL PLANIOL – obra citada – Tomo I – edição de 1913 - n° 2665 – pág. 834: 2665. Du titre non transcrit. – Le titre de
l’acquéreur peut ètre sujet à transcription. Si cette formalité a été omise, dans un cas oú elle était nécessaire, la prescription
courra-t-elle néanmoins au profit du possesseur? On l’admet en général. L’art. 2265 n’exige point la transcription, et il n’y a pas
de raison pour ajouter cette exigence à son texte: la formalité de la transcription a été établie dans l’intérèt des tiers qui
pourraient traiter avec l’aliénateur postérieurement à l’aliénation, pour les avertir qu’il na plus aucun droit sur l’immeuble: la
catégorie des personnes qui peuvent opposer à l’acquéreur le défaut de transcription de son titre est limitativement déterminée par
l’art. 3 de la loi du 23 mars 1855, et le tiers propriètaire n’y figure pas.
23 LAFAYETTE – Direitos das Coisas – edição de 1943 – Tomo I - § 68 – pág. 235.
24 LOURENÇO MÁRIO PRUNES – obra citada – capítulo VIII - pág. 171.
25 ROBERTO DE RUGGIERO – Direito Civil – 2° volume – 3ª edição – 1972 – capítulo XVII - § 78 - pág. 390.
8
ato material e tangível, o documento que atesta e comprova a relação e que, na
linguagem comum, se costuma chamar título; é circunstância completamente
estranha à sua noção a de, para os efeitos da prescrição decenal, se requerer um
título escrito, exigindo-se a transcrição do mesmo.”
O professor italiano justifica a exigência do registro na usucapião
ordinária para que seja dado a conhecer a todos que houve uma aquisição, o que não é
razoável, conforme os motivos já expostos, sendo que é evidentemente desnecessário
no que tange ao transmitente, quando for quem esteja sofrendo a usucapião, contra
quem deve valer o título, que não poderia desconhecê-lo, mesmo não sendo
registrado, como entende Pontes de Miranda, que, embora incorrendo em equívoco, já
que o registro é sempre desnecessário, só o exige para fazer valer o título contra
terceiros, não obstante a legislação brasileira, assim como a francesa, ao contrário da
italiana, não preveja o registro para configuração do justo título na usucapião
ordinária.
Maria Helena Diniz26
prescreve que o possuidor com justo título
seja portador de documento capaz de transferir o domínio, repetindo as palavras de
Silvio Rodrigues27
, confundindo o título, ou seja, o fundamento do direito, com
documento, quando efetivamente ele sequer precisa ser escrito, como leciona Orlando
Gomes28
ao dizer que a expressão justo título é condenada por ensejar confusão,
dando a impressão de que se trata de instrumento, isto é, de escrito, apesar de não ter
esse sentido, sendo sinônimo de ato jurídico. Conclui o mestre baiano no sentido de
que melhor seria chamá-lo de título hábil.
A propósito do justo título poder ser verbal — como efetivamente é
possível — é de se esclarecer que no nosso direito positivo, tanto no Código Civil de
2002, quanto no de 1916, só é permitida a prova exclusivamente testemunhal de ato
traslativo de direito real sobre imóveis abaixo de determinada cifra, muito pequena
26 MARIA HELENA DINIZ – Curso de Direito Civil n° 4 – 22ª edição – 2007 – pág. 163.
27 SILVIO RODRIGUES – Direito Civil - volume 5 – 24ª edição – 1997 – pág. 105.
28 ORLANDO GOMES – obra citada – pág. 151.
9
com relação a imóveis, tornando obrigatória a prova através ao menos de um papel
onde seja individualizada a coisa negociada, bem como o preço, se houver, na
hipótese de ser negócio oneroso, servindo para tanto uma carta, um bilhete, um
telegrama, um e-mail, onde se possa comprovar a existência do negócio, se se tratar
de imóvel cujo valor extrapole o limite legal, o que praticamente ocorre quase sempre.
Mas nem por isso se pode admitir a confusão entre título, que é o fundamento do
direito, ou da obrigação, com documento escrito. Por oportuno, o enunciado de
número 86, das Jornadas de Direito Civil, reconhece que a expressão justo título
―abrange todo e qualquer ato jurídico hábil, em tese, a transferir a propriedade,
independentemente de registro” o que, a contrario sensu, não exclui a compra e
venda verbal, não obstante a dificuldade da prova. O enunciado de número 30229
, por
seu turno, sinaliza na mesma direção, embora o de número 30330
não possa se referir à
posse ad usucapionem, mas, talvez, à uma suposta boa fé com relação à indenização
de benfeitorias e de acessões, à percepção de frutos e ao direito de retenção, já que nas
aquisições derivadas da posse, como consta do enunciado, só se pode cogitar de posse
direta, onde, com exceção do compromisso de compra e venda, como será
demonstrado, não há animus domini, nem posse ad usucapionem, tampouco justo
título e, consequentemente, boa fé.
Quanto à questão da nulidade do título equivocam-se aqueles que,
como Pontes de Miranda31
, entendem que “se é nulo o título, não é justo”. No
mesmo diapasão Orlando Gomes32
, para quem ―se o ato é nulo de pleno direito, a
aquisição só se verifica, em princípio, pela usucapião extraordinária‖. Todavia, o
renomado mestre, que admite título verbal, como já dito, bem como exemplifica o
erro no modo de aquisição com a aquisição por instrumento particular de bem cuja
29 ENUNCIADO 302 - Art. 1.200 e 1.214. Pode ser considerado justo título para a posse de boa-fé o ato jurídico capaz de
transmitir a posse ―ad usucapionem‖, observado o disposto no art. 113 do Código Civil.
30 ENUNCIADO 303 - Art. 1.201. Considera-se justo título para presunção relativa da boa-fé do possuidor o justo motivo que
lhe autoriza a aquisição derivada da posse, esteja ou não materializado em instrumento público ou particular. Compreensão na
perspectiva da função social da posse.
31 PONTES DE MIRANDA – obra citada – § 1197 – 4 – a - pág. 140.
32 ORLANDO GOMES – obra citada – pág. 152.
10
transmissão requer escritura pública, a despeito do defeito de forma importar em
nulidade no que tange à transferência de direito real, equilibra entendimentos tão
diversos ao concluir que é ―certo que a ninguém é lícito ignorar a lei, mas o erro de
direito, como o erro de fato, devem ser considerados em pé de igualdade, porque,
afinal, se convertem numa questão de boa-fé”.
Arnaldo Rizzardo33
, que define o justo título como ato jurídico
escrito, público ou particular, externamente apto para transferir o domínio, também
entende que se for eivado de nulidade absoluta não é justo o título, se contradizendo
quando afirma ser justo título ―qualquer documento que retrate uma transação efetiva
e completa”, pois o documento particular é formalmente nulo para transferir
propriedade de coisa imóvel, fora os casos particulares em que a lei o autoriza
excepcionalmente, e deveria, na linha de raciocínio do autor, não ser considerado
como justo título.
O contrato particular de compra e venda de imóvel, quando a lei
exige escritura pública, efetivamente constitui justo título, correspondendo nos
primórdios do direito romano à venda de fundos de terra pela traditio, quando eram
exigidas outras formas (mancipatio ou in iure cessio) para que tivesse eficácia, sendo
a própria origem do instituto da usucapião, como será demonstrado neste estudo,
constituindo evidente exceção à regra de que “ninguém se presume ignorar a lei‖,
lembrada por Lafayette34
quando aduz que “o erro de direito nunca se pode servir de
fundamento da boa fé”, que, embora possa ser admitida como regra geral, há de
comportar a exceção aqui aludida, pois, assim como em Roma não se poderia admitir
o desconhecimento de que a traditio não transferia o domínio de fundos de terra, não
se pode conceber que no direito brasileiro não se saiba que o contrato particular, fora
as exceções legais, não é passível de registro, que é a forma de aquisição derivada de
imóveis inter vivos no nosso ordenamento positivo. A solução é, como preconiza
Orlando Gomes, a equiparação desse erro de direito ao erro de fato, por ser questão de
boa fé.
33 ARNALDO RIZZARDO – Direito das Coisas – 2ª edição – 2006 – págs. 277 e 278.
34 LAFAYETTE – obra citada – Tomo I - § 69 - pág. 238.
11
Refutando esse entendimento, Lenine Nequete que, como já visto,
exige o registro para configuração do justo título, sustenta que “para ser justo o título
precisa ser válido, isto é, não eivado de nenhuma nulidade absoluta”35
, lembrando
que ”não é justo o título que não traz a assinatura dos vendedores e do
comprador‖36
, conforme jurisprudência que assinala. Entretanto essa situação, ou
seja, a falta de assinaturas das partes no contrato de compra e venda, importa na sua
total inexistência, hipótese diversa, por exemplo, daquela em que alguém, fazendo-se
passar pelo proprietário, ludibriando o comprador, supostamente vende um imóvel,
estando o adquirente de boa-fé, o que, embora se trate de ato nulo, importa em justo
título. A esse respeito Lourenço Mário Prunes37
lembra que se, no exemplo dado, a
escritura de venda for registrada, o que é perfeitamente possível de ocorrer, a doutrina
e jurisprudência dominantes admitiriam a existência do justo título, ao passo que se o
alienante efetivamente for dono de um imóvel e vier a vendê-lo, tendo o accipiens
pago o preço, do qual tem recibo ou outra prova do pagamento, bem como tendo
tomado posse, sendo as partes capazes, mas sem terem solenizado o negócio, o
entendimento majoritário seria no sentido de não existir o justo título, o que, a nosso
ver, deixa patente o erro desse posicionamento, bem como colide com a ratio do
instituto da usucapião, concebido em Roma exatamente para essa hipótese.
35 LENINE NEQUETE – obra citada – pag. 214.
36 LENINE NEQUETE – obra citada – nota 26 – pág. 215.
37 LOURENÇO MARIO PRUNES – obra citada – págs. 170 e 171. ―Data venia‖, não encontramos na lei tal exigência; damos à
expressão ―justo título‖ o sentido comum, vulgar, de papel conforme à razão, à equidade, à justiça. Senão vejamos: 1° - Através
de contrato de compra e venda. A vende a B um imóvel, cumprindo todas as formalidades legais, nada se podendo alegar contra a
capacidade das partes; foi pago o preço, entregue a posse, lavrou-se a escritura perante o oficial competente e depois foi
transcrito o titulo; mas afinal verificou-se que A não era dono do imóvel, B comprara a ―non domino‖. Para a corrente rigorosa
este título é justo. Muito justo, mas o dono não era dono, vendera o que não era seu. Via de regra, em tais casos, o vendedor está
de má fé. Justo título porque aí até o ilícito está sacramentado com a transcrição. 2° - Trataram C e D a compra e venda de uma
casa; acertaram todas as minúcias e condições (―res‖, ―prectium‖ e ―consensus‖); D pagou o preço convencionado e C forneceu-
lhe um recibo com todos os requisitos do negócio; C e D são plenamente capazes e o primeiro é realmente o dono da casa; D
tomou posse, mas nunca foi solenizada a transação, não houve escritura e, portanto, também não transcrição; D, contudo,
manteve-se mansa e pacificamente na posse do imóvel durante mais de dez anos. Neste caso, para a jurisprudência dominante, o
título não é justo, não é mesmo coisa alguma. Para nós, vale muito mais do que aquele outro título transcrito, emanado de pessoa
que não era dona e que provavelmente sabia que não era dona. Dir-se-á que nossa interpretação se atrita não com uma, mas com
diversas correntes jurisprudenciais. Mas é uma interpretação pelo menos justa.
12
Lafayette38
, por sua vez, reproduzindo o raciocínio e o equívoco de
Coelho da Rocha39
, confunde boa fé e justo título quando afirma que “a boa fé pode
existir sem o justo título, como se o possuidor está na crença de haver comprado a
coisa e na realidade não a comprou; e vice-versa, pode se dar justo título sem boa fé,
como se o comprador soube que a coisa comprada não pertencia ao vendedor”. Ora,
se o comprador soube que a coisa comprada não pertencia ao vendedor não há boa-fé,
nem justo título. Quanto ao fato de existir boa fé sem justo título, só é possível
quando este é putativo. Não há hipótese do possuidor ter boa-fé sem se acreditar dono,
lastreado num título, que, se não houver, deve decorrer da crença na sua existência.
Certo está Charles Mayns40
ao afirmar que “o justo título e a boa-fé são intimamente
ligados; o título é o ato exterior que justifica a posse e motiva a boa fé‖, no que é
contestado por Lafayette sem melhor razão.
