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1 Alberto da Silva Jones O MITO DA LEGALIDADE DO LATIFÚNDIO Legalidade e Grilagem no Processo de Ocupação das Terras Brasileiras (Do Instituto de Semarias ao Estatuto da Terra) SÃO PAULO 2003

Alberto da Silva Jones - fundaj.gov.br · CAPÍTULO 2 CRISE DO SISTEMA SESMARIAL E REESTRUTURAÇÃO DAS RELAÇÕES DE P ... 3.2.3.7. Doação de Terras Públicas 3.2.3.8. Usucapião

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Alberto da Silva Jones

O MITO DA LEGALIDADE DO LATIFÚNDIO

Legalidade e Grilagem no Processo de Ocupação das Terras Brasileiras

(Do Instituto de Semarias ao Estatuto da Terra)

SÃO PAULO 2003

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INDICE

INTRODUÇÃO CAPÍTULO 1 A POLÍTICA FUNDIÁRIA COLONIAL : O INSTITUTO DAS SESMARIAS 1. Considerações Gerais 2. Sistema Sesmarial e Formação da Propriedade Rural na Colônia 3. Considerações Finais CAPÍTULO 2 CRISE DO SISTEMA SESMARIAL E REESTRUTURAÇÃO DAS RELAÇÕES DE PROPRIEDADE

1. Contexto e Conjuntura da Crise 2. O Império das Posses 3. A Lei de Terras: Legitimação dos Privilégios 3.1. Considerações Básicas 3.2. A Questão da Propriedade Territorial 3.2.1. As Terras Devolutas 3.2.2. As Sesmarias Legalizadas 3.2.3. As Sesmarias Caídas em Comisso 3.2.4. A Legitimação das Posses 4 . Colonização e Imigração Estrangeira 4.1. Colonização Sistemática : O Projeto de Wakefield 4.2. Colonização Dirigida : O Projeto do Latifúndio 5. Considerações Finais : Heranças da Política de Terras do Império CAPÍTULO 3 LEGISLAÇÃO FUNDIÁRIA E LUTA PELA TERRA NA REPÚBLICA: (1889-1964) 1. Considerações Preliminares 2. Legislação e Propriedade Territorial: Legitimação de Privilégios 3. Constituição de 1891: União, Estados e Legitimação da Propriedade 4. Legislação Federal e Terras Devolutas (dos Estados?) CAPÍTULO 4 A POLÍTICA FUNDIÁRIA DO REGIME MILITAR : 1964 - 1984 1. Antecedentes Mediatos da Conspiração Militar e Questão Agrária 2. Mensagem no 33 : O Diagnóstico Militar da Questão Agrária 3. Instrumentalização Jurídica e Política Fundiária de Governo 3.1. O Estatuto da Terra e Legislações Anteriores 3.2. O Estatuto da Terra e a Política Fundiária 3.2.1 Execução da Política Fundiária: "Intenção e Gesto" 3.2.2. Instrumentos de Ação Fundiária 3.2.2.1. Discriminação de Terras Públicas 3.2.2.2 Arrecadação de Terras Devolutas

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3.2.2.3. Desapropriação de Imóveis Rurais 3.2.2.4. Aquisição de Imóveis Rurais e PROTERRA 3.2.2.5. Colonização 3.2.3. Titulação de Terras Públicas: Alienação e Privilégios 3.2.3.1. Legitimação de Posses 3.2.3.2 .Alienação com Dispensa de Licitação 3.2.3.3. Concessão com Dispensa de Licitação 3.2.3.4. Alienação em Concorrência Pública: Licitação 3.2.3.5. Alienação com Licitação e Direito de Preferência 3.2.3.6. Concessões Especiais 3.2.3.7. Doação de Terras Públicas 3.2.3.8. Usucapião Especial CAPÍTULO 5 POLÍTICA FUNDIÁRIA DO REGIME MILITAR: RECONCENTRAÇÃO E PRIVILÉGIOS

1. Considerações Preliminares 2. Alienação e Apropriação de Terras Novas 3. Reconcentração Fundiária e População : Uma face da Excludência 4. Destinação e Utilização das Terras: Caráter Parasitário da Privatização CONCLUSÕES BIBLIOGRAFIA

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PREFÁCIO

Sedi Hirano

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AGRADECIMENTOS

Agradecer é realçar afetos. Atos solidários de amigos: de amor. De ajuda e de companheirismo. Na verdade, a presença no momento da aflição ou do contentamento. Por tudo isso, quero reconhecer a ajuda e a amizade que nunca me faltaram. E sobretudo, o incentivo e o apoio, sem os quais jamais seria possível realizar este trabalho.

Agradeço, por tudo isso: À Maria Arminda do Nascimento Arruda, que acreditou na possibilidade deste trabalho

e que, com a sua amizade e apoio, tornou esta possibilidade em realidade. A sua ajuda, lendo e analisando os primeiros rascunhos, incentivou-me e, mais que isto, deu-me motivação para desenvolvê-los. Sem a sua solidariedade, jamais poderia escrever a presente Tese.

À Sedi Hirano, que aceitando orientar-me, ajudou-me, entusiasticamente, a caminhar, caminhando comigo: como o amigo, ajudando-me nas dificuldades; como mestre, ensinando-me que caminhar pode ser penoso, mas, que é gratificante. Além da amizade de sua família, que fizeram de minha estadia em São Paulo um momento de muita satisfação e alegria.

À José César Gnaccarini que, na hora mais difícil, no abismo prenunciado, foi luz e foi ponte: iluminando e indicando caminhos novos e seguros. Que lendo os meus rascunhos, deu-me motivação para transformá-los num trabalho decente e sério. Modesto, mas produto de um esforço construtivo e esperançoso. Devo muito a seu incentivo, e apoio. Sobretudo a sua amizade e carinho, construídos na caminhada, desde o momento crítico, do Exame de Qualificação, e que nunca me faltaram, especialmente, nos momentos de que mais os necessitava.

Ao professor Gildo Marçal, pelas críticas que se tornaram efetivas contribuições, vindas no bojo do Exame de Qualificação, e que me ajudaram a escolher com mais objetividade o caminho a trilhar na pesquisa.

Ao professor Francisco de Oliveira, com quem aprendi muito. Sobretudo com o seu entusiasmo para debater e com a sua humildade para ensinar, como poucas vezes se pode testemunhar. “Chico”- permita-me o tratamento afetuoso - foi para mim um exemplo de esperança e de trabalho.

Ao professor José de Souza Martins e aos colegas e amigos do Curso sobre a obra de Henri Lefebvre, com os quais tive a alegria de experimentar a poesia da vida, da esperança e da necessidade de construir um mundo melhor, mais belo: representativo da beleza necessária.

À Socorro Gomes, deputada do povo do Pará, amiga dos posseiros e dos sem terra de todo o Brasil, que luta no Congresso e no campo, contra a “grilagem especializada”, a apropriação privilegiada e a vergonhosa ilegitimidade, que sempre foram as gêmeas prediletas do latifúndio especulativo e parasitário neste País. Devo agradecer a ela e aos seus

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companheiros de trabalho que me apoiaram efetivamente, remetendo-me vasta documentação do Parlamento, sem a qual, dificilmente eu poderia ter realizado as análises que sustentam este estudo.

A Carlos Lorena, saudoso amigo, que, em 1986, foi o meu primeiro grande incentivador para que estudasse as ilegitimidades inerentes aos imóveis rurais, quando então, ocupava o Cargo de Diretor de Cadastro do INCRA. Lorena foi, para mim, um grande exemplo de luta e de trabalho.

A Maurinho Luiz dos Santos, amigo e colega do Departamento de Economia Rural da Universidade Federal de Viçosa, que sempre me incentivou com imenso entusiasmo e, desta forma, tornou possível a superação dos momentos de desânimo e, quiçá, de desespero, por que passam todos os estudantes, ao realizar suas pesquisas. Também ao colega Fernando Antônio Silveira da Rocha, que sempre me incentivou e efetivamente, apoiou-me na realização do Curso na USP.

A colega e amiga Valéria Aroeira Braga, que foi uma grande incentivadora desta pesquisa. Que me colocou à disposição todos os seus livros de Direito Agrário e, desta forma, ajudou-me objetivamente, a executar este trabalho.

Aos colegas Francisco Armando da Costa e Wilson da Cruz Vieira, do DER/UFV, que sempre me incentivaram, inclusive resolvendo problemas, diante das minhas dificuldades em lidar com a construção de gráficos pelo computador. Foi um apoio relevante, e que me liberou de imensas horas que certamente eu perderia tentado fazer a “arte final” desses materiais.

Gostaria de registrar um agradecimento especial à Folha de São Paulo, que, ao se mostrar interessada pelo estudo que eu estava fazendo, inclusive comentando comigo e publicando um breve artigo sobre o tema, deu-me esperança de que o mesmo não fosse, apenas, um exercício acadêmico, mas que, de fato, pudesse vir a se constituir em uma contribuição para o debate e, quem sabe, para a busca de novos caminhos para se combater a grilagem especializada, a ilegitimidade e a usura da terra, que têm destruído o sonho e a vida de tantas pessoas e entravado as possibilidade de desenvolvimento independente e sustentado da economia e da sociedade brasileiras. Além de me fazer voltar a acreditar no papel crítico e combativo da imprensa independente.

Um agradecimento especial à Tedinha e ao “Russo”, do Departamento de Economia Rural, sempre solidários comigo em todos os momentos; a Sônia e Isabel, da Secretaria de Pós-Graduação em Sociologia da USP, pelo apoio constante, mas, sobretudo pela solidariedade, simpatia e amizade. Sem a sua ajuda preciosa seria dificílimo fazer este trabalho.

Devo, igualmente, agradecer a tantas outras pessoas, que seria impossível registrar aqui. Por outro lado, também é preciso reconhecer o apoio de pessoas que, embora não

ligadas diretamente aos esforços de elaboração da tese, foram de preciosa solidariedade, trazendo amizade, carinho e alegria, ingredientes fundamentais à vida e ao trabalho.

Assim foi a minha família. Meus irmãos, minha esposa, Patrícia, e meus filhos, Caio e Carlos. Agradecer a esposa é quase um ato impossível. Assim, prefiro lembrar o seu apoio carinhoso, dedicado, de afeto e solidariedade. Aquele calor de todos os momentos que aquece e ilumina, que aconchega e constrói. Espiritual, muito mais que simplesmente material. Mas foi, igualmente, a labuta conjunta, em muitas noites de trabalho, discutindo as idéias, debatendo os textos: juntos, sempre juntos na vigília do árduo trabalho de construir uma tese a partir de documentos, dados, literaturas... hipóteses... Ato impossível, sim, porque a solidariedade é incomensurável, é puro sentimento. É unidade. Esta tese é também dela.

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Assim, também foram outros amigos preciosos, como Carlinhos Marighella, Gey Espinheira, Adna Aguiar, José Guilherme da Motta, Edgard de Vasconcelos Barros, Eliel Judson Pinheiro, Ricardo Albinati e o meu colega de curso, Antônio César e sua família, que nunca faltaram com sua amizade e carinho em todo o nosso árduo percurso.

Finalmente, desejo agradecer a Universidade Federal de Viçosa, especialmente aos meus colegas do Departamento de Economia Rural, indistintamente, pelo apoio que nunca me negaram. À CAPES, pela Bolsa de Estudos e, muito em particular à Universidade de São Paulo, a USP, pela oportunidade que me ofereceu para participar de um excelente Curso de Pós-Graduação, que, independentemente de qualquer outra referência, deu-me a oportunidade única de conviver em um ambiente acadêmico crítico, profundo, criativo, e sobretudo, de seriedade. Qualidades que têm sido raras de se encontrar.

A todos, indistintamente, agradeço com um beijo e um aceno.

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RESUMO

Partindo do fato de que as terras brasileiras são originalmente públicas, buscou-se nesta pesquisa, a análise objetiva do processo de formação da propriedade da terra no Brasil: um processo, de fato, de privatização, de transferência, para o domínio privado, de um patrimônio territorial que nasceu público.

Deu-se ênfase particular a análise da Política Fundiária desenvolvida no período do Regime Militar, que se estendeu de 1964 a 1984. Por um imperativo metodológico e de análise, foi realizado um estudo sistemático das características e das conjunturas fundamentais em que este processo de transferência das terras públicas para o domínio particular foi realizado em outros distintos períodos da história agrária brasileira. Este procedimento teve o objetivo, apenas, de permitir a análise comparativa do processo de privatização das terras no País, tal como ocorrido em distintos períodos.

Ficou evidenciado, pela análise - das legislações, atos administrativos, projetos e outros documentos e dados, assim como da literatura especializada - que, desde as suas origens mais remotas, no instituto sesmarial, o processo de transferência das terras para a iniciativa de particulares, no Brasil - necessário e inevitável, à sua incorporação ao processo de produção e reprodução econômico-social - sempre se fundou no privilégio, quanto à alienação ou concessão, e na ilegalidade, quanto a sua configuração jurídica e formal. Portanto, torna-se legítima a hipótese de que não se efetivou, juridicamente, a transferência de domínio sobre estas terras para a propriedade particular. É neste sentido específico que se pode afirmar que elas permaneceram públicas.

Neste contexto, a análise comparativa dos diversos períodos, não deixou dúvidas que, apesar das formas e conjunturas diferentes que assumiu, sempre persistiu, neste processo, uma característica fundamental: a privatização privilegiada e juridicamente questionável. Esta foi a hipótese de trabalho desenvolvida, e que ficou amplamente evidenciada neste estudo.

Neste contexto, a Política Fundiária posta em prática pelos Governos Militares, fundada no Estatuto da Terra, aliás, informado este, politicamente, pela Mensagem 33, do General Castelo Branco, significou a continuação, sob novas formas e em uma nova conjuntura - tanto interna quanto internacional - das mesmas condições de privatização e legitimação privilegiadas e juridicamente questionáveis.

Mais do que isto. A análise da legislação, dos atos administrativos e dos projetos de desenvolvimento rural e outros, postos em prática neste período, demonstraram, de forma veemente, de que é exatamente nele, que o processo de privatização privilegiada e juridicamente questionável, assume a sua forma mais acabada de grilagem especializada. Na qual o próprio privilégio e ilegalidade são incorporados ao ordenamento jurídico e administrativo e assumem, enfim, o “estatuto de lei”.

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Assim, em conclusão, ficou evidenciado que a Política Fundiária implementada pelos Governos Militares representou, efetivamente, a consagração destes “antigos” métodos de alienação privilegiada e legitimação questionável, que vinham persistindo no Brasil desde o instituto sesmarial. Que isto significa, por um lado, que foi ampliada, em escala nunca antes registrada na história agrária do País, a excludência social e a expulsão ilegal e ilegítima, de pequenos produtores, posseiros e indígenas, sobretudo fundadas no fato de que a maioria destes, como sempre foi comum no ordenamento agro-fundiário brasileiro, não dispunham da titulação legal das terras que possuíam ou ocupavam - embora detivessem, legitimamente, o direito real de posse sobre estas.

Este direito é que foi, ilegalmente, esbulhado pelos verdadeiros processos de grilagem especializada, praticados, inclusive, diretamente pelo próprio “Poder Público”.

Como em nenhum outro momento do passado histórico, desde o período colonial, a legitimação das terras possuídas efetivou-se de forma relevante; e como os atos praticados pelas autoridades fundiárias, durante o período do regime militar, foram, e continuam sendo, juridicamente questionáveis - por ferirem preceitos constitucionais e princípios elementares do Direito Administrativo, que afirma que a nenhum servidor público é permitido praticar qualquer ato que não os expressamente delimitados em Lei - pode-se concluir que as terras brasileiras continuam, em sua maior ou mais relevante parte, públicas.

São “propriedades”, juridicamente, questionáveis.

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INTRODUÇÃO

No Brasil, onde as terras são, originalmente, públicas, a sua incorporação ao processo de produção social não prescindiu da transferência do seu domínio para a iniciativa privada. Assim, uma dimensão relevante para a análise da estrutura agrária brasileira, refere-se à institucionalização do processo de reconhecimento e legitimação da propriedade privada territorial rural pelo Estado. Trata-se de um processo, de fato, de privatização das terras públicas: de transferência, para a esfera privada, do domínio sobre um território que nasceu público. Este é exatamente o caso do Brasil que está sendo estudado neste trabalho.

Como afirma Hely Lopes Meirelles: “No Brasil todas as terras foram, originalmente públicas, por pertencerem à nação portuguesa, por direito de conquista. Depois passaram ao Império e à República, sempre como domínio do Estado. A transferência das terras públicas para os particulares se deu paulatinamente, por meio de concessões de sesmarias e de datas (instituto sesmarial), compra e venda, permuta e legitimação de posses (Lei 601). Daí a regra de que toda terra sem título de propriedade particular é de domínio público.1”

Apenas cabe acrescentar, que a exigência legal, refere-se ao título legítimo, portanto, não a qualquer título. Este problema, que é central a este estudo, é tratado de forma objetiva nos diversos capítulos, que se ocupam de momentos diferentes da Política Fundiária implementada no Brasil.

Neste contexto, a análise da dimensão jurídico-política assume uma relevância específica. A importância e eficácia concretas da dimensão jurídica, política e ideológica é enfatizada, neste trabalho, por se entender que essa dimensão, geralmente conceituada como "superestrutural", não pode ser reduzida à condição de mero "reflexo" da "base econômica", sem influência efetiva sobre as condições de sociabilidade. Muito pelo contrário. O debate acerca da problemática da "determinação em última instância" não caberia neste trabalho. Por isto, apenas se procura aqui definir claramente a posição teórica que será adotada. Concorda-se, neste contexto, com a seguinte perspectiva, defendida por Sedi Hirano:

1 MEIRELLES, 1971, p. 447. Grifos nossos.

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"em suma, o que afirmamos reiteradamente é que as estruturas ideológicas e jurídico-políticas não podem ser desqualificadas na análise da constituição da formação social(... ).2 "

É nesse sentido que é analisado, neste trabalho, o problema específico das políticas fundiárias propostas e postas em prática no Brasil: Enquanto respostas específicas aos problemas agrários objetivos, gestados em distintas conjunturas, desde o seu descobrimento. No sentido, portanto, de que formam uma totalidade dinâmica, em movimento, cujas múltiplas articulações e determinações, antes de serem, apenas, subsumidas, necessitam ser esclarecidas. Analisadas.

Busca-se esclarecer os instrumentos e mecanismos, sobretudo jurídicos e institucionais, através dos quais o Estado procurou regular e imprimir sua marca aos processos concretos de ocupação e exploração do território brasileiro. Trata-se, portanto, de um amplo e complexo processo de privatização territorial, cujas especificidades necessitam ser investigadas objetivamente.

Este processo de privatização de terras, necessariamente mediado por iniciativas do Estado - no campo jurídico, administrativo econômico, etc. - assumiu características distintas e implicou situações diversas, conforme os diferentes momentos e conjunturas históricas, econômicas, sociais, políticas, jurídicas e culturais, entre outras igualmente relevantes, vividas ou enfrentadas pelo Brasil, desde as suas origens coloniais. E neste sentido, que a análise do processo de alienação de terras públicas e de sua legitimação, poderá se constituir numa contribuição relevante ao estudo da questão agrária brasileira. Esta é a contribuição que se espera oferecer com o presente trabalho.

Atualmente, quando mais uma vez, a necessidade de realização da reforma agrária é colocada na ordem do dia, o problema da propriedade privada rural, no Brasil, é reposto de forma contundente.

Em primeiro lugar, porque o pressuposto fundamental, reiteradamente colocado pelas autoridades do Estado, como restritivo à realização da reforma agrária, refere-se aos “custos elevados” implicados nos processos de desapropriação. Desapropriação esta, assumida, aprioristicamente, como sua condição necessária, fundamental, inevitável.

Em segundo lugar, porque a resistência oposta ao processo de reforma agrária, por grupos autodenominados de “ruralistas”, fortemente organizados e ativos politicamente, tem levado o Estado e, às vezes, a opinião pública, à aceitação do falso pressuposto de que a maioria, senão, todas as terras ocupadas no País, são, efetivamente, propriedades privadas legítimas. Neste caso, representando, a reforma agrária, antes de mais nada, um grave atentado à propriedade privada, que é um dos pilares da ordem econômica nacional, assegurado pela Constituição Federal.

Este estudo, que realiza uma ampla e cuidadosa revisão e análise dos processos de alienação, apossamento e legitimação das terras públicas no Brasil, recuando aos primórdios do seu descobrimento e avançando até a aprovação do Estatuto da Terra, em novembro de 1964, e sua implementação pelos Governos Militares, questiona, com veemência, estes dois pressupostos.

Para consubstanciar este questionamento, fundamenta-se, por um lado, no levantamento e análise objetivos das principais legislações contidas nos ordenamentos

2 HIRANO, 1988, p.47.

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jurídico e fundiário brasileiros, (e portugueses, referentes ao período Colonial) vigentes em diferentes momentos da história agrária do país, e através dos quais, o Estado regulamentou e conduziu o referido processo de privatização territorial. Por outro lado, analisa-se, da mesma forma, o processo concreto de apossamento e ocupação das terras públicas e as respectivas iniciativas do Estado, para efetivar o seu reconhecimento legal. Estas análises são complementadas pelo estudo de determinadas estatísticas referentes à distribuição da propriedade, da utilização das terras apropriadas e dos movimentos demográficos, especificamente em relação ao período do Regime Militar.

Com base nestas análises, argumenta-se, nesta pesquisa, e contrariamente aos pressupostos citados acima, no sentido de que a alienação das terras públicas brasileiras, tanto através das concessões, inicialmente postas em prática pela Coroa Portuguesa, quanto pelas demais formas de apropriação e legitimação de posses, que se lhes seguiram, fundaram-se, de modo relevante, no privilégio, quanto à alienação; e na ilegalidade, quanto aos registros. Trata-se, por conseguinte, neste sentido específico, de construir e de defender a hipótese de que são processos de apropriação e legitimação privilegiadas.

Por outro lado, os processos de legalização e registros dos imóveis rurais em poder de particulares - sobretudo no que se refere à grandes áreas -, na medida em que, na maioria absoluta dos casos, se furtaram ao cumprimento das formalidades legalmente sancionadas - especialmente, desde a Lei de Terras de 1850 - são juridicamente questionáveis.

Estas posições e hipóteses, tais como defendidas neste trabalho têm, de imediato, pelo menos, duas implicações importantes:

A primeira refere-se ao fato de que os alegados custos com “desapropriação” para fins de reforma agrária, são ampla e objetivamente questionáveis. Poderão estar, com certeza, infinitamente abaixo das estimativas do Governo, se este levar em consideração que boa parte das terras ocupadas privadamente no País, continuam públicas, logo não implicando, necessariamente, custos com indenização territorial. Quando muito, poderão implicar, apenas - se estas posses gozarem do benefício da “boa-fé” e forem efetivamente exploradas - a indenização de possíveis benfeitorias úteis, e necessárias. E nos casos das posses mansas e pacíficas, exploradas diretamente pelas famílias que nelas residem, nos termos da legislação em vigor, cabe ao Estado legitimá-las, fornecendo os respectivos títulos de propriedade. Neste caso, a legitimação destas posses seria parte relevante do próprio processo de reforma agrária que se pleiteia. Entretanto, como será visto nos diversos capítulos deste trabalho, especialmente nos capítulos 4 e 5 que se ocupam da análise da Política Fundiária implementada pelos Governos Militares, exatamente estes casos foram, contraditoriamente, penalizados, o que dificultou, ainda mais, qualquer alternativa ao desenvolvimento de uma reforma agrária efetiva no País.

No caso contrário, nem isto. Porque ao Executivo não cabe indenizar à terceiros por terras devolutas, que, “ipso facto”, pertencem ao Estado, sendo, ao contrário, dever de ofício do Poder Público, promover as respectivas ações discriminatórias para dirimir estas dúvidas, antes de qualquer iniciativa no âmbito indenizatório.

Desta forma, os “custos de desapropriação para fins de Reforma Agrária” poderão, de fato, ser infinitamente inferiores aos que são estimados e, portanto, a possibilidade de execução da Reforma poderá ser amplamente viável e possível, ao

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contrário do que tem sido argüido pelos seus executores ou opositores. Porque, não se trata, no caso, nem sequer de se argüir as formas de pagamento das indenizações, mas, se elas são efetivamente devidas. No caso em que forem devidas, caberão as indenizações, que devem ser pagas na forma legalmente estabelecida.

A segunda implicação que pode ser retirada das análises realizadas nesta pesquisa, refere-se ao fato de que a legalidade das propriedades rurais, sobretudo quando se referem à grandes áreas - independentemente de serem ou não produtivas - é, juridicamente, questionável. Este fato, que será evidenciado neste estudo de forma efetiva e exaustiva, reforça a asserção anterior.

Como registra Hely Lopes Meirelles3, entre outros juristas e estudiosos da questão fundiária consultados na realização deste trabalho, as terras brasileiras são, originalmente, públicas. Sendo assim, uma dimensão relevante no estudo da questão agrária, que necessita ser contemplada de forma específica, refere-se ao problema da legitimidade dos processos de privatização das terras agrícolas do País. Trata-se, portanto, de analisar o problema jurídico e concreto da transferência, para particulares, do domínio sobre terras, cuja propriedade era, originalmente, pública. E das condições concretas em que esses processos foram implementados. Esta é a proposta de estudo desenvolvida nesta pesquisa.

A dimensão de legitimidade do processo de alienação das terras públicas é referida, neste estudo, em relação às formas institucionais específicas - jurídicas e concretas - através das quais o Estado, em diferentes momentos da história do país, consentiu, ou impediu, a aquisição ou o reconhecimento legal da ocupação particular, de terras do seu patrimônio, procurando regulamentá-las.

É preciso não perder de vista, entretanto, que o reconhecimento legal da propriedade privada rural, pelo Estado, envolve, necessariamente, processos sociais e de sociabilidade, que se materializam na inclusão, ou excludência, de determinadas camadas da população em relação à propriedade da terra. É neste nível que se situa, ou engendra-se, a apropriação e a legitimação privilegiadas.

Trata-se, portanto, de analisar as formas e meios jurídicos, institucionais e administrativos concretos, através dos quais, o Estado buscou, não apenas reconhecer e assegurar o acesso à propriedade da terra e sua respectiva legalização formal, para determinadas camadas sociais da população. Porque este processo significou, igualmente, a negação deste mesmo direito para um amplo conjunto da população que, desde os primeiros momentos da colonização e durante todo o processo de consolidação da ocupação territorial do País, havia-se alojado, com ou sem o consentimento do Estado, em pequenas posses, destinadas à agricultura de subsistência, utilizando-se do trabalho da própria família.

Foi desta forma, historicamente constituída, que, pela instituição de um conjunto de instrumentos administrativos e de procedimentos jurídicos, ou pela simples omissão do Estado diante da violência privada, praticada reiteradamente pelos grandes detentores de terras contra os pequenos posseiros e indígenas, que estes foram, paulatina, mas sistematicamente, transformados em “invasores” e “intrusos”, nas terras que secularmente ocupavam e nas quais sempre viveram e trabalharam. Até serem expulsos.

3 Op. cit.

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Por uma questão de necessidade metodológica e com o objetivo de facilitar o estudo comparativo destes processos, tais como implementados em diferentes momentos e conjunturas da história agrária do Brasil, privilegiou-se a análise da Política Fundiária posta em prática no período do Regime Militar (1964-1984).

Neste período a alienação de terras devolutas e a legitimação de toda a sorte de grandes ocupações ou posses, foram amplamente incentivadas e praticadas pelo Estado, com base na regulamentação estabelecida pelo Estatuto da Terra, de 1964, que, depois do Regulamento de 1854, referente à Lei 601 de 1850, foi a grande tentativa do Estado brasileiro de assumir a iniciativa do controle efetivo na condução da Política Fundiária do País, muito especialmente, no que se referia à alienação de terras devolutas e à legitimação de posses em domínio particular. Na verdade foi a segunda tentativa, após a Independência Nacional, de subordinar a alienação de terras devolutas ao processo mais amplo de desenvolvimento da economia nacional. A primeira foi em 1850.

E também, porque foi exatamente neste período, que o processo de privatização de terras públicas e de legitimação de grandes áreas de terras devolutas em poder de particulares, assumiu, do ponto de vista aqui defendido - de alienação e legitimação privilegiadas - sua dimensão de maior radicalidade, especialmente se comparado aos demais momentos da história fundiária brasileira.

O Estatuto da Terra foi, depois do fracasso na implementação da Política Fundiária do Império, tal como posta no Regulamento da Lei 601/1850, a primeira tentativa sistemática e legalmente constituída de regulamentar o processo de alienação de terras públicas e de legitimação das posses sobre estas. A Lei 4.504, de 30 de novembro de 1964, referia-se à regulamentação do imperativo Constitucional, de 1946, de permitir “a justa distribuição da propriedade com igual oportunidade para todos”. Entretanto, era muito mais do que isto. A aprovação do Estatuto da Terra, sobretudo se se tiver em consideração a conjuntura em que se materializou, significava colocar, juridicamente, nas mãos do Poder Executivo, a plena possibilidade de dispor de todas as terras devolutas do país, inclusive permitindo, pelo instituto da “desapropriação por necessidade social e para fins de reforma agrária” a intervenção do Estado na esfera das propriedades privadas legítimas e, em determinadas circunstâncias, nas terras devolutas dos Estados e Municípios.

Essas são as razões metodológicas e objetivas, que explicam a ênfase da análise neste período. Este procedimento foi fundamental para permitir o estudo comparativo do processo de alienação ou ocupação de terras públicas noutros períodos da história do Brasil, sem o qual seria improfícua qualquer avaliação. Desta forma, buscou-se ampliar as possibilidades de compreensão do processo e realçar suas respectivas especificidades. Também porque era necessário investigar se, em algum outro momento da história agrária brasileira, o processo de alienação e legitimação de terras públicas, foi efetiva e legalmente realizado de forma relevante. A análise feita nos diversos capítulos evidenciaram que a resposta a esta pergunta é negativa.

Considerando-se, que desde os primeiros momentos do processo de colonização, o Estado Português sempre teve o cuidado de apenas ceder a "posse útil" e não o domínio sobre as terras agrícolas, a formação da propriedade privada territorial rural no Brasil, sempre esteve marcada pela problemática do privilégio, em sua concessão, e da ilegalidade, em sua confirmação ou titulação. Ou seja, o processo de legitimação da propriedade privada territorial, que só assume a forma moderna de propriedade absoluta

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da terra (propriedade burguesa) a partir da promulgação da Lei 601 de 1850, sempre esteve eivado de impedimentos políticos e, sobretudo jurídicos e burocráticos. Como Registra oportunamente Costa Porto,

"(...)talvez a linguagem das cartas dos donatários por esta concepção de que el-Rei cedera direitos dominiais sobre o solo, quando, na verdade, se limitara a outorgar 'poderes políticos', largos, sim, 'direitos majestáticos quase absolutos' mas de nenhum modo, direitos sobre o solo.4"

Tratavam-se das concessões de posse com cláusulas de resolubilidade, ou seja, que a qualquer momento poderiam ser revertidas ao domínio da Coroa. Raymundo Faoro registra magistralmente o sentido profundo, político e econômico desse instituto jurídico:

"Os forais - a carta foral - , pacto entre o rei e o povo, asseguravam o predomínio do soberano, o predomínio já em caminho para o absolutismo, ao estipularem que a terra não teria outro senhor senão o rei.5"

Não se tratavam, portanto de propriedades privadas no sentido liberal, de propriedade absoluta, perspectiva esta, que seria aberta, apenas, com a aprovação da Lei de Terras. Donde a sua relevância para a análise dessa problemática.

Esses impedimentos ao processo de reconhecimento real (confirmação de sesmarias) e, posteriormente, de reconhecimento legal (legalização ou revalidação, nos termos da Lei 601 de 1850, sobretudo), em última análise, apenas serão ultrapassados em circunstâncias muito especiais e por determinados grupos muito particulares: geralmente os mais próximos (social, política ou economicamente) aos círculos do poder6. Esta situação sempre facilitou, historicamente, a ação destes grupos em detrimento da maioria da população rural. Neste sentido - e esta é uma das particularidades que se pretende evidenciar neste estudo - e mesmo tendo em estrita consideração o conceito de "Estado de Direito", no qual o processo de legitimação da propriedade territorial não prescinde do atendimento das formalidades legais e de requisitos juridicamente instituídos, tem-se, forçosamente que se concluir, que a propriedade fundiária, no Brasil, sempre se construiu, historicamente, como propriedade não-absolutizada (até 1850) e, na melhor das hipóteses, de legitimação privilegiada, desde sempre.

É neste sentido que aqui se entende que a propriedade fundiária no Brasil, do ponto de vista do Direito, mas, também da praxis social, sempre esteve eivada de privilégio e da ilegitimidade. Assim, tratam-se, ainda hoje, de propriedades juridicamente questionáveis

Pode-se afirmar que as Políticas Fundiárias postas em prática no Brasil, por um lado, e o processo de avanço indiscriminado e extra-legal, das posses, por outro, geraram uma espécie de "estado hobbesiano" ao nível da prática, fenômeno este,

4 COSTA PORTO (S.d., p. 21). Grifos nossos. 5 FAORO (1996, p.7). 6Esta é, aliás, uma das críticas fundamentais de Wakefield ao processo de concessão de terras nas colônias, contra o qual ele propunha a venda de terras pelo Estado, como será visto no capítulo 2.

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sobretudo agravado, no período compreendido entre 1822 e 1850, conhecido como o "império das posses". Este período corresponde, na história fundiária do Brasil, ao da formação e consolidação definitiva do latifúndio, e está na base da formação das oligarquias rurais, possibilidade até então vedada, dado o próprio caráter da legislação agrária das sesmarias e da política econômica de feição absolutista e mercantil de Portugal7. O curioso é que essa espécie de "estado hobbesiano" reaparece com todo o seu vigor em consonância com a implementação da Política Fundiária do pós-1964.

Foi no período de 1822 a 1850 quando, tendo sido suspensa a concessão de sesmarias (julho de 1822) e, "decaída", com a Independência do Brasil, em setembro daquele ano, toda a legislação portuguesa, por um lado, e não tendo sido aprovada nenhuma outra regulamentação do acesso à propriedade rural, por outro lado, que grassaram, sobretudo, as grandes posses, muito mais que as pequenas. Entretanto, se por um lado, a ausência de regulamentação sobre a propriedade territorial facilitou o avanço das posses, por outro, esta mesma ausência impossibilitava a legalização das ocupações. Ou seja, não permitia, formal e juridicamente, a formação da propriedade legítima. O problema assim criado pelo desenvolvimento das posses extra-legais, ficará sem solução até 1850. Exatamente o equacionamento deste problema da legitimação (reconhecimento pelo Estado) dessas posses, além de outros problemas gestados no período anterior, estará no cerne do debate legislativo da década de 1840, que terá como resultado a aprovação da Lei de Terras de 1850.

O relevante neste processo, como se pretende evidenciar neste estudo e comparar com a situação do pós-1964, é que, apesar das alternativas legais e políticas abertas pela Lei 601, - que diga-se de passagem, mantinha o mesmo caráter de legitimação privilegiada e excludente anterior - sua aplicabilidade foi sistematicamente sabotada, tanto no que se referia à arrecadação e à discriminação de terras devolutas, quanto no que tocava à política tributária (inviabilizada), quanto ainda, o que é mais relevante, à legitimação e ao registro das terras que se encontravam no patrimônio privado e poderiam, obedecidas as formalidades legais estabelecidas, ser legalizadas e tituladas. O outro fracasso na implementação da Lei 601, referia-se ao fato da "venda de terras em hasta pública" que não se materializou como era esperado, por motivos que serão oportunamente analisados neste estudo8.

Não se tratava, neste contexto, de se ter transformado a Lei 601 de 1850 em letra morta, como se defenderá neste trabalho. Trata-se, antes, de se assegurar, manter e ampliar os privilégios de legitimação pelas vias da pressão privada, por um lado e, por outro, da tentativa, sempre presente na história política do Brasil, de subordinar aos interesses privados as ações do aparelho burocrático do Estado. Esse processo sempre implicou a articulação entre a violência privada e a manipulação das ações da burocracia pública em benefício das camadas privilegiadas, então já ciosas, embora ilegal e ilegitimamente, do domínio territorial, e não apenas de posses condicionadas, como anteriormente a 1822. Por isso, o próprio processo de legalização da propriedade

7A respeito da discussão detalhada desta dimensão fundamental do desenvolvimento e da formação econômica, social, cultural e política do Brasil, que fugiria aos objetivos desta pesquisa, ver os excelentes trabalhos de FAORO (1996) e NOVAES (1978). Ver, ainda, os estudos clássicos de Caio Prado Júnior (1977 e 1979), publicados no final da década de 1930 e durante os anos 40; a História Econômica de Roberto Simonsen (1978) e os trabalhos pioneiros de Nestor Duarte (1939), Malheiro Dias (1924), entre muitos outros. A respeito, especificamente da problemática das sesmarias em Portugal, ver, especialmente o trabalho de Virgínia Rau (1982). 8 Ver o capítulo 2.

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privada moderna, burguesa, no Brasil é, na sua origem, eivado do privilégio, da ilegalidade e da excludência.

É tendo como referência esse contexto e sentido que, neste trabalho, defende-se a hipótese de que há uma determinada lógica, fundada na excludência e no privilégio, que vem presidindo todo o processo de formação, desenvolvimento e legitimação da propriedade territorial rural no Brasil. Esse processo assume seu caráter efetivo de absolutização da propriedade e seus meandros fundamentais de violência ilegítima, a partir da promulgação da Lei de Terras de 1850 que, ao estabelecer critérios legais para o processo de privatização, típicos da sociedade burguesa, criou, juridicamente, o divisor de águas, que possibilitava a separação entre o que era e o que não era legítimo, no âmbito da propriedade fundiária. Portanto, ao persistirem as ações de incorporação de áreas (públicas ou não) ao domínio de terceiros, fora dos critérios legalmente sancionados pelo Estado, pode-se caracterizar tais ações como ilegítimas. De igual forma, as propriedades gestadas nestas circunstâncias são, também, ilegítimas. Esse é o contexto da argumentação que aqui será desenvolvida, fundamentada e defendida.

Com o advento do Estatuto da Terra, na segunda e relevante tentativa de enquadramento legal do problema fundiário brasileiro após a Independência, em 1964, a situação fundiária encontrada permanecia caótica. Aliás, uma das justificativas de sua promulgação era exatamente o reconhecimento desta situação9. As medidas propostas nesta Lei e nos atos administrativos que a complementaram, aparentemente indicavam alternativas importantes para o equacionamento de inúmeros problemas, especialmente no campo da legitimação da propriedade e da superação da estrutura agrária concentrada e excludente que persistia no País.

Diz-se aparentemente, posto que, como a Lei 601 de 1850, o Estatuto da Terra de 1964, também era uma lei de propriedade, porém os seus resultados implicaram numa radicalidade ainda maior no que toca aos processos de legitimação privilegiada e excludência social. Neste sentido, a Lei 4.504/1964 não realizou nenhuma Reforma Agrária, ou, como concluiu Octávio Ianni, realizou, na prática, uma contra-reforma agrária10. Se o regime militar operou uma profunda transformação na estrutura da propriedade territorial no Brasil ou não, não é o aspecto mais fundamental desta questão. E é óbvio que foi operada uma transformação importante na estrutura agrária. Só que uma transformação que significou, ao contrário do que era, aparentemente, proposto na Mensagem 33 e no Estatuto da Terra, a consagração da legitimação privilegiada e da excludência. Embora seja forçoso admitir que as medidas postas em prática, possibilitaram mudanças relevantes do âmbito da propriedade rural, da produtividade do trabalho agrícola e da própria diversificação da cesta de produtos da agricultura brasileira.

Para aqueles que concordam com as teses do senhor Roberto Campos11 no sentido de que o desenvolvimento econômico exige, como pré-condição, necessariamente, alguma forma de autoritarismo e violência antidemocrática, a Política 9Vide Mensagem 33 do Presidente General Humberto de Alencar Castelo Branco, analisada em pormenor no capítulo 4. (BRASIL. Presidência da República. Brasília: 1964). 10Ou seja, reforçando a alienação de terras públicas e a legitimação privilegiada e excludente, inversamente ao que, aparentemente, era proposto na Mensagem 33. Cf. IANNI (1979). 11 Vide SIMONSEN e CAMPOS (1976). Especialmente o Capítulo X, pp. 223 a 257, onde essas teses são defendidas por Roberto Campos, ao relacionar as “premissas cruéis” que, segundo ele, acompanharam sempre o desenvolvimento econômico.

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Fundiária do Regime Militar representou um grande avanço técnico. Caso contrário, há que se discutir as várias alternativas históricas possíveis. Neste rumo é que esta proposta de estudo é desenvolvida. Discutir a questão do desenvolvimento econômico, na perspectiva de uma comparação com o desenvolvimento de um processo de legitimidade da propriedade territorial brasileira é o sentido mesmo deste trabalho.

Por estas razões é que se considerou relevante a análise e recuperação, ainda que em suas linhas fundamentais, dos diversos momentos e das diferentes políticas de terras postas em prática no Brasil, desde o seu descobrimento até o Estatuto da Terra e sua implementação e resultados. Talvez por esta via seja possível contribuir para o debate e a crítica acerca da suposta legitimidade das grandes propriedades rurais do Brasil, cuja origem legal, é, geralmente pouco conhecida. E que, ainda assim, constitui-se em verdadeira muralha fantasmática a opor-se à reforma agrária no País.

A análise desse amplo e complexo processo é realizada nos diferentes capítulos deste estudo, na forma a seguir sumarizada:

O capítulo 1 ocupa-se do estudo do período colonial, no qual o acesso às terras brasileiras subordinou-se ao instituto das sesmarias. Discute, de forma sistemática, as transformações operadas na implementação deste instituto na Colônia, em face das especificidades de sua situação econômica e política, o que explica os resultados contraditórios da implementação deste instrumento pelo Estado Português, quer fosse na Metrópole, onde consolidou, sobretudo, as pequenas propriedades produtivas, quer fosse na Colônia, onde deu ensejo à formação de grandes propriedades, nas quais permaneciam grandes áreas de terras ociosas12.

Neste sentido, no capítulo 1 procura-se colocar em evidência, que este fenômeno de formação de grandes unidades de exploração decorreu de algumas conjunturas específicas, presentes na Colônia, especialmente, nas etapas iniciais do processo de ocupação do território, quando era priorizada a sua consolidação e defesa, contra ambições estrangeiras. Este processo implicava a necessidade de assegurar-se as condições de reprodução econômica da colônia, o que significava estabelecer processos produtivos em larga escala, voltados para a realização no mercado mundial. Este fato está na origem da formação de uma estrutura agrária fundada em grandes propriedades e sustentadas pelo trabalho escravo. É neste contexto que se pode compreender o privilégio embutido nas grandes concessões de sesmariais: elas exigiam, que o concessionário, mais do que simples títulos de nobreza, tivesse recursos para suportar o empreendimento13.

O objetivo deste capítulo é levantar os pontos fundamentais para o desenvolvimento das análises ulteriores, ao apresentar, como base no estudo das legislações e atos da Corte Portuguesa, por um lado, e em diversos trabalhos, especialmente, de Virgínia Rau, Cirne Lima, Roberto Simonsen, Prado Júnior e Costa Porto, citados, por outro, uma síntese do sentido fundamental do processo de privatização das terras brasileiras, tal como implícito no instituto das sesmarias. A conclusão desta análise aponta para o fato, relevante e fundamental, de que, se por um

12 Ver a este respeito, especialmente, SIMONSEN (1978), LIMA (1954), COSTA PORTO (S.d.), GUIMARÃES (1981), RAU (1982), SMITH (1990), MEIRELLES (1991), entre muitos outros estudiosos dos quais alguns citaremos no decorrer deste trabalho. 13 Especificamente a este respeito, ver os argumentos de PRADO JR.(1975), SIMONSEN (1978) e GUIMARÃES (1981).

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lado, nascia, com a aplicação do instituto de sesmarias ao Brasil, o processo de concessão privilegiada de terras, por outro lado, não se configurava a transferência plena, absoluta, da propriedade sobre as terras concedidas, que estavam sujeitas às cláusulas resolutivas. Assim, nesta etapa da história agrária brasileira, salvo algumas concessões que foram confirmadas pela Corte e não caíram, ulteriormente, em comisso, poucas foram as propriedades efetivamente legitimadas.

A legitimação da propriedade privada, cuja origem pode ser encontrada neste período, apenas terá a possibilidade de realizar-se com a Lei 601, de 1850.

Partindo das conclusões do primeiro capítulo, no capítulo 2 busca-se a análise detalhada e objetiva do amplo processo de reestruturação das relações de propriedade, engendrados pela crise do sistema sesmarial, e, muito mais do que isto, pela crise da transição para a Independência e consolidação do Estado Nacional, na nova conjuntura do desenvolvimento do capitalismo em escala mundial, em meados do século XIX.

Iniciando a análise no contexto da ruptura institucional com a Metrópole e da continuidade das relações com a economia mundial em sua condição de país independente, no capítulo 2 procura-se discutir o problema fundiário como parte importante de conjunturas e problemas de maior relevância e gravidade: a manutenção da independência e unidade nacionais, a consolidação do Estado, etc. Nesse contexto, são estudadas as propostas de reestruturação da política fundiária e econômica, que vinham sendo colocadas ao debate parlamentar desde 1821; especialmente no que se referia à suspensão das concessões de sesmarias e a alternativa à implementação de um mercado de terras, estritamente associado à implementação de uma política específica de promoção da imigração estrangeira, particularmente fundadas nas teses da “colonização sistemática”, de Wakefield14, publicadas em 1834, visando à substituição gradual, mas sistemática, do trabalho escravo.

Nesse sentido, é analisado o processo de promulgação da Lei 601 de 1850 e suas possíveis articulações com as teses da colonização sistemática, de Wakefield, enquanto uma alternativa à absolutização da propriedade privada e implementação do trabalho livre na agricultura. O capítulo 2 conclui, com base na análise detalhada da Lei 601, do seu Regulamento, de 1854 e de suas implicações concretas ao nível da sua implementação, que a Política Fundiária e a tentativa de estruturação de um mercado de trabalho livre, formuladas inicialmente na década de 1840, foram subvertidas. Assim, persistiu, senão o processo de concessões privilegiadas, do antigo instituto sesmarial, certamente, o processo de apropriação privilegiada de terras públicas, fundado nas posses. O dado novo, que é engendrado neste contexto, refere-se ao fato de que, ao determinar a proibição do apossamento de terras públicas, e ao condicionar a legitimação de posses e sesmarias em comisso, ao processo de registro, subordinado este às exigências de medição, demarcação, residência habitual e exploração efetiva da terra, era criada, objetivamente, a possibilidade legal para a caracterização do fenômeno das apropriações, como legítimas ou não, conforme cumprissem ou não as exigências formalmente instituídas.

Será com base na análise destas condições, que a legitimidade e legalidade das propriedades poderão ser, de modo objetivo - e juridicamente - questionadas. Esses são os produtos mais evidentes do fracasso da Política Fundiária do Império, e que são

14 Teses estas desenvolvidas em WAKEFIELD (1967).

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herdados pela República. Este período corresponde, na história fundiária no Brasil, ao de formação e consolidação definitiva do latifúndio; e está na base da formação das oligarquias rurais, possibilitada pelo desenvolvimento do liberalismo conservador e derrocada do absolutismo mercantil na ex-colônia portuguesa.

O capítulo 3 analisa esta herança. Coloca em evidência, com base no estudo cuidadoso das legislações agrárias e atos administrativos dos Governos do período que se estende de 1889 a 1964, que o problema da legitimação de posses é efetivamente posto em plano absolutamente secundário. Ao nível Federal, o Estado apenas apresenta algumas tentativas esporádicas e casuísticas, no sentido de regulamentar a utilização dos bens da União. Fica claramente documentado, neste capítulo, o fato de que o acesso às terras públicas brasileiras continuou amplamente entregue ao sabor das ambições das oligarquias estaduais, fato que vem a reforçar o caráter, não apenas do privilégio na apropriação, mas, sobretudo na titulação dos imóveis rurais. A regulamentação do processo de alienação e legitimação de terras públicas, sempre argüido neste período, é tão só, e apenas timidamente, tentado em 1946.

Nas conclusões deste capítulo evidência-se que, também neste período, o processo de apropriação e legitimação de terras públicas, no Brasil, não foi efetivamente enfrentado. Este fato é, sobremaneira, agravado no segundo pós-guerra, tanto pela implementação de políticas públicas objetivando a aceleração do desenvolvimento e integração nacionais, que ampliaram a especulação com terras em áreas, até então, pouco valorizadas, como a região Centro-Oeste e Norte; como, por outro lado, pela nova face que passa a acompanhar a luta pela terra e pelas condições de trabalho, pela população excluída da propriedade territorial e dos meios de trabalho; população esta, que passa a organizar-se em ligas e sindicatos de trabalhadores rurais, para lutar em defesa de seus direitos, sistematicamente anulados.

O capítulo 4 ocupa-se da análise da Política Fundiária implementada pelo Regime Militar. Partindo de uma análise da conjuntura que engendrou a conspiração, procura compreender o contexto em que o Estatuto da Terra é proposto e implementado. Analisa cuidadosa e objetivamente a Mensagem 33 e a Lei 4.504, buscando colocar em evidência que formam uma unidade, na qual é apresentado um determinado Projeto de Política Fundiária e de Desenvolvimento Rural, claramente colocados e fundamentados em determinado modelo de desenvolvimento econômico. Neste sentido, põe em evidência, com base no estudo objetivo, principalmente, da Mensagem 33, enquanto justificativa do projeto de lei de Estatuto da Terra, mas também de outros documentos oficiais, bem como de documentos de organizações ligadas aos trabalhadores rurais e outros, que o Projeto, então, encaminhado ao Congresso Nacional, o Estatuto da Terra, foi efetivamente implementado nos termos propostos pelas autoridades fundiárias do Governo, e que, portanto, é equivocada a noção que parte do pressuposto de sua não realização.

Ao contrário da leitura geralmente feita, especialmente no que se refere à Reforma Agrária, tal como exposta na Lei 4.504/64, esta pesquisa procura demonstrar que esta era concebida no Estatuto da Terra, apenas como uma alternativa, entre outras, para a promoção do desenvolvimento econômico nacional. Na verdade, a Reforma Agrária era concebida, neste contexto, apenas com o objetivo de aliviar tensões sociais. Exatamente por esta razão pôde, efetivamente, ser reduzida aos programas de assentamento, no bojo dos projetos de colonização. Entretanto, era esta a assim

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chamada “reforma agrária distributivista” posta no Estatuto. Ou seja, ao contrário do que geralmente é colocado, a análise feita neste trabalho evidencia que o Estatuto da Terra em nenhum momento incorporou uma real Reforma Agrária distributivista.

