10
23 Cadernos Temáticos de Química Nova na Escola N° 3 – Maio 2001 Introdução U m dos assuntos mais fasci- nantes para um estudante ou alguém interessado na área de medicamentos é saber como uma substância química, utilizada como fármaco, exerce a sua atividade dentro do nosso corpo. A resposta a essa questão nem sempre é muito simples e envolve estudos de elevada comple- xidade e custo. Entre os fármacos à venda nas far- mácias do nosso país, existem alguns que apresentam uma particularidade em sua estrutura, que é de fundamental importância para a atividade biológica. Alguns desses fármacos são qui- rais ou têm quiralidade, ou seja, têm em sua estrutura um ou mais átomos (na maioria das vezes carbono) que têm a sua orientação tridimensional muito bem definida. A modificação dessa orientação pode levar à diminui- ção do efeito biológico, à sua total supressão ou ao aparecimento de um efeito biológico adverso. Convém deixar claro que a quirali- dade não é condição para que uma substância apresente efeito farmaco- lógico, entretanto se a estrutura tiver um centro quiral é importante saber qual a orientação espacial responsável Fernando A.S. Coelho Nesse artigo discutimos a relação da quiralidade com o efeito farmacológico dos fármacos. Apresentamos também a forma de interação desses fármacos em um organismo animal (biofase) e as respostas biológicas associadas a essa interação. Para facilitar a compreensão do assunto, definiremos alguns conceitos básicos de estereoquímica e em seguida os aplicaremos às moléculas de alguns fármacos. Para finalizar, mostramos alguns métodos de preparação de fármacos com centros assimétricos em sua estrutura vendidos em farmácias brasileiras. fármacos, quiralidade, síntese assimétrica, ibuprofeno, captopril pela atividade. Cabe ressaltar que as legislações brasileira e mundial, na área farmacêu- tica, têm estabelecido limites à venda de fármacos cujas estruturas apresen- tem quiralidade. Nesses casos, primei- ro é necessário saber qual orientação tridimensional do centro quiral é res- ponsável pela atividade farmacológica. Esse conhecimento determinará como o fármaco deverá ser consumido pelo público. Nesse aspecto, métodos químicos que permitam o con- trole da orientação tri- dimensional do cen- tro quiral, no mo- mento em que o fár- maco esteja sendo produzido, são de ex- trema importância. É aí que a síntese assi- métrica, que é a reu- nião de estratégias e métodos químicos que permitem efetuar o controle tridimensional de um deter- minado centro quiral, mostra sua im- portância. Como o tema a ser tratado é de ra- zoável complexidade, começaremos por definir alguns conceitos de estereo- química (quiralidade, centro assimétri- co, configuração absoluta). Em um se- gundo momento esses conceitos se- rão utilizados para explicar a interação de fármacos quirais com o nosso cor- po (biofase). Finalmente, discutiremos as metodologias para a preparação de fármacos que têm centros quirais, que é a síntese assimétrica. Assimetria molecular Alguns seres humanos têm a capa- cidade de observar fatos corriqueiros e extrair deles conclu- sões que representam saltos gigantescos no conhecimento científico da humanidade. Uma dessas pessoas foi o cientista francês Louis Pasteur, que deu contri- buições significativas em vários campos do conhecimento huma- no, tais como biologia, microbiologia e quími- ca. Uma das observações feitas por Pasteur estava relacionada à forma e às propriedades ópticas de duas subs- tâncias isoladas do tártaro que se depositava nos barris, no processo de Quiralidade Fármacos quirais têm em sua estrutura um ou mais átomos com orientação tridimensional muito bem definida. A modificação dessa orientação pode levar à diminuição do efeito biológico, à sua total supressão ou ao aparecimento de um efeito biológico adverso

Fármacos e Quiralidade

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Fármacos e Quiralidade

23

Cadernos Temáticos de Química Nova na Escola N° 3 – Maio 2001

Introdução

Um dos assuntos mais fasci-nantes para um estudante oualguém interessado na área de

medicamentos é saber como umasubstância química, utilizada comofármaco, exerce a sua atividade dentrodo nosso corpo. A resposta a essaquestão nem sempre é muito simplese envolve estudos de elevada comple-xidade e custo.

Entre os fármacos à venda nas far-mácias do nosso país, existem algunsque apresentam uma particularidade emsua estrutura, que é de fundamentalimportância para a atividade biológica.

Alguns desses fármacos são qui-rais ou têm quiralidade, ou seja, têmem sua estrutura um ou mais átomos(na maioria das vezes carbono) quetêm a sua orientação tridimensionalmuito bem definida. A modificaçãodessa orientação pode levar à diminui-ção do efeito biológico, à sua totalsupressão ou ao aparecimento de umefeito biológico adverso.