Incorrendo no mesmo equívoco de Lafayette e de Coelho da Rocha,
Arnoldo Wald41
entende que pode haver justo título sem boa fé, quando se adquire um
bem imóvel a non domino por escritura pública que venha a ser registrada, sabendo o
comprador da ilegitimidade, concluindo que ―é assim possível comprovar má-fé, não
obstante ser justo o título pois este apenas faz presumir “juris tantum” a boa fé do
possuidor‖. Como já dito, o título, no exemplo dado, é aparentemente justo, não o
sendo na realidade, vez que, como ensina Mayns, o justo título e a boa fé são
visceralmente unidos, sendo aquele a exterioridade desta, sem a qual é apenas título,
porém injusto.
A possibilidade de o compromisso de compra e venda constituir
justo título é contestada por José Carlos Moreira Alves, notável magistrado e jurista,
profundo conhecedor do instituto da posse, como transparece de suas obras,
38 LAFAYETTE – obra citada – Tomo I - § 69 - pág. 239 – nota 94.
39 COELHO DA ROCHA – obra citada - Tomo 2, § 457 – pág. 46. Porém póde acontecer que o possuidor por titulo justo seja,
de má fé, v.g., se sabia que a cousa não era d’aquelle que lh’a deu: e vice versa póde dar-se boa fé no possuidor injusto; como no
que errou defacto, v.g., comprando a quem não era senhor.
40 CHARLES MAYNS – Cours de Droit Romain –1891 - Tomo I – § 113 – pág. 754.
41 ARNOLD WALD – Direito das Coisas - 10ª edição – 1995 – pág. 68.
13
especialmente sobre sua evolução histórica, como se vê do acórdão do julgamento do
recurso extraordinário n° 9179342
em que foi relator, incorrendo em equívoco
insustentável. No referido aresto o festejado jurista em seu voto entende que “Têm,
porém, razão os recorrentes quando alegam que o acórdão, ao reconhecer a
existência de usucapião em favor dos recorridos como possuidores em razão de
compromisso de compra e venda, negou vigência ao artigo 550 do Código Civil que
estabelece, como um dos requisitos do usucapião, a posse própria (“possuir como
seu”). Com efeito, o promitente-comprador é possuidor direto, e, portanto,
reconhece que sua posse se subordina à posse indireta do promitente-vendedor, não
possuindo o imóvel como se fosse proprietário dele (posse própria). Mas, tão-
somente, em decorrência de um contrato celebrado com o proprietário, que tem sobre
a coisa a posse indireta, esta sim posse própria (continua a possuir a coisa como
sua). No caso, o acórdão recorrido reconheceu usucapião em favor dos
possuidores diretos contra os possuidores indiretos ― esse fato é certo ―, ―
negando, pois, vigência ao citado artigo 550 do Código Civil, que exige a posse
própria, que é incompatível com a posse direta.”
Contudo, esse entendimento não se sustenta, por isto que o artigo
550, do Código Civil de 1916, assim como o correspondente artigo 1.238, do Código
Civil de 2002, não dispõe que a posse ad usucapionem não possa ser direta, mas sim
que seja exercida como sua, isto é, com animus domini, ou que seja própria, como
preferem dizer alguns doutrinadores.
Desse modo, a princípio, a posse ad usucapionem não pode ser
direta, quando ela é exercida sem animus domini, em nome de outra pessoa, ou seja,
alieno nomini, restando a posse indireta com aquele em cujo nome o possuidor direto
a exerce, que dela não se demite. Mesmo exercida por direito próprio, a posse direta é,
via de regra, desprovida de animus domini. Pode-se, pois, estabelecer regra geral no
sentido de que posse direta não propicia usucapião por falta de animus domini. Há,
porém, uma exceção evidente, que é a posse direta do compromissário comprador,
que possui não apenas no exercício de direito próprio, como o locatário e o
42 RTJ – 97/796.
14
comodatário, mas, ao contrário desses, como sua, até mesmo porque o compromisso
de compra e venda não é contrato preliminar, conforme erradamente consta no texto
do artigo 1418, do atual Código Civil, mas sim uma modalidade de compra e venda,
na qual, por conveniência das partes, se posterga para um momento futuro a
realização do contrato definitivo de compra e venda. Tanto é assim que, embora o
artigo 1418 o designe como instrumento preliminar, o compromisso de compra e
venda autoriza a adjudicação do imóvel — obrigação de dar — e não obrigação de
fazer, que acarretaria se se tratasse efetivamente de contrato preliminar, que resultaria
no direito de exigir a realização do contrato definitivo do qual aquele é preliminar,
mas não a obrigação de dar como de fato ocorre em nosso ordenamento jurídico,
independentemente de ser cabível, ou não, o registro do compromisso particular, tema
polêmico e fora do objeto deste estudo. Orlando Gomes43
, ainda na vigência do
Código Civil de 1916, presta esclarecimentos elucidativos a respeito da natureza
jurídica do compromisso de compra e venda.
Ademais, é de se reconhecer que se fosse possível prevalecer o
entendimento esposado no referido acórdão do Supremo Tribunal Federal, relatado
pelo eminente Ministro José Carlos Moreira Alves, estar-se-ía perpetrando uma
enorme inversão no escopo do instituto da usucapião, pois o esbulhador que tivesse
iniciado posse até mesmo com violência poderia usucapir ― o que efetivamente é
possível ―, ao passo que aquele que prometeu comprar, pagou o preço, ou ao menos
não está em mora, e é imitido na posse pelo dono, ou suposto dono, com inequívoca
boa fé e intenção legítima de ser dono, não poderia se prevalecer do instituto da
usucapião ordinária. É de se observar que após a quitação do preço a posse indireta
do promitente vendedor, no compromisso feito em caráter irretratável e irrevogável, é
um nada, ou um quase nada jurídico, equivalendo no direito romano ao nudum ius
43 ORLANDO GOMES – obra citada – págs. 301 e 302 – O compromisso de venda não é verdadeiramente um contrato
preliminar. Não é por diversas razões que completam a originalidade do seu escopo, principalmente a natureza do direito que
confere ao ―compromissário‖.
Tem ele, realmente, o singular direito de se tornar proprietário do bem que lhe foi prometido
―irretratavelmente‖ à venda, sem que seja inevitável nova declaração de vontade do ―compromitente‖. Bastará pedir ao juiz a
―adjudicação compulsória‖, tendo completado o pagamento do preço. Assim sendo, está excluída a possibilidade de ser o
―compromisso de venda‖ um ―contrato preliminar‖, porque só é possível adjudicação compulsória nas ―obrigações de dar‖ e,
como todos sabem, o ―contrato preliminar‖ ou ―promessa de contratar‖ gera uma ―obrigação de fazer‖, a de celebrar o contrato
definitivo.
15
quiritium, como será examinado oportunamente, não se justificando que esse nada
jurídico no qual se converte a posse indireta do compromitente vendedor impeça a
aquisição pelo compromissário comprador, o qual, apesar de ter posse direta, a exerce
com inafastável animus domini.
Como se vê, a divergência quanto ao que seja o justo título é
enorme: discute-se acerca da necessidade do título ser escrito ou verbal; se escrito é
duvidoso se precisa, ou não, ser formalmente válido; se deve ser inscrito, ou não; se o
compromisso de venda constitui, ou não, justo título; se admitido, questiona-se se há,
ou não, necessidade da inscrição; se o preço precisa ter sido quitado, ou não.
Para que possamos compreender o instituto da usucapião e,
especialmente, a ordinária, em que o justo título e a boa fé são indispensáveis, é
preciso examinar preliminar e minudentemente o instituto da posse em seus
primórdios em Roma, onde foi concebida a usucapião, assim como a propriedade
quiritária e a propriedade no direito justinianeu, que chegou até nós, consagrada no
Código de Napoleão, bem como nos posteriores, inclusive nos nossos, de 1916 e de
2002.
A noção elaborada pelos historiadores e consagrada como dogma
científico pela escola de direito natural apresenta a propriedade individual como saída
da comunidade coletiva de bens, tendo, no século XIX, sido criada uma teoria
histórica e jurídica que considera que essa propriedade coletiva precedeu à
propriedade individual, que teria nascido daquela e se desenvolvido por uma lenta e
gradual evolução
Essa evolução efetivamente ocorreu em diversos povos. O solo
pertencia à cidade, que o distribuía em lotes a cada família, havendo redistribuições
periódicas. Com o tempo as permutas se faziam em intervalos mais longos até a
posse de cada lote se consolidar nas famílias. A propriedade comum dos bosques, dos
pastos e das terras incultas acabou por ser usurpada pelos chefes de família mais
poderosos.
16
A crença de que o mesmo ocorreu em Roma é fortemente defendida
pelos mais ilustres romanistas, mormente por ter sido endossada por Mommsen44
,
especialmente em função da suposição de que cada cidadão romano seria proprietário
de apenas dois arpentos, os bina jugera, correspondentes a cerca de meio hectare,
onde se localizavam a casa e o pomar de cada família, insuficientes ao seu sustento,
que seria provido pelos pastos e campos comuns.
Émile de Laveleye afirma categoricamente que ―durante os tempos
primitivos, o elemento social predomina na propriedade fundiária. O solo é um
domínio coletivo que pertence à tribo; os indivíduos só tem seu desfrute temporário.
Na Grécia uma grande parte do território é do Estado, e o que resta permanece
submetido a seu poder supremo. Em Roma aparece pela primeira vez o ”dominium”
quiritário, quer dizer o direito absoluto exercido sobre o solo”45
. Mais adiante o
eminente historiador, refutando que a propriedade quiritária tenha existido em Roma
em todos os tempos, ubique et semper, argumenta: ―ora a história melhor conhecida
nos mostra que a forma primitiva e universal da propriedade foi a posse, tal como a
vemos nas tribos eslavas e germânicas e tal como ela se exercia em Roma sobre o
“ager publicus‖46
. Prossegue o autor sustentando que ―desde os primeiros tempos de
seus anais, os gregos e os romanos conheciam a propriedade privada aplicada à
44 THEODOR MOMMSEN – Histoire Romaine – tradução francesa de De Guerle – Tomo I – Capítulo XIII – págs. 231 e 232.
Une dernière preuve enfin et surtout, c’est l’ancienne mesure de la proprieté (―heredium‖ de ―herus‖, ―Herr‖) de deux jugera
(environ un arpent un quart), ce qui ne peut s’appliquer qu’à des jardins et non à des champs. On ne peut plus savoir quand et
comment cette division de la terre arable eut lieu. Ce qui est historiquement certain, c’est la plus ancienne forme de constituition
était basé non sur la proprieté personnelle, mais sur la proprieté collective qui la remplaçait, tandis que la constituition de Servius
présuppose la distribuition de la terre.
45 ÉMILE DE LAVELEYE – De la Proprieté et de ses Formes Primitives – 3ª edição – 1882 – preface – págs. XIV e XV –
Durant les temps primitifs, l’élement social prédomine das la propriété foncière. Le sol est un domaine collectif qui appartient à
la tribu; les individus n’en ont que la jouissance temporaire. En Grèce, une grande part du territoire est à l’État, et le reste
demeure soumis à son pouvoir suprême. A Rome apparait pour la première fois le ―dominium‖ quiritaire, c’est-à-dire le droit
absolu exercé sur le sol..
46 ÉMILE DE LAVELEYE –obra citada – preface – pág. XIX; or l’histoire mieux connue nous montre que la forme primitive et
universelle de la propriété a été la possession, telle que nous la voyons chez les tribus slaves et germaniques et telle qu’elle
s’exerçait même à Rome sur l’‖ager publicus‖.
17
terra, e os traços da antiga comunidade do clã eram já apagados que é preciso um
estudo atento para os encontrar”47
.
Efetivamente, não há dúvidas de que assim foi em diversos povos,
como precisamente ensina Émile de Laveleye quando fala da mark alemã: ―As
comunidades de cidade com divisão periódica das terras, tais como se encontra ainda
na Rússia e em Java, existiam igualmente na antiga Alemanha.‖48
.
Quanto a Roma, Émile de Laveleye afirma que ―os romanos, tendo
atravessado as duas etapas sucessivas da comunidade da cidade e da comunidade da
família, fundaram, os primeiros, a propriedade fundiária, exclusiva; e os princípios
que eles adotaram nesta matéria servem ainda de base às nossas leis civis”49
.
No entanto, a questão de Roma ter atravessado essas duas etapas, de
propriedade da cidade e de propriedade da família, é objeto de controvérsias, não
obstante o peso dos defensores dessa idéia, como Girard, o qual, após afastar, como é
óbvio, a propriedade do solo nos povos nômades, afirma que ―mesmo nos povos
agrícolas, como é o povo de Roma na fundação da cidade, encontram-se para a
propriedade do solo, ao lado do individuo isolado, dois outros titulares; um grupo
largo, a tribo, o clã, a cidade; um grupo mais estreito, a família‖50
, ressaltando que,
na sua opinião, é preciso ―reconhecer que o direito romano conheceu as duas formas
de apropriação, não somente a copropriedade familiar, que jamais desapareceu
47 ÉMILE DE LAVELEYE – obra citada – pág. 7: Dès les premiers temps de leurs annales, les Grecs et les Romains
connaissaient la propriété privée apliquée à la terre, et les traces de l’antique communauté du clan étaient déjà si effacées qu’il
faut une étude attentive pour les retrouver.
