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NA REINVENÇÃO DA ESCOLA, ENTRE FORMAÇÕES, CONVERSAÇÕES, CORPOS E DESEJOS, O APRENDER E O ENSINAR Apresenta uma composição de três pesquisas realizadas em diferentes escolas públicas localizadas no Estado do Espírito Santo (Sistema Municipal de Vitória, Sistema Municipal de Serra e Sistema Federal de Educação, Ciência e Tecnologia) que problematizam os agenciamentos coletivos do desejo, dos afetos e das afecções estabelecidos em planos de imanência e debatem como essas inúmeras conexões interferem nos processos de aprender e ensinar em experimentações do novo na (re)invenção da escola. Em diálogo com Gilles Deleuze, as pesquisas cartografam as (trans)formações das paisagens cotidianas ao acompanhar as redes de conversações experienciadas em encontros entre linhas do desejo molares, moleculares e de fuga. O primeiro artigo contesta a noção de desejo como falta nos processos de aprender e ensinar e pensa a escola como cuidado com o mundo e local de encontro de corpos, durações e produção incessante de movimentações desejantes. O segundo texto versa sobre os sentidos da aprendizagem e do ensino esboçados por docentes e a busca por outrosnovos agenciamentos nos espaçostempos escolares em tentativas de escape do muro branco e do buraco negro que fixam o aprenderensinar. A terceira escritura propaga os encontrosformações docentes como uma possibilidade potente no campo da formação de/com professores nos processos híbridos de aprender e ensinar com ênfase na diferença como motor da criação e nas experimentações singulares do corpo-multidão. Nos três cenários, são enfatizadas as necessidades de rasurar os territórios escolares com experiências e agenciamentos não dogmáticos e de fazer ressoar o que pode um corpo- coletivo-escola. Esses estudos indicam que os novos modos de estar professores e alunos sugerem outras maneiras de compor no aprender e ensinar quer seja com relação ao conhecimento, quer seja com relação às linguagens , no compartilhamento de experiências múltiplas entre afetos e afecções e na constituição do desejo como cuidado do outro e do mundo. Palavras-Chave: Aprender-Ensinar, Desejo, Agenciamento XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 2872 ISSN 2177-336X

NA REINVENÇÃO DA ESCOLA, ENTRE FORMAÇÕES, CONVERSAÇÕES, CORPOS E DESEJOS… · 2018. 3. 24. · NA REINVENÇÃO DA ESCOLA, ENTRE FORMAÇÕES, CONVERSAÇÕES, CORPOS E DESEJOS,

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NA REINVENÇÃO DA ESCOLA, ENTRE FORMAÇÕES, CONVERSAÇÕES,

CORPOS E DESEJOS, O APRENDER E O ENSINAR

Apresenta uma composição de três pesquisas realizadas em diferentes escolas públicas

localizadas no Estado do Espírito Santo (Sistema Municipal de Vitória, Sistema Municipal

de Serra e Sistema Federal de Educação, Ciência e Tecnologia) que problematizam os

agenciamentos coletivos do desejo, dos afetos e das afecções estabelecidos em planos de

imanência e debatem como essas inúmeras conexões interferem nos processos de aprender

e ensinar em experimentações do novo na (re)invenção da escola. Em diálogo com Gilles

Deleuze, as pesquisas cartografam as (trans)formações das paisagens cotidianas ao

acompanhar as redes de conversações experienciadas em encontros entre linhas do desejo

molares, moleculares e de fuga. O primeiro artigo contesta a noção de desejo como falta

nos processos de aprender e ensinar e pensa a escola como cuidado com o mundo e local

de encontro de corpos, durações e produção incessante de movimentações desejantes. O

segundo texto versa sobre os sentidos da aprendizagem e do ensino esboçados por docentes

e a busca por outrosnovos agenciamentos nos espaçostempos escolares em tentativas de

escape do muro branco e do buraco negro que fixam o aprenderensinar. A terceira escritura

propaga os encontrosformações docentes como uma possibilidade potente no campo da

formação de/com professores nos processos híbridos de aprender e ensinar com ênfase na

diferença como motor da criação e nas experimentações singulares do corpo-multidão. Nos

três cenários, são enfatizadas as necessidades de rasurar os territórios escolares com

experiências e agenciamentos não dogmáticos e de fazer ressoar o que pode um corpo-

coletivo-escola. Esses estudos indicam que os novos modos de estar professores e alunos

sugerem outras maneiras de compor no aprender e ensinar – quer seja com relação ao

conhecimento, quer seja com relação às linguagens –, no compartilhamento de

experiências múltiplas entre afetos e afecções e na constituição do desejo como cuidado do

outro e do mundo.

Palavras-Chave: Aprender-Ensinar, Desejo, Agenciamento

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

2872ISSN 2177-336X

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ENCONTROSFORMAÇÕES DOCENTES ENTRE LINHAS DO DESEJO, AFETOS

E AGENCIAMENTOS

Priscila dos Santos Moreira

Sandra Maria Machado

[email protected]

Resumo

Objetiva propagar os encontrosformações como uma possibilidade potente no campo da

formação de/com professores – na relação com os processos de aprender e ensinar – a

partir de pesquisa realizada no cotidiano de um Instituto Federal de Educação, Ciência e

Tecnologia. Movimenta o pensamento com Gilles Deleuze na problematização da criação

de um espaço de formação docente entre linhas do desejo, afetos e agenciamentos

experienciados em encontros. Utiliza a cartografia como prática (i)metodológica no

acompanhamento dessas redes de conversações e o registro em diário de campo e em

áudio das ―Rodas de conversas com professores‖ como principais estratégias

metodológicas. Identifica uma fôrma triangular molar que estabelece desenhos fixos nas

questões curriculares debatidas durante a formação correlacionados com uma noção de

diferença como entrave nos modos de ensinareaprender e, a partir dessa linha enrijecida,

acompanha linhas moleculares e de fuga que produzem outros sentidos de diferença em

tentativas de experimentação e criação coletiva. Conclui que: o movimento do coletivo-

multidão não é homogêneo e não é harmônico; não há totalidade nos discursos em relação

às experiências vividas nos encontrosformações; a formação é produzida e agenciada com

professores; novos movimentos ampliaram os sentidos de formação e de espaços para a

discussão das temáticas que percorrem o cotidiano da instituição; as criações não foram

decorrentes de um fio, mas produzidas entre os complexos enredamentos inventados tanto

nos territórios defendidos quanto nas linhas de fuga que delinearam outros possíveis, em

múltiplas singularidades, para os processos de formação docente engendrados ao campo

curricular. Considera, assim, a necessidade de fazer ressoar o que pode um corpo

(multidão) a partir de processos não dogmáticos de formação com professores relacionados

com os processos inventivos de ensinar e aprender com ênfase na diferença como motor da

criação entre linhas do desejo.

Palavras-chave: Formação com professores. Agenciamentos. Diferença.

Início de conversa...

Este estudo foi produzido no cotidiano do Instituto Federal de Educação, Ciência e

Tecnologia do Espírito Santo (Ifes) – campus Venda Nova do Imigrante – nos anos 2013 e

2014. Algumas pistas nos conduziram a uma aproximação do campo de estudo. Entre elas,

estava a falta de tempo estabelecido para encontros de formação docente e troca de

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experiências com professores em movimentos de criação coletiva nessa instituição. Os

encontros entre docentes dentro do campus estavam mais restritos às comissões instituídas

para fins específicos e com duração estipulada a priori, às Reuniões

Pedagógicas/Conselhos de Classe, às conversas na sala de professores ou nos corredores,

ou em outros espaços, contudo, por vezes, de maneira fugaz entre os intervalos do ―tic-tac‖

do tempo cotidiano.

Essa falta de encontro frequente, ou de tempos coletivos, causou movimentação de

pensamento nestas autoras no sentido de indagar: como seria possível cooperar para a

criação desse espaço de formação de uma maneira que não fosse institucionalizado,

verticalizado, lugar obrigatório; mas local de potencialização entre o afetar dos corpos

com possibilidades de bons encontros (SPINOZA, 2013)?! Nessa acepção, algumas linhas

emaranhadas nas redes de conversações (CARVALHO, 2009) foram seguidas de maneira

a delinear as pistas de pesquisa:

‗Os alunos do Proeja [Programa Nacional de Integração da Educação

Profissional com a Educação Básica na Modalidade da Educação de Jovens e

Adultos] não conseguem aprender‘; ‗Não se preocupe. Se alguém disser para

você desistir, não desista, porque você é o perfil do Proeja. O aluno do Proeja é

assim com um pouco menos de capacidade mesmo‘; ‗Não sei o que fazer com

esses alunos do Proeja, mesmo simplificando, eles não conseguem‘. ‗Nós

queremos é saber como fazer eles aprenderem. Tem quase quatro anos que eu

estou só experimentando, só fico tentando.‘ (PROFESSORES).

Assim, acompanhamos os movimentos cotidianos, entre formas e forças complexas

com os professores, buscando as inventividades curriculares, o campo do(s) currículo(s)

em suas múltiplas e complexas dimensões e manifestações e a potencialização dos bons

encontros com a criação dos encontrosformações docentes no campus.

Linhas e afetos em composições

Para pensarmos esses processos de encontrosformações com os docentes,

conversamos, especialmente, com Deleuze (e Guattari) e Spinoza. Apostamos no encontro

desses filósofos no intuito de perceber como os saberes se compõem no plano de

imanência (plano da vida) traçado por linhas dos movimentos (DELEUZE, 2002) e dos

afetos (SPINOZA, 2013). Dessa maneira, com Carvalho (2012), aproximamos o estudo

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no/do/com o cotidiano escolar com as perspectivas: micropolítica de Deleuze e Guattari e

político-ético-afetiva de Spinoza nas redes de conversações no campo da formação.

Com Deleuze (2002, p.128), consideramos as relações de movimento e de repouso,

de lentidão e de velocidade em diálogo com Spinoza (2013), quando ele declara: ―Os

corpos distinguem-se entre si pelo movimento e pelo repouso, pela velocidade e pela

lentidão e não pela substância‖. Com referência à linha dos afetos, estabelecemos conexões

com uma grande questão para Spinoza que se tornou uma grande questão para Deleuze: ―O

que pode um corpo?‖ De quais maneiras um corpo afeta outro quando se encontram?

Assim, enfatizamos as linhas dos movimentos e os efeitos de um corpo sobre o

outro, compondo com esses movimentos e com esses efeitos na ação coletiva dentro da

noção de comunalidade expansiva (CARVALHO 2009), visando às relações desses

conceitos no campo do currículo conforme a dimensão da ―formação docente‖.

