Os Camponeses Os Agricultores Familiares Paradigmas Em Questao

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    FELCIO, M. J. Os camponeses, os agricultores familiares: paradigmas em questo

    Geografia - v. 15, n. 1, jan./jun. 2006 Universidade Estadual de Londrina, Departamento de Geocincias

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    O presente desafio consiste em construir um esquema de anlise que, em sua

    amplitude, permita delimitar referenciais tericos com capacidade de explicar, compreender

    e questionar o processo de formao do campesinato nos ltimos vinte anos, e, com esse

    mesmo esquema de anlise, poder compreender quem so os camponeses e quem so os

    agricultores familiares a partir de suas realidades sciopolticas do Pontal do

    Paranapanema.

    A leitura geogrfica aqui desenvolvida interessante por focalizar uma regio do

    Estado de So Paulo na qual se constatam inmeros conflitos fundirios envolvendo

    posseiros, grileiros, trabalhadores rurais e governo:

    [...] Para compreender melhor esta questo, preciso uma breveretrospectiva histrica da ocupao do Pontal do Paranapanema. As terrasda regio comearam a ser griladas desde a segunda metade do sculo

    XIX, com a formao do grilo fazenda Pirap-Santo Anastcio, com rea deduzentos e trinta e oito mil alqueires. At a dcada de 1990, com exceodas lutas de resistncia de posseiros e de movimentos sociais isolados, osgrileiros no encontraram maiores problemas no processo poltico deassenhoreamento das terras devolutas do Pontal. Grilagem o processo deapropriao de terras pblicas por meio de falsificao dos ttulos depropriedades. No faltaram aes do Estado para tentar impedir esseprocesso de grilagem (BERGAMASCO et al., 2003: p. 81-82).

    Neste contexto, emergem questionamentos como: qual o papel e o lugar dos

    camponeses na sociedade capitalista? O futuro do campesinato est na sua integrao ao

    mercado ou na luta contra o capital?

    OS CONCEITOS: CAMPONS E AGRICULTOR FAMILIAR

    Desde a dcada de 1990 os conceitos de campons e agricultor familiar

    sofreram profundas alteraes as quais tm desencadeado pesquisas acadmicas em

    diversas reas. Na rea da Geografia, duas produes acadmicas construdas a partir de

    anlises da realidade do Pontal do Paranapanema, uma de 1990 e outra de 2000 podero,

    de forma preliminar, colocar o problema em questo. O trabalho cientfico de Silveira (1990)

    demonstra:

    [...] uma gama muito grande de tipos de camponeses que vai desde aqueleque racionaliza ao mximo sua produo, que est ligado a cooperativas, etenta ajustar-se s necessidades do mercado, minimizando ao mximo seusriscos, at o posseiro, com condies mnimas de existncia, que s vezesplanta para ter o que comer (SILVEIRA, 1990, p. 231).

    Verificando os conceitos utilizados pela pesquisadora emerge uma gama de

    tipos de camponeses que dificultam a diferenciao, impedindo um melhor esclarecimento e

    compreenso.

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    OS DOIS PARADIGMAS: DO CAPITALISMO AGRRIO E DA QUESTO AGRRIA

    O desafio de tal compreenso justifica o resgate de teorias cientficas, polticas e

    de outras reas do conhecimento. Resgatar entre outras, a teoria de Maquiavel (1999) para

    o qual a cincia e a poltica esto intimamente unidas e dependentes. Segundo Maquiavelpara ter liberdade necessrio ter o poder, assim, cincia, dominao e liberdade so

    inseparveis. S livre quem tem poder, portanto, o desejo de conquistar natural e

    comum, e os homens capazes de satisfaz-lo sempre sero louvados, jamais criticados

    (MAQUIAVEL, 1999, p. 47).

    Maquiavel revolucionou a histria das teorias polticas ao se propor estudar a

    sociedade pela anlise da verdade efetiva dos fatos humanos. O objeto de suas reflexes

    a realidade poltica, pensada como prtica humana concreta. Quer compreender como as

    organizaes polticas se fundam, se desenvolvem, persistem e decaem.

    O Prncipe um livro de histria e tambm de ideologia, com ele Maquiavel

    procura demonstrar como e por que o conhecimento poder. Sobrepondo as idias de

    Maquiavel e as idias de Bourdieu (2001) teremos elementos para compreender melhor as

    aes empreendidas na defesa do conhecimento.