48 ÉMILE DE LAVELEYE – obra citada – pág. 71: Les communautés de village avec partage périodique des terres, telles qu’on
les trouve encore en Russie et à Java, existaient également dans l’ancienne Germanie.
49 ÉMILE DE LAVELEYE – obra citada – pág. 183: Les Romains, ayant les deux étapes successives de la communauté de
village et de la communauté de famille, fondèrent, les premiers, la propriété foncière, individuelle, exclusive; et les principes
qu’ils adoptèrent en cette matière servent encore de base à nos lois civiles.
50 GIRARD – Manuel Elementaire de Droit Romain – 3ª edição – 1901 – livro III – II – capítulo I - pág. 255: Mais, même chez
les populations agricoles, telle qu’est la population de Rome à la fondation de la ville, on rencontre pour la propriété du sol, à
côte de l’individu isolé, deux autres titulaires; un groupe large, la tribu, le clan, le village; un groupe plus étroit, la famille.
18
inteiramente, mas mesmo a comunidade do primeiro tipo, que, se desapareceu em boa
hora, certamente existiu‖51
. O romanista francês conclui dizendo que ―a sociedade
romana não conheceu somente esta propriedade de um grupo restrito, mascarado
pelos poderes do chefe de família ao ponto de ser frequentemente confundida com a
propriedade individual. Ela conheceu a propriedade coletiva do solo por todo o
povo ou para uma de suas subdivisões. Houve uma fase posterior à fundação de
Roma onde, como o membro da cidade russa, da “mark” alemã, o cidadão só era
proprietário de um pequeno enclave contendo sua casa e seu pomar, ao passo que o
resto das terras era subtraído à propriedade privada‖52
. Comungando com essa
opinião, Mayns53
afirma peremptoriamente que “as terras pertenciam ao povo,
nenhuma ocupação podia em sua relação criar um poder igual, a propriedade
territorial era exclusivamente outorgada pelo Estado, e, originariamente, ela era
numa proporção que lhe subtraia toda importância. O lote de terra atribuído em
propriedade a cada patrício era de dois arpentos, espaço apenas suficiente para a
casa e o jardim. Mas, fora dessa propriedade individual, o pai de família tinha o
desfrute do domínio público, cuja extenção aumentava a cada nova conquista‖.
Gaston May54
entende de igual forma lembrando que “a propriedade antes de tomar
a forma individual foi precedida por outras formas. Reconhece-se que a noção de
propriedade passou primeiro por dois estágios sucessivos: o coletivismo da tribo e da
copropriedade familiar”, afirmando ainda que “as terras aráveis são repartidas por
via de loteamento entre os chefes de família, por épocas periodicamente reguladas
51 GIRARD – obra citada – livro III – II – capitulo I - pág. 257: Or, cette orientation générale donnée, il faut, à notre avis,
reconnaitre que le droit romain lui-même a connu les deux formes d’aprropriation, non seulement la copropriété familiare, qui, au
fond, n’y a jamais entièrement disparu, mais même la communauté do premier type, qui, si elle y a disparu de bonne heure, y a
cependant certainement existé.
52 GIRARD – obra citada – livro III – II – capítulo I - pág. 257: Mais la société romaine n’a pas seulement connu cette propriété
d’un groupe restreint, masquée par les pouvoirs du chef de famille au point d’être souvent confondue avec la propriété
individuelle. Elle a connu la propriété collective du sol par tout le peuple ou par une de ser subdivisions. Il y a eu une phase
postérieure à la fondation de Rome où, comme le membre du village russe, de la marche germanique, le citoyen n’était
propriétaire que d’un petit clos contenant sa maison et son verger, tandis que le reste des terres était soustrait à la propriété
privée.
53 CHARLES MAYNS – obra citada – Tomo I - § 90 – pág. 683.
54 GASTON MAY – Elements de Droit Romain – edição de 1927 – n° 77 – pág. 195.
19
para uso”, lembrando por fim que “o que pertence propriamente às famílias é
unicamente o uso temporário do solo”.
Todavia, contestando vivamente essa idéia, Pietro Bonfante expõe
que o problema dos bina jugera não concerne ao ponto de origem da propriedade
romana. ―Exceto pelas distribuições de Rômulo, sobre as quais os anciãos não
entram em particularidades, por todas as outras distribuições antigas (que são
expressamente avaliadas em dois arpentos ou podem ser assim presumidas) que a
tradição atribui a Numa, a Tulo Hostílio, a Sérvio, ou que foram feitas desde as mais
antigas concessões em proveito de cidadãos isolados (“assignatio viritani”) ou dos
membros de uma colônia (“assignatio coloniaria”), nos é também atestado que essas
distribuições foram feitas aos pobres ou à plebe‖55
. Lembrando que o fato de a plebe
e de os clientes primitivos receberem concessões tão modestas só demonstra seu
estado de dependência para com os patres56
, Bonfante contesta a suposta
inalienabilidade na primitiva propriedade imobiliária57
, bem como a impossibilidade
de testar, que diz ser mera quimera58
. O próprio Mayns, que sustenta ter havido a
propriedade coletiva em Roma, assegurando que a propriedade quiritaria era limitada
55 PIETRO BONFANTE – Histoire Du Droit Romain – tradução francesa por Jean Carrère e François Fournier – Tomo I –
edição de 1928 – capítulo XII, n° 8 - pág. 202: Excepté pour les distributions de Romulus, sur lesquelles les anciens n’entrent pas
dans particularités, pour toutes les autres distributions antiques (qui sont expressément évaluées à deux arpents ou peuvent être
présumées telles) que la tradition attribue à Numa, à Tullus Hostilius, à Servius, ou qui ont été faites lors des plus anciennes
assignations au profit de citoyens isolés (―assignatio viritani‖) ou des membres d’une colonie (―assignaatio coloniaria‖), il nous
est aussi attesté que ces distributions ont été faites aux pauvres ou à la plèbe.
56 PIETRO BONFANTE – obra citada – capítulo XXII, n° 8 – págs. 202. Que la plèble ou les clients primitifs eussent des
assignations aussi modestes, ce fait ne demonstre pas autre chose que leur état de dépendence en general vi- à-vis des patres.
57 PIETRO BONFANTE – obra citada – capítulo XX, n. 8 – pág. 203. Un autre argument direct dont on veut inférer l’existence
de la propriété primitive collective, ou, pour mieux dire, familiale, est la prétendue inaliénabilité de l’antique propriété
immobilière. En réalité, cet argument lui-même est bien loin d’être démontré. Les textes romains prouvent seulement que dans
les temps anciens il était considéré comme une honte de vendre les biens des ancêtres, et que celui qui avait dilapidé sa fortune
pouvait être passible de la ―nota‖ du censeur. Or, dans une société agricole, même de nos jours, ce n’est pas sans quelque
déshonneur qu’on aliène ses terres, et ce devait l’être d’autant moins quand, outre la considération sociale, la situation électorale
était liée, elle aussi, à la propriété de la terre, comme elle l’était dans l’organisation primitive des comices centuriates et tributes.
58 PIETRO BONFANTE – obra citada – capítulo XXII, n° 8 - pág. 203. Quant à l’impossibilité primitive de tester, c’est une
pure chimère pour le droit romain. La solennité du ―testamentum calatis comitiis‖ à laquelle on se réfère pour montrer les
entraves auxquelles cet acte était soumis, démontre une seule chose, à savoir que le testament, dans lequel intervient le pontife
(c’est-à-dire anciennement le roi) appartient à l’époque royale.
20
aos bina jugera, se contradiz quando, ao explicar a devoção dos clientes aos patres,
afirma que estes lhes faziam concessões de terras59
, evidenciando que os patres eram
proprietários de muito mais que dois arpentos.
Dessa maneira, Bonfante afirma que ―os dados que deveriam
demonstrar que a propriedade romana teve sua origem na propriedade coletiva são,
nas fontes romanas, de um caráter muito duvidoso e muito equívoco‖60
. Segundo
Bonfante ―procura-se no domínio da poesia a lembrança de tradições mais antigas e
dá-se corpo a lendas da Idade do Ouro, do reino de Saturno, antes do aparecimento
de Júpiter. Nessa idade primitiva (como o proclamam os lamentos e as queixas da
poesia antiga), os campos não eram divididos, a terra era comum‖61
e a limitatio, da
qual o renomado jurista italiano só encontrou provas nas fundações das colônias e nas
concessões de terras públicas em favor de membros de uma colônia ou de cidadãos
isolados, era feita unicamente em proveito da plebe62
.
A chave da origem da propriedade, para Bonfante63
, é a análise da
estrutura histórica dessa instituição nas fases conhecidas e comprovadas por
documentos, ou seja, pela análise da propriedade clássica e da propriedade
justinianéia é que se pode chegar a um resultado concreto e verdadeiramente
59 CHARLES MAYNS – obra citada – Tomo I - Seção Primeira – n° 8 - págs. 39 e 40: Les clients, comme nous avons dit,
n’existaient dans l’Etat que par la protecions de leur patron dont ils grossissaient la ―gens‖, protection qui se manifestait aussi
dans l’ordre matériel par l’octrai de terres a cultiver. En échange de cette protection, ils devaient au patron hommages et services,
ils le suivaient à la guerre et étaient en général tenus de l’assister de leur personne et même, le cas échéant, de leur fortune.
60 PIETRO BONFANTE – obra citada – capítulo XII - n° 8 - pág. 198.
61 PIETRO BONFANTE – obra citada – capítulo XII – n° 8 - pág. 198.
62 PIETRO BONFANTE – obra citada – capítulo XII – n° 8 - pág. 205: Cependant, nous ne trouvons l’attestation du partage des
terres au moyen de la ―limitatio‖ que dans la fondation des colonies et dans les assignations de territoire public. Or, les
assignations au profit des membres d’une colonie ou de citoyens isolés sont faites uniquement au profit de la plèbe.
63 PIETRO BONFANTE – obra citada – capítulo XII, n° 9 - págs. 205 e 206: Dans l’ensemble, les indices directs et l’aide elle-
même du droit comparé ne réussissent pas à nous éclairer sur l’origine de la propriété romaine, c’est-à-dire sur sa structure
primitive. La clef de ces origines est, à notre avis, ici encore, dans l’analyse de la structure historique de cette institution, éclairée
par la tendance de l’evolution dans ses phases ―connues el appuyés sur des documents‖: c’est par l’analyse de la propriété
classique, de la propriété justinienne elle-même, qu’on pourra parvenir à une conclusion concrète, positive, à un résultat vraiment
scientifique, que quelques-uns des indices précédents servent peut-être à illustrer, mais dont il est difficile de dire qu’ils arrivent à
le corroborer.
21
científico, pois os indícios diretos e a ajuda do direito comparado não nos esclarecem
sobre a origem da propriedade romana, isto é, sua estrutura primitiva.
Inegavelmente, a história romana em seus primeiros cinco séculos
só nos é acessível através de obras muito posteriores, as primeiras ao tempo de Cesar
e Augusto, embora, como diz Leon Homo64
―não existe no mundo história nacional
que conte as origens de um povo com um tal luxo de detalhes e com semelhante
precisão de exposição‖, lembrando porém que à quantidade não corresponde a
qualidade.
Malgrado esses autores, como Tito Lívio, Dionísio de Halicarnasso
e Cícero, bem como os que os seguiram, como Plutarco, tivessem acesso a
documentos hoje desaparecidos, assim como a historiadores dos últimos anos do III
século antes de Cristo, que constituíam a escola dos analistas, cujos textos também
não chegaram ao nosso tempo, não se pode perder de vista que a escrita só se difundiu
em Roma a partir de meados do V século antes de Cristo e que os documentos e
anotações anteriores ao incêndio de Roma em 390 aC, pelos gauleses, se perderam,
sendo de autenticidade e fidedignidade duvidosas os que foram reconstituídos, como
afirma Leon Homo65
, invocando os testemunhos de Tito Lívio e Cícero.