Entendemos, com Spinoza (2013, p.163), que ―[...] afeto são as afecções do corpo, pelas

quais sua potência de agir é aumentada [afeto alegre] ou diminuída [afeto triste],

estimulada ou refreada, e ao mesmo tempo, as ideias dessas afecções.‖

Em consonância com Guattari e Rolnik (2011, p. 149), compreendemos que o

diálogo sobre ―movimentos‖ e encontrosformações remete a um pensamento sobre o

trançar das três linhas do desejo: molares/duras (pacotes de linhas segmentarizadas que

compõem o plano de organização e nos recortam em todos os sentidos em constituições de

afetos tristes); moleculares/flexíveis (linhas que causam desvios e delineiam impulsos); e

de fuga (linhas desconhecidas e estranhas que nos levam para a imprevisibilidade, para

algo que não foi determinado nem previsto) (DELEUZE; PARNET; 1998, p. 101). Essas

linhas são coengendradas em (in)constantes danças de (des)(re)territorialização nas redes

de conversações, no entendimento de que esse território é sinônimo de apropriação, de

subjetivação fechada sobre si mesma, de conjunto de representações nos quais estão toda

uma série de comportamentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, cognitivos e

estéticos(GUATTARI; ROLNIK, 2011).

Com essa vertente, escolhemos a prática (i)metodológica da cartografia – delineada

por meio de pistas seguidas ao acompanhar os processos de pesquisa, entre os movimentos

no/do/com o cotidiano escolar do IFES – entendendo esse modo de pesquisar e de produzir

dados como uma aposta na busca da potencialização das ações coletivas e dos (bons)

encontros nas redes de conversações, em diálogo com Passos, Kastrup e Escóssia (2009)

que afirmam que a cartografia, diferentemente da representação de um todo estático, é um

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movimento que se faz acompanhando o desmanchamento de certos mundos e a formação

de outros. Assim, ―[...] a tarefa do cartógrafo é dar língua aos afetos que pedem passagem,

uma vez que dele se espera estar mergulhado nas intensidades de seu tempo‖ (ROLNIK,

1989, p. 15 e 16), em um plano de diferenças, coadunado com a intenção de acompanhar

engendramentos muito mais do que representar a realidade, acompanhando os percursos,

as produções e as inúmeras conexões das redes.

A partir dessa premissa (não) metodológica, adotamos diferentes ―técnicas‖, não

lineares, em nosso percurso, com ênfase na criação dos encontrosformações docentes:

―rodas de conversas com professores do Proeja‖ Grupo 1 e Grupo 2, gravadas e registradas

em diário de campo sem identificação pessoal a partir da nomeação apenas de professor(a)

ou coordenador(a) e de uma letra do alfabeto que cada docente/coordenador recebeu a

partir da ordem de inscrição nos encontrosformações.

Dessa maneira, esta pesquisa foi produzida nas redes de conversações no

entendimento de que as conversações são referenciadas entre ações complexas porque são

tecidas em um complexo enredamento de acontecimentos, de acasos, ações emaranhadas,

interações e retroações, traçando-se, assim, redes de subjetividades compartilhadas e

tornando a potência dessas conversações muito mais relacionada com o enredamento

produzido – envolvendo formas e forças de agenciamento – do que com a vontade dos

interlocutores (CARVALHO, 2009).

A formação é produzida e agenciada com professores

De acordo com Gomes (2013), o termo agenciamento vem de agencement, em

francês, associado à noção da combinação de elementos heterogêneos cuidadosamente

ajustados entre si e, nesse sentido, Holzbach, Kahlau e Nascimento (2013) ratificam que

agenciar é estar no meio, na linha de encontro de um mundo interior e exterior. O

agenciamento é sempre coletivo e é formado por vários fluxos que arrastam pessoas,

coisas, signos que se dividem e se acoplam em multiplicidades de tal maneira que o

agenciamento permite realizar coisas novas.

Assim, o agenciamento remete a uma noção muito mais ampla do que a de

estrutura, sistema ou forma (GUATTARI; ROLNIK, 1986). É uma ―multiplicidade que

comporta muitos termos heterogêneos [...] que estabelece ligações, relações entre eles‖

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(DELEUZE; PARNET, 1996, p. 84) e se constitui como ―[...] agenciamento de campo de

possíveis‖ (GUATTARI, 1992, p. 45).

Com essa premissa, a ideia de desejo passa a ter outra conotação, pois, para

Deleuze (1988), desejar não significa buscar um objeto, porque nunca algo é desejado

isoladamente; sempre se deseja um todo, em um conjunto. Ou seja, quando alguém deseja

algo, não deseja esse objeto sozinho, mas na sua relação com paisagens, pessoas,

encontros, corroborando a afirmativa de que desejo é ligado a agenciamento.

Nessa perspectiva, enfatizamos com Lopes (2011, p. 83) que o indivíduo e o grupo

só existem como expressões enredadas em agenciamentos e ―[...] se o desejo é

agenciamento e se o sujeito é sempre ‗sujeito desejante‘ [...], a experiência do eu se

configura na multiplicidade em meio à tessitura das redes e ‗dobras‘ de intensidades nas

quais o sujeito se engendra‖, sendo produzido pelos agenciamentos e produtor

simultaneamente. Então, como defendem Delboni, Pereira e Silva (2013), somos

aprendizes-artistas, reinventando-nos a cada instante, a cada experiência, coengendrando-

nos a nós mesmos com nossos agenciamentos.

Nessa acepção, concernente à noção de ―formação de professores‖, questionamos a

ideia de ―formação‖ como efeito de ―amoldar-se‖, ―dar forma‖, ―constituir-se‖

(proveniente dos dicionários) e concordamos com Garcia e Sussekind (2011, p. 10 e 11),

quando afirmam que termos como ―formação inicial‖ e ―formação continuada‖ são

precários porque são derivados de uma perspectiva linear de formação com momentos

estanques que determinam início e fim, por vezes restritos à certificação.

Nessa linha de raciocínio, não acreditamos na possibilidade de demarcar o início

dos nossos processos de aprendizagem para/na docência, pois defendemos que a formação

é um processo permanente de vida que se dá em meio aos encontros, entre ações

complexas, entre vivências e narrativas de experiências que incitam um tempo não linear,

mas um tempoduração, entre a criação dos possíveis e das ações coletivas que podem

partir das situações-problema vivenciadas e tensionadas no cotidiano escolar.

Discordamos da expressão: ―de professores‖ porque entendemos que ninguém

consegue simplesmente formar outro alguém, e nem formar-se a si mesmo em um processo

dissociado de encontros com pessoas, livros, lugares, memórias e tantas outras

composições. Em suma, defendemos, com Carvalho (2009), que a formação é produzida e

agenciada ―com professores‖.

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2877ISSN 2177-336X

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O que pode um corpo(-multidão) nos processos inventivos de formação?

No acompanhamento de processos (des)(re)territorializantes, capturamos alguns

movimentos e fomos afetados por eles. Percebemos que, ao tentar planejar as temáticas dos

encontrosformações, coletivamente, enredamos outros fios, trazendo para as conversas

assuntos não planejados conectados às experiências no campus, demonstrando assim as

questões que nos afetavam, ainda que não fossem citadas como temáticas que gostaríamos

de discutir nesses encontros.

Desse modo, no momento do planejamento coletivo das temáticas dos encontros,

tanto o Grupo 1 como o Grupo 2 enfatizaram a necessidade de trazer para o espaço de

formação o histórico do/a Proeja/EJA, as pesquisas realizadas nessa área e conversar sobre

a relação do Proeja com os documentos produzidos, no entanto, durante esse ato de

planejar, no Grupo 1, o assunto ―Direito à educação e à aprendizagem, com lugares

estabelecidos nos processos de ensino-aprendizagem e a produção da culpabilização‖

apareceu como algo que nos afeta (sem ser planejado, sem estar presente no cronograma) e

―invadiu‖ o espaço do primeiro encontro.

Semelhantemente, no Grupo 2, a temática ―Desafio/Dificuldade/Facilidade em

ministrar aulas para o Proeja e a (não) necessidade de investir em formação específica para

esta modalidade para servidores do Ifes‖ não foi citada por ninguém como algo a ser

discutido, mas apareceu na conversa de planejamento coletivo da formação, ocupando

quase todo o primeiro encontro desse grupo. Percebemos, com o Grupo 2, que a noção de

desafio e de dificuldade em ministrar aulas para o Proeja não se estabeleceu como discurso

unânime, porque alguns docentes explicitaram que é mais fácil ensinar aulas para essa

modalidade do que para o curso ―regular‖ (ainda que o número de docentes que

apregoavam essa facilidade fosse consideravelmente menor).

Dessa maneira, pudemos pensar nas mistificações em torno do processo de

aprender-ensinar-aprender (enquanto falávamos sobre o tema que ―oficialmente‖

queríamos estudar no próximo encontro: ―histórico do/a Proeja/EJA‖), fazendo-nos mover

o pensamento ao considerar a sintonia mestre-aprendiz como campo de criação, espaço

híbrido, e as relações entre aprender e agenciar como ligações e rupturas entre afetos e

afecções, sendo, desse modo, impossível estabelecer culpados, mas criando uma relação de

atração e circulação de afetos.

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2878ISSN 2177-336X

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Durante esse acompanhamento, percebemos com os integrantes dos dois grupos

que concepções, práticas, representações, dificuldades, facilidades, culpabilizações e

entendimentos sobre as relações de aprendizagem que envolvem professores e alunos não

estão diretamente relacionados com os saberes específicos das disciplinas por eles

ministradas, porque os docentes que lidam com disciplinas que são nomeadas da ―mesma

área de conhecimento‖ (códigos e linguagens, ciências humanas, ciências da natureza,

matemática e/ou exatas ou área técnica/profissionalizante), inclusive a mesma disciplina,

demonstravam concepções as mais variadas possíveis e dis/com/concordâncias quanto às

experiências vividas no Proeja.

Assim, evidenciamos que esses sentidos estão mais associados às ligações e

rupturas produzidas nas redes de saberes-fazeres-poderes – apreendidas entre professores-

alunos, professores-família, professores-outras experiências, professores-outros servidores,

professores-outros estudos, professores-lugares-espaços, professores-outros alunos,

professores-outros espaços de formação, professores-professores do campus, professores-

outros professores, professores-leituras, em complexos e fluidos agenciamentos – do que à

área do saber como um a priori que delimita o que é mais fácil ou mais difícil de ministrar

para o Proeja, e mais fácil ou mais difícil para os alunos do Proeja ―compreenderem‖.

Ainda que nos grupos estivéssemos conversando sobre assuntos (não)planejados os

mais diversos possíveis, um tripé recorrentemente surgia, demonstrando a composição de

uma fôrma estabelecida triangularmente nessa molaridade: perfil, seleção e nivelamento,

fortalecendo o desenho do nosso currículo-régua. Nesse sentido, evidenciava-se a noção de

diferença como entrave, dificuldade, algo a ser combatido porque alguns alunos são

―maiores‖ ou ―menores‖ do que o comprimento exato de uma fôrma desenhada, moldada e

engessada a priori.