Na verdade, o objetivo explícito no Projeto de Desenvolvimento Rural representado pelo Estatuto da Terra, conforme se referia a Mensagem 33, do Governo Castelo Branco, era fundamentado tão só na busca do aumento da produção e produtividade agropecuária, o que significava, para os teóricos deste modelo, o incentivo e apoio à formação e ao desenvolvimento de empresas rurais médias e, sobretudo grandes, nas quais, por suposto, haveria maior “eficiência” econômica. É neste contexto que, no capítulo 4, é apresentada e defendida a hipótese de que o Projeto de Desenvolvimento Rural dos Governos Militares, funda-se no pressuposto da necessidade de se promover instrumentos de política agrícola que incentivassem a formação de médias e grandes empresas agropecuárias, por um lado e a formação de uma “classe média rural”, por outro. No âmbito deste modelo, a “reforma agrária” era pensada apenas, e em última instância, como alternativa para acomodar tensões e conflitos sociais graves. Esta a “reforma agrária” que, realmente implementaram. Isto era exatamente o que estava proposto, com clareza, no texto da Mensagem 33 e regulamentado no Estatuto da Terra. Esta foi a proposta efetivamente executada pelos Governos Militares.

Assim, o capítulo 4 busca aprofundar as hipóteses fundamentais defendidas nesta Introdução. A análise objetiva dos “instrumentos de ação fundiária” e das “formas de alienação de terras públicas”, implementados pelos Governos Militares, não deixa dúvidas de que o processo de apropriação e legitimação privilegiadas, que vinha, desde longa data, estruturando-se na história agrária no Brasil, assume a sua forma mais acabada, de grilagem especializada, neste período. Este conceito é criado neste trabalho, para definir os atos de expropriação ilegítima de terras devolutas ou objeto de exploração ou posses legítimas por pequenos produtores rurais, geralmente fundadas na exploração de artifícios legais e jurídicos, quando não, na falsificação de documentos, com o objetivo de “criar a aparência de legalidade” da propriedade. Este processo é também caracterizado quando as autoridades fundiárias, com base em meros atos administrativos e geralmente contrariando exigências da legislação em vigor, promovem a alienação de terras em licitação pública ou não; ou, mais grave que isto, instituem “formas de titulação” visivelmente voltadas para o privilegiamento de determinadas situações ou camadas sociais, como fica amplamente evidenciado nos capítulos 4 e 5 deste trabalho. Neste caso, caracterizam atos de improbidade administrativa e, em determinadas situações, de “crimes de colarinho branco” ou simples corrupção. De qualquer maneira, tratam-se de atos de titulação, alienação ou legitimação juridicamente questionáveis. Esta é a conclusão básica deste capítulo, e que procura fechar o conjunto da análise comparativa do processo de privatização das terras brasileiras.

O capítulo 5 apenas procura reforçar com ampla documentação as conclusões do capítulo anterior, colocando em evidência alguns dados e estatísticas sobre áreas privatizadas no período, sua distribuição por regiões e estratos, e assim a utilização ou destinação das terras apropriadas, isto por um lado; e, por outro lado, dados referentes aos movimentos da população rural e urbana no mesmo período e por regiões.

Esta introdução não poderia ser encerrada sem uma referência à vasta literatura que, no Brasil, ocupou-se, desde várias perspectivas teóricas e analíticas, das questões

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levantadas por este estudo. As referências bibliográficas específicas serão desenvolvidas no âmbito dos diferentes capítulos, na medida em que sejam suscitadas as questões pertinentes e respectivas análises. Por esta razão, neste momento apenas será traçado um perfil amplo das diferentes perspectivas teóricas e analíticas desenvolvidas acerca dos problemas pertinentes à questão agrária e à política fundiária brasileiras.

Até porque seria impossível numa Introdução proceder-se à revisão exaustiva da literatura que, em diferentes momentos e de diversas formas e perspectivas teóricas e analíticas, se ocuparam da análise dos problemas ligados à estrutura agrária brasileira.

Além disso, fugiria à capacidade intelectual e de síntese do autor proceder a tão ampla e relevante revisão, sem cometer omissões indesculpáveis. Assim, e com o objetivo apenas de indicar as trajetórias fundamentais do debate, este tópico procura, apenas, pôr em realce as linhas gerais seguidas pelos diversos estudos, indicando suas características e pontos de vista fundamentais.

A questão agrária tem sido estudada de diversas perspectivas por diferentes pesquisadores e analistas brasileiros. Neste sentido há uma ampla literatura científica, - cujas referências específicas serão apresentadas na medida em que as diferentes dimensões do problema sejam abordadas no decorrer deste trabalho -, e a qual se ocupa da investigação da questão agrária nas suas especificidades e relações com o processo de formação e desenvolvimento da sociedade brasileira, por um lado, e das implicações geradas neste contexto pela trajetória histórica da estruturação e desenvolvimento da produção capitalista e da economia de mercado.

Tratam-se de estudos que abrangem uma vasta área no âmbito das Ciências Sociais. Ocupam-se de problemas que vão, desde as análises acerca do caráter do processo de colonização e da economia colonial, até aos processos de modernização da agricultura e suas relações com desenvolvimento do capitalismo na produção agropecuária. No contexto destes estudos, são relevantes os trabalhos de Oliveira Vianna (1923), onde é formulada de forma sistemática a tese do "feudalismo colonial", acompanhada de perto pelo trabalho de Malheiro Dias (1924) que, retomando as conclusões de Vianna busca desenvolver uma análise, fundamentada nos instrumentos jurídicos de concessão de terras pela Coroa Portuguesa, para concluir pelo caráter feudal da formação colonial. A tese do feudalismo é posta em questão por Roberto Simonsen (1937), seguido de perto por Caio Prado Júnior (1939), ambos defendendo a tese de que a economia colonial possuía caráter capitalista, embora, estes autores se fundamentem em argumentações teóricas distintas. Na defesa contundente do "Feudalismo Colonial" encontra-se, ainda, Nestor Duarte (1939), com seu estudo, que se tornou clássico, "A Ordem Privada e a Organização Política Nacional".

Ainda acerca deste debate, muitos outros autores poderão ser arrolados, como Celso Furtado que em 1959, já no novo contexto do debate nascido no segundo pós-Guerra, publica um livro, que se tornou, também clássico, Formação Econômica do Brasil, no qual defende a tese do capitalismo colonial; entretanto, apresentando distinções importantes em relação aos argumentos defendidos nos trabalhos de Simonsen e Prado Júnior, sobretudo, ao admitir que, as transformações do mercado mundial ao deprimirem as exportações brasileiras, provocaram, em determinados setores da economia, uma atrofia e uma regressão à formações pré-capitalistas. Segundo Furtado, portanto, o sistema colonial era capitalista em sua origem, mas as estruturas agrárias atuais regridiram a um estado semi-feudal, depois de um longo processo de

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involução. Furtado, na verdade, já se filia à nova corrente "dualista" que se desenvolve a partir dos anos 50. Nesse grupo de analistas pode-se incluir ainda Lambert (1959), Paul Singer (1961). Em 1964 é publicado o trabalho clássico de Passos Guimarães, Quatro Séculos de Latifúndio, retomando a tese do feudalismo colonial, reforçando os argumentos de Nestor Duarte. Para uma excelente análise desse debate ver TOPALOV (1978); HIRANO (1988), especialmente o capítulo 1, onde é realizada uma análise crítica das teses acerca do sistema colonial. Recentemente, estas teses receberam forte crítica, e especialmente, entre outros estudiosos, por parte de OLIVEIRA (1983 e 1984).

Por outro lado, no que se refere a análise da dimensão jurídica e suas articulações com a dinâmica concreta da ocupação produtiva da terra e da formação da propriedade privada rural, persiste a necessidade de se desenvolver investigações mais especializadas. É neste contexto particular que a análise específica da política fundiária necessita, do ponto de vista aqui defendido, ser aprofundada e realizada com maior detalhamento. Especialmente no que se refere ao estudo objetivo das Políticas de posse e uso da terra, implementadas pelo Estado, em diferentes conjunturas do desenvolvimento brasileiro. Trata-se da necessidade de estudo sistemático do amplo e diversificado conjunto de instrumentos jurídicos, políticos, administrativos, e econômicos, dentre outros, instituídos com o objetivo específico de assegurar e oferecer caráter de legitimidade, burguesa ainda, isto é uma legitimidade histórica e por isso transitória na sua forma específica, ao processo de apropriação absoluta do território, enquanto condição prévia e necessária à ocupação produtiva da terra sob o capitalismo.

É neste contexto e nesta direção que se situa este estudo.

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CAPÍTULO 1

A POLÍTICA FUNDIÁRIA COLONIAL: O INSTITUTO DAS SESMARIAS

"No dia 21 de abril de 1500, quando aqui chegaram os portugueses, o país que viria a ser chamado Brasil perdeu a autonomia sobre o seu território e iniciou-se o processo de grilagem. Os anos se passaram e estão-se completando cinco séculos de história de dominação, exploração e grilagem, por um lado, e de escravatura, miséria e luta pela reconquista da terra, por outro.”15

"Com o descobrimento do Brasil, no preciso momento do seu descobrimento, automaticamente, todo o seu território passa ao domínio de Portugal. Não só no sentido político-estatal, que se pode extrair da palavra domínio - autoridade e poder portugueses sobre a terra submissa - mas, identicamente, no que se contém como sinônimo de propriedade - todo território brasileiro, como objeto de relação jurídico-real, passa a ser integralmente, de propriedade do Reino."16

1. Considerações Gerais

É significativo que os dois comentários acima, um de um religioso envolvido com a luta pela reforma agrária no Brasil contemporâneo, outro, de um professor de Direito, coincidam no fundamental: a história da soberania brasileira começa com a perda da soberania; e a história da propriedade territorial, no Brasil, inicia-se pela perda de domínio sobre o seu território, e sua respectiva anexação ao patrimônio dominial de um outro Estado. Desta forma também o entende Ruy de Cirne Lima, quando afirma que "a história territorial brasileira começa em Portugal" e que a ocupação do seu território pelos portugueses, em nome da Coroa, "transportou inteira, como um grande vôo de águias, a propriedade de nosso imensurável território para além-mar.17”

Duas situações objetivas derivam-se deste fato histórico: Primeira, que ao ser descoberto o Brasil, e integrado ao patrimônio do Estado

Português, por direito de conquista, ficava implícita à transformação de todo o seu território em propriedade colonial do Reino de Portugal, passando a constituir-se em

15ASSELIN (1982, p.11). 16NASCIMENTO (1985, p.7). 17 LIMA (1954, p.11)

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uma espécie particular de “propriedade” estatal, pública. Isso significava, igualmente, que a partir deste ato formal de tomada de posse - um ato não apenas jurídico e político, mas, sobretudo econômico - deixou de existir, no Brasil, terra adéspota, sem dono. Todas as terras passam, desde então, formalmente, à condição de domínio da Coroa Portuguesa.

Segunda, que esta sujeição - jurídica, política e econômica - significava, objetivamente, que o acesso e a exploração (produtiva ou não) das terras coloniais, passava, necessariamente, a ser mediados pelo consentimento do Governo de Portugal. Tratava-se, portanto, de um processo de privatização, de transferência de direitos, fossem do uso ou, em alguns casos, do próprio domínio, sobre as terras coloniais. Porque, Portugal, ao deter, juridicamente, a propriedade da Colônia, detinha, “ipso facto”, o direito de autorizar ou impedir o acesso ou a exploração das terras coloniais, que eram do seu domínio.

Entretanto, para explorá-las e torná-las produtivas, e desta forma poder auferir concretamente os frutos desta propriedade colonial, necessariamente, a Coroa Portuguesa teria que submeter-se às condições objetivas das conjunturas políticas e econômicas, tanto internas ao Reino quanto, sobretudo internacionais. Estas condições situavam-se para além da vontade do Estado Português e não dependiam, da sua condição de “proprietário formal” da Colônia. É nesta conjuntura objetiva que o Estado Colonial Português se verá obrigado a implementar um determinado e específico processo de ocupação e exploração da Colônia, ao integrá-la ao seu patrimônio. Portanto, a colonização do Brasil e as formas jurídicas e administrativas concretas, implementadas pelo Estado Português, para assegurar o seu domínio e a exploração sobre o espaço colonial, exigirão de Portugal um determinado e específico processo de colonização. Este processo é fundado no consentimento, ainda que oneroso, possibilitando à determinadas camadas da população portuguesa empreender, em sociedades ou individualmente, o povoamento e a exploração da Colônia.

Este consentimento, nas condições objetivas da época, implicaram a necessidade da concessão de determinados privilégios, em troca da garantia do domínio colonial português. Disto derivam, os amplos poderes consentidos pelo Estado Português aos primeiros colonizadores, na verdade, autênticos delegados políticos do Rei. Por outro lado, estes concessionários, ao receberem, em certo sentido, a transferência do direito de exploração da propriedade, estavam, da mesma forma, sujeitos às condições objetivas, impostas pela situação da Colônia. Isto significa que, para poderem exercer este direito de exploração - de propriedade -, necessariamente teriam que promover os meios, antes de tudo, econômicos, capazes de assegurá-lo. Isto significava que deveriam estes concessionários, reproduzir o mesmo modelo de realização da propriedade recebida, promovendo a concessão de sesmarias para pessoas que pudessem diretamente explorar a terra e promover a defesa e ocupação da Colônia. Desta forma era assegurada a reprodução da totalidade do sistema.

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É nesta conjuntura que o instituto das sesmarias será implementado no Brasil, adquirindo as especificidades que efetivamente o caracterizaram aqui, e que se distanciaram, em muitos sentidos, da forma e atributos que possuía, primitivamente, no Reino. Se na Metrópole este sistema de colonização implicou a formação de pequenas propriedades produtivas e, aqui, o contrário, isto deveu-se certamente às condições coloniais. E não apenas, nem fundamentalmente, ao fato de que na Colônia existiam terras abundantes - embora este fato fosse relevante. Também porque, a produtividade do trabalho, sobretudo em face das dificuldades de incorporação de meios técnicos, implicava a exploração extensiva da terra, para tornar possível a produção na quantidade e volume necessários à sua realização no mercado mundial, sem o que não seria possível a reprodução do sistema. Esta mesma espécie de limitação concreta, no que se refere à possibilidade de consecução de força-de-trabalho local ou oriunda da Metrópole, implicaria no imperativo da importação de escravos africanos. Dessas limitações impostas à exploração da Colônia, derivam-se a formação de grandes plantações e a exploração da mão-de-obra escrava.

Portanto, privilégios - nas concessões -, escravismo, como forma de produzir, e latifúndio, não são invenções ou reinvenções do processo de colonização portuguesa, mas exigências das próprias condições objetivas da Colônia e de sua inserção no processo de reprodução da economia portuguesa, na conjuntura do mercantilismo18.

Colocar clara e objetivamente este ponto de partida no que toca ao processo de formação da propriedade territorial rural no Brasil é fundamental para que se possa compreender a imensa complexidade e as especificidades que envolveram a formação da propriedade rural brasileira e o confuso quadro - econômico, jurídico e político - no âmbito do qual se processou a sua legitimação.

No que se refere, especificamente, à formação e desenvolvimento da propriedade territorial rural no Brasil, há que se registrar, em decorrência da conjuntura esboçada acima, um fato relevante e que, em certo sentido, está na sua origem e que condicionará, objetivamente, o seu processo de consolidação e desenvolvimento: trata-se do fato de que no Brasil, assim como em todos os países de origem colonial, as terras, antes de se tornarem propriedade privada, são, genéticamente, propriedade estatal, pública. O problema que se colocava, portanto, a este nível, era o de transferir o direito de exploração, portanto de propriedade real, da esfera pública para a esfera privada. Por outro lado, tatava-se de definir, juridicamente19, os objetivos deste processo de privatização e os meios de legitimação desta transferência de domínio. Ou seja, instituir e viabilizar as formas para materializar esse direito real de propriedade,

18 Ver a respeito dessa conjuntura e de suas implicações para o sistema colonial em Portugal e no Brasil, os excelentes trabalhos de SIMONSEN (1978), PRADO JÚNIOR (1977), FAORO (1996), NOVAES (1978), GORENDER (1978), entre muitos outros que serão estudados no decorrer deste trabalho. Esta conjuntura é discutida com alguma riqueza de detalhes neste e no próximo capítulo deste estudo. 19 Ver a este respeito, os argumentos de Fernando Novaes (NOVAES, 1978).

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transformando-o em direito formalmente assegurado. Tal é o problema a ser enfrentado no Brasil, que neste trabalho é posto em questão.

Como já foi observado, com o descobrimento, o território brasileiro passou a integrar o domínio colonial português. Passou, portanto, como observa, com razão Novaes20, a integrar, de forma subordinada, a economia mercantil e colonial portuguesa e, neste sentido, a configurar-se como uma “colônia de exploração”, isto é, vinculada às demandas políticas e aos interesses econômicos do país colonizador. Dessa conjuntura concreta engendram-se as especificidades de sua formação, sobretudo no que se refere às condições de sua reprodução econômico-social enquanto nação colonizada.

É neste sentido que a formação e desenvolvimento da propriedade territorial brasileira não pode ser desvinculada da tradição jurídica e da situação política e econômica de Portugal e do Brasil enquanto colônia. Por outro lado, embora exista necesariamente esse nexo, ele não deve ser interpretado como significando que a transposição da experiência jurídica, política, administrativa e econômica de Portugal para a situação do Brasil, tenha ocorrido sem transformações e ajustamentos relevantes. Estas transformações efetivamente foram observadas e eram resultado do próprio contexto das condições materiais de reprodução econômico-social da Colônia e da sua inserção no âmbito da economia mercantil, subordinada aos interesses metropolitanos.

Por isso, a gênese e, sobretudo, o desenvolvimento do direito de propriedade no Brasil e, mais do que isso, o próprio processo de ocupação e apropriação dos seus solos agrários, não são produtos de uma mera extensão do Direito Português e das formas de apropriação territorial existentes em Portugal. Esta a razão, por exemplo, do instituto de sesmarias ter apresentado características e, sobretudo, resultados diferentes em Portugal e no Brasil. Lá promovendo a colonização interna e ocupação produtiva dos solos agrícolas, sobretudo após a fase das presúrias, na época da Reconquista, tendendo à formação de pequenas propriedades. Como registra Virgínia Rau:

"Com o terminar das campanhas da Reconquista, a presúria morre e desaparece paulatinamente como sistema de aquisição de terras, ao passo que o sedentarismo e a paz trazem consigo a divisão das glebas, o sesmar os territórios conselhios (...) Primeiro, integradas nesse movimento de colonização interna em que o homem ganha direito à terra pelo cultivo e em que a organização municipal alastra acolhendo o trabalhador à sombra protectora dos forais, as sesmarias garantiram a fixação do povoador e o aproveitamento do solo.21”

Aqui, pelo contrário, gestando o desenvolvimento da grande propriedade agro-exportadora escravista e não conseguindo impor a condição de exploração efetiva à totalidade do solo concedido. Mesmo em Portugal, como registra Virgínia Rau:

"(...)quando a atracção periférica do mar e o incremento das atividades e imunidades urbanas fizeram tomar novos rumos ao desenvolvimento social e económico do país, elas serviram para

20 NOVAES, op. cit. 21 RAU (1982, p. 142).

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enfrentar problemas diversos daqueles que a viram desabrochar.22“

Virgínia Rau refere-se, neste trecho, às mudanças promovidas no instituto de sesmarias, no âmbito da Carta Régia de 25 de junho de 1375, objetivando, distintamente de sua formulação original, voltada para a colonização interna e ocupação efetiva do solo, após a Reconquista, a superação da grave crise por que atravessava o Reino, especialmente em virtude da queda na população trabalhadora rural, causada "pela peste ou pela fuga", por um lado, e pela "hipertrofia dos centros urbanos". Neste contexto de crise, a Lei de 1375 visava obstar o abandono das terras aráveis, além de enfrentar outros problemas de ordem econômica, como a falta de alimentos e mão-de-obra rural e o consequente aumento dos salários, que inviabilizavam a exploração das propriedades rurais23. Esse contexto de crise é assim descrito por Virgínia Rau:

"No meio do século XIV a economia da terra tinha perdido o equilíbrio e a desorganização agrária corria a par com a instabilidade monetária e a alteração dos valores sociais. A rarefação da população campesina, pela peste ou pela fuga, a hipertrofia dos centros urbanos, conjuntamente com a nova autoridade social de mesteirais e mercadores, geravam o grande drama econômico português e europeu. Para se opor ao êxodo da população do campo para as cidades, à escassez de mão-de-obra e ao encarecimento dos salários, à decadência agrícola e ao aumento da indústria pastoril, os legistas jungiram todos os elementos julgados susceptíveis de suster a crise e deram corpo a uma norma jurídica, mais tarde denominada das Sesmarias.24"

No caso do Brasil, as transformações neste instituto serão ainda mais relevantes. O contexto em que Portugal decide-se por iniciar a ocupação efetiva e a colonização do território brasileiro é colocado por Roberto Simonsen nos seguintes termos:

"Era por demais violento o contraste que uma terra inteiramente selvagem, habitada por povos ainda no limiar da civilização, oferecia aos mercadores e navegantes portugueses. De nada valiam aqui os processos de força com que Portugal impôs a sua suserania e o seu monopólio comercial na Ásia (...) Produtos prontos para o tráfico comercial normal não existiam; povoações de caráter estável, para serem ocupadas e exploradas, que pagassem com tributos o direito de existência, também não eram encontradas. O Brasil era problema novo em face a expansão comercial e marítima que os povos europeus estavam iniciando.25”

Donde, conclui Simonsen: "A situação exigia... solução radical por parte do reino. A colônia, com as perdas infringidas pelos corsários e pelos naufrágios, tão comuns na época, não dava saldo à Coroa, mesmo porque, tudo nos leva a crer que era irregularíssimo o comércio português do

22 Id., loc. cit., p. 142. 23 Idem., loc. cit. Ver também, a este respeito, CIRNE LIMA (1954; especialmente o capítulo 1). 24 RAU (1982, pp.142 e 143). Também CIRNE LIMA (1954; especialmente o capítulo. l). 25 SIMONSEN (1978, p. 52).

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pau-brasil. Mas a perda da colônia representava um risco para a navegação portuguesa das Índias Orientais e golpe nas suas esperanças de encontrar metais preciosos, cujas possibilidades se acentuaram com a descoberta das minas do Peru e México e as notícias do acesso ao Rio da Prata. Estava em jogo o prestígio do Império Colonial Português, em pleno fastígio do poder e em franca competição de empreendimentos marítimos com a Espanha."26

Diante desta perspectiva e nesta determinada conjuntura, Portugal toma a iniciativa de proceder a ocupação do território brasileiro e de promover a sua colonização. Entretanto, tal empreendimento implicava investimentos que não poderiam ser suportados pelo orçamento do Reino27. Dai buscar-se a associação com a iniciativa de particulares, gestando-se, desta forma, o sistema de Capitanias, ainda que fundado no instituto sesmarial, que impunha restrições aos concessionários. Para a consecução desse projeto específico de colonização, que nesta primeira formulação, não conseguiu atingir os objetivos almejados de ocupação e defesa do território, por um lado, e de carrear riquezas e tributos para a Coroa, por outro, recorreu Portugal, como afirma, entre outros, Marcelo Caetano, a

"soluções já antes experimentadas... Quando D. João III resolve ocupar-se da colonização do Brasil, estende aqui a fórmula ensaiada, primeiramente, no reino e, depois, experimentada nas ilhas atlânticas.28”

Do ponto de vista de sua interpretação jurídica e concreta, o sistema de concessões de terras adotado por Portugal para o Brasil apresenta, como observa Costa Porto dois ângulos fundamentais. O primeiro, refere-se ao problema da repartição política - da jurisdição e do “imperium” - aspecto este sobre o qual se têm dado maior ênfase e que se ocupa dos poderes políticos-administrativos, adstritos aos grandes concessionários. O segundo reporta-se à questão específica da distribuição propriamente dita do solo, ou seja, da distribuição da propriedade territorial entre concessionários, que, segundo aquele autor, é mais relevante:

"A leitura das cartas de doação desvela-nos singelamente em que consistia o sistema de donatárias sob o primeiro aspecto: a determinado número de vassalos foi dada uma porção de terras - delimitadas ao longo da costa e, para o interior, 'tanto quanto poderem penetrar e fôr de minhas conquistas' - outorgando-se-lhes poderes largos, imensos, 'majestáticos', mas, convém sempre inistir, poderes 'políticos', de comando, jurisdicionais pois, como cousa própria, apenas receberam aquele nastro de dez léguas, que lhes constituem o domínio privado.29"

No que se refere à propriedade da terra, esta continuaria integrando o patrimônio da Coroa, encarnada no Rei. Tratam-se de “reguengos” que, por definição do instituto, deveriam ser repartidos e distribuídos entre os moradores, isentos de qualquer foro ou onus, exceto o dízimo da Ordem de Cristo, sobre os frutos colhidos na terra. É neste 26Id., p. 58. Grifos nossos. 27 SIMONSEN (1978). 28 CAETANO (1980, p.13). 29 COSTA PORTO (S.d., pp.24 e 25. Grifos nossos).

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sentido específico, que o instituto de sesmarias, no Brasil, não possibilitava a constituição da propriedade absoluta da terra30, mas apenas a posse útil, sujeita a cláusulas resolutivas. Estas, no caso do Brasil Colonial, eram rigorosas: proibiam o arrendamento, exigiam a residência habitual do concessionário ou prepostos, a cultura permanente e a respectiva medição, como condições para sua Confirmação pela Coroa. Proibia, ainda, a concessão de mais de uma sesmaria ao mesmo concessionário, familiares ou herdeiros em linha direta. Tudo isso, além das dificuldades burocráticas e de natureza geográfica e técnica, contribuía para dificultar o processo de legitimação das sesmarias recebidas, no período colonial.

Todas estas medidas administrativas e jurídicas não foram, outrossim, suficientes para impedir que as sesmarias, enquanto posses ilegítimas, pudessem ser ampliadas, como, de fato, sempre ocorreu durante todo o período colonial e, sobretudo, nos primeiros anos após a Independência Nacional. Apesar dessas restrições e dificuldades, como observara Costa Porto, é no instituto das sesmarias "que se baseia toda a história de nossa evolução fundiária.31"

Pela análise do texto da “Lei de Sesmarias”, a Carta Régia de 1375, que "obriga a prática de lavoura e o semeio da terra pelos proprietários, arrendatários, foreiros e outros, e dá outras providências"; e que, ao mesmo tempo, criava o instituto das terras devolutas, passíveis de serem transferidas a "quem as lavre, e semeie", verifica-se como o Estado, diante de uma situação de crise profunda, reintroduz formalmente, no Direito de Propriedade, em Portugal, o instituto do confisco32 e, implicitamente, vincula a manutenção e reconhecimento da propriedade territorial rural ao cumprimento de determinada “função social”, mas, sobretudo econômica, como fica evidente no seguinte trecho da Carta Régia de 1.375:

"Se os senhores das herdades não quiserem estar por aquele arbitramento, e por qualquer maneira o embargarem por seu poderio, devem perdê-las para o uso comum, a que serão aplicadas para sempre(...).33”

Foi dito: "reintroduz formalmente", no sentido de que, o sistema de sesmarias, que já se achava consolidado nos costumes do Reino - herdado da tradição "romana, visigoda, e mesmo, talvez, sarracena, de repulsa ao solo inculto34", - vir a ser consolidado em Lei no Reinado de D. Fernando, diante de grave crise econômica e social, como registram, por exemplo, Costa Porto e Virgínia Rau35.

Referindo a este problema da consolidação do direito português diante das condições concretas do desenvolvimento conturbado do pequeno Reino, Faoro registra que 30 Ver a respeito deste aspecto o excelente estudo de Roberto Smith. SMITH (1990). 31 COSTA PORTO (S.d.: loc. cit.). 32 NASCIMENTO (1985) 33 In.: MEAF, op. cit. p.356. 34 COSTA PORTO, s.d. p. 26. 35 COSTA PORTO (op. cit.); RAO (1980).

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"os costumes, além do extenso território das práticas extra-legais, conservam caráter godo, sobrepondo-se, em muitos assuntos, à ordem jurídica formalizada. De outro lado, a dispersão da autoridade, fenômeno geral na Idade Média, conspirava em favor do predomínio do direito costumeiro do costume da terra, réplica continental do Common Law. Sobre esse manto de muitas cores e de muitos retalhos, o direito romano já se impõe como modelo de pensamento e ideal de justiça(...) Não subsistiria se não o fecundasse o adubo dos interesses que se aproveitaram da armadura espiritual, conservando-a por fora e dilacerando-a na intimidade.36"

“Conservando-a por fora e dilacerando-a na intimidade”, assim Faoro traduz de forma contundente uma das características mais fundamentais da consolidação do Direito na história de Portugal e que terá continuidade zelosa na Colônia brasileira, estendendo-se pelo Império, chegando fortalecido ao Brasil republicano. É dessa forma que o Direito passa a se constituir num conjunto de normas jurídicas, "formalmente neutras" (válidas para todos: pois "todos são iguais perante a lei") - conservado, assim. por fora, no dizer da Faoro -, mas econômica e politicamente direcionado - contexto em que é dilacerado na intimidade, para usar os termos de Faoro. A conclusão desse raciocínio por Raymundo Faoro é cristalina:

"Serviu-se para esta obra gigantesca, do Direito Romano, o qual justificava legalmente (os) privilégios, revelando-se um instrumento ideal para cumprir uma missão e afirmar um predomínio.37”

O que é importante reter neste momento, e ao que se retornará em outros pontos deste estudo, é que fica evidenciado na legislação sesmarial um fato da maior relevância, e que irá permear todas as políticas de terras e todas as legislações agrárias brasileiras até os dias atuais. Trata-se da perda de propriedade, pelo não cumprimento de sua função social, bem como de outras exigências explicitadas nos diferentes Forais e Cartas de Doação. Essas terras, devolutas, retornavam ao domínio do Estado, que promovia a sua redistribuição a quem as lavrasse, nas mesmas condições anteriores, quer se tratassem de terras sujeitas ou não a tributos. Ou seja, nesse processo de confisco de terras improdutivas pelo Estado, e sua redistribuição a terceiros, que obedecia a rito próprio e graduado de expropriação - especialmente no Reino - as terras eram redistribuidas nas mesmas condições em que se encontravam anteriormente concedidas: se sujeitas a foro ou não, continuavam sujeitas às mesma condições. Não podiam ser grassadas com nenhum ônus, além dos anteriormente existentes.

Mantinha-se, outrossim, as mesmas exigências. Especialmente com relação ao cultivo e exploração da terra.

Tratavam-se das clausulas de resolubilidade, que eram parte relevante de todo documento de concessão de sesmarias. Eram exatamente estas cláusulas que impediam a absolutização da propriedade e que condicionavam todo o processo de sua

36 FAORO (1996, p.11). 37 FAORO (1996, p.11. Grifos nossos).

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confirmação por parte do Estado. Entre outros motivos, de caráter estritamente econômico, esta é, certamente, uma das razões da desvalorização da propriedade territorial rural, sobretudo no Brasil Colonial. As terras eram, em última instância, domínio da Coroa, como que permanecessem hipotecadas. Por isso não podiam cobrir as funções hipotecárias nem servirem de garantias para dívidas. No caso do Brasil, muito rigorosamente, esse problema é persistente, posto que aqui era vedado formalmente, aos concessionários, arrendarem as terras que recebiam, sob pena de confisco, posto que a condição sob a qual recebiam as sesmarias era a de explorá-las e torná-las produtivas, com o seu trabalho ou com a ajuda de subordinados (vinculando-se, assim, aos objetivos de colonização e defesa). A concessão ou arrendamento de terras, na Colônia, eram atributos dos prepostos da Coroa Portuguesa.

Deste corolário jurídico fica evidente a estreita vinculação econômico-social do Direito de Propriedade38. Resta claro, neste caso, que o objetivo do instituto era obrigar aos concessionários à exploração efetiva das terras que recebiam - ou diretamente, por seus próprios meios, ou, nos casos em que a esses meios excedesse, "legitimamente39", cedendo-as, sob foro, a quem a pudesse explorar, "de modo que todas venham ser aproveitadas40". Se o não cumprimento dessa exigência legal ocorresse "por negligência ou contumácia" (...) "as Justiças territoriais, ou as pessoas que sobre isso tiverem intendência", estavam legalmente autorizadas e, mais que isto, obrigadas, a dar início ao processo de expropriação ou confisco, procurando redistribuí-las, "a quem as lavre, e semeie por certo tempo, a pensão ou quota determinada". Por fim, estabelecia-se que, não havendo acordo do concessionário com o foro estabelecido, pelos árbitros próprios, ou se o concessionário tentasse, por qualquer meio, embargar o processo, as suas terras seriam confiscadas: deveriam "perdê-la para o comum, a que serão aplicadas para sempre"41.

É relevante registrar que esse conjunto de normas, contidas na Carta Régia de 1375, não apenas procurava ser fortemente rigoroso quanto às exigências que estabelecia em relação aos sesmeiros, mas, o que é ainda mais relevante, definia claramente as alternativas e condições em que deveriam ser aplicadas as respectivas sanções. Admitia, por exemplo, a possibilidade de determinados concessionários, eventualmente, possuírem mais terras do que poderiam diretamente explorar. Esta situação, no Reino, advinha do fato de que, na tradição jurídica e consuetudinária portuguesa, sempre foi respeitada a titularidade legítima, anteriormente existente. Quando da implementação do sistema de sesmarias - após a pacificação do Reino, e 38A outra dimensão da concessão de sesmarias, que merece maior destaque do que tem sido dado pelos diversos estudos, refere-se ao fato de que ela permitia a racionalização e implementação da cobrança de tributos por parte do Estado. Segundo Faoro (op. cit., p.7) "a concessão de forais permitiu melhor sistema de cobrança, com o arrendamento dos direitos aos concelhos, mais tarde substituído pelo arrendamento a particulares, Facilitava-se com a medida, além disso, o amoedamento das arrecadações, numa prematura transformação da economia natural para a economia monetária." 39 Na Metrópole. 40 Carta Régia de 1375. In.: MEAF; p. 355. 41 Idem, p. 355.

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superada a fase das presúrias - estes direitos foram, sempre, assegurados. Esta situação não existia no Brasil colonial, eis porque, aqui, não seria permitido o arrendamento a terceiros, das terras recebidas, sobretudo porque, na origem da concessão de sesmarias estava a presunção de que as terras seriam efetivamente exploradas. Por isto era estabelecido que "não se desse a pessoa mais terras do que ela boamente pudesse explorar."

Logo, na ocorrência de subestabelecimento de terras negava-se aquela presunção jurídica. Neste caso, a concessão não teria respeitado a este requisito legal da efetiva exploração, além de ferir o preceito de que apenas aos prepostos da Coroa era dado o direito de fazer concessões territoriais. Haviam ainda outras razões associadas a esse contexto no Brasil colonial, como já registrado42.

Em Portugal, no caso de possuir-se terras em excesso, possibilitava-se, aos beneficiários, cedê-las sob foro, a quem as pudesse aproveitar, ficando subentendido que se mantinham na posse das respectivas áreas. Na Colônia, não. A preocupação, aparentemente precoce, da Coroa Portuguesa, em assegurar o povoamento e a exploração agrícola, como condições para assegurar a defesa de sua soberania sobre a Colônia terá implicações importantes no que toca à manutenção da integridade territorial brasileira, cujos resultados mais relevantes, além dos de haver atendido aos objetivos imediatos citados, aparecerão, sobretudo, após a Independência do Brasil. Embora essa dimensão da questão fuja aos objetivos deste estudo, é interessante registrar algumas observações de Álvaro Lins, a respeito do instituto do "uti-possedetis", que segundo aquele autor ficará historicamente ligado ao nome dos

"dois Rio-Branco: o primeiro, porque o definiu com precisão e segurança e o segundo, porque lhe deu aplicação vitoriosa numa série de litígios e negociações.43"

Gilberto Freire, referindo-se ao papel das “Bandeiras” enquanto forma de assegurar o povoamento e soberania portuguesas sobre as terras da Colônia, assim se expressa:

"O bandeirante torna-se desde os fins do século XVI um fundador de sub-colônias e já se faz senhor das alheias num imperialismo que tanto tem de ousado quanto de precoce. Com o bandeirante o Brasil auto-coloniza-se.44"

O instituto do "uti-possedetis" será o princípio utilizado pelo Império para assegurar a soberania brasileira sobre territórios em litígios com nações limítrofes e estabelece que deveria manter-se a soberania territorial com base na comprovação da ocupação produtiva de terras por cidadãos das respectivas nações pleiteantes:

"O governo de S.M., o Imperador do Brasil, reconhecendo a falta de direito escrito para a demarcação de suas raias com os Estados vizinhos, tem adotado e proposto as únicas bases

42 A este respeito ver Virgínia Rau, Costa Porto e Cirne Lima, citados. 43 LINS (1965, p.193). 44 FREYRE (op. cit., p. 120).

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razoáveis e equitativas que podem ser invocadas: o uti-possedetis, onde este existe, e as estipulações do Tratado de 1777, onde elas se conformam ou não vão de encontro às possessões atuais de uma ou outra parte contratante (26 de novembro de 1857).45”

O objetivo era sempre econômico: manter e ampliar a exploração agrícola; assegurar o povoamento e ocupação do território e, na Colônia, além destes objetivos, buscava-se garantir a defesa e integridade territorial contra pretensões estrangeiras. Numa expressão, tratava-se de salvaguardar a soberania portuguesa, o que, necessariamente, implicava a implementação de processos de produção relevantes, voltados para o mercado mundial, capazes de sustentar a reprodução de todo o sistema. Além, é claro, de promover a política tributária da Coroa, ampliando seus ingressos.

Por outro lado, a referida Carta Régia de 1375, previa, na sua versão originária e na conjuntura de crise na qual foi outorgada, em Portugal, igualmente, restrições à faculdade de serem mantidos animais de trabalho, conforme as necessidades da exploração, por um lado; e, por outro lado, estabelecia que

"para obviar o desaproveitamento das coutadas e herdades, que em prejuízo da agricultura se deixarem exclusivamente para pastos, proibe-se a todo que não for lavrador, ou não tiver a lavoura, ou não servir lavrador em ministério relativo à economia rural, o ter ou conservar gados."46

Finalmente, a Lei de Sesmarias estabelecia, claramente, as condições sob as quais se deveria proceder ao confisco das terras não aproveitadas: 1. Por "contumácia ou negligência", caso em que o concessionário seria constrangido a cedê-la, por algum tempo, sob foro, convertido "ao bem do comum". 2. Ou a perdê-la para sempre, caso o concessionário tentasse, por qualquer meio, embargar a aplicação da sanção legalmente estabelecida, como já registrado. Ressalve-se, ainda uma vez, que a possibilidade de arrendar ou ceder a terra a terceiros, admitida no Reino, não será permitida no Brasil colonial. Afora isto, as demais faculdades e exigências do instituto sesmarial eram aplicáveis integralmente ao Brasil colonial.

2. Sistema Sesmarial e Formação da Propriedade Rural na Colônia.

O sistema sesmarial, gestado na conjuntura econômica e sociocultural de Portugal da segunda metade do século XIV, destinado originalmente à tentativa de reorganização das relações de propriedade, na conjuntura da grave crise de abastecimento interno do Reino e no bojo de uma formação social emergente, que se houvera estruturado sobre conquistas e conflitos territoriais, e desenvolvera no âmbito do mercantilismo, será afetado por frequentes crises e sofrerá várias reestruturações, ainda em Portugal, desde as suas origens remotas, no Reinado de D. Fernando I . Do ponto de vista jurídico-econômico, o sistema sesmarial é instituído no contexto de grave

45 Citado por LINS (op. cit., p.193. Grifos nossos). 46 Carta Régia de 1375. In: MEAF (1983: 355 -356).

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crise política e no bojo da Revolução de Avis, pela Carta Régia47 de 1375, visando a reorganização das atividades de exploração agropecuária, regulando determinadas relações de sociabilidade.

No Brasil, o sistema sesmarial sofrerá, inúmeras alterações, tanto jurídicas quanto no âmbito de sua aplicabilidade jurídico-real, conforme as exigências econômicas, sociais e políticas, específicas da sua situação colonial, e da sua inserção no âmbito da política mercantil do Império Português. As mudanças verificadas no sistema em sua aplicação à situação da Colônia, nascem, como se registrou acima, vincadas pela necessidade de ocupação, manutenção e defesa do território48, muitas vezes ameaçado por incursões de mercadores concorrentes, e sobretudo de nações estrangeiras, especialmente as que relutavam em aceitar pacificamente os Direitos Políticos de jurisdição, portugueses, sobre a Colônia, fundados nas “Bulas Papais”. Resulta desta conjuntura, muito mais que da mera extensão do território, o fato de que, no Brasil, as sesmarias venham a assumir as características de grandes áreas territoriais. A necessidade de povoar as terras tinha exatamente esse sentido de ocupar (isto é, garantir a defesa) do território contra estas incursões. Por outro lado, o baixo nível de desenvolvimento das técnicas de exploração agrícola e, sobretudo, da carência de mão-de-obra, - ou seja, das forças produtivas - bem assim, como da necessidade de inserção da Colônia no mercado exportador de produtos de alto valor comercial, contribuíram, efetivamente, para o alargamento das dimensões das sesmarias concedidas na Colônia. E, aliadas a estas limitações, estava o desenvolvimento do trabalho compulsório, sobretudo através da escravidão africana. Entretanto, permanecia o caráter de concessão real sujeita a cláusulas resolutivas; ou seja, tratavam-se de condições que impossibilitaram a absolutização da propriedade da terra. Como registra Roberto Smith:

"A resultante da colonização portuguesa no Brasil foi responsável por uma característica relevante no contexto de sua formação social - a não-absolutização da propriedade fundiária até a segunda metade do séc. XIX.(...) O absolutismo português, desde muito cedo, encontrou o seu rumo mercantil que o projetaria em escala mundial. Ao mesmo tempo, colocou sob controle qualquer possibilidade de tomada de poderes territoriais dispersos, de cunho feudal, por parte da nobreza fundiária. Como decorrência, a propriedade da terra em Portugal não se objetivava através de um caráter de autonomia de domínio privado, em relação ao Estado, na sua vinculação mercantil ao lucro, como acontecia na Inglaterra. A propriedade da terra, além da grande parcela pertencente à Coroa, constitui-se, antes, em posses, com área

47 Id., loc. cit. 48Por isso, tratavam-se de "poderes políticos", cf. COSTA PORTO (S.d., p.21), e não de domínio pessoal sobre todo o solo doado aos capitães-mores, exceto a parte especificamente a eles destinada que, de resto não poderia ser demarcada em terras contíguas. Disto derivava o seu poder de jurisdição e a sua autoridade para, em nome da Coroa, promover a doação de sesmarias aos habitantes da terra, assim como prover a administração e a justiça, conforme os termos regulamentados pelas Ordenações do Reino.

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limitada, objeto de concessão revogável, condicionada a sua efetiva exploração.49 "

É neste contexto que, ao ser transposto para o Brasil, onde o sistema de sesmarias é introduzido juntamente com as chamadas Capitanias Hereditárias, o objetivo da Coroa, era proceder a concessão de terras a particulares visando a ocupação do território, sua defesa e sua exploração econômica. Por esta razão o processo de concessão era amplamente privilegiado, entretanto, ao mesmo tempo, buscava assegurar, não apenas o domínio territorial, mas a ampliação da massa de tributos destinados à Metrópole. Esse fato está explícito, por exemplo, no Foral de doação da Capitania de Duarte Coelho, onde estão, claramente estabelecidos, os poderes que lhes são delegados pela Coroa portuguesa, para que promova a ocupação, colonização, administração e defesa do território:

"O capitão da dita capitania e seus sucessores darão e repartirão as terras de cada sesmaria (...) às quais(...)darão na forma e maneira que se contem em minhas Ordenações e não poderão tomar terra alguma em sesmaria para si nem para sua mulher, nem para seu filho primogênito, herdeiro da dita capitania.50"

Do ponto de vista estritamente patrimonial, como registra Costa Porto, o que pertence efetivamente aos donatários eram:

"rendas e direitos & foros e trebutos que a elas (alcaidarias) pertencerem"; "as moendas dagua, marynhas de sal e quaesquer outros enjenhos de qualquer calydade que seya; "metade da dizima do pescado" - a vintena; a "redizima de todas as rendas" da Capitania, isto é, "que todo rendimento... aya...huma dizima que he de dez partes huma"; "a vintena parte do que lyquydamente render para mym foro (forro) de todos os custos do brasyll da capitania"; a faculdade de venderem a cada ano 24 peças de escravos que "resgatarem e ouverem na dita terra"; dispensa dos "direitos de sysas, emposições de saboaryas, trebutos de sall, etc."51

Fica evidenciado, na citação acima, que os poderes concedidos aos donatários se caracterizavam, antes de tudo, como poderes políticos, não de domínio territorial sobre a terra. Com relação ao direito de propriedade sobre a terra não resta dúvidas de que era profunda e estritamente limitado. Das sessenta léguas doadas, por exemplo a Duarte Coelho, que se dividiam em duas partes, apenas uma destas, de dez léguas, pertencia privativamente ao donatário, que exercia, apenas sobre esta área, o domínio pleno, alodial, desde que preenchidas as exigências constantes das Ordenações, estando esta área "lyvre, izenta" de qualquer ônus ou tributo, exceto o dízimo a ser pago à Ordem de Cristo. O Capitão-Mor, após vinte anos de posse da capitania, poderia separar e demarcar essa área onde quisesse, "não as tomando porém, juntas sanam

49SIMITH (1990, p. 149). 50 Citado por Costa Porto, op. cit., p.21. 51 Id., p.22.

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repartydas em quatro ou cynco partes" respeitando distância, entre cada parte, de, pelo menos, duas léguas.

No que tocava às cinquenta léguas restantes, deveria o donatário proceder à distribuição, em sesmarias, entre os moradores, sobre estas terras não exercendo nenhum poder de domínio alodial. Por isso, comenta Costa Porto, citando um documento da época:

"o donatário não hé senhor absoluto das terras senam sesmeiro e repartidor (...) e enquanto sesmeiro não é mais sesmeiro que outros sesmeiros, conforme a verba de sua daçam."52

O mesmo princípio jurídico vinha explícito na seguinte Carta de Doação, feita pela Coroa Portuguesa, a Martim Afonso de Souza:

"A quantos minha carta virem, faço saber, que as terras que Martim Afonso de Souza do meu conselho achar e descobrir na terra do Brasil, onde o envio por meu capitão-mor, que possa aproveitar, por esta minha carta que lhe dou poder para que ele (...) possa dar às pessoas que consigo levar, e as que na dita terra quizerem viver e povoar, aquelas partes (...) que bem lhe parecer, e segundo lhe o merecer por seus serviços e qualidades, e as terras que assim der será para eles e todos os seus descendentes (...) Que dentro de dois anos de dada, cada um aproveite a sua e que se no dito tempo assim não o fizer, as poderá dar a outras pessoas para que as aproveitem, com a dita condição."53

Como se pode verificar, a implantação do sistema de Capitanias, em 1532, em nada alterou a lógica que presidia a concessão de terras com base no instituto de sesmarias. O sistema de Capitanias operou, entretanto, pequenas mudanças, de cunho especificamente administrativo: as concessões de sesmarias, de forma diferente de como ocorria na Metrópole, passaram, por delegação, a ser outorgadas aos Capitães-Mores, entretanto, sempre sujeitas à confirmação real. Esta mudança representava, na prática, um mecanismo jurídico regulacionista mais complexo e que possibilitava determinado controle sobre todo o processo de ocupação territorial. Que originalmente, em Portugal, e como assimilação do Direito Romano, se constituía num dos instrumentos fundamentais de popularização produtiva da propriedade territorial, vinculado aos Conselhos, e estritamente associado à municipalidade. Segundo Faoro, por exemplo, a hierarquia formal, jurídica, assim estabelecida para resolver pendências e problemas nas questões associadas à propriedade rural, tinha um forte caráter centralizador e, em última análise, representava, politicamente uma espécie de aliança entre "o rei e o povo" e que funcionava como um forte bloqueio à possíveis pretensões políticas da aristocracia agrária. Neste sentido, tratava-se de uma medida que bloqueava o caminho ao enfeudamento.

52 COSTA PORTO (S.d. p.22). 53 Citado em NASCIMENTO (1985, p.11. Grifos nossos).

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Esse "modus operandi" irá persistir, igualmente, durante o período dos Governos Gerais, no qual, o sistema de sesmarias permanece praticamente inalterado, porém, administrativamente, passa a ser integrado por mais um escalão de delegação burocrática, no que toca ao poder de conceder sesmarias. Pela ordem de hierarquia burocrática, cabia os Governadores Gerais e aos Capitães-Mores das Províncias, por delegações sucessivas e hierarquizadas, o poder de realizar determinadas concessões, sendo que as destes últimos estavam sujeitas a Confirmação pelos Governadores Gerais, e todas, à Confirmação pelo Rei de Portugal. Permanecem as cláusulas de resolubilidade, ou seja, as concessões continuavam sujeitas ao efetivo aproveitamento, residência habitual e medição; não sendo permitido, por outro lado, aos concessionários, o arrendamento de terras a terceiros. Esse sistema permanecerá operacional no Brasil, até a sua suspensão em julho de 1822 e a sua definitiva extinção, com a Independência Política da Colônia, em setembro de 1822.

Outra característica relevante do sistema sesmarial referia-se as restrições impostas quanto ao tempo de duração das concessões que, inicialmente, assim como em Portugal, também no Brasil, era limitado, como pode-se apreender da análise do texto da Carta de Doação de Martim Afonso de Souza, de 1530, "somente na vida daqueles a quem der e não mais". Entretanto essa limitação temporal será modificada, no Brasil colonial, passando as sesmarias a serem concedidas em caráter perpétuo, embora permanecessem as cláusulas resolutivas, que possibilitavam a revogação da concessão qualquer tempo, fosse de forma onerosa ou não.