À vista desses fatos parece-nos que o caminho proposto por
Bonfante é o mais correto, sendo patente que antes mesmo da existência de Roma
como um Estado, mesmo considerando-o desde sua lendária fundação ― o que é
contestado por Leon Homo66
, que sustenta a existência de uma Roma unificada
64 LEON HOMO – L´Italie Primitive et les Débuts de L`Impérialisme Romain – edição de 1925 – págs. 5 e 6.
65 LEON HOMO – obra citada – págs. 17 e 18.
66 LEON HOMO – Les Institutions Politiques Romaines – edição de 1970 – pág. 14 – Mais toute cette conception
constitutionnelle, sous la forme où l’annalistique romaine nous l’a transmise, suppose un postulat, à savoir qu’il y a eu une Rome
unifiée avant la conquête étrusque, et, ce point de vue, la critique moderne, étayée notamment sur les trouvailles de l’archéologie
et les progrès de la linguistique, ne permet plus de l’admettre. Le sol romain n’a connu, aux premiers siècles de son histoire,
qu’une, série d’humbles villages : Germal, Palatual, Velia, Oppius, Cispius, Fagutal, Querquetu(a)l, indépendants d’abord jusque
vers la fin du VIII siècle avant Jésus-Christ, groupés plus tard en une fédération politique et religieuse, de nature assez lâche
d’ailleurs, la ligue du Septimontium, à l’existence de laquelle, au milieu du VII siècle, la conquête étrusque viendra brutalement
mettre un terme.
22
somente a partir da conquista etrusca ― , mesmo assim a propriedade particular
precede à fundação da liga Setimonial, ou qualquer outra, pois, como ensina Fustel de
Coulanges, antes da criação das cidades, ou mesmo das tribos e das cúrias, ou seja,
durante o ―longo período durante o qual os homens não conheciam nenhuma outra
forma de sociedade além da família‖67
, quando se fixou o direito privado68
, já havia
propriedade privada nas sociedades grega e itálica69
, que estava na própria religião,
pois, desde as mais antigas gerações, acreditavam em vida após a morte, bem como
que a alma se encerrava com o corpo no túmulo70
, acarretando, consequentemente, na
apropriação do solo onde se encontravam o túmulo, em que faziam libações, a casa e
o campo71
.
67 FUSTEL DE COULANGES – A Cidade Antiga – Editora Martins Fontes – edição de 1995 – pág. 116.
68 FUSTEL DE COULANGES – obra citada – pág. 89. O direito privado.existiu antes da cidade. Quando a cidade principiou a
escrever suas leis, achou esse direito já estabelecido, vivendo, enraizado nos costumes, fortalecido pelo unânime consenso dos
povos. Aceitou-o, não podendo proceder doutro modo e não ousando modificá-lo senão muito tempo mais tarde. O antigo direito
não é obra do legislador; o direito, pelo contrário, impôs-se ao legislador. Teve sua origem na família. Nasceu ali espontânea e
inteiramente elaborado nos antigos princípios que a constituíram. Originou-se das crenças religiosas universalmente admitidas na
idade primitiva destes povos que exerciam domínio sobre as inteligências e sobre as vontades.
69 FUSTEL DE COULANGES – obra citada – pág. 63 – Ao contrário, as populações da Grécia e as da Itália, desde a mais
remota antiguidade, sempre conheceram e praticaram a propriedade privada. Nenhuma recordação histórica nos chegou, e de
época alguma, que nos revele a terra ter estado em comum.
70 FUSTEL DE COULANGES – obra citada – pág. 16 – Acreditou-se mesmo, durante muito tempo, que nesta segunda
existência a alma continuava associada ao corpo. Nascida com o corpo, a morte não os separava; alma e corpo encerravam-se
juntamente no mesmo túmulo.
71 FUSTEL DE COULANGES – obra citada – pág. 64 – Há três coisas que, desde os tempos mais antigos, se encontram
fundadas e estabelecidas solidariamente pelas sociedades gregas e itálicas: a religião doméstica, a família e o direito de
propriedade; três coisas mostrando originariamente manifesta relação entre si e que parece terem mesmo andado inseparáveis. A
idéia de propriedade privada estava na própria religião. Cada família tinha o seu lar e os seus antepassados. Esses deuses só
podiam ser adorados pela família, só à família protegiam; eram propriedade sua. Encontraram os antigos misteriosa relação entre
estes deuses e o solo. Vejamos, primeiramente, o lar: este altar é o símbolo da vida sedentária; o seu próprio nome o indica. Deve
estar assente no solo; uma vez ali colocado nunca mais deve mudar de lugar. O deus da família quer ter morada fixa;
materialmente, a pedra sobre a qual ele brilha, torna-se de difícil transporte; religiosamente, isso parece-lhe ainda mais difícil, só
sendo permitido ao homem quando dura necessidade o obriga, o inimigo o expulsa, ou a terra não pode alimentá-lo. Ao assentar-
se o lar, fazem-no com o pensamento e a esperança de que ficará sempre no mesmo lugar. O deus instala-se nele, não para um
dia, nem mesmo só para a precária vida de um homem, mas para todos os tempos, enquanto esta família existir e dela restar
alguém a conservar a sua chama em sacrifício. Assim, o lar toma posse do solo; apossa-se desta parte de terra que fica sendo,
assim, sua propriedade.
23
Essa propriedade privada, anterior, como se viu, às cúrias, às tribos
e às cidades, que os autores convencionaram denominar domínio quiritário, no caso
de Roma, onde, como ensina Charles Mayns72
, na falta de palavra que exprimisse a
idéia abstrata de propriedade, o proprietário dizia haec res mea est ex iure quiritium,
referindo-se ao seu domínio sobre uma coisa, era um direito que não encontra similar
nos tempos atuais, pois importava em soberania completa por parte de seu titular, não
conhecendo limitações de qualquer espécie, já que as regras relativas às relações entre
vizinhos, como o recuo de dois e meio pés, formando um espaço livre obrigatório de
cinco pés entre as propriedades, além de serem poucas tinham por fim mais garantir a
liberdade recíproca dos fundos do que sua limitação, nas palavras de Bonfante73
.
Assim, sendo em verdade um direito preexistente à cidade, isto é, ao
Estado, a propriedade primitiva era uma propriedade gentílica. Com o surgimento da
cidade e a consequente desagregação das gentes, reduzidas ao estado da família
clássica, ocorreu, como esclarece ainda Bonfante74
, a desagregação dos territórios
gentílicos, especialmente após o advento da actio familiae erciscundae, importando
na sua divisão entre vários soberanos.
Portanto, seguindo a linha de raciocínio de Bonfante, quando se
examina a propriedade, tanto no direito justinianeu, como no direito clássico, e se
recua no tempo, desaparecem, um a um, os iura in re75
, até mesmo as servidões
rústicas de passagem e de aqueduto76
, que foram as únicas conhecidas no direito
72 CHARLES MAYNS – obra citada – Tomo I - § 93 – pág. 691.
73 PIETRO BONFANTE – obra citada – capítulo XXII – n. 10 - pág. 213 – Dans le droit très ancien, peut-on dire, il n’existe pas
de limites légales à la propriété et les règles peu nombreuses relatives aux rapports de voisinage, qui sont rappelées dans les
Douze Tables, ont plus pour but de garantir la liberté réciproque des fonds que leur limitation recíproque.
74 PIETRO BONFANTE – obra citada – capítulo XXII – n.9 - pág. 211.
75 PIETRO BONFANTE – obra citada – capítulo XXII – n.9 - pág. 207 - Les droits eux-mêmes que l’on constitue
volontairement sur as chose propre em faveur d’autrui (emphytéose, superficie, usage, usufruit et toute la masse des servitudes)
disparaissent l’un après l’autre à mesure qu’on remonte en arriève.
76 PIETRO BONFANTE – obra citada – capítulo XXII – n.10 - pág.213 – La propriété-souveraineté épuise ou presque, à
l’époque du droit quiritaire, le droit sur les choses dans le système le plus ancien auquel nous puissions remonter, le droit romain
ne connaît que les servitudes rustiques, et même les deux seuls types de servitudes rustiques que nous avons déjà rappelés, la
servitude de passage et celle d’aqueduc.
24
antigo. Para os romanos, nas épocas primevas, a água, os metais, os tesouros, a
vegetação e as edificações existentes nos fundos pertenciam aos seus proprietários,
constituindo um absurdo a idéia de que pudessem pertencer a quem não fosse dono do
solo77
.
Enfim, o domínio quiritário constituía um direito sem
correspondência no mundo moderno, no qual o seu titular — o patre — tudo podia,
sendo juiz absoluto em seu território, não cabendo à cidade, nem à tribo, tampouco à
cúria, intervir no que se passasse no interior de cada propriedade, competindo
somente ao patre o direito de julgar sua mulher, seus filhos, seus parentes e seus
clientes78
— sem entrarmos na antiga discussão acerca do parentesco entre patres e
clientes.
Antes da cidade, muito antes, os patres em seus territórios eram os
sacerdotes do culto aos antepassados, os manes, e, por sua vez, seriam cultuados por
seus descendentes, somente sendo possível o agrupamento de famílias distintas, com
lares e manes distintos, se cada família puder manter seu lar e seus manes, formando
cada grupo de famílias, ou seja, de gens, uma cúria, que terá seu deus, que será
comum a todas as gens, o mesmo ocorrendo com as tribos, que terão seus deuses,
comuns a todas as cúrias que as constituem.
Com a cidade, que é uma confederação, ocorreu o mesmo, ou seja,
foi obrigatório o respeito à independência religiosa das tribos, das cúrias e das
famílias, estas integradas por grande número de pessoas e denominadas gens, todas se
acreditando descendentes de um ancestral comum, podendo, desse modo, cada família
manter seu território político, que veio a ser posteriormente chamado de domínio
quiritário, que não corresponde à propriedade moderna, como será demonstrado neste
77 PIETRO BONFANTE – obra citada – capítulo XXII – n.9 - pág. 207.
78 FUSTEL DE CONLANGES – obra citada – pág. 132 – A cidade era uma confederação. Por isso se viu obrigada, pelo menos
durante alguns séculos, a respeitar a independência religiosa e civil das tribos, das cúrias e das famílias, e ainda por isso não teve
desde logo o direito de intervir nos negócios particulares de cada um desses pequenos corpos. A cidade nada tinha a ver com
quanto se passasse no seio de cada família: não era juiz do que por lá se passava e deixava ao pai o direito e o dever de julgar sua
mulher, seu filho ou o seu cliente. Por essa razão o direito privado, prefixado na época do isolamento das famílias, pôde durar nas
cidades até muito tarde, sem se modificar.
25
estudo, sendo um direito que desapareceu do mundo jurídico, cuja última pá de cal foi
colocada por Diocleciano, em 292 dC, quando taxou o domínio do ager privatus
itálico, muito antes de Justiniano acabar com a distinção entre res mancipi e res nec
mancipi, que já havia ocorrido de fato.
O domínio do pater, onde estavam o túmulo e o lar correspondente,
por força da religião doméstica era isolado de outros domínios, não podendo ser
deslocado, sob pena dos ancestrais ficarem abandonados e sem culto79
, devendo ser
separado visivelmente dos outros domínios, onde havia outros túmulos, outros lares e
outros manes, por uma faixa de terreno de cinco pés de extensão. Sobre os limites de
seu território o pater colocava algumas pedras, que eram o termo, que, como um deus,
guardava os limites do campo, cuja profanação constituía um sacrilégio terrível80
,
punido pela sacratio capitis.
Sendo o primitivo território romano — o ager romanus —
constituído pelo ager privatus e pelo ager publicus, podemos afirmar que o domínio
quiritário, que, no seu conjunto, formava o ager privatus, é uma soberania pré-
existente à fundação de Roma, tenha ela ocorrido pela junção dos ramnes com os
tities, liderados por Rômulo e Tito Tácio, ou somente com a chegada dos luceres.
Com a cidade os patres mantiveram seus domínios — agri gentilicii — intocáveis.
As concessões sobre o ager publicus — que se estendeu com as
conquistas itálicas — a particulares, mediante o pagamento do vectigal, sinal certo e
permanente do direito eminente da propriedade do povo, constituíam um direito de
uso — possessio —, sejam as feitas em proveito de cidadãos isolados — assignatio
viritani — ou para a fundação de colônias — assignatio colonoriaria — o mesmo
ocorrendo com as terras que o Estado, ainda que tacitamente, permitia que fossem
ocupadas e cercadas — agri occupatorii.
79 FUSTEL DE CONLANGES – obra citada – pág. 69.
80 FUSTEL DE CONLANGES – obra citada – pág. 71.
26
As terras provinciais, também decorrentes da occupatio bellica,
pertenciam do mesmo modo ao povo romano, sendo algumas restituídas aos seus
antigos donos, formando o ager privatus ex iure peregrino, não podendo constituir
domínio quiritário, tanto por não se tratar do ager romanus, mas sim de provinciale
solo, quanto por não terem os peregrinos ius commercii. O restante, que era o ager
publicus provincial por direito de conquista, como já assinalado, era vendido pelos
questores — ager questorius — , ou arrendado, ou destinado às colônias, mas sempre
incidindo o vectigal. Emilio Costa81
, ao comentar acerca das propriedades fora dos
confins do ager romanus, lembra que o pagamento do vectigal é o reconhecimento do
direito soberano do Estado pelo concessionário privado.
