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SÍTIO CONCEIÇÃOZINHA EM GUARUJÁ Carlos Eduardo Vicente Primórdios do Sítio Conceiçãozinha Espaço Geográfico Distante aproximadamente um quilômetro da margem de Santos, do Estuário, cerca de dois quilômetros da Ponta da Praia em Santos e algo em torno de seis quilômetros da Estação das Barcas de Vicente de Carvalho, o Sítio Conceiçãozinha, segundo relatos de moradores mais antigos, já foi muito maior do que é hoje. Depoimentos atestam que o hoje Sítio, no inicio do século XX abarcava os bairros de Prainha, Jardim Boa Esperança, metade do Pae Cara e da Vila Áurea, partes do Morrinhos e Vila Zilda, e ainda os próprios Sitio e Jardim Conceiçãozinha, uma área que representaria algo próximo à metade de Vicente de Carvalho (Itapema) 1 . Com o tempo, essa área foi sendo dividida e deu origem aos bairros acima citados, e hoje, o Sitio Conceiçãozinha está restrito a uma área de aproximadamente 450.000 metros quadrados, que seria o equivalente a cerca de 450 metros de largura por um quilometro de comprimento. Esta é a área ocupada pela população, o que representa apenas metade da área total da parte conhecida como Sitio Conceiçãozinha, pois como é claramente visível no mapa 2 , a área ocupada vai somente até o rio Santo Amaro, e, no entanto a 1 Nome indígena tupi guarani, como é vulgarmente conhecido Vicente de Carvalho pela população em geral; significa “pedra quebrada”, “muita pedras”. 2 Segue em anexo, ao final do primeiro capitulo o mapa nº 1 com localização geográfica especifica da comunidade, no Sítio Conceiçãozinha, e o mapa nº 2 com a localização da comunidade inserida na área dita como parte da comunidade pelos moradores (mapas de 2001). 1

Analise socio-historica da comunidade caicara de Conceicaozinha - Guaruja Parte 2

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SÍTIO CONCEIÇÃOZINHA EM GUARUJÁ

Carlos Eduardo Vicente

Primórdios do Sí t io Conceiçãozinha

Es p aço Geográ f i co

D is t an t e ap rox imadamen t e um qu i lôme t ro da margem de

S an to s , do Es tuá r io , c e r ca de do i s qu i lôme t ro s da P on ta da P ra i a

em S an to s e a lgo em to rno de s e i s qu i lôme t ro s da Es t ação da s

B a rca s de V icen t e de C a rva lho , o S í t i o C once i çãoz inha , s egundo

r e l a to s de morado re s ma i s an t i gos , j á f o i mu i to ma io r do que é

ho j e . D epo imen tos a t e s t am que o ho j e S í t i o , no i n i c io do s écu lo XX

aba rcava os ba i r ro s de P r a inha , J a rd im B oa Es pe rança , me tade do

P ae C a ra e da V i l a Á urea , pa r t e s do M or r inhos e V i l a Z i lda , e a inda

os p róp r io s S i t i o e J a rd im C once i çãoz inh a , uma á r ea que

r ep r e s en t a r i a a lgo p róx imo à me tade de V icen t e de C a rva lho

( I t apema) 1 .

C om o t empo , e s s a á r ea fo i s endo d iv id ida e deu o r igem aos

ba i r ro s ac ima c i t ados , e ho j e , o S i t i o C once i çãoz inh a e s t á r es t r i t o a

uma á r ea de ap rox imadamen te 450 .000 me t ro s quad rados , que s e r i a

o equ iva l en t e a c e r ca de 450 me t ro s de l a rgu ra po r um qu i lome t ro

de compr imen to . Es t a é a á r ea ocupada pe l a popu lação , o que

r ep r e s en t a apenas me tade da á r ea t o t a l da pa r t e conhec ida como

S i t i o C once i çãoz inh a , po i s como é c l a r amen te v i s íve l no mapa 2 , a

á r ea ocupada va i s omen te a t é o r i o S an to A maro , e , no en t an to a

1 Nome indígena tupi guarani, como é vulgarmente conhecido Vicente de Carvalho pela população em geral; significa “pedra quebrada”, “muita pedras”.2 Segue em anexo, ao final do primeiro capitulo o mapa nº 1 com localização geográfica especifica da comunidade, no Sítio Conceiçãozinha, e o mapa nº 2 com a localização da comunidade inserida na área dita como parte da comunidade pelos moradores (mapas de 2001).

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á r ea do S í t i o va i a t é a l i nha f é r r ea , be i r ando a aven ida S an to s

Dumon t .