Prof. F: Só pra concluir, eu acredito que esse ponto que vocês dois colocaram eu

acho que é fundamental nesse processo, definir o perfil exato pra quem vai

entrar na instituição.

Prof. C: O que algumas escolas fazem, mas aí é aplicado mais nessa área de

exatas, é nivelamento. [...] juntam uns alunos: ‗Já que eles têm umas

deficiências em Matemática, vamos colocar as pessoas no mesmo padrão‘.

Prof. G: Esse aluno chega aqui, na instituição federal, que é o nivelador dele

para ele ir para uma universidade amanhã ou depois.

Prof.ª J: Primeira expectativa é que o Proeja – a gente já cansou de discutir isso

–tivesse um nível nivelado.

Na modernidade, vimos crescer essa noção de diferença baseada em uma ideia

pretensa de falta, comparada com uma referência do que deveria ser, criando-se, assim, um

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

2879ISSN 2177-336X

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aspecto de justificativa que seria inerente a uma noção de desigualdade perante um padrão

preestabelecido. Dessa maneira, por vezes, percebemos a predominância da utilização das

identidades fixas e estáveis em uma produção de estereótipos e estigmas baseados no

entendimento de que é necessário incluir o que está, por si, excluído; e, nesse contexto, a

educação de jovens e adultos, como modalidade de ensino da educação básica, tem sido

apontada dentro desse paradigma em que se percebe a diferença como falta de algo: ―um

diferente de‖, ―o que estaria fora da régua‖, ―uma identidade que precisaria ser incluída‖.

Gilles Deleuze (1988, p. 415) enfatiza que, ―[...] enquanto a diferença é submetida

às exigências da representação (como lugar transcendental), ela não é nem pode ser

pensada em si mesma‖. Dentro desse viés da representação, a diferença é analisada quando

é subjugada à: ―[...] identidade do conceito; oposição do predicado; analogia do juízo; e

semelhança na percepção‖.

Contudo, compondo com as linhas de fuga dissonantes que acompanhamos nas

rodas de conversas entre o padrão enrijecido de uma pretensa homogeneização e a

perspectiva que defendemos com Deleuze (1988), a diferença não é entendida como uma

característica que está a serviço da generalidade do conceito, mas como puro

acontecimento. Esse filósofo não busca o comum sob a diferença e, ao invés de considerar

a identidade – que coloca a diversidade dentro de um elemento comum –, utiliza a

diferença como variação, multiplicação e proliferação.

A diferença, nesse embasamento, não é o polo negativo consoante a algo que

diverge dentro de uma pretensa unidade; no entanto, refere-se às singularidades, aos fluxos

de forças, à complexidade de diferenciações. Assim, encontrosformações pela potência da

diferença seria o encantamento da multiplicidade em enredamentos que criam movimentos

ao inventar fissuras nos estratos dos processos molares curriculares em singulares modos

de aprendereensinar, seja nas salas de aula entre professores e alunos, seja em

encontrosformações docente.

Nesse sentido, tivemos experimentações nesses encontros e apostamos nessas

tentativas. Fomos afetados por leituras que evocavam outras possibilidades de relações

entre os conhecimentos em perspectivas transdisciplinares, rizomáticas, em redes, que

provocaram movimentações de pensamentos e tentativas de sair dos limites territoriais dos

campos disciplinares. Então, investimos nessas produções mais escorregadias,

questionando os limites de tempos e espaços para a educação de jovens e adultos e nossas

relações com os nossos saberes, com os nossos pares, com os nossos alunos.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

2880ISSN 2177-336X

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Prof. N: É se pegarmos lá o princípio de Descartes, que é cientificismo, né? [...].

A ideia da árvore do conhecimento, hierarquia e todo aquele formalismo, e

depois a ideia de tessitura. Tessitura é... rizoma. [...].Você rompe com as

hierarquias, né?As ciências, lá da modernidade, no currículo também que às

vezes é pensado que algumas disciplinas,tem mais valor [...]. Durante a história,

foram construídos váriospadrões de currículos, acho que agora a gente está

repensando um novo currículo. Prof. P: O que eu acho legal é que essa ideia do rizoma vem fortalecer aquela

ideia de que não existe ninguém que é uma tábula rasa, que não tem

conhecimento, que não vem para somar. Acho que tudo a gente tem que

aproveitar e conectar essas redes, fazer esses links. É difícilmas eu acho que

é possível!

Em algumas dessas experimentações de outros possíveis na produção curricular,

fomos afetados pelo medo – que é um afeto triste conforme Spinoza (2013) – da perda do

território, da noção de poder, do lugar estabelecido e do receio de desbravar outras

fronteiras e despir-nos do quadro do ―já sei‖. Contudo, tentamos inventar caminhos de

produção de conhecimento nesses encontros e, considerando que o movimento do coletivo-

multidão não é homogêneo, não é único e não é harmônico – porque é aberto ao múltiplo

que cria descriando em movimentos (des)contínuos – as experiências e tentativas foram as

mais diversas possíveis: alguns docentes compartilharam os avanços em planejar e montar

aulas em parceria com outro colega – e nesse contexto já seria uma nova aposta,

considerando o tempo de jornada de isolamento até então – outros investiram em apostas

mais ousadas; outros preferiram ir conversando sobre o assunto e fazer tentativas quando

se sentissem mais à vontade com os deslizes.

O que mais nos moveu e afetou durante o percurso da pesquisa de campo foram as

ressonâncias dos encontrosformações no campo da formação docente dentro do campus

que não se restringiram ao Proeja. Dessa maneira, além das experimentações com as

turmas desse programa, os encontros provocaram problematizações potentes que

instigaram os integrantes das rodas a afirmar que intensificariam momentos de troca de

experiências em reuniões de coordenadorias dos cursos direcionadas para a discussão

curricular.

Prof.ª D: Essa [formação] de educação de jovens e adultos me chamou a atenção

por ser um espaço aberto, ver pessoas curiosas querendo ouvir. [...] eu gostei

tanto do encontro passado e estou gostando desse encontro, porque eu penso em

formação desse jeito mesmo. Por exemplo, aqui,nós estamos ouvindo ideias,

mas eu tenho certeza de que tem coisas que eu ouvi de um ou de outro que eu

estou pensando... Isso é formação! [...]. Eu acho que isso movimenta mais a

gente, dá mais interesse para o professor, a gente conversa outras coisas [...].

Então, a pergunta é: será que esses discursos que estão ocorrendo, esses

encontros que estão acontecendo em restaurantes, em salas, nos corredores,

também não são uma formação? Será que isso tudo não é resultado do que já está

acontecendo aqui de forma sistemática?

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Nesses encontros, alguns docentes começaram a se mobilizar e enfatizaram que não

gostariam apenas de ter esse espaço aberto de discussão sobre o currículo-documento do

Proeja, mas queriam se sentir parte de uma discussão que fosse aberta e coletiva para

refazer os currículos-textos de todos os cursos e modalidades ofertados pelo campus Venda

Nova do Imigrante. Considerando que as rodas de conversas não estavam dissociadas de

outros movimentos nem de outros fios das redes de conversações em diversos

espaçostempos do campus, alguns dos professores que fomentaram essas conversas de

problematizações sobre os vários cursos e as respectivas matrizes curriculares também

foram convidados a compor a Comissão de Currículo e Formação de Professores (parte

integrante do planejamento estratégico do Ifes – campus Venda Nova do Imigrante).

Além disso, alguns dos dados produzidos nesta pesquisa foram disparadores para a

escrita da ementa da disciplina ―Currículo e Formação de Professores‖ do primeiro Curso

de Pós-Graduação em Educação que será ofertado pelo campus, considerando conceitos de

formação docente como vivências entre encontros em composições criadas nos territórios

múltiplos das afecções na perspectiva da diferença de um coletivo nunca coeso, mas

multidão em (in)constante (des)formação e (des)(re)territorialização.

Encontros sem fim...

Percebemos os possíveis dos currículos e dos processos formativos docentes e

discentes atrelados à noção de multidão: movimentos de formação que mantêm a

multiplicidade sem uma ilusão de unidade coesa, contudo ocupa uma região intermediária

entre o individual e o coletivo, assumindo maneiras próprias de trabalhar, em articulação

com os movimentos e transições das singularidades em dinâmicas relacionais nesses

enredamentos.

Dessa maneira, a criação dos encontrosformações em tentativas de comunalidade

expansiva relacionou-se com um comum que significa proliferação de atividades criativas,

de relações e formas diferentes entre si, enfatizando a solidariedade e a cooperação como

elementos fundamentais. Assumindo politicamente essa perspectiva para o campo das

(des)formações-encontros de docentes, compactuamos com a noção de inteligência

coletiva, como referente à potência da ação coletiva, na acepção de que essa ―potência‖

depende especialmente da capacidade dos indivíduos e dos grupos de entrar em relação,

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produzindo conhecimentos em conversações, gerando o agenciamento de formas-forças

comunitárias (CARVALHO, 2009).

Nesses encontros, vimos intensificar, cada vez mais, a percepção de que há

potência nas ações coletivas (CARVALHO, 2009) a partir do investimento na

transversalidade das redes de saberespoderesfazeres pulverizadas, capilarizadas em

(des)composição dos enquadramentos dos lugares postos a priori que perpassam a ideia de

centros de referências, criando-se, assim, desenhos fluidos, inventivos e, ao mesmo tempo,

territorializantes em um complexo enredamento de partícipes dos movimentos micro-

macropolíticos (GUATTARI; ROLNIK, 2011) entre o que nos toca e nos afeta e nos faz

agir, movimentar ou paralisar.

Com essa premissa, consideramos, com Carvalho (2009), que a formação com

professores – concernente não apenas ao campo curricular – pode provocar uma nova

racionalidade de formação baseada nas heterologicidades com experimentações e

tentativas de solidariedade entre criações nos/dos/com os cotidianos escolares em pura

expressão de singularidades cooperantes com um corpo político em constituição

rizomática, não dogmática e com a propagação de práticas formativas solidárias nas buscas

de movimentos possíveis e cada vez mais sensíveis.

Com a pesquisa, foi possível evidenciar: não há totalidade nos discursos em relação

às experiências de formação; as tentativas de produção de espaços de formação nunca

estão prontas/finalizadas; as experimentações não foram decorrentes de um fio, de um

pesquisador ou de um integrante dos grupos, mas de produção entre os enredamentos que

inventamos e nos (bons/maus) encontros que compartilhamos, tanto nos territórios e

lugares que criamos e defendemos quanto nas linhas de fuga que fizemos fugir, trazendo

outros possíveis com os seus riscos imprevisíveis, afetando e nos permitindo ser afetados

em nossas singularidades.

