13
1 POR QUE NÃO POSSO ENSINAR A ORIGEM DO MUNDO E DO HOMEM A PARTIR DO MITO YORUBÁ? Em busca de Ecologia para a origem do mundo e do homem na cosmogonia yorubá, no ensino de história do 6º ano. ROSILÉIA SANTANA DA SILVA 1 * LUIZ MÁRCIO SANTOS FARIAS 2 ** TERESA CRISTINA S. S. SOUTO 3 *** INTRODUÇÃO A promulgação da Lei 10639/03 4 vem valorizar a contribuição histórica do negro na construção e formação da sociedade brasileira, ao referendar esses feitos, positivamente, na comunidade acadêmica e na comunidade escolar. A mesma surge com o objetivo de promover a igualdade, valorização e reconhecimento etnicorracial nos currículos, na tentativa de romper as estruturas hegemonicamente eurocêntricas que, por muito, legitimou a história da educação brasileira e os seus modelos curriculares. Após cinco anos, a lei 10.639/03 passa por alteração pela Lei 11.645/08 5 que determina a inserção de saberes oriundos das populações indígenas num contexto de representações positivas. Resgatar, (re)conhecer e valorizar as “contribuições dos povos negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à história do Brasil”, para além de toda sua conjuntura epistemológica, é fazer-se existir e funcionar enquanto conteúdos referentes no processo de ensino e da aprendizagem. Entretanto, a historiadora Malavota (2013, p.4) nos traz exemplos citados por especialistas que configuram em implicabilidades para a efetividade dos dispositivos da Lei em salas de aula, segundo os apontamentos é necessário aumentar as pesquisas sobre a história, incentivar novas publicações e traduções, introduzir disciplinas específicas nas licenciaturas, ofertar cursos de pós-graduação e, sem sombra de dúvida, modificar os livros didáticos 6 e aumentar o *Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ensino, Filosofia e História das Ciências da UFBA/UEFS. Bolsista da Capes. Email: [email protected] **Doutor em Didática (Montepeiller/France), Professor Adjunto do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da UFBA. Coordenador do PPG de Ensino, Filosofia e História das Ciências da UFBA/UEFS. Email: [email protected] ***Licenciatura em História (UCSal). SECBA. Email: [email protected] 4 Prevê a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Afro-brasileira e dos Povos Africanos nos currículos dos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, públicos e particulares do país. 5 Acrescenta a obrigatoriedade do ensino de História da África, Cultura Afro-Brasileira e História e Cultura Indígenas em todas as escolas brasileiras 6 Grifo nosso.

POR QUE NÃO POSSO ENSINAR A ORIGEM DO MUNDO E … · do mundo, sem matéria preexistente.’(Campos, 2015). A cosmologia, dividida em duas partes: científica e experimental, é

Embed Size (px)

Citation preview

1

POR QUE NÃO POSSO ENSINAR A ORIGEM DO MUNDO E DO HOMEM A

PARTIR DO MITO YORUBÁ? Em busca de Ecologia para a origem do mundo e

do homem na cosmogonia yorubá, no ensino de história do 6º ano.

ROSILÉIA SANTANA DA SILVA1*

LUIZ MÁRCIO SANTOS FARIAS2**

TERESA CRISTINA S. S. SOUTO3***

INTRODUÇÃO

A promulgação da Lei 10639/034 vem valorizar a contribuição histórica do negro

na construção e formação da sociedade brasileira, ao referendar esses feitos,

positivamente, na comunidade acadêmica e na comunidade escolar. A mesma surge com

o objetivo de promover a igualdade, valorização e reconhecimento etnicorracial nos

currículos, na tentativa de romper as estruturas hegemonicamente eurocêntricas que, por

muito, legitimou a história da educação brasileira e os seus modelos curriculares. Após

cinco anos, a lei 10.639/03 passa por alteração pela Lei 11.645/085 que determina a

inserção de saberes oriundos das populações indígenas num contexto de representações

positivas.