    Quando estas defesas forem executadas por um conjunto de pensadores e suas

    respectivas produes cientificas, diz-se tratar de um think tank. Os think tanks agrupam-

    se num conjunto de pensadores e num conjunto de produes cientificas necessrias, para

    com elas, dominarem a poltica. O domnio poltico a sua razo de ser e existir. Para

    atingirem esse objetivo, constroem referncias tericas a partir de suas leituras e

    interpretaes da realidade e com elas, estabelecem paradigmas, sendo estes um conjunto

    de pensamentos, teorias e teses com os quais procuram explicar a realidade.

    O pensamento consensual, aquele que defende a expanso do capitalismo de

    maneira nica e homognea, agrupa alguns de seus tericos como think tank denominado

    RIMISP (2005) - Centro Latinoamericano para el Desarrollo Rural, trata-se de:

    [] una organizacin sin fin de lucro, fundada en 1986, que apoya elaprendizaje organizacional y la innovacin para promover la inclusin, laequidad, el bienestar y el desarrollo democrtico en las sociedades ruraleslatinoamericanas .

    O pensamento crtico, aquele que defende o aprofundamento e a ampliao da

    discusso numa perspectiva que confronte o pensamento consensual possibilitando a

    compreenso das realidades em suas complexidades e diversidades, agrupam alguns de

    seus tericos como think tank denominado CLACSO (2005) Centro Latino Americano de

    Cincias Sociais.

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    O RIMISP est vinculado ao Banco Mundial enquanto que a CLACSO vincula-se

    a Via Campesina.

    H diferentes concepes tericas de compreenso do desenvolvimento do

    capitalismo no campo, dentre elas se destacam dois paradigmas, entendendo paradigma

    como um conjunto de pensamentos, teorias e teses que procuram explicar a realidade.

    O paradigma do capitalismo agrrio, defendido pelos tericos do Rimisp,

    entende que o nico futuro para o campesinato est na metamorfose do campons em

    agricultor familiar.

    Ou seja, como inevitvel a tendncia ao desaparecimento do campesinato, a

    nica possibilidade de sobrevivncia ao campons consiste na transformao dele em

    agricultor familiar, inserindo-o plenamente no mercado, racionalizando ao mximo a sua

    produo.

    Portanto, para esse paradigma, o futuro do campo ter trs opes: a insero

    do campons ao mercado, a pluriatividade ou ento, polticas compensatrias.

    O paradigma da questo agrria, defendido pelos tericos da Clacso, entende

    que a luta pela terra e pela reforma agrria a forma privilegiada da criao e recriao do

    campons. O campons aquele que luta pela terra. Sem a luta o campons deixa de

    existir.

    Para esse paradigma, a anlise da luta camponesa compreende espao, sujeito

    e tempo de forma dialtica constatando que, ao aumentar a concentrao de terras,

    aumenta simultaneamente o nmero de camponeses em luta pela terra no Brasil. Assim, a

    luta pela terra no Brasil elemento inerente histria do campesinato movido pelo conflito

    entre a territorialidade capitalista e a territorialidade camponesa, como esclarece a

    professora:

    [...] A luta pela terra hoje existente no pas representa, na maioria doscasos, mais um captulo da histria do campesinato brasileiro, movido pelo

    conflito entre a territorialidade capitalista e a territorialidade camponesa.Mas as novidades desse momento histrico so muitas. Dentre elas,destacam-se: a grande abrangncia da base social da categoria sem-terra,que envolve uma multiplicidade de sujeitos sociais, inclusive trabalhadoresresidentes nas cidades, e o significado a contido de negao do processode proletarizao em curso, demonstrando que a possibilidade de recriaocamponesa no se esgota com o processo de expropriao nem com apassagem desses sujeitos pela cidade (MARQUES, 2004, p. 151).

    A procura da nova identidade e da nova identificao o objetivo deste texto

    sendo de fundamental importncia a compreenso do papel e lugar dos camponeses na

    sociedade capitalista e no Brasil, em particular.

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    Esse entendimento ser construdo a partir de uma viso crtica e comprometida

    com a transformao da realidade, aprofundando e ampliando a discusso numa

    perspectiva que confronte o pensamento consensual. Nesta perspectiva torna-se

    indispensvel construo da anlise que contemple de forma inerente dimenso da

    conflitualidade.