Convém deixar claro que a quirali-dade não é condição para que umasubstância apresente efeito farmaco-lógico, entretanto se a estrutura tiverum centro quiral é importante saberqual a orientação espacial responsável

Fernando A.S. Coelho

Nesse artigo discutimos a relação da quiralidade com o efeito farmacológico dos fármacos. Apresentamostambém a forma de interação desses fármacos em um organismo animal (biofase) e as respostas biológicasassociadas a essa interação. Para facilitar a compreensão do assunto, definiremos alguns conceitos básicos deestereoquímica e em seguida os aplicaremos às moléculas de alguns fármacos. Para finalizar, mostramos algunsmétodos de preparação de fármacos com centros assimétricos em sua estrutura vendidos em farmácias brasileiras.

fármacos, quiralidade, síntese assimétrica, ibuprofeno, captopril

pela atividade.Cabe ressaltar que as legislações

brasileira e mundial, na área farmacêu-tica, têm estabelecido limites à vendade fármacos cujas estruturas apresen-tem quiralidade. Nesses casos, primei-ro é necessário saber qual orientaçãotridimensional do centro quiral é res-ponsável pela atividade farmacológica.Esse conhecimento determinará comoo fármaco deverá ser consumido pelopúblico.

Nesse aspecto, métodos químicosque permitam o con-trole da orientação tri-dimensional do cen-tro quiral, no mo-mento em que o fár-maco esteja sendoproduzido, são de ex-trema importância. Éaí que a síntese assi-métrica, que é a reu-nião de estratégias emétodos químicosque permitem efetuaro controle tridimensional de um deter-minado centro quiral, mostra sua im-portância.

Como o tema a ser tratado é de ra-zoável complexidade, começaremospor definir alguns conceitos de estereo-

química (quiralidade, centro assimétri-co, configuração absoluta). Em um se-gundo momento esses conceitos se-rão utilizados para explicar a interaçãode fármacos quirais com o nosso cor-po (biofase). Finalmente, discutiremosas metodologias para a preparação defármacos que têm centros quirais, queé a síntese assimétrica.

Assimetria molecularAlguns seres humanos têm a capa-

cidade de observar fatos corriqueirose extrair deles conclu-sões que representamsaltos gigantescos noconhecimento científicoda humanidade. Umadessas pessoas foi ocientista francês LouisPasteur, que deu contri-buições significativasem vários campos doconhecimento huma-no, tais como biologia,microbiologia e quími-

ca.Uma das observações feitas por

Pasteur estava relacionada à forma eàs propriedades ópticas de duas subs-tâncias isoladas do tártaro que sedepositava nos barris, no processo de

Quiralidade

Fármacos quirais têm emsua estrutura um ou maisátomos com orientação

tridimensional muito bemdefinida. A modificaçãodessa orientação podelevar à diminuição do

efeito biológico, à sua totalsupressão ou ao

aparecimento de um efeitobiológico adverso

Page 2: Fármacos e Quiralidade

24

Cadernos Temáticos de Química Nova na Escola N° 3 – Maio 2001

envelhecimento do vinho. Uma dessassubstâncias, conhecida como ácidotartárico (Figura 1) tinha a capacidade,quando dissolvida em água, de rodaro plano da luz polarizada para o ladodireito. Por convenção, ficou conhecidocomo (+)-ácido tartárico.

A outra substância conhecida comoácido paratartárico ou racêmico (do la-tim racemus = cacho de uva), eraestruturalmente idêntica ao ácido tartá-rico, mas não desviava o plano da luzpolarizada. Pasteur notou que essasubstância cristalizava quando reagiacom amônia, formando cristais queeram estruturalmente diferentes um dooutro (Figura 2).

Munido de muita paciência, de umalupa e uma pinça, Pasteur separou oscristais um a um, e os agrupou em doismontes (Sheldon, 1993). Os cristais deum dos montes eram semelhantes aoscristais do ácido (+)-tartárico e desvia-vam o plano da luz polarizada para olado direito, quando em solução. Oscristais do outro monte desviavam oplano da luz polarizada para o ladoesquerdo.

O intrigante nessa observação erao fato de que as inclinações dos des-vios terem exatamente o mesmo valor,só se diferenciando nas orientações.Assim, uma solução desviava o planoda luz polarizada para a direita e a outradesviava para a esquerda. Outro fatoimportante é que as duas substânciastinham exatamente as mesmas pro-priedades físicas (ponto de fusão, pon-to de ebulição etc). A única diferençaentre elas era o comportamento diantede um feixe de luz polarizada.