Não se pode deixar de considerar, para a precisa compreensão dos
institutos da propriedade, da posse e da usucapião, na atualidade, que esses direitos
sobre terras, embora não fossem o soberano domínio quiritário, permitiam a seus
titulares conservar, possuir — habere possidere — , perceber os frutos, praticar atos
de disposição, inclusive alienar, sendo transferidos por herança, tendo sido designados
por Gaio como possessio vel ususfructus, só surgindo posteriormente o termo
proprietas, como ensina Gaston May82
.
Enganam-se completamente aqueles que buscam na possessio o
início do instituto da posse, bem como da defesa possessória. A possessio do ager
publicus é um direito lastreado numa causa justa, concedido pelo Estado, que recebe o
vectigal, posteriormente denominado tributum, mesmo no caso de arrendamento,
através do instituto do precarium. Vieira da Silva83
, na primeira obra de direito
81 EMILIO COSTA – Historia Del Derecho Romano Público Y Privado – tradução espanhola de Manuel Raventos y Noguer –
1930 – Capítulo II - § 11° - pág. 284. La otra es la propiedad de los terrenos dados a los ciudadanos fuera de los confines del
―ager romanus‖; la cual se distingue de ―dominium‖ existente sobre este, porque se concibe subordinada a un derecho soberano
del Estado, em reconocimiento del cual el concesionario privado debe pagar um canon o ―vectigal‖ anual: y oscila en cierta
forma hacia la figura del usufructo.
82 GASTON MAY – obra citada – n° 78 - pág. 200.
83 LUIZ ANTONIO VIEIRA DA SILVA – História Interna do Direito Romano Privado - edição de 1854 – págs. 174 e 175.
Quer Niebuhr que se procure a origem da posse no ―ager publicus‖. Erão estes terrenos pela maior parte distribuídos a
particulares de modo que o Estado conservava sempre a propriedade, e recebia dos possuidores um imposto; forão estes terrenos
chamados ―possessiones‖; e é a esta expressão, que se refere a definição que dá Gallus Aelius: ―possessio est usus quidam agri
aut aedificio non ipse fundus aut ager‖. A fórma da cessão nos tempos mais antigos, quando ainda os patrícios erão
27
romano escrita na língua portuguesa, em 1854, afirma que a hipótese levantada por
Niebuhr de que a origem da posse está na possessio do ager publicus é falsa e só se
funda na palavra possessio.
A possessio é, em verdade, a propriedade do direito justinianeu, que
chegou até nós, a que conhecemos no mundo atual, vez que o domínio quiritário, de
invejável privacidade, desapareceu completamente. É enveredar por caminho errado
procurar a origem da posse na possessio, como quer Niebuhr, cuja teoria, avalizada
por Savigny84
, obteve ampla repercussão. A possessio é a propriedade que nos é
contemporânea, é sua origem, não da posse.
Sem se perder de vista que o ager romanus abrangia somente o solo
itálico, que, em conseqüência, era constituído pelo ager privatus e pelo ager publicus,
bem como que o solo provincial era integralmente ager publicus, mesmo o
denominado ager privatus ex iure peregrino, deve-se buscar o início da propriedade
privada — não da que hoje conhecemos, mas sim o extinto domínio quiritário — e da
posse somente no ager romanus, especificamente no ager privatus. A possessio era
um direito real — a propriedade atual — instituído sobre o ager publicus, que só
exclusivamente privilegiados, era a ―occupatio‖ por concessão do Estado; depois pelos censores por meio da‖locatio‖. Crê-se que
estes possuidores, ―possessores‖, tivessem tido uma garantia por via dos interdictos possessórios; e então concluio-se que desta
primitiva applicação os interdictos se estendesse mais tarde ás ―res ,,es‖. ―Esta hypothese porém só se funda na palavra
―possessio‖. A posse, diz Puchta, de um ―ager publicus‖, e a posse a que se fez a applicação dos interdictos possessórios, são
bem differentes. Aquella funda-se em uma causa justa, concessão do Estado; e esta é independente da ―causa‖. Além d’isto, em
parte alguma se faz menção da connexão entre os interdictos possessórios, e o ―ager publicus‖; até pelo contrario encontramos
para este outro interdicto, que não é possessório, e que foi introduzido para garantia do possuidor – ―interdictum de loco publico
fruendo‖. Tanto baste para tornar esta hypothese de nenhum fundamento.
84 SAVIGNY – Traité de La Possession – 7ª edição, tradução francesa de Henri Staedtler, 1° Tomo, § 12, pág. 171. Niebuhr a
expliqué l’origine de la possession d’une manière parfaitement satisfaisante. Il y avait, sous la république, deux espèces de fonds
de terre, l’‖ager publicus‖ et l’‖ager privatus‖; ce dernier seul était susceptible de propriété. Quant à l’‖ager publicus‖, la
possession et la jouissance en étaient, d’après l’ancienne constitution, abandonnées pour la plus grande partie aux citoyens
romains, de telle sorte toutefois que la republique conservait toujours le droit de retirer à volanté ces concessions. Or nous ne
trouvons nulle part de forme juridique spéciale pour cette possession de l’‖ager publicus‖, conférée à des particuliers, possession
qui se présentait cependant si souvent et jouait un rôle si important dans l’ancienne Rome. Et pourtant l’amour des Romains pour
la légalité ne nous permet pas de douter que cette possession n’ait été reconnue en droit, et notamment, que le possesseur n’ait été
protégé contre les actes arbitraires qui auraient pu troubler sa possession. Admettre que la possession, telle que la présupposent
les interdits, n’était autre chose que la forme légale donnée à ces concessions de l’‖ager publicus‖, c’est résoudre deux problèmes
à la fois: c’est trouver le but originaire, l’occasion déterminante de la possession, c’est indiquer aussi la forme légale
qu’empruntait la jouissance de l’‖ager publicus‖.
28
existe a partir da cidade, enquanto a propriedade particular e a posse são muito
anteriores, remontando ao tempo em que só havia as gens, quando ainda não existia o
ius civile, mas tão só o ius gentium. A propriedade particular, que se convencionou
chamar domínio quiritário, foi, pouco a pouco, perdendo seus privilégios, até se
igualar a possessio, já então denominada proprietas.
O início da proteção possessória também não se encontra nos
interditos, criação dos pretores, que, por sua vez, só apareceram em 387 aC, com a lei
Licínia, sendo evidente que muito antes dessa data já havia proteção à propriedade e
ao seu direito de exercício, que é a posse (usus) do seu titular, através da vindiciae,
sendo a detenção — naturalis possessio — defendida pela ação de injúria e,
posteriormente, por interditos não possessórios, como o de loco publico fruendo,
conforme acentuam Girard85
e Vieira da Silva86
.
A posse, como exercício do direito de propriedade, encontra
proteção na vindiciae, o mais remoto procedimento possessório, como ensina
Ihering87
, enquanto a detenção pelos membros das gens, que não o pater, era
amparada pelas ações de injuria, a serem julgadas pelo próprio pater, vez que a
cidade, assim como os tribos e as cúrias, não interferia no que se passava no interior
dos territórios gentílicos.
85 GIRARD – obra citada – livro III – II – capítulo II, pag. 274. C’est là la différence essentielle entre la possession et la
détention. Les détenteurs ne sont pas, quoi qu’on en ait dit parfois, dépouvus de toute protection. Les détenteurs ont tous, en
réalité, le moyen qui réprime toutes les atteintes à la personnalité, l’action d’injures. Ils peuvent en outre, selon leur qualité
particulière, avoir des moyens propres, même des interdits : par exemple, le fermier d’um‖ locus publicus‖, l’interdit ―de loco
publico freuendo‖; par exemple, le fermier ordinaire, l’interdit ―quod vi aut clam‖, donné à raison de toute modification à l’état
d’un immeuble (―opus in solo factum‖) accomplie contre la volonté ou à l’insu d’un intéressé qui se trouve lésé. Mais aucun
détenteur n’a les interdits possessoires.
86 VIEIRA DA SILVA – obra citada – ver nota de n° 77.
87 IHERING - Du Rôle de la Volanté Dans la Possession - tradução francesa de Meulenaere - capítulo VIII - págs. 106/108. S’il
est vrai, et je le soutiens encore, que la concession des ―vindiciae‖ a été à Rome la plus ancienne forme de procédure de la
possession, à laquelle le Préteur n’a substitué la protection par les interdits possessoires qu’á l’époque relativement récente de
son intervention créatrice, cela établit en mème temps la priorité de la protection possessoire des immeubles sur celle des
meubles.
29
Como coloca Ihering com precisão ―a casa romana é o ponto de
partida histórico da noção de detenção, a sede original, o vínculo inicial da relação
de detenção relativa”88
. É na domus romana que a noção de detenção foi revelada
pela primeira vez à consciência dos romanos, pois, ainda como esclarece Ihering
―todo romano sabia que os menores e os escravos não podiam intentar uma ação,
nem contra terceiros, nem contra o chefe da família, o que significava, em matéria de
posse, que no sentido jurídico, eles não podiam possuir, quer dizer, eles só
detinham”89
, ou seja, ―do ponto de vista da teoria possessória, essa exclusão de
remédios possessórios significava que as pessoas sob seu poder (do pater) não
podiam possuir (“civilis possessio”), que sua relação possessória devia ser
considerada como detenção (“naturalis possessio”)‖90
.
Essa noção de detenção, iniciada nas relações domésticas, foi
transferida às relações contratuais dos fazendeiros e dos locatários — in possessione
esse — que Ihering explica como sendo a relação comum, materialmente reconhecida
entre o possuidor e o detentor91
, dizendo expressamente que ―a detenção doméstica é
a forma originária da relação de detenção; a detenção contratual é em seu conteúdo,
somente uma imitação”92
.
Prosseguindo em seu raciocínio, Ihering sustenta que ―a similitude
da relação de detenção do fazendeiro e do locatário com a detenção doméstica salta
aos olhos93
, sendo certo que o “patre”, quando potestativamente dispensa seu cliente,
cancelando as concessões feitas, dispunha de meios para recuperar a coisa e até
88 IHERING – obra citada, capítulo VIII, pág. 88.
89 IHERING – obra citada, capítulo VIII, pág. 89.
90 IHERING – obra citada, capítulo V, pág. 55.
91 IHERING – obra citada, capítulo VIII, pág. 95.
92 IHERING – obra citada, capítulo VIII, pág. 97.
93 IHERING – obra citada, capítulo VIII, pág. 103.
30
interditar o fazendeiro de colher os frutos, que, se o fizesse, cometeria um
“furtum””94
.
À surpresa estampada por alguns pelo fato de o direito deixar em
desamparo os fazendeiros e locatários Ihering responde que há de ser menor do que
diante do poder do pater de vida e morte sobre os menores e sobre todos aqueles que
se encontram sob seu poder95
. ―Foi precisamente para assegurar juridicamente essa
possibilidade ao proprietário que lhe foi concedida a posse e somente a detenção ao
fazendeiro”96
.
É de se frisar que a discussão acerca do território gentílico pertencer
ao patre, ou a gens, sendo aquele seu usufrutuário, acaba num circulo vicioso, pois o
pater tinha poderes amplos, como vender os filhos ou matá-los, bem como todos de
sua gens, podendo escolher seu sucessor pela adoção, caso a primogenitura não lhe
conviesse.
Esse domínio quiritário, que posteriormente se fundiu com a
possessio e que resultou na proprietas, quando perdeu seu último privilégio no
momento em que Diocleciano fez incidir sobre ele o tributum, só podia pertencer, de
acordo com o ius civile, que norteava as relações entre os patres, a cidadãos romanos,
sobre solo romano, devendo ser adquirido de modo romano, ou seja, pela mancipatio,
ou pela in iure cessio, quando se tratasse de res mancipi, entre as quais se achavam os
fundos de terras. A traditio era modo de aquisição apenas de res nec mancipi, não
transferindo o domínio de imóveis.
Continuando na análise do domínio quiritário em seus primórdios,
encontra-se a propriedade bonitária, assim chamada quando a alienação do domínio
quiritário não transferia sua titularidade, na hipótese de não emprego da mancipatio
94 IHERING – obra citada, capítulo VIII, pág. 103.
95 IHERING – obra citada, capítulo VIII, pág. 104.
96 IHERING – obra citada, capítulo VIII, pág. 105.
31
ou da in iure cessio, mas sim da traditio, que não conferia ao adquirente o domínio ex
iure quiritium.