“... como aqui era uma mata muito grande, o que a gente entendia até a década de

1960, ou 59, por aí, a Conceiçãozinha era uma faixa muito grande, ela era aqui do Rio

Santo Amaro, perto aonde é o Yate3 hoje, ela ia até o Morro Alto nessa torre de alta

tensão grande, que já tem aqui em Vicente de Carvalho, ela ia até lá, tanto que a

Prainha, o bairro de Prainha se chamava Prainha do Sitio Conceiçãozinha, então, se

vê que o Sitio Conceiçãozinha, a Prainha é uma parte do bairro do Sítio

Conceiçãozinha, que atravessava pela linha de transmissão das torres, varava ali pela

Base Aérea, Vila Áurea, Pae Cara, Monteiro da Cruz, Boa Esperança e ia

compreendendo até lá embaixo, né, ia até o Morro Alto (bairro hoje conhecido como

morrinhos)”.4

O fragmento retirado de um dos moradores mais antigos do Sítio, e sem dúvida o

mais antigo individuo contatado com conhecimento do bairro exemplifica bem o tipo de

noção territorial vigente, pois outros moradores também fazem referência ao tamanho

do bairro como sendo de envergadura similar. Porém não podemos deixar de frisar o

fato de que na época descrita não havia parâmetros tão específicos para caracterizar os

bairros descritos, pelo menos em Guarujá (haja vista que os locais em que se

localizavam os bairros citados atualmente como fazendo parte do Sitio Conceiçãozinha

na época descrita eram somente uma grande mata). Podemos sim afirmar que o que

existia em Vicente de Carvalho era uma pequena faixa urbana próxima a Estação das

Barcas onde se concentravam o comércio e grande parte da população, e que existiam

alguns sítios espalhados pelo resto de Vicente de Carvalho (Itapema).5 Além do que,

algumas áreas foram nomeadas sem uma territorialidade especifica, o que justificaria o

tamanho conferido pelos moradores ao Sítio Conceiçãozinha.

Outro ponto importante, com certeza seria o fato de que é perceptível, quando do

depoimento dos moradores mais antigos, o apego e o carinho com que tratam a

comunidade principalmente em seus primeiros anos, o que se reflete em praticamente

todos os depoimentos como um fator de engrandecimento da comunidade.

3 Todas as vezes que nos depoimentos de moradores estiverem referindo-se ao Yate, trata-se do Yate Clube de Santos, localizado no bairro Ponta da Praia.4 “Seu Dito”, morador do Sítio Conceiçãozinha há cerca de 40 anos.5 Segue em anexo, ao final do primeiro capitulo o mapa nº 3 com localização geográfica especifica da comunidade, no Sítio Conceiçãozinha no ano de 1960, e o mapa nº 4 com a localização da comunidade inserida na área dita como parte da comunidade pelos moradores.

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O bairro Sítio Conceiçãozinha se encontra localizado em Vicente de Carvalho,

distrito de Guarujá, na ilha se Santo Amaro, litoral paulista, cerca de 23o de latitude sul e

46o de longitude Ocidental, distando 83 quilômetros de São Paulo.

O Guarujá tem limites ao Norte com o município de Santos, pelo estuário de

Santos, e ao Sul e Leste com o Oceano Atlântico. Possui uma área de 139 quilômetros

quadrados, dos quais como já foi dito, 0,5 quilômetros quadrados pertencem ao “Sitio

Conceiçãozinha”, e tem uma população de aproximadamente 260 mil habitantes, sendo

que algo em torno de 1,5% dela, está no “Sítio”.6

Chega-se ao Sítio Conceiçãozinha pela avenida Santos Dumont, seguindo de carro,

da Estação das Barcas, até cerca de cinco quilômetros, onde se entra à direita e se segue

mais um quilômetro até o inicio da comunidade, ou por via marítima, através de

embarcação pela Ponta da Praia em Santos ou outro atracadouro de embarcações da

região.

Hoje o bairro está encravado entre os terrenos das empresas Cargill, Cutrale e Dow

Química, tendo as ruas todas de terra. Ainda não possui rede de esgotos, porém já tem

iluminação e água potável.