Pasteur chamou de racemato amistura inicial das duas substânciasem partes iguais, que não desvia oplano da luz polarizada. Essas obser-vações estabeleceram as bases parao surgimento da moderna estereoquí-

feitas por van’t Hoff.Essas reflexões e sugestões abri-

ram o caminho para o nosso estágioatual de compreensão de como um fár-maco com um carbono quiral exerce asua ação no interior do nosso corpo.

Princípios de estereoquímicaA química orgânica trata da relação

existente entre a estrutura molecular eas propriedades físicas de moléculasde carbono. A parte da química orgâ-nica que trata da estrutura em trêsdimensões é chamada de ‘estereoquí-mica’. Um aspecto importante da este-reoquímica é a existência do estereoi-somerismo.

Estruturas isoméricas (do grego iso-méres = partes iguais) que diferementre si unicamente pelo arranjo tridi-mensional dos seus substituintes sãochamadas de estereoisômeros.

A ocorrência de assimetria (ousimetria) é uma importante caracterís-tica de figuras geométricas que têmduas ou três dimensões. Por exemplo,no alfabeto existem letras que são si-métricas e outras não-simétricas emduas dimensões. Se considerarmos aletra R e a refletirmos no espelho, vere-mos a imagem mostrada na Figura 5.

Se simplesmente dobrarmos a fo-

mica, que é a parte daquímica orgânica que sededica a estudar as mo-léculas em três dimen-sões.

Tentando estabeleceruma relação entre o des-vio do plano da luz pola-rizada e o arranjo espa-cial das moléculas decarbono, Pasteur sugeriuque os substituintes aoredor do átomo de car-bono deveriam ter prova-velmente um arranjo tetraédrico (Figu-ra 3).

Entretanto, essa sugestão não ga-nhou muito crédito junto à comunidadecientifica da época, e acabou caindono esquecimento.

Tentando solucionar essa questão,dois químicos, van’t Hoff (1874) e le Bel(1874), em trabalhos independentes,deram continuidade às idéias de outroquímico, chamado Kekulé, e propuse-ram que os quatro substituintes do car-bono se orientam no espaço, cada umocupando um vértice de um tetraedro,com o carbono no centro. Esse arran-jo permitiria a existência de moléculasque teriam como única diferença entreelas, a orientação dos seus substi-tuintes no espaço.

Se tivéssemos ao redor do carbonoquatro substituintes diferentes, entretodos os arranjos possíveis, somentedois e não mais que dois tetraedrosseriam diferentes entre si. Um dessestetraedros é a imagem refletida noespelho do outro, sendo impossívelfazer coincidir todos os substituintes,se uma estrutura for sobreposta à outra(Figura 4).

Na verdade, essa proposta de van’tHoff evidenciou a existência de duasestruturas espaciais diferentes para amesma substância. Segundo van’tHoff, a existência de atividade ópticaestava ligada à presença de um car-bono assimétrico na molécula (Figura4). A presença de quatro substituintesdiferentes entre si e ligados ao carbonoé condição suficiente, mas não a única,para haver assimetria em uma molé-cula. Dois meses mais tarde, le Bel fezpropostas muito próximas daquelas

Quiralidade

Figura 1: Estrutura do ácido (+)-tartárico.

Figura 2: Cristais do sal de amônia de ácido tartáricoseparados.

Figura 3: Possível arranjo tetraédrico dasmoléculas de carbono.

Page 3: Fármacos e Quiralidade

25

Cadernos Temáticos de Química Nova na Escola N° 3 – Maio 2001

lha de papel, será possível sobrepor aimagem especular da letra R sobre ooriginal, ou seja, os R’s são sobre-poníveis.

Vamos tentar tratar o assunto atra-vés de uma estrutura com que todosnós estamos bem familiarizados, asnossas mãos. Na Figura 6 vemos arepresentação da mão humana e desua imagem especular (Kalsi, 1990).

Se prestarmos atenção na figuraacima, veremos que a imagem espe-cular da mão não pode ser sobrepostaà mão original. Este é um dos exem-plos mais simples de assimetria.

O que é quiralidade?Quiralidade é um atributo geomé-

trico, e diz-se que um objeto que nãopode ser sobreposto à sua imagemespecular é quiral, enquanto que umobjeto aquiral é aquele em que a suaimagem especular pode ser sobre-posta ao objeto original. Existem váriosobjetos quirais, tais como as mãos (verFigura 6), conchas marinhas etc. Essapropriedade também é exibida pormoléculas orgânicas (Allinger, 1983).