Resgatar, (re)conhecer e valorizar as “contribuições dos povos negro nas áreas

social, econômica e política pertinentes à história do Brasil”, para além de toda sua

conjuntura epistemológica, é fazer-se existir e funcionar enquanto conteúdos referentes

no processo de ensino e da aprendizagem. Entretanto, a historiadora Malavota (2013, p.4)

nos traz exemplos citados por especialistas que configuram em implicabilidades para a

efetividade dos dispositivos da Lei em salas de aula, segundo os apontamentos

é necessário aumentar as pesquisas sobre a história, incentivar

novas publicações e traduções, introduzir disciplinas específicas

nas licenciaturas, ofertar cursos de pós-graduação e, sem

sombra de dúvida, modificar os livros didáticos6e aumentar o

*Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ensino, Filosofia e História das Ciências da UFBA/UEFS.

Bolsista da Capes. Email: [email protected]

**Doutor em Didática (Montepeiller/France), Professor Adjunto do Instituto de Humanidades, Artes e

Ciências da UFBA. Coordenador do PPG de Ensino, Filosofia e História das Ciências da UFBA/UEFS.

Email: [email protected]

***Licenciatura em História (UCSal). SECBA. Email: [email protected] 4 Prevê a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Afro-brasileira e dos Povos Africanos nos

currículos dos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, públicos e particulares do país.

5 Acrescenta a obrigatoriedade do ensino de História da África, Cultura Afro-Brasileira e História e Cultura

Indígenas em todas as escolas brasileiras

6 Grifo nosso.

2

número de formação de pessoal qualificado para tentar reduzir

significativamente as lacunas efetivas existentes. (MALAVOTA,

2013. p.4)

Nesse contexto, ao apresentar dados construídos numa perspectiva didática, Silva

et ali (2015) identificam latente predominância de modelos epistemológicos7 que

resultam na fragilidade e lacunas de saberes ensinados nas salas de aula. Segundo as

autoras, “ o silenciamento sobre as contribuições históricas e culturais das populações

afro-brasileira e africanas, ainda é fortemente presente em diversas instituições de

ensino”. (2015, p.2). Fator que se instaura diante das tentativas de organizar propostas

que contemplem saberes não comuns nos currículos oficiais da educação básica.

A sugestão de implementar conteúdos não comuns no ensino de História nos levar

a questionar, como ensinar o que não se conhece? Pois, propor a integração dos mitos

yorubá à organização histórica escolar é romper os grilhões epistemológicos que restringe

o que se ensina e o que limita-se ensinar enquanto saber referente.

Nas linhas que se seguem apontamos alguns elementos que nos direcionam a

questionar o porquê não poder ensinar a origem do mundo e do homem a partir do mito

yorubá. Ao tempo que percorremos num estudo propositivo para efetividade desse saber

enquanto contribuição mito-filosófica, porque não científica, nos espaços educacionais

da educação básica.

Nossa finalidade é estabelecer o (re)conhecimento para coibir o racismo

epistemológico e, em consequência, racismo cultural e religioso tão presente dentro dos

‘muros escolares’

OS MITOS DA ORIGEM DO MUNDO E DO HOMEM: ANÁLISE

7 Tomamos de empréstimos a referência de BOSCH e GASCÒN (2010), onde os mesmos vêem a

necessidade de elaborar seus próprios modelos epistemológicos de saberes, no caso matemática, por

identificarem limitações e restições didáticas ao desenvolver um determinado saber matemático escolar nos

seus processos de ensino e aprendizagem. No nosso trabalho referimos como Modelo Epistemológico de

Referência (MED) as historiografias, Currículos, LDBs, PCN’s, Projetos Políticos Pedagógicos, Livros

Didáticos, Planos de Ensino, entre outras ferramentas direcionadas às instituições de/da Educação. (

tradução nossa).

3

Introduzir conteúdos escolares sob o viés das relações etnicorraciais ainda é

restrita à ações pontuais no ensino, na contemporaneidade. Na busca de propostas que

contemplem a diversidade étnica e cultural, questionamos a existência de saberes comuns

no currículo oficial ao alicerçar o fazer didático docente. Assim sendo, interrogamos: O

que é mito? Qual é a relevância epistemológica, para o ensino de História, ao abordarmos

sobre a Origem do Mundo e do Homem na perspectiva cosmogônica yorubá?