A formação de toda a orla do bairro é de vegetação de manguezais em adiantado

estado de degradação, tanto pelo efeito de substâncias químicas lançadas pelas empresas

instaladas no estuário, quanto pelo esgoto e lixo doméstico e dos navios que vem com

as cheias e fica depositado nas margens do bairro e na margem oposta do rio Santo

Amaro, em área de vegetação ainda de mangue.7

Primeiros Habitantes

“... muita gente anda ali e não vê, não, e eu sei onde tem as três campas8, até

Newton falou pra mim que quer um dia ir lá, para mim mostrar pra ele onde que é

essas três campas, e eu sei onde que é, tem até duas fechadas e uma aberta. Aqui

também, uma vez, faz anos quando também desmataram isso aqui, foi a primeira vez

quando quiseram invadir, a portuária não deixou ninguém invadir, eu acho que tinha

6 Arquivo do IBGE e Censo de 2000.7 Arquivo da ONG Coletivo Alternativa Verde – CAVE, e observação da área em questão.8 Campa – forma como é vulgarmente conhecida a sepultura na região do litoral de São Paulo. Campas – plural de campa.

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uma campa aqui também, onde mais ou menos é esse terreno aqui mesmo, eu achei

uma campa antiga, ta, com a cruz de madeira, uma campa antiga, só que acho que

quando mexeram acabaram com tudo, era coisa antiga, coisa que não interessa a gente

também, né. Aí mexeram, foram fazendo casa, terreno, acabaram com tudo, mas aqui

acho que enterraram muita gente, ali no Yate Club ali, meu pai trabalhou ali, meu pai

falou pra mim, que ali é o seguinte, quando ele trabalhou ali, que era muita caixa de

osso, machadinha, e esses ossos foi tudo pra São Paulo, foi tirado caixas e mais caixas,

entendeu? Bastante machadinha, era do tempo dos índios, os índios matava e jogava

ali, jogava dentro do canal, morreu muita gente aqui, isso aqui era uma ‘matona’

deserta...”9

Podemos notar a profunda relação de respeito que o morador tem com aquilo que

seu pai dizia. No tocante à comunidade, e a outras em geral, onde não se tem uma

tradição escrita de passagem de informações, a história oral atinge um nível de

importância fundamental para a sobrevivência cultural da comunidade. Assim como nas

tribos indígenas, nas comunidades caiçaras o papel da oralidade é facilmente

comprovado na realização de uma pesquisa de campo.

Para os moradores mais antigos, e/ou, para os moradores nascidos na comunidade

com mais de vinte e cinco, trinta anos, a auto-afirmação enquanto morador é visível em

cada depoimento. Até nas conversas mais informais, a história da comunidade, os

acontecimentos considerados importantes são repetidos por moradores diferentes, e

mesmo as histórias mais incríveis, ou desagradáveis são relembradas e contadas.

Por depoimentos de moradores atuais, que moram já há varias décadas na

comunidade e que afirmam haver encontrado, durante escavações para a construção de

suas casas ou para plantio de suas pequenas roças, ossos e artefatos de uso de

indígenas, podemos deduzir que os primeiros habitantes da região, antes mesmo de se

constituir em uma comunidade, eram os indígenas:

N a aná l i s e ge r a l f e i t a po r B en to R ibe i ro pa r a os hab i t an t e s

na t i vos da S e r r a do M ar , “O s t up i s da C os ta e r am conhec idos pe lo s

nom es genér i cos de Tup inam bás e s e d i v id iam em vár io s g r upos

l oca i s . T up in iqu im e Tup iná (ou Tapanas es ) , v i v iam en t r e Por to

s egur o na Bah ia e Es p í r i t o San to . N a m es m a reg ião v i v iam os

Gua i tacas e s ou G o i tacas e s [ . . . ] Em São V icen t e e s tavam os

9 Ranufinho, morador do bairro a 35 anos, e filho de um dos primeiros moradores do bairro com aproximadamente 70 de “Conceiçãozinha” e que faleceu um ano antes do início da pesquisa.

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Gua ianas es , t am bém tapu ia s ( t apu i a ou t apu io – nome dado ou t ro r a

pe lo s t up i s ao s gen t io s i n imigos ; de s ignação gené r i ca do í nd io

b r av io ) 1 0 ances t r a i s ” . 1 1

Esses depoimentos podem ser endossados pela presença de ruínas de uma velha

capela, na margem oposta à comunidade, no rio Santo Amaro, caracterizando assim área

de influência jesuítica, e por depoimentos de moradores antigos que essa primeira

população pode ter sido de origem Guarani, ou talvez Tamoio, do grupo tupinambá12

que eram o termo genérico com que eram conhecidos os tupis da costa:

“... os tupinambás que povoaram esta região exerciam domínio sobre amplos

territórios. Não há concordância absoluta quanto à extensão da área constituída [...]