Uma molécula é quiral quando asua imagem especular não puder sersobreposta à molécula original. Sehouver possibilidade de sobreposiçãoentre uma molécula e sua imagem

especular ela é aquiral.Um centro assimétrico é aquele no

qual os substituintes ligados a ele sãodiferentes entre si (Figura 8). Uma outraforma de representação que vale a pe-na ressaltar é a B, mostrada na Figura8. Se imaginarmos um plano que con-tém os grupamentos CH3 e H, a linhacheia indica que o grupamento CO2Hestá na frente do plano e a linha trace-jada indica que o grupamento Cl estána parte de trás desse plano imagi-nário.

EnantiômerosO tipo mais comum de uma molé-

cula quiral contém um carbono tetraé-drico, no qual estão liga-dos quatro diferentesgrupamentos. O átomode carbono é o centroestereogênico ou assi-métrico da molécula.Uma molécula dessetipo pode existir em doisarranjos espaciais dife-rentes, que são estereoi-sômeros um do outro.As duas estruturas, en-tretanto, não podem sersobrepostas, já que umaé a imagem especularda outra. Esses tipos deestereoisômeros sãochamados de enantiô-meros (do grego, enan-tio = opostos)

A única diferençaque esses enantiôme-ros apresentam é apropriedade de desviaro plano da luz polariza-

da, quando uma solução de cada umdeles é submetida a um equipamentochamado polarímetro. Todas as demaispropriedades físicas são iguais.

Atividade ópticaUma onda de luz viaja no espaço

Quiralidade

Figura 4: Os dois arranjos espaciais possíveis dos substituintes do ácido lático.

Figura 5: A letra R e a sua imagem noespelho.

Figura 6: Imagem especular da mãohumana.

Figura 7: Representação de uma molécula quiral e outraaquiral.

Page 4: Fármacos e Quiralidade

26

Cadernos Temáticos de Química Nova na Escola N° 3 – Maio 2001

vibrando em vários planos; quando umfeixe de luz é submetido a um cristalespecial, existente no polarímetro, elapassa a vibrar em um único plano.Quando uma solução contendo umenantiomero é submetida a esse equi-pamento, ela pode desviar o plano pa-ra a direita ou para a esquerda (Figura10).

Se o plano é desviado para aesquerda, diz-se que a substância élevorrotatória ou levógira (latim laevu =esquerda). Se o plano for desviadopara a direita, diz-se que a substânciaé dextrorrotatória ou dextrógira (latimdextro = direita). Essa propriedade dosenantiômeros é conhecida como rota-ção óptica.

Por convenção, coloca-se um sinalde menos entre parênteses (-), paranomear uma substância levorrotatóriae um sinal de mais (+), para designaruma substância dextrorrotatória.

DiastereoisômerosPara substâncias que têm mais de

um carbono assimétrico, é possívelformar mais do que dois estereoisô-meros (Figura 11).

Quando adicionamos um segundocentro assimétrico a uma molécula, osgrupamentos se orientam no espaço,levando à formação de 2 pares deisômeros diferentes. Se tivermos n

centros assimétricosteremos 2n isômerospossíveis. Enantiômerosexistem todo o tempoem pares e alguns dosestereoisômeros, for-mados com a inclusãode centros assimétricos,não são imagens espe-culares dos outros. Isô-meros que não são ima-gens especulares unsdos outros são chama-dos de diastereoisôme-ros. Se prestarmos aten-ção à Figura 11, vere-mos que nos diastereo-isômeros houve modifi-cação da orientaçãoespacial em apenas um dos carbonosassimétricos. Nos enantiômeros osdois centros mudam, ao mesmo tem-po, de orientação.

Como devemos fazer para escrever aorientação espacial correta deestereoisômeros?

Para podermos desenhar e reco-nhecer de forma correta a maneira co-mo os substituintes de um carbonoassimétrico orientam-se no espaço,precisamos de uma notação fácil e quepossa ser reconhecida em qualquer lu-gar do mundo. Essa notação foi pro-posta por Cahn, Ingold e Prelog e éconhecida como notação R e S(Allinger, 1983).

Esses pesquisadores estabele-ceram uma regra de prioridade entrediferentes substituintes ligados aocarbono assimétrico. A regra baseia-se no peso molecular dos átomosligados ao carbono estereogênico.Assim, um heteroátomo (por exemplo,I > Br > Cl > S > O > N) temmaior prioridade do que o carbono.Uma ligação dupla (-CH=CH2) tem

uma prioridade maior do que umaligação simples (-CH2-CH2-). Os prin-cípios básicos dessa regra são exem-plificados na molécula do aminoácidofenilglicina (Figura 12).