Estes questionamentos surgem ao buscamos espaços, ensino e funcionalidade de

saberes oriundos de populações africanas, afro-brasileira e indígenas em dispositivos

didáticos8. Essa busca nos faz, antes de uma análise dos dispositivos que alicerçam o

referido saber histórico, estudar que objeto é esse e quais suas raízes epistemológicas e

históricas até o ensino de história.

Apresentar a trajetória do conceito origem do mundo e do homem, na perspectiva

mitológica, nos direciona a compreender as diversas visões socioculturais. Assim, a

tentativa de interpretar e explicar a origem do mundo e do homem é uma das mais

longínquas investidas humanas, em meio aos espaços em que vivem, de acordo às

especificidades das suas civilizações enquanto sujeitos sociohistóricos.

Martins (2012) nos revela que entre 4.000 e 2.000 anos antes da era cristã foi

identificado os primeiros registros escritos sobre os mitos da criação do universo e

humano elaborado pelos babilônicos, através do Enuma Elis. Por ser uma realidade

cultural, o mito é definido como uma elaboração de extrema complexidade que pode ser

abordado e interpretado através de perspectivas múltiplas e complementares. Abbagnano9

define mito como a justificação retrospectiva dos elementos fundamentais que constituem

a cultura de um grupo. Assim sendo, ao atender as diversidades cosmogônicas, os mitos

cumprem função sui generis intimamente ligada à natureza da tradição e continuidade da

cultura.

Apesar do conceito ter perspectiva de acordo às vastas interpretações, a origem do

termo que relaciona o objeto será determinada por uma única vertente e a sua

8 Ao ressignificarmos para o ensino de História, consideramos que “A aula de história, o livro didático, a

biblioteca, as provas, as perguntas que faz o professor em aula, são exemplos de dispositivos escolares. À

medida que cada um desses dispositivos incide sobre a estruturação e o desenvolvimento do processo de

estudo da história, funcionando como um dispositivo de ajuda para o estudo da história, diremos que se

trata, além disso, de um dispositivo didático (no sentido de didático-histórico) ”. (CHEVALLARD, BOSCH

& GASCÓN, 2001, p.278).

9 ABBAGNANO, 2007, p.645.

4

institucionalização e publicação será lançado a partir dessa unilateralidade predominante.

A colonização do conhecimento determinará quais perspectivas devem ser evidenciadas

e divulgadas pois, os paradigmas eurocêntricos tornaram-se hegemônicos (Grosfoguel,

2009) diante das diversas ciências e interpretações tradicionais.

O termo mito é um conceito grego, assim com a natureza do seu termo. Das

definições referente à origem do mundo e do homem, comumente, nos deparamos com

os conceitos de mito, mas também, de cosmogonia e cosmologia. Ambas provindas da

civilização grega. A cosmogonia é considerada um mito ou doutrina referente à origem

do mundo ou do universo (Steiner, 1996; Martins, 2012). As versões cosmogônicas ‘são

narrativas de características atemporais e cíclicas sobre diferentes modos de surgimento

do mundo, sem matéria preexistente.’(Campos, 2015).

A cosmologia, dividida em duas partes: científica e experimental, é considerada

como uma ciência do mundo e do universo composto e modificável. Steiner (1996) a

interpreta como o estudo científico da origem, da estrutura e da evolução do universo10

como um todo. Campos (2015) especifica cosmologia como uma vertente científica que

estuda e interpreta o espaço, tempo, energia e matéria. Evidencia a inseparabilidade entre

o sujeito que observa (o cientista) e o objeto observado (o universo), ambos importantes

para a interpretação descritiva do universo e de tudo que a compõe.

O mito, a filosofia, a religião e a ciência têm suas importantes contribuições na

interpretação da origem humana e universal. Entretanto, ao longo da trajetória do conceito

a relevância ocidental estabelece separação e a hierarquiza através da concepção

cosmogônica e cosmológica. Fica-nos a evidência de que a natureza das definições aponta

as suas especifidades, que serão preponderantes no modo de considerar, selecionar,

instituir e ensinar o saber referente diante das inúmeras concepções.

Com a predominância do pensamento filosófico ocidental, os gregos tornam-se os

definidores e propagadores influentes dos conhecimentos. Nas distinções das perspectivas

conceituais nos é apresentado o poder valorativo em ambos, marcados pela hegemonia

10 MARTINS, 1994, p.

5

epistêmica europeia através de épicos e de contribuições mito-filosófica11 sobre a origem

do mundo e do homem.