Assim, percebemos o que pode um corpo-multidão em danças coletivas de

formação como multiplicidade ao invés de massa passiva na busca de

padrão/homogeneização com um único porta-voz, contudo vibramos com a proliferação da

potência da diferença (motor da criação) e da multiplicidade entre linhas molares-

moleculares dos nossos desenhos coletivos enrijecidos-escorregadios no cotidiano do

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia no Estado do Espírito Santo.

Referências

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ENSAIANDO OUTROS POSSÍVEIS PARA OS PROCESSOS DE

APRENDERENSINAR NA ESCOLA: ENTRE CONVERSAÇÕES, EXPERIÊNCIAS

E AGENCIAMENTOS

Suzany Goulart Lourenço

(Secretaria Municipal de Educação da Serra/Sedu/PMS)

Fábio Luiz Alves de Amorim

(Universidade Federal do Espírito Santo/Ufes/PPGE)

Resumo

Este artigo analisa possibilidades outras de, a partir dos agenciamentos e experiências

tecidos em pesquisa com o cotidiano escolar, pensar, junto com os docentes outros

possíveis para os processos de aprenderensinar diferentemente do que é instituído pela

segmentaridade das linhas molares, pelos Currículos-Codificados que recortam estudantes,

docentes e escolas em todos os sentidos, conforme indicam Deleuze e Parnet (1998).

Objetiva problematizar os sentidos produzidos pelos docentes sobre suas experiências

compartilhadas nos cotidianos de uma escola pública municipal da periferia de Serra/ES.

Utiliza a cartografia, como tática metodológica, no acompanhamento dos movimentos que

são produzidos nas redes de conversações no plano de imanência do cotidiano escolar, no

desejo de capturar a força da diferença, pensando os processos de aprenderensinar para

além do engessamento que se dá por meio da Imagem moral ou ortodoxa do pensamento

que atravessa nossas escolas. Indica, compreendendo a provisoriedade de qualquer escrita,

pensando junto com autores como Deleuze (2000), Larrosa (2002), Carvalho (2009) e

Corazza (2013), como possíveis resultados, que as falas e ações dos sujeitos da pesquisa

denotam que é possível agenciamentos moleculares nos movimentos de aprenderensinar

em frente àqueles que preestabelecem um princípio da identidade para professores e

alunos. Observa que as redes de conversações produzidas nos cotidianos escolares

potencializam a inteligência coletiva e, desse modo, a criação nos processos de

aprenderensinar. Considera que é necessário rasurar os territórios escolares com outras

experiências e agenciamentos não dogmáticos, que são movimentados por

desterritorializações e reterritorializações, pelos afectos e afecções que são produzidos nos

processos de aprenderensinar inventados por docentes e estudantes.

Palavras-chave: Experiências. Agenciamentos. Redes de conversações.

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Introdução

Figura 1 — Tela de Martha Barros "Desejo de árvores e aves"

Fonte: www.marthabarros.com.br

A escrita deste artigo é atravessada pelo desejo de movimentar o pensamento em

relação a modos outros de produção dos processos de aprenderensinar na escola. Para

início de conversa, destacamos que a estética de escrever algumas palavras juntas é uma

aposta na desterritorialização do discurso hegemônico da Ciência Moderna, que tanto

buscou dicotomizar o que diz respeito à vida. Faremos isso com aprender e ensinar, espaço

e tempo, dentre outros termos. Sendo assim, a partir de uma cartografia das redes de

conversações tecidas em pesquisa com os docentes de uma escola municipal de ensino

fundamental de Serra/ES, considerando que podemos experienciar a escola sem a

necessidade de nos enquadrarmos em Currículos-Codificados (CORAZZA, 2013),

buscamos problematizar: quais são os sentidos sobre aprendizagem e ensino que os

docentes nos esboçam? É possível ensaiarmos outros possíveis para os processos de

aprenderensinar? Qual a necessidade de outrosnovos agenciamentos nos espaçostempos

escolares? Haveria possibilidade, como Deleuze e Parnet (1998) nos ajudam a pensar, de,

nas escolas, escaparmos do muro branco que nos rostifica e do buraco negro que nos

captura e nos fixa?

A partir desse desejo de movimentar o pensamento com os sujeitos que praticam os

cotidianos escolares (CERTEAU, 2009), evidenciaremos, ao longo do nosso movimento

escriturístico, fragmentos das redes de conversações produzidos com os docentes da escola

envolvida. É importante destacar que compreendemos que a nossa escrita possui, por um

lado, uma potência que indica caminhos possíveis e, ao mesmo tempo, uma

provisoriedade, haja vista que novas conexões surgem e ampliam os modos de pensar.

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Dessa forma, escrevemos sem a pretensão de esgotar todas as possibilidades de produção

de sentidos que a temática nos impulsiona a pensar.

Nesse sentido, utilizamos a cartografia como tática metodológica no

acompanhamento dos processos das redes de conversações (DELEUZE, GUATTARI,

2000), uma vez que entendemos a tática, conforme nos ensinou Certeau (2009, p. 95),

como a arte do fraco que ―[...] é determinada pela ausência de poder [...]‖. Assim,

acreditamos que o processo cartográfico se vale de ações do tipo tático, pois o cartógrafo

aproveita os escapamentos em que suas ―sacadas‖ são produzidas.

O acompanhamento das redes de conversações possibilitou pensarmos em alguns

dogmas que prevalecem nos cotidianos escolares (e também fora deles) que buscam

estabelecer modelos, formas moduladas de produzir os movimentos de aprenderensinar.

Assim, também a experienciação dessas diferentes redes ampliou em nós a insistência pela

criação de processos que nos eximam da petrificação do que é compreendido como

aprendizagem e ensino, de como a aula é fixada em moldes discursivos.

Assumir como perspectiva as redes de conversações, objetivando ampliar as

possibilidades de produção discursiva acerca dos processos de aprenderensinar implica

apostar, junto a Carvalho (2011a), em defender a possibilidade de uma (re)invenção

coletiva da escola a partir do compartilhamento de experiências e, com Kastrup e Passos

(2013, p. 267) em traçar um plano comum no qual, nessas experiências, comum é aquilo

que ―[...] partilhamos e em que tomamos parte, pertencemos, nos engajamos‖.

Estamos compreendendo, então, as redes de conversações estabelecidas no

cotidiano escolar como movimentos ensaísticos de outras produções curriculares, de outros

modos de aprenderensinar. Acreditamos que a tessitura dessas redes é necessária para a

(re)invenção dos contextos escolares, pois evidencia e potencializa a inteligência coletiva e

o trabalho imaterial, uma vez que, como Carvalho (2009, 2011b) nos alerta, a

incrementação da inteligência coletiva amplia a criação nos cotidianos escolares e,

portanto, nos processos de aprenderensinar.

Nesse contexto, usamos, como disparadores das conversações, alguns fragmentos

do livro O que se transcria em educação?, de Sandra Corazza (2013), assim como o trailer

do filme Uma professora muito maluquinha e um vídeo sobre o Capítulo 7, de Corazza

(2013), os dois disponíveis no YouTube. Assim, as conversações aconteceram nas

problematizações dos conceitos de docência, experiência, aprendizagem, ensino, currículo,

alegria, aula. Desse modo, nas conversas estabelecidas com os docentes, suas falas se

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colocavam enquanto ensaio de outros agenciamentos possíveis para os processos de

aprenderensinar.

Embora, em muitos momentos, a Imagem dogmática ou ortodoxa do pensamento

(DELEUZE, 2010) tenha prevalecido, o desejo por agenciamentos que precisam ser

atravessados pela alegria, inventividade e por experiências que possibilitem que algo lhes

aconteça transbordou a vida imanente que pulsa na escola, que não é petrificada pelos

Currículos-Codificados, mas, como afirma Deleuze (2002), é pura potência. Os

agenciamentos de que falamos comportam termos heterogêneos, estabelecem ligações

entre eles, são multiplicidades; agenciamentos que são sempre coletivos e, por isso, não

envolvem apenas o sujeito, mas também os devires, afetos e acontecimentos que o

atravessam. Nesse sentido, estamos apostando em movimentos que possibilitam o

transbordamento de um múltiplo e não se fixam em identidades.

Assim, vimos que os docentes nos indicam modos outros de compor a escola, uma

vez que esboçam nas conversações o desejo por processos de aprenderensinar que não se

engessam em modelos predeterminados, mas, como Corazza (2013) e Carvalho (2009) nos

ajudam a pensar, evidenciam os possíveis de agenciamentos que transcriam as experiências

nos espaçostempos escolares e ampliam a potência de vida dos sujeitos que praticam e

inventam esses cotidianos. Experiências essas que requerem de nós não informações,

opiniões ou a detenção de saberes e poderes, mas sensibilidade para afetar e ser afetado,

disponibilidade aos encontros e abertura aos acasos (LARROSA, 2002). Ampliação da

potência de vida pelo viés da alegria e do desejo por novas composições.

A escola como território de agenciamentos... Ou sobre o prevalecimento da

molaridade

[...] Os sonhos anunciam outra realidade possível e os

delírios, outra razão […] (Eduardo Galeano, 1995).

A produção de agenciamentos no cotidiano escolar é movimentada por diferentes

linhas que nos atravessam e podem potencializar ou não os processos de aprenderensinar,

uma vez que as linhas moleculares e de fuga nos possibilitam experiências de abertura ao

novo, à inventividade e à alegria, e as linhas molares nos engessam em sistemas

segmentarizados (DELEUZE; PARNET, 1998). A atualização dessas linhas nos encontros

que produzimos nas escolas, por sua vez, depende das imagens virtuais que nos

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acompanham e das vibrações que elas nos causam. Desse modo, conforme Deleuze e

Parnet (1998), esse movimento de atualização depende das singularidades que recortam o

virtual, ou seja, como os sujeitos compreendem as possibilidades de compor

agenciamentos nos territórios escolares a partir de suas perspectivas e do real social do

qual fazem parte.