    A CONFLITUALIDADE

    Ela um conceito que, recentemente vem sendo utilizado para a leitura e

    interpretao da realidade atual dentro do paradigma da questo agrria conforme

    Fernandes (2005 a; 2005 b). Sua contribuio corrobora para a compreenso de realidades

    como a violncia no campo, a criminalizao da luta pela terra, a violncia do Poder Pblicoe privado (COMISSO PASTORAL DA TERRA: 2004).

    A conflitualidade o processo de enfrentamento perene alimentado pela

    contradio estrutural do capitalismo que produz concentrao de riqueza de um lado e

    expande a pobreza e a misria do outro.

    Assim explica o pesquisador:

    [...] Um conflito por terra um confronto entre classes sociais, entremodelos de desenvolvimento, por territrios. O conflito pode ser enfrentadoa partir da conjugao de foras que disputam ideologias para convenceremou derrotarem as foras opostas. Um conflito pode ser esmagado ou podeser resolvido, entretanto a conflitualidade no. Nenhuma fora ou poderpode esmag-la, chacin-la, massacr-la. Ela permanece fixada naestrutura da sociedade, em diferentes espaos, aguardando o tempo devolta, das condies polticas de manifestaes dos direitos. [...] Osacordos, pactos e trguas definidos em negociaes podem resolver ouadiar conflitos, mas no acabam com a conflitualidade, porque esta produzida e alimentada dia-a-dia pelo desenvolvimento desigual docapitalismo (FERNANDES, 2005a, p. 26).

    Gonalves (2005) elenca alguns elementos para compreender a reproduo

    continuada da conflitividade e da violncia no campo brasileiro que reproduzo aqui de formasinttica. So elas: a) alm da violncia fsica, h a violncia simblica praticada pela

    imprensa, omitindo informaes e veiculando uma noo acrtica do que seja progresso; b)

    a simples presena de organizaes indgenas, de afro-descendentes, de camponeses e de

    mulheres, enquanto protagonistas, j por si indcio de que uma outra ordem est em curso

    e que a ordem estabelecida est em questo; c) nossa formao social e poltica desde os

    primeiros momentos, no se pautou pela mediao pblica na resoluo de conflitos; d) os

    pactos polticos responsveis pela segurana e garantia de governabilidade; e) a estrutura

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    fundiria desigual que admite e aceita que mais de 50% das terras do Pas no sejam

    sequer cadastradas (GONALVES, 2005, p.150-156).

    Os movimentos camponeses no passado e no presente simbolizam e

    concretizam um caminho alternativo, uma proposta diferente para a classe camponesa, que,

    pelo confronto presente lhe abre perspectiva futura, como ensina Fernandes (2005 a, p. 27)

    o tratamento da questo agrria no pode contemplar apenas o momento de conflito, mas

    sim o movimento da conflitualidade, seu carter histrico e geogrfico em todas as

    dimenses atingidas pela questo agrria.

    A conflitualidade tambm se faz presente nas discusses tericas cujo objetivo

    consiste em convencer ou derrotar oponentes. Ela se instala nas teorias, nos paradigmas,

    nos discursos promovendo verdadeira disputa intelectual confrontando diferentes

    compreenses e leituras, as quais indicam necessariamente alternativas distintas, s vezesopostas, outras antagnicas e nem sempre complementares.

    Neste sentido importa saber: quais so os principais argumentos e as

    contribuies de cada paradigma? Como se confrontam? Quais so seus objetivos?

    O PARADIGMA DO CAPITALISMO AGRRIO

    Os tericos do paradigma do capitalismo agrrio acreditam que o nico futuropara o campesinato est na metamorfose do campons em agricultor familiar. Ou seja,

    como inevitvel a tendncia ao desaparecimento do campesinato, a nica possibilidade de

    sobrevivncia do campons consiste na sua transformao em agricultor familiar, inserindo-

    o plenamente no mercado, racionalizando ao mximo a sua produo.

    Dentre as obras consultadas por quem defende esse paradigma, esto, entre

    outras, os escritos de Lnin (1899/1985) e (1918/1980), e Kaustsky (1986) por serem

    seminais, contendo elementos fundamentais para compreender o desenvolvimento da

    agricultura no capitalismo e as obras de Lamarche (1993,1998) e Abramovay (1992) por

    postularem defesas que apontam na mesma direo, porm, foram construdas em bases

    distintas.