A consideração do conceito epistêmico, por exemplo, tem origem e

fundamentação teórica preeminente no contexto em discussão. A etimologia da sua

palavra deriva do grego Parmênides, entre os séculos VI ao V antes da era cristã, onde o

filósofo preestabeleceu as distinções entre a epistème e o doxa, ou seja, entre o

“conhecimento” e “opinião”. A partir de então, haverá a distinção entre aquilo que é

realidade da aparência, da verdade diante do considerado erro.

Diante de tais distinções que o filósofo Aristóteles, nos finais do século V e início

do IV, centra suas indagações na natureza do conhecimento científico (Laudan, 1983)

perante as explicações que envolvem o homem e seus envolvimentos no mundo. No qual

as preocupações epistêmicas, ou seja, justificada, verdadeira, observável e objetiva, terão

mais evidência diante das explicações não observáveis. Ou seja, mitológica.

No contexto da educação, diante dos significados e distinções incorporados, as

definições e naturezas cosmogônicas e cosmológicas serão e são bem definidas e

reproduzidas na educação básica, seja através de representação de manuais e livros

didáticos, seja através da prática docente. Ainda que a perspectiva cosmológica seja

fortemente alicerçada nos livros didáticos e, consequentemente, nos planejamentos para

o ensino e a aprendizagem, a perspectiva cosmogônica não é refutada no contexto

didático.

Contudo, o direcionamento unilateral tornar uma única concepção, o que faz dela

hegemônica diante à diversidade. A perspectiva do mito, no contexto do ensino, legitima-

se no fazer docente, isso por que segundo citação de Sepúlveda (2003),

a influência das concepções criacionistas12, ou seja,

cosmogônicas sobre o Ensino de[as] Ciências não pode ser

considerada desprezíveis no Brasil, tendo-se em vista o número

crescente de comunidades evangélicas que defendem o

criacionismo e investem na manutenção de instituições de ensino

e editoras de livros didáticos. (Sepúlveda, 2003 apud Razera &

Nardi, 2001, p. 18).

11Conforme a divisão cronológica feita por Martins (1994), entre os anos 800 e 700 da era não cristã, os

gregos legitimaram a concepção sobre a terra achatada e o mito dos deuses de Homero e a Teogonia de

Hesíodo explicarão a origem dos deuses e do universo.

12 A autora refere-se à judaico cristã

6

A afirmativa da autora contextualiza a formação religiosa e científica de

licenciandos(as), especificamente em ciências biológicas, mas essa não é uma

particularidade recente na formação de profissionais da educação brasileira. Na

conjuntura do ensino de História (PCN, 19), a história sagrada, judaico cristão, dividia

espaço com outras ciências no currículo por ter a incumbência de formar moralmente seus

alunos. Diga-se de passagem, tal construção de conhecimento científico e cultural

legitimou a prevalência para estudos do espaço do Oriente Médio, berço do monoteísmo,

e da Antiguidade clássica.

No sentido recente, debates retomam questionamentos sobre o distanciamento de

saberes históricos às realidades que não demandam equidade sociocultural, política,

econômica e histórica. A exemplo da carta crítica da Anpuh-Rio13 (2015) à proposta do

Ministério da Educação para definição das Bases Nacionais Curricular Comum de

História.

Visto isso, ao estudarmos a origem do mundo e do homem é observado

marcadamente, respeitando a hierarquia estabelecida entre cosmologia e cosmogonia,

quase nunca são mencionados os mitos de origem africana, americana e oceânica. E

quando são mencionados, a transposição didática14 não consegue dar conta no saber

ensinado e saber aprendido diante do modelo epistemológico que historicamente é

refletido.