O fato mais relevante a ser registrado, nesse contexto, refere-se à permanente e sistemática preocupação do Estado Português em estabelecer limites bastante precisos à formação da propriedade da terra no Brasil. Todos esses impedimentos de ordem administrativa, jurídica, econômica e burocrática, que se está dando destaque neste trabalho, se, por um lado, não impediram a formação de imensas propriedades territoriais no Brasil, muito pelo contrário; por outro lado, também não permitiram a legalização dos abusos sobejamente cometidos à revelia da legislação. Este fenômeno está na origem das dificuldades impostas ao processo de legitimação da propriedade territorial rural, no Brasil, constituindo-se no fundamento legal para a definição do seu caráter de ilegitimidade, especialmente do ponto de vista jurídico.

Entretanto, como se fez notar, contrariando as normas régias, as sesmarias brasileiras passaram a ser, concedidas à título perpétuo, ainda que permanecessem sujeitas às condições de resolubilidade referidas, e que persistirão por todo o período. Tal fato introduz significativa mudança entre a implementação do sistema, quer fosse na Colônia ou em Portugal. É assim que, no Brasil, o concessionário passaria a dispor livremente da terra recebida, apenas com a obrigação de lhe dar aproveitamento nos prazos e condições determinados nas Cartas de Doação, (que giravam em torno de dois a cinco anos) sob pena de multa ou confisco. Entretanto, os estudiosos dessa questão são unânimes, como se tem registrado, em reconhecer que tais sanções raras vezes eram

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aplicadas; sobretudo quando se tratavam de multas, às quais, mesmo quando aplicadas, não eram pagas.

É neste contexto de extrema burocratização, quando a Coroa portuguesa buscava consolidar a organização de um sistema complexo de controle sobre a concessão e exploração das terras rurais, visando coibir o já vasto processo de multiplicação de sesmarias e apossamento de terras "públicas", à margem das determinações legais, que se pode tentar explicitar e compreender alguns dos problemas mais relevantes, no que se refere à formação e desenvolvimento da propriedade privada da terra no Brasil, por um lado; e o seu flagrante caráter de ilegalidade, por outro.

A hipótese desenvolvida, neste trabalho, a respeito desta problemática, funda-se no fato de que, desde a sua origem, a propriedade territorial no Brasil foi sempre o resultado da luta concreta e desigual (política, jurídica, social e econômica), pelo apossamento de áreas importantes do território brasileiro. Esse processo de apropriação de terras, sempre ocorreu concomitante e paralelamente às concessões legítimas; entretanto, quase sempre, se forjou à margem do consentimento legal. É neste contexto que a luta pela posse da terra tendeu a agravar-se cada vez mais, à medida em que a economia se desenvolvia e integrava-se ao mercado primário-exportador, provocando o aumento da demanda por terras. Este fenômeno agravou-se, sobretudo, após à Independência Política da Colônia, em 1822.

De qualquer maneira, o fato, juridicamente relevante, no que toca à política fundiária posta em prática no período em que esteve em vigor o instituto das sesmarias, - que se estende até julho de 1822, quando é definida a suspensão de sesmarias - é que este sempre representou a tentativa do Estado Colonial Português em manter estrito controle sobre todas as terras da Colônia, inclusive as doadas, que permaneciam sujeitas às cláusulas resolutivas.

Por outro lado, como apenas através do reconhecimento formal do Estado era possível assegurar o domínio legítimo das terras ocupadas, persistiu, na Colônia, uma situação, na qual predominavam “propriedades ilegítimas”: ou porque não tinham sido confirmadas pela Coroa Portuguesa, ou porque não foram registradas (tombadas), conforme as exigências da legislação vigente no período; ou, ainda, porque tiveram as suas áreas acrescidas de terras livres, para além das concedidas formalmente; ou, finalmente, por se tratarem de sesmarias e concessões caídas em comisso, pelo não cumprimento das cláusulas resolutivas. Além destas situações, existiam, ainda, as posses estabelecidas sobre terras públicas, independentemente de qualquer consentimento por parte do Estado.

Tratavam-se, neste amplo contexto, todas estas, de “possessões ilegítimas”, quer se tratassem de sesmarias irregularmente mantidas - caídas em comisso, ou nunca confirmadas - quer, de simples posses, sendo indiferente o fato de se tratarem de grandes ou de pequenas áreas. Em todos estes casos, persistia, portanto, a necessidade de revalidação, para os casos de concessões que se tornaram irregulares por não preencherem as exigências formais; ou, de legitimação, no caso das posses procedidas à

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revelia do consentimento formal do Estado, mas que preenchiam determinadas exigências, em especial referentes à exploração efetiva e morada habitual do posseiro, além de terem sido estabelecidas com “boa-fé”.

3. Considerações Finais

Após a consolidação do domínio de Portugal sobre a Colônia, tentado inicialmente através da instituição da chamadas Capitanias Hereditárias, cujos resultados econômicos e, sobretudo políticos, se mostraram insuficientes para a consecução dos objetivos de colonização e defesa do território, Portugal adota, ainda com base no instituto de sesmarias, um novo modelo de administração, baseado na concentração do poder em mãos de Governadores Gerais. Os Regimentos, que passam a regulamentar a Política de Terras, com a instituição dos Governos Gerais, a partir de 1549, além de tornarem mais complexos a hierarquia e o sistema burocrático para a concessão e reconhecimento das sesmarias, pelo Estado, estabeleceram novas e fundamentais exigências.

Torna-se mais rigorosa, entre outras, as exigências da residência habitual e cultivo efetivo das terras, assim como a proibição de alienar as terras recebidas por um prazo mínimo de três anos. Exige-se, em relação às concessões de terras destinadas à construção de engenhos, isto é, à produção da cana e fabricação do açúcar - que era o produto de maior valor e interesse comercial na época -, que apenas fossem doadas à pessoas que "tinhão possibilidades para o poderem fazer dentro do prazo que limitardes"; e que se obrigasse, aos seus concessionários, à construção de torres e casas fortes "de feição e grandeza que lhe declarasse na carta" de concessão, o que significava que este tipo de concessões apenas se destinavam à pessoas de posses, muito mais que de “calidades”54.

É nesse sentido, que se pode afirmar que a preocupação do Estado Português era específica e estava voltada para a implementação da agricultura mercantil, do povoamento e da defesa e consolidação de sua soberania territorial na Colônia. De forma semelhante, as concessões de terras se definiam de maneira privilegiada e excludente: voltava-se para a formação de grandes propriedades destinadas à agricultura de exportação e passava a exigir, em face às dificuldades de consecução de mão-de-obra livre, migrante, a incorporação do trabalho escravo, que era facilitada pelo tráfico pré-existente.

Em face de todas estas contigências e necessidades, as concessões eram feitas apenas em favor dos "homens de posses ou calidade". Segundo Alberto Passos Guimarães, mais de posses que de “calidade”, sendo, neste sentido, excludente, em relação à população em geral.

Apesar disso, as medidas reguladoras instituídas, acabaram por se constituir em obstáculos à legitimação das terras possuídas, mesmo quando formalmente concedidas

54 GUIMARÃES, 1981.

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pelo Estado. Este fenômeno será, sobretudo, agravado em face das exigências legais, do formalismo jurídico e das implicações e exigências de ordem burocrática, que o processo de legalização das terras possuídas exigia.

Considerando-se, por um lado, que o direito sobre a terra, isso é, o reconhecimento formal da propriedade, apenas poderia ser materializado após a confirmação real; e que, por outro lado, ao nível da realidade concreta da Colônia, dadas as suas dimensões, condições geográficas e à ausência de especialistas habilitados para realizar os levantamentos topográficos, medições, etc., raras vezes estas exigências legais foram cumpridas. Sob alegações desta natureza, além dos custos efetivamente envolvidos nas atividades que o processo de legitimação impunha, o fato é que, a legalização das sesmarias, apenas em raras ocasiões, foi realizado. E, ainda assim, quando era realizado, geralmente fundava-se em procedimentos meramente declaratórios: em estimativas genéricas de áreas, limites e confrontações, feitas pelos próprios sesmeiros.

Este fenômeno está na origem do processo de emissão de títulos de propriedade que não apresentam coerência e, na maioria dos casos, não coincidem com as áreas, às quais se deveriam referir.

Por outro lado, mesmo quando confirmadas, muitas sesmarias caíram em comisso, por não terem cumprido, com o passar do tempo e em face das sucessivas crises econômicas, às exigências definidas nas cláusulas resolutivas, especialmente no que se referia à exploração efetiva e morada habitual do cossessionário ou de seu representante. Ou pelo puro e simples abandono das terras recebidas. Tais fenômenos davam ensejo às terras devolutas, isto é, devolvidas ao patrimônio do Estado, conceito este, que com o tempo, passou a estender-se, no Brasil, à qualquer área que não tivesse nenhuma destinação ou utilização, por parte do Estado nem pertencessem, por título legítimo, a particulares.

Outra particularidade relevante para a situação brasileira, referia-se às dimensões da áreas cedidas em sesmarias. As normas reguladoras, contidas nos Regimentos, assim como nos diversos atos administrativos em vigor na Colônia, faziam apenas referências vagas e subjetivas à dimensão das áreas que deveriam ser concedidas, recomendando "não dar a cada pessoa mais terra que aquela que boamente, segundo suas possibilidades, vos parecer poderá aproveitar." Se forem associadas essas condições, puramente formais e subjetivas, à realidade econômica concreta da agricultura colonial, fundada na exploração extensiva e no escravismo, portanto, "predadora de terras e de homens55", na qual era baixíssima a produtividade do trabalho, tornam-se compreensíveis as razões das concessões das imensas sesmarias, especialmente no Nordeste brasileiro, onde se destinavam à produção do açúcar ou à pecuária rústica, nos sertões; e, mais tarde, nas regiões produtoras de café, especialmente no Vale do Paraíba.

55 GUIMARÃES (1981).

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A Carta Régia de 1695 assinala a primeira tentativa efetiva da Coroa Portuguesa no sentido de restringir o tamanho das áreas a serem dadas em sesmarias e a impor outras exigências além do dízimo. Este diploma legal estabelecia que para as pessoas a quem fossem, no futuro, concedidas sesmarias, ser-lhe-iam exigidas, além da obrigação de pagar o dízimo da Ordem de Cristo e as demais exigências costumeiras, que, igualmente, fossem obrigadas ao pagamento de "um foro segundo a grandeza e bondade da terra" e que, "não se conceda a cada morador de sesmaria mais de quatro léguas de cumprimento e uma de largura."

As medidas da Coroa Portuguesa, sobretudo, as referentes às exigências de limitação de áreas, número de sesmarias por concessionários e suas famílias, bem como ao pagamento de tributos, além do dízimo de Cristo, que vinham desde a origem do sistema em 1375, oscilavam, ora restringindo, ora possibilitando, a expansão das sesmarias, sobretudo no que toca à áreas e ao número de concessões por sesmeiros. Por exemplo, após a Carta Régia de 1695 citada acima, restringindo as dimensões para cada concessionário, a Carta de 1698 fixava a área em duas léguas, no máximo. Menos de um ano depois, a Carta Régia de 20 de janeiro de 1699, enquanto estabelecia um foro por légua concedida e reafirma a exigência de medição e demarcação, abria a possibilidade de expansão dos limites das sesmarias, para "as pessoas que tivessem terras e sesmarias, ainda que de muitas léguas, se as tivesse povoado e cultivado.56" Nesses casos, poderiam ser concedidas novas sesmarias.

Esses avanços e recuos da legislação verificaram-se por todo o período colonial e estavam, sobretudo, associados às expectativas econômicas do Reino e as pressões dos proprietários de sesmarias, em determinadas conjunturas e regiões determinadas. Entretanto, a legislação vai tornando cada vez mais rígidos os critérios de legitimação das sesmarias e demais posses territoriais, sobretudo, na medida em que as confirmações reais passam a ser, permanentemente, dificultadas pela ausência de condições de demarcação e definição de limites e confrontações. É nesse sentido que a propriedade territorial rural no Brasil permanece, na hipótese defendida neste trabalho, ilegítima: ou seja, que salvo em raríssimos casos, as concessões ou não foram confirmadas ou não foram legalmente tituladas. Essa questão da legalização será retomada em detalhes, ao se discutir, nos capítulos 2, 3 e 4, as formas legais de registro e suas condições de efetividade. No caso acima, referente ao período colonial, as concessões ulteriores evidenciam que tais determinações, na prática, não foram implementadas57.

A Carta Régia de outubro de 1753, ordenava que não fossem concedidas sesmarias a quem já as houvesse recebido, e estabelecia como critério, para reforçar tal impedimento, que fosse exigido dos pleiteantes, que "jurassem... não possuírem sesmaria alguma."58 De qualquer maneira, apesar do seu caráter subjetivo, esta 56 COSTA PORTO (S.d.). 57 Ver a este respeito, LIMA (1954) e COSTA PORTO (S.d.). 58Carta Régia de 20 de outubro de 1753.

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determinação oferece a perspectiva para que se compreenda o emaranhado processo de privilegiamento na concessão de propriedade, que vinha persistindo na Colônia, e que já se configurava em uma situação de grave concentração da propriedade territorial, na época. Bem entendido, tratavam-se das terras passíveis de serem economicamente exploradas, ou seja, as que se situavam, em termos de localização e fertilidade, próximas às regiões mais densamente povoadas e acessíveis. Neste sentido, tem razão Alberto Passos Guimarães ao defender o ponto de vista de que as posses agiram como alternativa à quebra de monopólio do latifúndio; entretanto é necessário registrar e ter em estrita consideração, que essas pequenas posses, a que se refere, certamente, Passos Guimarães, apenas tinham a possibilidade de se implantarem sob duas condições:

(a) A margem do consentimento legal por parte do Estado, portanto, ilegitimamente, sendo, por este motivo, sempre passíveis de expropriação, confisco, ou de mera incorporação pelo latifúndio, ou

(b) nas franjas ou periferia das regiões latifundiárias, logo nas "piores terras" em termos de localização e fertilidade, sujeitas aos ataques indígenas, e outras limitações, e, ainda assim, igualmente ilegítimas e sempre passíveis de incorporação pela expansão do latifúndio. Esse tipo de formação de pequenas posses sempre ocorreu em todo o período colonial e coexistiu com o sistema de sesmarias59.

De qualquer forma, as determinações contidas nestas Cartas de Doação, Forais, etc., nunca, ou quase nunca, interferiram de maneira efetiva na formação e desenvolvimento do processo de apropriação, especialmente quando se tratavam dos latifúndios. Estes grassavam, tanto sob o manto protetor da legislação vigente, quando eram legitimados; quanto, sobretudo, à margem da lei, especialmente, pelo avanço das grandes posses. Esta situação estará na ordem do dia, quando é posta a questão da “legitimação das posses”, no âmbito do debate parlamentar que precedeu a aprovação da primeira Lei de Terras do Brasil Independente, na década de 1840.

Por outro lado, é necessário ter muito claro que a legislação, enquanto tal, isto é, em seu aspecto estritamente jurídico, formal, nunca impediu que, preenchidas as exigências estabelecidas, os sesmeiros pudessem ampliar as áreas de suas concessões, mediante processos legais de compra, troca, doação de terceiros, ou outro qualquer meio ou instrumento sancionado de transferência de propriedade. Entretanto, a pura anexação de terras públicas contíguas, ou mesmo de pequenas posses existentes nas fronteiras de expansão dos latifúndios, parece ter sido, desde sempre, o método efetivamente utilizado pelos grandes detentores de terras, para ampliarem cada vez mais os seus domínios.

59 Esta questão será estudada com maior detalhamento no capítulo 2, onde será discutido o contexto da aprovação da Lei 601 de 1850 e suas implicações.

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Adquirido o domínio, isto é, a confirmação, ou titulação legal da propriedade, o sesmeiro poderia fazer da terra quase tudo o quanto quisesse, inclusive, incorporar as terras públicas contíguas. Só lhe era vedado o direito de arrendar a terra recebida,

"por não serem dadas as sesmarias senão para os sesmeiros as cultivarem e não para repartirem e darem a outros, o que só é permitido aos capitães e donatários."60

Em suma, a Confirmação Real da doação restringia-se ao concessionário que houvesse cumprido, no prazo definido, as cláusulas resolutivas, em particular no que referia à ocupação e exploração da terra recebida, diretamente, ou por prepostos seus. A referência, aos “prepostos”, é relevante, posto que se encontra na origem de determinados processos de sociabilidade, através dos quais, os latifundiários começaram desenvolver a prática de permitir a residência de famílias pobres, geralmente nos limites e confrontações de suas propriedades, mas sobretudo, das novas áreas a elas incorporadas, muito especialmente quando se tratavam de grandes posses, ilegítimas, sob a condição de, eventualmente, fazerem prova ou testemunharem a sua titularidade, em caso de qualquer dissídio ou contencioso sobre a posse da terra. Além, é claro, de servirem como mão-de-obra eventual, quer fosse para o trabalho na agricultura, quer fosse para outras tarefas "menos nobres", como servirem na condição capangas, jagunços, etc.

Esse fenômeno assumirá particular relevância no contexto que se seguiu à aprovação da Lei 601 de 1850, - analisado no próximo capítulo - e está na origem de determinadas relações de sociabilidade, tais como as fundadas no compadrio, nos chamados “moradores de condição”, e em todo um conjunto de relações sociais de dependência e subordinação pessoal, como a de agregados e de determinados tipos de parceria etc., relações essas que sofrerão profundas transformações61 com o passar do tempo e, sobretudo, com a incorporação de novas áreas, em face do desenvolvimento da economia nacional.

É na conjuntura de meados do século XVIII que se verificam alguma mudanças relevantes na implementação das exigência contidas no instituto de sesmarias. São adotadas providências legais no sentido de se efetivar a reincorporação das áreas pertencentes às antigas Capitanias Hereditárias, ao patrimônio do Reino, embora mediante compensações financeiras ou mobiliárquicas, aos antigos donatários. Ainda neste contexto, a Carta Régia de 3 de setembro de 1759, determinava o confisco dos bens dos jesuítas, incorporando ao patrimônio do Estado, uma vasta área territorrial, que se encontrava em poder da Companhia de Jesus, tornando-a passível de redistribuição nos termos do Instituto das Terras Devolutas. Junte-se a estas providências, as já mencionadas iniciativas legislativas, no sentido de exigir maior rigor no aproveitamento

60 Determinações estas, constante das diferentes Cartas de Doação e dos Regimentos. Cf. COSTA PORTO (S.d.) 61 A respeito, especificamente, destas transformações nas condições de sociabilidade e suas implicações para a “formação do proletariado brasileiro”, consultar o excelente estudo de José César Gnaccarini, especialmente, a Introdução e os capítulos 1, 3 e 4. (GNACCARINI, 1980).

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econômico das terras, sob pena de multa ou confisco, por um lado; e outras medidas legais, no sentido de impor a redução das áreas a serem concedidas.

Estas medidas administrativas e legais, ainda que tendo a sua eficácia social comprometida por um conjunto de dificuldades, e mesmo que tendo, como, efetivamente, parece que tiveram, pequeno ou quase nenhum efeito sobre o processo concreto de apossamento e de luta pela terra; ainda assim, eram indicativas de uma conjuntura na qual o Estado estava atento aos movimentos do processo de ocupação territorial e aos desmandos, especulação, ou mera ganância e usura, que, desde sempre, acompanharam a expansão do processo de apropriação territorial na Brasil.

Tais mudanças, não por coincidência, são implementadas no momento em que as atividades mineradoras ganham certo corpo no âmbito da economia colonial. Nesse contexto é que pode ser lida a problemática da tentativa, por Lisboa, de regulamentar restritivamente as áreas a serem concedidas em sesmarias, por um lado e, por outro, como se afirmou acima, procurar equacionar o problema das antigas capitanias, instando pela sua reincorporação ao patrimônio do Estado. No mesmo sentido, datam deste período, outras medidas administrativas e legais tendentes a preservar as terras sob o controle do Estado. Todas essas medidas estão associadas às expectativas abertas pelo chamado Ciclo da Mineração. Mesmo porque, diante da incerteza da Coroa em relação à potencialidade e, sobretudo a localização das prováveis jazidas minerais, a cautela orientava o Estado a optar por limitar de forma rigorosa o processo de concessões, por um lado, e a ampliar suas exigências tributárias, por outro lado.

Neste contexto, é enfatizado o princípio contido no instituto das sesmarias, que restringia a propriedade territorial, reforçando seu caráter de propriedade não absolutizada, como bem registra Roberto Smith62. É neste sentido que a Carta Régia de 1777 reforça o princípio de que ao sesmeiro cabia apenas a posse útil da terra, sujeita às condições de resolubilidade. Ou seja, reforça-se o caráter de concessão limitada de uso, enquanto atributo fundamental do processo de concessões de sesmarias, estabelecendo-se, além do dízimo da Ordem de Cristo, a cobrança de um foro por légua, conforme a "generosidade da terra", exigência esta, já instituída desde a Carta de 1695, quando foram, igualmente reforçadas, as exigências de medição, demarcação, cultura permanente e morada habitual, com um rigor nunca antes verificado.

Apesar dessa vasta produção legislativa, - e Portugal era pródigo em produzir legislações, normas e regulamentos63 -, a eficácia social desse vasto aparato jurídico (e da burocracia a ele associada) era mínima, sobretudo quando se referia aos direitos "dos comuns". Ao nível da realidade concreta, continuava a expansão do processo de incorporação de terras públicas (e das terras indígenas e ocupadas por pequenos posseiros) ao patrimônio privado de grandes sesmeiros, à margem da Lei.

62 SMITH (1990). 63Aliás, uma característica que será incorporada à tradição administrativa e legislativa brasileira.

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Entretanto, se por um lado a eficácia jurídico-prática da legislação era mínima, e possibilitava efetivamente a legitimação privilegiada, ou seja, era mais fácil e ágil para os "homens de posses e calidades", acima de todos, os que viviam na órbita da Corte; por outro lado, esta mesma legislação, criava uma rigorosa barreira jurídica à legitimação das terras, tanto das sesmarias não confirmadas, ou caídas em comisso, quanto, sobretudo, das posses, fossem elas grandes ou pequenas.

Entre as muitas restrições à legitimação, isto é, à confirmação régia, das sesmarias concedidas, particularmente, no que tocava às exigências de cultura permanente, morada habitual e demarcação, como foi mencionado muitas vezes neste capítulo, estavam as condições estabelecidas no Alvará de 25 de Janeiro de 1809, que determinava a proibição de se passar Cartas de Concessão, ou de efetivar qualquer confirmação de sesmarias anteriormente concedidas por Governadores e autoridades provinciais, sem que houvessem sentenças transitadas em julgado. Esse fato dá uma idéia da dimensão assumida pelo problema da ilegalidade ligada ao processo de apropriação de terras. E de como o Estado procurava criar uma barreira jurídica à legitimação desta situação que, já nessa época, era caótica e eivada de arbitrariedades e conflitos.

É óbvio que essa decisão, como as demais de caráter jurídico ou judicial, não irão impedir que o processo de apropriação ilegítima e seus respectivos conflitos continuem. Entretanto, significarão, efetivamente, uma barreira à sua legitimação, que, por suposto, teria que ser decidida em juízo e conforme os critérios estabelecidos em Lei, por exemplo, quanto à medição, delimitação de confrontações e limites, por um lado, e exploração e morada habitual, por outro. Tais serão os critérios que persistirão para dirimir as demandas judiciais pela legitimação de posses e sesmarias, no período, e que serão reafirmados pela Lei 601 de 1850. E depois desta, por todas as legislações que se ocuparam da matéria.

Nesse sentido, são relevantes os argumentos de Roberto Smith de que, no que toca ao sistema sesmarial e suas implicações para a formação da propriedade territorial no Brasil, ele se "constituiu sempre um campo amorfo e indefinido por onde vicejaram os interesses econômicos”. E que, no sentido de tentar impedir a formação de grandes propriedades impordutivas, o sistema de sesmarias foi tornado "letra morta". E arremata, de forma contundente:

"o que nem sempre é compreendido, e às vezes até obscurecido pelo viés da ortodoxia - que procura sempre enfatizar que as leis não modificam a 'base econômica' - é que a vigência da ordenação sesmarial foi, sobretudo, impeditiva da legitimação da propriedade privada fundiária.64"

Esse problema, agravou-se ainda mais pelo avanço desenfreado das posses, no período de 28 anos que se estendeu de julho de 1822, quando o sistema sesmarial é extinto no Brasil sem que tenha sido substituído por nenhum tipo de regulamentação no 64 SMITH (1990., pp.344 - 345. Grifos nossos).

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que toca ao acesso à terra, até a aprovação da Lei de 601, de 1850. Este período é conhecido como o "Império das Posses”. Apesar da extinção do regime sesmarial e da suspensão de concessões, pela Resolução 76, de 17-07-1822, e de não entrar em vigor nenhuma regulamentação jurídica que disciplinasse o assunto, o processo de incorporação das terras públicas, mas não só destas, ao patrimônio privado, continuou mais célere que nunca. Tanto o Governo Imperial procedeu a concessões de sesmarias neste período, por expressa determinação do Imperador e contrariando à norma estabelecida - que mandava "suspender a concessão de sesmarias até a convocação da Assembleia Nacional Constituinte e Legislativa" - quanto prosseguiu o avanço das posses. Sobretudo das grandes posses.

Esse é um fenômeno característico nas relações entre o direito e a sociedade no Brasil, e que persistirá até os dias atuais: sempre que a Lei cria restrições ou abre exceções, na prática, as restrições destinam-se a impedir o avanço dos direitos do grosso da população, enquanto as exceções, destinam-se a permitir e mesmo, facilitar, o avanço das regalias das camadas privilegiadas, sobretudo das suas frações próximas do poder, ou que lhe dão sustentação e legitimidade. Desta forma permitem, objetivamente, a que essas camadas de classe continuem a expandir seus privilégios e, sobretudo, seu patrimônio. Sob a proteção das "exceções abertas pela Lei", e como será visto nos próximos capítulos, das "Leis de exceção", como ocorrerá no Regime Militar, (no qual o próprio Estado passa a ser um "Estado de Exceção"), são criadas as condições efetivas para assegurar os privilégios e, sobretudo o poder econômico, político e patrimonial, etc., dessas camadas privilegiadas, por um lado, e radicalizar a excludência, por outro, processo este, geralmente fundado no direito e na violência fora da lei. Essa é a lógica que vem presidindo as Políticas de Terras no Brasil, desde o período Colonial: privilégio e excludência: Direitos formalmente garantidos, e violência, pública e, sobretudo, privada (sob a proteção pública) como forma de exercício do poder, na luta pela consolidação e alargamento dos privilégios, antes de todos, os ligados à propriedade territorial e ao "poder local". Uma dialética perversa que pode, muito bem, caracterizar a dinâmica das políticas de Terras, desde a Colônia e o Império, e que atinge seu ápice no período do Regime Militar, onde a "simbiose" entre a violência 'legítima' exercida pelo Estado" e a violência ilegítima, exercida por grupos privados, passam a fazer parte do cotidiano da luta pela terra no País.

Como se vinha afirmando, - antes das ilações mais gerais do parágrafo anterior - os problemas agravados no período do “império das posses” eclodirão durante o acirrado debate legislativo que levou a aprovação da Lei de Terras e, sobretudo, após a sua regulamentação, em 1854.. Esse problema, dada a sua relevância para este estudo, será objeto de análise detalhada no próximo capítulo.

Cirne Lima, citando as memórias de Gonçalves Chaves, resume nos seguintes termos os resultados implicados para a agricultura e estrutura agrária brasileiras pelo Regime de Sesmarias:

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"Segundo a memória aludida, os resultados produzidos pela legislação de sesmarias foram os seguintes: 1o- Nossa população é quasi nada, em comparação com a imensidade do terreno que ocupamos há tres séculos. 2o- As terras estão quasi todas repartidas e poucas há a distribuir que não estejam sujeitas a invasão dos índios. 3o- Os abarcadores possuem até 20 léguas de terreno e raras vêzes consentem a alguma família estabelecer-se em alguma parte de suas terras e mesmo quando consentem, he sempre temporariamente e nunca por ajuste, que deixe ficar a família por alguns anos. 4o - Há muitas famílias pobres, vagando de lugar em lugar, segundo o favor e capricho de proprietários das terras e sempre faltas de meios de obter algum terreno em que façam um estabelecimento permanente. 5o - Nossa agricultura está em o maior atraso e desalento, a que ela pode reduzir-se entre qualquer povo agrícola, ainda o menos avançado em nossa civilização.65 "

Como registra Tupinambá Nascimento66, "a idéia de distribuição de terras contida no regime de sesmarias é eficiente, vista sob o aspecto do cultivo do terreno e justiça social, mas se abstraindo da visão executiva do Regime", quer dizer, ele é negado pela prática do processo de ocupação e legitimação das grandes possessões, que não atendiam às exigência de moradia habitual e cultivo efetivo do solo. Esta é, inclusive a visão de Alberto Passos Guimarães, ao afirmar:

"a legislação de sesmarias, traída em suas origens pelo monopólio feudal, revela-se incapaz de servir às finalidades expressamente declinadas em seus textos: a disseminação de culturas e povoamento da terra.67”

Entretanto, dois fenômenos interessam, diretamente, neste Capítulo. Primeiro, o fato, brilhantemente defendido por Roberto Smith, de que o regime sesmarial significou um bloqueio à legitimação da propriedade absoluta (burguesa) da terra no Brasil. Significa isto que, se por um lado, o processo de ocupação privilegiada, seja ou não à margem da lei, avançou, no Brasil, por outro lado, com o tempo, e dado ao fato de que muitas dessas "apropriações" ou mesmo concessões, não preencheram os requisitos legais exigidos para sua confirmação pela Coroa, na verdade, tornaram-se ilegítimas. Portanto, passíveis de serem vertidas ao patimônio do Estado, enquanto terras devolutas.

Segundo, que o fato acima significa, do ponto de vista do Estado de Direito, do acato com validade social ao princípio jurídico de propriedade, não permitir o sistema de sesmarias a constituição legal da propriedade absoluta, embora não tenha impedido a formação real das grandes posses, tornadas em latifúndios, e seu sistema iníquo, privilegiado, que passou a dominar a paisagem do Brasil Rural. Tratam-se, portanto, de propriedades ilegítimas em sua origem, salvo os raros casos de sesmarias confirmadas

65 LIMA (op. cit., pp. 42 e 43). 66 NASCIMENTO (1985, p.13). 67 GUIMARÃES (1981, p.57).

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que não caíram em comisso ou as revalidadas pela Lei 601, ou das posses que foram ulteriormente legitimadas.

Tendo-se em consideração este contexto, aqui se antecipa uma argumentação fundamental desta pesquisa. Como será posto em evidência no decorrer deste estudo, em nenhum momento foram plenamente preenchidos os requisitos, legalmente exigidos, para a legitimação da propriedade, sobretudo no que toca à efetiva exploração, morada habitual e o mais importante, juridicamente, a demarcação de limites e confrontações e registros de propriedade. Portanto, que também não foram, na esmagadora maioria dos casos, lavrados os documentos (Registros, Escrituras) na forma exigida pela legislação pertinente. No próximo capítulo, ao discutir a Lei 601 de 1850, ter-se-á a oportunidade de por em evidência, que as maiores divergências em relação ao Projeto de Lei de Terras, pautavam-se ao problema da legitimação das posses e revalidação das sesmarias caídas em comisso ou irregulares, por um lado; e acerca dos impostos e tributos, por outro. Os aspectos ligados à colonização estrangeira, enquanto alternativa à substituição do trabalho escravo, constituiram-se, quase, que em unanimidade, entre os legisladores. As divergências, neste caso, referiam-se à questionamentos quanto às formas do financiamento do processo de emigração. É por esta razão, como será detalhado no próximo capítulo, que é importante enfatizar que a lei 601 de 1850 é uma lei de terras e não de imigração: sua preocupação e objetivo central era, portanto, assegurar a legitimação privilegiada da propriedade, contra a possibilidade de sua democratização. Daí sua vinculação à deteminadas teses de Wakefield. Talvez aí se encontre, também, a explicação para o fato, aparentemente contraditório, desta Lei ter sido conduzida e aprovada por gabinetes conservadores e sob vigorosa oposição dos liberais. Este assunto será objeto do próximo capítulo.

Esta situação ganha maior relevância após a Independência e com o desenvolvimento e integração da economia nacional, nas primeiras décadas do século XIX. Neste contexto, o vazio criado pela omissão administrativa e legal, sobretudo no período de do Império das Posses (1822-1850) quando não existia nenhuma norma especificamente reguladora do acesso à terra, gerou o ambiente propício ao apossamento desordenado de terras públicas, que desde então tornou-se uma constante na história agrária do Brasil, agravando ainda mais o quadro caótico herdado do sistema sesmarial, como será estudado com detalhes no próximo capítulo.

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CAPÍTULO 2

CRISE DO SISTEMA SESMARIAL E REESTRUTURAÇÃO DAS RELAÇÕES DE PROPRIEDADE

1. Contexto e Conjuntura da Crise

O sistema sesmarial, gestado em uma conjuntura econômica e sócio-cultural longínqua, destinado, originalmente, à tentativa de reorganização das relações de propriedade no contexto de uma formação social emergente que se estruturara sobre conflitos territoriais e desenvolveria no âmbito do mercantilismo, sofrerá inúmeras crises e reestruturações, ainda em Portugal, desde as suas origens remotas no século XIV68. Do ponto de vista jurídico, o próprio instituto é institucionalizado no contexto de grave crise69 e no bojo da Revolução de Avis, no reinado de D. Fernando, em 1375. Passará, ulteriormente, por um conjunto complexo de redefinições e consolidações na medida em que Portugal articula-se com a corrente caudalosa do desenvolvimento mercantilista e da expansão colonial70, entretanto, perdendo, cada vez mais, a sua relevância e eficácia social e econômica, sobretudo, na medida em que o poder político no Pequeno Reino desloca seu ponto de sustentação para os setores ligados à economia mercantil e ao lucro de alienação.

Segundo Faoro71, Portugal desde muito cedo deixa de ser uma Monarquia Agrária para fundar-se numa forte aliança com o capital mercantil72. Faoro vale-se da 68 Vide capítulo 1 deste estudo. Para uma análise mais detalhada e profunda dessa conjuntura ver o excelente trabalho de Virgínia Rau (op. cit.). 69Esse contexto de crise é assim descrito por Virgínia Rau: "No meio do século XIV a economia da terra tinha perdido o equilíbrio e a desorganização agrária corria a par com a instabilidade monetária e a alteração dos valores sociais. A rarefação da população campesina, pela peste ou pela fuga, a hipertrofia dos centros urbanos, conjuntamente com a nova autoridade social de mesteirais e mercadores, geravam o grande drama econômico português e europeu. Para se opor ao êxodo da população do campo para as cidades, à escassez de mão-de-obra e ao encarecimento dos salários, à decadência agrícola e ao aumento da indústria pastoril, os legistas jungiram todos os elementos julgados susceptíveis de suster a crise e deram corpo a uma norma jurídica, mais tarde denominada das Sesmarias." (op. cit.,pp.142-143). 70Acerca da problemática e especificidade do sistema colonial em sua feição moderna, articulada ao desenvolvimento do capitalismo mercantilista, ver o trabalho de NOVAIS (op. cit). 71op. cit. capítulo I.

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formulação de L. Trotsky sobre o “desenvolvimento desigual e combinado” para explicar o destaque do Estado português e sua política colonial no Brasil em relação à sociedade; os “saltos” da vida retardatária em relação à evolução “normal” face aos acicates impostos pelo mercado mundial; a combinação de fases distintas e amálgama de formas “arcaicas” com modernas. Nesse novo contexto o sistema sesmarial é retomado nos contornos do colonialismo moderno, muito mais como recurso de ocupação, colonização e defesa73 contra possíveis ingerências territoriais estrangeiras, na conjuntura do acirramento da contradições gestadas pela concorrência internacional mercantilista, ainda que mantendo, como sempre, o seu caráter administrativo, fiscal e, sobretudo tributário.

É neste sentido que, ao ser transposto para o Brasil, o instituto, necessariamente, sofrerá profundas transformações, e não poderá, evidentemente, cumprir as suas funções e realizar os seus objetivos primitivos, sobretudo, o de garantir a legitimação, apenas, das propriedades produtivas. No caso do Brasil, desde o início do período colonial, o seu objetivo fundamental era a garantia de ocupação e defesa do território, enquanto domínio do Estado e da Coroa, muito mais do que a sua ocupação efetivamente produtiva, embora esta, é claro, fosse condição mínima necessária, fundamental para assegurar a reprodução do sistema econômico e político como um todo. E neste sentido, estrutura-se com base na grande propriedade escravista e mercantil agro-exportadora açucareira74, unidade produtiva esta que, ditada pelas necessidades impostas pela realidade econômica e política da Colônia, representava, de fato, um determinado nível de desvirtuamento do Instituto, estando na origem da formação do latifúndio, sobretudo improdutivo, no Brasil.

Provavelmente, esse fato, concreto, real, explique a "tolerância" por parte do Estado português, em relação a determinado nível de "desvirtuamento" do instituto sesmarial na Colônia. Segundo Raymundo Faoro,

"depois de perder o caráter administrativo que lhe fora infundido pelos legisladores de Portugal, para acentuar seu conteúdo dominial, o regime de sesmarias gera, ao contrário de seus propósitos iniciais, a grande propriedade. Para chegar a essas linhas de contorno, muito se deve ao influxo da escravidão e ao aproveitamento extensivo da pecuária, fatores que se aliam ao fato de que, para requerer e obter sesmaria, era necessário o

72FAORO (op. cit). Esse aspecto é igualmente realçado por Roberto Smith (op. cit.) Ver especialmente, as páginas 343-344. 73Características essas que, aliás, também estiveram associadas à organização primitiva do sistema sesmarial em Portugal desde o período que Virgínia Rau (op. cit.) denomina de "Reconquista". Tratava-se, portanto, de um recurso de colonização efetiva do território, inicialmente fundado nas antigas "Presúrias", meras ocupações das terras conquistadas aos mouros. O sistema de sesmarias, portanto, deveria, consolidada a paz, constituir-se em uma política específica de colonização, fundado em concessões de caráter administrativo e tributário, pelo Estado, e tendo como condição básica, a exploração efetiva do solo. Portanto, desde suas origens mais primitivas o instituto das sesmarias já era estabelecido como alternativa à ocupação produtiva do solo, enquanto forma pacífica de garantir o domínio territorial pelo Estado. 74Ver a respeito dessa conjuntura: PRADO JR (op. cit.); FAORO (op. cit.); GUIMARÃES (op. cit.); SIMONSEN (op. cit.) entre muitos outros estudiosos da História Econômica e da economia brasileira, citados no decorrer deste trabalho.

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prévio prestígio político, confiada a terra não ao cultivador eventual, mas ao senhor de cabedais ou titular de serviços públicos". Instaura-se plenamente a figura dominante da “sesmaria de engenho.75”

Daí também que, na medida em que os riscos de perda da hegemonia e do domínio territorial da Colônia sejam superados, ocorram as reiteradas tentativas, mediante os diferentes Alvarás que, em distintos períodos e conjunturas econômicas, são propostos com o objetivo de fazer o instituto das sesmarias retornar ao seu eixo primitivo de garantir, apenas, as concessões territoriais condicionadas à ocupação produtiva da terra e ao cumprimento das demais cláusulas de resolubilidade, particularmente, no tocante ao pagamento de foros e tributos que, paulatinamente, são acrescidos ao primitivo dízimo da Ordem de Cristo, sobretudo na medida em que a economia colonial crescia e se tornava mais complexa e importante para o Orçamento Metropolitano. Entretanto, apesar de todos os possíveis desvirtuamentos e crises, uma característica, efetivamente a mais importante do instituto de sesmarias, é mantida - pelo menos formalmente76 - em todo o período de aproximadamente cinco séculos: a de não possibilitar a absolutização (embora, não também, o enfeudamento) da propriedade territorial, especialmente, a rural, no caso do Brasil77. Especialmente a partir de meados do século XVIII, quando, diante da anarquia reinante na estrutura fundiária, começa a impor limitações muito rigorosas ao reajustamento produtivo da economia às novas condições de produção, situação esta que se tornará insustentável nas primeiras décadas do século XIX. O enquadramento legal dessa característica da Colônia, frontalmente contrário às Ordenações Filipinas, é exposto sucintamente por Ruy Cirne Lima, quando afirma:

75 Op. cit., p. 407. 76 Aqui se diz "formalmente" no sentido de que a exigência é legalmente assegurada, portanto se constituindo em condição "sine qua non" à legalização das possíveis ocupações territoriais que, de fato, isto é, à margem das normas reguladoras do acesso à propriedade, nunca deixaram de ocorrer. Entretanto, ao serem formalmente, isto é, legalmente, mantidas as normas reguladoras do acesso e legitimação das terras, de fato, era criada uma situação, na qual, as apropriações que não se ajustassem a essa exigência, também apenas "aparentemente" se constituíam em verdadeiras propriedades, posto que dependiam sempre de confirmação, isto é, reconhecimento, por parte do Estado. Isso fazia com que todo o processo retornasse aos termos do instituto de sesmarias, portanto podendo, nestes casos, fazer valer as exigências formais, e implicar, assim, o confisco da terra e, mais que isso, até a prisão, dependendo da conjuntura e do "status" do ocupante ou posseiro. Portanto, esse "formalismo jurídico" em sua contradição com o fato concreto das ocupações, era uma carta forte na manga do Estado Colonial, sobretudo porque, mesmo as concessões legalmente feitas, não asseguravam a absolutização da propriedade. Tratava-se de um duplo artificio legal a impedir a efetivação do processo de apropriação. Esta característica do instituto jurídico da sesmaria dá razão a Faoro ao defender a tese de que, em Portugal, a propriedade territorial, nos termos do instituto da sesmaria, bloqueia o enfeudamento; e a Roberto Smith ao referir-se ao fato de que a propriedade territorial, neste contexto, tanto em Portugal como no Brasil, não se absolutiza: isto é, que embora não sendo feudal, também, não assume o caráter absoluto, mercantil, da propriedade burguesa. Este ponto de vista é aqui defendido, constituindo-se num dos pressupostos básicos da hipótese de trabalho. 77 Sim, porque a propriedade imobiliária urbana estava igualmente sujeita ao mesmo instituto em Portugal e, depois, no Brasil Colonial. As implicações e relevância desse fato, será claramente sentida no Brasil, em 1808, com a chegada da Corte portuguesa após à fuga decorrente da invasão das tropas de Junot, quando diversas residências, sítios, quintas e até fazendas, são simplesmente requisitados pelo Poder Real, para alojar a Corte, passando a ser efetivamente incorporada ao patrimônio da Coroa, embora sob determinada renda arbitrada pelo Estado, com a simples afixação das iniciais "PR" (Propriedade Real) em suas fachadas. Esse fenômeno será, desde então marcado no imaginário e na consciência "nativista" brasileira, em relação à sujeição "reinol" e será um dos móveis ideológicos da resistência que permeará toda a crise que levou a independência e ao Segundo Reinado.

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“o espírito dominialista inspira as disposições novas: as concessões de sesmarias são meramente concessões administrativas (e não privadas) sobre o domínio público.”78

Por outro lado, permanece, em letra de lei, a obrigação ao cultivo da terra sesmarial, como expresso no Alvará de 5 de janeiro de 1785 (que consolida a legislação). Ao lado da concessão sesmarial, obtém-se a propriedade da terra, não legitimada pelo Estado, pelo simples apossamento. Quando a legislação de sesmarias é abolida, em 1822, cria-se um vácuo legal que, segundo o entendimento de Cirne Lima - do qual se discorda neste trabalho - dá lugar ao apossamento de terras como único modo legítimo de apropriação, tanto mais legítimo quando a Lei de Terras de 1850 irá torná-lo legal - pelo apelo ao direito consuetudinário, conforme a argumentação de Cirne Lima - valendo-se do instituto da legitimação.

Neste entendimento, esta legitimação não se ateve ao propósito tão somente de evitar uma hecatombe na grande lavoura - no caso de as grandes posses não se haverem legitimado - mas, acima de tudo porque a posse com trabalho produtivo é fonte antiquíssima de apropriação no direito português, e, pela via legítima do costume, se arraigou por igual no direito brasileiro. Provisão de 14 de março de 1822, citada por Cirne Lima, ao regular medições e demarcações de sesmarias proíbe prejuízos a eventuais ocupantes com cultura efetiva do terreno, conservando-os em suas posses79. Por outro lado, como registra Smith, "a sempre presente tentativa da Coroa de disciplinar a ordem econômica gerou dois tipos de acomodamento", por um lado, sob o amparo e proteção do Estado e, por outro, ao nível concreto, "sob um mundo situado fora da concessão da legitimidade estatal."80

Este último se constituiu sempre, segundo aquele autor, em um campo amorfo e indefinido por onde vicejaram os interesses econômicos. "A coroa, até o fim do regime sesmarial, em 1822, vetou a grande propriedade fundiária e procurou de certa forma proteger a pequena posse produtiva", afirma Smith, o que parece ser uma conclusão que encontra pouco fundamento empírico, posto que o grande problema enfrentado nessa conjuntura situava-se entre grandes posseiros e antigos sesmeiros, embora a aparência, criada pela dimensão jurídica e pelo caráter generalizante da representação normativa, dê a impressão que se tratava de assegurar as pequenas posses, o que não correspondia aos fatos concretos.

Por outro lado, ao referir-se de forma abrangente à todas as posses (incluía grandes e pequenas) e, formalmente, assegurava os interesses destas últimas. Entretanto, como a realização de um direito formalmente garantido exige, concretamente, a "provocação" de ações no judiciário, este era e continua sendo um fator impeditivo de materialização ao nível do Direito Real. Além, é claro, das pressões efetivamente exercidas, ao nível concreto do quotidiano, pelos grandes posseiros e sesmeiros na luta

78 Pequena história territorial do Brasil. Sesmarias e terras devolutas, 2a ed. Porto Alegre, Sulina, 1954, p.39. 79 Citado em LIMA (1954, p.52). 80 SMITH (1990, p.334).

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pela terra, como aliás é vastamente documentado pela crônica da época81. Por outro lado, tem razão Smith, ao afirmar, na página 345, que "a grande propriedade fez parte da economia submersa, enquanto grande posse ou sesmaria nunca confirmada82", o que tem outra significação completamente distinta de "pequenas posses produtivas." Compram-se e vendem-se as terras assim apropriadas, ao arrepio da lei, porque, como diz Smith,

“o escravismo conduz ao latifúndio e não o inverso. Escravo é estoque, enraizado na tradição dos valores mercantilistas” (...) “Escravo é riqueza (não o é a terra) e substrato de status da classe proprietária, é garantia de dívida (pela hipoteca, só a ele aplicável, não à terra).”83

Idêntica é a compreensão de José de Souza Martins, posto que, como afirma, no regime da subordinação da produção colonial ao capital mercantil, a condicionante maior é que a terra não pode expressar a relação-valor, na espécie de “valor” da terra, mas apenas o escravo a expressa na forma do “valor” do escravo. É nesse nexo que se manifesta a acumulação mercantil, do ponto de vista da colônia84. Conforme Smith:

“O estatuto da propriedade não absolutizada (isto é, a não instauração no plano jurídico da propriedade territorial privada moderna), que conjuga as relações superestruturais do direito com a base da produção, que é mercantil, objetiva a incorporação estatal no cerne da propriedade fundiária, como elemento desencadeador e impulsionador dos interesses (associadamente) mercantis e fiscais.”85

É nesse contexto mais amplo e no bojo de suas diferentes conjunturas, que se agudiza a crise do sistema sesmarial, já reconhecida pelo Estado Português86 desde as últimas décadas do século XVIII, e que levará a sua extinção e a tentativa de reestruturação das relações de propriedade no decorrer da primeira metade no século XIX.

No caso do Brasil, a força das contradições que estão envolvidas neste processo de transição e desenvolvimento, que transcende, em muito, a mera questão da regulamentação fundiária, far-se-á sentir em sua plenitude, tendo sido a parteira, tanto da sua independência política, quanto, sobretudo, da própria estruturação do poder e do Estado independentes, no bojo de uma nova ordem econômica e política, tanto interna,

81 Ver Ruy Cirne Lima, op. cit. 82 Op. cit. Grifos nossos. 83 Op. cit. p.335. 84 MARTINS (1990). 85 Op. cit., p. 158. 86 "Tantas foram as liberalidades nas concessões de sesmarias, com áreas e 10, 20 e até 100 léguas, com diversas doações a um mesmo requerente, que em 1822, não havia mais terras a distribuir." (Faoro, op. cit., p.407). É com essa argumentação que Faoro, baseando-se nos argumentos de Cirne Lima, afirma, a respeito suspensão formal do regime de sesmarias, que ele estava, de fato, abolido, pela ausência de terras para distribuição, mesmo antes da Resolução no 76 de 14 de julho de 1822, que o suspendeu.

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quanto internacional87. Uma nova ordem fundada, agora, não nos enfraquecidos laços da concorrência mercantilista, mas na hegemônica exigência de ampliação dos mercados (tanto consumidores quanto, sobretudo, de investimentos) no bojo da lógica do capitalismo industrial em franco desenvolvimento. É nesse novo contexto que devem ser localizados, tanto os processos de independência nas diversas colônias, e de ruptura do "pacto colonial", quanto os diferentes processos que engendraram Leis de terras em diversos países, assim como os processos abolicionistas.

O regime de sesmarias, por outro lado, embora não impedisse o alargamento das apropriações de terras pela via da posse ("extra-legal" ou ilegalmente), não permitia, entretanto, a legitimação das terras assim obtidas88. A não ser em casos nos quais ficassem comprovadas a morada habitual, a exploração efetiva e a medição das terras ocupadas por apossamentos. Tratava-se, outrossim, de uma excepcionalidade, como o caso ilustrado pela Resolução de julho de 1822, posto que a via normal apenas era assegurada pela concessão real. Daí que os posseiros fossem sistematicamente acusados de intrusos, invasores, sobretudo quando se tratavam de pequenas áreas. Mas esses casos estavam sempre regulados, ao nível da praxis, por um lado, pela ação dos latifúndios e, por outro, pelas dificuldades e riscos inerentes a esse processo de ocupação, que apenas poderia ocorrer em terras afastadas, estando sempre sujeito a resistência dos indígenas.