Anchieta, que conhece intimamente a região situa os dois limites em Cabo Frio e São

Sebastião. (Anchieta, Cartas, págs 246 e 252) [...] Em conseqüência da guerra com os

portugueses, os Tupinambás do Rio de Janeiro foram em grande parte exterminados,

outros emigraram e alguns se submeteram aos brancos [...] Em 15 anos, 1560 a 1575,

os portugueses conseguiram conquistar terras, expulsar os franceses da região e impor

seu domínio aos aborígines [...] O Forte foi destruído pelos Tupinambás, mas logo

depois reconstruído na Ilha de Santo Amaro (Stadem págs 74 a 77) [...] em vez de

atemorizados ficaram os tamoios do Rio mais insolentes com os moradores de São

Vicente. Andavam a caça de portugueses e seus aliados [...] procurando vingar a morte

dos guerreiros tupinambás (Anchieta, Cartas, págs 222 e 223)...”.13

“... parte Tupinambá [...] Tupinikim [...] Carijó [...] Guayaná [...] Nas Regiões de

São Paulo e Rio de Janeiro, com o apoio dos Franceses fizeram aliança de guerra [...]

liderados por Cunhambebe e Aimbêre [...] para combater escravização dos indígenas

feitas pela família de João Ramalho...”14

“... semelhante audácia dos portugueses, reunida à idéia de que eles raptavam as

virgens tamoias [...] promoveu uma verdadeira fúria tupinambá, arrastando legiões

imensas de Ubatuba e São Sebastião contra Bertioga e as pequenas fortificações

existentes [...] em conseqüência da fúria tamoia despenhada sobre a região, pela altura

10 CARVALHO, Silvia Maria S de. Jurupari: Estudos de Mitologia Brasileira. São Paulo: Ática, 1979.11 RIBEIRO, Bento G. O Índio na história do Brasil. São Paulo: Global, 1986.12 MAESTRI, Mario. Terra do Brasil: A Conquista Lusitana e o Genocídio Tupinambá. São Paulo: Moderna, 1993.13 FERNANDES, Florestam. Organização Social dos Tupinambás. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1963.14 PREZIA, Benedito e Hoornaert Eduardo. Esta terra tinha dono. São Paulo: Cehila Popular CIMI FTD, 1944.

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de 1557, quase todos os sitiantes e povoadores de Bertioga e Ilha de Santo Amaro15

haviam desertado, receosos de um possível e breve ataque em massa, pelos terríveis

antropófagos...”16

C omo é f ac i lm en te obs e rváve l , a a f i rmação de que e s t a ou

aque l a t r i bo t e r i a e s t e ou aque l e l im i t e t e r r i t o r i a l s e ap r e s en t a

como mu i to comp lexa , bem como a a f i rmação de qua i s t r i bos e r am

cons ide r adas t apu i a s , t amo ios ou t up inambás . Logo , e s t e t r aba lho

não se p ropõe a um ap ro fundamen to da ques t ão , pos to que a

mo t ivação do p róp r io não é a ques t ão da t e r r i t o r i a l i d ade ou da

c l a s s i f i c ação de g rupos i nd ígenas .

I s t o e s c l a r ec ido , o t e rmo tup inambá é empregado nes t a

monogra f i a pa r a de s igna r o con jun to da s t r i bos de s c r i t a s s ob e s t e

nome nos d ive r s o s t r e chos ac ima c i t ados . As s im , e s t ão

compreend idos ne s t a c a t ego r i a os g rupos t r i ba i s t up i , que na época

da co lon i zação do B ra s i l en t r a r am em con ta to com os b r ancos no

R io de J ane i ro , S ão P au lo e na B ah ia , e os g rupos t r i ba i s t up i que

depo i s povoa ram o M aranhão , P a r a íba e a I l ha dos Tup inambás .

Esta população que ocupava a região antes da chegada do homem branco foi

praticamente expulsa com o início da ocupação de Vicente de Carvalho por brancos,

negros e mestiços, sendo esses mestiços, oriundos predominantemente da mistura

indígena com os europeus, (em sua maioria portugueses), o grupo maior e mais

difundido na área, e conhecido vulgar e cientificamente como Caiçara.

A comunidade Caiçara segundo Antônio Carlos Diegues pode ser definida como...

“Aquelas comunidades formadas pela mescla étnico-cultural de indígenas, de

colonizadores portugueses e, em menor grau, de escravos africanos. Os caiçaras têm

uma forma de vida baseada em atividades agrícolas de agricultura itinerante, da

pequena pesca, do extrativismo vegetal e do artesanato. Essa cultura se desenvolveu

principalmente nas áreas costeiras dos atuais Estados do Rio de Janeiro, São Paulo,

Paraná e norte de Santa Catarina”.17

A mistura do elemento português com o índio deu origem a uma população

extremamente peculiar. Os cabelos escuros e bem lisos, e uma tez clara e tostada pelo 15 Nome da Ilha na qual se localiza a cidade de Guarujá, e seu distrito Vicente de Carvalho, ou Itapema.16 SANTOS, Francisco Martins dos. História de Santos. São Vicente: Caudex, 1937. V.1.17 DIEGUES, Antonio Carlos S. & Arruda, Rinaldo S. V. Saberes tradicionais e biodiversidade no Brasil. Brasília: Ministério do Meio Ambiente, 2001.