    Lnin (1899/1985) e (1918/1980) ao discutir o desenvolvimento do capitalismo

    na Rssia e nos Estados Unidos, explica o processo de explorao e destruio do

    campesinato e a eliminao do campons, como fruto do avano capitalista, pois:

    [...] o capital encontra as mais diversas formas de propriedade medieval e

    patriarcal da terra: a propriedade feudal, a de cl, a comunal, a estatal, etc.O capital faz pesar seu jugo sobre todas estas formas de propriedade

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    Lamarche (1993) parte da hiptese de que possvel encontrar um tipo ideal

    nico de campesinato universal. Esta hiptese inspirou seu estudo comparativo

    internacional realizado em cinco pases sobre a capacidade de adaptao da agricultura

    familiar a contextos econmicos, sociais e polticos distintos.

    O tipo ideal de sociedade camponesa possui cinco caractersticas: a) autonomia

    relativa diante da sociedade; b) sistema econmico autnomo; c) um determinado grupo

    domstico; d) os inmeros inter-relacionamentos; e) algumas personalidades fazem a ponte

    entre o local e o geral.

    A explorao familiar corresponde a uma unidade de produo agrcola, onde

    propriedade e o trabalho esto intimamente ligados famlia propiciando a transmisso do

    patrimnio e a reproduo da explorao.

    A combinao entre propriedade e trabalho assume, no tempo e no espao, uma

    grande diversidade de formas sociais. Desta forma a explorao familiar ao mesmo tempo

    uma memria, uma situao, uma ambio e um desafio.

    Lamarche explica que um determinado explorador est em uma lgica

    produtivista, outro na lgica de acumulao fundiria e outro em uma lgica familiar. Essa s

    elucida se analisada e compreendida em seu contexto no mbito local e global.

    Abramovay (1992) entende que no existe uma discusso especifica sobre o

    campesinato e a questo agrria nas obras de Marx, Lnin e Kautsky. Elas no so as

    obras mais indicadas para quem quer conhecer e compreender a questo agrria e suas

    dimenses, vez que, por intermdio delas, impossvel definir de forma cristalina a natureza

    e a origem dos rendimentos dos camponeses, pois:

    [...] a atividade produtiva que d origem a sua reproduo no tem oestatuto de trabalho social e neste sentido que o campesinato s pode seconstituir naquele grupo de brbaros de que falava Marx (ABRAMOVAY,1992, p. 36).

    Para Abramovay o mercado o elemento de mediao e compreenso dasrelaes sociais interessando apenas a produo de mercadoria, elegendo, portanto, critrio

    predominantemente econmico no qual a natureza dos mercados um dos atributos

    microeconmicos mais reveladores da vida social (ABRAMOVAY, 1992, p. 104).

    Neste contexto nada mais distante da definio do modo de vida campons que

    uma racionalidade fundamentalmente econmica (ABRAMOVAY, 1992, p. 115), fazendo

    Abramovay sentir-se autorizado em defender certas concepes como, por exemplo, a de

    que o campons possui cultura e economia incompleta, parcial impossibilitando sua

    participao em mercados completos desenvolvidos pela economia capitalista.

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    O campons a melhor definio de resto feudal, um resqucio, classe que

    representa a barbrie, um estorvo, uma vez que as sociedades camponesas so

    incompatveis com o ambiente econmico onde imperam relaes claramente mercantis

    (ABRAMOVAY, 1992, p. 130).

    Abramovay adepto de que o final do campons sua extino, pois o

    agricultor familiar um novo personagem diferente do campons tradicional, que teria

    assumido sua condio de produtor moderno totalmente integrado ao mercado

    racionalizando ao mximo sua produo.

    O PARADIGMA DA QUESTO AGRRIA

    O paradigma da questo agrria defende a hiptese de que a luta pela terra e

    pela reforma agrria a forma privilegiada da criao e recriao do campesinato. Dentre as

    obras consultadas por quem defende esse paradigma, esto, entre outras, os escritos de

    Shanin (1983) e Chayanov (1974) pelas contribuies que trazem na compreenso do

    desenvolvimento da agricultura no capitalismo e tambm as produes cientficas de

    Ariovaldo Umbelino de Oliveira (1986, 1988, 1991, 2004) e Bernardo Manano Fernandes

    (1996, 1999, 2000, 2001) por desenvolverem compreenses utilizando o conceito de

    territrio como sntese contraditria, como efeito material da luta de classes.