Teremos, portanto, um ensino e um aprendizado onde a ciência e a religiosa, em

meio aos conflitos épicos, predominarão diante das explicações sobre a origem do mundo

e do homem. A racionalidade ocidental não deixou de reverberar o mito dos GÊNESIS

(Steiner, 1997) nas comunidades acadêmicas. A sua influência perpassou tempos

13 Declara que faz “ a menção a uma noção de história indígena, referida apenas ao passado, que desconhece

a diversidade desses povos e suas transformações ao longo do tempo; a não obediência às Leis 10.639/03

e 11.645/08, em função da limitação da temática da história africana e da cultura afro-brasileira ao 1º ano

do Ensino Médio; e a ausência de embasamento na temporalidade, considerada como essencial ao currículo

de História”. Além de outros fatores. Disponível: http://site.anpuh.org/index.php/bncc-historia/item/3323-

relato-da-ii-jornada-de-historia-da-anpuh-rio-discussao-da-bncc

14 Segundo Chevallard (1986), a Transposição Didática do Saber possui dois tipos classificação, diante do

processo adaptativo de um objeto do saber. O strictu sensu é a passagem de um conteúdo de saber preciso

a uma versão didática deste objeto de saber, nesse faz parte o professor; o aluno; e o saber a ser ensinado.

O lato sensu é o processo de adaptação de um objeto de saber, desde a produção na academia até à sua

eleição como objeto a ensinar e torná-lo objeto de ensino.

7

históricos na civilização humana, com participação preponderante no cotidiano de muitas

populações que vivenciaram sob dominação euro ocidental.

No ponto de vista ‘puramente’ científico, na perspectiva da ciência moderna, a

teoria da Grande Explosão, conhecida também como o Big Bang proposta em 1947 por

George Gamow, ganha espaço nos setores acadêmicos e escolares em paralelo à teoria

criacionista judaico cristã. Das intervenções de filósofos naturais às elaborações de

cientistas, astrônomos da modernidade, físicos e naturalistas firmam território entre as

visões científicas, no que diz respeito às teorias sobre a formação do universo e humana.

A legitimidade científica, portanto, é institucionalizada a partir do século XVII

nos espaços de construção de saberes formais. Segundo Gleiser (1997, p.192), o enorme

sucesso do método racional desenvolvido por Newton para lidar com os fenômenos

físicos rapidamente o transformou no símbolo de uma nova era na história da

humanidade, baseada no poder do pensamento, e não no poder da fé. No século XIX, o

movimento a favor de uma ciência mais positiva predominou, desvinculando questões

teológicas e metafísicas, havendo um crescente desejo de exclusão dos debates

cosmogônicos na prática da ciência (SEPÚLVEDA, p. 33, 2003).

Entretanto, em debates recentes intelectuais defendem que a ciência não é o único

modo de se estudar e tentar captar a realidade. Para Martins (2012, p.2), o [mito], o

pensamento filosófico e o religioso também possuem grande importância, levando com

isso à antigas indagações: será possível que esse universo tenha surgido sem uma

intervenção divina? Até que ponto a ciência e a religião se contradizem ou se completam?

Diante desse encadeamento de ideias sobre origem, trajetória e definição de

relevâncias a seres conhecidas, divulgadas e institucionalizadas sobre os mitos da origem

do mundo e do homem, partimos para as possíveis representações e os discursos

refletidos, ou não, nos livros didáticos analisados.

1.1. O que eu ensino (ei)? O que eu aprendi (o)? O Saber Ensinado versus O Saber

Aprendido no 6º Ano.

A natureza dessas definições e o tratar diferenciado sobre os mitos da origem do

mundo e do homem são marcadamente materializadas no processo de ensino e

aprendizagem de História, onde o prisma da estrutura do universo é muito mais relevante

8

do que como o veio a existir. Assim sendo, parte da pesquisa em andamento foi realizado

com professoras de História da 6º Ano em Salvador (Ba). As mesmas passaram por

entrevista semiestruturada com a finalidade de analisarmos o de que maneira elas

compreendem e têm como relevância o saber referente.

As professoras-partícipes, P2 e P315, priorizam nas suas práticas uma abordagem

cosmológica embasado em princípios científico. A abordagem mitológica é apresentada

com pouca legitimidade nas propostas a serem ensinadas. Uma das professoras16 declara,

ao responder sobre suas percepções de origem do mundo e do homem, que é evolucionista

e não criacionista, pondo em evidência um hiato na abordagem do saber histórico. Explica

que

“[...] falar da Origem do Mundo é subjetivo, vai depender da cultura,

da crença. Lidar com a Origem do Homem é mais objetivo, holístico e

eclético. Na ciência é possível haver consenso. A objetividade é porque o

homem é uma entidade que materializa tudo que é possível enquanto agente

objetivo. [...] quando trazemos a ciência, derrubamos o dogma religioso em

detrimento de outras. [...] devemos abrir espaços para origem, embora as

outras sejam criacionistas também. É relevante abordar o conteúdo por que

resgata valores ético do homem no mundo. ”