As linhas molares que recortam a Imagem dogmática do pensamento (DELEUZE,

2000) se atualizam com muita força nos espaçostempos escolares, tendo em vista a

continuidade da valorização de ideais difundidos na Modernidade: recognição,

quantificação, experiência (experimento), razão, moral, verdade, dentre outros. Assim, se

estamos falando de processos de aprenderensinar e experiências e agenciamentos, na

Imagem dogmática alunos e professores precisam concordar e reconhecer que existe um

modelo de aprendizagem e de aprendiz, assim como um modelo de experimentar a escola e

de produzir agenciamentos que é sempre o mesmo, ―[...] é o mesmo objeto que pode ser

visto, tocado, lembrado, imaginado, concebido [...]‖ (DELEUZE, 2000, p. 131). Vejamos o

fragmento de um dos encontros com os docentes:

Professor@ 21: Eu sempre falo isso e já fui muito criticada, mas vou

continuar falando, pois é o que eu vejo há 20 anos. Não tem como ser

diferente. Se família é a base de tudo, tem que vir de lá. Se a criança sai

de casa, porque ela tem que ir à escola, pois o pai e a mãe foram

trabalhar, então não veio com outro objetivo. Professor@ 18: Os alunos que têm dificuldade de aprendizagem, eu não

diria nem dificuldade, eles têm o dom de não aprender. E, por incrível

que pareça, eles só são assim na escola. [...] Eles são casos de estudo

mesmo. [...] Desses alunos com dificuldade, ano que vem estarão na ficha

do Conselho de Classe, no 3º ano estarão de novo, até o 5º ano, pois são

alunos que realmente... […] Eles tiveram uma boa educação infantil, mas

eles têm algum problema.

Professor@ 5: Turma indisciplinada não aprende, por isso que minha

turma é boa. Eu fico muito orgulhosa com meus alunos, pois eles se

envolvem. Mas, assim, tem que ficar sempre em cima: 'Acorda, acorda!

Vamos fazer o dever'...

―Não tem como ser diferente‖, ―dom de não aprender‖, ―indisciplinada‖, ―eles tem

algum problema‖, palavras que colaboram para o prevalecimento da molaridade nos

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processos de aprenderensinar. Além disso, as falas desses docentes nos indicam uma

visão de aprendizagem como algo isolado, não como composição que também necessita de

agenciamentos para acontecer.

Professor@ 10: [...] quando a gente faz Pedagogia, a primeira pergunta

deveria ser: Você está fazendo Pedagogia para quê? [...] ensinar exige

alegria. Quando você fala da alegria, é fundamental você gostar daquilo

que faz. Tem muitas pessoas que estão na educação por um acidente de

percurso [...].

Professor@ 1: [...] que a gente fala muito da desvalorização, que o

professor merece mais, com certeza. [...] na faculdade, são pouquíssimas

pessoas que estão ali para ser professor, com o intuito de aprender e de

estudar. Estão ali porque foi a única oportunidade que surgiu [...]. Essas

são as pessoas que não terão paciência, não vão procurar uma aula

diferenciada. Hoje o professor é desvalorizado, mas tem muito professor

despreparado. Tem professor que mal entra na escola e já está de olho no

relógio para dar 17h15min.

Professor@ 4: […] Na época que eu estudei e lecionei no magistério,

nós tínhamos outra premissa do que era aprender e ensinar, que

prevalecia a técnica. Tanto é que, nos cursos de magistério, era didática

do início ao fim. Chegou um momento que não dava pra estudar isso

mais, pois não precisava pensar mais na técnica. Precisava pensar no

agrupamento, no ajustamento de grupo [...] e a gente deixou a técnica de

lado pra dar conta do problema social, pra dar conta dos enturmamentos

(licença poética), pra dar conta do que aparecia nesse país como

inteligência emocional, como múltiplas inteligências. O que fazer com o

construtivismo? Pois não sabíamos onde enfiar isso. 'Quem era esse tal de

Vygotsky? Eu não quero estudar esse cara!'. [...] E muitas levas de turmas

foram formadas. Muitas. Sem saber onde o galo cantou e nem que

música.

Os possíveis de fazer a docência gaguejar, de produzir bons encontros nos

movimentos de aprendizagemrensino nos quais a alegria seja a sua vitalidade e de estar na

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escola não por obrigação, como profissional, mas pelo desejo de experienciar seus

espaçostempos junto aos estudantes, buscando deslizar pela dureza que insiste em

prevalecer nos cotidianos escolares, parecem sufocados pela segmentarização da escola.

Sufocados não apenas porque os docentes não sabem ―onde o galo cantou‖ ou ―qual

música ele cantou‖, mas, principalmente, por eles e pelos estudantes estarem lançados sob

o jugo do ―Princípio da Identidade‖ (CORAZZA, 2013), produzido pela Imagem

dogmática, que os engessa como bons ou ruins, corretos ou incorretos, fazendo com que os

deslizamentos no plano de imanência da escola diminuam ou não aconteçam.

Contudo, a nossa aposta para esta escrita envolve o desejo de evidenciar que há

espaço para outros possíveis na escola, que somos atravessados também por outras linhas

de (re)existência em relação àquilo que nos lança em um buraco negro e nos fixa em um

muro branco e que, em busca de movimentos outros que insistem em fazer com que a

docência ―gagueje‖, podemos, como nos convidou Eduardo Galeano, anunciar outras

realidades possíveis. Mesmo com a força da molaridade em suas experienciações, os

docentes parecem desejar uma produção de agenciamentos alegres e potentes nos

processos de aprenderensinar: ―Eu não me conformo de entrar na minha sala e encher o

quadro. Eu tenho que dar uma aula diferente, buscar um recurso diferente. Eu busco‖

(PROFESSOR@ 1).

Por outros possíveis para não sufocarmos

Figura 2 — O que podem os processos de aprenderensinar?

Fonte: Arquivo da pesquisa.

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A necessidade de ensaiar a aula e nos inspirarmos para fazê-la acontecer, segundo

Corazza (2013), é o que possibilitará que os processos de aprenderensinar queiram dizer

algo tanto para nós, docentes, como para os estudantes. Deleuze (2001) nos indica que uma

aula exige emoção, pois, sem emoção, não há interesse, não há quem ensine ou aprenda,

não há movimentos de aprenderensinar. Como também sinaliza o autor, na aula muitas

coisas acontecem e, sendo assim, é um espaçotempo de encontros, de experiências, de

invenção.

Professor@ 10: Agora, o ideal mesmo é que você pudesse elaborar uma

aula, pensar... Mas vamos falar sério, em nenhuma escola de excelência o

professor tem planejamento como o nosso. Nossso tempo de

planejamento é curto, não é suficiente, planejamento pingado é um

desastre […]. Precisamos de mais tempo para planejar. Professor sai de

uma escola correndo para ir para outra. Ano passado eu conseguia chegar

mais cedo e colocava as cadeiras da sala em semicírculo, pois acho que é

a melhor forma de trabalhar. Eu gosto de trabalhar assim, pois não tem

aquela competição para quem vai ser o primeiro ou o segundo […].

Assim eles ficam mais perto da gente. […]. Eu acho que temos que nos

encantar pelo que fazemos, temos que gostar do que fazemos, mas tem

essas questões a serem consideradas, que é o que você encontra no real.

Gostaria de estar todos os dias com minha aula ensaiada, [...] mas não

temos disponibilidade para planejar.

Desse modo, considerando a importância da preparação, do ensaio, e acreditando

que muitas coisas podem acontecer em uma aula, e que esses espaçostempos podem ser

atravessados mais pelas linhas moleculares, concordamos com Carvalho (2011a, p. 113)

quando nos diz que: ―[...] é necessário evitar a mutilação da alegria de aprender, do prazer

de criar nas salas de aula das escolas e, nesse sentido, devemos explorar o currículo como

um 'acontecimento' vivido nele mesmo‖. Para isso, é importante que pensemos no real

social dos cotidianos escolares, nas relações entre a macro e a micropolítica e nos possíveis

de experienciarmos os limites que nos são impostos.

Professor@ 4: A gente insiste em ser absolutos da educação, a gente

jamais consegue relativizar. E esse negócio é necessário aprender. A

gente mais lida com coisas que são relativas e absolutiza tudo. Por

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exemplo, nós falamos assim 'A educação naquela época era melhor.

Então vamos fazer aquela que está ótimo'. Como assim? Não dá pra ser

assim! 'A educação de fora é a melhor. Então, vamos fazer aquela que é

melhor'. Não dá pra ser assim! A gente precisa aprender a olhar pra

dentro. A gente só faz com competência quando a gente consegue

entender a relação de macroprocesso e microprocesso. Eu estou falando

de história da educação, de furadas que já entramos e vamos entrar de

novo se não conseguimos olhar pra gente. Por exemplo, uma máxima 'A

educação especial jamais vai se realizar', essa é uma máxima, pois

ouvimos de fora e encontramos impedimentos de dentro. Mas, a gente

não pensa nos impedimentos para refazer a ação, a gente não pensa, é

disso que estou falando.

Essa fala nos impulsiona a conjecturar sobre os agenciamentos que podem provocar

rachaduras nos Currículos-Codificados. Quando nos afirma que os sujeitos da EMEF

precisam ―olhar pra dentro‖ e, em uma fala anterior, que ―É este grupo que está aqui que

vai dizer para este grupo que está aqui, com pistas dadas por Boaventura, Vygotsky [...]‖,

sinaliza que esses sujeitos, em suas produções de sentidos com os saberes e poderes que

atravessam os espaçostempos escolares, precisam permitir que as linhas flexíveis,

moleculares, os atravessem com mais força nos seus modos de fazerpensar os processos de

aprenderensinar.

Como o ―dentro‖ da escola é uma dobra do ―fora‖, compreendemos, com Díaz

(2012), sob a ótica de Foucault, que esse processo de dobramento acontece pelas relações

de poder, saber e subjetivação, que não provocam uma interiorização do ―fora‖ ou uma

exteriorização do ―dentro‖, mas uma composição dentrofora, na qual a escola é um

território de agenciamentos. Isso porque, da mesma forma que podem produzir

resistências, os processos de subjetivação podem produzir molaridade, dureza. Contudo, a

nossa aposta está na relevância de nos colocarmos como sujeitos da experiência

(LARROSA, 2002) nos tempos e espaços da escola, haja vista que o atravessamento

predominante das linhas molares torna improvável, como já vimos, a produção de alegria e

de encontros que aumentem nossa potência de agir nos movimentos do aprenderensinar no

contexto micropolítico do cotidiano escolar.

Professor@ 3: Eu não vejo os alunos vindo com má vontade, eu vejo

eles vindo com alegria. Não é 100%, claro, mas eu vejo eles vindo

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alegres para a escola. E eu acho também que precisamos repensar o

modelo de escola que temos hoje. Não estou dizendo nós, Serra, não.

Modelo de escola que estamos trazendo, como você falou, desde quando

éramos crianças. Só que essa fala da S. faz diferença, para pensarmos 'A

escola pode mudar sua vida!'.

Professor@ 2: [...] na escola pública, as crianças precisam tanto que a

gente dê um pouco pra elas e a gente só cobra. Acho que temos que

cobrar, mas temos que saber dar também. Eu gosto do que faço. Às vezes

eles brincam demais, mas eles não me dão trabalho, mas, se vier outro

professor, vai achar que a turma é horrível, é chata, mas, para mim... Eu

já fui moleque. Muitas vezes esquecemos disso. Nós temos que ver o lado

deles [...]. Qualquer criança tem condições de aprender tudo o que

ensinamos. É por isso que às vezes eu fico triste […]. O primeiro critério

é ver se a pessoa realmente gosta de dar aula, porque não adianta. Se a

pessoa não gosta, deveria ir para algum lugar que goste, senão não

funciona, porque, mesmo que a pessoa queira, se não tiver prazer, não

funciona.