No caso das grandes posses, apenas as dificuldades interpostas pelas terras sertanejas e pelos indígenas eram limitações a serem consideradas; dificuldades essas sempre superadas pela prea aos indígenas e pelos sistemáticos massacres que, de resto, sempre afetaram os pequenos posseiros, quando esses se encontravam no caminho da

87Trata-se, como bem registra Roberto Smith, da conjuntura do último quartel do século XVIII e das primeiras décadas do século XIX, "onde se enquadra mais significativamente a Revolução Industrial. Diante de uma perspectiva colonial, essa é a fase da desagregação do ordem colonial, onde a Independência dos Estados Unidos é evento marcante. A Revolução Francesa, a revolta dos escravos de São Domingos e o espraiamento das idéias igualitárias e do pensamento liberal conjugam forte inflexão histórica, revelando significativa mudança nas relações entre os homens e dos homens com a natureza, através da técnica e do conhecimento científico acionados para a valorização do capital. Tal mudança estava fadada a ter grande influência econômica e política em todo o mundo colonial.” (op. cit., p.342). 88Como oportuna e corretamente registra Roberto Smith (op. cit.,p.347), em toda a sua evolução o aparato jurídico estatal colonial não serviu aos interesses de apropriação privada da terra, dificultando sua legitimação e não permitindo sua absolutização. "O Direito público, constituiu antes, um balizamento a ser observado pelos interesses particulares e locais dos latifundiários" . Por outro lado, ainda segundo aquele autor, "os grandes proprietários... não detinham suficiente poder sobre o Estado para redirecionar o estatuto da sesmaria a seu favor."(Id. Ibidem). Entretanto, cabe registrar que isso não significa de forma alguma que as pequenas posses fossem beneficiárias do sistema. Nesse aspecto parece ter razão Faoro ao associar as dificuldades jurídicas criadas pela legislação territorial do Reino, ao problema de assegurar, por um lado, sempre, o domínio eminente da Coroa sobre todas as terras e, por outro, e com base no fato de que o "Rei era o maior proprietário."(Faoro, op. cit.), assegurar as condições de exploração efetiva da terra e, sobretudo, seu caráter administrativo e tributário e, dessa forma, impedir a possibilidade de qualquer espécie de enfeudamento. No caso do Brasil o equaciomento dessa questão da legitimidade será claramente abordado no seio da Lei 601 de 1850 e dá razão, em sentido estritamente jurídico, às teses de Roberto Smith: pode-se observar no texto legal citado, como se verá, a distinção, aliás importantíssima, entre "Legitimação" (art. 5o da Lei 601), destinada às posses, portanto, por suposto, consideradas ilegítimas até então; e "Revalidação" (art. 4o da mesma Lei), destinada às "sesmarias e outras Concessões do Governo Geral ou provincial que se acharem cultivadas ou com princípios de cultura e morada efetiva(...) embora não tenha sido cumprida qualquer das outras condições com que foram concedidas." Como se verá, a Lei 601 assegurará a ambos os casos, o que não significa, de nenhuma forma, privilegiar a pequena posse em detrimento das sesmarias ou latifúndios.

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expansão latifundiária. Mais uma vez, como se pode observar, a saga do privilégio e da violência privada facilitava tanto a expansão pelas grandes posses, quanto as possibilidades de sua legitimação. Havia, igualmente, o problema de grandes posses que se estabeleceram em sesmarias "abandonadas", sobretudo na área de expansão da economia cafeeira. Este problema da expansão das posses nesta áreas, sobre antigas sesmarias mais ou menos abandonadas após a decadência da mineração, estará no cerne dos conflitos entre posseiros e sesmeiros e será um dos pontos centrais do debate parlamentar, na década de 1840, quando se estavam definindo os critérios legais de regularização ou legitimação das terras no Brasil e que vierem a ser a Lei 601 de 1850.

Mesmo quando se tratavam das concessões legalmente realizadas pela Coroa, na medida em que estavam sujeitas às clausulas de resolubilidade, permaneciam sempre limitadas pelo estatuto jurídico e concreto de propriedades condicionadas, não-absolutizadas ou seja, que poderiam, a qualquer momento, geralmente com fundamento nas cláusulas claramente estabelecidas nos documentos de doação, ser confiscadas e retornar ao domínio da Coroa. Exatamente por isso não poderiam servir para fins mercantis e, sobretudo, hipotecários.

Entretanto, as contradições entre a legislação e prática da apropriação efetiva, gestadas pelo avanço das posses e pelo não cumprimento das cláusulas de resolubilidade (que legalmente ensejariam a anulação das concessões), aliados à anarquia e ao privilégio, - que se transformaram em verdadeira instituição na Colônia - gestaram a situação caótica da estrutura fundiária brasileira que, já no final do século XVIII, era insustentável e que se prolongará, apesar das tentativas reguladoras ao nível jurídico, até ou dias atuais.

Esta caótica situação era claramente exposta no Alvará de 5 de outubro de 1795, que tratava de tentar regularizar de forma global a questão da propriedade fundiária na Colônia, em cujo preambulo referia-se a "(...) abusos e irregularidades e desordens que têm grassado...em todo o estado do Brasil". O entendimento de Cirne Lima é, entretanto, diverso deste. De acordo com ele, o sistema de posses não era ilegítimo, mas, sobretudo, pertencia aos costumes em conformidade com abundante jurisprudência que cita. Esta situação impusera-se em Portugal em virtude do despovoamento resultante das navegações e guerras de conquista e da influência crescente do direito romano. Reporta ainda que, na Lei das Sesmarias, incorporou-se, desde então, o princípio da retenção pelo, ocupante, da propriedade cujo titular se ausentasse e não a lavrasse. Deste modo manifesta-se a opinião de Cirne Lima:

“Era a ocupação, tomando o lugar das concessões do Poder Público, e era, igualmente, o triunfo do colono humilde, do rústico desamparado, sobre o senhor de engenhos ou fazendas.”89

Deste entendimento poder-se-ia concluir que a expansão inusitada das posses a partir de 1822 estivesse sendo feita em cima das terras de sesmarias incultas e

89 Op. cit., pp. 20-1 e 47.

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abandonadas, (a maioria das terras, se é certo que praticamente todas as terras estavam já distribuídas em sesmarias) e, indiferentemente, por grandes e pequenos posseiros. É este, sem dúvidas, o raciocínio que está na base da afirmação de Maurício Vinhas de Queiroz, a da predominância historicamente possível da pequena propriedade, não fosse a Lei de Terras de 1850.

De qualquer modo, qualquer que fosse o caso, esta situação, concretamente, indicava a necessidade de redefinição dos critérios jurídicos de legitimação das terras que se encontravam em poder privado. As inúmeras tentativas realizadas através dos Alvarás encontraram, sistematicamente, a resistência, tanto dos latifundiários, quanto das burocracias da Colônia, sobretudo ao nível provincial ou local, dada a estreita dependência entre a burocracia e os potentados locais que se consolidaram definitivamente no Brasil desde o período das Regências (Faoro).

Essa necessidade de reestruturação do estatuto legal da propriedade devia-se, fundamentalmente aos permanentes conflitos que começaram a aparecer entre os antigos sesmeiros e os novos grandes posseiros, que, por exemplo, assumirá características de iminente radicalidade no contexto da expansão do café sobre as antigas sesmarias, quase abandonadas, do vale do Paraíba, entendimento este, comum a Faoro e a Caio Prado Júnior. Essa problemática dos conflitos entre grandes posseiros e antigos sesmeriros está no âmago do debate parlamentar da década de 1840, que desembocaria na conturbada elaboração e aprovação da Lei 601 de 1850.

Tal é o caso, por exemplo, do Alvará de 1795, que buscava tornar mais rigorosos os processos de doação e confirmação de sesmarias, reafirmando a exigência do cumprimento das cláusulas de resolubilidade, pactuadas, especialmente exigindo a medição, registro, residência e exploração efetiva. Esse Alvará foi revogado, por decreto, pouco mais de um ano depois. Permanece, assim, a situação de ilegalidade para a maioria das terras ocupadas na Colônia, situação essa que se estenderá e agravará, até a suspensão do instituto de sesmarias, em julho de 1822, pouco antes da Independência do país, recrudescendo-se durante todo o período do "Império das Posses" (1822-1850), quando o Estado virtualmente se retira, envolvido em problemas políticos mais emergentes, da questão específica da legitimação da propriedade, limitando-se, apenas, ao estabelecimento de um preceito genérico acerca do problema da propriedade na Constituição de 1824.

É nesse contexto que se articulam, ou entram em choque, as contradições, conflitos e conciliações entre o exercício legal da violência pelo Estado, por um lado, e a violência privada, dos latifundiários, por outro, contradições estas, que sempre estiveram presentes no processo de desenvolvimento e reorganização da estrutura agro-fundiária brasileira.

Na verdade o Estado, propriamente, não se retirou da questão, mas, face à conjuntura de instabilidade política do período e incapaz de fazer face às oligarquias latifundiárias das províncias, os governantes optam por uma estratégia jurídico-política hábil e inteligente: por um lado asseguram o pleno direito de propriedade na

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Constituição, evitando, desta forma o conflito direto com os latifundiários; por outro lado, não promovem a regulamentação infra-constitucional do preceito constitucional (artigo 179, XXII da Constituição de 1824), evitando, desta forma, envolverem-se num confronto direto com o latifúndio num momento delicado de consolidação do Poder Político e do Estado Independente em formação. Só que, com os direitos constitucionalmente assegurados e sem nenhuma norma reguladora que limitasse a sua ação, as grandes posses avançaram celeremente, consolidando definitivamente sua posição na estrutura fundiária brasileira. Essa questão só será retomada na década de 1840, quando se inicia a consolidação do poder mediante o chamado "Golpe da Maioridade", embora na conjuntura de um equilíbrio político eminentemente instável.

É neste sentido e contexto, também, que a certeza do privilégio e da impunidade, fará com que o próprio processo de legalização (titulação) das terras ocupadas, sejam por posses (que necessitavam ser legitimadas) ou se tratassem, simplesmente, de sesmarias não confirmadas ou caídas em comisso mas não arrecadadas pelo Estado (que exigiam revalidação), nunca tenha preocupado seriamente os grandes proprietários90. É assim que, na sua maioria, os processos de confirmação das sesmarias, durante o período colonial, e a titulação dos diversos tipos de imóveis rurais, ulterior a Lei 601 de 185091, - permanecendo sempre neste último caso, como não poderia deixar de ser em um Estado de Direito, a alta exigência de que fossem realizados dentro das formalidades legalmente estabelecidas, inclusive prazos92 - nunca tenham sido rigorosamente efetivados. Este fato concreto, real, torna a maioria das terras até então apropriadas, ilegais ou, no mínimo, de legitimidade questionável.

As justificativas para o não cumprimento das cláusulas e exigências legalmente estabelecidas ou pactuadas eram as mais diversas: dificuldades naturais, deficiência da burocracia agrária, falta de pessoal habilitado, geômetras, topógrafos, etc. Entretanto, tais alegações não podem revogar exigências legais. Portanto, o fato concreto, no entendimento aqui proposto, é que as propriedades não legitimadas ou legitimadas à revelia das exigências legais, são juridicamente questionáveis: em termos jurídicos esses títulos são nulos.

Apesar das resistências contra as grandes posses e do debate acirrado que gerou no que toca a sua limitação ou não-legalização, acabou, a Lei 601, por assegurar, na prática, todas as posses mansas e pacíficas, que se formaram, sobretudo no período que vai de julho de 1822 até a data da promulgação da referida Lei. A partir desta data, por suposto legal, apenas seria permitido o acesso à propriedade pela via da compra e venda, fato este que, entretanto, como se verá, não será efetivamente materializado,

90Este fato, mais do que qualquer outro, está na base do fracasso na implementação da Lei 601 de 1850 e de todos os fracassos que continuaram acompanhando a luta pela terra no Brasil até os dias atuais, e que ganhou profunda radicalidade no contexto do regime autoritário, entre 1964-1984, como se verá nos capítulos 4 e 5 deste estudo. 91 É neste sentido que se pode afirmar que no Brasil nunca ocorreu nenhum processo de reforma agrária; ao contrário, como bem coloca Octavio Ianni para o período do Regime Militar, que será objeto dos dois últimos capítulos deste trabalho, o que houve, de fato, foi uma "contra-reforma" agrária. 92Na verdade, essa situação persistirá até os dias atuais, como se pretende por em evidência neste trabalho.

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persistindo, sobretudo no que toca às terras não ocupadas ou do Estado, genericamente denominadas de devolutas, o simples acesso privado pela via da posse. A persistir esse tipo de apropriação, o problema das posses permanece, nunca tendo sido seriamente enfrentado pelo Estado Imperial e, depois, pela República, limitando-se o Estado, por um lado, a legitimar as posses, por suposto produtivas, ou vender as terras devolutas a "preço vil", e por outro lado, simplesmente deixando esse processo ao livre jogo das forças do latifúndio, no qual a violência, sobretudo contra a massa de pequenos produtores rurais permanece cada vez mais radicalizada, assumindo a forma crônica e ilegítima que se pode observar nos dias atuais.

Em 1850, após um longo período de convulsões internas e um acirrado debate parlamentar específico que durou 7 anos para aprovação e mais 4 até a sua regulamentação, a Lei 601, cujas teses centrais já vinham sendo postas desde 1821 por José Bonifácio, estabelece critérios jurídicos para a legitimação de todas as terras ocupadas até então, fosse de forma legal (sesmarias) ou não (as posses). Na origem do processo parlamentar esteve a grande expansão cafeeira a partir de 1830. A produção de café nos anos 1831-1840 triplicou em relação à década anterior, e na década seguinte duplicou, quando inicia seu deslocamento em direção ao “Oeste” paulista, conforme dados de Taunay elaborados por Sérgio S. Silva93. Como escreve Emília Viotti da Costa:

“A caótica situação da propriedade rural e os problemas da força de trabalho impeliram os setores dinâmicos da elite brasileira a reavaliar as políticas de terras e de trabalho. A Lei de Terras de 1850 expressou os interesses desses grupos e representou uma tentativa de regularizar a propriedade rural e o fornecimento de trabalho (...). O assunto foi discutido pela primeira vez no Conselho de Estado em l842 e um projeto de lei apresentado à Câmara dos Deputados no ano seguinte. O projeto baseava-se nas teorias de Wakefield e inspirava-se na suposição de que numa região onde o acesso à terra era fácil seria impossível obter pessoas para trabalhar nas fazendas a não ser que elas fossem compelidas pela escravidão. A única maneira de obter trabalho livre nessas circunstâncias seria criar obstáculos à propriedade rural. (...) O projeto foi elaborado tanto para regularizar a situação daquelas propriedades que tinham sido ilegalmente adquiridas, como também, ao mesmo tempo, para estender o controle governamental sobre as terras em geral.”94

Foram mudanças legais sem que, contudo, se modificassem as condições reais do processo de apropriação territorial, que permanece, ou sem legalização (registro, titulação) das propriedades ou, simplesmente, fundado em "registros de vigário", vagos e, geralmente, suspeitos, relatos de áreas, limites e confrontações, realizados pelos próprios latifundiários. Assim, persistirão os mesmos problemas de apropriação

93 Sérgio S. Silva. Expansão cafeeira e origens da indústria no Brasil, São Paulo: Alfa-Ômega, 1976, p. 49. 94 Emília Viotti da Costa. Da monarquia à república: momentos decisivos. São Paulo: Grijalbo, 1977. p.133.

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privilegiada e legitimação (titulação) questionável, que sempre estiveram presentes na formação da propriedade territorial brasileira.

O processo de consolidação da propriedade territorial rural no Brasil, assim, na prática, sempre assumiu a forma de uma violência legitimada pelo fato consumado da apropriação, fundado na força e no poder local dos latifundiários, processo esse que será consolidado nos primeiros anos da emergência do Brasil como nação independente, envolvendo um quadro complexo de articulações e cooptações, que sempre estiveram no íntimo do processo de legitimação política do poder no Estado95 independente, sobretudo no período transicional das Regências96. Essa situação, provavelmente, está na base do fenômeno amplamente conhecido no Brasil de que o processo legislativo territorial sempre é deflagrado a reboque do efetivo processo de ocupação e, quase sempre, procurando legitimar os privilégios conquistados pela força do latifúndio e dos potentados locais, tornando, assim, de certa forma, o Estado, como mero legitimador do "fato consumado".

2. O Império das Posses

Após o período conturbado por que passou entre 1808, com a transmigração, e o retorno da Corte Portuguesa, em 1821, gestou-se, no Brasil, profunda incerteza quanto ao caráter e consolidação do Poder do Estado e da sua própria integridade territorial.

Tratam-se, portanto, de questões que transcendiam, em muito, à problemática específica da propriedade rural, embora a ela não fossem indiferentes, sobretudo na medida em que as condições estruturadoras da sociabilidade estavam estritamente articuladas ao poder local, numa comunidade de bases institucionais frouxas e dispersas pela vastidão do território. Nesse contexto, a articulação das condições que pudessem servir de base à sustentação de um poder emergente, em um país que inevitavelmente marchava para uma ruptura institucional com sua antiga metrópole, numa conjuntura internacional em franca ebulição e desenvolvimento, ameaçava o tênue equilíbrio que poderia assegurar qualquer base segura ao poder de um Estado Unitário.

Havia, de imediato, vários riscos envolvidos nesta transição: o retorno à condição de colônia, que era uma ameaça presente, embora fortemente rechaçada internamente; contrapondo-se a esta ameaça, a alternativa à independência era francamente ameaçada pelo perigo da cessessão e da república, que alias, assume os contornos iminentes nos diversos levantes que ocorrerão após a Independência política do país, sobretudo na fase das Regências. Além das mediações colocadas imediatamente às opções e alternativas internas ao país, Portugal não seria indiferente a esses

95Referindo-se a esse contexto, Faoro (op. cit., p.329) afirma que, nesse período de consolidação do poder no contexto da estruturação e consolidação da nação independente, "governar, dada a estrutura que os interesses articulam, consistia em proteger, guiar, orientar a camada que detinha o poder econômico. Para que a combinação funcione será necessária a concentração do governo, o entendimento com os especuladores, o alargamento da camada dirigente, com muitos funcionários às ordens de um estado-maior." 96 Ver a respeito deste contexto, especialmente, os capítulos VII, VIII e IX do excelente trabalho de Raymundo Faoro (op. cit).

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movimentos, e tentaria impor suas posições97, que, em última instância, foram negociadas em termos de uma significativa indenização e na continuidade monárquica e dinástica, como os fatos evidenciaram.

Nesse contexto de conflitos, muito mais imediatamente colocados em termos da consolidação do poder nacional, e da liberdade econômica do Brasil, digladiam-se diversas facções tentando fazer valer seus privilégios e posições na estrutura do poder. Economicamente, por um lado, havia a exigência, imposta pelo novo contexto internacional, que apontava para a impossibilidade do desenvolvimento do País, se mantida a tradicional estrutura escravista, de baixa produtividade e impedidora do desenvolvimento do mercado interno, livre, fundado no novo contexto da concorrência, inerente à integração a um mercado mundial capitalista, agora em sua fase industrial. Por outro lado, seria impossível a manutenção da subordinação aos interesses mercantis metropolitanos e o retorno ao antigo e superado (desde 1808) "pacto colonial". Havia-se, há muito, encerrado a lógica do mercantilismo e, portanto, as possibilidades de sobrevivência e reprodução da economia nacional em bases escravistas e agro-exportadoras estavam profundamente comprometidas.

É nesse contexto que se situam as pressões inglesas no sentido da libertação das colônias98 e da extinção da escravatura. Entretanto, concretamente, no Brasil, as exigências implicadas nesta profunda transição, impunham alternativas e opções econômicas dificilmente conciliáveis e de materialização problemática, sobretudo no curto prazo99. Tratava-se de consolidar a integridade nacional, contra a cessessão; reorganizar as bases políticas do poder de Estado emergente, contra os riscos de restauração colonial; pacificar as lutas entre facções locais; dar fluidez e efetividade ao problema grave da produção agro-exportadora e da propriedade territorial, caóticos desde muitos anos - portanto, de redefinir o instituto da propriedade rural - e, finalmente, transitar para o trabalho livre, em sua sociedade sustentada nas colunas corroídas da escravidão.

Portanto, não se tratava apenas de dar fluidez, racionalidade e legitimidade à estrutura agrofundiária. Ao contrário, este problema emergia como relevante no bojo do equacionamento de questões políticas e econômicas mais graves e emergentes. Provavelmente por isso, e não por motivos especificamente ligados à propriedade

97Como ficou evidente na convocação da "Cortes Portuguesas" após o retorno de D. João VI a Portugal que se reúne na ausência dos Deputados brasileiros e adotam medidas que indicavam francamente o rumo da re-colonização do Brasil (vide a esse respeito, entre muitos outros estudos, SMITH (op. cit); FAORO (op. cit.). 98Bentham: "Emancipate your Colonies" (In.: SMITH, op. cit. p. 248). 99Este fato talvez explique a posição ambígua e contraditória de José Bonifácio de Andrada e Silva, por exemplo, a respeito da extinção do trabalho escravo. Como se sabe, desde 1821, antecipando-se inclusive, a publicação das teses de Wakefield, Bonifácio já expunha as linhas mestras que fundamentariam as teses da Colonização Sistemática e que, na década de 1840 iriam fundamentar os preceitos consagrados na Lei 601, especialmente a abolição do sistema de doações de terras com base no instituto das sesmarias, que deveria ser substituído pelo processo de compra e venda; a necessidade da colonização estrangeira, como alternativa à substituição, no médio ou longo prazos do trabalho escravo. Não é, portanto, coincidência que na Resolução 76, de 14 de julho de 1822, a ele atribuída e ratificada apenas em 1823 pelo Imperador, tenha sido "abolido" sumariamente o regime de sesmarias e consagrado o princípio da legitimação das posses produtivas, contra a presença de sesmarias abandonadas ou deficitárias.

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territorial em si, é que o instituto de sesmarias é revogado, em 14 de julho de 1821100 sem que tenha sido substituído por nenhuma outra regulamentação territorial até 1850, a não ser as garantias fundamentais ao Direito (genérico) de propriedade asseguradas na Constituição de 1824.

Finalmente, o funcionamento da economia enfrentava problemas de outra natureza, como as pressões externas da Inglaterra, em franco desenvolvimento industrial e sequiosa por assegurar a expansão dos mercados, tanto para seus produtos industriais, quanto fornecedores de matérias-primas; mas sobretudo, como ficará claro nas teses neo-colinalistas, particularmente de Bentham e Wakefield, no sentido de assegurar a ampliação do mercado para a exportação de capitais, então vigorosamente defendida, sobretudo por Wakefield, com base nas teses de Adam Smith, enquanto alternativa para superar a crise de excedentes de capital na "mother country" (Smith. op. cit.). É neste contexto, por exemplo, que se fundam as teses da Colonização Sistemática101.

Tratavam-se, portanto, de problemas que não eram especificamente adstritos à regulamentação da propriedade territorial. Demais, legal ou ilegalmente, as terras estavam sendo incorporadas ao sistema produtivo da economia, sobretudo, através de sua articulação e subordinação aos segmentos básicos da economia, ligados à atividade agro-exportadora. Neste contexto a abolição era uma exigência mais vigorosa, entretanto de difícil equacionamento, posto que os escravos compunham a força de trabalho fundamental, de difícil substituição, no curto prazo, sobretudo pela ausência de um sistema oficial de crédito e da impossibilidade de viabilizá-lo de forma adequada. Até 1850 nenhum dos dois problemas será efetivamente enfrentado, apesar de todas as pressões internas e, sobretudo, internacionais.

Essa conjuntura, interna e internacional, talvez explique porque com a suspensão da concessões de sesmarias em 14 de julho de 1822, e com a revogação de toda a legislação agrária portuguesa, com a Independência dois meses depois, a questão do acesso à propriedade territorial permaneça sem nenhuma regulamentação específica até 1850. De fato, o que ocorre é que a questão genérica do direito de propriedade, em seus contornos efetivamente burgueses de propriedade absoluta, ficará assegurado, genericamente, na Constituição Política do Império do Brasil de 1824, nos seguintes termos:

"Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis e Políticos dos Cidadãos Brasileiros, que têm por base a liberdade, a segurança individual e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império, pela maneira seguinte. (...)”

100Como comenta Roberto Smith (op. cit. p.284) "o regime sesmarial, em desagregação há longo tempo no Brasil colônia, termina por ser extinto em 1822, pouco tempo antes da Independência. Isso parece ter ocorrido em circunstâncias marcadas pela discrição, onde institucionalmente não se procurava fazer alarde sobre seu fim" (grifos nossos). Essa discrição a que se refere Smith é relevante e, certamente, está associada à preocupação do Governo, na época, em não contribuir, ainda mais, para a radicalização dos conflitos, especialmente nas Províncias. 101"A preocupação central de Wakefield era, portanto, com o fenômeno de rebaixamento geral da taxa de lucro na Inglaterra desde 1815, tendo em vista o excesso de capital, e não como decorrência da elevação do custo da reprodução da força de trabalho." (SMITH, R. op. cit., p. 250).

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"XXII - É garantido o Direito de Propriedade em toda a sua plenitude. Se o bem público legalmente verificado exigir o uso, e emprego da Propriedade do Cidadão, será ele previamente indenizado do valor dela. A Lei marcará os casos, em que terá lugar esta única exceção, e dará as regras para determinar a indenização."102

É nesse contexto, de vazio da regulamentação infra-constitucional com relação, especificamente à propriedade territorial, que se configura a situação conhecida como "Império das Posses", ou seja, fundado no fato de que não havia, legalmente, o estabelecimento de instrumentos legais que assegurassem a legalização das aquisições de terras, nem regulassem o seu acesso. Neste sentido o Estado realmente, e não apenas virtualmente, retira-se da luta pela terra. Império das Posses, sim, posto que, nesse contexto de impossibilidade de legalização e, portanto de reconhecimento formal, das propriedades pelo Estado, apenas era possível o acesso à terra, pela via da mera ocupação, sem nenhum limite ou restrição. Daí a agudização da profunda anarquia que já vinha ocorrendo, à margem da legislação sesmarial, antes, quando as posses sempre avançaram à revelia do instituto de sesmarias. É óbvio que, nessa conjuntura, os grandes posseiros, mais que os pequenos, tinham concretamente a possibilidade de fazer valer, pela força privada e fundados no prestígio, as suas ambições e pretensões territoriais. Neste sentido, discorda-se frontalmente da noção que Maurício Vinhas de Queiroz fornece do “Império das Posses”. Segundo a interpretação daquele autor, o vazio jurídico, a perpetuar-se num lapso de tempo maior, teria gerado uma autêntica reforma agrária, a saber:

“a expansão livre e impetuosa da economia dos posseiros, os quais se atiravam sobre as terras inexploradas em um ritmo até então desconhecido. Em 1850 esse processo - que levado às últimas consequências tornaria o Brasil um país de estrutura agrária muito diversa da atual - foi drasticamente interrompido;”

e, por isso, representou uma

102” Constituição Política do Império do Brasil", jurada em 25 de março de 1824 (In.: MEAF, 1983, p.357. Grifos nossos). Verifica-se, dessa forma que a questão da propriedade da terra não fica absolutamente à revelia; pelo contrário, a propriedade é vigorosamente assegurada pela Lei Magna. O problema é que, como sempre acontecerá no Brasil, adia-se a regulamentação do preceito, jogando-a para "a Lei Ordinária", Lei essa, que como a prática histórica parlamentar demonstrou, só será aprovada em 1850 e regulamentada apenas em 1854. Fato relevante a ser observado é que a Constituição do Império atribui valor monetário e a propriedade absoluta à terra, incentivando, por esse meio, a especulação e a usura, já então em franco desenvolvimento no País. Por outro lado, com o vazio na regulamentação, criado pela extinção da legislação sesmarial, com a Independência, não haverá nenhuma regulamentação que limite, por um lado, as possibilidades de apossamento de terras e, por outro, lhe assegure as condições de legalização. Assim, com o direito genérico à propriedade assegurado, e na falta da regulação estatal fará com que, na prática, subsista um espécie de "estado hobbesiano", onde imperará sempre a "lei do mais forte", o que tornará definitivamente assegurada as possibilidades de hegemonia do poder local-latifundiário, sobretudo numa conjuntura de instabilidade política ligada à consolidação do Estado Independente, quando então, as facções em luta pela hegemonia no poder, não permitirão que o Governo se atreva a ferir interesses locais. Essa conjuntura é evidenciada pelos inúmeros levantes e conflitos rurais que ocorreram entre 1821 e 1850, que só serão efetivamente controlados, no Segundo Reinado. É obvio que nessa conjuntura, o vazio da regulamentação agrária possibilitasse, sobretudo, a consolidação do latifúndio e do poder local, instituindo no Brasil independente, os sistemas de cooptação entre o poder local-regional e as facções em luta pela hegemonia no poder central, que daí para frente sempre estarão presentes no cenário político brasileiro, sobretudo no Parlamento.

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“severa limitação dos direitos que tinham sido conquistados pelos posseiros, conduzindo destarte à gradual passagem das formas escravistas a outras formas de trabalho no campo mais ou menos livres, dentro dos mesmos latifúndios.”103

Por outro lado, essa mesma situação dará origem a um grave problema de legitimação de terras. Se por um lado, nesse período, não poderia ser arguida nenhuma hipótese de ilegalidade com relação aos processos possessórios, por mais que estes fossem nocivos aos interesses econômicos ou mesmo “injustos”; por outro lado, dada essa mesma ausência de legislação específica, as terras então apropriadas, não podiam ser legalizadas, reconhecidas formal e legalmente pelo Estado. Essa questão só retornará à ordem do dia na década de 1840 e após a aprovação da Lei 601, que tentará regulamentar as formas e o conteúdo do direito de propriedade territorial na Brasil.

Nesse sentido, o Império das Posses foi, na verdade, o império dos latifundiários e dos potentados locais: nesse período eles consolidaram não apenas seu patrimônio territorial, mas sobretudo, o seu poder político local104 que, dadas suas articulações políticas, enquanto possível base de sustentação dos grupos no poder, esse período correspondeu, igualmente, ao da consolidação do papel fundamental que passaram a ocupar os potentados locais e latifundiários, enquanto base de sustentação dos diferentes governos nacionais.

Essa situação estará, daí em diante, fortemente presente nas diferentes políticas do Estado Nacional e, seu primeiro teste será realizado no debate parlamentar de 1843-1850, em relação, especificamente, ao problema da propriedade fundiária105.

3. A Lei de Terras: Legitimação dos Privilégios

103 Maurício Vinhas de Queiroz. Notas sobre o processo de modernização no Brasil. Revista do Instituto de Ciências Sociais, 3(1). Rio de Janeiro: 1966, p. 141. 104Neste sentido, contribuiu efetivamente para a consolidação do poder das oligarquias locais, a instituição da Guarda Nacional, no período Regencial, que atribui formal e efetivamente aos latifundiários patentes militares (de "Coronéis"). Esse fato, associado outras mudanças jurídicas, políticas e administrativas relevantes, promovidas, no período Regencial, consolidará definitivamente o poder das oligarquias locais latifundiárias (vide Raymundo Faoro, op. cit.). 105Um problema relevante nesse contexto é exatamente o da legitimação das posses (grandes posses, bem entendido), contra as pretensões de antigos sesmeiros. Não se tratava, como às vezes interpretam alguns autores (Vg. Faoro, op. cit.; Passos Guimarães, op. cit.) da defesa das posses (por suposto pequenas) contra os latifúndios (representados pelos sesmeiros). Ao contrário, representava os interesses das grandes posses, - que se formaram no período que se estende entre o processo político da Independência e a consolidação do poder nacional, - contra os antigos sesmeiros, sobretudo aqueles representados por elementos ligados aos privilégios da antiga Corte portuguesa. Trata-se, sobretudo, de grandes posses que se formaram, por exemplo, entre o Rio de Janeiro, Minas e São Paulo, durante a expansão da cultura do café, que afetaram interesses de antigos sesmeiros do vale do Paraíba (Faoro, op. cit.). É nesse sentido que o problema se coloca de forma diferente no Nordeste, cuja estrutura fundiária, concentrada, fora consolidada com base nas sesmarias durante o ciclo áureo da cana-de-açúcar e na região do café, que será consolidada sob o "império das posses". Por essa razão não se pode, simplesmente, como o faz Passos Guimarães, e em parte Emília Viotti da Costa, entre outros, atribuir a aprovação da Lei de Terras "aos interesses cafezistas.": tratava-se, na verdade de uma questão que, política e economicamente, ultrapassava os interesses difusos, embora concretamente manifestados, de oligarquias locais. Na verdade, envolvia a mudança de hegemonia do eixo econômico, que passa a se deslocar para a região centro-sul, desde 1808 e sobretudo na segunda metade do século XIX. E sobretudo, tratava-se de assegurar o monopólio da propriedade territorial: é neste sentido que a Lei 601 é uma lei de terras, muito antes de uma lei de colonização (cf. Faoro, op. cit.; Prado Jr. op. cit.; Linhares [1981], entre muitos outros).

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3.1. Considerações Básicas

É nesse contexto, - acima explicitado apenas em suas linhas fundamentais106 - que se pode afirmar que a Lei 601, de 1850, é, efetivamente, uma lei de propriedade territorial, uma lei de terras, e não um Projeto de colonização, embora esse tema não lhe fosse estranho, sobretudo se se tiver em consideração o contexto em que a problemática da economia agrária brasileira vinha sendo colocada desde 1821107.

Os debates Parlamentares que antecederam a aprovação da Lei 601 evidenciam a centralidade da questão da legitimação da propriedade. É exatamente no contexto de se assegurar a propriedade da terras, por um lado revalidar as sesmarias e, por outro, legitimar as posses (grandes posses), que se travam os debates e as divergências mais acirradas e relevantes. É nesse contexto, por exemplo, que se deve situar o problema dos impostos e tributos, sobretudo o Direito de Chancelaria, que equivalia ao pagamento do registro das terras. O fato de que a arrecadação desses impostos, assim como dos recursos arrecadados com a venda de terras, serem destinados à importação de colonos estrangeiros livres, não é argumento suficiente para se afirmar que tal representasse um rateio de tais dispêndios, entre proprietários de distintas regiões e condições. Na verdade, como se verá neste capítulo, tais recursos têm a seguinte destinação, conforme o artigo 19o. da Lei 601 de 1850: "1. ulterior medição das terras devolutas”; “2. importação de colonos livres(...)."

As questões da força de trabalho e da imigração108 sempre foram preocupações permanentes no processo de colonização brasileira, tendo sido, num primeiro momento, equacionadas pela "imigração forçada" de escravos africanos.

Assim, duas questões aparecem claramente colocadas na década de 1840, no que toca, especificamente à questão agro-fundiária, ao Parlamento: (1) A da legalização da propriedade territorial e da regularização efetiva da questão fundiária, que envolvia as terras que se encontravam no domínio privado por algum título legítimo (como era o caso das antigas sesmarias, mesmo quando em comisso pelo não cumprimento de algumas das cláusulas resolutivas); e as posses mansas e pacíficas, por um lado e, por outro, a arrecadação e demarcação das terras públicas e devolutas e, (2) A questão da colonização e da migração estrangeira, envolvendo problemas da maior relevância na medida em que se direcionava em duas frentes articuladas: (a) a importação de colonos livres e pobres, que deveriam ser destinados às atividades assalariadas nas propriedades 106Posto que entrar em todos os seus detalhes, embora da maior relevância, fugiria em muito dos objetivos desse estudo, que se ocupa da questão específica da luta pela legitimação da propriedade fundiária. Portanto, os aspectos acima indicados em suas linhas gerais e mais significativas, não teve a pretensão de oferecer um quadro completo da conjuntura do século XIX no Brasil, mas apenas de tentar localizar o contexto em que a questão da propriedade fundiária e da estrutura agrária brasileira estava colocada. 107Ver o documento “Lembranças e Apontamentos do Governo Provisório para os Senhores Deputados da Província de São Paulo” encaminhado à Constituinte Portuguesa (5.10.1821), onde são antecipadas as teses básicas adotadas na Lei de Terras (In. SMITH, op. cit. p. 286). 108Entretanto, deve-se ter bem claro para efeitos de qualquer análise dessa questão, que o problema da mão-de-obra nunca esteve dissociado do problema da propriedade territorial. Neste sentido, como ficou explicitado até aqui, o instituto de sesmarias nada mais era do que uma forma determinada de propor uma solução adequada a essa problemática em determinado contexto histórico, econômico e político.

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rurais na condição de trabalhadores livres e (b) à organização de colônias, pelo Estado, em determinadas regiões, sobretudo nas fronteiras109.

Assim, na verdade a Lei de Terras se destinava à regulamentação de duas situações distintas e não tão articuladas como é comum supor-se.

1a. A questão da legalização da propriedade privada, que significava reconhecer e transferir para o domínio privado, todas as terras economicamente destinadas à exploração agropecuária; e destacar as terras remanescentes, devolutas, que deveriam funcionar como um fundo de reserva de terras a servir de atração à imigração estrangeira livre, então importante, face ao aumento das pressões externas e internas, contra o trabalho escravo, na nova conjuntura econômica que se estruturava no país. Como se sabe, argumentação básica da tese de Wakefield110 a respeito da "colonização sistemática" tinha como pressuposto fundamental a existência de terras livres e estatais, que deveriam servir como meio de regulação do mercado (de terras e de trabalho), com o objetivo explícito, de facilitar a atração de colonos livres, (pobres e capitalistas) por um lado, e impedir a dispersão da força de trabalho (colonos pobres) sobre a vastidão de terras disponíveis, que segundo a argumentação wakefieldiana, dificultaria ou mesmo poderia impedir a formação e, sobretudo, o desenvolvimento, de unidades produtivas capitalistas111. O controle dessa possibilidade à inversão de capital na agricultura das colônias, segundo aquele economista, apenas poderia ser eficiente se promovido através da intervenção do Estado, pela via Legal: isto é, criando óbices jurídicos à dispersão do processo de apropriação territorial. Isto seria feito mediante o recurso à venda de terras e, especialmente, pelo controle da emissão dos títulos legais de propriedade112.

No caso do Brasil esses óbices enfrentavam, a resistência imposta pelos latifundiários, que tentavam "privatizar" (em lugar do Estado) em seu beneficio próprio a quase totalidade das terras economicamente aproveitáveis ou importantes. Ora, na ocorrência desse fato, esvaziava-se o pressuposto fundamental da colonização sistemática113, tal como teorizada por Wakefield, que seria a existência de terras livres e

109O que já se constituía no desvirtuamento das teses da “colonização sistemática”, tal como formulada por Wakefield como se verá oportunamente. Pode-se dizer que essa é a concepção latifundiária das teses da colonização sistemática de Wakefield que, evidentemente tem um sentido diferente e era uma alternativa ao desenvolvimento de um projeto capitalista, onde o controle das terras pelo Estado era condição básica para regular o mercado de terra e trabalho, em apoio a investimentos capitalistas: assegurar fluxo contínuo de mão-de-obra assalariada, pela via da imigração, custeada pelo Estado com o fundo arrecadado pela venda de terras aos assalariados que desejassem abandonar o mercado de trabalho (que Marx dirá que corresponde ao resgate pago pelo trabalhador ao capitalista para libertar-se do trabalho assalariado); assim como reservas de terras passíveis de serem privatizadas para eventuais investidores. (Ver a respeito: MARX, 1975; Livro I, capítulo XXV; WAKEFIELD, op. cit.; SMITH, op. cit.) 110Que serviu de inspiração às teses defendidas no Parlamento por ocasião da discussão do Projeto de Lei que resultaria, em 1850, na Lei 601. 111 As teses de Wakefield, dada a sua relevância, serãp tratadas de forma específica no item 4 deste capítulo. 112Ver a respeito MARX (1975) e SMITH, (op. cit). 113Como oportunamente registra Marx (op. cit., p. 892) “se de um só golpe, se transformassem todas as terras de propriedade comum em terras de propriedade privada, destruir-se-ia o mal pela raiz, mas as colônias seriam também destruídas.” Na prática, no Brasil, a negativa latifundiária em demarcar e legalizar suas terras, assim como os óbices impostos, à arrecadação das terras devolutas do Estado, funcionaram neste sentido apontado por Marx: acabaram por impossibilitar o Estado de controlar a “emissão de bom título” preconizada como fundamental na estratégia de Wakefield. Era uma situação que funcionava, na prática, como se todas as terras, ou pelo menos sua porção mais relevante, houvesse sido “privatizada” em favor do latifúndio. Nisso reside, na opinião

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estatais, passíveis de serem transferidas à iniciativa privada. Como se verá, advém desse fato o fracasso da “colonização sistemática” e da atração de imigrantes europeus para o Brasil. É neste sentido que a legalização e o controle rigoroso sobre as terras, sobretudo improdutivas e devolutas, era fundamental para o Estado; e é neste sentido que tentará atuar, inicialmente, a Lei 601. A esta tentativa de controle sobre as terras públicas é que se opõem todos os latifundiários, fossem, ou não, cafeicultores. Este fato coloca o segundo nível do problema enfrentado pela Lei 601 de 1850 - a colonização estrangeira.

2a. A questão da Colonização e, conjuntamente a esta, o problema da imigração estrangeira, sobretudo a européia, como se pôde antever pelos problemas levantados no item anterior, é de fato, esvaziada, embora permaneça no discurso e na Legislação aprovados. Porquê? Porque, na indisponibilidade, para o Estado, de terras economicamente aproveitáveis, que seriam as terras, no mínimo, mais próximas aos circuitos produtivos e mercantis, apenas sobrariam as terras distantes, que não tinham a possibilidade, como não tiveram, de cumprir o objetivo de servir como fundo de reserva para atrair colonos livres europeus, como acontecera, por exemplo, com os Estados Unidos e na Austrália.

Esta situação era muito mais relevante, enquanto bloqueio à imigração, por exemplo, do que o fato da persistência da escravatura no Brasil, (embora esta também levantasse suspeitas nos Governos Europeus). Além de impedir a alternativa de oferta de terras enquanto atrativo para a emigração estrangeira, criava uma situação importante, que permanecerá como um profundo e permanente entrave à reestruturação das relações de propriedade no Brasil: por um lado era bloqueado o processo de legalização da propriedade da terra, fazendo-se perpetuar o estado de incerteza quanto à propriedade, limites e confrontações das fazendas; "incerteza" esta que, em última instância, resolvia-se pela violência privada ou pela manipulação de privilégios junto às burocracias locais e provinciais. Por outro lado, o que é de relevância ainda maior, deslocava o centro do problema da regularização fundiária, para a colonização.

Neste último caso, a estratégia dos interesses latifundiários, que persistirá até os dias atuais, foi esvaziar o debate e sobretudo os processos legais e administrativos que pudessem estabelecer claramente os limites dos domínios privados e sobretudo a sua execução no campo, deslocando a questão para o âmbito amorfo e discutível da migração e colonização, sobretudo, como desbravamento.

Assim, na incerteza quanto a situação efetiva da estrutura agro-fundiária, a tese da colonização era sempre, desde então, colocada em duas direções: (a) promover a vinda de colonos pobres para servirem de mão-de-obra, submissa, porque endividada, para os latifúndios; e (b) promover a colonização estatal em núcleos e áreas afastadas

aqui defendida, a causa básica do fracasso do Projeto econômico associado à Política de Terras do Império, para o Brasil: tanto no sentido da atração de migrantes estrangeiros, quanto, sobretudo, do desenvolvimento de uma agricultura fundada no trabalho livre, com todas as suas consequências, hoje conhecidas. Este específico projeto capitalista para o Brasil , neste caso, em face da rigorosa oposição latifundiária, morreu ao nascer.

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dos domínios latifundiários - inicialmente nas fronteiras do Império ou em áreas de risco pelo interior do país. Esta era uma proposta absolutamente distinta da “colonização sistemática” de Wakefield: na verdade, negava-a. Era, certamente a “colonização sistemática dos grades detentores de terras”. Nessa perspectiva residem, primitivamente, as teses que ainda hoje são defendidas pelo latifúndio e suas organizações e representantes parlamentares, ao darem ênfase na colonização114 no sentido de desbravamento115.

Como se vinha dizendo, a Lei 601 ocupa-se, antes de tudo, da delimitação do direito de propriedade e das formas de acesso legal às terras, no contexto de um país emergente e no âmbito de uma conjuntura econômica internacional em franco desenvolvimento e amplamente competitiva. Neste sentido, a Lei 601 representa uma espécie de marco zero116 da legitimidade do acesso à propriedade territorial brasileira, e disso vem, na posição aqui defendida, a sua maior relevância teórica e concreta.

Já no preambulo da Lei de Terras é definido, clara e transparentemente, o seu nível de abrangência - a totalidade das terras do Brasil, excluindo-se as sesmarias confirmadas e que não se achavam em comisso que, por suposto, eram aceitas como propriedades privadas legítimas e como tais reconhecidas pelo Estado. É assim que a Lei 601,

"Dispõe sobre as terras devolutas no Império, e acerca das que são possuídas por título de sesmarias sem preenchimento das condições legais, bem como por simples títulos de posse mansa e pacífica: e determina que, medidas e demarcadas as primeiras (devolutas), sejam elas cedidas a título oneroso, assim para empresas particulares, como para o estabelecimento de colônias de nacionais e estrangeiros, autorizando o Governo a promover a colonização estrangeira na forma que se declara."117

A situação fundiária ficava, desta forma, claramente delimitada: 1. As sesmarias que se encontravam legalmente asseguradas, isto é, que preenchiam as clausulas de 114E mesmo no âmbito deste processo de imigração, na medida em que passa a adquirir alguma importância o mercado de terras, começará a ser defendida a tese de que o processo de colonização deveria ser entregue à iniciativa privada e não ao Estado. Tentava-se, dessa forma, manter e ampliar o domínio das camadas privilegiadas sobre o mercado de terras em todos os níveis. A articulação dessas teses, que se gestam historicamente desde esse período, é um capítulo importante da subordinação da terra e da ampliação dos privilégios no trato dos negócios agro-fundiários. A análise específica desta estratégia de controle das terras públicas merece pesquisas mais detalhadas, que fogem aos objetivos deste trabalho. Fica aqui essa sugestão. 115 Ver adiante, os capítulos 4 e 5 onde este tema é discutido detalhadamente. 116Como é evidenciado no decorrer deste capítulo e com base na análise cuidadosa e objetiva dos termos da Lei 601, ela de fato e de direito, estabelece um marco zero em relação à propriedade territorial no Brasil Independente. Isso não significa que ela revogue a situação de fato existente na estrutura agrária brasileira naquele dado momento. Pelo contrário, a Lei 601 toma como referência exatamente a diversidade de situações concretamente existentes e, realiza duas distinções fundamentais: 1. separa claramente o que sejam terras públicas (devolutas e do Estado) das terras que se encontravam no domínio privado (sesmarias ou concessões anteriores ou meras posses); 2. estabelece dois critérios e âmbitos distintos de reconhecimento, pelo Estado, das terras que se encontravam no domínio privado (Revalidação, para as terras que advinham de concessões ou sesmarias; e Legitimação para as demais terras que apenas se fundavam nas posses). Finalmente, estabelece que a única forma de acesso às terras devolutas, dali para adiante seria a venda. 117In.: MEAF (op. cit., p. 357).

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resolubilidade, vale dizer, estavam com exploração efetiva e morada habitual de seus respectivos concessionários, medidas e demarcadas, etc., eram reconhecidas como propriedades privadas, legalmente118; 2. As sesmarias e outras concessões que não preenchessem as condições acima, necessitavam de revalidação, e para tanto eram estabelecidos determinados critérios que serão analisados adiante; 3. As posses mansas e pacíficas, que teriam que ser legitimadas (o que implicava a admissão tácita, mas efetiva, de que não eram legítimas), e para tanto eram estabelecidos, igualmente, critérios que serão também analisados neste estudo. 4. Finalmente, definia as terras devolutas da União (as que não se enquadrassem nas condições acima, e não estivessem destinadas a algum domínio ou uso do Estado, Províncias ou Municípios), ficando definido, assim, o conceito de propriedade do Estado em oposição às terras devolutas do Estado.

O que distingue, essencialmente, estas situações, sendo de interesse para a argumentação básica deste estudo, é o termo “revalidação”. Por esta terminologia, o legislador sinalizou que as terras nesta situação necessitavam apenas de se verificar se cumpriam as cláusulas de resolubilidade ou se feriam interesses fundiários constituídos, como posses produtivas em seu interior ou outras condições, juridicamente estabelecidas, após o processo de concessão. Mas significou igualmente que, em princípio, eram propriedades consideradas legítimas, podendo apenas sofrer algumas limitações ou restrições, sobretudo em função do não cumprimento de cláusulas legais ou de sentenças judiciais eventualmente pronunciadas contra elas ou a favor de terceiros.

Em relação às posses, a situação é absolutamente distinta das anteriores: tratavam-se de áreas apossadas, por suposto ilegal ou extra-legalmente, e que tinham a expectativa de direito de serem legalizadas pela Lei 601, nos termos claramente estabelecidos nesta mesma Lei. Na medida em que a lei assegurava a legitimação das posses mansas e pacíficas produtivas, exceto quando se encontrassem no interior de sesmarias não caídas em comisso, a situação dos posseiros (grandes posseiros, como se verá) estará plenamente assegurada. Mesmo contra os interesses de determinadas sesmarias, sobretudo as que haviam caído em comisso. Este é o cerne da questão entre posseiros e sesmeiros, e não tem nenhuma relação fundamental com pequenos posseiros como se verá adiante.

Portanto, tratava-se, de estabelecer os critérios jurídicos fundamentais que passaram a nortear os processos de legalização da propriedade territorial, por um lado; e de definir, claramente, por outro lado, a posição do Estado em termos do reconhecimento formal, jurídico, da propriedade territorial, aliás, consagrado na Constituição de 1824. Em suma, a Lei 601 de 1850 apresenta-se como uma legislação específica de propriedade e estabelece claramente, todos os marcos jurídicos e

118Este era o caso, sobretudo, das terras do nordeste açucareiro, cuja estrutura agro-fundiária consolidara-se, do ponto de vista jurídico e, em grande parte, concreto, sob a égide do instituto das sesmarias (Cf. SMITH, op. cit. e FAORO, op. cit.)

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administrativos, fundamentais, no âmbito do Estado de Direito, para a constituição legal da propriedade privada da terra.

Por esta razão, estritamente jurídica, mas também concreta, é que as sesmarias que preenchiam as cláusulas de resolubilidade, foram consideradas, legalmente, como parte do domínio privado e, portanto, não estavam abrangidas pela Lei 601, que se destinava à legitimação ou revalidação das situações que se encontravam em conflito com as normas legais até então estabelecidas.