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Page 7: Analise socio-historica da comunidade caicara de Conceicaozinha - Guaruja Parte 2

sol, utilizando práticas artesanais de pesca e caça, bem como de plantio, confeccionando

eles próprios seus utensílios diários.18

Culturalmente essas comunidades assimilaram elementos dos vários grupos que as

formaram e estruturaram para si, manifestações culturais extremamente originais.

Autores como Antonio Carlos Diegues, afirmam que essas comunidades se

formaram entre os grandes ciclos econômicos do período colonial e que foram ficando

mais fortes na medida em que essas atividades voltadas para exportação entraram em

declínio, pois sua decadência “... incentivou as atividades de pesca e coleta em

ambientes aquáticos, sobretudo os de água salobra, como estuários e lagunas”.19

As sociedades formadas pelos caiçaras foram muito bem estruturadas, de forma

simples, porém extremamente usual e prática. As funções bem divididas entre homens,

mulheres, crianças e idosos, girando completamente em torno da pesca artesanal e da

agricultura de subsistência. Enquanto a agricultura fornece os diversos vegetais

utilizados na culinária, o pescado vai servir tanto para o consumo próprio como para o

escambo e pequenas vendas com o intuito da obtenção de produtos que não poderiam

ser facilmente plantados ou obtidos, como sal, feijão, açúcar, café, arroz, óleo,

querosene (para iluminação), fósforos, tecidos, e alguns outros materiais.20

Os homens pescam, produzem suas ferramentas, são responsáveis pela construção

de suas habitações, e por trabalhos mais pesados em seu entorno (construção

comunitária de uma ponte, abertura de uma picada, poda de uma área para cultivo). As

mulheres cuidam da casa, se preocupam com respeito à agricultura, e fazem coletas de

mariscos, caranguejos, siris, e peixes através de linhadas21, auxiliadas nisso pelas

crianças que fazem das atividades brincadeiras. Os idosos auxiliam tanto no preparo dos

instrumentos da pesca (quando são homens), quanto na casa e nos afazeres domésticos

(quando são mulheres).22

18 KARWINSK, Esther S. A. - Baronesa. O caiçara. Guarujá: Associação de Folclore e Artesanato, 1993.19 Idem nota 15. 20 DIEGUES, Antonio Carlos S. & Arruda, Rinaldo S. V. Saberes tradicionais e biodiversidade no Brasil. Brasília: Ministério do Meio Ambiente, 2001. KARWINSK, Esther S. A. - Baronesa. O caiçara. Guarujá: Associação de Folclore e Artesanato, 1993.21 Forma de pesca onde se utiliza apenas a linha amarrada a um anzol e um chumbo. Essa linha é enrolada em uma garrafa de vidro pequena, segura-se a ponta, girando por sobre a cabeça e arremessando com força, enquanto se segura com a outra mão a garrafa com o gargalo apontado para a direção em que a linha foi jogada até o anzol mergulhar na água. Antes do advento da garrafa de vidro era costume a confecção de um instrumento de madeira roliço, para que a linha deslizasse quando arremessada.22 KARWINSK, Esther S. A. - Baronesa. O caiçara. Guarujá: Associação de Folclore e Artesanato, 1993.Pesquisa de Campo.

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Page 8: Analise socio-historica da comunidade caicara de Conceicaozinha - Guaruja Parte 2

Diversas manifestações populares são características das comunidades caiçaras,

entre elas as quadrinhas (que tem acompanhamento de viola), pregões, cânticos

religiosos, o pasquim, adivinhas, mais de trinta tipos diferentes de fandango, a Folia de

Reis, e festas de padroeiras mais regionais.23

Até a década de 50 as comunidades caiçaras permaneceram praticamente

intocadas. Porém, com o advento da implementação de meios de transportes mais

avançados, rodovias, e mais particularmente, tratando-se da Baixada Santista, com o

desenvolvimento do Porto de Santos, a explosão industrial do Pólo Petroquímico de

Cubatão, e o boom imobiliário de fins da década de 60, essas populações, que viviam

em um ritmo de vida completamente próprio, viram-se às voltas com um crescimento

demográfico e de consumo que literalmente extinguiu algumas comunidades,

descaracterizou outras, e colocou todas em risco de extinção.