Os docentes nos provocam a enfatizar a indispensabilidade da produção de bons

encontros entre eles e os estudantes para os movimentos curriculares na escola. A

necessidade de modos outros de estar na escola, pelo viés da alegria, do devir e da

incrementação da inteligência coletiva, traz elementos que nos indicam que

[...] nada disso acontecerá se a educação que fizermos for feita do mesmo

jeito que nos educaram; se for uma educação igual àquela que todos

fazem, fincada na tradição, na opinião ou no dogma; se for uma educação

que achamos que dominamos, que temos a certeza que sabemos fazer,

que é só seguir as diretrizes X ou Y, o livro didático, a voz da

experiência, ou aquilo que a faculdade nos ensinou. Em outras palavras,

definitivamente, hoje, educar, por meio de certezas e de verdades

verdadeiramente verdadeiras, não pode mais ser considerado educar

(CORAZZA, 2013, p. 98).

Então, compreendendo que a escola é um território de agenciamentos e que os

processos de aprenderensinar são composições rizomáticas desse território, ou seja, não

são fabricados linearmente, mas são inventados nas experienciações dos sujeitos

praticantes do cotidiano escolar, a nossa produção de sentidos em relação às redes de

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conversações com os docentes se dá como modo de problematização, não como afirmação

de verdades ou de julgamentos.

Nesse sentido, os docentes nos evidenciam que seus anseios, em relação aos

processos de aprenderensinar, não se reduzem às prescrições vindas da Sedu/Serra ou do

MEC. A atenção dos docentes – embora acreditemos que a escola precisa fazer ressoar

com mais força suas linhas moleculares, a docência precisa gaguejar e as vozes das

crianças precisam ser mais ouvidas e consideradas – passa pelo real social de seus

cotidianos: sua formação, as movimentações das crianças na escola, os encontros que são

produzidos nos espaçostempos escolares. Perceber que a escola, de modo geral, precisa de

mudanças, que não são individuais, mas coletivas, nas quais docentes e estudantes devem

compor juntos possibilidades de aumentar a potência de vida nos processos de

aprenderensinar, é para nós um grande primeiro passo para compreendermos a

necessidade de novos agenciamentos de relações entre as forças.

Assim, considerando a necessidade de outros possíveis para não sufocarmos,

podemos afirmar que isso requer pensar a produção de bons encontros na escola, deslocar

o pensamento e não se prender em qualquer forma de representação do que é ser professor

ou aluno, rasurar os territórios escolares com outras imagens que não a dogmática,

movimentado-os por desterritorializações e reterritorializações, pelos afectos e afecções

que são produzidos nos agenciamentos, nas experiências dos processos de aprenderensinar

que são inventados por docentes e estudantes.

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DA ESCOLA COMO CUIDADO COM O MUNDO: CORPO, DESEJO E O

APRENDER E ENSINAR

Janete Magalhães Carvalho/PPGE-Ufes

Larissa Ferreira Rodrigues/Criarte-Ufes

Steferson Zanoni Roseiro/CE-Ufes

Resumo

Objetiva, a partir de problematizações decorrentes de pesquisa com professores de escolas

públicas de ensino fundamental, debater como os agenciamentos coletivos do desejo

interferem nos processos de aprender e ensinar no cotidiano escolar e, nesse sentido,

problematiza a política dos agenciamentos do desejo, dos afetos e afecções, estabelecida no

plano de composição e de imanência dos processos de aprender e ensinar em corpos

aprendentes, assim como os ―possíveis‖ para um aprender e ensinar situado na escola como

lugar de cuidado do mundo. Utiliza, como estratégia metodológica, a pesquisa-intervenção

em redes de conversações com coletivos de professores em diferentes contextos das

escolas. Acompanha, assim, fluxos das conversações com as professoras, tendo como

disparadores das redes de diálogos as questões pontuadas ao longo do texto. Conclui que

novos modos de estar professores e alunos na escola sugerem outras maneiras de atuação e

de composição no aprender e ensinar, quer seja com relação ao conhecimento (em rede

reticular, transversal, interdisciplinar, por projetos e/ou...); quer seja com relação às

linguagens, pois os agenciamentos coletivos de enunciação estarão voltados para a

interação, a dialogicidade e o compartilhamento de experiências, quer seja pelos afetos e

afecções, pelo agenciamento de encontros que, ultrapassando as paixões, possibilitem a

constituição do desejo como cuidado do outro e do mundo. Nesse sentido, a comunidade

escolar necessita minimizar os fatores que induzem à passividade ou potência mínima

grupal e estabelecer conexões e/ou modos de associação que possibilitem, na grupalidade,

o compartilhamento de ideias, experiências, afetos e afecções, agenciando a potência

máxima de realização dos processos de aprender e ensinar.

Palavras-chave: Aprender. Ensinar. Desejo.

Desejos de uma conversa como introdução...

Um corpo é sempre agenciamentos, afetos, afecções, políticas e vida. Um corpo é

sempre produção: corpos atravessam outros corpos, produzem encontros, criam imagens e

tempos em um dentrofora de si; estendem velocidades, prolongam lentidões, fazem

travessias por durações e criam fugas em todas as direções.

Corpo e desejo... Desejo-falta ou um desejo como fluxo incessante e arrítmico?

Corpo que supera o mundo da alta organização, "[...] pensado por antecipação, onde

as forças do acaso se fazem raras, quase inexistentes" (LINS, 2014, p. 140). Desejo como

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movimento, como produção, como acaso, irrupção de forças, obliteração de passagens

sedimentadas. É sob a ótica desses dois conceitos que pensamos a docência: corpo e suas

implicações aprendentes e de produção de durações; desejo e suas relações intempestivas,

seu caráter incapturável. Falar de aprender e ensinar – e de escola, especificamente! – é

falar de corpos dançando a ritmos e fluxos de desejo.

Entretanto, quais atividades seriam as de maior potencial para o processo de

aprender-ensinar: as fundadas no princípio do prazer, ou seja, no atendimento às carências

ou faltas apresentadas por alunos ou as baseadas no desejo dos alunos?

Um professor fala: ―A gente faz o diagnóstico no início do ano para ver o nível dos

alunos e daí, baseado no currículo da escola e do aluno, é feita a seleção e organização

dos conteúdos pelo professor”. Outro argumenta: ―Para mim, aula produtiva é aquela em

que o objetivo é a discussão, a socialização, até descobrir algo novo, seja informação ou

problematização dos conteúdos”.

Assim, perspectivas diferenciais convivem na voz dos professores...

Mas a questão continua... Deveria o desejo pessoal dos alunos e dos professores

movimentar o aprender e o ensinar?

Prazer e desejo seriam a chave mestra de abertura do interesse dos alunos e

professores na composição do aprender e ensinar experienciado no cotidiano escolar?

Ao falarmos de desejo e prazer, estamos falando da mesma coisa?

Deleuze (1994) argumenta que o desejo não apresenta o mesmo sentido do prazer,

pois, para ele, o desejo, ao contrário do prazer, não comporta qualquer falta ou carência.

Existe, assim, uma distância entre a concepção deleuzo-guattariana e a significação

corrente da palavra desejo. Opõe-se comumente o desejo à sua realização, de modo que ele

é rejeitado do lado do sonho, da fantasia, da representação. Mas eis que o desejo é

reconduzido para o lado da produção, e o seu modelo não é mais o teatro ou a

representação, mas a fábrica, visto que o desejo não é a representação de um objeto ausente

ou faltante, mas uma atividade de produção, uma experimentação incessante, uma

montagem experimental (ZOURABICHVILI, 2004).

Ora, romper com as concepções habitualmente idealistas do desejo implica

contestar sua lógica nos processos de aprender e ensinar. Os alunos e professores não se

formam com linguagens, conhecimentos e afetos por déficit ou carência e imaginar isso é

muito frequente na perspectiva de aquisição de novas aprendizagens. Alunos e professores

se compõem com um desejo, não como a tensão de um sujeito em direção a um objeto

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2899ISSN 2177-336X

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(lógica da representação do desejo), e com a sua possessão; com isso, não apenas não nos

damos conta da realidade do desejo como tal ou de sua formação, mas também do desejo

que ludibria a si mesmo.

Segundo Deleuze (1994), o desejo, nesse sentido, não é falta, mas processo,

―aprendizagem vagabunda‖ que sofre apenas por ser interrompida e não pelo fato de o

"objeto" se esquivar cada vez mais. É igualmente nisso que se distingue do prazer: a

exploração de dores também deriva do desejo; não que se queira sofrer e encontrar prazer

nisso, mas trata-se de um devir, de uma viagem afetiva.

Como o desejo é sempre situado num conjunto, outro engano nos processos do

aprender e ensinar é acreditar que o sujeito porta o desejo como uma faculdade toda pronta

a se exprimir, que não conhece entraves senão exteriores (sujeito freado, impedido de se

exteriorizar). Nessa perspectiva, o desejo não é dado previamente nem é um movimento

que iria de dentro para fora: ele nasce fora, de um encontro ou de um acoplamento.

Explorador, experimentador, o desejo vai de afecto em afecto, de afecção em afecção,

mobilizando os seres e as coisas, não para si mesmos, mas para as singularidades que eles

emitem e que ele (o desejo) destaca. Sendo assim, importa, nos processos de aprender e

ensinar, não o desejo pessoal, individual de professores e alunos, mas o conjunto de forças

e fluxos de saberes e fazeres que mobilizam coletivamente (CARVALHO, 2015).

Eis, portanto, a indagação: afinal, por que falar de corpo e desejo quando se fala de

reinvenção de escola? Por que falar de corpo e desejo quando entra em jogo uma relação

de aprender e ensinar?

Para Deleuze e Guattari (2011, 2012), assim como para Skliar (2014), toda

experiência de corpos é uma experiência de aprendizagem, de travessias. Algo passa,

oscila entre os corpos, produz pequenas reverberações e, em um instante, já se foi. No que

fica, resta a metamorfose, o devir, o corpo modificado, a aprendizagem. E a escola – em

seu caráter de encontros e de redes de afecções (CARVALHO, 2009) – torna-se um lugar

especial em nossa sociedade para o encontro de corpos e durações e movimentações de

desejos. Em suma, podemos (e devemos!) ver a escola como lugar de cuidado com o

mundo.