Esclareça-se, entretanto, que a Constituição de 1824 consagrava o Direito de propriedade. Entretanto, na medida em que não definia os critérios para materialização deste direito, permitiu, durante o período do império das posses (1822-1850), o avanço indiscriminado das posses sobre as terras disponíveis (fossem públicas ou não), situação que gestou um profundo conflito, especialmente entre grandes posseiros e antigos sesmeiros, que a Lei 601 buscava conciliar. Observe-se, "en passant" a esse respeito, que as posses que se estabeleceram sobre antigas sesmarias que preenchiam as condições de resolubilidade, portanto, legalmente reconhecidas como contidas no domínio privado, eram consideradas ilegais, e davam apenas direito à indenizações por possíveis benfeitorias. Caso contrário das posses sobre sesmarias ou concessões caídas em comisso, como já registrado.

Esta a razão fundamental que pode ser arguida em defesa do fato de que, nos debates parlamentares, dois pontos concentraram as maiores polêmicas:

1o) O problema da legitimação das posses e da revalidação das sesmarias ou outras concessões que não preenchiam as condições legais (que era sobretudo, embora não apenas, o caso do vale do Paraíba) e;

2o) Os problemas dos impostos e tributos, sobretudo o Direito de Chancelaria119. Os problemas referentes à necessidade da promoção da migração e da

colonização, como pode ser deduzido da análise dos debates parlamentares que antecederam a aprovação da Lei 601, não apresentaram maiores divergências. Na verdade havia, praticamente, consenso quanto a este ponto120. As mudanças ocorridas na legislação sobre o trabalho livre, nos anos 1830 e 1837 referendavam o sistema de controle da mão-de-obra própria ao escravismo dominante. Como diz Brasílio Sallum Jr.: Se era verdade que essas leis

“protegiam de forma mais eficaz que as Ordenações o dinheiro adiantado pelos fazendeiros bem como a disciplina das fazendas, não resolviam, de um lado o problema do endividamento dos imigrantes e, de outro, permitiam tal dose de parcialidade no julgamento das questões em que se envolviam os trabalhadores

119Veja-se a respeito dessas questões, entre outros, os excelentes trabalhos de Raymundo Faoro e, sobretudo, para uma análise mais sistemática desta problemática, os estudos de Roberto Smith e José Murilo de Carvalho, todos citados. Este tema é retomado, em suas linhas fundamentais, no capítulo 3. 120Ver a respeito os trabalhos citados na nota anterior, particularmente, Roberto Smith e José Murilo de Carvalho.

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que dificultavam a imigração, já que contribuíam para a má fama que as colônias da Província tinham na Europa.”121

Apesar de o sistema de parceria haver sido abandonado nos anos 50, os novos contratos de locação de serviços eram firmados de tal modo que, como diz Sallum, “permitiam que fossem enquadrados nas leis de locação de serviços datadas de 1830 e 1837122.” Apenas a partir dos anos 60 iriam alguns fazendeiros adotar-se uma espécie de contratos, só generalizada nos anos 80 - da grande imigração (em 1884 é que o problema da dívida dos colonos com os fazendeiros resolve-se definitivamente com o subsídio total da imigração pelo governo paulista) - que suavizavam para o colono as condições draconianas anteriores. E apenas em 1879, uma nova lei veio representar

“em comparação com as leis anteriores (...) um grande avanço na proteção aos trabalhadores”, (posto que) “procurou reduzir a dependência dos imigrantes em relação aos proprietários, impedindo que estes cobrassem mais do que 50% dos gastos que tivessem feito com a sua importação, além de estabelecer prazos máximos para os contratos de trabalho.”123

As divergências e, sobretudo, as resistências mais importantes, no debate Parlamentar, eram levantadas em relação aos impostos e vinham, muito mais, de uma tradição antiga do Direito português, que sempre se caracterizou por uma fraca ou nula tributação territorial, em oposição a uma forte tributação dos processos de transmissão da propriedade (Faoro, op.cit.). Assim, pode-se afirmar com relativa segurança, que as divergências com relação a esse ponto da Lei 601/1850 advinham do fato efetivo de que os latifundiários não desejavam pagar os referidos impostos124; donde as frequentes referências, no debate parlamentar da década de 1840, a "estelionato público", que o Estado estaria pretendendo promover em relação aos "proprietários" de terras no Brasil125. Além, é claro, da ameaça, pelo não pagamento dos impostos, de perda da propriedade126 ou de sua conversão em mera posse, com todas as implicações que tal fato significava.

121 Brasílio Sallum Júnior, Capitalismo e cafeicultura. Oeste paulista: 1888-1930. São Paulo: Duas Cidades, 1982, p. 85. 122 Idem, p. 83. 123 Idem, pp. 84 -5; 86 - 89. 124Essa questão é levantada reiteradamente pelas autoridades Coloniais ao se reportarem aos processos de confirmação de sesmarias, que sistematicamente não era requerida pelos concessionários, em boa medida para evitar os custos tributários (ver a respeito, sobretudo, Ruy Cirne Lima e Raymundo Faoro, ambos citados). 125Como bem registra José Murilo de Carvalho, "oposição maior ainda seria feita, no entanto, às taxas e impostos, e às cláusulas de expropriação, salientando-se no ataque, Galvão e Urbano. Este último diria, ao discutir o direito de chancelaria, que por em dúvida a legitimidade das posses mansas e pacíficas era princípio 'anárquico e subversivo da ordem pública e destruidor de todo o direito'. Mais tarde rejeitaria tudo que não se referisse à colonização por ser 'extorsão violentíssima, um verdadeiro estelionato público.' "(op. cit., p. 42). 126O que, segundo Urbano, citado por Murilo de Carvalho, tornar-se-ia um atentado à propriedade privada em geral, além de inconstitucional, e representava um risco à ordem pública (p.43).

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Portanto, parece frágil a tese de que a resistência aos impostos devia-se ao fato de que os mesmos beneficiariam aos cafeicultores em detrimento de outros latifundiários, especialmente nordestinos, por se destinarem à cobertura de despesas com a migração estrangeira127. Simplesmente porque não era este o caso. O fato dos dois problemas aparecerem associados nos debates parlamentares não é prova suficiente de que houvesse uma associação direta entre ambos: quer dizer, o imposto de chancelaria não estava sendo criado para promover a imigração. A imigração, sim, é que seria, parcialmente, financiada com recursos advindos deste imposto, assim como da venda de terras devolutas128. Tratava-se, de fato, no caso do “Direito de Chancelaria”, que era o mais criticado, de um imposto de transmissão "inter vivos" sobre a propriedade, que, como se sabe, é uma prática tributária corrente em qualquer transação mercantil-imobiliária no universo do direito burguês, que se encontrava em vias de implantação no Brasil129. Nesse sentido, pode-se arguir a hipótese de que a argumentação, que associava o imposto sobre a transmissão da propriedade, ao rateio de eventuais custos de imigração de estrangeiros livres para a lavoura cafeeira; que a mesma atuava com o sentido de um argumento "demagógico" contra qualquer imposto sobre a propriedade latifundiária130 e, em última instância, visava desviar o cerne da questão, (da propriedade para a tributação vinculada à colonização dirigida) na tentativa de abortá-la.

A questão mais grave e mais relevante, entretanto, era a que opunha antigos sesmeiros e posseiros. Vale registrar que ambos, sesmeiros e posseiros, têm que ser claramente qualificados: tratavam-se de grandes posseiros que se estabeleceram em terras devolutas (públicas), ou “particulares” (sesmarias abandonadas) e de sesmeirios que haviam caído em comisso, por estarem suas concessões ou abandonadas, ou não confirmadas, pela falta de cumprimento das condições legais estabelecidas nas cláusulas resolutivas.

127Embora, é evidente, a migração de colonos pobres, de fato beneficiasse sobretudo essa camada dos latifundiários. Mas o que fica claro nos debates e, depois no texto da Lei 601, é que a resistência estava nas restrições que a Lei 601 estabelecia em relação à revalidação das sesmarias e à legitimação das posses, sobretudo no que se referia à restrições aos tamanhos das posses (e sesmarias em comisso), o seu condicionamento à efetiva exploração e residência habitual e à exigência do imposto de chancelaria. 128Na verdade, segundo a lógica da teoria da “colonização sistemática”, então arguida, o financiamento de migrantes era assegurado pela venda de terras aos ex-assalariados que, após fazerem um pecúlio, trabalhando para os capitalistas, e portanto, promovendo a acumulação de capital, ao pagarem pelas terras, estavam de fato, financiando, através do Estado, a vinda de seus substitutos. Logo, essa idéia de financiar migração com imposto é, realmente, estranha à tese da colonização sistemática (vide Wakefield, op. cit. e Marx, op. cit.). Aliás, o artigo da Lei 601 que se refere a esse problema afirma que os recursos advindos dos impostos de chancelaria e da venda de terras serão aplicados “1o à ulterior medição de terras devolutas e 2o à importação de colonos livres.” 129Ver a esse respeito o excelente estudo de Roberto Smith, que procura evidenciar a relevância de Lei 601 no sentido de possibilitar, no Brasil, a gênese da propriedade absoluta e mercantil da terra, enquanto pressuposto à mercantilização da força de trabalho, numa perspectiva teórica enriquecedora e criativa na abordagem deste tema. 130Embora fosse verdadeira a parte da argumentação referente ao fato de que a imigração beneficiaria especialmente os cafeicultores. Só que os objetivos perseguidos pelos que assim argumentavam era impedir a tributação da terra; não fazer oposição à imigração estrangeira, de que aliás não havia cogitação imediata, o que dá um sentido completamente distinto ao fato. Isso fica claro nos debates parlamentares da década de quarenta do século XIX (Cf. CARVALHO, op. cit.)..

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Como esse conflito opunha, basicamente, latifundiários (grandes posseiros e sesmeiros) dos Estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo (embora fosse um fenômeno extensivo a todo o país), sobretudo porque a expansão da cultura cafeeira, especialmente no Vale do Paraíba, ocorrerá sobre terras de antigas sesmarias mais ou menos abandonadas, desde a decadência do ciclo da mineração (Cf. Faoro e Prado Júnior, citados), valorizando-as; vem à tona um conflito que tem sido interpretado no sentido de que a Lei 601 achava-se subordinada aos interesses destes cafeicultores131: paulistas, por exemplo, na opinião de Alberto Passos Guimarães, ou fluminenses, segundo Murilo de Carvalho.

3.2 A Questão da Propriedade Territorial

A desorganização da estrutura fundiária brasileira, como reiteradas vezes registrou-se, era um problema reconhecido desde os últimos lustros do período colonial. Estava na origem, não apenas de conflitos entre latifundiários - fossem, estes, sesmeiros ou grandes posseiros - como afetava, negativamente, as possibilidades de desenvolvimento da produção agro-exportadora, fundamental, sobretudo após a Independência, à estabilidade econômica, política e social da nação emergente. Os conflitos pela terra politizaram-se e ganharam radicalidade no período de consolidação da Independência nacional, numa fase de instabilidade econômica, política e social, que iria persistir por um longo período, que se estenderá desde 1821 aos finais da década de 1840, projetando-se, outrossim para adiante, e marcando endelevelmente todo o processo de desenvolvimento ulterior da sociedade e da economia política Brasileiras.

É nessa conjuntura de crise que será encaminhada a discussão do Projeto que redundará na Lei 601 de 1850. Tratava-se de tentar por termo à situação caótica da propriedade rural por um lado e, por outro, de criar alternativas econômicas à organização da produção, sobretudo no que se referia à oferta de força-de-trabalho livre, necessária ao desenvolvimento da produção agro-exportadora, e alternativa à escravidão. Neste contexto, como se observou acima, dois problemas aparecem claramente colocados na Lei 601: 1. Resolver o problema da propriedade privada das terras e separar clara e legalmente o patrimônio territorial público do privado; e 2. 131Neste sentido pode-se afirmar que se os cafeicultores tiveram interesses nesse processo - e é obvio que tiveram - tais interesses referiam-se fundamentalmente à legitimação de suas posses: à propriedade privada da terra que detinham, o seu reconhecimento pelo Estado. Por isso não opunham grande resistência aos impostos, por exemplo, o de chancelaria, embora, como os demais latifundiários, defendessem sua redução ao mínimo, por ser esta uma alternativa para legitimar suas vastas posses. Tratavam-se, portanto, de interesses que eles defendiam enquanto latifundiários e não enquanto cafeicultores. O objetivo era sempre, antes de tudo, assegurar a legitimação da propriedade da terra. É obvio que haviam outros interesses envolvidos neste processo, como, por exemplo, o interesse no financiamento, pelo Estado, da imigração de estrangeiros pobres, processo esse, aliás, que sistematicamente fracassará, sem que seja afetado seriamente o desenvolvimento inicial da economia cafeeira. Trata-se, como parece claro, de um conflito sobre legitimação da propriedade e não, especificamente, ou prioritariamente, sobre colonização. É necessário fazer, como o faz Paula Beiguelman (A grande Imigração. In.: Pequenos Estudos de Ciência Política), a distinção entre o período histórico-econômico de 1840-1890 (imigração restrita) e o de 1890 em diante (imigração de massa).

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encaminhar alternativas ao problema da mão-de-obra livre, autorizando o Estado a promover a colonização estrangeira. Serão essas duas, as questões fundamentais colocadas para equacionamento pela Lei 601 de setembro de 1850. Em torno delas é que girarão os demais problemas candentes a respeito da Política agrícola e de terras do Império.

Neste tópico será analisada a questão da propriedade territorial, na perspectiva de sua legitimação pelo Estado e suas respectivas implicações. No tópico seguinte deste capítulo serão discutidos os problemas da migração estrangeira e da colonização, assim como as suas diversas articulações com o problema da propriedade territorial e o seu controle.

A Lei 601 é conhecida, desde a sua promulgação, como a Lei de Terras, numa referência contundente a respeito do seu objetivo fundamental: regular e estabelecer os critérios jurídicos, com base nos quais seria (ou não), de então para adiante, reconhecida, pelo Estado, a propriedade privada e legítima da terra. Neste sentido estabelecia também, como observa Roberto Smith, as condições institucionais e jurídicas fundamentais para a transformação da antiga propriedade resolutiva, fundada no instituto de sesmarias, em propriedade privada plena, absoluta, mercantil, da terra. Demarca, dessa forma, claramente, os limites legais e legítimos da separação entre a propriedade territorial pública e privada no Brasil, e portanto, as condições institucionais da propriedade mercantil, burguesa, da terra.

Antes de se entrar no âmago da discussão dos diversos artigos e parágrafos da Lei 601 e suas implicações para a realidade agro-fundiária brasileira, alguns esclarecimentos são necessários com relação a propriedade territorial e ao acesso à terra no Brasil. A Lei 601 estabelece, juridicamente, e com base na situação efetivamente existente na realidade agrária e econômica brasileira da época, uma clara distinção quanto ao estatuto jurídico das terras do país em relação à propriedade territorial, e indica as formas institucionais para a sua legitimação e reconhecimento pelo Estado:

a. Haviam as terras devolutas, parte do domínio do Estado. Tratavam-se de terras que não se confundiam nem com a propriedade do Estado, como as destinadas a algum uso da União, das Províncias ou dos Municípios; nem com as demais terras que se encontravam, legitimamente, no domínio privado. As terras devolutas, por suposto, livres, sem nenhuma destinação ou utilização pública ou privada, que sempre estiveram sujeitas aos diversos modos e formas de apossamento, são estritamente regulamentadas pela Lei 601, ficando, logo no seu artigo primeiro, o acesso a essas terras, condicionado à compra ao Estado. A única exceção aberta, referia-se a possibilidade de cessão, por parte do Estado, a terceiros, na faixa de fronteira do Império com países estrangeiros. Portanto, no caso das terras devolutas, fica definitivamente vedado, como

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ilegítimo e ilegal, logo, sujeito às sanções - que vão do despejo com idenização e multas à prisão -, o seu apossamento132.

b. Haviam as sesmarias ou outras concessões oficiais legítimas e como tais reconhecidas, que, portanto, eram parte efetiva do domínio privado, legalmente destacado do patrimônio público. Tratavam-se das sesmarias confirmada e não caídas em comisso, assim como outras concessões do Governo Geral, Provincial ou municipal. Referiam-se as antigas sesmarias e concessões que se achavam integradas efetivamente à produção econômica e de exportação, (como era, por exemplo, a situação das terras da zona açucareira do Nordeste, embora houvessem outras situações que tais, em todo o território do país). Esse problema será analisado detalhadamente mais adiante. Estas, junto com as terras de domínio efetivo do patrimônio do Estado (as que tinham algum uso público, Nacional, Provincial ou Municipal), são legalmente reconhecidas como parte legal do patrimônio legítimo - público e privado - e como tais ficam fora do âmbito de abrangência do Universo da regulamentação da Lei 601, que se destinava ao estabelecimento das condições legais para a legitimação das terras consideradas de ocupação irregular: extra-legal e ilegítima.

c. Haviam as sesmarias ou outras concessões anteriores não confirmadas ou caídas em comisso pelo não cumprimento de algumas ou todas as condições de resolubilidade, ou simplesmente abandonadas pelos concessionários ou sesmeiros. Essas concessões e sesmarias, que eram parte dos latifúndios, têm, na Lei 601, a expectativa de direito à sua revalidação, entretanto, estando esse processo sujeito à determinadas condições claramente estabelecidas na Lei 601, referentes, sobretudo à presença de posses em seus interiores, que deveriam, em determinadas condições, ter prioridade. Disto deriva o sério conflito, como se verá adiante, entre sesmeiros (estes sesmeiros) e posseiros (grandes, sobretudo).

d. Finalmente, haviam as posses, geralmente grandes, mas também as pequenas, que se formaram, sobretudo no período que se estendeu entre 1822, quando é suspensa a Lei de Sesmarias e 1850, quando a Lei 601 é aprovada. As grandes posses formaram-se nesse período, acompanhando as possibilidades abertas ao desenvolvimento da economia agrícola, e das amplas perspectivas gestadas pela Independência nacional, e se estabeleceram sobre sesmarias mais ou menos abandonadas, ou pela decadência econômica, como o caso de boa parte das sesmarias do Vale do Paraíba, de Minas Gerias e parte de São Paulo, após o final do ciclo da mineração (Faoro, op. cit.); ou pelas pressões

132Esse princípio, referente à proibição da invasão de terras legítimas (do Estado ou particulares), e a punição de tais atos de invasão com despejo sem nenhum direito, multa e prisão, é claramente estabelecido no artigo segundo; sendo ressalvado apenas os casos de "hereus confinantes" que deveriam ser resolvidos no campo do direito civil. Isto, de certa forma permitia a invasão de áreas estatais, quando confinantes com propriedades particulares, recurso, aliás, muito usado pelo latifúndio.

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decorrentes de outros conflitos engendrados no processo de independência e de consolidação do Estado Nacional, quando muitos portugueses, beneficiários de sesmarias pela antiga Corte metropolitana, caíram em desgraça. Haviam posses que se formaram igualmente, em terras devolutas estatais, o que era mais raro no período, sobretudo, nas zonas economicamente mais vantajosas, inclusive no Nordeste, face às imensas dimensões que tiveram as sesmarias concedidas no período colonial.

Ainda quanto as posses, haviam também as pequenas posses, que sempre se constituíram, por diversas formas e em diferentes conjunturas nas diversas regiões do país, dentro ou fora das sesmarias ou em terras devolutas, mas sempre em áreas afastadas das melhores terras, e geralmente com a anuência ou omissão do Estado ou dos latifundiários. Embora essas pequenas posses, enquanto tais, fossem asseguradas pela Lei 601, sobretudo elas, que preenchiam as condições básicas de legitimação, que seriam a morada habitual e a cultura efetiva, serão exatamente as que não conseguirão fazer valer sua expectativa "líquida e certa" de direito, passando, seus ocupantes a fazer parte, desde então, do imenso exército dos expulsos da terra e da sociedade civil (ver Faoro, op. cit.). Esses pequenos posseiros, por motivos de diversas ordens, nunca, ou raramente, terão a possibilidade de fazer valer os seus direitos civis, sobretudo quanto à propriedade, e desde essa época passam a constituir o imenso exército dos excluídos da terra, (os "sem terra") e do trabalho livre, como será analisado adiante.

3.2.1. As Terras Devolutas

Como já registrado, a Lei 601, em primeiro lugar,

"Dispõe sobre as terras devolutas do Império (...) e determina que, medidas e demarcadas, (...) sejam elas cedidas a título oneroso, assim para empresas particulares, como para o estabelecimento de colônias de nacionais e estrangeiros (...).133 “

Com esse enunciado, o Estado define claramente o estatuto jurídico das terras devolutas do Império, ou seja, define claramente, as terras devolutas como integradas ao acervo das terras públicas do Estado, portanto excluídas do patrimônio privado. E mais, estabelece, no artigo segundo da Lei 601, que quem se apossar de terras devolutas (tal como de alheias), serão obrigados a despejo, sem nenhum direito a benfeitorias ou outros, além de estarem sujeitos a penas que vão de dois a seis meses de prisão e multa, além da obrigação de ressarcimento dos danos eventualmente causados pela queima e derrubada de florestas. O enunciado desse artigo deixa evidente o estatuto das terras devolutas enquanto terras do Estado e que apenas poderiam ser adquiridas pela compra ou através de sua anuência (no caso das fronteiras). Desta forma o Estado, de fato e de direito, constitui um patrimônio efetivo de terras públicas. Esse patrimônio, embora 133Lei 601 de 1850. (grifos nossos).

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passível de ser privatizado, nos mesmos termos da legislação estabelecida pela Lei 601, apenas poderia sê-lo, através da transação de compra com o Estado ou de sua cessão por este. Qualquer outra forma de apossamento ficava, portanto, definida não apenas como ilegal e ilegítima, mas como crime.

A dilapidação, pelo apossamento, desse acervo de terras estatais, ocorreu portanto de forma ilegal e ilegítima. É neste sentido que a hipótese aqui defendida afirma o caráter de ilegitimidade e de juridicidade questionável com relação à maioria das terras brasileiras, situação esta que se prolonga até os dias atuais. Como se verá, o mesmo fenômeno, em outro contexto e sentido, ocorrerá com as demais terras do país.

Parece plausível a hipótese de que o objetivo fundamental do Estado ao definir o estatuto das terras devolutas (artigo 3o da Lei 601) tenha sido o de separar esse conjunto de terras públicas, das terras do domínio privado (artigo 1o, parágrafos 2o e 3o), conjunto esse, que deveria funcionar como "reserva de terras livres e estatais", passível de sustentar possíveis alternativas de empreendimentos agrícolas avançados, sustentados no trabalho livre e apoiados na emigração e colonização (estrangeira e nacional), por um lado e, por outro, tentar regular o confuso mercado de terras em expansão no Império.

O que era, aliás, o argumento central da colonização sistemática, tal como formulada por Wakefield. Portanto, não se tratava primariamente, de impedir a formação de pequenas propriedades (embora essa fosse uma de suas implicações fundamentais), mas de assegurar as condições para a atração de investimentos na agricultura, o que significava, colocar à disposição dos capitais interessados, reservas de mão-de-obra e de terras. Por isso não, se pode simplesmente, afirmar que o objetivo da colonização sistemática fosse impedir o acesso à terra, pelos trabalhadores para, assim, colocá-los à disposição do capital. Ou seja, para isso não seria necessário impedir a genericamente aos trabalhadores de terem acesso à essa possibilidade: bastava, e esta era a tese de Wakefield, fazer com que os trabalhadores empregados pagassem, com a compra da terra, a continuidade do processo de exploração da força de trabalho. Essa argumentação de Wakefield será analisada no item 4 adiante. Portanto, tratava-se antes, de criar as condições para a subordinação da força-de-trabalho ao capital, gravando a terra com determinado ônus: isto é, mercantilizando-a, como bem observa Roberto Smith, e por essa via, possibilitar a estruturação das condições de reprodução do capital, enquanto relação social na agricultura. Isso é diferente de pensar a lei como uma espécie de demiurgo do trabalho assalariado. Tanto isso é verdade que, apesar da Lei 601 estabelecer estes pré-requisitos, as relações de trabalho na agricultura brasileira ainda permanecerão por muito tempo assumindo modalidades diversas do assalariato.

Neste sentido, o Estado veda terminantemente (artigo 1o) "as aquisições de terras devolutas por outro título que não seja a compra", permitindo, como única exceção, "as terras situadas nos limites do Império com países estrangeiros em uma zona de 10 léguas, as quais poderiam ser concedias gratuitamente." (artigo 1o). Distingue, igualmente (artigo 3o, parágrafo 1o) as terras públicas devolutas, subordinadas ao controle e administração fundiária do Estado e destinadas à venda, da

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propriedade estatal (as destinadas a algum uso público nacional, provincial ou municipal).

É provável que o detalhamento dado ao problema das terras devolutas revelasse a intenção de um projeto inspirado nas teses de Wakefield134. Ou como registra Roberto Smith, considerando que essas idéias vinham sendo defendidas desde 1821, por José Bonifácio, portanto, antes da publicação dos trabalhos de Wakefield, pode-se arguir, igualmente, que essas teses tenham sido produto da própria experiência de diversas colônias, ulteriormente sistematizadas por aquela estudioso. Difícil definir essa questão.

Entretanto, mais importante é o fato de que a problemática da arrecadação de terras, pelo Estado, era condição fundamental para a implementação de uma política de terras, capaz de servir de suporte ao desenvolvimento da agricultura, por suposto mais produtiva e eficiente, fundada no trabalho livre, e parece ter sido esse o sentido econômico fundamental que subjazia a essa decisão. Além, é claro, de tentar impor um termo, pela via da regulamentação, à situação caótica e conflitiva que vinha grassando, no Brasil, desde os últimos anos do período colonial, em termos de invasão ilegal e especulativa das terras públicas e livres, deixando o Estado quase sem nenhuma alternativa à implementação de uma economia política e de uma política de terras capazes de criar as condições necessárias ao desenvolvimento econômico e social do país.

Assim, fica claramente delimitado o objetivo central do Estado no que se referia à situação desse conjunto importante das terras do país: as terras livres estatais, que são definitiva e legalmente separadas do domínio privado, ao mesmo tempo em que se distiguem da propriedade estatal. São assim, de fato, delimitadas como terras públicas estatais, no sentido definido por Wakefield: logo condição e pré-requisito fundamental à colonização sistemática (vide Smith, op. cit.). Não se tratando de terras "aplicadas a algum uso público nacional, provincial ou municipal" nem de terras inclusas no domínio privado por título legítimo (sesmarias confirmadas ou revalidáveis pela Lei 601 e as posses mansas e pacíficas, legitimáveis pela mesma Lei), todas as demais terras são incluídas no rol de terras devolutas do Império o que, em termos jurídicos, significa que integram o conjunto das terras públicas. Com isso, do ponto de vista da legalidade, do Estado de Direito, deixa de existir, no Brasil, terras "sem dono", "adéspotas"135.

134Sobretudo as teses de Wakefield em relação ao equilíbrio necessário entre disponibilidade de terras e população, que aquele autor coloca claramente em diversos momentos de sua obra, e que fica especialmente claro na seguinte passagem: "Eles não podem alterar a proporção entre população e terra(...); mas a proporção entre população e terra com bom título está dentro do seu controle (...) o governo, assim, é capaz de regular a proporção entre o tamanho da população e acres de terra apropriada" (WAKEFIELD, E. G. England & América. op. cit. p. 94).Grifos nossos. 135E como é evidente, todas as terras tendo dono (seja o Estado ou proprietários privados), apenas podem ser transferidas para terceiros por alguma forma legalmente estabelecida. Qualquer outra forma de apossamento ou apropriação, que não as ajustadas às exigências estritamente estabelecidas e reconhecidas pelo Direito, são formas ilegítimas e ilegais, independentemente de se tratarem de terras públicas ou particulares. É neste sentido que aqui se faz referência ao fato de que a propriedade territorial no Brasil, em sua maior parte, é juridicamente questionável: ou porque nunca foi legalizada, ou porque o foi de forma incorreta ou fraudulenta.

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Isso significa, concretamente, que todas as terras devolutas são patrimônio do Império (isto é, do Estado) e apenas pela via da compra a (ou, excepcionalmente, de concessões), poderão ser transferidas ao domínio privado, sendo vedada qualquer outra forma de aquisição dessas terras, como ilegítima. Assim, as terras existentes no país, ou eram públicas ou privadas; ou seja, todas as terras que não se encontrassem (e encontrarem daí para adiante), comprovadamente, legalmente, no domínio particular, são terras públicas136. Isso incluía, antes da Lei 601, as sesmarias caídas em comisso e depois desta lei, todas as terras que não foram revalidadas (caso das sesmarias em comisso) ou posses que não foram legitimadas (vide o artigo 8o da Lei 601 de 1850).

Em suma, a partir da Lei 601, todas as terras, indistintamente, que não foram legitimadas, passaram ao domínio do Estado, ficando estabelecido que

"os possuidores que deixarem de proceder à medição nos prazos marcados pelo Governo serão reputados em comisso, e perderão, por isso o direito que tenham a ser preenchidos das terras concedidas por seus títulos, ou por favor da presente Lei, conservando-os somente para serem mantidos na posse do terreno que ocuparem com efetiva cultura havendo-se por devoluto o que se achar inculto." (Atrigo 8o Lei 601/1850. Grifos deste autor).

Embora, de fato, a quase totalidade das terras que não cumpriu as determinações deste preceito legal continuando, entretanto, no domínio privado. Mas não resta dúvidas, que ilegalmente, do ponto de vista do Estado de Direito. Tratam-se, portanto, de "propriedades ilegítimas". Neste caso era apenas assegurado a posse da área efetivamente ocupada com morada habitual e cultura efetiva. Essa situação, como se verá no decorrer desse estudo, persistirá virtualmente, até o período inaugurado pela regime militar, sobretudo pela "valorização" das terras em decorrência do "milagre econômico", quando tem início um vigoroso e radical processo de "legalização" das terras, ou pela "compra a preço vil" ao Estado, em negociatas amplamente denunciadas na época e demonstrada por muitos estudos e pelo que foi apurado pelas várias Comissões Parlamentares de Inquérito, como se verá neste trabalho. Será essa a característica desse fase, onde com base nas alternativas abertas pela Política Fundiária do Regime Militar, sobretudo pela "nova regulamentação" representada pelo Estatuto da Terra, de 1964, atuará um verdadeiro exército de grileiros e especuladores, apoiados por advogados e pistoleiros, que tratam de "formalizar" a titulação de terras, numa verdadeira subversão da ordem jurídica e institucional, expulsando violentamente pequenos produtores rurais, posseiros e índios. Esses fatos serão estudados nos capítulos 4 e 5 desse trabalho. Aqui são referidos apenas para registrar a sua gênese neste período específico da história agrária brasileira e sua mudança, apenas, de forma, embora imposta pela nova conjuntura aberta a partir de 1964, como se tentará por em evidência.

136É interessante registrar a esse respeito, o racioncínio de Cirne Lima (op. cit.p.111): "terra devoluta, nos primeiros tempos, era todo nosso território."

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Parece portanto, muito claro o sentido atribuído às terras devolutas: assegurar para o Estado um fundo de terras livres, capaz se sustentar uma política fundiária ajustada às novas exigências econômicas que se colocavam ao país. Nesse sentido parece igualmente clara a influência das teses wakefildeanas, sobretudo no que refere à manutenção de determinado equilíbrio entre a "oferta de terras com bom título" e a população, enquanto condição necessária ao desenvolvimento de uma agricultura mercantil e capitalista.

Na verdade, a colonização sistemática baseava-se na disponibilidade de terras públicas e livres, que pudessem ser privatizadas e, assim, atrair colonos ricos, investidores, por um lado, e pobres, por outro, que não podendo pagar, estes últimos, pelas terras "livres estatais" teriam que trabalhar para aqueles, até poderem adquirir sua própria terra. Assim seria formado um fundo de terras, por um lado, e de trabalhadores pobres, por outro: os pressupostos e ingredientes fundamentais e básicos aos empreendimentos capitalistas na agricultura. Esta era, em síntese, a argumentação básica e justificadora da colonização sistemática de Walkefield que, ainda assim, no Brasil, foi completamente escamoteada pela vigorosa oposição do latifúndio.

Por um lado, a arrecadação de terras devolutas, públicas, que deveriam formar o fundo de terras para a dinamização da agricultura foi bloqueada na prática: os latifundiários não providenciaram efetivamente a legalização e registro de suas terras e, associados às burocracias locais, geralmente a eles atreladas, bloquearam qualquer alternativa à demarcação e, sobretudo, a arrecadação das terras devolutas. Por outro lado, a colonização foi reduzida à importação de colonos pobres para servirem de mão-de-obra barata nos latifúndios ou para colonizarem zonas de risco, como as áreas de fronteira do Império. Assim, fracassou, na origem, qualquer possibilidade de desenvolvimento deste Projeto agro-fundiário para o Brasil, com as consequências hoje amplamente conhecidas e que aqui estão sendo analisadas.

Desde essa época, a legalização da propriedade rural no Brasil foi impedida ou, na melhor das hipóteses, profundamente dificultada, pelos latifundiários, que deslocaram a solução do problema fundiário, jogando-o para o campo amorfo da colonização, afastando-o do âmbito da separação legal entre as terras públicas e particulares. Assim engendraram-se as condições para a perpetuação da situação caótica da estrutura agrária e, junto a esta, as possibilidades ao apossamento desenfreado e ilegal das terras do país. Daí por diante jamais se falará em legalização da propriedade, mas em colonização, por suposto, sempre pensada em terras distantes dos domínios latifundiários. Por essa razão, fracassou, até mesmo, o processo de importação de colonos, fossem pobres ou, sobretudo, ricos, para a agricultura. Colonização em terras afastadas e não reforma agrária torna-se, desde então, o lema básico defendido pelo latifúndio e pelos Governos.

O desvirtuamento, no debate Parlamentar da década de 1840, e o esvaziamento, depois de 1850, dessa alternativa ao fundo de terras livres estatais, pelo deslocamento do problema para a migração de estrangeiros pobres, e da colonização como

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desbravamento, por um lado; e por outro, pela inviabilização efetiva do processo de discriminação das terras devolutas e do registro das terras do domínio privado, implicaram no retumbante fracasso da política de terras do Império e, muito mais que isso, de qualquer alternativa ao desenvolvimento sustentado da agricultura e do processo de colonização sistemática no país.

O duplo desvirtuamento desta alternativa - a não legalização do domínio privado, logo também do público - por um lado; e, por outro, a transformação da colonização sistemática, em mero processo de atração de trabalhadores pobres para servirem de mão-de-obra de fácil exploração pelos latifúndios, aliada a formação de colônias em áreas de risco137 - o que era apenas uma dimensão das propostas wakefildianas - implicou na inviabilização de qualquer alternativa para o “take-off” da economia agrária brasileira, que assim persistiria nos velhos padrões agro-exportadores, de baixa produtividade e fundados, ainda por mais quase quatro décadas, no trabalho escravo, sem muita margem, ou alternativa, de transformação. A outra alternativa, referia-se à possibilidade da aplicação de capitais de alguma monta, valendo-se da impossibilidade imediata de imigrantes pobres poderem adquirir terras, portanto, transformando-se, de fato, em exército de reserva de força-de-trabalho para os capitais que se aplicassem nas terras, as quais assim, igualmente, funcionariam como um fundo de terras regulado pelo Estado e à disposição dos capitais. Esta era a essência da tese da colonização sistemática de Wakefield.

O fracasso da política de terras tentada pela Lei 601 de 1850, na leitura aqui feita e no contexto até aqui apresentado, está na origem do fracasso brasileiro, mesmo em atrair imigrantes pobres, como é fenômeno vastamente conhecido; muito mais ainda, em atrair "investidores" capitalistas estrangeiros, numa economia desregrada ao nível da “praxis”. Na opinião de Wakefield, apenas através do controle, pelo Estado, da emissão de “bons títulos” era possível manter-se a correlação adequada entre população e terra. Duas implicações estão envolvidas nessa formulação:

1. Não se tratava, apenas, de impedir o acesso à propriedade, pelo menos por algum tempo, aos imigrantes pobres: estes teriam que ter a expectativa de poderem-se tonar proprietários, senão a imigração seria comprometida;

2. Tratava-se, igualmente, para os capitalistas que pretendessem investir nas colônias, de terem asseguradas duas condições fundamentais: (a) a possibilidade de acesso legal e legítimo às terras necessárias ao seu investimento (com bom título - e “bom preço”); e (b) a possibilidade de abastecerem-se continuamente de mão-de-obra.

Conforme muito acertadamente apontou Sallum, a atração de imigrantes estrangeiros pobres só ocorreu numa contingência histórica especial em que

“países que, no continente americano, concorriam com o Brasil na captação de imigrantes - Estados Unidos e Argentina -

137E distante dos domínios latifundiários.

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sofriam, no fim da década de 80 e durante a década de 90, uma queda no seu ritmo de crescimento econômico.”138

Dessa forma, o problema da reestruturação agro-fundiária brasileira é, já em 1850, negado, na prática, pelos potentados da terra, reduzido ou a um processo de colonização, sempre em terras distantes; ou à simples atração de mão-de-obra migrante e barata para servir nos latifúndios. É, como se tem demonstrado, neste estudo - com base na análise da legislação, do debate parlamentar da época e da literatura especializada - através destes e de outros diversos expedientes que, no Brasil, tem sido esvaziada qualquer possibilidade de regularização fundiária, persistindo, assim, aquilo que neste trabalho se têm denominado de uma espécie de "estado hobbesiano", no que toca ao problema fundamental da propriedade fundiária. Disso advém a ilegitimidade e ilegalidade da maior parte das propriedades territoriais rurais do Brasil.

3.2.2. As Sesmarias Legalizadas

Tratavam-se das antigas sesmarias confirmadas antes da aprovação da Lei 601 de 1850. Eram as sesmarias que não haviam caído em comisso, ou seja, que preencheram as exigências das cláusulas resolutivas: medição, demarcação e, sobretudo, exploração efetiva da terra. Nesta categoria de propriedades legítimas estavam, por exemplo, a maioria das sesmarias nordestinas, especialmente as dedicadas à exploração canavieira, cuja legitimidade, assegurada pela confirmação real, consolidara-se ainda no período colonial (FAORO, op. cit.). Nessa situação encontravam-se, igualmente, muitas outras sesmarias espalhadas pelas diversas regiões do país.

Essas terras serão reconhecidas como pertencentes, legitimamente, ao patrimônio privado pela Lei de Terras. E, neste sentido, passam a gozar de todos os requisitos da propriedade absoluta, burguesa, como bem registra Roberto Smith139, ou seja, são eximidas das antigas cláusulas resolutivas140, assumindo, assim o caráter amplamente mercantil.

Estas sesmarias estão excluídas do âmbito de abrangência da Lei 601 de 1850, que se destinava à regulamentação das terras devolutas do Império e das possuídas por título de sesmarias, sem preenchimento das condições legais; ou as resultantes de posses mansa e pacíficas. Esse procedimento regulador torna essas sesmarias distintas e autônomas em relação ao patrimônio público, do Estado, para todos os fins, econômicos e jurídicos141 etc. Desta forma, e acompanhando a tradição da regulamentação fundiária

138 SALLUM JR. (1982: 91) 139op. cit. 140Como se verá nos capítulos 4 e 5 deste estudo, com o Estatuto da Terra, de novembro de 1964, aparentemente são restabelecidas cláusulas restritivas, como o caso da exigência do cumprimento da função social da propriedade, o que, daria ensejo à expropriação para fins de reforma agrária. Mas como será evidenciado, estas exigências funcionam mais como exceção que como regra. 141O artigo 23 do Decreto 1318, de 30 de janeiro de 1854, que regulamentava a Lei 601, afirmava claramente que "estes possuidores, bem como os que tiverem terras havidas por sesmarias e outras concessões do

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de Portugal, são assegurados plenamente os direitos estabelecidos pela situação anterior. Talvez esse fato explique a posição distinta de muitos sesmeiros, especialmente do Nordeste, em relação a Lei 601 de 1850. Eles, ao terem os seus direitos de propriedade plenamente assegurados e, mais que isso, ampliados pela decadência das antigas cláusulas resolutivas das sesmarias, além de não serem atingidos pelo imposto de chancelaria, posto que não necessitavam revalidar nem adotar nenhuma outra providência em relação aos seus títulos, amplamente aceitos como legítimos pela Lei, não eram, por isso mesmo, afetados pelo problema específico das posses, posto que estas, em caso de existirem em domínios legítimos, que era caso dessas sesmarias, ficavam sujeitas a despejo sem direito algum, e outras penas legalmente previstas, por serem consideradas meras invasões, ilegais, de domínio privado legítimo. É verdade que esses sesmeiros legítimos opunham-se, como sempre, à imposição de novos impostos, aliás pelos motivos já apontados nas páginas anteriores.

Em suma, os direitos e privilégios adquiridos e ampliados por esse grupo de latifundiários são amplamente acatados, sem qualquer restrição, pela Lei 601 de 1850, portanto, pelo Estado, o que contribuirá de maneira efetiva para a consolidação desse tipo de latifúndios, uma vez que, como se sabe, no período colonial, foram muitos, os abusos consentidos na concessão de sesmarias, e que quase nunca eram coibidos pelo processo de confirmação real, que como já se registrou amplamente no capítulo anterior, muitas vezes era conseguida pela influência ou “status” do concessionário, sobretudo a sua proximidade à corte portuguesa. O fato da Lei 601 de 1850 não determinar qualquer restrição a esse tipo de latifúndio, muito provavelmente deve ser atribuído à conjuntura em que a mesma foi elaborada que, como se viu no início deste capítulo, era de extrema instabilidade, sobretudo no que se referia à consolidação da independência política e integridade nacionais, processos esses que tinham seu ponto fundamental assentado no poder local.

3.2.3. As Sesmarias Caídas em Comisso

As sesmarias ou outras concessões anteriores à Lei 601, caídas em comisso, isso é, que não preenchiam as condições resolutivas, são fortemente penalizadas. Estavam sujeitas à revalidação, o que significava colocá-las “sub judice”. Aparentemente, a Lei de Terras assegurava a legitimação dessas sesmarias. Entretanto, ao exigir a sua revalidação enquanto condição “sine qua non” para a efetivação do seu reconhecimento pelo Estado, levantava a legítima suspeita de que nem todas essas sesmarias deveriam

Governo Geral ou Provincial, não incursas em comisso por falta de cumprimento das condições de medição, confirmação e cultura, não têm precisão de revalidação, nem de legitimação, nem de novos títulos para poderem gozar, hipotecar ou alienar os terrenos de que se acham no domínio." Portanto, igualmente não estavam sujeitos ao contestado imposto de chancelaria, que correspondia aos processos de legitimação das posses ou de revalidação das sesmarias caídas em comisso. A oposição maior dos proprietários dessa categoria de terras legítimas estava com relação aos demais tributos gravados sobre a propriedade. Daí a diferente posição desses sesmeiros em relação a Lei 601, quando comparada com a posição dos latifundiários (sesmeiros e posseiros) das regiões do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo.

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ser legitimadas ou, pelo menos, mesmo as que o fossem, apenas o seriam em determinadas circunstâncias.

Parece plausível supor que a restrição não se limitasse aos problemas de exploração efetiva do solo, morada habitual do sesmeiro ou seu representante, nem tão pouco, aos problemas de medição, limites e confrontações, caso em que teriam que ser incluídas as demais sesmarias que, igualmente, não atendiam a todas essas exigências legais. Assim sendo, qual o fato distintivo que justificava esse procedimento discriminatório da Lei 601 em relação a esse grupo específico de latifundiários?

A resposta a essa pergunta é, evidentemente, complexa e exige uma pesquisa histórica detalhada, que ainda estar por ser feita. Embora a análise detalhada dessa questão específica fuja aos objetivos e limites deste estudo, pode-se aventar algumas hipóteses a esse respeito. Mas, qualquer que seja a resposta que se possa dar a essa discriminação, uma coisa parece ficar muito clara: esses sesmeiros, ou haviam caído em desgraça em face dos conflitos de interesses que envolveram a transição para o Estado independente ou, na melhor das hipóteses, não possuíam prestígio suficiente para fazer valer os seus interesses, ou ambas as coisas.

Maria Yêda Linhares e Francisco Carlos Teixeura da Silva, a esse respeito, oferecem uma resposta conjuntural, embora plausível e, muito provavelmente, os fatos por eles aventados tiveram grande influência nesse processo. Eles se pronuncia nos seguintes termos:

“O fato novo residia, fundamentalmente, numa alteração do peso relativo dos diversos segmentos de classe que integravam o aparelho estatal do Império: ao lado da tradicional aristocracia latifundiária nordestina e da burguesia mercantil, principalmente do Rio de Janeiro, surgia um riquíssimo lobby de fazendeiros fluminenses, mineiros e paulistas, dispostos a tomar parcelas de poder.(...) Uma lei de terras e uma firme política imigracionista eram fundamentais para esses novos ricos: suas terras não tinham origem nas antigas sesmarias mas na tomada pura e simples de terras devolutas. Fazia-se necessário regularizar uma situação que já beirava a violência e, simultaneamente, fechar a porta pela qual esses mesmos homens passaram. Talvez mais importante que impedir a formação de um campesinato livre ou uma via ‘farmer’ de desenvolvimento agrícola, era impedir que a violência que dividia a classe dominante, como diria Warren Dean, se exacerbasse(...).”142

Todos os argumentos apresentados acima por LINHARES & SILVA são verdadeiros, entretanto, nenhum deles dá conta do fato de não terem sido estendidas, às demais sesmarias, as mesmas restrições. O fato distintivo mais importante arguido por LINHARES & SILVA refere-se à formação de grandes posses, que estiveram na origem da formação, especialmente, das novas fazendas de café no Vale do Paraíba,

142LINHARES (1981. p. 32). Grifos nossos.

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estendendo-se por Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. Entretanto, mesmo esse fato necessita ser qualificado, uma vez que grandes posses existiam por todas as regiões do Brasil e, porque, a Lei 601 veda terminantemente, como se viu acima, as posses, fossem grandes ou pequenas, sobre as antigas sesmarias confirmadas e legitimadas. Assim, a esses argumentos devem ser acrescentados alguns outros, que possam dar conta da especificidade que envolvia o caso das sesmarias passíveis de revalidação. Ao se discutir as posses no próximo item essa questão será melhor retomada.

Mas vale a pena, ainda aqui, registrar os argumentos de Raymundo Faoro, para o caso específico da região do Vale do Paraíba. Ele argumenta no sentido de que as terras do Vale foram incorporadas, no período da decadência do ciclo da mineração e, sobretudo, acelerado com o desenvolvimento da cafeicultura. Tratavam-se de terras de antigas sesmarias “abandonadas” em virtude da decadência da atividade mineradora, tendo sido parcialmente ocupadas por pequenos posseiros, com o consentimento dos antigos concessionários e, ulteriormente, por grandes posseiros, com a expansão da cultura do café. Com a valorização dessas terras, decorrente do avanço e da importância assumida pela cafeicultura, segundo Faoro, os antigos sesmeiros tentaram recuperar suas concessões, gerando-se, neste contexto, os conflitos entre eles e os posseiros, que o debate Parlamentar da década de 1840 registra.

Embora esta argumentação de Faoro seja parcialmente convincente, e que, provavelmente, corresponda à realidade de alguns contenciosos que envolveram determinadas sesmarias da região do Vale, ainda assim, parece insuficiente para permitir a sua generalização a respeito da referida discriminação.

Assim, ainda que a guisa de hipótese, posto que este trabalho não comportou nenhuma pesquisa especificamente histórica desse problema, o que fugiria aos seus limites, parece que uma hipótese provável para explicar essa discriminação é a de que muitos sesmeiros dessa e de outras regiões, próximos à antiga Corte Portuguesa quando da sua permanência no Brasil (1808-1821) e beneficiários de concessões, especialmente nesta área, tenham, ou retornado à Portugal com a Corte, ou caído em desgraça política em decorrência dos conflitos que levaram à Independência. Ulteriormente, com a definição da continuidade monárquica e dinástica, após a consolidação do Estado Nacional, é provável que alguns desses antigos sesmeiros desejassem, sobretudo pela valorização das terras provocada pelos preços favoráveis do café, recuperar seus domínios. Impedí-los seria, nessa hipótese, o objetivo claro da discriminação legal.

Por outro lado, têm razão Linhares & Silva, num aspecto fundamental, mas que se refere ao problema específico das posses: “fazia-se necessário regularizar uma situação que já beirava a violência” e, simultaneamente, “fechar a porta pela qual esses mesmos homens (grandes posseiros) passaram .143”

Ao analisar-se a questão da legitimação das posses, algumas especificidades fundamentais desse problema serão melhor esclarecidos. O fato é que as sesmarias e

143Id. Ibidem.

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outras concessões oficiais que se enquadravam no caso da revalidação (artigo 4o da Lei 601/1850), estavam condicionadas, para a sua revalidação legal, a uma análise “caso a caso”, sendo sempre assegurados todos os direitos das posses produtivas porventura instaladas no seu interior. Esse procedimento operacional, como se pode concluir, permitiria a identificação dos casos de sesmeiros que foram beneficiários da antiga corte portuguesa e que com ela retornaram à Portugal - o que caracterizava o “abandono” -; os caídos em desgraça política e, igualmente, aqueles que simplesmente estavam em comisso por motivos estritamente econômicos, como o caso aludido, por Faoro, de muitas sesmarias do Vale do Paraíba, que se encontravam mais ou menos abandonadas ou ocupadas por posses (grandes e pequenas) em face da decadência do ciclo da mineração. Mesmo com essas especificidades a serem tidas em consideração, era sempre prioritário, como se verá no próximo item, assegurar os direitos de legitimação dos posseiros (grandes, bem entendido), aliás como fica evidente no artigo 5o, parágrafo 3o da Lei 601. Entretanto, neste último caso, saem “vitoriosos os sesmeiros” (Faoro, op. cit.).

Será exatamente em função dos conflitos engendrados no bojo das relações entre esse tipo de sesmarias e as grandes posses (sobretudo, posto que as pequenas, como se verá, enfrentavam outras pressões e restrições), que se travarão os debates mais radicais na elaboração da Lei 601. Vale, por outro lado, registrar que os conflitos entre posseiros e sesmeiros legitimados pela Lei 601 ou, antes; igualmente regulados no artigo citado acima, estabelecia critérios estritamente jurídicos, que procuravam assegurar amplamente, os direitos de ambos: em todos os casos, aos posseiros passíveis de legitimação que se encontrassem nas sesmarias não incursas em comisso cabia apenas a indenização das benfeitorias; sendo ressalvados os casos: 1. de ter sido declarada boa a posse por sentença passada em juízo entre as partes; 2. ter sido a posse estabelecida antes da medição da sesmaria ou concessão e não perturbada por cinco anos (usucapião) e 3. ter sido a posse estabelecida depois da referida medição e não perturbada por dez anos (usucapião). Como se verifica, mais uma vez a discriminação fica evidente: aos sesmeiros não caídos em comisso, legitimados, eram assegurados todos os recursos, sendo assegurados, igualmente, às posses, recursos jurídicos semelhantes, todos perfeitamente regulamentados. Quanto às sesmarias e às concessões em comisso, sujeitas à revalidação, apenas poderiam ser revalidadas após a comprovação do preenchimento das condições resolutivas e só após serem destacadas as posses mansas e pacíficas, o que evidencia o tratamento desigual dado a ambos os casos.