Os caiçaras que se estabeleceram em Conceiçãozinha, ainda em fins do século

XIX, (segundo o depoimento de moradores publicado no jornal A Tribuna, no dia 14 de

julho de 2002 “há indícios de ocupação da área desde 1898”24) tiveram em sua maior

parte a origem de outros grupos caiçaras, e curiosamente não são em sua maioria

nativos da região. Segundo Esther Karwinsky, “a influência do elemento português e

indígena é marcante; os sulinos, de origem portuguesa, oriundos do Estado do Paraná,

instalaram-se especialmente na Praia do Perequê, Santa Cruz dos Navegantes,

Conceiçãozinha, e Praia do Tombo”.25

A incidência da população negra no Sítio Conceiçãozinha deu-se na mesma

proporção que em outras áreas da ilha de Santo Amaro, “... podemos constatar, entre os

habitantes da Ilha de Santo Amaro, pequeno índice de população negra. O africano,

aqui trazido no século XIX por navios negreiros, não se fixou tradicionalmente na ilha:

muitos negros que lotaram as fazendas locais emigraram para o interior do Estado

após a abolição da escravatura. Não se tem notícia dos descendentes das levas que

aqui aportaram clandestinamente em princípios ou meados do século XIX...” 26. Ou

seja, a incidência da população negra tanto na comunidade quanto no Guarujá como um

todo não foi tão grande como em Santos, cidade notadamente com uma maior

população negra desde seu início, com uma densidade bem maior, e com um cunho

abolicionista considerável:23 Idem.24 Newton, morador da comunidade a cerca de 52 anos, liderança comunitária, teve seu pai nascido na comunidade em 1928.25 Ibidem26 Idem. Este idem é Newton ou a Baronesa

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“... Quis mesmo o destino que a Santos coubesse, por intermédio de um santista

ilustríssimo, a primeira prova pública de abolicionismo prático. José Bonifácio, em sua

chácara dos Outeirinhos, libertava os seus escravos logo ao principio de 1820 [...]

Durante a elaboração daquele monumento de fraternidade, de mentalidade e de

cultura, parece ter-se inspirado o 'Patriarca’ no exemplo vivo de sua própria terra

natal, pequena vila então, de 4700 habitantes, dos quais 2000 eram escravos e 2700

livres, e que sofria terrivelmente as conseqüências do mal combatido, pagando-o com a

apresentação, rigorosamente demográfica de 1400 mestiços, mulatos, cafuzos e

caribocas...”27.

Francisco Martins dos Santos no capitulo XXIII, entre as páginas 213 e 240, do

livro usado como referencia traça um panorama extremamente interessante sobre a

questão da população negra em Santos. Por intermédio do trecho citado é visível a

quantidade de mestiços e negros na cidade, e no desenrolar de sua analise, ele irá situar

a ilha de Santo Amaro somente como área de passagem de escravos fugidos de fazendas

paulistas, na região de Campinas, São Paulo, Vale do Rio Paraíba, de Santos e de

Ubatuba para os grandes quilombos de Jurubatuba e Jaguareguava, nos quais, segundo o

autor se agrupavam alguns milhares de negros. Francisco Martins afirma que alguns

certamente se fixaram na ilha, porém a grande maioria tomou o caminho dos

quilombos.28

O tempo , no S í t i o C once i çãoz inha , como em t an t a s ou t r a s

comun idades pa r ece have r pa r ado du ran t e quas e t r ê s s écu lo s ,

( i n i c io do s écu lo XV I I a t é f i n s do s écu lo X IX ) : vege t ação i n tocada ,

poucas f amí l i a s , que s e chegas s em a uma dezena s e r i a mu i to ,

p r edominan tem en te uma mi s tu r a de í nd io s , neg ros , po r tugues e s e

mes t i ço s da p róp r i a r eg i ão .

N a p r ime i r a me tade do s écu lo X X começa a p r ime i r a onda

mig ra tó r i a . Po r i n t e rméd io de depo imen to de morado re s : “ . . . há

i nd í c io s de ocupação da á r ea de s de 1898 . . .” 2 9 , nos é f o rnec ida uma

ba l i z a pa r a a f i rmarmos a ocupação e a con f igu ração do l oca l com o

nome a tua l S í t i o C once i çãoz inha , no mín imo , de s de o i n i c io do

s écu lo X X .