Para defesa do proprietário in bonis contra a vindicatio do titular do
domínio quiritário foi-lhe conferida a exceptio doli, assim como a exceptio rei
venditae et traditae para a hipótese da propriedade quiritária ser transferida a terceiro
através da mancipatio ou da in iure cessio, exceções que paralizavam a reivindicação,
tanto do alienante quanto do terceiro adquirente.
Ainda para defesa da propriedade in bonis, cuja posse também
constituía o exercício de um direito, foi concebido o instituto da usucapião, então
denominado usus et autoritas, permitindo a aquisição do domínio quiritário pelo
exercício da posse diante de todos pelo prazo de um ano, se se tratasse de coisa
móvel, e de dois anos com relação a imóveis, protegendo não só o proprietário in
bonis, mas também aquele que possuía em virtude de aquisição a non domino ou de
quem não podia alienar, com iustum initium97-98
.
A antiga usucapião, estabelecida na lei das XII Tábuas, mas que,
sem dúvida alguma, lhe era anterior, atendia ao interesse público, como lembra
97 GIRARD – obra citada – livro III – II – capítulo III – seção III – pág. 296. L’ usucapion, qui est déjà réglée par les XII
Tables, est l’acquisition de la propriété par la possession prolongée, par une possession d’un an pour les meubles et de deux ans
pour les immeubles. Elle a pour résultat de parfaire une acquisition restée défectueuse soit à raison de la forme, parce que le
mode employé n’a pas été le mode requis par le droit civil, soit à raison du fond, parce que l’aliénateur n’était pas le propriétaire
ou plus largement n’avait pas qualité pour aliéner valablement. Quand le mode employé n’a pas été le mode civil, quand par
exemple il a été fait simple tradition d’une res mancipi, celui qui a reçu la tradition va, si la chose ne lui est pas enlevée avant
l’expiration du délai,acquérir par la possession prolongée la propriété quiritaire qui lui faisait défaut, transformer sa propriété
prétorienne en propriété quiritaire, dira-t-on depuis la reconnaissance de la propriété prétorienne.
98 CHARLES MAYNS – obra citada – Tomo I – § 110 - págs. 739 e 740. Le transfert de la propriété civile se faisait à Rome
sous la garantie de la nation ou de l’autorité constituée: dans la ―in iure cessio‖, c’était le magistrat; dans la ―mancipatio‖, c´étaint
les témoins représentat les cinq classes du peuple, qui garantissaient à l’acquéreur son droit de propriété. Si cette garantie n’avait
pas acompagné le transfert d’une chose, on pouvait y suppléer par une possession publique et manifeste exercée pendant un
certain laps de temps. En effet,cet exercice public et paisible de la propriété, au vu de la nation entière, semblait impliquer le
consentement de tous les citoyens. L’usucapion était à la mancipation ce que le droit coutumier était à la loi votée dans les
comices. Aussi ce mode d’acquérir est-il probablement aussi ancien que le droit de Romains.
32
Namur99
, pois não convinha que a propriedade das coisas permanecesse incerta por
muito tempo — “ne dominia rerum diutius in incerto essent — servindo para
transformar, ainda nas palavras de Namur, a propriedade natural em propriedade
quiritária no caso da res mancipi ter sido adquirida sem as formalidades da
mancipação ou da cessão na justiça, ou para fazer adquirir a propriedade quiritária, no
caso onde se havia recebido uma coisa de quem não era proprietário ou não podia
alienar.
Como se vê, a exceptio doli e a exceptio rei vendictae et traditae só
protegiam ao proprietário in bonis, não o que adquiriu a non domino, que não podia
opô-las ao legítimo titular do domínio quiritário, mas ambos eram protegidos pela
usucapião, sendo certo que no caso da alienação sem os formalismos exigidos, o
titular do domínio quiritário tinha um título nu — nudum ius quiritium — não
podendo impedir a consumação da usucapião, por força da exceptio doli, o mesmo
ocorrendo com quem dele adquirisse o domínio quiritário, por força da exceptio rei
vendictae et traditae e do princípio geral de direito no sentido de que não se transfere
mais direitos do que se tem, não podendo, em conseqüência, aquele que só tivesse o
nudum ius quiritium transferir mais do que isso, ou seja, um nada, ou quase nada
jurídico.
É importante frisar que a usucapião, instituto antiqüíssimo, não
protegia o fato da posse, mas sim a posse como exercício de um direito — a
propriedade bonitária — ou de um suposto direito, como na aquisição a non domino,
mas sempre lastreada num iustum initium, enganando-se Savigny100
quando, ao
99 P.NAMUR – Cours D’Institutes Et D’Histoire Du Droit Romain – edição de 1888 – Tomo 1° - livro III – título 1° - capítulo II
- § 144 - pág. 206. L’ancienne usucapion, établie déjà par la loi des XII Tables, reposait sur des motifs d’intérêt public. On l’avait
admise afin que la propriété des choses ne demeurât pas trop longtemps incertaine: ―Ne dominia rerum diutius in incerto essent‖.
L’usucapion servait:
1° A changer la propriété naturelle en propriété civile ou quiritaire, spécialement dans le cas ou une res mancipi avait été livrée
sans les formalités de la mancipation ou de la cession en justice.
2° A faire acquérir la propriété quiritaire, dans le cas ou l’on avait reçu une chose d’un individu qui n’en était point proprétaire.
100 SAVIGNY – obra citada, 1° Tomo - § 2° - pag.9/10. La simple possession, indépendamment de tout droit, est donc ici la
source de la propriété. Pour qu’elle produise cet effet, il faut, il est vrai, qu’elle ait commencé d’une certaine manière déterminée;
33
analisar os efeitos da posse, afirma que ―a simples posse, independentemente de
qualquer direito, é portanto a fonte da propriedade”, embora consigne que ―é
verdade ainda que essa mesma posse, que conduz à usucapião, foi considerada como
um direito, protegido como tal pela “actio Publiciana”‖, lembrando que “essa ação,
de origem bem mais recente que a usucapião, não pôde lhe servir de base”, insistindo
que “é portanto da posse só, independente de qualquer outro direito, que provém a
usucapião, quer dizer a aquisição da propriedade”.
A ação publiciana, que permite àquele em vias de usucapir
reivindicar a posse, lastreada na ficção de que o prazo já estaria completado,
efetivamente é criação pretoriana, muito posterior ao instituto da usucapião, mas essa
constatação não autoriza a conclusão de que o simples fato da posse pudesse levar à
aquisição do domínio quiritário, vez que, como já exposto, a usucapião protegia
somente a posse fulcrada num direito — in bonis — ou na crença de que se havia
adquirido o domínio quiritário, não o simples fato da posse, como sustenta
equivocadamente Savigny.
O simples fato da posse, sem constituir exercício de qualquer
direito, só levava ao domínio quiritário nas chamadas usucapio pro herede e
usureceptio. Com efeito, a herança da qual os herdeiros não tomassem efetivamente
posse era considerada res nullius, permitindo sua aquisição, através da usucapio pro
herede, pela posse por um ano, mesmo de imóveis, instituto este que foi abolido por
Adriano ao conferir aos herdeiros a ação de petição de herança, tendo posteriormente
Marco Aurélio tipificado a apropriação de bens hereditários como crime — accusatio
vel crimen expilatae hereditaris. Com relação à usureceptio, Mayns101
, citando Gaio,
mais elle n’en reste pas moins, comme toujours, un simple fait ne touchant au droit que par l’effet que nous signalons. It est vrai
encore que cette même possession, qui conduit à l’usucapion, a été aussi considérée comme un droit, protégé comme te par
l’‖actio Publiciana‖; mais cette action, d’origine beaucoup plus récente que l’usucapion, n’a pu lui servir de base. C’est donc de
la possession seule, indépendamment de tout autre droit, que découle l’usucapion, c’est-à-dire l’acquisition de la propriété.
101 CHARLES MAYNS – obra citada – Tomo I - § 110 – pág. 744. Deux cas particuliers d’‖usureceptio‖, c’est-à-dire de
reaquisition par ―usus‖ d’une chose qui nous avait appartenu et dont nous perdus la proprieté. Celui qui avait mancipé a un autre
unechose ―cum fiducia‖, c’est-à-dire sous la promesse que la chose lui serait rendue, en recouvrait la proprieté, par la possession
continue d’un an, sans qu’il eût besoin de l’acquérir par remancipation ou rétrocession. Du même on pouvait réusucaper par une
possession de deux ans une chose immobilière qu’on avait engagée à L’Etat, et qui avait été vendue par ce dernier. La vente foite
34
lembra dois casos particulares em que faltaria a boa fé: no primeiro o proprietário
quiritário readquiria pela posse uma coisa que lhe havia pertencido, da qual havia
perdido a propriedade, transferida a outra pessoa, com a promessa de que lhe seria
restituída, sem necessidade de nova mancipação; no segundo ele recuperava pela
posse uma coisa dada em garantia ao Estado e por este vendida.
Há ainda, ao lado da propriedade ex iure quiritium e da propriedade
in bonis, a propriedade decorrente de autorização judiciária, mais tarde chamada de
propriedade pretoriana, cujo exercício, pela posse, levava também ao domínio
quiritário pela usucapião.
Essa propriedade pretoriana, que colocava seu titular na posse in
causa usucapiendi, decorria de autorização judiciária, que, como acentua Girard102
,
embora em princípio tenha o papel de reconhecer os direitos existentes e não de os
transferir, em alguns casos, que remontam ao antigo direito civil, procede à
transmissão da propriedade, como ocorre na adjudicatio, em matéria de damnum
infectum e na actio noxal.
A adjudicatio transferia o domínio ex iure quiritium quando
presentes as condições para tanto, mas na falta de uma delas não havia iudicium
legitimum, ou seja, um processo organizado em Roma ou em suas imediações, entre
cidadãos romanos, perante um juiz romano, mas apenas iudicium, baseado no
imperium do magistrado, dela surgindo a propriedade posteriormente denominada
pretoriana, ocorrendo tanto nas duas ações de divisão — actio familiae erciscundae
para dividir heranças e actio commune dividundo para dividir bens individuais —
quanto na ação de limitação — actio finium regundorum.
par L’Etat s’appelait dans ce cas ―praediatura‖, et le fait de réusucaper la chose vendue était désigné par le terme: ―ex praediatura
possessionem usurecipere‖.
102 GIRARD – obra citada – livro III – II – capítulo III - pág. 310. L’autorité judiciaire a, em principe, pour rôle de reconnaitre
lês droits préexistants et non pas de les déplacer, en matière de propriété, de reconnaitre chez qui est la propriété et non pas de la
transférer. Cependant il y a quelques cas, dont le plus net et le plus important remonte à l’ancien droit civil, dans lesquels
l’autorité judiciaire procède à une véritable transmission de propriété.
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Nessas ações em que a autoridade judiciária intervinha, na falta de
acordo entre as partes, é de se observar que quando só se determinavam limites, a
adjudicatio era apenas um acidente, mas nas ações de divisão ela sempre ocorria, pois
a finalidade delas era dividir, seja estabelecendo lotes iguais, seja para atribuir lotes
desiguais, quando a diferença de valores era compensada por indenização, ou até para
atribuir os bens comuns a um só dos interessados, que pagava uma indenização aos
demais.
No damnum infectum, quando o proprietário de um imóvel que
ameaçava ruína tenha recusado dar caução de reparar eventual prejuízo, a autoridade
judiciária colocava o demandante na posse do imóvel, in causa usucapiendi, o mesmo
ocorrendo na actio noxal com o escravo ou o animal que causaram dano e não eram
defendidos por seus proprietários.
Portanto, somente onde havia domínio quiritário é que tinha lugar a
usucapião, que tinha por finalidade conferi-lo a quem tivesse posse decorrente do
exercício de um direito, ou seja, das propriedades in bonis ou ex iure praetorio, ou
ainda da posse na hipótese de aquisição a non domino ou de quem não podia alienar,
em que havia o iustum initium, com boa fé, ao menos no momento da suposta
aquisição.
Logo, exatamente ao contrário do que leciona Savigny, o simples
fato da posse, exceto na usucapio pro herede e na usureceptio, pelas razões já
explicadas, não levava ao domínio quiritário pela usucapião, mas sim a posse como
exercício de um direito, seja na chamada propriedade bonitária, seja na denominada
propriedade pretoriana, ou de um suposto direito, como na aquisição a non domino ou
de quem não podia alienar, mas jamais o simples fato da posse. Tampouco havia
usucapião na propriedade provincial e na propriedade peregrina, aquela por não se
tratar de ager privatus, não comportando domínio ex iure quiritium, esta por faltar
qualidade a seu titular, que não dispunha de ius commercii, mesmo quando incidente
sobre o ager privatus.