    Shanin (1983) prova que a mobilidade scio-econmica peculiar e caracterstica

    da sociedade camponesa conduziram a mudanas significativas no modo em que a

    diferenciao real e os processos de polarizao afetaram a ao e a conscincia polticas

    do campesinato russo no inicio do sculo XX (1910-1925).

    S discutir o choque entre as autoridades estatais russas e as maiores vozes do

    campesinato no ajuda ver que no campo h outras divises sociais. Mostra a relao entre

    a mobilidade scio-econmica e as relaes de conflito na sociedade rural indicando sua

    importncia para a explicao dos processos bsicos da historia rural russa.

    A unidade domstica camponesa consiste na famlia e na sua explorao

    agrcola. A famlia fornece o trabalho necessrio principalmente produo de subsistncia

    para satisfazer suas necessidades bsicas e os tributos impostos pelos poderes econmicos

    e polticos.

    Era uma comunidade de mesa, antes de ser uma comunidade de sangue, sob a

    autoridade patriarcal:

    [] una unidad domstica campesina rusa estaba compuesta, en la mayoriade los casos, por familiares consanguneos de dos o tres generaciones. Sin

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    embargo, la condicin bsica para convertirse en miembro de la misma noera el vnculo de sangre, sino la participacin total en la vida de sta, o, enexpresin de los campesinos, comer del mismo puchero (SHANIN, 1983,p. 55).

    A unidade domstica camponesa era uma unidade bsica de produo,

    consumo, posse, socializao, sociabilidade, apoio moral e ajuda econmica mutua. A

    ocupao principal dos camponeses russos consistia na realizao de uma ampla variedade

    de tarefas, o que exigia um ritmo de vida cclico, uma mobilidade multidirecional e cclica.

    Chayanov (1974) analisa as relaes entre a terra, o capital e a famlia, a

    circulao do capital na unidade econmica campesina da Rssia (1890- 1905). A famlia

    ganha seu sustento com o trabalho na terra, ainda que seus trabalhadores possam

    desenvolver-se em outros setores que no o agrrio como o artesanato e comercial.

    a unidade domstica de explorao camponesa na qual no exista a fora detrabalho assalariada e por isso mesmo difere da unidade de explorao capitalista.

    Alm de analisar as relaes entre terra, capital e famlia; a circulao do capital

    na unidade econmica campesina, Chayanov analisa tambm as conseqncias que, para a

    economia nacional, surgem da natureza desta unidade econmica campesina.

    Analisando o modo produtivo destas unidades, sua concepo, seu

    desenvolvimento e sua forma organizativa, constata-se que so verdadeiras violaes s

    regras empresarias, de sorte que os conceitos fundamentais da economia clssica no tmmuita serventia para compreender e explicar a economia camponesa, obrigando Chayanov

    criar conceitos e concepes excessivamente ambguas: unir na pessoa do campons o

    capitalista e o proletrio.

    As contribuies de Chayanov para o estudo da questo agrria so

    indispensveis devido a sua originalidade.

    Cada famlia conforme sua idade, constitui em suas diferentes fases um aparato

    de trabalho completamente distinto de acordo com sua fora de trabalho, a intensidade dademanda de suas necessidades, a relao consumo-trabalho e a possibilidade de ampliar

    os princpios da cooperao complexa. A partir deste quadro compreende-se a tese de

    Chayanov:

    [] de acuerdo con esto podemos plantear el primer problema de nuestrainvestigacin: la condicin de este aparato en continuo cambio afecta laactividad econmica de una familia que maneja su propia unidad deexplotacin, y si lo hace, como y hasta qu punto?(CHAYANOY, 1983, p.56).

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    Ao estudar a unidade econmica campesina Chayanov quer de fato averiguar a

    fora de trabalho camponesa como atividade econmica da famlia no campo e no a

    produo deste campo.

    Ariovaldo Umbelino de Oliveira entende que o processo de desenvolvimento do

    capitalismo na agricultura de nossos dias est marcado pela sua industrializao

    (OLIVEIRA, 1991, p. 23).

    O movimento dos camponeses no Brasil tentativa de resgate da condio de

    campons autnomo frente expropriao representada pelos posseiros e sua luta contra

    os grileiros. tambm um movimento originado na luta dos camponeses parceiros ou

    moradores contra a expropriao completa no seio do latifndio, que os transformava em

    trabalhadores assalariados.