27 SANTOS, Francisco Martins dos. História de Santos. São Vicente: Caudex, 1937. V. 2.28 Idem. 29 Jornal “A Tribuna”, no dia 14 de julho de 2002.

9

Page 10: Analise socio-historica da comunidade caicara de Conceicaozinha - Guaruja Parte 2

Quan to a uma p rova documen ta l , t emos duas r epo r t agens em

jo rna i s da r eg i ão , que , s e não s ão con t emporâne as do i n i c io da

ocupação , t r a zem r e f e r enc i a s a i n s t a l ação da B as e A é rea de S an to s ,

e s egundo e l a s o nome S í t i o C once i çãoz inha j á se r i a u t i l i z ado pa r a

de s igna r a r eg i ão de s de 1920 :

- “O barr acão onde f i cou o mar co de f undação da Bas e

de Av iação N ava l do S í t i o C once i çãoz inha em 1922 –

(ar qu i vo J . Mún i z J r . )” . 3 0

- “ A idé ia da cons t r ução da Bas e Aér ea em Guar u já

su r g iu em 1920 com o pr o j e to do cap i tão - t enen t e

V i r g in iu s D e L am ar e , f am os o por s uas p r oez as aé r eas . . .

suger iu ao pr e s iden t e do Es tado , A l t i no Ar an te s que s e

cons t r u í s s e um a bas e no L i to r a l . . . C om um a p lan ta da

ár ea , um t e r r eno de 500 m de f r en t e por 2 .000 de

f undos , na r eg ião conhec ida com o S i to

C on ce i çãoz in h a , o cap i tão s egu iu par a o pa lác io do

Gover no . . . Em ou tubr o de 1922 , D e L am ar e r e to r nou a

I l ha de San to Am ar o acom panhado do p r e s iden t e do

Pa í s , Ep i tác io Pes s oa e de ou t r as pe rs ona l idades

po l í t i ca s da época par a o l ançam en to da pedr a

f undam en ta l da Bas e Aér ea e a cons t r ução do

‘Barr acão ’ , no S í t i o C once i çãoz inha . As obr as t i v e r am

in í c io na s em ana s egu in t e , com os p r im e i r o s e s tudos do

so lo . N o in í c io de 1923 , cons ta tou - s e que o s o lo do

S í t i o C once i çãoz inha e r a exce s s i vam en te pan tanos o . . .

Pr ocur ando ou t r a ár ea encon t r ou - s e a V i la Boca ina ,

dando in í c io á s obr as em 1925” . 3 1

En t r e t an to , o s documen tos ma i s an t i gos encon t r ados , que

comprovam a ex i s t ênc i a da comun idade s ão : uma ma té r i a no j o rna l

A Tr ibuna , do d i a 17 de j ane i ro de 1950 , na pág ina t r ê s , que t r á s o s

s egu in t e s d i ze r e s : “O Juven i l San to Am ar o pr e l i ou 3 2 dom ingo

pas s ado com o Juven i l C once i çãoz inha , r eg i s t r ando - s e do i s

30 Jornal “Cidade de Santos”, p. três, do dia 23 de outubro de 1979.31 Jornal “1a. Hora”, p. 4b na semana de 17 a 23 de Outubro de 2002. 32 Combate; como era chamado um jogo de futebol difícil na época.

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em pa te s , pe la con tagem de do i s a do i s em am bos os j ogos ” 3 3 ; e s em

dúv ida o ma i s impor t an t e documen to encon t r ado , que , não só vem

da r r es pa ldo aos depo imen tos dos morado re s ma i s an t i gos , como

vem l ança r uma dúv ida na p robab i l i dad e da comun idade t e r s omen te

ce r ca de um s écu lo , é uma no t a no j o rna l C idade de S an to s , do d i a

31 de março de 1900 , 3 4 cu jo con t eúdo é o s egu in t e : “ Fo i

encon t r ado nas p r ox im idades de C once i çãoz inha o cor po do m en ino

João C ou to que s e a fogar a no d ia 26 , pe r to do I t apem a” .

Es te documen to , a t é ago ra o ma i s an t i go , t r á s a dúv ida de que

t a lvez an t e s mes mo de 1898 , como a t e s t am os morado re s , houvess e

j á a lguns morado re s na á r ea .

En t r e t an to como comprovação documen ta l do i n i c io da

ocupação po r morado re s na á r ea , t endo j á con f igu rado o nome a tua l

t emos s omen te e s s e r eco r t e do j o rna l C idade de S an to s , de 1900 .