Se tivermos mais de um centroquiral na molécula, esse procedimentodeve ser repetido para cada umseparadamente. Convém ressaltar queessa notação não está diretamenterelacionada com o desvio do plano daluz polarizada, que deve ser medida nopolarímetro. Ela é utilizada para deter-minar, sem nenhuma ambigüidade,como os substituintes estão orientadosno espaço, ao redor do carbonoassimétrico. Portanto, uma substânciapode ser R e desviar o plano da luzpolarizada para a esquerda, escreve-se então (-)-(R)-, ou desviar o planopara a direita e ter a configuraçãoabsoluta S, escreve-se (+)-(S)-.

Como todas essas regras e conhe-cimentos estão relacionados à ativi-dade farmacológica?

Quiralidade e atividade biológicaExiste nas farmácias da sua cidade

Quiralidade

Figura 8: Representações de um centro assimétrico.

Figura 9: Enantiômeros de uma moléculaorgânica.

Figura 10: a. polarização da onda de luz em um polarímetro;b. desvio do plano da luz polarizada ocasionado por um enan-tiômero.

Page 5: Fármacos e Quiralidade

27

Cadernos Temáticos de Química Nova na Escola N° 3 – Maio 2001

uma série de substâncias, utilizadascomo fármacos, que apresentam emsua estrutura um carbono assimétrico.A supressão da quiralidade nesses fár-macos leva ao desaparecimento daatividade biológica. Por outro lado, ainversão da orientação dos grupa-

Quiralidade

Figura 11: isômeros formados com a inclusão de um segundo centro assimétrico.

Regras de proridade1) Observe os substituintes ao redor do carbono assimétrico; 2) Heteroátomos têm prioridadesobre o carbono; assim a amina, na molécula estudada, é o grupo mais importante; 3) osegundo grupo mais importante é o CO2H, pois tem dois heteroátomos (oxigênio) ligadosao carbono; 4) a terceira prioridade é o sistema aromático; 5) o átomo de menor prioridadeé o hidrogênio.Após ter estabelecido as prioridades, vamos do grupo de maior prioridade para o de menorprioridade. Se o caminho for no mesmo sentido do relógio, temos o enantiômero R (latim,rectus = direita), se o caminho for no sentido contrário ao do relógio temos o enantiômeroS (latim sinistrus = esquerda). Importante, mantenha sempre o grupo de menor prioridadepara trás do plano.

Figura 12: Aplicação da regra R e S de Cahn-Ingold-Prelog.

mentos no centro assimétrico pode le-var a uma modificação importante daatividade biológica. Nesse caso, a re-gra R e S é importante, pois permitedeterminar qual é o arranjo espacialcorreto para cada esterereoisômero dofármaco separado. Se soubermos dis-

so e associarmos ao efeito biológico,será possível saber qual é a configu-ração absoluta do estereoisômero quetem atividade farmacológica. NaTabela 1 apresentamos alguns exem-plos disso.

Na Tabela 1 apresentamos algunsexemplos de substâncias vendidasnas farmácias como fármacos. Todosapresentam em sua estrutura um oumais centros assimétricos. Comopodemos perceber, a modificação daorientação espacial dos substituintesao redor do centro assimétrico mudacompletamente o efeito biológico nonosso corpo.

Por exemplo, a talidomida é umsedativo leve e pode ser utilizado notratamento de náuseas, muito comumno período inicial da gravidez. Quandofoi lançado era considerado seguropara o uso de grávidas, sendo admi-nistrado como uma mistura racêmica,ou seja, uma mistura composta pelosseus dois enantiômeros, em partesiguais.

Entretanto, uma coisa que não sesabia na época é que o enantiômeroS apresentava uma atividade teratogê-nica (do grego terás = monstro; gene= origem), ou seja, levava à má for-mação congênita, afetando principal-mente o desenvolvimento normal dosbraços e pernas do bebê. O uso indis-criminado desse fármaco levou aonascimento de milhares de pessoascom gravíssimos defeitos físicos (Figu-ra 13) (Para maiores informações, vejahttp://www.thalidomide.org/FfdN/english/eindex.html).

Esse é um exemplo clássico de umefeito nocivo grave causado peloenantiômero de um fármaco comer-cial. Esse lamentável acontecimentodespertou a atenção da comunidadecientífica e das autoridades farma-cêuticas sobre a importância de umcentro assimétrico na atividade farma-cológica.

Um outro exemplo é o aspartame,adoçante sintético, com uso largamen-te difundido no Brasil e no mundo. Oestereoisômero S,S é doce, enquantoque o R,R é amargo.

Page 6: Fármacos e Quiralidade

28

Cadernos Temáticos de Química Nova na Escola N° 3 – Maio 2001Quiralidade

Como podemos explicar esses fatos?Um fármaco pode exercer a sua

atividade no interior do nosso corpo(biofase) de várias formas. Uma des-sas formas é através da interação comestruturas chamadas receptores, que

Figura 13: Anomalias de formação causadas pelo enantiômero S da talidomida.