Assim como a professora-partícipe P3 esclarece que

“[...] é um assunto muito complexo devido as várias vertentes que tem para

trabalhar. O que chamo de vertente são essas explicações para a origem do

ponto de vista científico e religioso. Se faz necessário um cuidado para

abordar na sala de aula, por minhas escolhas abordaria na vertente religiosa

(criacionista). [...] Trabalho que a origem da humanidade veio do continente

africano (perspectiva científica), deixando em aberto a origem do mundo

para que eles tirem sua opinião (sic) ”.

15 Consideramos pertinente preservar a identidade das participantes.

16 Professora P2, abril de 2016.

9

As professoras participantes deixam evidente as dificuldades que enfrentam em

propor conteúdos que não façam parte do contexto oficial, que é hegemônico, restritivo e

unilateral. Declara P1:

Não temos competência para tratar desse conteúdo em sala, quem

deve tratar são as autoridades, pai de santo, mãe de santo. Não é o professor

que deve discutir. Lá na escola falar [ na vertente da cosmogonia afro-

brasileira, por exemplo] eu seria apedrejada. Os pais vão no outro dia. Lá já

foram padres, pastores, mas fora isso [ outras representações não

hegemônicas] nunca foi, nem pensam em convidar.

Os saberes escolares, em discussão, são representados e referendados enquanto saberes

históricos, amparados por diretrizes curriculares, assim como, pelos livros didáticos em

sua maioria, tanto na concepção científica como na não científica. Entretanto, ao alicerçar

esses “não saberes17” numa vertente etnicorracial, no caso africano, há um restrição

fortemente marcada na prática docente, devido ao seu conteúdo não poder ser, diferentes

das outras concepções, abordado somente por autoridades religiosas.

As poucas legitimidades mesclam-se com possibilidades, haja vista que as

reflexões das docentes apresentam aquilo que está posto enquanto saber

institucionalizado. O conhecimento procede de uma transposição do saber e são estes

saberes que controlam, organizam e delimitam as aulas influenciando na forma de como

as professoras devem planejar as suas abordagens18. Assim sendo, aplicamos um

questionário que nos revele se a origem do mundo e do homem vem sendo ensinado, como

e o que é ensinado, e, consequentemente, o que é aprendido sobre este objeto.

O que os estudantes aprenderam?

No primeiro momento aplicamos um questionário19 mais amplo, para estudantes

não só do fundamental II ( ou seja, 6º ano, instituição de nosso interesse), mas também,

17 Diferentemente da abordagem na perspectiva judaico –cristã ou quaisquer que sejam outra herança

cultural, a abordagem na perspectiva africana [ yorubá] não é considerado como um saber escolar.

18 CHEVALLARD:1986. 19 Os primeiros questionários foram aplicados em novembro e dezembro de 2015 entre os municípios de Salvador e de Feira de Santana.

10

para estudantes do Fundamental I, Ensino Médio e Superior. A intenção inicial foi inferir

os conhecimentos prévios sobre o que as entrevistadas e os entrevistados conheciam sobre

a origem do mundo e do homem, independente dos espaços formais de ensino. Assim, os

dados puderam produzir informações que nos revelassem as predominâncias

epistemológicas do conceito.

Os dados nos apresentam quais saberes vêm sendo ensinados e quais saberes são

aprendidos, do ponto de vista cosmogônicos, além das instituições escolares20.

Partilhamos, por conseguinte, as seguintes questões:

1. Para contar de onde nós surgimos, apoiamo-nos em histórias, mitos, fantasias,

lendas entre outros. Qual mito, história ou lenda você usaria explicar sobre a

Origem do Mundo?

2. Quando você aprendeu, ou ouviu falar, sobre a origem do mundo e a criação do

homem (ou seja, de você), o que você lembra (aprendeu)?