Aos elementos caiçaras dessa primeira onda migratória (a mais longa e com menor

quantidade de migrantes), foram se juntar, nas décadas de 50, 60, 70 e 80,

principalmente, grupos oriundos dos mais diversos estados do norte e nordeste

brasileiro, e no caso especifico do Guarujá, encontramos uma predominância de

migrantes vindos da Bahia, Paraíba e Sergipe, e em um recorte mais especifico ainda no

Sítio Conceiçãozinha, a maior incidência seria de Baianos e Paraibanos.35

O Nome

O nome do bairro Sítio Conceiçãozinha tem uma história que, com certeza deve ter

muitas similaridades com diversos outros bairros. É sobre a sua origem de ordem

religiosa. Porém muito mais producente seria a explicação da origem do nome pelas

palavras de um dos mais antigos moradores vivos:

“ En tão , C once i çãoz inha , a gen t e t em conhec im en to , por par t e

dos nos s os avós , do pe s s oa l m a i s an t igo , f o i denom inado pe lo s

j eu í t a s , quando os j e s u í t a s v i e r am pr o s i t i o C once i çãoz inha .

Segundo nos s os avós , o s ca i çar as m a i s an t igos , o s j e s u í t a s se

33 Arquivo da Hemeroteca de Santos.34 Arquivo do Estado de São Paulo.35 Pesquisa de campo realizada entre os dias 18/05/01 e 14/09/02.

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i n s ta la r am na C once i çãoz inha por vo l t a de 1898 , en tão , ne s s a

época , a C once i çãoz inha , s egundo o s nos s os avós e r a com a

de t e r m inação do segu in t e : t odos o s l oca i s que o s j e s u í t a s i am pr a

f undar um a loca l idade , o s j e s u í t a s co locavam C once i ção d i s s o ,

C once i ção daqu i lo , por exem p lo , I t anhaém , né? I t anhaém e r a

cham ado do que? C once i ção de I t anhaém , conce i ção de Per u íbe , e

as s im por d ian t e , C once i çãoz inha por s e r um loca l ma i s pequeno ,

né? Menor de um a m enor f a i xa e C once i ção por caus a da

C once i ção Im acu lada de L our des ou de Fá t im a , que e r a a

padr oe i r a do povo , né? N a época dos i nd ígenas , en tão C once i ção

de I t anhaém , j u s tam en te C once i ção Im acu lada , e l e s quer iam l i gar

o s egu in t e , com a C once i ção , com o C r i s t i an i s m o , com a C once i ção

Im acu lada de L our des , ou C once i ção Im acu lada de Fá t im a , en tão

l i gava a C once i çãoz inha p r o s e r um a r eg ião m a i s pequena , i s s o na

época dos j e s u í t a s , e f i cou C once i çãoz inha a t é ho j e , f i cou

C once i çãoz inha , em todo o l ugar que f o r s e conhece por

C once i çãoz inha , m as a denom inação poucas pe ss oas s abem , nós

sabem os a inda por que t i nha noss os avós ” . 3 6

C omo nos r e l a to s de ou t ro s morado re s é f ac i lmen te pe r cep t íve l

a impor t ânc i a dada à o r a l i dade , ao s conhec imen tos pa s s ados de

ge r ação a ge r ação , ou s e j a um conhec imen to h i s tó r i co cons t ru ído

com bas e na t r ad i ção o r a l , t í p i co da s comun idades i nd ígenas , o que

nos pe rmi t e a f i rmar a pe rmanênc i a de uma soc i ab i l i dade

comun i t á r i a ne ss e ba i r ro . C ons c i en t e ou i ncons c i en t emen t e , a

h i s tó r i a o r a l r ep r e s en t a r ea lmen te um impor t an t e f a to r de

r e s i s t ênc i a , de au to - a f i rmação enquan to comun idade .

Os conhec imen tos r e l a t ados po r pa r en t e s ma i s an t i gos s ão

anexados a h i s tó r i a da comun idade . C on tados pa r a ou t ro s

morado re s s ão f i xados como pa r t e da h i s tó r i a cons t ru ída po r e l e s ,

não neces s i t ando s e r r e a lmen te ve rdade pa r a aque l e s que de fo r a

ve j am a comun idade , con t an to que s e j a po r e l e s , enquan to g rupo ,

a s s imi l ado como ve rdade . 3 7

36 Idem nota 23.37 O embasamento teórico para essas afirmações pode ser encontrado em: Walter BENJAMIN, “O narrador” Obras Escolhidas. Magia, e técnica, arte e política. São Paulo. Brasiliense, 1993; Alessandro

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PORTELLI, “Sonhos, ucronias”,... Projeto História 15; Regina GUIMARÃES NETO, “Artes da memória”, Revista de Historia da Universidade Federal de Uberlândia.

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