ª o carbono assimétrico dos fármacos está assinalado com a rotação da seta.

Tabela 1: Exemplos de fármacos com centros assimétricos e a atividade biológica (Sheldon,1993).Substâncias com centros assimétricos dotadasa de efeitos biológicos

são proteínas de elevado grau deorganização espacial, que se encon-tram na membrana da célula. Essesreceptores agem como pequenosinterruptores de grande seletividade.Uma vez ligados, eles podem desen-

cadear uma série de reações intracelu-lares para dar origem a um efeitobiológico. Um fármaco também podeinteragir com uma enzima, que é umaproteína de elevado nível de organiza-ção.

Se essas estruturas têm quirali-dade, podemos sugerir que para terinteração com elas, o fármaco deve terum arranjo espacial de sua estruturamuito bem definido. Esse arranjo devecoincidir com aquele da estrutura coma qual ele irá interagir.

Na literatura especializada existemalguns modelos que permitem explicaressa interação. Um desses modelosestá mostrado esquematicamente naFigura 14 (Easson e Stedman, 1933).

O modelo mostra duas possibili-dades de arranjo espacial de gruposhipotéticos. Em um arranjo, a interaçãodo fármaco pode ocorrer, no outro elasó ocorre parcialmente.

Por exemplo, a noradrenalina é umhormônio liberado pelo organismohumano quando precisamos de umadose de energia imediata. É o hormô-nio lute ou fuja, liberado em situaçõesem que você precisa de maior atenção.Por exemplo, quando toma-se um sus-to brutal e o coração bate mais rápido,ou quando vai-se brigar com alguémou então vai-se fugir da briga. Essehormônio apresenta na sua estruturaum centro assimétrico, de configu-ração absoluta R (Figura 15).

Se invertermos o arranjo espacial(configuração absoluta) do centro assi-métrico presente na adrenalina, impe-diremos que ocorra uma das intera-ções, levando a uma modificação doefeito biológico.

Uma outra possibilidade de ação éatravés de uma interação com enzimasdo nosso corpo. As enzimas, da mes-ma forma que os receptores das mem-branas celulares, são proteínas e têmum arranjo espacial bem organizado edefinido. Para que a enzima possaestabelecer ligações adequadas comum fármaco, este tem que apresentarum arranjo espacial específico.

Esses modelos de interação permi-tem estabelecer a importância da qui-ralidade para a atividade biológica.

Page 7: Fármacos e Quiralidade

29

Cadernos Temáticos de Química Nova na Escola N° 3 – Maio 2001Quiralidade

Qualquer mudança de orientação es-pacial do carbono assimétrico leva, naquase totalidade dos casos, a umaalteração no meio biológico.

Na figura abaixo mostramos umaalusão que resume a importância quea quiralidade pode ter para o efeito bio-lógico. Não adianta tentarmos usar aluva esquerda na imagem especular damão. Elas não se encaixam. O mesmoocorre com a interação de um fármacoque tem um carbono assimétrico emsua estrutura (Figura 16).

O controle da estereoquímica abso-luta do centro assimétrico presente emum fármaco pode ser realizado na suafabricação. Existem vários métodosquímicos que permitem a realizaçãodessa importante tarefa. Esses méto-dos constituem a base da sínteseassimétrica.

Síntese orgânica

A síntese orgânica aplica os conhe-cimentos da química orgânica, visan-do, entre outras coisas, a preparaçãode novas moléculas ou de moléculasjá conhecidas. Ela permite a prepara-ção, em uma fábrica, das substânciasque são utilizadas como fármacos. Oenorme desenvolvimento dessa áreado conhecimento, nos últimos vinteanos, possibilitou um grande avançoda química, principalmente na prepa-ração de fármacos.

Uma síntese or-gânica de moléculasque contêm centrosassimétricos podeser classificada co-mo racêmica ou assi-métrica. O produtode uma síntese racê-mica será um fárma-co composto de umamistura de seus pos-síveis estereoisôme-ros em partes iguais.Por outro lado, o pro-duto de uma sínteseassimétrica será umfármaco de elevadapureza óptica, ou se-ja, se estiver contami-nado com o outroestereoisômero seráem quantidades

Figura 14: Modelo para explicar a interaçãobiológica.

Figura 15: Aplicação do modelo à noradrenalina.

Figura 16: Alusão à interação do fármaco quiral com o nossocorpo.