Assim sendo, este texto-escrita objetiva, a partir de problematizações decorrentes

de pesquisa com professores de escolas públicas de ensino fundamental, debater como os

agenciamentos coletivos do desejo interferem nos processos de aprender e ensinar no

cotidiano escolar e, nesse sentido, problematiza a política dos agenciamentos do desejo,

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dos afetos e afecções estabelecida no plano de composição e imanência dos processos de

aprender e ensinar em corpos aprendentes, assim como os possíveis para um aprender-

ensinar situado na escola como lugar de cuidado do mundo. Como estratégia metodológica,

utiliza a pesquisa-intervenção em redes de conversações com coletivos de professores em

diferentes contextos das escolas, acompanhando fluxos das conversações com os

professores, tendo como disparadoras das redes de diálogos as questões pontuadas ao

longo do texto.

Das regras do desejo

Todos os desejos passam pela escola. Não há metáfora aqui. Cada fluxo, cada linha

de vida atravessa a escola. Crianças e alegrias são tão presentes como situações de medo,

histórias de abuso e traços de perigo. A vida escolar é, decerto, a mais aberta ao mundo.

Não que nela não incidam violências a esses ou àqueles fluxos de desejo, mas, diferente de

outras instituições – com exceção, talvez, dos hospitais –, a escola é o único corpo-político

por onde todos os fluxos, obrigatoriamente, cruzam.

Por isso, os professores questionam ao falar da escola e de seus agenciamentos:

como cuidamos do outro? Um diz: ―Tem que levar em consideração, os problemas sociais

que os alunos vivem: alcoolismo, drogas, desemprego. Isso tudo interfere na

aprendizagem.” “Preocupado se o seu pai está bêbado, batendo na sua mãe em casa, você

não aprende. Então, tem dia que a criança está completamente desligada. Tudo isso

interfere. Casar a aprendizagem com esses problemas sociais que a gente enfrenta não é

fácil”. Outro acrescenta: ―Tem horas que o professor precisa fugir do conteúdo para

trabalhar a demanda e necessidade social dos alunos, pois é fator decisivo para o

desenvolvimento deles”. E, ao fazê-lo, eles criam uma língua própria para se perguntar, na

verdade, o que implica cuidar do desejo.

Ora, como Carvalho (2015) chama a atenção, se tomamos o desejo como falta,

como uma necessidade que precisa ser atendida, é bem possível que a proximidade a esses

desejos tão difusos e diferentes seja assustadora. O desejo-falta não apenas produz buracos

no corpo que deseja, mas – e principalmente – coloca "quem ensina" em uma posição de

superioridade, em um lugar de "técnico do desejo" (FOUCAULT, 2014).

Seria, entretanto, o ensino, a docência um se fazer técnico do desejo em seus papéis

de registro e interpretação de signos e sintomas, de organização e "explicação"?

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

2901ISSN 2177-336X

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Algumas falas:

“Sim. A partir do planejamento global em que se define o tipo de „cliente‟ que se

tem, e a partir do diagnóstico que eu tenho da turma, eu vou vendo a necessidade deles.

Assumo postura rígida com relação à televisão e trabalho em sala de aula bate-papos de

forma não sistematizada.”

“Trabalho com aula expositiva e trabalho em grupo. Em duplas e às vezes trio,

sempre em grupo equilibrado. Não só grupo de mais forte, nem de mais fraco. É difícil

diversificar. Acho que a escola dá condições, mas... você sabe, aquela história assim, você

pode escolher a cor do carro, mas só tem vermelho. É mais ou menos isso. Se você quer

fazer, a escola até dá condições, mas ela também não tem essas condições [...]”

“Não gosto de dar tudo pronto. Estimulo para a pesquisa, utilizando música,

teatro, expressão corporal... O objetivo é fazer com que a aula se torne agradável, uma

aula mais gostosa, mais prazerosa, dinâmica, de modo a facilitar a aprendizagem.”

“Ensino com música, com material concreto, para ir dando confiança ao aluno e

ele ir tentando aprender.”

Assim, na escola, a lógica binária da falta e da estrutura, lentamente, tem cedido

campo para outros modos de pensar. Professoras e professores, cada vez menos, aceitam

esse lugar de "técnicos do desejo"; cada vez menos, aceitam esse conceito estático e

fascista do desejo como falta. Como destaca Carvalho (2015, p. 81), "[...] alunos e

professores não compõem com linguagens, conhecimentos e afetos por déficit ou

carência". É outra coisa, completamente outra.

Conceber que as relações escolares não se dão por falta nos desloca do lugar de

quem conhece a "verdade". Longe do desejo faltoso, não operamos na militância

disciplinar e controladora dos corpos. Afastados da falta, começamos a perceber o desejo

como linhas rizomáticas que penetram os corpos, como aquilo tomando forma em nossos

enunciados e corpos.

É nessa lógica, portanto, que o professor percebe uma regra muito simples referente

ao desejo: desejo é produção. A professora, no meio de uma aula, percebe haver muitas

indagações nas quais uma criança sequer poderia dar por falta e, ainda assim, ela indaga,

ela coloca como possibilidade. A professora, pega de surpresa, percebe movimentações

nessa pergunta. "O que se passa diante e por trás dessa pergunta?", ela se indaga. E,

despida do desejo-falta, ela sabe: é desejo. Há algo passando, atravessando, acontecendo

nas relações e agenciamentos da criança. Então ela começa a gaguejar, a se arriscar...

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2902ISSN 2177-336X

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"Aquela criança está fazendo travessias... Há mares que ela desconhece, mas as ondas, de

algum modo, batem nela...". Ela sorri para si mesma.

E é com um pouco disso que Deleuze e Guattari (2011) falam de desejo. Não há

segredos e sequer precisamos fazer parte de uma seita para entender o conceito de desejo

nesses autores. Como Deleuze (DELEUZE; PARNET, 1998) diz, é uma questão de se

lançar em uma filosofia menos interpretativa e mais afetiva, de uma filosofia dos sentidos,

de tessitura de composições entre o ensinar e o aprender, pois desejo é produção. Um

corpo desejante é sempre um corpo acoplado a outros tantos, atravessado por fluxos,

interrompido por cortes ou mesmo efetuando cortes. É o próprio desejo que dita as regras

do funcionamento dos corpos: "Insere um corte aqui! / Aumenta a velocidade de produção

ali!". Um diz: ―A análise do estrangeirismo no inglês seria um exemplo interessante de

inserção no mundo dos alunos... E, para além do conteúdo programático, entrar no

assunto de drogas, da violência, do consumismo, etc.”. Outro aponta: ―A análise da

distorção da mídia, em especial, a televisão. Em matemática, o contexto de gastos na feira,

por exemplo”.

O aluno, quando faz aquela pergunta inexplicável, produz um corte nos fluxos (de

professora, de lógica, de vida-criança, etc.) e, instantaneamente, cria uma bifurcação nos

fluxos cortados. Ao cortá-lo, o fluxo pode se abrir para proceder em novo fluxo; pode

simplesmente fazer uma pausa no fluxo anterior, mas ainda seguir o fluxo anterior,

ignorando o corte; ou pode acoplar-se a outro movimento do pensamento ou de afecções

entre os corpos e seguir em fluxos novos. Em termos de escola, a professora poderia se

deixar afetar pela pergunta e mudar toda a conversa; poderia descartar a pergunta e dizer

sobre sua "impertinência"; ou poderia criar um duplo de afetar-se e dar continuidade, de

criar uma dupla conversa.

Eis, portanto, a força do desejo. Não é calculável ou mensurável, como os técnicos

e os burocratas tanto o desejaram por anos. Não pode, sequer, entrar no jogo da

meteorologia ou adivinhação. Como força produtora, o desejo atravessa os corpos, mas

jamais pode prever que linhas e fluxos resultarão dos encontros. Ao desejar, um corpo

abre-se ao encontro e a conexões e, estabelecendo novas relações, produz novos fluxos.

Por isso, inevitavelmente, desejo nunca é produzido no singular; desejo só é pensável no

encontro, entre corpos, como um coletivo de enunciação.

Sem que nenhuma explicação precise ser inserida, a professora olha para a criança e

a pergunta inexplicável – e essa ainda se mantém suspensa no ar – e percebe que aquele

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2903ISSN 2177-336X

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corpo (criança-pergunta) se efetiva como composição de ideias-força e potência de

aprendizagem.

Ora, mas falamos das escolas reinventadas, falamos dos movimentos não fascistas,

de vida e de potência de vida. E é bem verdade que o fluxo, muitas vezes, tende a voltar a

seu "ritmo inicial", em que um professor, perdido diante da pergunta, não saiba o que fazer

e pense ser melhor continuar sem saber. Todavia, também os professores se reinventam,

param e pensam: "Será que...?". E tudo muda, ainda que, aparentemente, nada tenha

mudado. São mudanças pequenas, por vezes, demasiadamente diminutas. Como quando

duas meninas discutem e choram porque uma disse que sereia não existe e outra disse que

sim e, transitando na corda bamba, a professora diz de bichos históricos que deixaram de

existir, diz de animais que podem ter inspirado as sereias, diz da fauna aquática e promete

a elas encontrar um livro de literatura que fale daquilo que pode ou não existir. É mínima a

diferença e, provavelmente, ela falou apenas para fazer as crianças pararem de chorar. Mas

será que esse é todo o efeito? Quais cortes e operações de desejo essa simples fala não

pode realizar? Afinal, o que muda quando, simplesmente, encontramos modos de agenciar

fluxos e desejos de maneira não violenta? Modos não fascistas? Que vida emerge diante

desses agenciamentos menos enraizados no discurso da falta?

Uma breve resposta: uma vida desejante.

Da escola como cuidado com o mundo

A partir do momento em que a escola se vê atravessada não de faltas e perigos, mas

de vidas e desejos, ela se torna um espaço completamente diferente. Longe do papel

técnico e burocrático, a escola passa às operações táteis e afetivas.

Carvalho (2009) destaca que, antes de todos os preceitos e conceitos de "escolares",

talvez devêssemos nos atentar aos modos de organização afetiva aos quais nos damos.

Envolvemo-nos afetivamente com o mundo e, na escola, essa relação é tanto mais

ampliada e aprofundada quanto mais nos deixamos afetar pela vida escolar. Antes de tratar

de "aprender" em uma relação mecânica, pontual e calculável, podemos dizer de

"aprendizagens" no campo das proximidades com os outros. Afeto e afecção,

experimentação e ação. São esses liames que traduzem nossas atividades, nossos modos de

nos envolver com o mundo, com os corpos.

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Nessa lógica, não faz sentido pensar a escola separada das relações que se

estabelecem entre a criança e o mundo, entre os corpos e os afetos. Obviamente, como a

autora destaca, a partir de Espinosa, não se trata apenas de um afeto sentimento, de um

afeto romântico. Antes, dizemos de afetos e afecções como aquilo que nos mobiliza ou

imobiliza, como aquilo que, de algum modo, instiga o nosso agir, positivamente ou não.