No primeiro caso, pondo em condições de igualdade jurídica posseiros (grandes, reitere-se) e sesmeiros; no segundo, privilegiando largamente os posseiros:

“Dada a exceção do parágrafo antecedente144, os posseiros gozarão do favor que lhes assegura o artigo 1o, competindo ao respectivo sesmeiro ou concessionário ficar com o terreno que

144Que se refere às sesmarias legítimas ou legitimadas pela Lei 601 de 1850.

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sobrar da divisão feita entre os ditos posseiros, ou considerar-se também posseiro para entrar em rateio igual com eles.”145

O que todos os estudiosos desta questão registram, é que esse problema assumiu relevância fundamental exatamente na região de expansão da produção cafeeira, cujas terras foram incorporadas ao patrimônio privado pela via das posses e não das sesmarias, como no caso da maior parte das terras ocupadas no Brasil, sobretudo na região Nordeste, e quanto a isso não parece pairar maiores dúvidas. Certamente a relevância econômica da produção cafeeira teve profunda influência, aliás, muito mais pelo que o café representava em termos de divisas para a nação e economia emergentes do que, especificamente, para o atendimento de situações particulares.

Exatamente por fazer essa leitura é que aqui se defende a hipótese de que os interesses que, certamente, tiveram os cafeicultores na aprovação da Lei 601, situavam-se, antes de tudo, na legitimação de suas posses, antes mesmo da colonização e migração estrangeira: tratava-se, portanto, de interesses que eles tinham enquanto latifundiários e não enquanto cafeicultores. Assim é que aqui se defende que Lei de Terras é uma legislação sobre a propriedade, onde a migração aparece apenas de forma subsidiária e acessória, embora de muita relevância, sobretudo diante das pressões concretas da Inglaterra para a supressão definitiva do tráfico e, em última análise da abolição do trabalho escravo146.

3.2.4. A Legitimação das Posses

Como já se registrou, o período que se estendeu entre a suspensão da Legislação Sesmarial, em 14 de julho de 1822 e, mais que isso, da decadência de toda a legislação portuguesa, com a Independência do Brasil, em setembro daquele ano, até 1850, quando é aprovada a Lei 601, é conhecido como o “Império das Posses”.

Neste período o Estado limita-se, pelos motivos amplamente discutidos nas páginas anteriores, a assegurar o direito genérico de propriedade na Constituição de 1824. É, assim, assegurado e ampliado o direito sobre a propriedade das terras, na medida em que, decaído o instituto de sesmarias, ficavam igualmente revogadas todas as suas demais disposições reguladoras, particularmente, no que aqui interessa, as cláusulas resolutivas: as limitações de tamanho e as concessões de mais de uma sesmaria por concessionário etc.

Criava-se, dessa forma, objetivamente, a oportunidade para o avanço desenfreado do apossamento de terras, sobretudo públicas. Diz-se, sobretudo públicas, posto que as posses avançaram, igualmente, sobre terras particulares, em partes não aproveitadas das imensas sesmarias, mas sobretudo, sobre as pequenas posses e terras tribais. É necessário ter muito claro que o processo de apossamento não tem a sua

145Artigo 5o, parágrafo 3o da Lei 601/1850. 146 A análise das relações entre estas duas questões: mercantilização da terra como pressuposto para o desenvolvimento da mercantilização da força de trabalho é brilhantemente discutida por Roberto Smith (op. cit.)

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origem na legislação ou na ausência desta: ele se deve às oportunidades abertas, com a independência política, e as novas perspectivas de desenvolvimento econômico, como será, sobretudo o caso das terras apossadas pelo avanço extensivo das fazendas de café nas regiões de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. A ausência ou impropriedade da legislação apenas facilitou a exacerbação do processo.

A falta da regulamentação infra-constitucional, isto é de uma legislação específica que regulamentasse o acesso e o uso das terras e que estabelecesse as condições jurídicas efetivas sob às quais o novo Estado orientaria sua política de terras, apenas criou a oportunidade para o avanço desregrado das posses, como de fato ocorreu no período. Neste sentido e contexto, parece plausível supor que, na ausência de uma legislação que estabelecesse limites claros e precisos ao acesso e apossamento de terra, beneficiaram-se, sobretudo na conjuntura política e econômica do Brasil da época, muito mais os latifundiários (grandes posseiros e sesmeiros) e potentados locais, do que a massa do povo que, apesar disso também tinha a oportunidade “legal” - isto é, apenas formal - de ocupar áreas de terras147 e nestas se manter.

Entretanto, se a oportunidade legal, é condição necessária, não é condição suficiente para o cidadão pobre realizar seu desejo de tornar-se proprietário de terras. E menos ainda de manter a sua propriedade. Por um lado, parece óbvio que esses cidadãos não tinham a oportunidade, senão provisória e eventual, de alojar-se em terras devolutas ou dos latifundiários; por outro lado, longe delas, no sertão hostil, de natureza, de segurança e sujeito aos ataques de nativos, eles igualmente teriam poucas oportunidades de se constituírem efetivamente. Assim, o Império das Posses foi, efetivamente, como já se registrou acima, o império do latifúndio: das grandes posses.

147Posto que a quebra do monopólio legal imposto pelo instituto de sesmarias, muito bem captado por Alberto Passos Guimarães (op. cit., p.113), não implicava, por outro lado, necessariamente, na quebra do monopólio fundiário, sempre subordinado às condições econômicas de valorização das terras. É neste sentido que a implicação tirada por Passos Guimarães a respeito da quebra do monopólio da “aristocracia”, pelas posses, não parece ter base empírica e histórica sólida: o monopólio passa, de fato, das mãos da coroa concedente, para os latifundiários que o exercem com todo o rigor. Mesmo porque, pequenas posses sempre se instalaram, independentemente do monopólio estabelecido pela legislação sesmarial, e continuarão existindo sempre no Brasil. Portanto o Império das Posses, não representou a consolidação e, menos ainda, a democratização do acesso à propriedade; ao contrário, foi a grande oportunidade para a consolidação definitiva do latifúndio no Brasil. Nesse particular Roberto Smith (op. cit.), ao contrário de Passos Guimarães, parece estar no rumo de interpretação mais coerente. Cirne Lima, em trecho citado por Passos Guimarães (op. cit., p.114), defende ponto de vista semelhante ao deste, ao afirmar que, “apoderar-se de terras devolutas e cultivá-las, tornou-se coisa corrente entre nossos colonizadores, e tais proporções essa prática atingiu que pôde, com o correr dos anos, vir a ser considerada como meio legítimo de aquisição de domínio, paralelamente, a princípio e, após, em substituição ao nosso desvirtuado regime de sesmarias(...). Depois da abolição das sesmarias, então, passou a campear livremente, ampliando-se de zona para zona à proporção que a civilização dilatava a sua expansão geográfica. Era a ocupação tomando o lugar das concessões do poder público, e era igualmente o triunfo do humilde, do rústico, sobre o senhor de engenhos e fazendas, o latifundiário sob favor da metrópole.” (grifos nossos). Que “era a ocupação tomando o lugar das concessões do poder público”, não resta dúvidas. Mas que era “o triunfo do humilde, do rústico, sobre o senhor de engenhos e fazendas”, parece não se confirmar historicamente. Aliás, o próprio Passos Guimarães (op. cit., p.118) ao afirmar que “ressalve-se, porém, que onde o velho tipo de latifúndio colonial, feudal e escravista lançara raízes, como por exemplo no nordeste açucareiro, a posse dificilmente teria tomado, àquela época, proporções muito extensas” (grifos nossos), apenas reforça esse argumento.

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Na década de 1840, quando o Estado toma a iniciativa de propor uma Lei de Terras, será a questão da legitimação dessas posses, e o controle do seu avanço sobre as terras livres (estatais), sobretudo pelos latifúndios, e, certamente em menor escala, também por pequenos posseiros, a que se colocará no centro do debate e, depois, no ponto mais relevante da Lei 601 de 1850. É assim que, inclusive, o problema das terras devolutas do Império, nesse contexto, é colocado como uma via ao bloqueio do avanço das posses sobre essas terras. E, com certeza, o Governo não estava preocupado com as “pequenas posses” ao estabelecer as restrições ao acesso às terras devolutas do Estado, determinando que este apenas poderia ocorrer mediante à compra. Estava, sim, preocupado com o avanço especulativo das grandes posses, posto que, apenas estas teriam, como de fato tiveram, a possibilidade de inviabilizar a política de terras, de desenvolvimento e de colonização do Estado.

É nesse contexto da consolidação das grandes posses, que o Estado aprova uma Lei de Terras, assegurando amplamente a legitimação das posses mansas e pacíficas. É relevante registrar que são dois, os pontos fundamentais, pacificamente estabelecidos na Lei 601 de 1850: 1. Reconhecer como legítimas as sesmarias confirmadas e 2. Assegurar todos os meios para a legitimação das posses. As restrições recairão, apenas, nas sesmarias e grandes concessões inexploradas e não confirmadas ou em comisso, como já foi explicitado acima. Em relação às terras devolutas, a legislação é rigorosa, mas inócua148 do ponto de vista prático. Foi quase que imediatamente inviabilizada, sobretudo pelos potentados locais, qualquer possibilidade de sua demarcação e arrecadação para o patrimônio das terras livres do Estado, assim permanecendo, a sua maior parte, até os dias atuais, sempre sujeitas ao avanço das posses e disponíveis para a incorporação ao patrimônio latifundiário.

Em princípio, pode-se dizer que na Lei 601 de 1850 os legisladores seguiram a mesma lógica da tradição reguladora portuguesa, assegurando o reconhecimento das situações anteriormente consolidadas. Assim é que se estabelece o critério de reconhecimento da legitimidade das sesmarias confirmadas, como se registrou acima e, por exclusão destas e das demais terras legitimáveis do patrimônio privado e das terras públicas, define-se o âmbito do estatuto das terras devolutas do Império. Entretanto, com relação às demais terras em poder privado (posses e sesmarias passíveis de revalidação), a postura é de sujeitá-las, não apenas às condições anteriores de exploração e morada efetiva, mas de colocar boa parte delas disponíveis para um determinado Projeto de exploração econômica. Antes de tudo tratava-se, do ponto de vista do Estado, de assegurar um fundo de terras livres estatais capaz de sustentar uma determinada política de transição para uma agricultura fundada no trabalho livre, provavelmente, com base nas formulações da colonização sistemática. Em segundo lugar, tratava-se, ainda do ponto de vista do Estado, de assegurar a propriedade para os 148Como é largamente registrado por muitos pesquisadores aqui citados. Veja-se, por exemplo, o excelente trabalho de José Murilo de Carvalho (op. cit.).

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grandes posseiros, sobretudo os cafeicultores, dada a relevância desse ramo da atividade agro-exportadora para a economia da nação nascente. Finalmente, tratava-se de tentar disciplinar a estrutura fundiária e promover a migração estrangeira.

Entretanto, o problema da legitimação das posses é posto em oposição a revalidação de uma vastidão de sesmarias mais ou menos abandonadas, como acima se discutiu. Disso advém o amplo conflito, no parlamento, entre posseiros e sesmeiros. Triunfam, num primeiro momento os sesmeiros na disputa pelas terras do Vale do Paraíba (FAORO op. cit.). Mas, afora este caso, triunfam os grandes posseiros, sobretudo de Minas e São Paulo; e a Lei 601 registra de forma transparente esse fato, no seu artigo 5o ao enunciar que:

“serão legitimadas as posses mansas e pacíficas, adquiridas por ocupação primária, ou havidas do primeiro ocupante, que se achem cultivadas ou com princípios de cultura e morada habitual do respectivo posseiro ou de quem o represente, guardadas as regras seguintes:

“ 1o Cada posse em terras de cultura ou campos de criação, compreenderá, além do terreno aproveitado ou do necessário para pastagem dos animais que tiver o posseiro, outro tanto mais de terreno devoluto que houver contíguo, contanto que em nenhum caso a extensão total da posse exceda a de uma sesmaria para cultura ou criação, igual às últimas concedidas na mesma comarca ou na mais vizinha; “ 2o As posses em circunstância de serem legitimadas, que se acharem em sesmarias ou outras concessões do Governo, não incursas em comisso ou revalidadas por esta Lei, só darão direito à indenização pelas benfeitorias.” “Exceptua-se desta regra o caso de verificar-se a favor da posse qualquer das seguintes hipóteses: 1. o ter sido declarada boa por sentença passada em julgado entre os sesmeiros ou concessionários e os posseiros; 2. ter sido estabelecida antes da medição da sesmaria ou concessão e não perturbada por cinco anos; 3. ter sido estabelecida depois da dita medição, e não perturbada por dez anos. “ 3o Dada a exceção do parágrafo antecedente, os posseiros gozarão do favor que lhes assegura o 1o competindo ao respectivo sesmeiro ou concessionário ficar com o terreno que sobrar da divisão feita entre os ditos posseiros, ou considerar-se também posseiro para entrar no rateio igual com eles.”

Como se pode observar, o parágrafo primeiro marca o triunfo das teses dos posseiros com relação ao tamanho das posses passíveis de serem legitimadas: assegura, inclusive, além das áreas efetivamente exploradas, mais “outro tanto(...)de terreno devoluto que houver contíguo” indo até o tamanho das sesmarias concedias na região. A referência à terreno devoluto deixa claro que se tratavam de áreas não

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exploradas, ou não demarcadas de antigas sesmarias ou de terras públicas, o que dá a dimensão exata do atendimento, por parte do Estado, das reivindicações dos posseiros.

O parágrafo segundo, contrariamente, deixa claro o respeito, por parte do Estado, aos direitos das sesmarias legítimas e revalidadas pela Lei 601, assegurando aos posseiros apenas o direito a idenização de benfeitorias149 e ressalvando os casos em que teriam prioridade as posses: ter sentença favorável, transitada em julgado; ter sido processada antes da medição e não perturbada por cinco anos; ou, finalmente, no caso de ter sido efetivada antes da referida medição, não haver sido perturbada por dez anos. Os dois últimos casos caracterizam situações típicas de usucapião.

O relevante a ser registrado nesse conjunto de regulações, é o fato de estar implícita a necessidade de se acionar o poder público150, especialmente, o judiciário, para fazer valer tais direitos. Isso, efetivamente, excluía os pequenos posseiros e mesmo dos muitos médios posseiros, aliás, como observa Faoro (op. cit., p. 410), posto que estes não dispunham de recursos e, menos ainda, de condições materiais, para contratarem advogados e mesmo se deslocarem ou manterem-se nas capitais das Províncias ou do Império. Nem prestígio na Corte, para garantir privilégios.

É nesse contexto do funcionamento do poder judiciário que sempre residirão os entraves efetivos à materialização dos direitos de propriedade pelos pequenos e médios posseiros, por mais que tais direitos estejam amplamente assegurados em Legislação. É neste sentido que as normas jurídicas, embora possam dar uma boa indicação de determinados avanços sociais, na verdade tratam-se de avanços formais, de simples indicadores de avanços reais, cuja materialização estão em “devir”: exige outras mediações que, em última instância, podem levar a resultados profundamente contraditórios. Neste caso, dada a necessária generalidade que a norma teria de apresentar para assegurar as posses, necessariamente referia-se à todas as elas (grandes e pequenas). Na prática, apenas as grandes posses, e só excepcionalmente, as pequenas, terão a possibilidade efetiva de realizar esse direito “legalmente assegurado.”151

Finalmente, o parágrafo terceiro, da Lei 601/1850, deixa clara a posição assumida pelo Estado frente ao conflito entre posseiros e os demais sesmeiros e concessionários em processo de revalidação. A estes sesmeiros caberia apenas as terras que restassem após o rateio entre as posses legitimáveis. Essa posição contrária a esse conjunto de sesmeiros é tão evidente, que chega a sugerir a que esses sesmeiros ou concessionários podem “considera-se posseiros para entrar no rateio igual

149Observe-se que, neste caso, o confronto não era entre posseiros e sesmeiros em comisso; mas entre aqueles e sesmeiros legítimos. 150 Para uma discussão detalhada desta questão ver o capítulo 3 deste trabalho. 151Essa especificidade do formalismo jurídico e suas contradições com sua aplicabilidade prática, será explorada sistematicamente por todos os latifundiários de todos os tempos no Brasil, para fazerem valer seus direitos. Para tanto, dependendo da conjuntura, armar-se-ão de verdadeiros exército de assessores jurídicos, advogados(...) e jagunços. Esse fenômeno adquirirá grande relevância no período do regime militar, assumindo a forma acabada de “grilagem especializada”, como se verá nos capítulos 4 e 5 deste estudo. De qualquer maneira, no caso específico da luta pela terra, além da batalha judicial, os latifundiários e seus prepostos, utilizarão vastamente de muitos outros recursos, como a violência direta, a morosidade da justiça, a coação, o suborno e o assassinato.

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com eles”. Como no caso anterior, esse processo discirminatório exige a mediação do Estado e, quase sempre, através do judiciário, o que, como se afirmou acima, exclui, em princípio, os pequenos e médios posseiros152. Portanto fica claro que, efetivamente, não seriam os pequenos e médios posseiros os beneficiários da Lei 601, por mais que, formalmente, estes tivessem a possibilidade de se manterem legalmente na posse.

Essa problemática continuará, portanto, eclodindo no bojo dos inúmeros movimentos sociais de resistência de pequenos posseiros contra a sua expulsão para áreas cada vez mais afastadas dos interesses do latifúndio, sobretudo à medida em que a valorização das terras vá engendrando a necessidade do seu monopólio efetivo pelos poderosos e especuladores de terras.

É por esse conjunto de artifícios e deliberações de Políticas de Terras e de desenvolvimento, que os diferentes Governos, no Império e na República, sistematicamente, deslocarão o problema da legitimação da propriedade para o campo amorfo e nebuloso da colonização153, sobretudo entendida como desbravamento: como alternativa ao assentamento de trabalhadores pobres nas áreas ainda não pleiteadas pelo avanço latifundiário e especulativo.

4 COLONIZAÇÃO E IMIGRAÇÃO ESTRANGEIRA

A questão da colonização colocou-se para o Brasil, desde os primeiros anos após o seu descobrimento, sobretudo, no sentido da atração de mão-de-obra para atender às necessidades produtivas e assegurar a sua ocupação territorial. É neste sentido que os problemas da colonização e da consecução de mão-de-obra (compulsória ou livre) para a produção imediata, sempre estiveram associados. As formas, politicamente adotadas, para o equacionamento desses problemas, é que se articularam de modos diferentes e sofrem mudanças relevantes, à medida em que a formação econômico-social desenvolve-se na Colônia.

Como se sabe, a opção imposta pela conjuntura econônica das primeiras décadas do século XVI, foi a do trabalho escravo154, aliado ao sistema de concessão de grandes áreas de terras, com base no antigo instituto das sesmarias. Tratava-se, portanto, de um modo específico de colonização do território brasileiro, fundado na lógica da acumulação mercantilista, portanto, na subordinação da produção ao comércio155 e no “lucro de alienação”.

Na conjuntura do século XIX, como ficou esclarecido nas páginas anteriores, é reposto, pelo Conselho de Estado, o problema da colonização. Desta vez, em uma

152 Ver também FOWERAKER (1982) e os capítulos 4 e 5 deste estudo. 153 E das “Políticas Agrícolas”. 154A respeito de uma análise sistemática dessa questão ver, especialmente, o excelente estudo de Gorender (op. cit.). 155Em suas linhas fundamentais essa conjuntura foi exposta e analisada no capítulo 1 e nos itens iniciais deste capítulo 2. Entretanto, para uma análise mais detalhada dessa problemática, e das controvérsias em torno do caráter da economia colonial, há uma vastíssima literatura, algumas delas citadas neste trabalho, especialmente, os trabalhos clássicos de Oliveira Vianna, Nestor Duarte, Malheiro Dias, Caio Prado Júnior, Fernando Novais, Raymundo Faoro, Celso Furtado, Passos Guimarães, Sedi Hirano (todos citados) entre outros.

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conjuntura completamente distinta, articulado a uma nova política de terras, nascida sobre os escombros do antigo sistema sesmarial e condicionado pelas novas exigências do mercado mundial capitalista em franco desenvolvimento industrial. Entretanto, essas novas exigências não poderiam ser atendidas “ex abrupto”, à revelia da realidade efetiva do país, em grande parte ainda fundada nos ditames do antigo sistema produtivo, no trabalho escravo e na desorganização fundiária gestada pelas contradições do antigo instituto de sesmarias: a estrutura agro-fundiária vigente. Assim, a reorganização das relações de propriedade e de trabalho, exigidas pelo novo contexto interno e internacional, e propostas pelo Conselho de Estado, na década de 1840, deparava-se, objetivamente, com as resistências da antiga conjuntura colonial e escravista (as relações de produção e propriedade vigentes): sobretudo, a resistência dos latifundiários.

É nesse sentido que a alternativa a um Projeto de “colonização sistemática”, ao estilo wakefieldiano, não é bem aceita no Parlamento e será escamoteada na prática.

A proposta de “colonização sistemática” feria frontalmente os interesses de boa parte dos latifundiários, sobretudo, na medida em que implicava uma determinada política de terras, cujo objetivo fundamental seria a regulamentação da propriedade privada, pelo Estado, e da mesma forma, a regularização das terras públicas (devolutas), que deveriam ser, legal e concretamente, separadas do domínio particular, sendo vedado o seu apossamento privado, senão pela via onerosa ou pela anuência do Estado. Isto significava separar legalmente o patrimônio territorial público do particular e, portanto, impedir a apropriação livre de terras públicas, sobretudo pela expansão desregrada das grandes posses e sesmarias.

Embora o Estado, dada a conjuntura de instabilidade do período, já analisada nas páginas anteriores, se apressasse em assegurar a legitimação de quase todas as terras em domínio privado156 por título legítimo ou legitimável; na medida em que pressupunha a arrecadação de terras devolutas, - que sempre se constituíram em um campo aberto para a ampliação dos latifúndios -, levantou forte resistência ao projeto.

É assim que o projeto de “colonização sistemática” é, na prática, completamente desvirtuado, e reconvertido em uma política de migração que se resumia à atração de colonos pobres para os lavouras ou para a formação de colônias de ocupação de fronteiras. Por outro lado, a dimensão fundamental do projeto wakefieldiano, que deveria servir de vetor à imigração - a legitimação da propriedade pública e privada - foi inviabilizada: os latifundiários (sesmeiros e posseiros) por um lado, não legalizaram suas terras ou o fizeram de forma escamoteada, e por outro lado, inviabilizaram completamente, a arrecadação das terras devolutas estatais. Isso, na prática, correspondia a impedir o controle do Estado sobre a oferta de “terras com bom título”, fundamental, no modelo de Wakefield, para sustentar a correlação adequada entre população e titulação das terras, e, portanto, à viabilização da

156Além disso, ainda admitindo a legitimação de “outro tanto mais de terra que houver contíguo” até o limite de antigas semarias, como já visto, o que significava a permissão para a expansão de área, dos latifúndios.

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colonização sistemática. Esse “novo projeto” nascido do Parlamento da década de 1840, nada ou muito pouco tinha a ver com o projeto de Wakefield.

4.1 Colonização Sistemática: O Projeto de Wakefield

A primeira e, talvez, mais importante observação a fazer-se com relação ao projeto de colonização sistemática de Wakefield, é que ele, na verdade, fundava-se em uma teoria da crise de subconsumo de capital, tendo em consideração a situação da Inglaterra dos inícios do século XIX e, por fundamento as teses da extensão do mercado de Adam Smith.

Neste sentido, a colonização sistemática, em Wakefield, aparece enquanto uma alternativa pragmática à crise de subconsumo: visava, portanto, abrir, pela via da exploração econômica das alternativas representadas pelas colônias, possibilidades de aplicação para os excedentes de capital metropolitano, impossibilitados de manter a taxa média de lucro e acumulação, caso fossem reinvestidos na metrópole157. Assim, segundo Wakefield, esse excedente de capitais, em vez de ser emprestado para outros países, sem criar emprego na Inglaterra, poderia ser investido nas colônias, gerando dessa forma, pela ampliação do campo de emprego do capital e do trabalho, riquezas que se converteriam, em última análise, em favor da “mother country”, evitando os riscos acima mencionados. Esse era o contexto geral da formulação da teoria da colonização sistemática, por Wakefield:

“Os objetivos de uma velha sociedade em promover a colonização parecem ser três: primeiro, a extensão de mercado para colocação da sua própria produção excedente; segundo, alívio do número excessivo (de habitantes); terceiro, ampliação do campo de emprego do capital... (...) Esses três objetivos podem ser reunidos sob um só: uma ampliação do campo de emprego do capital e de trabalho.”158

Tratava-se, portanto de um projeto de desenvolvimento do capitalismo em escala mundial (visando manutenção das taxas de acumulação de capital nas metrópoles) pela extensão dos mercados (de capital e trabalho) aos espaços coloniais159. Disso deriva as propostas de Wakefield, em relação aos problemas específicos, relativos aos processos de legitimação, pelo Estado, da propriedade territorial nas colônias, onde as terras eram formal e efetivamente livres, o que criava a possibilidade - que deveria ser evitada, do seu ponto de vista - da “colonização expontânea”. Segundo essa perspectiva, para que fosse possível a implementação de um projeto de colonização sistemática - em oposição

157 Como observa corretamente Roberto Smith (op. cit., p.250) “a preocupação central de Wakefield era, portanto, com o fenômeno do rebaixamento geral da taxa de lucro na Inglaterra desde 1815, tendo em vista o excesso de capital, e não como decorrência da elevação do custo de reprodução da força de trabalho.” 158Wakefield (op. cit., p. 250. Grifos nossos). 159 Neste sentido, tem razão SIMITH (op. cit.) ao localizar esta problemática no âmbito do imperialismo nascente no período.

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à “expontânea” - era fundamental que as terras não apenas fossem incultas, mas estatais e passíveis de privatização por via onerosa. Quer dizer, era necessário que as terras livres passassem ao domínio do Estado, permanecendo passíveis de privatização. A explicação de Wakefield para a esta proposição - de resto estranha ao ideário liberal, por pressupor a intervenção do Estado - era a de que, na ocorrência de homens e terras livres, seria impossível a combinação160 do trabalho: ou seja, a acumulação de capital.

Esse raciocínio fica claro em duas situações descritas por Wakefield161: - Uma, refere-se a história de um tal senhor Peel que, mesmo tendo tomado

todas as precauções para assegurar seu empreendimento, tendo levando consigo para Swan River, Austrália, víveres, meios de produção no valor de 50.000 libras esterlinas, 3.000 trabalhadores, etc., foi surpreendido pelo abandono completo, por parte dos trabalhadores, ficando o senhor “Peel sem um criado para fazer a sua cama ou trazer-lhe água do rio162.” Comentando essa história, Marx, afirma ironicamente:

“Infeliz Peel, que previu tudo, menos trazer as relações de produção da Inglaterra para Swan River!”163.

- A outra situação refere-se às críticas de alguns investidores que estiveram com o próprio Wakefield no Canadá e no Estado de Nova Iorque, as quais são assim resumidas:

“Nosso capital estava pronto para muitas operações que exigem prazo muito longo para sua execução; mas poderíamos começar essas operações com trabalhadores que, sabíamos, logo nos dariam as costas? Se tivéramos, então, a certeza de contar com o trabalho continuado desses imigrantes, imediatamente e com satisfação os teríamos contratado e a alto preço. Aliás, para contratá-los não era impecilho a certeza de perdê-los; bastava-nos saber que contávamos com novo suprimento de trabalhadores, segundo nossas necessidades.”164

Nesta segunda situação narrada por Wakefield, ficam ainda mais claros, do que na anterior, os objetivos perseguidos pela colonização sistemática. O risco de perder alguns trabalhadores que, eventualmente, pudessem se estabelecer como produtores independentes, não era o maior problema a ser enfrentado pelos investidores capitalistas; desde que lhes fosse assegurado um fluxo permanente e continuado de trabalhadores. Isso poderia ser assegurado, segundo Wakefield, usando de uma dupla estratégia: por um lado, através da intervenção do Estado, assegurando a possibilidade de acesso à propriedade da terra, sem o que não haveria motivação para atração de migrantes; por outro, garantindo este acesso, apenas mediante a via onerosa, baseada no 160quer dizer, subordinação por compulsão econômica, como traduz Marx, esse “eufemismo” do economista político Wakefield. 161 WAKEFIELD, op. cit. 162Id., Ibidem., p.33. 163MARX, (op. cit., p. 885). Grifos nossos. 164Wakefield, England and America. Citado por Marx (op. cit., p. 891)

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“preço suficiente” e, assim, condicionanando a aquisição de terras, sobretudo pelos migrantes mais pobres, - que certamente eram a maioria -, à necessidade de trabalharem como assalariados por algum tempo, até formarem uma poupança “suficiente” para a compra da sua propriedade ao Estado e, assim poderem abandonar o mercado de trabalho.

Dessa forma, como bem registra Marx, atingia-se dois objetivos com uma só medida - a arrecadação de terras pelo Estado: 1o ao se garantir a possibilidade efetiva e legal do acesso a terra (com “bom título”), criava-se a motivação fundamental para atrair imigrantes (sobretudo pobres); 2o ao se estabelecer que a aquisição da terra apenas poderia dar-se pela via onerosa, agregava aquela “expectativa-motivação” dos imigrantes pobres, a necessidade de assalariar-se, por algum tempo, a fim de formarem o seu pecúlio e, dessa forma, poderem-se tornar produtores independentes. Veja-se, neste caso, que essa “expectativa-motivação”, na medida em que era alimentada pela possibilidade, de fato, de aquisição de terras por colonos pobres, poderia reverter-se em maior dedicação e produtividade do trabalhador, levando-o a suportar maiores taxas de exploração e, portanto, produzir, também, maiores taxas de lucro e de acumulação.

Tudo no mais perfeito figurino da lógica da acumulação capitalista. Além dessas duas, outras implicações podem ser anotadas: primeira, ao trabalharem como assalariados, por algum tempo, estavam os trabalhadores promovendo a acumulação de capital; segundo, ao abandonarem o mercado de trabalho e adquirirem terras ao Estado, através do pagamento da renda capitalizada, estavam, estes trabalhadores, de fato, pagando para que o Estado formasse um fundo público para importação de novos trabalhadores que deveriam substituí-los. No dizer de Marx pagando seu resgate, pelo direito de abandonar o mercado de trabalho.

Segundo Marx, esta posição intervencionista de Wakefield poderia ser explicada pelo fato de que “se de um golpe se transformasse todas as terras de propriedade comum em terras de propriedade privada, destruir-se-ía o mal” (da autonomização do trabalhador) “pela raiz, mas as colônias seriam também destruídas.”165

4.2. Colonização Dirigida: O Projeto do Latifúndio

Exatamente a negativa imposta, na prática, pelos latifundiários, ao não demarcarem e não registrarem, ou ao registrarem de forma incorreta, as terras em seu domínio, por um lado, e a inviabilização da arrecadação das terras devolutas do Império, por outro lado, correspondia, objetivamente, a uma espécie de “privatização” de todas as terras do Brasil. Na melhor das hipótese, impossibilitava o Estado de dispor de terras que pudessem ser oferecidas, com “bom título”, enquanto atração de migrantes, sobretudo investidores.

165Marx, op. cit. p. 892.

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Esse argumento é perfeitamente compreensível se se tiver em consideração as imensas dimensões das concessões de antigas sesmariais, por um lado, e o fato de que elas ocupavam, efetivamente, todas as terras de melhor localização e fertilidade. Assim, além da impossibilidade jurídica, fundamental, ao esquema wakefieldiano, havia a impossibilidade concreta, pela falta de terras economicamente interessantes para o Capital. Desta forma criava-se, na prática, no Brasil pós-1854, uma situação em que o capital, se se quisesse instalar no país, teria que proceder a um significativo desembolso de imobilização, na medida em que teria que adquirir as terras nas condições correntes de um mercado que já era especulativo; e não ao Estado, como pressupunha o projeto de Wakefield. O preço suficiente da terra estatal de Wakefield, embora estivesse acima das possibilidades de aquisição dos assalariados, estaria, certamente abaixo dos preços especulativos do mercado privado de terras, ainda mais se se imaginar a situação de desorganização fundiária brasileira, na qual, poucas terras tinham “bom título” (quando tinham).

Aqui começa a derrocada do projeto de colonização capitalista de Wakefield e sua reconversão em projeto de colonização dirigida para os latifúndios.

Nessas condições, nem mesmo a atração de colonos pobres poderia funcionar166, haja vista os sistemáticos protestos e as proibições dos Governos de países europeus com relação a imigração para o Brasil. Na maioria dos casos, os colonos eram colocados nos latifúndios em condições quase servis de trabalho, onde os salários eram sistematicamente aviltados e corroídos por dívidas com os patrões, em fenômeno já muito bem documentado pela historiografia. A situação mais comum, e perfeitamente ajustada às condições do latifúndio cafeeiro, era a parceria, cujo exemplo magistral da época era dado pela parcerias do Senador Vergueiro, logo generalizadas como sistema167.

Em suma, o projeto de colonização sistemática de Wakefield, que teria inspirado os legisladores da década de quarenta do século XIX ficou mesmo só como inspiração. A colonização foi reduzida à mera importação de colonos pobres que deveriam servir, por certo tempo no latifúndio, não para ganharem seus salários e formarem um pecúlio para aquisições de terras168, no futuro previsível; mas antes, para cobrirem as dívidas decorrentes das despesas de viagem e contraídas nos barracões das fazendas. Portanto, numa situação ainda mais desvantajosa do que a antevista por Marx, no modelo wakefieldiano, quando os colonos ao comprarem terras estavam financiando seus substitutos. Na colonização dirigida do latifúndio brasileiro, esses colonos teriam que

166como, de fato, não funcionou. 167Ver a esse respeito os trabalhos de José Murilo de Carvalho, Roberto Smith e Alberto Passoas Guimarães, todos citados neste estudo. Ver igualmente os estudos de Paula Beiguelman, A Grande Imigração em São Paulo (I), Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. no 3, 1969, p. 99; Emília Viotti da Costa, Da Senzala à Colônia, Difel, São Paulo, 1966, págs. 104-105; Sérgio Buarque de Holanda, Prefácio, In.: Tomás Davatz, Memórias de um Colono no Brasil (1850), Livraria Martins, 1972, pág. XLI; o próprio texto de Davatz, cit., pág. 64; Brasílio Sallum Jr., Capitalismo e Cafeicultura. Oeste paulista (1888-1930), Duas Cidades, São Paulo, 1982, págs. 76-78. 168Embora essa aparência ou ilusão persistisse, alimentada no ideário e na legislação. Na prática a materialização dessa possibilidade era remota ou inexistente

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pagar, e muito caro, pela sua própria transferência para o Brasil169. Ou seja, a se adotar o raciocínio de Marx, eles teriam que pagar um duplo resgate: o dele próprio e o do seu substituto.

Diante da situação exposta acima, parece que esses fatos, muito mais do que a presença do escravismo no Brasil, podem permitir a compreensão do porque o projeto de colonização brasileiro fracassou retumbantemente; do porque, muitos imigrantes vindos ao Brasil, aqui apenas transitavam rumo a outros países, sobretudo da Bacia do Prata. Explica, igualmente, porque a economia agrária brasileira permaneceu entrevada na improdutividade, assim como as dificuldades, por ela, enfrentadas, para transitar ao trabalho livre e à economia de escala.

Pode-se dizer que a colonização dirigida pelo latifúndio é a pré-história, de uma história inacabada: a história das diversas formas, sobretudo arcaicas e anacrônicas, de subordinação indireta do trabalho ao capital no campo. E, por outro lado, que a negativa dirigida pelo latifúndio, aos processos de legitimação das terras brasileiras, neste período é, “mutatis mutandis”, a pré-história da história inacabada da reforma agrária brasileira, que em 1964, cento de dez anos depois, é novamente reposta para ser novamente, escamoteada, como se pretende evidenciar na segunda parte deste trabalho.

5. Considerações Finais: Heranças da Política de Terras do Império

De julho de 1822 à promulgação da Lei 601, em 1850, consolidara-se definitivamente, no Brasil, o latifúndio fundado na posse. Através do expediente de incorporar, pura e simplesmente, vastas áreas de terras, por suposto, devolutas, porém raramente desocupadas, os grandes detentores de terras e, com eles, outros especuladores imobiliários170, expandem de forma célere seus domínios e seu controle sobre as terras devolutas, esmagando, afugentando, ou assimilando, índios, posseiros pobres ou pequenos agricultores de “subsistência”, que sempre encontraram em seu caminho.

Se o antigo instituto sesmarial foi um instrumento que permitiu a concessão e acesso privilegiados à propriedade territorial no Brasil, o “império da posse”, como é conhecido esse período, foi ainda mais, porque reforçado pelas novas garantias constitucionais171, permitiu a ampliação, ao nível concreto, de tais privilégios. Esse período significou a transferência, de fato, do controle sobre as terras devolutas, que,

169Caso em que, de fato, pode-se falar de resgate. 170 Octávio Ianni, referindo-se a situação de Sertãozinho, que em certo sentido pode-se considerar semelhante ao que vinha acontecendo em outras áreas da expansão das apropriações de terras rurais no período, afirma que “a área fora ocupada, desde meados do século XIX, por criadores, agricultores e comerciantes de terras vindos do Oeste Paulista, das vizinhanças de Minas Gerais e de outras partes. (...) Na década de oitenta, o café tomou conta da vida econômica da área que passou a fazer parte do município de Sertãozinho; da mesma forma que estava tomando conta, das terras devolutas, fazendas e sítios em toda a região que circunda Ribeirão Preto.” IANNI (op. cit., p.11. Grifos nossos) 171 Trata-se da Constituição de 1824, que assegurou o pleno direito de propriedade (art. 179; XXII).

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embora formalmente, permanecendo na esfera do Estado, passou, na prática, para o campo de influência direta dos poderosos locais.

Como ficou evidenciado no capítulo anterior, na vigência do instituto da sesmaria, apesar das amplas possibilidades abertas à incorporação latifundiária, no Brasil, a sua legitimação, ou o reconhecimento de domínio sobre as terras possuídas, estava, ainda assim, sob o controle do Estado. Este, a qualquer momento poderia exercer o seu direito de negar, ou não, o reconhecimento das ocupações, fundado nos dispositivos legais e, sobretudo nas cláusulas resolutivas, que eram parte substantiva dos documentos de doação.

Se, por um lado, ao nível da realidade, tais limitações não foram suficientes para conter o avanço desordenado das ambições, sobretudo, latifundiárias172, por outro lado, ao nível jurídico e institucional, entretanto, esse avanço estava inevitavelmente limitado, ou mesmo condenado, pelo seu caráter de ilegitimidade.

Ilegitimidade, aliás, duplamente configurada. Primeiro, juridicamente, pelos termos da própria legislação de terras, expressos nos documentos de concessão, e cabalmente caracterizada pela ausência da confirmação explícita por parte do Estado, antes da Lei 601; e pela ausência de registros ou por tê-los feito em contradição com as normas legais, depois daquela Lei. Segundo, pela própria tradição e pelos costumes, que sempre estiveram ligados ao instituto de sesmarias, e que pressupunham a exploração efetiva da terra como única alternativa para assegurar o seu efetivo reconhecimento, pela comunidade e, em última instância, pelo Estado173, princípios estes, aliás, igualmente consagrados na legislação.

Esses princípios, mas, sobretudo, as exigências legais formalmente instituídas, eram particularmente rigorosos para a situação das terras do Brasil. Na Colônia era, explicitamente, vedada a possibilidade do arrendamento, ou de cessão de terras à terceiros, por parte dos beneficiários de doações de sesmarias. Tal se fundava no pressuposto, explicitamente, aliás, colocado nos Forais, nas Cartas de Doação e nos Regimentos, de que as terras eram concedidas para serem efetiva e diretamente exploradas, cabendo, apenas, e privativamente, aos prepostos da Coroa, o poder para arrendá-las ou doá-las. Esta regra, radicalmente diferente da que vigia em Portugal (onde era permitido, ao concessionário, ou explorar diretamente a sua sesmaria, ou fazê-la explorar por terceiros, sob determinada pensão ou foro174), indicava, de forma clara, o objetivo do Estado Português em relação às terras Coloniais.

172 Porque, a bem da verdade, há que se reconhecer que também cidadãos pobres e despossuídos, igualmente tinham “o sonho da terra”, e puderam, naquela ocasião, estabelecerem-se em pequenas posses nas quais passaram a fundar suas “roças”, dando origem à uma modalidade específica de produção direta, independente, que veio a ser conhecida na literatura como “agricultura de subsistência”. Ver a respeito, entre outros KARÁVAEV (1989). 173 Ver a esse respeito a excelente análise feita por Virgínia Rau (op. cit.), especificamente para as sesmarias portuguesas; e Cirne Lima (op. cit.) e Costa Porto (op. cit.), para a situação específica da aplicabilidade do instituto nas condições do Brasil Colonial. Parte dessa discussão encontra-se no capítulo 1 deste estudo. 174 Carta Régia de 1375.

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No Brasil, tratava-se de assegurar não apenas a exploração efetiva da terra, mas, sobretudo, a consolidação da ocupação e do domínio do Estado Colonial sobre o território. Provavelmente, a essa filosofia inscrita na política fundiária colonial, deve-se a tendência do instituto de sesmarias, na colônia, a estabelecer, com rigor, profundas dificuldades para a concentração da terra em cadeias intra-familiais de propriedades. Portanto, dificultando a formação, estruturada, de núcleos locais de poder, de caráter feudalizante.

Esta é, aliás, a hipótese defendida por Raymundo Faoro175, para afirmar o caráter anti-feudalizante da propriedade territorial fundada no instituto de sesmarias, tanto em Portugal quanto no Brasil, através do qual, a Coroa mantinha o pleno controle e, em última instância, o domínio, sobre todas as terras da nação. Por este meio o Estado tinha, pelo menos formalmente, a possibilidade (ou virtualidade) de manter o controle sobre as terras coloniais, podendo exigir ou indicar a sua destinação ou uso específico e, em última instância, manter em suas mãos, formalmente, isto é, juridicamente, a única alternativa de legitimação: A exigência da confirmação real.

A contradição entre essas duas alternativas de acesso à propriedade territorial, a possibilidade concreta, real, da posse (sempre extra ou ilegal) de terras; e as concessões ou doações (e depois de 1850, a compra), através do Estado, que assegurava determinado estatuto da propriedade, persistirá no Brasil e será sempre o grande problema de política fundiária, a ser enfrentado pelo Estado.

Esse problema seria, como se viu, profundamente agravado no período que vai de julho de 1822 (quando e suspenso o instituto de sesmarias) à setembro de 1850, quando é promulgada a Lei 601. Nesse período, na ausência de qualquer regulamentação específica, pelo Estado, a respeito do acesso a terra e da legitimação da propriedade territorial, apenas o apossamento de fato, permanecia como recurso para a ocupação dos espaços territoriais. Esse problema seria, sobremaneira, agravado pela Constituição de 1824, que modificara o estatuto da propriedade territorial, tornando-a propriedade absoluta, ou seja, não sujeita a nenhuma cláusula restritiva ou condição, face à decadência legal das cláusulas resolutivas que vigiam no regime de propriedade anterior.

Criou-se, assim, uma situação ainda mais complexa e intrincada: era assegurado o pleno direito à propriedade privada, mas não eram assegurados, juridicamente, nem os instrumentos, nem os meios, nem os critérios, que servissem de parâmetros para a definição dos limites e legitimação referentes à propriedade territorial.

Nessa conjuntura, embora, genericamente, a todos ficasse facultada a possibilidade de apossarem-se de terras nacionais, tal faculdade, de fato, era muito mais vantajosa para os grandes detentores de sesmarias e outros poderosos que, por essa grande brecha aberta nas possibilidades de acesso a terra, apressaram-se em ampliar os

175 Op. cit.

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limites de seus já vastos domínios. A Lei de Terras, de 1850 assegura a legitimação exatamente dessa situação privilegiada.

Assim, aos pequenos posseiros, para usar um eufemismo comum em lógica jurídica, caberia a condição, (embora formalmente assegurados os seus direitos de posse, pela isonomia legal com os demais posseiros), de “exceção que confirmava a regra”. Melhor seria usar, para esse caso, uma expressão mais ajustada: eles estavam na condição “de regra que legitimava a exceção”. Porque, assegurar, juridicamente, as grandes posses era, de fato, a regra consagrada em 1850.

Por essa razão é que, neste estudo, se propõe a distinção entre grandes e pequenos posseiros. E se faz referência à apropriação privilegiada. É evidente que havia, legal e efetivamente - mais legal, que efetivamente -, a possibilidade para todos, de ocuparem (e depois da Lei 601, de legitimarem) determinadas parcelas do território brasileiro e aí se estabelecerem como pequenos agricultores de subsistência ou grandes plantadores. Entretanto, como se viu neste capítulo, os estudiosos do problema são unânimes em reconhecer, evidentemente com base na análise de documentos daquela época, que é exatamente nesse período que o latifúndio se consolidada definitivamente no Brasil. E é exatamente essa situação que se busca assegurar com a Lei de Terras. Portanto, também, legitimação privilegiada.

Assim, a Política Fundiária do Império176 configurou-se, efetivamente, como uma política de legitimação privilegiada da propriedade territorial rural no Brasil.

176 Como bem observa FOWERAKER (op. cit.) , “no apogeu do Império, o Estado recompensou o posseiro e criou o incentivo para a exploração econômica do interior. Dessa época em diante a posse tem-se constituído um direito em potencial à propriedade no Brasil, mas um direito que requer a intervenção do Estado para tornar-se real, e isso tem acontecido apenas raramente.” E, mais adiante, na mesma página, comenta que “é apenas o Estado quem define o que é propriedade privada, o que é posse e o que são terras devolutas (...); em resumo, é quem define as regras básicas para a luta vindoura sobre a terra. Durante o Império, (...) o estado monopolizou a terra e deu somente títulos aos que a compraram, deixando assim pouca folga legal onde se apoiarem os reclamantes. É verdade que o Estado pode não ter jamais exercido o controle integral sobre a terra (...) mas pelo menos a linha de demarcação entre o público e o privado era clara.” (p. 122).

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CAPÍTULO 3

LEGISLAÇÃO FUNDIÁRIA E LUTA PELA TERRA NA REPÚBLICA: (1889 - 1964)

1. Considerações Preliminares

O problema fundiário posto para o Estado brasileiro, desde a sua consolidação na década de 40 do século XIX, era o de viabilizar as condições institucionais e efetivas para disciplinar, juridicamente, o acesso e a garantia à propriedade privada territorial rural. Isto significava envidar esforços no sentido de demarcar, legalmente, a separação entre as terras do domínio público e as de domínio privado, por um lado; e materializar, por outro, esta demarcação ao nível da realidade. Tratava-se, portanto, de tentar oferecer caráter de legitimidade à todas as terras, quer fossem públicas ou particulares, na nova conjuntura de país independente e de sua inserção na economia e no conserto mundial das Nações.

As respostas apresentadas a este problema, e sobretudo os seus resultados concretos, foram objetivamente diferentes, conforme os distintos movimentos de conjunturas mais amplas vividas pelo país, em momentos diversos do seu desenvolvimento histórico. Provavelmente por motivos dessa natureza, é que a maioria das iniciativas no campo político, econômico, legislativo, e judiciário, embora se apresentassem como logicamente coerentes, do ponto de vista de sua estrutura jurídica e legal, sempre se depararam com limitações e bloqueios dificilmente superáveis ao nível administrativo e concreto de implementação no contexto da formação econômico-social. Tratavam-se de limites decorrentes ou impostos ao nível da “praxis”, tanto pelas conjunturas econômicas, quanto sociais, políticas, culturais, regionais, administrativas, etc.

A efetiva regulamentação da propriedade privada das terras - que virtualmente possibilitaria a implementação do projeto de alienação das terras devolutas, e a implementação do mercado de trabalho livre, na perspectiva wakefieldiana177 - apenas

177 Segundo Alberto Passos Guimarães (op. cit., p. 111), “as teses de Wakefield correspondiam a um período em que a terra já se tinha convertido em mercadoria, o que ainda não se havia verificado em nosso país,

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seria posta em prática pela Lei de Terras de 1850, sendo regulamentada, somente em 1854. Entretanto, o seu instrumento operativo mais importante, que seria a demarcação e o registro das terras possuídas e a discriminação e arrecadação das terras devolutas, que deveriam ficar sob o controle do Estado, fracassou de forma contundente.

Este fracasso da Política Fundiária do Império, tentada após a consolidação do Estado independente, na década de 1840, e formalizada juridicamente pela Lei 601 de 1850, foi apenas o primeiro.

O controle efetivo das terras devolutas brasileiras, que formalmente permanecia nas mãos do Estado, desde o “império das posses” e, sobretudo, no período regencial, tinha passado, de fato, às mãos do latifúndio, das oligarquias locais e dos especuladores imobiliários que, já na segunda metade do século XIX, com a valorização das terras, sobretudo pela expansão da cafeicultura, começaram a se organizar em empresas de imigração e colonização.