Page 8: Fármacos e Quiralidade

30

Cadernos Temáticos de Química Nova na Escola N° 3 – Maio 2001Quiralidade

inferiores a 5%.No mercado mundial existem vários

fármacos que já são vendidos nas far-mácias em suas formas opticamentepuras, ou seja, sem a mistura com ooutro isômero. Na Tabela 2 mostramosalguns exemplos.

A venda de fármacos na forma demistura racêmica ainda ocorre. Entre-tanto, é necessário saber qual é oestereoisômero responsável pela ativi-dade e ter absoluta certeza que o este-reoisômero inativo, presente na mistu-ra, não tem nenhuma atividade bioló-gica adversa.

Do ponto de vista do consumidor,a administração de um fármaco em suamistura racêmica tem algumas des-vantagens:

1. A dose a ser utilizada deve seraumentada, pois somente metade delatem o efeito farmacológico desejado;

2. O paciente ingere, a cada dosedo fármaco, 50% de uma substânciaquímica desnecessária.

O único fator, no nosso entender,que dificulta a venda de fármacos qui-rais em sua forma opticamente pura éo custo de uma síntese assimétrica.Normalmente, os métodos usados sãocaros, o que eleva o preço final do fár-maco para o consumidor. Entretanto,esse fator limitante tende a desapare-cer, principalmente devido às exigên-cias legais.

Uma síntese assimétrica, por suavez, pode ser enantiosseletiva oudiastereosseletiva. No primeiro caso éformado, com grande preferência, umdos possíveis enantiômeros de umfármaco. Uma síntese diastereos-seletiva formará preferencialmente umdos diastereoisômeros de um fármaco(Esquema 1).

Exemplos de sínteses racêmicas eassimétricas de fármacos

Nessa parte do artigo, vamos mos-trar a preparação de alguns fármacosdisponíveis nas farmácias brasileiras.Escolhemos duas substâncias: o fár-maco ibuprofeno (Motrin®, Algifen®),muito utilizado no tratamento de infla-mação e contra a dor causada por es-se tipo de processo, e o captopril(Capoten®), fármaco muito empre-

gado no tratamento da pressão alta.

Sínteses racêmica e assimétrica doIbuprofeno

O antiinflamatório ibuprofeno é utili-zado no combate aos processos infla-matórios (p. ex. reumatismos ou doresnas juntas, inflamações causadas porcortes etc). Ele apresenta uma razoáveltolerância se comparado à aspirina(Melhoral®, Aspirina®, Doril®), entre-tanto o uso sem controle médico, emelevadas quantidades e por um tempoprolongado, pode causar sérios pro-blemas no estômago.

Podemos localizar na estrutura doibuprofeno dois pedaços distintos. Umderivado do ácido acético e outro deri-vado de um sistema aromático (Figu-ra 17).

A fabricação industrial dessa subs-tância utiliza uma seqüência muita sim-ples de reações (Esquema 2) (Ledni-cer, 1998).

Um dos métodos para fabricaçãodesse fármaco tem por objetivo incluirum grupamento metila (CH3) na posi-ção marcada, na estrutura 1. Para tan-to, primeiro foi colocado um grupoéster (2) e em seguida a posição foimetilada (3). Essa etapa é necessáriapara evitar colocar mais de uma metila.A perda de CO2 conduz a formação doibuprofeno. Uma outra alternativa parafabricar o ibuprofeno está apresentadano Esquema 3 (Lednicer, 1998).

Nesse método ocorre apenas umareação que transforma um grupo car-bonila em um grupo carboxílico, pre-sente no fármaco. Essa reação é uma

Tabela 2: Exemplos de fármacos comercializados opticamente purosa.

Fármaco Nome na farmácia8 Classe terapêutica Vendas mundiais(milhões, US$)

Amoxicilina Amoxil®, Novocilin® antibiótico 2000

Ampicilina Binotal® antibiótico 1800

Captopril Capoten® controle de pressão 1520

Enalapril Renitec® controle de pressão 1500

Ibuprofeno Motrin® antiinflamatório 1400

Cefaclor Ceclor® antibiótico 1040

Naproxen Naprosyn® antiinflamatório 950

Cefalexina Keflex® antibiótico 900

Lovastatina Lovastatina® controle de colesterol 750aDicionário de Medicamentos Genéricos Zanini-Oga, 1999.

Esquema 1: Tipos de síntese orgânica.

Page 9: Fármacos e Quiralidade

31

Cadernos Temáticos de Química Nova na Escola N° 3 – Maio 2001Quiralidade

espécie de mudança de um grupocarbonila de posição. O tratamento de7 com base fornece o ibuprofeno.