O questionário foi aplicado a 198 estudantes, sendo: 66 estudantes do Fundamental I

(5º ano), 49 estudantes do Fundamental II (8º e 9º ano), 50 estudantes do Ensino

Médio (1º, 2º, 3º e 4º regular e técnico); e, 33 estudantes do nível superior (Ciências,

Biológica, História e Matemática).

Os dados desse primeiro momento expuseram que, dos(as) 66 estudantes21 do

Fundamental I (5º ano) de idade entre 10 e 17 anos, de maioria do sexo feminino (53,03

%), para a pergunta 1: mais de 60 porcentos utilizaria a bíblia e o criacionismo judaico

cristão para explicar a origem do mundo e a criação humana, sendo que 4, 54% utilizaria

a explicação do macaco e 3,03 explicaria a partir da evolução, entretanto, 10,60% desses

não saberiam como explicar; para a pergunta 2: 45,45% do que aprendeu, lembra que o

mundo e os homens foram criados a partir de Deus, 12,12 não lembram e/ou desviaram

da pergunta; 4,54% lembram termos vindo dos macacos e 3,03% do pó. No caso dos (as)

20 Ampliamos o diagnóstico para além das salas de aula com a intenção de validar, assim como também, poder descrever as inquietações iniciais que impulsionam esta pesquisa.

21 No nosso instrumento, decidimos observar qual leitura os (as) estudantes apresentam sobre a sua

identificação etnicorracial, diante do processo de construção identitária brasileira, assim, tivemos 50% que

autodeclaram negros (as), 22,73% morenos (as); 6,06% brancas; 15,16% pardos (as) e 3,03% não

declararam e/ou não relatou.

11

49 estudantes22 do Fundamental II (8º e 9º ano) de idade entre 12 e 18 anos, de maioria

do sexo feminino (55,10%), para a pergunta 1: 65,3% utilizaria a versão de que Deus23

quem criou mundo e o homem; 10,2 % utilizaria a explicação de Deus junto à teoria do

Big Bang; 2,04% explicaria que o homem veio do macaco e/ou utilizaria mito das coisas

avançadas para explicação. Para a pergunta 2: 77,55% do que aprendeu, lembra que o

mundo e os homens foram criados a partir de Deus; 8,16 % aprenderam que foi pela teoria

do Big Bang; 6,12 % não lembra.

Ao entrevistarmos os (as) 50 estudantes24 do Ensino Médio (1º, 2º, 3º e 4º regular

e técnico) de idade entre 15 e 28 anos, de maioria do sexo feminino (60%), para a pergunta

1, tivemos: 40% utilizaria a bíblia e a versão de que Deus quem criou mundo e o homem;

24% utilizaria a teoria do Big Bang; 28% explicaria que o homem veio do macaco e/ou

evolução; 2% utilizaria o mito grego e o mito da caverna; 8% não respondeu. Para a

pergunta 2: 64% do que aprendeu, lembra que o mundo e os homens foram criados a

partir de Deus, Adão e Eva através da bíblia; 2 % aprenderam com a Teoria da Evolução;

6% que foi pela teoria do Big Bang; 4% não lembram e não respondeu e 2% desviou da

pergunta. No caso dos (as) 33 estudantes25 do Ensino Superior (7 de História e o restante

de Ciências Biológicas e Matemática) de idade entre 17 e 33 anos, de maioria do sexo

feminino (57,57%), para a pergunta 1: 39,39% utilizaria a versão de que Deus26 quem

criou mundo e o homem; 42,42 % utilizaria a explicaria a partir da teoria do Big Bang;

6,06% explicaria, segundo os(as) mesmas(as), a partir do evolucionismo e cientificismo;

3,03 % explicaria, conjuntamente, sobre a teoria do Big Bang, de Macunaíma e do mito

Igbadu: Cabaça da existência. Para a pergunta 2: 54,54% do que aprendeu, lembra que o

mundo e os homens foram criados a partir de Deus; 6,06 % aprenderam que foi pela a

partir do criacionismo, evolucionismo e o cientificismo; 9,09 % a partir da teoria do Big

Bang; 6,06 % não lembra.

22 Tivemos 44% que autodeclaram negros (as), 22,44% morenos (as); 4,08% brancos (as); 18,36% pardos

(as) e 2,04% não declararam.