Pode-se dizer que o controle sobre as terras era exercido por duas vias: 1. “De fato”, isto é, à margem das normas juridicamente instituídas - direta e imediatamente, ao nível local, pela força e autoridade privadas dos latifundiários: sobretudo quando os conflitos não se publicizavam e quando as disputas pela terra, se estabeleciam contra pequenos posseiros e indígenas. 2. “De direito”, isto é, fundado, pelo menos formalmente, nas normas juridicamente sancionadas. Neste caso, o controle era exercido de forma mediata e institucional, pela via administrativa ou judicial. Sofria este processo, geralmente, a influência, ou mediação, dos representantes dos interesses latifundiários, quer fosse no Parlamento e no Executivo, quer fosse, em última instância, no próprio Judiciário que, localmente, sempre sofreu a forte influência, quando não a pressão direta, e nem sempre discreta178, das oligarquias, geralmente incrustadas nas burocracias da Administração Pública, sobremaneira poderosas ao nível local. Isso não quer significar, linearmente, que as oligarquias dispusessem da plena direção e controle do aparelho administrativo do Estado, mas que, as medidas adotadas, política, administrativa e judicialmente, raramente feriam os seus interesses, muito particularmente quando se tratavam de temas referentes a apropriação de terras

antes do século XIX.” Nessa conjuntura, segundo Passos Guimarães, e neste sentido concorda-se aqui com a sua argumentação, “a aristocracia rural portuguesa, no Brasil colonial, e a ‘nobreza’ rural brasileira, logo depois da independência, não precisavam recorrer a esses artifícios do sistema mercantil, porque no seu tempo a terra era ainda um privilégio (...) e não uma mercadoria. Bastava impedir, por meios jurídicos, as doações e, por meios violentos, as ocupações, àqueles que, ao arbítrio dos grandes senhores dominantes na Metrópole ou no Estado nacional nascente, não possuíssem dotes de nobreza ou fartura de dinheiro para merecer sesmarias.” (Id. Ibidem, p. 111). 178 A influência das oligarquias, sobretudo ao nível local, é expressa nos seguintes termos por Raymundo Faoro: “O coronel tem capangas, elementos sem vontade própria, como os têm os subcoronéis (...). Em regra o compadrio une os aderentes ao chefe, enquanto goza da confiança do grupo dirigente estadual e enquanto presta favores, com o domínio do mecanismo policial, muitas vezes do promotor público, não raro expresso na boa vontade do juiz de direito. As autoridades estaduais - inclusive o promotor público e o juiz de direito - são removidas, se em conflito com o coronel. Até a supressão da comarca, seu desmembramento, elevação da entrância são expedientes hábeis para arredar a autoridade incômoda.” (FAORO, op. cit. p. 632. Negritos nossos).

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devolutas e sobretudo, quando contenciosos179 sobre a terra envolviam pequenos posseiros e indígenas. Esses processos estão na origem da consolidação “legal” do imenso domínio que os latifúndios, efetivamente, sempre detiveram no Brasil. Daí a necessidade de se questionar a sua legitimidade.

Cabe relembrar, a essa altura, que os debates parlamentares que antecederam a aprovação da Lei 601 giraram, exatamente sobre questões desta ordem, que já se mostravam pertinentes à conjuntura agrária brasileira daquela época, como foi amplamente discutido no capítulo anterior.

Os fazendeiros do Vale do Paraíba, por exemplo, detinham, nessa época dos debates sobre a Lei de Terras, a liderança da produção de café, beneficiando-se, por um lado, da revalidação das sesmarias, que assegurava suas propriedades; e, por outro lado, pelo fato de disporem da mão-de-obra escrava, que já possuíam, assim como, do fato das suas lavouras de café, já instaladas, se encontrarem em plena fase de maturação (FAORO, op. cit.). Esta liderança da cafeicultura fluminense apenas começaria a ser ameaçada pela cafeicultura paulista, sobretudo do chamado “Oeste Paulista” e adjacências, a partir da década de 1860, quando perde aquela vantagem comparativa inicial, entretanto, por outras razões180 que não as especificamente ligadas à propriedade territorial.

Pode-se então concluir que a maior oposição posta a Lei 601 de 1850 devia-se ao fato de ser ela uma lei de propriedade. Neste sentido e contexto, uma lei que indicava a intenção do Governo em retirar às oligarquias rurais, pelo menos formalmente, juridicamente, o controle absoluto e direto, que exerciam sobre as terras. Logo, também, boa parcela do seu poder político. Referia-se ao fato do Estado pretender imiscuir-se, do ponto de vista das oligarquias latifundiárias, em assuntos específicos de esfera privada, no âmbito da propriedade territorial181. Daí as freqüentes acusações de “estelionato público” e as ameaças, nem sempre veladas, de violência social e política, ou mesmo de

179 Ainda Faoro faz uma referência a um dito popular dos sertões “quem tem padrinho não morre pagão”, que dá bem a medida da necessidade da mediação dos poderosos locais nas relações com as situações correntes da vida quotidiana do cidadão comum. Continua ele, “lidar com a polícia, com a justiça, com os cobradores de impostos, obter uma estrada, pleitear uma ponte, são tarefas que exigem a presença de quem possa recomendar o pobre cidadão (...). Esse benfeitor, de seu lado, detentor de conexões, tem, à medida que a sociedade se torna complexa, um corpo de assessores: o médico, o advogado, o padre, o coletor. Os auxiliares, em breve, na medida em que se institucionalizam e se homogeneizam os vínculos legais e costumeiros, disputarão o lugar do coronel” (op. cit., p. 633. Grifos nossos). 180 Referiam-se, especialmente, ao esgotamento das terras, ao retardamento na substituição do trabalho escravo, que desde 1850 já dava indicações de ter o seu fluxo cortado, e, conseqüentemente, aumentado o seu peso relativo nos custo de produção, sobretudo pela depreciação do capital imobilizado em escravos - pelo seu desgaste físico e envelhecimento - que causavam prejuízos, pelo fato corretamente registrado por Francisco de Oliveira, de situar-se na categoria do Capital Constante (In.: OLIVEIRA: 1984, Capítulo 1); junte-se a esses problemas o endividamento com os comissários e, sobretudo, com os Bancos que ganham impulso, na época, incentivados pela nova conjuntura de ampliação da produção e produtividade da cafeicultura, sobretudo nas zonas novas e fundadas no trabalho livre e na incorporação do progresso técnico, que, por outro lado, passaram a exigir recursos para o financiamento da produção que, do ponto de vista financeiro agregado, dificilmente podiam ser cobertos pelas ações privadas de comissários. Apesar do imposto territorial ter sido eliminado pelo Senado (ver Murilo de Carvalho, op. cit., p. 50). Permanecia apenas o imposto de chancelaria, que correspondia a um imposto de transmissão de bens imobiliários. 181 Que era assegurada pela Constituição de 1824. Daí a acusação de inconstitucionalidade imputada a Lei 601/1850. Ver a respeito, CARVALHO (op. cit., p. 42 - 44 ).

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convulsão nacional182, caso a Lei de Terras fosse posta efetivamente em prática. Nesse sentido, pode-se imputar esse viés “ultra-liberal” do latifúndio à ampliação da autonomia local, célere, no período do "império das posses" e, de certa forma e até certo ponto, consolidadas no poder político, que efetiva e realmente, passaram a deter as oligarquias no período regencial. Poder este, sobretudo, reforçado pela criação da Guarda Nacional e, até certo ponto, pela desmobilização do Exército, na conjuntura da transição para a Independência e consolidação da unidade e do Estado Nacional.

Nesse contexto, e nesta conjuntura específica, a centralização promovida com a ascensão do Imperador Pedro II e a efetiva e vigorosa instituição do Poder Moderador, e do Conselho de Estado, efetivamente soavam, às oligarquias, como um forte golpe nas suas pretensões de autonomia local.

Efetivamente tratava-se de uma oposição política183, a que era contraposta à Lei de Terras de 1850. Tratava-se de assegurar, sobre as bases da manutenção do domínio territorial, o poder local dos latifundiários, elevados, desde o período regencial, à condição de coronéis da Guarda Nacional, medida esta que eqüivalia, na prática e politicamente, à institucionalização e, portanto, ao reconhecimento, pelo Estado, do poder efetivo destas oligarquias. Nessa época consolidou-se o seu poder e influência políticos que, de resto, sobreviverão no período Republicano. Neste período, esse poder, de fato oligárquico em suas origens, desenvolve-se, sobretudo com base nos permanentes arranjos e alianças, que se materializam, apesar das diferenças e contradições que efetivamente, sempre existiram, entre famílias e grupos de potentados locais, conflitos estes que geralmente giravam em torno do controle sobre a propriedade territorial e a consecução de favores econômicos, políticos e financeiros do Governo.

A oposição à Lei 601 fica evidenciada quase que imediatamente após a sua regulamentação, em 1854. Mesmo antes de sua aprovação, durante os debates parlamentares, atribuía-se à radicalidade da referida Lei, o sentido de um forte indicador de que a mesma não seria implementada, como registra Murilo de Carvalho184, suspeita, aliás, que se mostrou plausível. A respeito, especificamente, da oposição concreta à implementação das medidas práticas preconizadas na Lei 601 e seu Regulamento, afirma Murilo de Carvalho:

“A leitura dos Relatórios dos Ministros do Império (até 1860) e da Agricultura, Comércio e Obras Públicas (de 1860 a 1889) são um contínuo reafirmar de frustrações dos ministros e dos funcionários das repartições encarregadas de implementar a lei, frente aos obstáculos de várias naturezas que se lhes apresentavam. No que se refere especificamente a terras, os pontos mais importantes para implementação eram o registro paroquial, a

182 Idem. p. 43. 183 No sentido captado por Joe Foweraker ao firmar que “a história legal é também uma história política, enquanto resultado das iniciativas do Estado para exercer o controle sobre a terra.” (FOWERAKER, op. cit.: 124). 184 Op. cit., p. 45.

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separação e medição das terras públicas, a revalidação de sesmarias e a legitimação de posses com a respectiva medição e demarcação.”185

Ou seja, a oposição dirigia-se ao cerne da Lei 601: a problemática da legitimação da propriedade territorial rural. Como foi analisado no capítulo anterior, os senhores de terras recusaram-se contundentemente, por um lado, a regularizar e registrar as áreas que possuíam; e, por outro lado, tentaram impedir, de forma sistemática e eficiente, a discriminação das terras devolutas. Isto significava, efetivamente, o impedimento à institucionalização da estrutura fundiária, na forma jurídica exigida pela nova conjuntura econômica, social e política do país. A contrapartida desse fato, entretanto, para os latifundiários, seria que a maioria das terras possuídas, por esta mesma razão, também permaneciam ilegítimas.

As terras devolutas, desconhecidas pelo Estado, mas evidentemente, muito bem conhecidas pelas oligarquias locais186, continuaram, entretanto, à mercê da ocupação desordenada, mas da legitimação privilegiada. Assim, ao perpetuarem a desorganização fundiária, fundada na incerteza quanto ao domínio sobre o que seriam terras públicas ou privadas, ficavam, na prática, asseguradas, as condições efetivas para a perpetuação de poder oligárquico, sobretudo ao nível local. E por meio de alianças e outras formas de articulações políticas, que sistematicamente sempre foram celebradas entre as oligarquias, até certo ponto, o poder e influência configurados nelas, se estendiam ao nível provincial e, até mesmo, em determinadas conjunturas, ao Governo central.

A desorganização fundiária, que permaneceu no rastro da Política de Terras da Monarquia, seria um dos problemas mais graves a ser enfrentado pelos Governos republicanos. A alternativa à transferência da gestão dessa questão para a alçada dos Estados da Federação, consagrada na Constituição Republicana de 1891, como se verá neste capítulo, eqüivalia, mais uma vez, a colocar todas as terras do país sob arbítrio das forças oligárquicas187, fortemente arraigadas nas diferentes burocracias dos Estados.

Como se argumentou no capítulo anterior, a falta de controle do Estado sobre as terras devolutas, eqüivalia, na prática, a uma ampla e total privatização de todas as terras do país. Esse fato inviabilizava qualquer tentativa mais ampla de reorganização fundiária e, portanto, de atração de colonos. O Estado ficava, de fato, impedido de poder oferecer terras com “bom título”, para usar os termos de Wakefield, capazes de servir de atrativo à imigrantes estrangeiros, sobretudo quando se tratassem de imigrantes que desejassem investir, ou estabelecerem-se como pequenos produtores independentes na agricultura brasileira.

185 Op. cit., p. 47. 186 Pelos sertões do Brasil, todas as pessoas, sobretudo aqueles que detinham o conhecimento da máquina do Estado, detinham uma noção mais ou menos clara das terras devolutas existentes, as chamadas terras “sem dono”. 187 Essa hipótese de que à transferência do domínio sobre as terras devolutas para a alçada dos Estados representou, objetivamente, a sua entrega ao controle das oligarquias e defendida pela maioria dos estudiosos desse tema. Ver, entre outros já citados neste estudo, WESTPHALEN (1968) e ALVES (1995).

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Nesse contexto, restou apenas a alternativa à atração de imigrantes pobres que deveriam servir nas grandes plantações, sobretudo na cafeicultura188.

Efetivamente, diante de tais condições, não se pode falar em “colonização sistemática”, apesar das críticas que possam ser feitas a este caminho da transição, nas colônias, para a economia de mercado, fundada no trabalho livre. Entretanto, esse foi o produto mais visível do fracasso da política fundiária do Império, que se estenderia à República, e cujo vigor apenas seria abalado pelo movimento, historicamente registrado como Revolução de 1930.

Apesar da tentativa ao nível institucional, para regulamentar a propriedade territorial, pela via jurídica, sobretudo pela exigência do registro, os grandes detentores de terras, ao que tudo indica, tinham um outro projeto, que acabou por se impor. Tratava-se de um projeto que se situava, como parece evidente, para além (ou aquém) do “Estado de Direito”: o Estado inspirado nos princípios do liberalismo econômico e jurídico, e que supunha, como condição necessária à legitimação - sobretudo a da propriedade territorial - a alternativa à lei. Esta deveria ser assegurada pela via legislativa e, em última instância, judiciária. Este parecia ser o projeto que estava sendo proposto pelas elites governantes do Brasil e que, no que se referia à questão fundiária, foi vetado pelo latifúndio. Se se quisesse utilizar outra terminologia, poder-se-ia dizer que o caminho eleito pelos grandes detentores de terras, fundava-se em um projeto que optara pela barbárie, em oposição a via civilizada, pacífica, negociada, fundada em princípios estabelecidos, ainda que formalmente, em Leis e regulamentos, social e politicamente sancionados.

Dessa forma, pode-se levantar a hipótese de que, tendo-se em consideração o cenário que emergiu com o fracasso da Política Fundiária do Império, o ordenamento

188Verena Stolcke (1986) faz uma brilhante defesa do colonato, procurando demonstrar que esse sistema de exploração de trabalho "que os fazendeiros adotaram como substituto para o trabalho escravo não só provia as fazendas cafeeiras em expansão de trabalhadores baratos e disciplinados, mas oferecia uma vantagem adicional sobre o trabalho assalariado. O colonato deu aos produtores de café uma flexibilidade diante das flutuações de preços que de outra forma não teriam (...). Esse sistema permitia aos fazendeiros comprimir os salários em dinheiro nas épocas de baixa de preços do café, sem por em risco a oferta de mão-de-obra(...)." (loc. Cit., p.54). Com essa argumentação e apoiando-se em depoimentos da época, procura, aquela autora, defender a tese de que o colonato era a melhor alternativa para a cafeicultura, inclusive argumentando, na página 56, de que uma prova "de que o colonato não estava vinculado às condições especiais sob as quais o café penetrou e se expandiu no estado é a sua persistência praticamente inalterada até o início dos anos 60."(Idem.; negritos nossos). Entretanto, se essa forma de exploração do trabalho era a mais adequada àquela conjuntura, isso não quer significar que outras alternativas, como o assalariato não fossem possíveis ou mais eficientes. Prova apenas que, certamente, não o eram naquela conjuntura, onde o bloqueio ao acesso e à formação de pequenas propriedades, impedia que se constituísse e desenvolvesse um mercado permanente de mão-de-obra livre, sobretudo da mão-de-obra excedente da produção familiar, ou de imigrantes pobres que, como supunha Wakefield, que, na expectativa de adquirir sua pequena propriedade, sujeitassem-se ao árduo trabalho assalariado. Visto deste ângulo pode-se dizer que o colonato não foi a melhor, mas a única opção que restou à cafeicultura, diante do bloqueio à via da "colonização sistemática". Nesse sentido específico, pode-se concordar com Verena Stolcke, no sentido de que era a alternativa mais eficiente naquela conjuntura, isto é, "no ponto". A hipótese de Verena, embora fundamentada em referências empíricas, tinha referência pontual. Essas observações têm apenas o objetivo de esclarecer o problema do desvio do projeto de colonização sistemática, tal como formulado por Wakefield. A discussão específica do problema levantado brilhantemente por Verena Stolcke fugiria aos objetivos deste trabalho. Para uma visão diferente desta problemática ver OLIVEIRA (1984, capítulo 1) e OHLWEILLER (S.d.).

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jurídico foi, em boa parte, colocado à margem do processo, ou subvertido189. Convertido em ordenador ou legitimador quase-passivo da des-ordem que se estabelecera: do “fato consumado”. Daí a permanente e persistente alternativa aos Registros, por suposto, de Direitos Reais sobre a terra, anteriormente constituídos. Daí a profusa e confusa legislação agro-fundiária brasileira, sempre eivada por casuísmos e minudências, aparentemente irrelevantes, mas que eram fundamentais a perpetuação da estrutura fundiária enrijecida. Daí as promulgações e revogações de Leis e decretos administrativos e simples portarias, que serão uma constante em todo o ordenamento jurídico-fundiário brasileiro, como está sendo analisado neste estudo. Daí as permanentes crises institucionais e de “governabilidade” e a impunidade, que se tornaram cada vez mais freqüentes no país, muito especialmente no período republicano.

É no contexto deste tipo de análise e interpretação da eficácia legal, que se torna possível formular a hipótese teórica de que, ainda quando uma determinada lei, ou conjunto de leis, não tenham sido implementadas, elas efetivamente têm seus efeitos assegurados ao nível da realidade social, ainda que pela via da negação.

É neste sentido que se faz, neste trabalho, referência às expressões “legitimação privilegiada” e “propriedades juridicamente questionáveis”. A suposição que subjaz a estas expressões é de que há uma contradição em termos na política fundiária que nasce com a Lei 601 e que permeará de forma indelével, todas as políticas ulteriores que tentaram trazer o ordenamento fundiário brasileiro para o campo da legalidade e do direito burguês, liberal. O ordenamento jurídico, na prática, acabou por configurar-se em oposição à própria ordem burguesa, supostamente estabelecida, ou pretendida. Uma ordem que consagrava - e ainda consagra - formalmente, os princípios da propriedade privada absoluta (especialmente a fundiária), da isonomia legal ou da igualdade perante a lei; do respeito ao direito adquirido, ou legalmente assegurado, à coisa julgada, etc. Entretanto, na prática a maioria destes princípios fora subvertida, acabando por servir primordialmente para assegurar os privilégios de determinados grupos sociais fortemente estabelecidos190. É neste sentido que a luta para dar legitimidade, do ponto de vista jurídico, a propriedade fundiária no Brasil, será o grande desafio da República nascente, sobretudo após a promulgação da Constituição de 1891, como se analisará em seguida.

189 Essa referência pode ser esclarecida com os seguintes comentários de Joe Foweraker: “A maior parte dos litígios sobre a terra não é entre indivíduos, mas entre grandes grupos de interesses econômicos e setores da administração pública (o Estado e suas várias manifestações burocráticas). Isso acontece não somente porque são esses os atores que dispõem de recursos para fazer frente às custas dos litígios, como também porque os julgamentos legais podem ser firmemente vistos como dependendo do quanto de pressão política possam os diferentes litigantes exercer sobre o sistema legal. Só o poder político pode garantir o controle legal da terra(...).” (Op. cit., pp. 123-124. Grifos nossos). 190 Um exemplo de subversão da legalidade estabelecida é dado pelo caso da luta pelas terras do Oeste do Paraná, que envolveu, após a exclusão dos pequenos posseiros da região do Contestado, um acirrado contencioso entre a União, o Governo do Paraná e as Companhias privadas de ferrovias e colonização, que se prolongou por mais de cinco década: os privilégios criados nesse tempo foram, enfim, assegurados.

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2. Legislação e Propriedade Territorial : Legitimação de Privilégios

As crescentes dificuldades enfrentadas pela implementação das medidas propostas na Lei de Terras, já amplamente discutidas, geraram, ainda no Império, algumas tentativas de reformulação da legislação de 1850. Objetivamente, segundo José Murilo de Carvalho, dois projetos, neste sentido, foram encaminhados, entretanto, sem êxito. Um deles, elaborado na gestão do Ministro da Agricultura de 1878, Sinimbu, foi, posteriormente, enviado ao Conselho de Estado, em 1880, por iniciativa do ministro Buarque de Macedo, que o sucedeu, tendo sido neste mesmo ano apresentado à Câmara, que o aprovou em primeira discussão, sem entretanto, ter continuidade. O outro Projeto foi apresentado, já nos últimos anos do Império, por Antônio Prado, tendo sido, igualmente, aprovado pela Câmara em 1886 e enviado ao Senado, onde sofreu solução de continuidade em face da proclamação da República191.

A primeira medida legislativa da República, no sentido de enfrentar os problemas herdados do fracasso da política fundiária do Império192, particularmente no que se referia à legitimação das posses, revalidação de sesmarias e seus respectivos registros; e, sobretudo, à discriminação, arrecadação e venda das terras devolutas do Estado, sobre as quais os processos de posse e ocupação aceleraram-se na segunda metade do século XIX, apesar da proibição expressa na Lei 601, vem sob a forma do Decreto no 451 B, de 31 de maio de 1890, seis meses após a Proclamação, que “estabelece o Registro e Transmissão de Imóveis pelo Sistema Torrens.”

Tratava-se, em princípio, como fica evidente pela análise de conteúdo do referido Decreto, de uma tentativa do Governo, para enfrentar, pela via administrativa, dos registros, à desorganização fundiária que persistia. Particularmente, visava-se, por este meio, evitar o avanço das posses sobre terras devolutas, utilizando-se de uma estratégia fundada na garantia de propriedade, que era oferecida pelo Estado, para as terras que fossem, efetivamente, registradas neste novo sistema. Este Decreto indicava a fragilidade e o fracasso das formas de registros anteriores, sobretudo o paroquial, e representava uma alternativa legal e adminstrativa à substituição do registro de terras em poder de particulares.

De resto, cabe recordar, após a publicação do Regulamento de 1854, foram exigidos registros, apenas, das sesmarias por revalidar e das posses por legitimar; ficando isentadas da necessidade de registro todas as demais terras possuídas por título legítimo (artigos 22 e 23, do Decreto 1.318/1854). Em sendo assim, pode-se concluir que o problema a ser enfrentado era, efetivamente, o avanço das posses sobre terras devolutas; bem como a continuidade, sem regularização nem legitimação, de terras

191 Ver Murilo de Carvalho (op. cit., p. 50). 192 Esta medida legislativa, situada ainda na perspectiva de se enfrentar indiretamente o problema fundiário pela via dos Registros Públicos, antecede à promulgação da primeira Constituição Republicana, de 1891, que transferirá a administração da maior parte das terras devolutas, para os Estados da Federação.

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possuídas desde antes da Lei 601. Quanto as posses constituídas após a Lei 601 eram efetivamente ilegítimas e ilegais, portanto nulas (artigos 1o e 2o da Lei 601/1850).

Diante desta situação e da persistência das práticas de apossamento ilegítimo de terras devolutas do Estado, que se agravaram na segunda metade do século XIX, sobretudo com a valorização das terras e dos sensíveis prejuízos que esta situação causava à arrecadação, além dos freqüentes conflitos que se vinham agudizando, o Governo tentará, mais uma vez, enfrentar o problema, ainda que pela via indireta dos registros. Virtualmente o Estado abandona, ou pelo menos, releva para um plano absolutamente secundário, a política de discriminação e arrecadação de terras devolutas, contentado-se com medidas específicas de colonização193 e da indução aos registros de terras possuídas, na expectativa de, por essa via, conseguir algum tipo de controle sobre as terras do Estado.

O que é curioso, neste contexto, e parece merecer melhor atenção, é o fato do novo sistema de registros apresentar duas peculiaridades relevantes: A primeira é que se tratava de um registro facultativo, apesar das evidentes vantagens que apresentava aos detentores de imóveis que optassem por esta forma de registro. A segunda refere-se ao fato de que o Registro Torrens era instituído de forma paralela e concomitante ao Registro Imobiliário existente, que passou a ser denominado de “Registro Comum”.

Essa duplicidade de alternativas para registro de imóveis, sobretudo rurais, poderia dar, e parece ter dado, oportunidade, a verdadeiros processos de expropriação por via registral. De grilagem especializada. Isso porque, aos imóveis registrados neste novo sistema eram assegurados plenamente os direitos de propriedade, logo, a propriedade legalmente reconhecida com prioridade sobre quaisquer outras formas de direitos reais sobre a terra, (como, por exemplo, as posses mansas e pacíficas), ressalvadas apenas as hipóteses de fraudes no decorrer do próprio processo de registro no Sistema Torrens, como será analisado adiante.

Eram admitidas ações judiciais, tanto reivindicatórias quanto contestatórias, apenas quando tempestivas, sob pena de prescrição. Isto é, quaisquer ações ou oposição em relação à propriedade do imóvel registrado no Sistema Torrens, deveriam ser propostas no decorrer do prazo, rigorosamente estabelecido na Lei ou pelo juiz para a sua propositura. Decorridos os prazos decadencial (do direito) e prescricional (para propositura das ações) configurava-se a perda de todo e qualquer direito sobre o imóvel.

Tupinambá Nascimento, esclarece a questão do Registro Torrens nos seguintes termos:

“O sistema Torrens se baseia numa idéia simples. A depuração do título a registrar deve ser feita antes do registro, oportunizando-se a qualquer interessado obstaculizar seja o imóvel transcrito em nome de quem o está pretendendo. Mas essa oportunidade de oposição deve ser executada dentro de um prazo previsto em lei. A não-oponibilidade tempestiva significa que aquele que poderia se opor precluiu deste direito, trazendo como

193 Um estudo sistemático e competente sobre as políticas de colonização desenvolvidas pelos Governos brasileiros desde a década de 1930 até 1984, foi realizado por José Vicente Tavares dos Santos (SANTOS, 1993).

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conseqüência jurídica o silêncio para todo sempre a respeito desta oposição. Em outras palavras, ao em vez de se permitir que após o registro, os interessados fundamentadamente o desfaçam, se obriga que os mesmos ou, de logo, no prazo que o juiz lhes dá, impugnem fundamentadamente o registro ou, pelo silêncio, tem-se como renunciado implicitamente o seu direito de oposição, precluindo para todo sempre qualquer direito de reclamação.194”

Não se trata, do ponto de vista defendido neste estudo, de se questionar a instituição do Sistema Torrens no que toca à sua relevância jurídica e administrativa, menos ainda, de questionar a sua eficácia enquanto um sistema rigoroso de Registro Público, capaz de contribuir efetivamente para a racionalização dos sistemas de registros de propriedade, sobretudo rural, cujas imperfeições já foram até certo ponto, analisadas. O problema reside em outro nível.

Para além das dificuldades experimentadas na implementação dos sistemas de registros anteriores, - o que pode, em certo sentido, explicar o caráter facultativo do novo sistema - de fato, a possibilidade de utilizá-lo, não apenas como alternativo, mas como contraposto à presumíveis direitos assegurados pelas outras formas de registro - para não se falar no vasto número de posses mansas e pacíficas, sobretudo pequenas, sem registro algum - poderia erigir, assegurando, direitos novos sobre propriedades ou posses mais antigas, ou não registradas, ou ainda, que apenas tinham a presunção de direito assegurada pelas outras formas registrais. Exatamente nesse ponto está a distinção fundamental que separa o Sistema Torrens, das formas de Registros Públicos que lhe antecederam. Nos Registros comuns, havia apenas a “presunção do direito”. Como argumenta Pontes de Miranda,

“presunção é menos que fé pública. Presunção por si só não protege o terceiro, porque a presunção se elimina, cancelando-se o registro, ou modificando-se, em virtude de retificação.”195

Ou seja, o registro comum de imóveis não assegura plenamente o direito sobre o imóvel, posto que pode ser anulado por erro, fraude, etc. Por outro lado, a negligência ou o desconhecimento do detentor do direito real, em relação às normas jurídicas que regulam determinados procedimentos de registro, podem ensejar registros viciados ou de má-fé, sobretudo se consolidados pela decadência dos prazos. Desconhecimento este, que, legalmente, não pode ser argüido em defesa196 da parte eventualmente lesada. Esta sempre foi uma grande porta aberta a grilagem especializada, fundada nas brechas abertas pela lei e que, como se verá nesta pesquisa, aperfeiçoou-se, na medida em que os problemas fundiários se tornaram mais complexos e as terras mais valorizadas. Essa modalidade “legal” e especializada de grilagem será cada vez mais desenvolvida com o

194 NASCIMENTO, 1985, p. 104 (Itálicos de Nascimento; negritos nossos). 195 PONTES DE MIRANDA (op. cit., Tomo XI, p. 234). 196 Artigo 3o do Decreto-lei no 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução do Código Civil Brasileiro, “ninguém se excusa de descumprir a lei, alegando que não a conhece.”(BRASIL. Presidência da República. Rio de Janeiro: 1942).

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suporte de verdadeiras assessorias jurídicas, tornando-se, em si mesma, um forte obstáculo aos processos de regularização fundiária e de reforma agrária.

Nestes casos configurar-se-ia o que aqui se está denominando de “expropriação197 por via registral” que, como se tentará pôr em evidencia no decorrer deste estudo, sempre se constituiu em uma porta aberta à grilagem especializada, promovida, cada vez mais, com apoio e assessoria jurídica qualificada. Essa é uma hipótese que necessita ser explorada em estudos específicos.

Pelo Decreto 451-B (artigos 46 a 48) era assegurada a possibilidade, de se opor ações contra os registros, entretanto, em prazos críticos, rigorosamente estabelecidos: “nunca menor de cinqüenta dias, nem maior que quatro meses, para a matrícula” (ou seja, para se opor ao registro) “se não houver oposição” (artigo 8o); e seis meses, para se opor sentença e mandado, ou seja, qualquer outra ação como as reivindicatórias. Afora esses prazos, apenas caberiam ações de indenização por perdas e danos e, ainda assim, em face de quem se beneficiou de erros ou fraudes. Nunca contra o proprietário adquirente, que não poderia ser incomodado em sua posse, como explicita o Decreto (artigo 20). Afora essas alternativas, só restava a opção à ações indenizatórias por perdas e danos, como resta claro no artigo 76 do referido decreto:

“Art. 76. Salvo o disposto no artigo antecedente, o indivíduo privado de um imóvel ou direito real, por erro ou omissão na matrícula ou fraude de terceiro, pode acionar por indenização o que do erro ou fraude se houver aproveitado.

1o Prescreverá esta ação em cinco anos, a contar da perda da posse e, para os incapazes, do dia em que cessar a incapacidade.

2o O adquirente ou credor hipotecário de boa fé não podem ser perturbardos na posse, ainda quando o título do alienante haja sido matriculado fraudulentamente, ou tenha ocorrido erro na delimitação.” 198

A tentativa de indução ao registro no novo sistema das terras em domínio privado, pelos presumíveis proprietários, explícita nos diversos artigos do Decreto 451-B, por suposto, fundados nas vantagens representadas pela ampla garantia de propriedade, que efetivamente era assegurada, não deixava dúvidas sobre os objetivos desta Legislação. Em primeiro lugar, disciplinar e regularizar as terras em poder de particulares, buscando minimizar, dessa forma, e pela via jurídica da garantia do registro, os conflitos, que se agudizavam, entre grandes fazendeiros e entre estes, pequenos sitiantes e o Estado. Em segundo lugar, buscava o Governo, pela via indireta

197 Esse é um problema que sempre existiu na luta pela propriedade no Brasil desde o período colonial. Por exemplo, a resolução de julho de 1822, acerca do pleito de um posseiro que foi atingido pela concessão de sesmaria dá uma idéia das implicações deste problema. Entretanto, será após a Constituição de 1891 que esse tipo de ação trará maiores conseqüências. Os caso da CITLA/LUPION, no Paraná, do Grupo Laranjeiras, no Mato Grosso, são apenas dois exemplos da gravidade dessa problemática. A esse respeito, como comenta Foweraker, “evidentemente o sistema legal é usado e abusado na prolongada luta pelo controle da terra; e as pressões exercidas sobre o sistema legal, tanto por capitais privados como por setores do Estado, fazem dele um instrumento parcial do controle político, ao invés de um instrumento imparcial de justiça.” (op cit., p. 145). 198 Decreto 451-B de 31 de maio de 1890. In.: MEAF (op. cit. Grifos nossos)

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do registro das terras em domínio privado, proceder à discriminação ou o controle do acesso às terras públicas, devolutas - por exclusão daquelas.

Dessa forma, e na medida em que os registros fossem implementados, e gerando as cadeias dominiais, o Estado teria, teoricamente, a possibilidade de, regularizada a situação fundiária, poder assumir efetivamente o controle do processo de privatização das terras do seu domínio. Essa segunda alternativa, em especial, foi inócua, como os resultados da situação das terras devolutas o demonstrou.

O artigo terceiro do Decreto em questão faz referência explícita à vantagem maior oferecida pelo novo sistema de registro, ou seja, a plena e “irrefragável” garantia de propriedade do imóvel matriculado. Por outro lado, provavelmente em face das dificuldades já enfrentadas no âmbito da execução dos registros paroquiais, o seu artigo primeiro estabelecia como facultativo o registro de terras havidas por transações entre particulares, ao colocá-lo nos seguintes termos:

“Art. 1o Todo imóvel, suceptível de hipoteca e ônus real pode ser inscrito sob o regime deste decreto.

“As terras públicas, porém, alienadas depois da publicação dele serão sempre submetidas a esse regime, (sob) pena de nulidade da alienação, sendo o preço restituído pelo Governo, com dedução de 25%199.”

Como se observou acima, o artigo 3o do Decreto em questão reforça as garantias do registro ao estabelecer que “todo documento exibido como ato do oficial do registro e por ele assinado ou por seu ajudante, será recebido como prova irrefragável” de propriedade, salvo o disposto nos parágrafos 2o e 3o do artigo 75. Estes parágrafos referem-se aos atos ilícitos, e que dão ensejo a anulação dos títulos, após trânsito em julgado, nos termos dos artigos 70 a 73, que se referem, respectivamente: (a) à fraudes no processo de registro ou transcrições; (b) negligência, “má-fé” ou erro, cometidos pelos oficiais de registro; (c) falsificação dos atos de registro e, finalmente, (d) detenção, não autorizada, de título alheio.

Todos esses atos encontram-se classificados no Capítulo das “Penalidades” e implicam, respectivamente, nas penas de estelionato (art. 70), de multa e indenização por perdas e danos além das penas previstas no “Código Criminal” (art. 71), falsidade ideológica (art.72) e penas estabecidas para o crime de furto, para o detentor de título alheio (art.73). O rigor, formalmente, estabelecido no Decreto 451-B oferece o sentido da relevância atribuída, pelo legislador, à necessidade de tornar rígidos os procedimentos de legitimação da propriedade. Independentemente de se questionar a eficácia ou não, ao nível da realidade, da aplicação destes preceitos, há que se ter em consideração que este Decreto abria, efetivamente, a possibilidade para se tentar enfrentar com alguma possibilidade de êxito, as irregularidades existentes, muito especialmente as fraudes. Mas, com a mesma veemência, abria as portas a apropriação ou expropriação por via

199 Idem., p. 475.( Grifo nosso).

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registral e a grilagem especializada, como se referiu acima. Joe Foweraker, refere-se a esta questão ao analisar o período que se seguiu à promulgação da Constituição de 1891, quando a gestão das terras públicas passam para os Estados. Segundo ele,

“a mudança no controle das terras devolutas favoreceu mais uma vez a concessão de terras para companhias privadas e para o capital particular. Esta circunstância, mais que qualquer outra, marcou o início da luta legal pela terra no Brasil.”200

Cabe lembrar que, desde a promulgação do Decreto em análise, a venda de terras públicas implicava, necessariamente, seu registro pelo Sistema Torrens, com todas as garantias citadas. Como era freqüente o Estado alienar terras quase sempre já ocupadas por posses ou por pequenas propriedades legítimas, estes posseiros e proprietários, necessariamente tornavam-se passíveis de despejo. É nessa conjuntura que uma

“(...)legião de advogados ambiciosos, mais o longo desenrolar das disputas legais que ‘progridem’ sucessivamente através de uma pirâmide de injustiça, compreendendo os diferentes tribunais, desencorajam e desqualificam (...) mesmo os indivíduos mais poderosos.”201

Portanto, junto ao rigor deste do Decreto, talvez tivesse sido oportuno o estabelecimento de salvaguardas legais, que assegurassem, contra a má-fé, e a fraude especializada, os direitos reais de uma vastidão de propriedades sem registro, especialmente, de pequenas posses, espalhadas pelo território brasileiro. Ao contrário disso, e esse fato em si mesmo já mereceria estudos especializados, o Decreto 451-B, limita-se, rigidamente, a assegurar a propriedade em favor de quem detém o registro, ainda quando este tenha origem viciada ou mesmo fraudulenta (artigo 76, parágrafo 2o).

E possível contra argüir, qualificando estas observações de meta jurídicas, que, efetivamente, são. Apesar disto, pode-se dizer que o parágrafo 2o do artigo 76 legitima, no caso da propriedade fundiária, o furto e a receptação de terras. Como é sabido, o furto e a receptação de produtos ou coisas de origem ilegal sempre se constituíram em crimes nos termos dos Códigos Criminal e Penal brasileiros. Portanto, o tratamento distinto dado a esses delitos quando se referem à propriedade territorial, configura efetivamente um privilégio e trata-se, nesse sentido, de um assunto que, no mínimo, mereceria análise especializada.

Por outro lado, ao estabelecer que as alienações de terras públicas teriam, necessariamente, que sujeitar-se ao registro Torrens, abria esta regulamentação, igualmente, a perspectiva para se racionalizar e, em certo sentido, tentar por termo, às fraudes nos negócios com as terras do Estado202, pelo menos pelas vias administrativa ou judiciária. Quer dizer, a partir desse momento, as fraudes eventual ou efetivamente

200 FOWERAKER, op. cit., 123. 201 Id. Ibidem. 202 Convém lembrar que este Decreto é anterior à Constituição de 1891, que transferiu para os Estados a competência sobre as terras devolutas em seus territórios, o que, certamente, iria dificultar a gestão das terras públicas, como se verá adiante.

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cometidas, assim como as irregularidades, colocavam-se à margem da lei. Tornando, portanto, nulas, as alienações de terras devolutas que não fossem registradas no novo sistema, inclusive, prevendo o retorno das terras ao Estado mediante restituição de apenas 75% do valor recebido, ao adquirente infrator (art.1o, Decreto 451-B). Entretanto, ao que tudo indica, este artigo foi efetivamente negligenciado. Não há notícias de nenhuma devolução de terras ao Estado com a dedução de 25% prevista naquele artigo. Aqui, como se vê, mais uma vez se configura o direito do privilégio, neste caso, pelo não cumprimento das exigências estabelecidas formalmente203 .

Quanto ao registro das terras em domínio privado, haviam as exigência explicitadas nos artigos 7o a 9o referentes à instalação do processo de Registro:

“Art. 7o O requerimento virá instruído com os títulos de propriedade, e quaisquer atos que a modifiquem, ou limitem, um memorial indicativo de todos os seus encargos, no qual se designarão os nomes e residências dos interessados, ocupantes e confrontantes, e, sendo rural o imóvel, a planta dele.”

Assim, pode-se supor, tornava-se problemático e, no limite, profundamente dificultado, o registro fraudulento ou viciado, por exemplo, de terras sobre as quais não se dispusessem de alguma documentação. O que não quer dizer que houvesse a garantia efetiva de que tais fraudes e delitos não ocorreriam, ou que não tenham ocorrido. Esta hipótese, aliás, é presumida no texto do próprio Decreto, a julgar pelas penalidades previstas e caracterizadas nos artigos 70 a 73 indicados acima. O maior problema, entretanto, continuava a persistir na rigidez dos prazos prescricionais e decadenciais, que poderiam ser, com a ajuda e habilidade de advogados e conivência de Oficiais de Registros, utilizados para legitimar situações duvidosas e mesmo fraudulentas. Entretanto, como será visto adiante, não houve como impedir, após a Constituição de 1891, que vários Estados alienassem terras, supostamente do seu domínio, e fornecessem os respectivos registros, sem contudo, respeitarem sequer os próprios da União, menos ainda as posses (legítimas ou legitimáveis) efetivamente existentes nas áreas que privatizavam, evidentemente, de forma ilegítima, posto que, neste caso se tratavam de terras que não pertenciam ao patrimônio estadual. Entretanto, isto não impediu a expulsão e, muitas vezes, como no Paraná, Pará e Mato Grosso, para ficar só nesses casos, a violência direta e o massacre de indígenas, pequenos proprietários e posseiros que secularmente viviam nas áreas.

No que toca ao formalismo exigido para a instalação do processo de registro, que, de resto, gerava o pleno direito sobre o imóvel, e sobre o qual, inclusive, era assegurado que “nenhuma ação reivindicatória será recebida contra o proprietário do imóvel matriculado” (artigo 75) sendo:

203 No imaginário popular brasileiro há inclusive, uma expressão que traduz exatamente essa modalidade de privilégio: “Aos amigos tudo. Aos inimigos a lei” ou “aos amigos tudo, aos inimigos o rigor da lei”; e uma outra, que traduz a dimensão mais complexa desse fenômeno, que diz: “manda que pode, obedece quem tem juízo”. Neste último caso ficando claramente expresso o fato do poder direto de vigiar e punir.

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“a exibição judicial do título ou outro ato de registro, (...) obstáculo absoluto a qualquer litígio contra o conteúdo de tais documentos e contra a pessoa nele designada.” (artigo 75; 1o).

Ressalvados os casos de fraudes e erros de registro, já mencionados, pode-se afirmar que se tratava de um instrumento efetivo, no sentido de possibilitar a constituição do direito de propriedade e, em certo sentido, a contenção de determinados abusos na área de legitimação da propriedade, especialmente rural.

Tratava-se de um formalismo, em tese, rigoroso. Neste sentido, portanto, apenas podendo ser burlado por ato deliberado de fraude, logo, por dolo. Apesar disto, era admitido o ato culposo, “involuntário” do oficial de registro ou de seus prepostos, especialmente argüidos pelos advogados de defesa de possíveis fraudadores e falsários. Por outro lado, como as questões judiciais, especialmente os contenciosos, são dispendiosos, profundamente morosos e de resultados imprevisíveis, havia, especialmente para aqueles que conheciam os meandros do Judiciário e da burocracia Pública, a presunção de que dificilmente tais ações seriam propostas, especialmente quando se tratassem de pequenos proprietários e, sobretudo de indígenas e posseiros. Estes, aliás, uma vez despejados ou expulsos de suas posses, jamais teriam como fazer prova delas em juízo. Tudo conspirava, portanto, contra a massa dos pobres do campo.

Feitas essas ressalvas, há que se admitir que o Registro Torrens se configurava em um instrumento bastante atraente, e certamente eficaz, para aqueles que efetivamente possuíssem terras legítimas ou passíveis de legitimação. Entretanto, isto não excluía a má-fé de outros. É neste contexto que os prazos prescricionais e decadenciais funcionam como uma faca de dois gumes. Poderiam ser, da mesma forma, utilizados por pretendentes de má-fé, especuladores e grileiros especializados, que, de posse do conhecimento das alternativas jurídicas e dos prazos legais, associados ao conhecimento da existência de terras devolutas ou ainda não registradas, ou fragilmente asseguradas por registros, como o paroquial, para se apressarem em requerer a matrícula de imóveis, sob o novo Sistema e, por esse meio obter a propriedade da terra. Neste caso, decorridos os prazos legais e não havendo contestação, assegurariam em seu benefício o direito sobre a propriedade.

Essa era a outra alternativa assegurada pelo Decreto 465-B. Esse fenômeno foi muito comum na aquisição de terras devolutas aos Estados. O pretendente ou requeria ou candidatava-se a aquisição da suposta terra devoluta, aos órgãos próprios dos Estados e, feita a compra, e não havendo oposição, recebiam os títulos e imitiam-se na posse. Sucede que os Estados raramente cumpriam as exigências legais de verificar se se tratavam, de fato, de terras devolutas, isto é, livres204. Sempre existiram posseiros ou indígenas na maioria dessas áreas que, por desconhecerem os procedimentos que estavam sendo adotados, eram surpreendidos pelo “proprietário” das terras que ocupavam, já munidos dos respectivos títulos “legítimos”.

204 A este respeito ver o capítulo 4, adiante.

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Tendo-se em consideração que muitos pequenos posseiros e até proprietários, espalhados pelos vastos interiores do país, não detinham o domínio desse tipo de conhecimento, posto que, nem sequer de outros recursos dispunham, muitos deles nem mesmo possuindo o seu próprio Registro Civil, - e portanto, muito menos o de suas posses ou propriedades205 - pode-se deduzir as implicações que essa alternativa abria à especulação imobiliária e a grilagem especializada, fundada na expropriação por via dos registros. Este seria o lado problemático do Registro 4Torrens, amplamente agravado pelas “vendas” de terras devolutas realizadas pelos Estados da Federação após a Constituição de 1891.

Além disso, há que se ter em consideração, que a burocracia e o formalismo jurídico exigidos para a instalação dos procedimentos de registro e, sobretudo, as dificuldades postas para a proposição de ações contra imóveis registrados de forma viciada, de fato, excluíam a maioria da população, sobretudo os pequenos posseiros e proprietários. Além, é claro, da ameaça direta e nem sempre discreta dos latifundiários sobre a multidão de pequenos posseiros e indígenas.

Em suma, mesmo admitindo que, formalmente, o Decreto 451-B tenha sido baixado pelo Governo Federal para tornar legalmente possível o combate às freqüentes e já conhecidas fraudes e irregularidades no processo de regularização fundiária, tem-se, necessariamente que se admitir a hipótese de que o mesmo tenha sido utilizado, (e os fatos parecem indicar, com suficiência, que efetivamente o foi) por outro lado, ao nível concreto, e dadas as limitações e dificuldades impostas, sobretudo aos pequenos posseiros, mas não apenas a estes, pelos motivos já apontados, para dar ensejo a verdadeiros processos de expropriação206 e grilagem especializada de terras.

3. Constituição de 1891: União, Estados e Legitimação da Propriedade

A Proclamação da República trouxe uma profunda transformação na gestão da política fundiária do Brasil. Com a promulgação da primeira Constituição Republicana, em 1891, e consagrado o Sistema Federativo, cinde-se a autonomia política e administrativa sobre a implementação da política de terras devolutas, entre União e Estados. Cinde-se, também, o processo legislativo sobre o acesso à propriedade territorial rural no país.

Para além de qualquer inferência de cunho puramente abstrato a respeito dessa opção política, o fato é que ela vinha de encontro a antigos anseios das oligarquias

205 Referem-se aqui ao fato comum no meio rural, sobretudo, de que muitas vezes as transações com pequenos lotes de terra eram feitas com base em instrumentos particulares, muitos deles sequer sendo registrados. Ver a respeito das condições de registro de terra no Brasil, Nascimento (op. cit., pp.95-107), Octávio Ianni, Ditadura e Agricultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira (1979(a)). 206 Como será estudado nos próximos capítulos, essa modalidade de expropriação de pequenos posseiros, no qual o suposto proprietário já aparece diante deles munido do respectivo título de propriedade, tornou-se uma prática cada vez mais comum de grileiros especializados na medida em que as terras se valorizavam e o desenvolvimento econômico passava a incluir novas terras ao circuito produtivo, especialmente com o avanço das ferrovias, em finais do século XIX e, a partir dos anos de 1950, das rodovias. No período do regime militar, esse fenômeno foi amplamente denunciado e documentado, como será demonstrado nos próximos capítulos.

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regionais, de consolidação e fortalecimento do poder ao nível local. Segundo a maioria dos estudiosos desta problemática, como será visto neste capítulo, este fato significava transferir formal e efetivamente para os Estados e, por essa via, para o controle das oligarquias locais fortemente arraigadas nestes, o poder de decisão sobre os problemas regionais, particularmente no que se referia ao controle do acesso da propriedade territorial.

Na história política do Brasil, desde o período de consolidação da Independência, como foi visto no capítulo anterior, sempre que pairava alguma ameaça a desestabilizar o poder central, as oligarquias locais tentavam de forma veemente ampliar seus poderes ou conquistar novos espaços. Tal aconteceu após a abdicação de Pedro I, assumindo maior radicalidade no período regencial, e tal volta a acontecer, embora em uma conjuntura profundamente distinta, com a queda da Monarquia. Se no período regencial foi possível a reação centralizadora com o Golpe da Maioridade e a consolidação do II Reinado, tal não ocorrerá com a Proclamação da República, na qual as oligarquias, fortalecidas com a importância da cafeicultura na balança exportadora, impõem o seu projeto, que apenas será ameaçado seriamente, com a Revolução de 1930 e, ainda assim, resultando numa solução de compromisso, pela qual as oligarquias passam a dividir a hegemonia no bloco do poder, sobretudo ao nível federal, mas mantém virtualmente intocados os seus privilégios aos níveis locais e regionais, sobretudo no que se referia ao controle quase absoluto das políticas de terra e agrícola.

A alternativa federativa, nesse sentido, representou uma vitória das oligarquias locais que, sempre que se instalava qualquer crise no bloco de poder, especialmente, ao nível central, aproveitavam-se para reforçar a sua autonomia política, sobretudo no que se referia aos processos de administração e controle das terras devolutas e do acesso privilegiado às finanças do Estado.

Foi assim na crise da transição para a Independência, quando o poder oligárquico local foi fortemente consolidado, atingindo seu ápice político no período regencial. A reação centralizadora, com o chamado Golpe da Maioridade, que representou o enfraquecimento, embora provisório, das oligarquias locais em relação ao poder central, trouxe no seu bojo, como se viu no capítulo anterior, a tentativa de se promover o processo de regulação institucional do acesso à terra, com a promulgação da Lei 601. Por outro lado, a resistência imposta ao nível da implementação desta Lei, na verdade, dava a indicação segura de que o poder e a influência daquelas oligarquias, entretanto, permaneciam amplamente arraigados.

A crise que levou ao fim do Império, até certo ponto, representou uma dimensão relevante da resistência das oligarquias contra a centralização do poder207. É nesse contexto que a opção pela Federação correspondeu, de fato, aos interesses fundamentais das oligarquias rurais, especialmente as que se achavam vinculadas à cafeicultura,

207 Este argumento é defendido pela maioria dos estudiosos: Veja-se, em particular, Raymundo Faoro, Joe Foweraker, Westphalen, Octávio Ianni, Fábio Alves, Caio Prado Júnior, José de Souza Martins, Otto Ohlweiler, todos já citados neste estudo.