As sínteses assimétricas incorpo-ram no substrato um carbono em umestágio de oxidação intermediário.Uma etapa de adição oxidativa leva aoibuprofeno comercial (Esquema 4)

O captopril, fármaco lançado nomercado por Bristol-Myers Squibb, évendido nas farmácias em sua formaopticamente pura. Esse fármaco apre-senta em sua estrutura dois carbonosassimétricos (Figura 18).

Esse fármaco é composto por umaminoácido natural, a prolina, e umaparte com um átomo de enxofre.Todos os métodos utilizados na suafabricação industrial baseiam-se nouso da prolina, que por ser um ami-noácido natural é vendida normal-mente com o centro assimétrico con-trolado.

No Esquema 5 apresentamos al-guns métodos industriais para a fabri-cação do captopril (Capoten®) (Shi-makazi et al., 1982).

De maneira geral, a fabricação docaptopril é dividida em duas partes. Naprimeira é preparado o resíduo ondeserá incorporado o átomo de enxofre.Na segunda, esse resíduo é condensa-do com a prolina. O controle da este-reoquímica absoluta do fármaco é feitoapenas na parte que tem o átomo deenxofre, uma vez que a prolina, por serum aminoácido quiral, já tem o arranjoespacial do seu carbono assimétricocontrolado.

ConclusãoA presença de centros assimétricos

Esquema 2.

Figura 17: Pedaços do ibuprofeno.

Esquema 3.Figura 18: Pedaços do captopril.

Page 10: Fármacos e Quiralidade

32

Cadernos Temáticos de Química Nova na Escola N° 3 – Maio 2001

Referências bibliográficasALLINGER, N.D. Química orgânica, 3

ed. Rio de Janeiro: Editora GuanabaraDois, capítulo 6, 1983.

ALPER, H e HAMEL, N. J. Am. Chem.Soc., v. 109, p. 7122-7127, 1990.

BASILE, A.C. e ZANINI, A.C. Dicionáriode medicamentos genéricos Zanini-Oga,2 ed. São Paulo: Ipex Comercial Editora,1999.

EASSON, L.H. e STEDMAN, E.Biochem. J., v. 27, p. 1257-1266, 1933.

KALSI, P.S. Stereochemistry – Confor-mation and mechanism. Nova Deli: JohnWiley & Sons: capítulo 1, 1990.

LE BEL, J.A. Bull. Soc. Chim. Fr., v. 22,p. 337-347, 1874.

LEDNICER, D. Strategies for organicdrug synthesis and design. Nova Iorque:John Wiley & Sons, p. 53-57, 1998.

SHELDON, R.A. Chirotechnology – In-dustrial synthesis of optically active com-pounds. Nova Iorque: Marcel DekkerInc., p. 1-71, 1993.

SHIMAKAZI, M.; HASEGAWA, J.; KAN,K.; NOMURA, K.; NOSE, Y.; KONDO, H.;OHASHI, T. e WATANABE, K. Chem.Pharm. Bull., v. 30, p. 3139-3146, 1982.

VAN’T Hoff, J.H. Arch. Neerl. Sci. Ex-acts Nat., v. 9, p. 445-454, 1874.

Quiralidade

Exemplos de síntese assimétrica do Ibuprofeno (Alper e Hamal, 1990).

em alguns fármacos à venda nas far-mácias está relacionada à sua ativida-de farmacológica. Qualquer alteraçãona orientação espacial desses centrospode conduzir à total inativação do fár-

Esquema 5.

Esquema 4.

maco, à diminuição do efeito biológi-co ou então ao aparecimento de umefeito contrário, que pode ser extrema-mente danoso para a saúde dos con-sumidores.

Fármacos quirais necessitam decuidados especiais por parte das auto-ridades farmacêuticas, no sentido degarantir que somente aquele estereoi-sômero responsável pela atividade sejavendido nas farmácias.

Devido aos métodos que são utili-zados na sua fabricação, o custo finaldesse tipo de fármaco para o consu-midor ainda é elevado. Entretanto,devido às exigências legais esse custodeve cair ao longo do tempo, princi-palmente se levarmos em conside-ração que o constante aprimoramentoda pesquisa em síntese orgânica develevar ao desenvolvimento de novos,mais baratos e mais eficientes méto-dos de fabricação.

Fernando A.S. Coelho, formado em farmácia indus-trial em 1979 pela Faculdade de Farmácia da UFRJ,mestre em química de produtos naturais pelo NPPN-UFRJ (1983), doutor em ciências físicas pelaUniversité Joseph Fourier de Grenoble (1987), é pro-fessor Livre-Docente, lotado no Departamento deQuímica Orgânica do Instituto de Química daUniversidade Estadual de Campinas. Entre as suaslinhas de pesquisa inclui-se a síntese assimétrica defármacos.