Ao nos deixarmos afetar, estamos, na verdade, permitindo que outros corpos nos

encontrem. E os corpos são histórias, são ações políticas, são instituições, são vidas. Há um

corpo quando esse é capaz de afetar e ser afetado; corpo é passagem e veículo dos afetos e

das afecções.

Por essa razão, em busca de uma vida desejante que se afasta dos fascismos e da

destruição do mundo, a escola se torna um dos lugares mais próximos e passíveis de

produzir e reinventar os cuidados com o mundo. As professoras sabem bem disso,

conhecem bem as histórias de morte pelas quais as crianças em suas salas são assaltadas;

conhecem bem as exigências e os altos preços cobrados às crianças – e a elas mesmas –

para se manterem abertas aos fluxos de desejo. Todavia, ela, a professora, junto às

crianças, recria as regras do jogo, reinsere os fluxos em outras direções. Escreve com as

crianças um projeto de passeio para construção e estudo da vida das formigas; o projeto é

aprovado, mas não podem arranjar um ônibus. Antes de desistir, crianças e professora

conversam. O tio de alguém tem terra, a avó de outrem pode arranjar formigas, uma

criança mora numa casa próxima à escola e tem quintal de terra... Na conversa, vão se

organizando e, na semana seguinte, o projeto é reescrito, dessa vez quase todo pelas

crianças, e elas seguem com as contribuições de todos.

Há vida acontecendo mesmo e, principalmente, onde a vida pensa ser domesticada.

Algumas falas:

“Às vezes é necessário mudar o planejamento de acordo com o interesse e a

realidade da vida dos alunos.”

“A gente vai, na verdade, pegando aquele conteúdo que a gente programou de

início e vai avaliando aquilo com o andar do ano e o processo de aprendizagem dos

alunos. Às vezes você pensa: „Ah! Isso vai dar‟. Não, não dá...! Melhor eu pensar e

planejar outra coisa”.

“Existe a diferença. A gente procura minimizar isso e fazer com que todos

participem da mesma maneira, sem distinção nenhuma”.

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“Procuro trabalhar o individual no coletivo, trabalhando no coletivo com uns

alunos, ajudando aos outros”.

“Comecei a trabalhar com pesquisa usando a biblioteca. Inicio com pesquisa na

sala de aula. Os alunos pesquisam e produzem um texto coletivo, mas eu acompanho, pois,

se deixar por conta deles, a pesquisa é cópia de livros ou da Internet”.

“Busco sempre aguçar a curiosidade dos alunos. Tenho um cantinho com xerox de

atividades; aí, quando o aluno termina, escolhe outra atividade. Tem aluno que não gosta

de nenhuma e, nesse caso, pode ler livrinhos”.

Assim, agindo na contramão dessa domesticação, a escola faz visíveis modos de

vida inesperados até então. Longe da falta e da estrutura, do certo e do errado, a escola

procura fazer visíveis as maquinações e os agenciamentos que produzem o mundo. Ao

discutir com as crianças as condições de elaboração de um formigueiro e o estudo da vida

das formigas, ela não está apenas falando de um conteúdo de ciências, mas apresentando

questões da ordem política ("Crianças, não conseguimos o ônibus..."), discutindo com elas

modos de relações sociais, debatendo e criando regras de relacionamentos.

Ao colocar em questão a própria condição de funcionamento, professora e crianças

enxergam as operações das máquinas, dos movimentos e da vida. E, decerto, ao fazê-lo,

não se deixam ludibriar tão facilmente por ditos de politicagem e discursos sedutores.

Criam, ao contrário, táticas de visibilização e de desmantelamento, de cartografias dos

afetos, de genealogia das forças e arqueologia dos saberes, contraefetuando os binarismos,

afinal, a escola desconstrói a maquinaria determinista e sufocante, expondo as partes, as

peças e os funcionamentos, expondo, afinal, os sentidos e os fluxos de desejo.

Percebemos: não é mais possível dizer que a escola desconhece a força do desejo.

Da metamorfose ou das durações de velocidades desconhecidas

Já não há mais exemplos, já não é mais uma questão de dizer: a escola lida com

desejos e, sempre mais, ela se organiza em prol desses agenciamentos.

Desejos, fluxos, cortes e máquinas transbordam em direções e sentidos

incapturáveis no interior da escola. Entram não apenas pelos portões da frente, mas com as

pessoas, as conversas, as janelas, os insetos e mesmo suas ausências. Tudo é desejo! Ou,

pelo menos, diz de movimentos do desejo.

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A escola não se engana: percebem-se corpos em meio a outros corpos em

composições. Sabe que ele mesmo, o Corpo Escola, é apenas uma parte de uma grande

máquina social. Todavia, não se deixa abater. Ela produz, em meio à vida altamente

controlada, contrafluxos e respostas simples – a produção, mínima, de alternativas.

Conversas são tecidas em redes, histórias se multiplicam, afetos são compartilhados. No

corpo coletivo escola, os desejos, antes de serem canalizados ou impedidos, são postos à

conversa. "Que mundo queremos?", pergunta a escola e, uma vez mais, é uma pergunta

desejante.

Não há falta em sua indagação. Há apenas corpo e máquinas, corpo e desejo. Há

somente vida que se opera em corpos e, ao operacioná-los, modifica-os. No encontro com

o desejo, o corpo se modifica, as aprendizagens, as passagens e as travessias produzem

efeitos irreconhecíveis. "Alguma coisa acontece...", brinca a professora. Mas ela não

precisa continuar, ela sequer precisa se enunciar. A própria escola se dá conta disso. Ela

mesma se vê na trama das maquinações e das modificações.

Em um minuto, o Corpo Escola entra em ebulição e o catalisador é o fluxo de

desejos. Escola irrompe em fogos de artifício, em capturas e mudanças de direções e

durações. "Alguma coisa acontece..." e deixa para trás traços de sua existência. A travessia,

Skliar (2014) nos lembra, não é apenas algo que passou, mas algo que está, lentamente,

passando, em travessias de velocidade desconhecida, mas que vão produzindo novas

composições entre o ensinar e o aprender.

O desejo como cuidado do mundo como pensamento arremate: à guisa de conclusão

O que é, então, desejo no currículo?

Como visto, diferente do prazer, o desejo é coletivo e nasce dos encontros e/ou das

relações estabelecidas no contexto escolar.

Sendo explorador e coletivo1, não é previamente definido, ou seja, nasce dos

acoplamentos e interações agenciados por forças e fluxos de ideias, pessoas etc., os quais

atuando cooperativamente, problematizam a potência curricular em seu máximo possível,

propondo comumente novas experimentações.

Assim sendo, o desejo coletivo (comum) atua como um devir no sentido da

(re)existência às forças estratificantes e clichês do aprender e ensinar inventando um Corpo

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Escola dialógico e experimentador, fundado no agenciamento da alegria, da ultrapassagem

da passividade para a ação nos processos de tomada de decisão e de inventividade

cotidiana – novos modos de estar professoras e alunos na escola.

Tais modos poderão/deverão sugerir outras maneiras de atuação e de composição

no ensinar e aprender, quer seja com relação ao conhecimento (em rede reticular,

transversal, interdisciplinar por projetos e/ou...); quer seja com relação às linguagens, pois

os agenciamentos coletivos de enunciação estarão voltados para a interação, a

dialogicidade e o compartilhamento de experiências; quer seja pelos afetos e afecções pelo

agenciamento de encontros que, ultrapassando as paixões, possibilitem a constituição do

desejo como cuidado do outro e do mundo.

Assim, importam os agenciamentos que rompam com os códigos relativamente

estáveis de funcionamento reprodutor, que conformam fortemente o território escola,

abrindo-o para agenciamentos locais ―moleculares‖ que permitam ao aprender e ensinar

fugir do excesso de estratificação ―molar‖, possibilitando experimentações que invistam na

potência de vida inventiva, criadora de modos menos massivos de estar docente e aluno

escola-currículo.

Enfim, o que seria, então, o desejo como cuidado do mundo no processo de

aprender e ensinar?

Seria um movimento de composição no plano de imanência dos processos de

aprender e ensinar que se contraponham à dimensão ―molar‖ de organização padronizada

das mentes e das escolas. Dito de outro modo: superar no Corpo Escola o acinzentado dos

ritos que abafam os risos e a alegria e fazer um verde ―verdejar‖, um azul ―azular‖, um

arco-íris colorir os entremeios dos processos de aprender e ensinar.

Nesse sentido, a comunidade escolar necessita minimizar os fatores que induzem à

passividade ou potência mínima grupal e estabelecer conexões e/ou modos de associação

que possibilitem, na grupalidade, o compartilhamento de ideias, experiências, efetos e

afecções, agenciando a potência máxima de realização dos processos de aprender e ensinar.

Ou seja, como postulou Foucault (2014): estar-em-comum, estar-com, assumindo o desejo

como cuidado de si, do outro, do mundo.

Referências

CARVALHO, Janete Magalhães. A escola como comunidade de afetos. Petrópolis: DP

Et Alii; Brasília: CNPq, 2009.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

2908ISSN 2177-336X

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CARVALHO, Janete Magalhães. O "comunismo do desejo" no currículo. In: FERRAÇO,

Carlos Eduardo et al. (Org.). Diferentes perspectivas de currículo na atualidade.

Petrópolis: De Petrus; Vitória: NUPEC/UFES, 2015.

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Tradução de Luiz B. L. Orlandi. 2. ed. São Paulo: Ed. 34, 2011.

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de Suely Rolnik. 2. ed. São Paulo: Ed. 34, 2012. v. 4.

DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. Tradução de Eloisa Araújo Ribeiro. São

Paulo: Editora Escuta, 1998.

FOUCAULT, Michel. Prefácio. In: FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos, volume IX:

genealogia da ética, subjetividade e sexualidade. Tradução de Abner Chiquieri. Rio de

Janeiro: Forense Universitária, 2014.

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LINS, Daniel. Nietzsche: vida nômade: estadia sem lugar. In: MARQUES, Davina;

GIRARDI, Gisele; OLIVEIRA JÚNIOR, Wenceslao Machado de. Conexões: Deleuze e

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2014.

SKLIAR, Carlos. O ensinar enquanto travessia: linguagens, leituras, escritas e

alteridades para uma poética da educação. Tradução de Adail Sobral et al. Salvador:

EDUFBA, 2014.

ZOURABICHVILI, François. O vocabulário de Deleuze. Rio de Janeiro: Centro

Interdisciplinar de Estudo de Novas Tecnologias da Informação, 2004.

1 Para Guattari (1986, p. 319), ―[...] o coletivo não deve ser entendido somente no sentido de agrupamento

social: ele implica também a entrada de diversas coleções de objetos técnicos, de fluxos materiais e

energéticos, de entidades incorporais, de idealidades matemáticas, estéticas, etc.‖.

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2909ISSN 2177-336X