    O desenvolvimento do modo capitalista de produo no campo se d em

    primeiro e fundamentalmente pela sujeio da renda da terra ao capital quer pela compra da

    terra para explorar ou vender, quer pela subordinao produo do tipo campons, assim:

    [...] o fundamental para o capital a sujeio da renda da terra, pois a partirda, ele tem as condies necessrias para sujeitar tambm o trabalho quese d na terra. Primeiramente, o capital sujeita a renda da terra e emseguida subjuga o trabalho nela praticado (OLIVEIRA, 1991, p. 49).

    Nesse contexto, a luta pela terra est assentada no processo contraditrio de

    desenvolvimento do capital que, ao mesmo tempo em que expropria, abre possibilidadehistrica do retorno a terra. Esses dados proporcionam compreender os conflitos fundirios

    constantes no Brasil como parte de uma luta histrica, que, nas duas ltimas dcadas tm

    assumido novas caractersticas, em virtude das transformaes recentes no campo

    brasileiro:

    [...] Se a mundianizao da economia capitalista traz tona novos sujeitossociais e novas articulaes, igualmente e contraditoriamente, traz tambm tona a luta de novos personagens sociais: basta olharmos para o Mxico,e l esto os zapatistas em luta. Com certeza a histria no acabou, e muito

    menos a utopia (FERNANDES, 1996, p. 11).

    Na produo cientfica de Bernardo Manano Fernandes a (re) criao do

    campesinato se d atravs da luta pela terra e pela reforma agrria, quando as famlias

    camponesas organizadas ocupam o territrio do latifndio num processo de espacializao

    e territorializao. Logo:

    [...] no interior desse processo desigual que se desenvolvem a exploraoeconmica, a excluso cultural e a dominao poltica, gerando os conflitose as mais diversas formas de resistncia. No interior desse processoformam-se diferentes movimentos sociais que inauguram novas situaes,

    desenvolvem outros processos (FERNANDES, 1996, p. 25).

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    Analisa Fernandes (1999) as razes de um desses movimentos sociais do

    campo, o MST, que do ponto de vista socioeconmico e histrico tem sua gnese no Sul (do

    Brasil) pela histrica concentrao de camponeses; do ponto de vista ideolgico, pelo

    trabalho desenvolvido pela Igreja Catlica e Luterana e do ponto de vista poltico pelo

    processo de democratizao do pas.

    Aprofundou suas reflexes analisando as diferentes aes nos ltimos vinte e

    cinco anos da existncia do MST que se encontra organizado em vinte e dois estados do

    Brasil. Suas principais aes so: ocupao, trabalho de base, acampamento, negociao

    poltica, organicidade, espacializao e territorializao:

    [...] A ocupao uma realidade determinadora, espao/tempo queestabelece uma ciso entre latifndio e assentamento e entre o passado e ofuturo. Nesse sentido, para os sem-terra a ocupao, como espao de luta e

    resistncia, representa a fronteira entre o sonho e a realidade, que construda no enfrentamento cotidiano com os latifundirios e o Estado(FERNANDES, 2000, p. 19).

    Fernandes (2001) entende que s as ocupaes de terra no so suficientes

    para amenizar os problemas, bem como as polticas governamentais tambm no o so. As

    referncias tericas e as experincias histricas so fundamentais para a construo de

    novas prticas na luta contra o capital. A partir dessas referncias so construdas novas

    interpretaes, novas teses.

    CONCLUSES

    Os conceitos de agricultor familiar e de campons so concebidos pelos dois

    paradigmas de forma distinta. Para o paradigma do capitalismo agrrio a diferena entre

    eles est em dois aspectos: a) o campons sinnimo de atraso, resqucio do feudalismo,

    da barbrie e, por isso, tende a desaparecer com o avano do capitalismo se transformando

    em agricultor familiar; b) o agricultor familiar importante e necessrio, pois, de alguma

    forma, ele faz parte do agronegcio.

    Para o paradigma da questo agrria no h diferena entre agricultor familiar e

    campons, pois, ambos so assim definidos por terem a famlia e o trabalho familiar por

    caracterstica, pois, ao mesmo tempo em que a famlia proprietria dos meios de

    produo, assume o trabalho no estabelecimento produtivo. Contudo, o seu futuro est na

    superao do trabalho familiar. preciso inventar o trabalho familiar-cooperativo e aprender

    a no abominar o mercado.

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