23 O Deus referente é o judaico cristão.

24Tivemos 53,06% que autodeclaram negros (as), 4% morenos (as); 6% brancos (as); 32% pardos (as); 2%

mestiços (as), afrodescendente e amarelo (a); e, 6% indecisos (as).

25Tivemos 36,36% que autodeclaram negros (as); 12,12% brancos (as); 36,36% pardos (as); 6,06%

indecisos (as) e 9,09% não declararam.

26 O Deus referente é o judaico cristão.

12

Os dados revelam que uma grande maioria dos (as) estudantes aprenderam a partir

da explicação criacionista na perspectiva judaico cristã e, ao tentarem explicar sobre tal

gênese, utilizariam, na sua maioria, o mito judaico cristão nas suas narrativas. Essa

revelação é inferida em um primeiro momento. Buscamos, inicialmente, um olhar amplo

para apreensão das tendências e, num segundo momento, restringimos às salas de aula às

quais desenvolvemos a proposta.

Considerações Parciais

Pudemos identificar nas análises que se seguiram lacunas referentes à integração

da cosmogonia yorubá enquanto saber histórico concernente à origem do mundo e criação

do homem, tanto efetivamente nos documentos educacionais oficias (nacional, regional e

local), quanto equanimemente nos livros didáticos a fim de ser alicerçado na prática

docente. Prevemos que tais referências não é manifestada na prática e, consequentemente,

não aparecem nos respectivos planos de aulas, porque em frequência não estão presentes

nos livros didáticos, por não estarem presentes nos documentos oficiais, por não ter

havido, de fato a transposição a partir do saber de referência acadêmica.

Além disso, o aspecto religioso e ideológico do professorado, ou mesmo das

instituições de ensino, acabam refletindo fortemente na ausência de saberes nesse

contexto de represente a cosmogonia yorubá. Julgamos essencial construir um Modelo

Epistemológico de Referência ‒ MER27 que aporte nas práticas docentes o ensino sobre

a origem do mundo e do homem integrando a cosmogonia yorubá enquanto objeto

histórico efetivo.

REFERÊNCIAS

BOSCH, Marianna y GASCÓN, Josep. Fundamentación antropológica de las

organizaciones didácticas: de los ―talleres de prácticas matemáticas a los ―recorridos

de estudio e investigación. In: Apports de la théorie anthropologique du didactique

Diffuser les mathématiques (et les autres savoirs) comme outils de connaissance et

d‘action. IUFM: Montpellier, 2010.pp.55-91

BRASIL. Lei 10.639 de 09 de janeiro de 2003. Inclui a obrigatoriedade da temática «

História e cultura afro-brasileira » no currículo oficial da rede de ensino. Diário Oficial

da União, Brasília, 2003.

27 Saberes referentes que alicercem de maneira significativa aqui consideradas.Ver: Boch e Gascón (2010).

13

CAMPOS, Hélio Silva. Cosmovisões: antigas e contemporâneas. EDUFBA: Salvador,

2015.

CHEVALLARD, Y. El Análisis de las Prácticas Docentes en la Teoría antropológica

de lo Didáctico.Recherches en Didactique des Mathématiques. Vol. 19, nº 2, 1999.

CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO. Diretrizes Curriculares Nacionais para

a Educação das relações étnico-raciais e para o Ensino de história e Cultura Afro-

Brasileira e Africana_Parecer Homologado. Despacho do Ministro, publicado no

Diário Oficial da União de 19/5/2004. Resolução Nº 1, de 17 de junho de 2004.

MALAVOTA, Claudia Mortari. O Ensino de Histórias das Áfricas e a Historiografia.

Cap.1. In: Introdução aos estudos Africanos e da Diáspora. UDESC, 2014.

SEPULVEDA, Claudia De Alencar Serra e. A Relação Entre Religião e Ciência na

Trajetória Profissional de Alunos Protestantes da Licenciatura em Ciências Biológicas.

(Dissertação). PPGEFHC: UFBA, 2013.

SILVA, Rosiléia Santana da et al. A Teoria Antropológica Do Didático Na

Compreensão Do Vazio Didático Para O Ensino De História Do 6º Ano Conforme A

Lei 10639/03. (Anais). Congresso Baiano de Pesquisadores Negros - V CBPN: Jequié,

2015.