Como se vê, a posse era o exercício do direito de propriedade, seja
esta quiritária, bonitária, ou pretoriana, ou de outro direito sobre coisas, como a
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possessio, ou ainda um simples fato sem lastro em qualquer direito, encontrando
sempre proteção, principalmente quando se trata do exercício de um direito, ou até
mesmo de um suposto direito, na hipótese de aquisição a non domino ou de quem não
podia alienar, em que havia boa fé do possuidor, ao menos no momento da pretensa
aquisição.
O simples fato da posse, sem que a ele corresponda qualquer direito
ou suposto direito, também era protegido no antigo direito civil, pois na ação
reivindicatória o réu podia contestar a propriedade do demandante tanto sustentando
ser ele o dono ou por simples negação, hipótese em que cabia ao autor provar seu
domínio, com a improcedência do pedido se não o fizesse, como demonstram
Mayns103
, ao enumerar os meios de defesa que podem ser opostos à reivindicação, e
Girard104
, ao lembrar que no sistema das actio legis, especificamente no sacramentum
in rem, quando os dois sacramentos eram declarados injustos, tanto o do que
reivindica quanto o do defensor, este, que estava na posse, não a tinha que restituir,
sendo nela mantido.
Ora, se o pleito do demandante era improvido, sem que o possuidor
demandado tivesse que demonstrar qualquer título para sua posse, resta patente que o
simples fato da posse era também protegido pelo direito, mesmo em épocas primevas.
Nas terras provinciais, provenientes de conquistas em épocas
posteriores, onde não havia ager privatus, mas tão só ager publicus, não havendo,
consequentemente, domínio quiritário, nem usucapião, a ação reivindicatória ficta, da
qual dispunha o titular da possessio, era também paralisada pela praescriptio temporis
concedida ao simples possuidor, após trinta anos de posse, mesmo sem iustum initium,
103 CHARLES MAYNS – obra citada – Tomo I - § 120 – pág. 786 – Le defendeur peut d’abord contester le fondement de
l’action em deniant soit la propriété du demandeur, soit la lésion – S’il conteste la propriété (ce qu’il peut faire par simple
dénégation ou bien en soutenant qu’il est lui-même proprietaire de la chose), c’est évidemment au demandeur de prouver qu’il a
acquis la chose par un mode légal; faute de quoi il sera débouté de sa demande, alors même que le defendeur n’aurait aucun titre
de possession.
104 GIRARD – obra citada – livro III – II – capítulo V – pág. 336. Il y a là une innovation très importante; mais l’origine s’en
rattache pourtant probablement à ce qui se passait déjà pratiquement dans le ―sacramentum in rem‖ au cas où les deux
―sacramenta‖ estaient declares ―injusta‖ et où por consequent celui qui avait reçu la chose à titre interrimaire n’avait pas le
rendre.
37
que, embora não servisse para a aquisição de direito, era uma defesa conferida ao
simples fato da posse, já que a praescriptio longi temporis, análoga à usucapião,
malgrado muito posterior a esta, demandava diversos requisitos, entre eles o justo
título e a boa fé, sendo seu prazo de dez anos entre presentes e de vinte anos entre
ausentes.
Mesmo quando Justiniano fundiu os institutos da usus et autoritas e
da praescriptio longi temporis, adotando os prazos desta última, de dez anos entre
presente e de vinte anos entre ausentes, criando também a praescriptio longissimi
temporis, com prazos de trinta e de quarenta anos, acabando formalmente com a
divisão das terras em itálicas e provinciais, bem como com a divisão das coisas em res
mancipi e res nec mancipi, que de fato já haviam desaparecido, o novo instituto
demandava boa-fé, embora não exigisse o justo título, o que importava em que este
fosse ao menos putativo, já que não pode haver crença de ser dono, necessária à boa
fé, sem um título, ou suposto título, que a justifique. Logo, o simples fato da posse
não levava à propriedade pela via da usucapião, não obstante encontrasse proteção,
como demonstrado. Somente no direito moderno é que a posse de má-fé permite que
se adquira o domínio através da usucapião, o que, com exceção da usucapio pro
herede e da usureceptio, não ocorria no direito romano em todos os tempos, tanto no
direito antigo quanto no justianeu.
Resta, pois, esclarecido que a primitiva usucapião, então
denominada usus — que era o nome dado à posse — et autoritas — que importava na
chancela do Estado à posse exercida perante todos, por prazo determinado — foi
criada para socorrer a posse decorrente de uma causa legítima, protegendo aquele que
adquiriu res mancipi pela traditio — in bonis — , ou que foi investido na posse por
autorização judiciária — ex iure praetorio —, ou ainda a posse do que adquiriu de
quem não era dono ou não podia alienar, sendo imperioso nesta hipótese que o
adquirente acreditasse que o tradens fosse dono e pudesse alienar105
. O que adquiriu
105 GASTON MAY – obra citada – n° 88 - pág. 219. 2ª Bonne foi – La possession prolongée ne conduit à l’usucapion que si elle
a été reçue de bonne foi, c’est-à-dire par un accipiens ayant cru que le tradens était propriétaire et qu’il avait capacité pour
aliéner.
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pela traditio, prescreve Mayns106
, bem como o que foi empossado por autorização
judiciária in causa usucapiendi, podemos acrescentar, eram dispensados dessa prova,
vez que a causa da aquisição era in bonis, ou ex iure praetorio, encerrando no próprio
ato aquisitivo a justa causa ou justo início, decomposto no direito clássico em justo
título e boa fé.
A atual usucapião ordinária, que exige o justo título e a boa fé, é a
única conhecida em todo o desenvolvimento do direito romano, fora as hipóteses da
usucapio pro herede e da usureceptio, já mencionadas, pois somente com Justiniano
surgiu a usucapião sem justo título, mas com boa fé, sem a qual o possuidor podia
estancar ao fim de trinta anos a ação reinvindicatória do titular do domínio, mas não
servia para aquisição de direitos. A posse sem lastro num justo início, que hoje
permite a aquisição da propriedade através das denominadas usucapião extraordinária
e usucapião especial, que dispensam o justo título e a boa fé, não autorizava no direito
romano a aquisição de qualquer direito, só servindo para paralisar a reivindicação, isto
é, como meio de defesa.
Assim, parafraseando Goethe quando diz que ―quem, de três
milênios não é capaz de se dar conta, vive na ignorância, na sombra, à mercê dos
dias, do tempo”, podemos afirmar que na mesma situação se encontra quem supõe
conhecer o instituto da usucapião ordinária sem se dar conta da sua evolução desde o
surgimento do ius civile até os nossos dias.
106 CHARLES MAYNS - obra citada – Tomo I - § 110 - página 742. D) Enfin il fallait que le pouvoir exercé par l’usucapiens
eût une cause légitime, telle qu’en acquérant la possession il pút se croire en droit d’avoir la chose comme maitre. Dans la
personne du propriétaire bonitaire, cette croyance était justifiée et légitimée parl’acte même qui lui avait donné-la possession de
la chose; mais en debors de cette hypothèse, il ne suffisait pas toujours que la prise de possession eùt eu lieu par suite d’un acte
propre à donner la propriété. Notamment quand nous avions acquis la chose par um mode dérivé, l’acte le plus légal n’eut pas
constitué pour nous une ―iusta causa possessionis‖, si nous avions pu croire, ao moment de l’acquisition, que notre auteur ne fùt
pas propriétaire ou n’eut pas la capacité d’aliéner; a conviction contraire était indispensable. C’est pourquoi l’on disait que, en
outre de l’acte propre à transférer la propriété, il fallait que la possession eut été acquise de bonne foi. Cette décomposition de
l’idée qu’on avait probablement, dans l’origine, exprimée par le terme général iusta causa, ne s’appliquait rigoureusement qu’aux
acquisitions dérivées; mais comme ce sont là de fait les acquisitions les plus nombreuses et les plus importantes, elle finit par être
généralisée, et du temps des jurisconsultes classiques, ou avait admis comme règle que toute usucapion, en dehours de la
propriété bonitaire, exigeait la réunion de deux conditions: ‖iusta causa‖ ou‖ iustus titulus‖ et ‖bona fides‖.
39
Com efeito, em seu nascedouro, a usucapião protegia a posse
decorrente de um direito — in bonis ou ex iure praetorio — em que se exigia apenas a
existência desse direito, além da posse pelo prazo de dois anos, quando se tratava de
res mancipi, entre as quais se situam os fundos de terra, não podendo ser
interrompido, pois o titular do domínio quiritário, ou quem dele o adquirisse, teria sua
reivindicação estancada pelas exceptio doli e exceptio rei vendictae e traditae.
Somente ao que adquiriu de quem não era dono ou não podia alienar
é que se impunha a prova da boa fé107
, que era exprimida pelo termo justa causa. Com
o desdobramento dessa justa causa ou justo início em justo título e boa fé, ocorrido no
direito clássico, foi assentado o entendimento de que aquele é a causa que, em tese,
importaria na aquisição do domínio, mas que por força de algum vício, no caso
concreto, não há a aquisição do domínio. Também não pode haver lesão na relação
com o possuidor precedente, sendo em si mesmo apto a justificar a aquisição do
domínio, como assinala Bonfante108
.
A boa fé, por sua vez, cuja demonstração, como já dissemos, não era
exigida do proprietário bonitário, que adquiriu res mancipi pela traditio, nem do
proprietário pretoriano, que entrou na posse conforme autorização judiciária, pois o
justo título por estes exibidos demonstrava boa-fé inafastável, importava na
consciência da legitimidade da posse, devendo ter lastro num erro que nos faça crer
que o ato pelo qual nós adquirimos a posse nos dá a propriedade, como prescreve
107 CHARLES MAYNS – obra citada – Tomo I - § 113 - págs. 753 e 754. D) Juste titre, ―iusta causa‖ ou ―iustus titulus
possessionis‖. Il faut que la possession ait été acquise em vertu d’un juste titre, c’est-à-dire em vertu d’um acte qui, em thèse
générale, est propre à donner la propriété, quoique dans l’espèce il y ait um obstacle qui empêche cette acquisition.
Ordinairement, cet obstacle proviendra de ce que celui qui nous fait tradition d’une chose n’en est pas le propriétaire, ou de ce
qu’il n’a pas le droit de l’aliéner. Il peut se faire aussi que l’obstacle provienne de la personne de l’acquéreur ou de la chose qu’il
s’agit d’acquérir. Dans tous les cas, nous devons ignorer l’existence de l’obstacle qui vicie notre acquisition, car autrement la
bonne foi nous manquerait. Le juste titre et la bonne foi sont donc intimement liés; le titre est l’acte extérieur qui justifie la
possession et motive la bonne foi.
108 PIETRO BONFANTE – Instituciones De Derecho Romano – tradução espanhola de Luis Bacci y Andrés Larrosa – 1929 - §
91 – pág. 288. La ―iusta causa‖ (o ―iustus titulus‖, como en la nueva época se prefiere) es aquella relación con el posedor
precedente que demuestra positivamente la ausencia de lesión ajena en la toma de posesión, y seria en si misma apta para
justificar la adquisición del dominio.
40
Mayns109
. Não é outra coisa que comportar-se o possuidor como pessoa honrada, com
a consciência de que não se está causando nenhum prejuízo ao legítimo possuidor, nas
palavras de Bonfante110
.
Evidentemente, o desconhecimento do obstáculo à aquisição da
propriedade não pode incluir a forma, pois não se poderia alegar desconhecimento em
Roma da regra de que só se adquiria o domínio da res mancipi pela mancipatio ou
pela in iure cessio, do mesmo modo que hoje, no direito positivo brasileiro, não se
poderia invocar desconhecimento de que a aquisição da propriedade imóvel por ato
inter vivos só acontece com o registro, bem como não se poderia desconhecer que o
contrato particular não é registrável, exceto nos casos expressamente previstos em lei.
Desse modo, o justo título trazia em seu bojo a boa fé, cuja
existência só era exigida no momento da aquisição da posse, já que no direito romano
prevalecia a regra mala fides superveniens non nocet, que não é contemplada na
legislação positiva brasileira, que exige boa fé em todo o exercício da posse para que
possa haver usucapião.
No entanto, a distinção entre boa fé e justo título é imperiosa, não se
podendo confundir as duas figuras, como adverte Gaston May111
, pois aquela é a
crença do adquirente na legitimidade dos direitos que lhes são transferidos, que só
pode haver se existir um justo título ou, ao menos, que se acredite na sua existência, o
109 CHARLES MAYNS – obra citada – Tomo I - § 113 - pág. 752. C) Bonne foi ―bona fides‖. Il faut que la possession ait été
acquise de bonne foi; en d’autres termes, celui qui veut se prévaloir de l’usucapion doit avoir eu la conviction d’acquérir la
propriété au moment où il a pris possession de la chose. La bonne foi est donc basée sur une erreur, qui nous fait croire que
l’acte par lequel nous nous mettons en possession nous donne la propriété.
110 PIETRO BONFANTE – Instituciones - § 91 - pág. 290. La buena fe no es otra cosa sino el comportarse como persona
honrada en la toma de posesión; en otros términos, la conciencia de que nose causa perjuicio alguno al poseedor legitimo.
111 GASTON MAY – obra citada – n° 88 - págs. 219 e 220. La bonne foi ne doit pas être confondue avec la ―justa causa‖. Elle
n’est qu’une opinion, une croyance du possesseur dans la légitimité des droits qu’on lui transfère. La ―justa causa‖ est un fait
juridique indépendant de cette croyanne, et qui souvent sera de nature à la faire naitre dans l’esprit du possesseur ou à l’y
confirmer. Car il est naturel que celui-ci croie à la légitimité de son acquisition quand il voit son prédécesseur conclure avec lui
les actes de droit destinés à la parfaire. La bonne foi est donc toujours présumable, du moment qu’il y a ―justa causa‖, et c’est
pour cela qu’elle est toujours présumée. C’est au propriétaire qui revindique à prouver que le possesseur est de mauvaise foi et ne
peut usucaper.
41
que, ainda conforme os ensinamentos de Gaston May112
, não permite a consumação
da usucapião quando é exigido o justo título, provando que este é uma condição
distinta da boa fé. Em suma, para haver a boa fé, que é a crença de que se é dono, há
de haver um justo título, ou que se acredite na sua existência. Mas a crença na sua
existência, suficiente à boa-fé, não o é para o justo título quando exigido, como
demonstra Mackeldey113
. Marcel Planiol114
dá como exemplo de justo título putativo
o testamento revogado por um segundo testamento desconhecido, posteriormente
descoberto. Nas Ordenações Filipinas115
, para que houvesse usucapião eram
necessários a boa fé e o justo título, dispensando-se o justo título na prescrição
trintenária, mas não a boa fé, como ensina Coelho da Rocha116
.
As legislações modernas, entre elas a brasileira, acolheram o
desdobramento do iustus initium em justo título e boa fé, havido no direito clássico e
mantido no período justianeu, que chegou até nós, conservando-lhes as feições, com
exceção da exigência de boa fé em todo o período possessório, que atualmente é
necessária à usucapião ordinária, o que não ocorria no direito romano, como já
assinalado.
À luz desses esclarecimentos e dessa investigação, verificamos que
a configuração do justo título demanda apenas um ato ou fato que, em tese, possa
112 GASTON MAY – obra citada – n° 88 - pág. 219 - nota (6). C’est pour cela que, dans la théorie définitivement assise, la
croyance ou titre ne peut tenir lieu du titre. L’inadmissibilité d’un titre putatif prouve bien que le juste titre est devenu une
condition distincte de la bonne foi.
113 MACKELDEY – Manuel de Droit Romain – Tradução belga – edição de 1837 – Parte Especial, livro 1° - capítulo II – título
II - § 261 – pág. 162. Aucune erreur ne doit exister par rapport à la chose à laquelle Le titre se rapporte. Si le erreur repose dans
la personne de l’auteur, il faut examiner si elle est de droit ou de fait; la première forme um emêchement à l’usucapion, mais il
n’en est pas de même de la secfonde. Enfin, si l’erreur se rapporte à la cause de la possession elle – même, il faut distinguer: si
réellement il existe un titre, mas outre que celui par lequel on croit posséder, dans ce cas l’usucapion n’est pas interrompue; si au
contraire il n’existe aucun titre, dans ce cas, l’usucapion ordinaire ao moins ne peut avoir lieu.
114 MARCEL PLANIOL – obra citada – Tomo I – n° 2664 – pág. 834.
115 ORDENAÇÕES FILIPINAS – L. 2, Título 53, § 5°, ―in fine‖ – L.4, Título 3, § 1°, ―in fine‖.
116 COELHO DA ROCHA – obra citada – Tomo 2 - § 460 – págs. 46 e 47. ―O título do começo da posse presume-se continuar,
em quanto se não provar alterado; e portanto, se elle era habil para transferir a propriedade, assim continua, e procede a
prescripção; e vice versa, se era em nome d’outrem, Cod. Civ. Fr. Art. 2230 e 2231. O justo título não se presume, é necessário
apresental-o; excepto na prescripção de trinta annos.‖
42
transferir a propriedade, sem transferi-la, por força de um vício. Se não houver vício
a propriedade terá sido transferida, o que afastaria o instituto da usucapião, que se
tornaria despiciendo. Trata-se, pois, do fundamento da aquisição, configurando tão
somente um ato ou fato jurídico que, em abstrato, sirva para transferir o domínio,
tornando-se desnecessário, em conseqüência, que seja escrito, registrado, ou que seja
formalmente válido.
Quando se trata de um contrato particular de compra e venda, ou de
promessa de compra e venda, ainda que consubstanciado num recibo, ou até mesmo
verbal, estamos inequivocamente diante de um justo título, pois a compra é o
fundamento, a causa da aquisição da posse com animus domini, com a crença pelo
accipiens de que não há obrigação de restituir. Como já dito não pode haver confusão
entre o título, que é o fundamento da posse, com o instrumento. A compra verbal,
como já assinalado, encontra dificuldade na prova, por força do artigo 227, do Código
Civil, que veda que ela seja exclusivamente testemunhal quando se trate de negócio
com valor superior ao décuplo do maior salário mínimo do País. Mas, feita a prova,
seja por uma carta, um e-mail, ou um bilhete, há de se considerar o justo título, vez
que a posse terá como fundamento um negócio que, em tese, transfere a propriedade,
mesmo o compromisso de compra e venda, no qual, por conveniência das partes, se
posterga o momento da celebração do contrato de compra e venda. Negar a justeza do
título por vício de forma, ou falta de registro, é o mesmo que negar o próprio instituto
da usucapião em sua essência, que foi criado exatamente para proteger aquele que
adquiriu um bem sem obedecer às formalidades legais, ou seja, para aquele que
comprou pela traditio, o que equivale no nosso direito positivo atual ao que comprou
por documento particular, por mero recibo, ou verbalmente. A boa fé nesses casos é
inafastável e está implícita no título, só sendo razoável que se exija sua prova nas
hipóteses de aquisição de quem não é dono ou não pode alienar, exatamente como era
no antigo ius civile. Mesmo assim, o título aquisitivo, nessas hipóteses traz as
presunções iuris tantum de ser justo e da boa fé do adquirente, cabendo a quem estiver
sofrendo a usucapião fazer a demonstração da má fé. A redação do parágrafo único
do artigo 1201, do atual Código Civil, reproduzindo a do parágrafo único do artigo
490, do Código Civil de 1916, não é feliz, ensejando confusões, por isto que contém a
expressão possuidor com justo título, conferindo-lhe a presunção de boa fé, quando
43
deveria dizer que o possuidor com título tem por si as presunções de que o mesmo
seja justo e da boa fé conseqüente. Desse modo, além da inversão do ônus da prova,
que, no direito atual, é de quem quer demonstrar que não é justo o título, a mudança
havida é que no nosso ordenamento jurídico a boa fé é exigida em todo o período da
posse, enquanto no direito romano bastava que ela existisse no momento da aquisição
viciosa. Assim, o que promete comprar pode até não ter pago integralmente o preço
para configurar o justo título, como ocorre quando se ajusta que o preço será quitado
quando da lavratura da escritura definitiva de compra e venda, o que acontece com
freqüência. Mas não pode haver mora do adquirente, sob pena de cessar a boa fé, com
o conseqüente esvaimento da justeza do título, se o prazo para a aquisição pela
usucapião não tiver ainda sido completado.
Nesse diapasão, não se pode deixar de assinalar que o equivocado
entendimento no sentido de que é preciso o registro para caracterizar o justo título
sofreu grande abalo com o advento do atual Código Civil, que criou, no parágrafo
único, do artigo 1242, um sub-tipo de justo título — o registrado — conferindo-lhe o
exíguo prazo de cinco anos e mantendo o prazo de dez anos para os demais casos de
justo título, o que demonstra, irrefutavelmente, que, no direito positivo vigente, há
duas categorias de justo título: o registrado, com prazo de cinco anos; o não
registrado, que demanda dez anos de posse. Do mesmo modo podemos afirmar que
no sistema do Código Civil de 1916 o justo título, que continua sendo o mesmo desde
o período clássico do direito romano, remontando ao justo início de seus primórdios,
não carecia de registro imobiliário, havendo os registrados e os não registrados, que
eram tratados sem distinção. Evidencia-se também que o atual legislador ao criar a
categoria de justo título registrado não o fez visando a facilitar a propositura de ações
de usucapião quando há título registrado, por isto que o possuidor nesse caso, estando
de boa fé, não cogitaria da usucapião, em virtude do direito real que supõe ter,
decorrente do registro, mas sim e precipuamente para defender o adquirente dos riscos
da evicção, concedendo-lhe o domínio, com a conseqüente perda da propriedade pelo
seu antigo titular, no prazo de apenas cinco anos.
Assim, podemos afirmar com segurança que, sendo o fundamento
da aquisição da posse, ao título, para que seja justo, basta que tenha lastro na
aquisição da posse como dono, com boa fé, ou seja, sem consciência de eventual
44
ilegitimidade, não se justificando outros requisitos, como ser escrito, revestido de
forma válida, ou registrado. Mesmo que se trate de ato jurídico nulo, como um
documento falsificado, em que alguém forje a assinatura do vendedor, haverá justo
título se o adquirente estiver de boa fé. Negar essa qualidade ao título nulo chega a
constituir uma falta de coerência, pois os mesmos que proclamam não poder o título
ser nulo para ser justo admitem sua existência quando o mesmo ato nulo for
registrado. A incoerência resta patente. A falta de pagamento integral do preço
também não descaracteriza o justo título quando o adquirente não está em mora. Seu
fundamento continua sendo uma aquisição com animus domini, feita com boa fé.
Nada mais é necessário a sua configuração.
Comprovado, portanto, o negócio que, em tese, teria transferido a
propriedade, mesmo que seja um compromisso de compra e venda, caracterizado
estará o justo título. Pode ser um fato jurídico stricto sensu, como ocorre na sucessão
aparente, pode ser um negócio jurídico, como sucede na compra e venda e na doação.
Por fim, o último ponto a ser abordado neste estudo é relativo a
accessio possessionis, que é autorizada expressamente pelo artigo 1243, do atual
Código Civil, assim como o era pelo artigo 552, do Código Civil de 1916. Quando se
trata de usucapião extraordinária a exigência de que todas as posses sejam contínuas e
pacíficas evidentemente não se refere à aquisição da primeira delas, que pode ter sido
com emprego de violência, mas deve ter sido exercida sem oposições. Afinal, aquele
que adquiriu com violência pode usucapir, contando o prazo desde o momento em que
ela cessou, podendo, em conseqüência, transferir sua posse ad usucapionem, sendo
totalmente infundada a interpretação no sentido de que, se foi adquirida com
violência, a posse não se presta a accessio possessionis. Não há razão lógica para se
proclamar que o possuidor em condições de usucapir, faltando apenas tempo para
tanto, não possa transferir sua posse com animus domini, contínua, exercida sem
oposições, ou seja, ad usucapionem, apenas por interpretação literal dos mencionados
dispositivos legais.
Já no que se refere à soma de posse exercida com justo título e boa
fé com outra sem essas qualidades, impõe dizer que é perfeitamente possível, com a
conseqüência lógica da perda dos atributos, só tendo lugar a usucapião extraordinária.
45
Pode ocorrer perfeitamente que seja oportuno a quem tenha adquirido com má fé de
quem possua com justo título e boa fé há, por exemplo, nove anos, somar ao seu
tempo os referidos nove anos, o que lhe permitirá adquirir o domínio em mais seis
anos, perfazendo quinze anos, tempo exigido para a usucapião extraordinária.
Impedir essa acessão, por ter o primeiro possuidor justo título e boa fé, mas permitir a
soma se o primeiro possuidor não tiver esses atributos, constitui um disparate de
grande monta, inexplicavelmente adotado pela esmagadora maioria dos doutrinadores.
A única suposição que fazemos para tão despropositado entendimento é a reprodução
impensada das fontes romanas e dos romanistas do século XIX, já que em Roma não
havia usucapião sem justo título e boa fé. Assim, se não podia haver usucapião sem
esses atributos, logicamente não poderia haver soma de posses se eles faltassem a uma
delas. Mas no momento em que nosso ordenamento positivo permite usucapião sem
boa fé e sem justo título, cabe a soma, perdendo, no entanto, a posse essas qualidades.
A usucapião nessa hipótese terá que ser extraordinária, vez que para que seja ordinária
todas as posses somadas devem ser lastreadas em justo título e boa fé.