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sobretudo paulista e mineira, que já então, se estruturara de forma amplamente sustentada pela mão-de-obra livre, embora ainda sob a forma do colonato, mas amplamente assentada nos mecanismos de “eficiência econômica” típicos do capitalismo. O processo de produção e organização do trabalho, nestas fazendas, consolidaram suas vantagens comparativas em relação à cafeicultura escravista do Vale do Paraíba, beneficiária ainda, das políticas econômicas implementadas pelos Gabinetes do Império, e que sofrerá o golpe final com a Abolição em 1888; um ano antes da desagregação da Monarquia e da entrada do País na fase republicana.

É nessa conjuntura que as teses republicana e federativa realmente vinham de encontro às reivindicações dos fazendeiros, sobretudo os cafeicultores paulistas e mineiros. É nesse sentido, por exemplo, que Raymundo Faoro desenvolve sua análise a respeito da adesão à estas teses, pelos fazendeiros de café, especialmente de São Paulo e Minas Gerais:

“As mudanças da estrutura interna da fazenda, mais empresa do que baronia, com a necessidade de ordenar racionalmente os cálculos econômicos, reivindica autonomia regional, próxima aos latifundiários. A fórmula federalista servirá à nova realidade em todos seus termos, aproximando as decisões políticas do complexo econômico. Por essa via as idéias republicanas entram nas fazendas - nas fazendas não essencialmente escravistas - com impacto inquietador.”208

No mesmo sentido vão os argumentos de Joe Foweraker209, ao comentar, fundamentando-se no trabalho de Westphalen210, que

“com o final do Império, pela Constituição de 1891, a propriedade legal e o controle político das terras devolutas passaram aos estados e, daí para as oligarquias locais e proprietários de terras.”211

Para Ohlweiler a Proclamação da República e a opção pelo federalismo tinham o mesmo sentido apontado pelos autores citados:

“A república federativa contemplava os interesses gerais do setor agroexportador: o imposto sobre as exportações favorece as unidades mais ricas; o imposto sobre importações, que afeta o custo de vida do conjunto, destina-se a União; as terras públicas ficam sob a responsabilidade dos Estados assim permitindo que as oligarquias regionais controlem sua distribuição; e, por fim, o princípio de intervenção federal nos Estados, pode ser usado para fins da política do governo central ditada pelas oligarquias regionais 0mais poderosas.”212

208 FAORO (op. cit. , p. 456. Grifos nossos). 209 Op. cit. 210 WESTPHALEN (1968). 211 FOWERAKER, (op. cit., p. 123) 212 OHLWEILER (S. d., p. 102. Grifos nossos).

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A Constituição de 1891 como foi registrado acima, transferiu para os Estados da Federação a autonomia política, legislativa e administrativa sobre

“as minas e terras devolutas situadas nos seus respectivos territórios, cabendo a União apenas a porção de território que for indispensável para a defesa das fronteiras, fortificações, construções militares e estradas de ferro federais.”213

Desta forma, passaram para a jurisdição dos Estados, não apenas as terras do domínio público, mas, o que é ainda mais relevante, o poder de legislar sobre a sua concessão, discriminação e legitimação das que fossem possuídas214. À União restou apenas as terras devolutas situadas numa estrita faixa de fronteira com países estrangeiros (66 quilômetros) e a pequena faixa costeira - os chamados terrenos de marinha - uma faixa de 33 metros, sujeita às influências das marés. Pode-se dizer, portanto, que neste contexto, a União se retira da questão fundiária, limitando-se apenas à gestão da restrita parcela de terras devolutas incursas no seu patrimônio, deixando para os Estados o poder, assegurado, aliás, pela sua autonomia constitucional, para administrar todas as terras dos seus domínios.

Portanto, ao serem transferidas para os Estados a propriedade e a competência legislativa sobre a maioria das terras devolutas, pelo fato de se situarem em seus respectivos territórios, quase nada restou à União para administrar. Este fato significa, efetivamente, que os problemas de legitimação de posses e de alienação de terras públicas, antes mesmo de serem enfrentados de forma efetiva pelo poder Central, foram colocados sob o arbítrio dos Estados e, como se observou acima, das oligarquias locais. Exatamente as mesmas oligarquias que, desde a promulgação da Lei 601, vinham impondo um conjunto de restrições e dificuldades, muito particularmente em relação à implementação das medidas relativas à legitimação e registro das terras havidas por particulares e à discriminação das terras devolutas215. Nesse contexto, como observa Foweraker ao estudar o caso do Paraná, poderiam os governos estaduais administrar as terras com tanto maior

“impunidade, quanto mais conseguisse o seu próprio sistema legal criar uma autoridade legal separada, sendo os sistemas

213 Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 1891. Artigo 64 (In.: MEAF, op. cit., p.477. Grifo nosso). 214 Ressalvados apenas os processos de ação discriminatória que continuavam privativos à alçada da União. 215 Essas terras que como já se explicitou nesse trabalho englobavam a totalidade das terras que pertencem ao domínio público e que não se encontravam afetas a alguma utilização pública, eram “terras que nunca deixaram de pertencer ao domínio público, ou que, tendo sido transpassadas a particulares, retornaram ao Poder Público por não terem seus donatários cumprido com suas obrigações” (BASTOS, 1990, p. 265). Tais terras até a Proclamação da República pertenciam ao patrimônio da Nação, tendo sido, pela Constituição de 1891 transferidas para o domínio dos Estados da Federação (art. 64 da Constituição de 1891) que passaram a administrá-las. Essa situação irá gerar conflitos importantes sobre a autonomia e a competência para a gestão dessas terras, sobretudo entre a União e os Estados e, muitas vezes, entre diferentes Estados da Federação. Nesse contexto, que Foweraker (op. cit.) caracteriza de “autoridade dual”, os conflitos reais e legais sobre a propriedade da terra agudizam-se, beneficiando-se dele, sobretudo, os grupos mais poderosos de especuladores imobiliários e as “companhias colonizadoras”. Mas persistirá o problema da legitimidade dos títulos de propriedade, questão esta cujo contencioso geralmente envolve dissídios entre os Estados e a União, e que apenas poderão ser dirimidos pela via judicial.

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estaduais apenas frouxamente articulados ao Federal, numa subordinação ambivalente.”216

Cabe registrar, por outro lado, que a Constituição Republicana de 1891 assegurava plenamente o direito de propriedade nos mesmos termos da Constituição de 1824, ao admitir no artigo 72, parágrafo 17, a possibilidade de “desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante indenização prévia”, e neste sentido representava, de fato, um retrocesso em relação a Carta Régia de 1375 e à Lei 601 de 1850, que condicionavam a propriedade territorial rural à sua exploração efetiva, sob pena de cair em comisso.

Os preceitos das duas Constituições, a de 1824 e a de 1891, neste sentido são simétricos217: referem-se a obrigação, por parte dos proprietários privados, e sob a condição da prévia indenização, de permitirem obras públicas, como servidões, abertura de ruas, estradas, construção de prédios e obras públicas, etc. Não se referiam a subutilização ou a não exploração da terra. O que é profundamente diferente de expropriação pelo não cumprimento da função social, seja da concessão, como no caso do instituto de sesmarias (pelo qual as terras eram concedidas para serem exploradas), seja no caso da Lei 601 e de outras Constituições Republicanas, a partir da de 1934, que formalmente estabelecem a figura da desapropriação por interesse social ou utilidade pública. Ainda assim, na Constituição de 1934 esse preceito é formulado de forma negativa:

“Art. 113. A Constituição assegura a todos os brasileiros e a estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade nos termos seguintes:

(...) 17. É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido contra o interesse social ou coletivo, na forma que a lei determinar. A desapropriação por necessidade ou utilidade pública far-se-á nos termos da lei, mediante prévia e justa indenização218...”

Convém registrar, entretanto, que não havia no horizonte desse preceito constitucional nenhuma intencionalidade no sentido de algum tipo de reordenamento da distribuição da propriedade rural e, menos ainda, de reforma agrária, tal como se entende atualmente, mas, como sempre foi da tradição jurídica portuguesa, no sentido de possibilitar o desenvolvimento de servidões públicas, obras de infra-estrutura e urbanismo, como construção de praças, cemitérios, prédios públicos, 216 Op. cit., p. 124. Grifos nossos. 217 Observe-se que com a revogação das cláusulas resolutivas do instituto sesmarial pela Constituição Imperial de 1824, aliada à garantia da propriedade privada plena da terra, assegurada naquela Constituição, criam-se as condições jurídicas fundamentais que asseguraram o império das posses, no qual, durante 28 anos, o latifúndio expande-se e firma-se em todo o país para nunca mais ceder. Neste sentido, a omissão da exigência de exploração da terra, na Constituição de 1891, da mesma forma abre amplas possibilidades para a constituição e avanço do latifúndio no país. 218 Artigo 113 da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 16 de julho de 1934. In.: MEAF, op. cit., p. 502. Grifos nossos).

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estradas, etc. Ou seja, não se pode assimilar esse preceito ao da “função social da propriedade” ou similares. Geralmente as medidas que poderiam ser, em certo sentido, interpretadas como obrigando os proprietários a explorarem efetivamente suas concessões, como se viu nos capítulos 1 e 2 deste trabalho, eram grafados em leis específicas, de caráter infra constitucional. O sentido atualmente atribuído à função social da propriedade aparecerá claramente na Constituição de 1934 (artigo 113; 17).

A referência à desapropriação por necessidade ou utilidade pública ou por interesse social, como se verá no decorrer da análise do período republicano, aparecerá em todos os textos constitucionais. Entretanto, as formas e condições para execução dos procedimentos de desapropriação variará no decorrer do tempo, indo desde a referência ampla, como no caso da Constituição de 1891 à “prévia e justa indenização”, sem fazer referência à sua forma de pagamento, até a especificação da exigência da indenização prévia e em dinheiro, como no caso da Constituição de 1946219. É evidente que dependendo da forma como tenha sido definido o pagamento da indenização, o processo de desapropriação para fins de interesse social poderá ser facilitado ou até impedido. Esse problema será analisado no momento oportuno no decorrer deste trabalho.

Entretanto, há uma dimensão fundamental que antecede ao problema da desapropriação e que, portanto, é mister que seja colocado de imediato. Trata-se do fato de que só há a possibilidade de desapropriar terras que tenham sido, ou sejam, objeto de propriedade privada anterior e legítima. Falar em desapropriação220 é admitir, “a priori”, a existência legal da propriedade privada sobre a terra. Exatamente nesse ponto residem os problemas que aqui se estão analisando.

A titulação das propriedades rurais no Brasil, como se vem tentando demonstrar neste trabalho e como se pretende deixar evidenciado ao final do mesmo, é, juridicamente, questionável221. Dificilmente os títulos de propriedade resistem a uma análise jurídica mais objetiva222.

E, como no Brasil não existe “res nullis”, isto é, terras sem dono, adéspotas, como já se analisou em outra parte deste trabalho, as terras ou são de domínio privado, e 219 Este problema, de grande relevância, é nesse momento apenas levantado, posto que será objeto de análise detalhada quando do estudo da Política Fundiária do regime militar, no qual o mesmo aparece de forma mais efetiva. Entretanto, vale a pena antecipar a respeito as seguintes observações de José Gomes da Silva: “De 25 de março de 1824, quando foi promulgada a Constituição Política do Império, até a Emenda Constitucional no 27 de 28 de novembro de 1985, quando foi feita a última modificação na Carta Magna, é possível registrar algumas tendências muito claras no perfil do tratamento constitucional da questão agrária. (...) Enquanto na Constituição de 1824 ‘a propriedade era garantida em toda a sua plenitude’ (art. 179, parágrafo 22), na de 1969 é imposto um condicionamento social, depois de ter passado pelos estádios intermediários que admitiam apenas restrições em função da necessidade e utilidade pública (art. 153, parágrafo 22).Essa evolução reflete-se no instituto de Desapropriação por Interesse Social para Fins de Reforma Agrária e na forma de pagamento das desapropriações”. (In.: Reforma Agrária. ABRA, novembro/88, pp.14 -15). Esse problema será objeto de análise no capítulo 4. 220 Segundo Bandeira de Mello, a “desapropriação consiste, do ponto de vista teórico, no procedimento administrativo através do qual o Poder Público compulsória e unilateralmente que despoja alguém de uma propriedade e a adquire para si, mediante indenização, fundado em um interesse público.”(BANDEIRA DE MELLO, 1996, p. 504). 221 Ver os capítulos 4 e 5, onde esta questão é amplamente estudada. 222 Ver a esse respeito o depoimento do Sr. Oldair Zanata à Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a política de incentivo fiscal na Amazônia (In.: INCRA, 1980).

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para isso é condição “sine qua non” a exibição do título legal de propriedade, ou das condições efetivas que caracterizam as posses legitimáveis; ou são terras devolutas, portanto, públicas. Quanto a estas últimas, como é evidente, não cabe desapropriação: elas são, por definição, propriedades públicas, terras do Estado. E o Estado não pode desapropriar-se a si mesmo. E menos ainda, auto-indenizar-se ou indenizar a terceiros por terem invadido suas terras.

No caso das terras devolutas se encontrarem em posse de terceiros, caberia, por princípio, conforme a Lei 601 de 1850 - princípio este mantido pelas legislações ulteriores - o despejo sem direito algum, nem mesmo a benfeitorias, e “pena de dois a seis meses de prisão” e multa, além da satisfação de danos causados, como já observado. Até porque é vedado o usucapião em terras públicas.

Entretanto, ao nível da realidade objetiva, e também legal, sempre foi admitida a hipótese de que, estando terras, devolutas ou não, em posse de particulares, que nelas residissem e as tornassem produtivas com o seu trabalho e de sua família, por determinado período de tempo e sem oposição, havia a possibilidade legítima, do Estado vir a legalizá-las, pela venda ou por sentença declaratória.

Na Constituição de 1934, o art. 125, repetido pelo art. 148 da Constituição de 1937, assegurava o domínio de até 10 hectares a todo brasileiro, que não sendo proprietário ocupasse por 10 anos contínuos um trecho de terra, sem oposição, tornando-o produtivo, o que seria legitimado por sentença declaratória. Na Constituição de 1946, esse preceito é modificado pelo artigo 156, que no 1o abre a perspectiva de se assegurar aos “posseiros de terras devolutas, que nelas tenham morada habitual, preferência para aquisição de até 25 hectares”; e no 3o do mesmo artigo, amplia a área (referida nos artigos 125 da Constituição de 1934 e 148 da de 1937), para 25 hectares, mantendo iguais as demais exigências de moradia e exploração efetiva e de não possuir propriedade rural nem urbana.

Assegurando a preferência para esses posseiros, no caso de vendas de terras devolutas, ou lhes reconhecendo a propriedade, pela via de sentenças declaratórias, sempre que se referissem à posses efetivamente exploradas. Entretanto, transformar esta possibilidade constitucional em pretexto para legalização de imensas áreas, como vem sistematicamente ocorrendo no país, não encontra nenhuma justificativa ou respaldo na legislação.

Tratam-se, portanto, nestes casos, de apropriações e, se registradas, de legitimações, privilegiadas. Mesmo quando esses processos possam estar ou tenham sido mascarados por leilões ou “licitações” para “alienação”, pelo Estado, a preço vil223. Nesses casos o que efetivamente existe é um simulacro de compra, através do qual, busca-se oferecer legitimidade e substância, pelo aparente cumprimento do formalismo da venda exigido pela legislação. Pode-se afirmar que nesses casos, aliás

223 Situações estas que serão analisadas nos capítulos 4 e 5 e que caracterizam situações de “grilagem especializada”.

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como alguns depoimentos à Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema Fundiário deixará claro, de um mero simulacro de compra e venda de terras devolutas: o Estado “finge” que vende (só que efetivamente vende); e o adquirente privilegiado “finge” que compra, (só que, efetivamente, compra). O processo em si é que é completamente viezado, fundado no privilégio. Na melhor das hipóteses, fundados na utilização de informação privilegiada.

Bastam essas observações, neste momento, para levantar este problema que será detalhadamente analisado no próximo capítulo, que se ocupa do período do Regime Militar, quando o mesmo ganhou maior intensidade e relevância. A introdução desta problemática é importante para a sua localização no âmbito desse estudo e até porque esse artifício da “compra a preço vil”, ao Estado, sempre esteve presente no período Republicano, agravando-se à medida em que a expansão da produção agrícola e, sobretudo, das redes de comunicação e transportes, começaram a facilitar a incorporação de novas áreas à economia agrícola nacional e, portanto a despertar o interesse e a cobiça, em face da valorização das terras. Esse fenômeno, que tem início com a expansão das ferrovias, ainda no Império, adquirirá grande impulso durante todo o período republicano Torna-se especialmente grave na segunda metade deste século, trazendo no seu bojo um conjunto complexo de problemas fundiários e de conflitos, quase sempre violentos, pela posse da terra.

Nesse contexto cabe questionar-se o direito de propriedade, ou seja, a legitimidade da ocupação ou a legalidade dos títulos de propriedade. Dirimir essa dúvida tem sido desde sempre o problema primordial, senão fundamental, a ser enfrentado para que se possa assegurar o acesso democrático e produtivo à terra no Brasil.

Veja-se que distribuir terras é diferente de redistribuir a propriedade. Redistribuir a propriedade supõe a existência de uma distribuição anterior da mesma, quando na verdade o que houve, pelo menos em relação à maioria das terras do Brasil, foi uma apropriação privilegiada e, muitas vezes, ou geralmente, em oposição à legislação vigente; ou seja, contra o consentimento formal do Estado.

No primeiro caso, distribuir a terra, significa assegurar o acesso à terra que, no Brasil, é originalmente pública, ainda que pela via da compra ao Estado. No segundo caso, acrescente-se, ao se falar de desapropriação, fica pressuposto o reconhecimento dos privilégios construídos pela apropriação anterior (geralmente fundada em simples processos de posse ilegítima de grandes áreas) inclusive, motivando a sua recompensa destes atos com indenizações, não importa a forma de pagamento. Falar em desapropriação, sem se questionar a legitimidade da propriedade e o processo de sua constituição, no Brasil, é, além do exposto, oferecer argumentos em defesa do latifúndio. Oferecer subsídios para as defesas ideológicas da propriedade, sob alegação de que, com a reforma agrária, se pretende atentar contra a propriedade privada (legítima?), quando de fato, o que a história fundiária brasileira tem evidenciado é que

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houve (e continua havendo) um sistemático atentado ao patrimônio público das terras devolutas do país.

Portanto, no caso brasileiro, qualquer iniciativa de “reorganização” fundiária, ou qualquer medida de reforma agrária, necessariamente tem que transitar pela verificação da legalidade dos títulos de propriedade em poder de particulares, especialmente nas áreas de reforma agrária224.

A relevância desse fato parece óbvia: se as terras em domínio privado não estiverem fundadas em títulos legítimos, não cabem processos de desapropriação e, menos ainda, qualquer indenização por parte do Poder Público, independentemente de cumprir ou não a função social. Posto que, não sendo propriedade legítimas, não há, sequer, porque se argüir da sua função social. No limite, esse procedimento legal poderia representar uma redução significativa dos gastos públicos com desapropriações. Poderia, por outro lado, facilitar a ação do Estado no sentido de assumir o controle sobre as terras devolutas, sobre as quais, como se vem analisando neste trabalho, desde 1850, quando tal processo foi legalmente instituído, jamais o Estado brasileiro teve efetivas condições de exercer.

Quanto as propriedades legítimas, que estejam fundadas em títulos legítimos, - e tudo indica que são muito poucas - caberiam as desapropriações, conforme previstas nos textos constitucionais ou estabelecidas pela legislação pertinente, ou seja, com base nos princípios do cumprimento de sua função social. A verificação da consistência ou inconsistência legal dos títulos, supondo-se o efetivo combate à fraude e a participação efetiva de organizações civis especializadas, além do Judiciário e instituições públicas específicas, poderia efetivamente ser realizada. A morosidade na decisão judicial ou mesmo administrativa a respeito deste problema, que sempre foi uma constante em toda a história do país desde os tempos do instituto de sesmarias, apenas vem reforçar a hipótese de que o processo de registro e titulação, ou seja, da legitimação da propriedade rural no Brasil é efetivamente, fundado no privilégio.

Entretanto, exatamente a possibilidade de controle efetivo sobre a alienação das terras públicas é que, ao ser passada para a alçada dos Estados, pela Constituição de 1891, tornou-se profundamente problemática.

Como se registrou no capítulo anterior, até os últimos anos do Império, a maioria das sesmarias por revalidar e das posses por legitimar não haviam sido efetivamente registradas, além de ter-se agravado a prática do avanço das posses sobre as terras devolutas existentes. Como registra José Murilo de Carvalho, em 1886, três anos antes da Proclamação da República, o Relatório do Ministro da Agricultura, Comércio e Obras Públicas informava que, naquele ano, “grande número de sesmarias e posses permaneciam sem revalidar e sem legitimar, e as terras 224 O que não impede que, paralelamente, se implementem os processos de desapropriação para fins de reforma agrária, dentro de uma política específica nesses termos, e quando a desapropriação couber, ou seja, quando se tratarem de áreas legitimamente de domínio particular; o “ônus da prova” cabendo sempre ao suposto proprietário, como aliás determina a legislação em vigor. Porque a referência básica é a de que as terras brasileiras são, originalmente, públicas.

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públicas continuavam a ser invadidas.225” Assim, permaneciam, nos primeiros anos da República, os problemas da desorganização e ilegitimidade fundiárias, por um lado; e do apossamento de terras públicas, por outro, a essa altura de forma efetivamente ilegal, posto que explicitamente proibida pela Lei 601 de 1850, então em vigor. Esta era a situação encontrada à época da promulgação da Constituição de 1891, que transferiu a gestão das terras devolutas para o âmbito da Administração Estados.

Ou seja, a situação da legitimidade da propriedade, sobretudo no que se referia à titulação de terras, no final do Império, era absolutamente inconsistente do ponto de vista da legalidade e do direito. Foi diante desse contexto e nesta conjuntura, que o primeiro Governo Republicano, seis meses após a Proclamação da República, como analisado acima, editou o Decreto 451-B, instituindo o Registro Torrens. Entretanto, como se viu, este registro era obrigatório apenas para os processos de alienação de terras públicas, permanecendo facultativo para as transações entre particulares.

Agrava-se, por outro lado, o problema da legitimação das propriedades rurais e, mais do que isso, do próprio acesso às terras devolutas, com a transferência da competência para tanto, da União para os Estados. Fundamentados na autonomia que lhes era assegurada pela Constituição, os Estados dão início aos processos de alienação de terras devolutas, cada um, no decorrer do tempo, promulgando suas próprias legislações fundiárias e criando suas instituições específicas para administração das terras públicas.

O problema, como é óbvio, não se situava, efetivamente, na promulgação de princípios gerais e normas ou regulamentos, proclamados pelas diferentes legislações estaduais, ou mesmo indicados na Constituição Federal. Situava-se, objetivamente, no amplo processo de concessão e alienação de terras promovidos pelos diferentes Estados da Federação, assim como na continuidade de ocupação privilegiada de terras devolutas, sobretudo pela via de grandes posses ou concessões pelos Estados, sob os mais diferentes pretextos. Pode-se dizer que o avanço das grandes posses continuou durante todo o período republicano, paralelamente à concessão ou vendas de terras pelos Estados. A venda ou a concessão de terras públicas eram realizadas, geralmente, como registrou José de Souza Martins e muitos analistas desta questão, para grandes grupos e empresas privadas.

Fugiria aos objetivos deste estudo a análise específica da legislações estaduais e dos diversos conflitos fundiários criados pela ação imediata, ou pela omissão, dos Estados da Federação. Referências a essas questões serão feitas na medida em que contribuam para a melhor explicitar ou esclarecer as hipóteses defendidas neste estudo.

Os problemas fundiários serão agravados, após a Constituição de 1891, em face dos diversos conflitos acerca da legitimidade e da competência dos Estados e da União para alienarem terras devolutas ou titularem terras que se encontravam em domínio privado. Ou seja, o processo de legitimidade da propriedade territorial ficará

225 (In.: CARVALHO, op. cit., p. 47).

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profundamente comprometido com essa mudança. É nesse sentido que se pode afirmar, como o fizeram os estudiosos citados neste trabalho, que o controle sobre as terras passou efetivamente às mãos das oligarquias estaduais, perpetuando-se a apropriação e legitimação privilegiadas.

O fato mais importante a registrar com relação a Constituição de 1891 é que a União renuncia ao controle, ainda que formal, da maior parte das terras devolutas do país. Esta situação dará origem a um acirrado e permanente contencioso com os Estados, sobretudo envolvendo problemas de competência legal para alienar e titular terras públicas. Desse contencioso acerca da legitimidade e das competências sobre as terras devolutas valem-se, efetivamente, toda a sorte de especuladores, como muito bem observa Foweraker:

“Como o título da terra, porém, sempre se origina em alguma área administrativa (no domínio público), onde esses títulos conflitam com a história legal atravessa contradições políticas maiores, que pode provocar o confronto direto entre diferentes setores federativos.” (op. cit.:145).

Ao desenvolver esta argumentação, Foweraker chama a atenção para o fato de que, enquanto os diferentes órgãos federais e estaduais se encontram envolvidos em imensas e complexas disputas legais acerca da competência sobre determinadas áreas, os grupos econômicos efetivamente passam a ter maior liberdade para avançar e ocupar imensas áreas, especialmente nas regiões de fronteira, onde esses grupos

“dispõem de maior liberdade para as suas operações econômicas precisamente porque a situação legal é tão mal definida (ao contrário das relações institucionalizadas das sociedades maiores, onde a relação legal de propriedade é essencial à atividade econômica e à acumulação).”226

Nessa conjuntura complexa de interesses em conflito perpetuam-se os dissídios e contenciosos entre União, Estados, grandes corporações e proprietários, dificultando, em grande parte qualquer possibilidade, ainda que formal, que o Estado pudesse ter para interferir na estrutura agrária. As grandes vítimas, de fato, nesse contexto, são os pequenos posseiros e indígenas, que só não se pode afirmar que foram ignorados, porque foram brutalmente esmagados quando não simplesmente dizimados.

4. Legislação Federal e Terras Devolutas (dos Estados?)

Com a transferência da autonomia política e administrativa sobre a maior parte das terras devolutas para os Estados, restringiu-se a autonomia federal às terras públicas da União, que eram basicamente a faixa de fronteira e os terrenos de marinha. As diretrizes gerais, que persistentemente tentará a União imprimir, sob a forma de uma política fundiária, de fato, terão, neste contexto, a sua eficácia restrita às terras devolutas federais.

226 FOWERAKER. (op. cit., p. 145)

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Por um lado, a adequação227 entre as legislações dos Estados e a Federal, pressuposta na Constituição Federal, como se observou, era frágil e, por outro lado, gozando os Estados de autonomia sobre seus territórios, dificilmente a União poderia impor, mesmo que o desejasse, exigências legais no campo da política fundiária. Efetivamente, portanto, a União procurará ater-se, em última análise, às terras de seu domínio e, apenas em situações especiais, entrará em disputas e contenciosos com os Estados, sobretudo quando as questões sobre terras envolverem retornos tributários relevantes para o orçamento da União. Nunca os contenciosos têm por referência a defesa de direitos sobre as posses, sobretudo quando se tratam de pequenos ocupantes, como no caso do Oeste do Paraná, do Mato Grosso e, mais recentemente, do Pará228.

Após o Decreto 451-B, já analisado, outra tentativa de regulamentação federal sobre as terras devolutas vai aparecer, indiretamente, no Decreto 2.453-A de 5 de janeiro de 1912. Diz-se indiretamente posto que este Decreto reportava-se de forma particular ao incentivo da produção do látex, na conjuntura de crise que se apresentava para a produção e exportação nacional da borracha sob o impacto da concorrência britânica; e para uma específica política de colonização e integração da Amazônia à economia nacional. Como observa Edilson Martins229,

“De 1870 a 1912 o Brasil torna-se o maior exportador mundial de borracha, chegando a contribuir com 100% de toda a produção do mercado internacional. Os ingleses, cuja tradição colonialista nunca foi posta em dúvida, contrabandearam no final do século XIX 70 mil mudas de seringa de nosso país, e racionalizaram o cultivo em suas colônias asiáticas(...).”

O Decreto 2.453-A, de 5 de janeiro de 1912, como será visto, destina-se especificamente ao incentivo à produção do látex, e, mais que isto, a uma determinada política de colonização e ocupação da Amazônia, indicando medidas objetivas para a implantação de um amplo programa de desenvolvimento, que envolvia a construção de infra-estrutura ferroviária e outras ações específicas, na área da de colonização, da concessão de terras para a instalação de colônias agrícolas e de grandes empresas agropecuárias e de pesqueiras, envolvendo inclusive, a instalação de estruturas para

227 É pressuposto do ordenamento jurídico federativo que as legislações ordinárias, inclusive as Constituições estaduais, não podem ferir preceitos estabelecidos na Constituição Federal. Nesse sentido, todas as Leis de Terras dos Estados, por definição não poderão ferir os preceitos constitucionais. Como se verá, será exatamente através da argüição destes preceitos constitucionais que a União procurará redefinir a sua autonomia sobre boa parte das terras devolutas estaduais, ampliando a abrangência dos seus bens. Por outro lado, como é igualmente preceito constitucional o respeito “aos direitos adquiridos, o ato jurídico, à coisa julgada”, assegurados em todas as Constituições brasileiras. Assim, as situações anteriormente consolidadas - mais uma vez o “fato consumado”, dificilmente podem ser revertidas. Isso faz com que os contenciosos sobre as terras devolutas prolonguem-se indefinidamente, acabando por assegurar privilégios e, sobretudo atos ilegítimos, como se verá neste trabalho. Apenas a Constituição de 1967 (após a Emenda Constitucional no 1, de 1969. BRASIL. Presidência da República. Brasília: 1969) embora assegurando aqueles princípios (art. 153), e provavelmente em face do “estado de exceção” em que vigorava, interferiu efetivamente nessa questão como será visto em lugar próprio deste estudo. 228 Há uma vasta literatura a respeito dessas questões. Ver em especial FOWERAKER (op. cit.); MEDEIROS, (1989) e FACÓ (op. cit.). 229 MARTINS, E . 1982., p. 24.

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beneficiamento da produção, assistência técnica e social, além de uma conjunto amplo de outras medidas relevantes:

“Estabelece medidas destinadas a facilitar e desenvolver a cultura da seringueira, do caucho, da maniçoba e da mangabeira e a colheita e beneficiamento da borracha extraída dessas árvores e AUTORIZA o Poder Executivo não só a abrir os créditos precisos à execução de tais medidas, mas ainda a fazer as operações de crédito que para isso forem necessárias.”230

Parece lícito, neste sentido, levantar-se a hipótese de que este Decreto, na verdade um vasto projeto de desenvolvimento e integração econômica, o primeiro efetivamente estruturado neste sentido para a Amazônia, tivesse, pelo menos, duas metas latentes: 1.uma, claramente explicitada no seu texto, referia-se à tentativa de recuperar a hegemonia perdida pelo incentivo à produção racional da borracha, inclusive a sua pré-industrialização; 2. Outra, referia-se a tentativa efetiva de ocupar produtivamente esse espaço ameaçado de internacionalização231, promovendo além do incentivo à produção e beneficiamento da borracha, o incentivo à instalação de indústrias pesqueiras e de conservas, de produção de alimentos e pecuária; além de indicar um amplo projeto de construção de ferrovias integrando a Amazônia, por um lado, às fronteiras com o Peru, atravessando todo o Território do Acre (pouco antes incorporado ao território brasileiro) e, por outro lado, integrando a Região à Pirapora (MG), ao Maranhão e ligações “aos portos iniciais e terminais de navegação dos rios Araguaia, Tocantins, Parnaíba e São Francisco.” (art. 6o, incisos I, II e III)232.

Oldair Zanata, ocupando-se da problemática da titulação da terra rural no Brasil, refere-se nos seguintes termos a respeito, especificamente, deste Decreto:

“(...) Em 1904, porém, depois de solucionadas as dúvidas de limites com a Bolívia, foram incorporadas ao Brasil partes das terras que viriam constituir o Território Federal (hoje Estado) do Acre. A situação fundiária peculiar ali verificada, que incluía terras tituladas pela Bolívia, pelo Estado do Amazonas e pelo ex-Estado Independente do Acre, levou o Governo Federal a baixar o Decreto 2.543-A, de 1912, que estabelecia normas a serem aplicadas no então Território Federal.” 233

Como se pode observar, colocado o problema desta maneira, fica a impressão, de que o Decreto 2.543-A foi baixado para equacionar a situação fundiária específica do

230 Decreto 2.543-A/1912; intróito (BRASIL. Presidência da República. Rio de Janeiro: 1912 ). 231 Nesse sentido Edilson Martins (op. cit., p.50. Grifos nossos) registra que “no dia 31 de outubro de 1853, o Governo dos Estados Unidos solicitava oficialmente ao Brasil que abrisse a Amazônia à navegação internacional (...). Até 1912 - ano que o Brasil perde a hegemonia mundial da produção de borracha, que mantinha desde 1870 - não foram poucas as pressões no sentido de internacionalizar a Amazônia, nem menores as lutas internas entre países formadores de sua bacia. 232 Vide, Decreto 2.543-A, de 5.01.1912.Op. loc. cit. 233 Zanatta, Oldair . A titulação de terra rural no Brasil . INCRA. Simpósio Internacional de Experiência Fundiária. (MEAF. Salvador-Bahia: agosto de 1984, p. 9. Grifos nossos).

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Território Federal do Acre234 após o acordo com a Bolívia, em 1904 e com o Peru, em 1909. Efetivamente este não é o caso. O que se pode dizer, em relação à situação fundiária do Território do Acre, que é tratada no Artigo 10 do referido Decreto, especificamente nos parágrafos 1o e 2o, é que a União reporta-se à providências no sentido da regularização fundiária do mesmo, reconhecendo todos os títulos legítimos ( 1o, alínea “a”) e as posses mansas e pacíficas que se achem com efetiva exploração e morada habitual dos posseiros ou de quem os represente ( 1o, alínea “b”); e no parágrafo 2o determinava a área máxima de 10 quilômetros de quadra para cada lote de terra.

Trata-se, inclusive de um parágrafo que implica dúbia interpretação, posto que, enquanto, como se viu, o “caput” do artigo 10 e seus dois primeiros parágrafos reportam-se à situação específica do território do Acre, o parágrafo 3o deste mesmo artigo refere-se a uma situação genérica e nacional:

“ 3o O governo reverá as disposições da Lei 601, de 18 de setembro de 1850 e Decreto 1.318, de 30 de janeiro de 1854, expedindo novo regulamento de terra com as modificações da presente lei e as que mais convenientes parecerem à atual situação dos territórios federais.”235

Voltando à análise de conteúdo do Decreto, observa-se que toda a sua estratégia de promoção da política de melhoramento da produtividade e beneficiamento da borracha fundam-se, em primeiro lugar, sobre uma determinada política de isenções fiscais e prêmios de produtividade e eficiência. Pode-se, dizer que o Decreto é inovador, inaugurando, em certo sentido, as políticas de incentivos fiscais para a Amazônia.

É neste contexto que, logo no seu artigo 1o, é estabelecida a isenção de impostos de exportação e expediente para a aquisição de “todos os utensílios e materiais destinados a essas culturas, seja extrativa ou não”. No artigo 2o “institui prêmios para plantações inteiramente novas” e estabelece uma série de incentivos à produção. Institui, igualmente, (artigo 3o) “estações experimentais e de assistência técnica, distribuição de sementes selecionadas” etc., em diversos Estados produtores de seringueira, maniçoba e mangabeira. Estabelece, “além dos prêmios e incentivos” indicados nos artigos primeiro e segundo,

234 A relevância do Acre no contexto deste Decreto deve-se, sobretudo, ao fato, registrado por Edilson Martins de sua “vocação para a produção do látex (ser) inquestionável, tamanhas são as reservas naturais dessa árvore em todo o seu território.” (op. cit., p.27). E ainda como observa aquele autor (op. cit. p. 50). “O Brasil anexou o atual Estado do Acre, antes pertencente à Bolívia e ao Peru, nos primeiros anos deste século, depois de uma guerra antiimperialista que se estendeu durante três anos, liderada pelo caudilho gaúcho Plácido de Castro.” 235 É importante recordar que ao se referir aos territórios federais, na verdade a União referia-se, genericamente às terras de sua alçada administrativa - as terras devolutas da União. Por outro lado, as demais medidas do referido Decreto, inclusive destinadas à instalação de hospedarias em Belém e Manaus, além do Acre, assim como a referência às ferrovias, deixam evidente que esse Decreto foi inscrito sob a inspiração de um incentivo à ampliação e aperfeiçoamento da produção de borracha, inclusive de maniçoba, mangabeira e caucho, que envolviam vários Estados da Federação (ver artigo 3o), particularmente da Região Nordeste. Portanto, parece equivocar-se o Dr. Oldair Zanatta ao reduzir a abrangência do Decreto apenas ao Território do Acre.(Negritos nossos na citação).

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“Art. 4o A título de prêmios de animação, até 400$000 à primeira Usina de refinação de borracha seringa que reduza as diversas qualidades a um tipo uniforme e superior de exportação e que se estabelecer em cada uma das cidades de Belém e Manaus(...).”

Todas essas medidas situam claramente o espírito e os objetivos deste decreto: tratava-se efetivamente de um esforço desesperado para recuperar a competitividade brasileira no mercado internacional da borracha, que neste ano de 1912, caíra a limites críticos sob o impacto da concorrência britânica. Segundo dados do estudo de Fernando Henrique Cardoso e Geraldo Muller236, citado por Edilson Martins:

“em 1878, 100% da produção mundial de borracha cabia ao Brasil. Em 1890, a produção decresce para 90%. Nos quatro qüinqüênios consecutivos a partir de 1900, isto é, de 1900 a 1919, a participação cai de 70% para 53%, 34%, 12%; no quinquênio 1925/29, mal atinge 2%.”

Entretanto, jamais o Brasil conseguirá recuperar sua posição no mercado exportador de borracha e esse fato talvez explique o abandono das diversas medidas preconizadas neste Decreto, voltando a Amazônia a ser relegada ao quase completo abandono, do ponto de vista das políticas públicas de incentivo à produção e à integração nacional, que apenas serão efetivamente recolocadas na ordem das preocupações federais na segunda metade deste século, sobretudo com a instituição do PIN - Programa de Integração Nacional - no período militar, que será estudado nos próximos capítulos.

Mas, é relevante fazer algumas referências a outras medidas preconizadas no Decreto 2.543-A, senão pelos seus resultados, que foram inócuos diante da crise apontada, pelo menos pelo pioneirismo em propor medidas de integração da Amazônia e antecipando-se na sua defesa contra as diferentes tentativas de sua internacionalização237.

No que se refere a uma política específica de imigração, o seu artigo 5o estabelece a meta de mandar o Governo construir três hospedarias “em Belém, Manaus e em ponto apropriado do Acre”, para alojar imigrantes; hospitais interiores, “cercados de pequenas colônias agrícolas, nos quais possam ser recebidos doentes a tratamento, praticada a vacinação gratuita, etc.” Estas medidas idealizadas no referido Decreto dão a dimensão da preocupação da Governo Federal em implementar uma política específica de ocupação da Região Amazônica - e não apenas do Acre, como parece supor Zanatta - muito provavelmente em decorrência, tanto da expectativa em recuperar a produção de borracha e desenvolver outras atividades de exportação, como a pesqueira, assim como da implementação da produção de alimentos para o abastecimento interno da Região, como evidenciam as claras referências às metas de estabelecimento de colônias de pequenos produtores, muito

236 Citado por Edilson Martins (op. cit., p. 50) 237 Ver a esse respeito, Edilson Martins (MARTINS, E. op. cit.); Osni Duarte Pereira (PEREIRA,1971); Octávio Ianni (IANNI, 1979 e 1979(a)); Lúcio Flávio Pinto (PINTO, 1980 e 1986), entre muitos outros.

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provavelmente visando à assegurar a ocupação efetiva da Região e, por este meio, tentar obstar possíveis pretensões territoriais alienígenas.

Neste mesmo sentido pode-se situar o ambicioso projeto de transportes, sobretudo ferroviário, estabelecido no artigo 6o :

“Art. 6o O governo fará executar no menor prazo possível os seguintes melhoramentos e medidas complementares: I. Construção de estradas de bitola reduzida ao longo dos rios Xingu, Tapajós e outros do Pará e Mato Grosso e do Rio Negro, Rio Branco e outros do Amazonas (...) II. Construção de uma estrada de ferro que partindo de um ponto conveniente da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (...) passe pelo Vale do Rio Branco e por um ponto entre Sena Madureira e Cataí e termine na Vila Traumaturgo, com um ramal para a fronteira do Peru, pelo Vale do Rio Purus (...) III. Construção de uma estrada de ferro partindo de Belém e ligando-se à rede geral de vias férreas, em Pirapora, no Estado de Minas Gerais e em Coroatá, no Estado do Maranhão, com ramais necessários à ligação dos portos iniciais ou terminais de navegação dos rios Araguaia, Tocantins, Parnaíba e São Francisco.” (In.: Op. cit. Grifos deste autor).

Tratava-se, portanto, de um projeto que ia muito além da dimensão particular da regularização fundiária, no bojo do qual, inclusive, esta se constituía apenas um tópico, muito especialmente em se tratando da questão do Acre, cuja relevância, como se observou acima, vinha exatamente de sua importância quanto ao projeto de exploração do látex. Portanto, a inviabilidade desse projeto deve-se, muito provavelmente, aos seus custos elevados, por um lado, e à decadência da posição brasileira no mercado internacional da borracha, em última análise. Esse fato é igualmente relevante para se compreender o fracasso do próprio projeto de colonização que, apesar das ofertas atraentes de incentivos de todos os tipos, desde a concessão de terras para colonos e empresários, até incentivos fiscais de todas as ordens, - das isenções fiscais amplas, tanto para importação de equipamentos, como de insumos, mudas, pesticidas, animais de trabalho, etc., até a aquisição de embarcações fluviais - acrescidos do pagamento de prêmios em dinheiro.

No que se refere, especificamente, à questão fundiária, como já foi comentado, o Decreto em questão delimita duas referências bastante específicas: Numa primeira, e repetindo os preceitos da Lei 601 de 1850, reporta-se especificamente à questão fundiária acreana, buscando oferecer legitimidade a todas as terras possuídas, quer seus títulos tivessem origem no Governo boliviano, no do próprio “ex-Estado Independente” do Acre, ou do Amazonas, quer se fundassem em posses mansas e pacíficas, ficando estas, sujeitas às mesmas condições estabelecidas pela Lei 601/1850 e respectivo Regulamento. Para as terras a serem alienadas, estabelecia-se o limite de dez quilômetros em quadra, o que dá a idéia das dimensões latifundiárias em prática no

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território238. Numa segunda, extrapola a situação do território e projeta-se no sentido da situação das terras devolutas da União.

Por esta segunda via são repostas as antigas pretensões de se promover a revisão da Lei 601 de 1850 e seu o respectivo Regulamento. Tratava-se, evidentemente de uma referência à situação da totalidade das terras devolutas do país e não apenas a questão do Acre, como pretendeu Oldair Zanatta, ex-diretor do Departamento de Cadastro do INCRA. De resto, aquele autor atribui à falta de estrutura operacional do Ministério da Agricultura, criado pelo Decreto 1.606/1906, que deveria superintender a execução da política de terras públicas e registro de terras possuídas, etc., o fracasso na execução do Decreto em questão que, segundo ele, não foi efetivamente executado239. Aliás pelas razões que foram acima aludidas, e não, apenas, pela falta de estrutura operacional do Ministério, embora essa variável certamente fosse restritiva, no caso de se realizarem as demais condições preconizadas no Decreto.

A revisão das disposições da Lei 601/1850 e respectivo Regulamento, indicadas no 3o do artigo 10, do Decreto 2.543-A/1912, viria a ser realizada um ano depois mediante o Decreto 10.105 de 5 de março de 1913, que “aprova o novo regulamento de terras devolutas da União.” 240

Como se pode observar pelo próprio teor deste Decreto, ele, aparentemente se refere, de forma genérica, à todas as terras devolutas da União, entretanto, imediatamente abaixo faz referência ao “disposto no art. 10 e seus respectivos parágrafos, da Lei 2.543, de 5 de janeiro de 1912 (...)”, que se refere, como se viu acima, em princípio, à situação do Território Federal do Acre. Assim, permanece uma profunda dubiedade: trata-se, em ambos os casos, de normas jurídicas destinadas aquele território, ou ao conjunto das terras devolutas da União? Esta referência dúbia é efetiva nos dois casos. Tanto do Decreto241 2.453/1912 como o Decreto 10.105 de 1913, embora em princípio refiram-se à situação do Acre, em ambos os casos, estendem boa parte de suas disposições ao conjunto das terras devolutas da União.

Esse tipo de confusão quanto à própria definição da abrangência territorial da norma, dá uma idéia da insegurança como a questão fundiária tem sido tratada. No

238 Veja-se a respeito o Decreto 10.320, de 7 de julho de 1913( BRASIL.Presidência da República. Rio de Janeiro: 1913.), que modifica os artigos 1o e 3o do Regulamento aprovado pelo Decreto 10.105/1913, dá as seguintes redações: “Artigo 1o As terras devolutas, situadas no Território Federal do Acre (...) só podem ser adquiridas por compra, na forma estabelecida pelo presente regulamento e mais disposições em vigor”; e “Artigo 3o São reconhecidos como legítimos os títulos expedidos pelos governos da Bolívia e do Peru, do Estado do Amazonas e do ex-Estado Independente do Acre, antes da fundação de cada departamento, em virtude da Lei 5.188, de 7 de abril de 1904.” (Grifos nossos). 239 Zanatta (op. cit., pp. 9-10) 240 Esse regulamento viria substituir o Regulamento criado pelo Decreto 1.318 de 1854, referente à Lei 601 de 1850. Tal como o Decreto 2.543 analisado anteriormente, também este não foi efetivamente implementado, tendo sido revogado pelo Decreto 11.485/1915, cujo artigo único determinava: “Fica suspenso, até que se organize a lei de terras, que será submetida ao voto do Congresso Nacional, o regulamento a que se referem os Decretos 10.105, de 5 de março de 1913, e 10.320, de 7 de julho do mesmo ano; revogadas as disposições em contrário.” (BRASIL. Presidência da República. Rio de Janeiro:1915). 241 Trata-se de um Decreto e não de uma Lei, como consta do intróito do Decreto 10.105, o que pode dar uma idéia, ainda que superficial da forma “descuidada” como eram tratadas as legislações fundiárias.

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mínimo pode ser um indicador objetivo das dificuldades do Governo Federal em tentar disciplinar as posturas administrativa e legislativa acerca das terras do seu domínio. As implicações desse tipo de dubiedade, do ponto de vista jurídico e administrativo - que é um indicador de dificuldades maiores ao nível da realidade - implicam sérios óbices ao encaminhamento do processo de administração das terras devolutas, tanto da União quanto dos Estados, o que facilitará, enormemente, os processos de grilagem especializada.

Essa confusão fica evidente ao se comparar o texto do Decreto 10.105/1913 ao do Regulamento que institui. No seu artigo 1o fica definida a aprovação

“(...) do novo regulamento de terras devolutas da União que com este baixa, assinado pelo Ministro de Estado dos Negócios da Agricultura, Indústria e Comércio.”242

Pelo enunciado deste artigo é evidente que o mesmo de refere à instituição de um novo regulamento de terras públicas da União, em substituição ao anterior, de 1854. Entretanto, no texto do próprio regulamento instituído por este Decreto, já no seu primeiro artigo, retoma-se, de forma abertamente contraditória com o enunciado geral e o “intróito”, referindo-se à questão específica do Acre, como se a apenas aquele território se referisse:

“Art. 1o As terras devolutas, situadas no Território Federal do Acre, dentro dos limites declarados no tratado assinado em Petrópolis aos 17 de novembro de 1903, e de acordo com o Decreto 1.915, de 2 de maio de 1910, só podem ser adquiridas por título de compra, na forma estabelecida pelo presente regulamento e mais disposições em vigor.”

E assim, prosseguem os diversos artigos deste contraditório Decreto, ora dando a clara impressão de referir-se à totalidade das terras devolutas da União, ora parecendo referir-se apenas à situação específica das terras devolutas do Acre. Por exemplo, no artigo 2o ao definir o que são terras devolutas, reproduz quase na íntegra o texto da Lei 601/1850, numa indicação que não deixa dúvidas de se referir ao conjunto das terras da União.

Fundamentalmente, este Regulamento aplica os mesmos critérios estabelecidos pela Lei Imperial de 1850, acrescidos de algumas poucas modificações, especialmente, no que se referia aos critérios de registros a aos procedimentos de legitimação e revalidação de posses e concessões, aperfeiçoando esses procedimentos, tanto no que se referia aos aspectos meramente administrativos, quando houvesse consenso entre o Estado e os pleiteantes à legitimação de posses; ou a procedimentos contenciosos, ou judiciais, quando aquele consenso não fosse passível de ser conseguido.

O Capítulo III deste Regulamento ocupa-se do “Registro de Terras” e estabelece um prazo de “três anos, prorrogável pelo Ministro da Agricultura, Indústria e

242 Decreto 10.105 (BRASIL. Presidência da República. Rio de Janeiro:1913.).

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Comércio” (art.19) para que todos os concessionários fizessem as declarações de suas posses de forma detalhada, fundamentando-se em documentos ou - na inexistência destes - no testemunho de pessoas idôneas243, de que preenchiam as condições para requerer a legitimação de suas posses, estando, como sempre, estas, condicionadas à exploração efetiva e morada habitual.

Entretanto, fato relevante a ser registrado, é que se tratavam apenas de “declarações”, feitas pelos interessados, de áreas que, supostamente, estavam em seu domínio e preenchiam as condições de revalidação e legitimação. Nesse sentido, enquanto meras declarações, aliás como na Lei 601/1850, deveriam, necessariamente ser tomadas à termo pelos oficiais de registro. Exatamente por isso não constituíam prova suficiente de propriedade, aliás, como explicitamente expõe o artigo 24 do Decreto em análise:

“Art. 24. As declarações do registro não conferem direito algum aos possuidores, devendo ser aceitas tais como forem apresentadas; quando não contiverem as competentes especificações, poderão ser feitas aos representantes as observações necessárias, não podendo, porém ser recusadas as declarações, se as partes insistirem no seu registro.” “Parágrafo único. No livro de registro serão lançadas resumidamente as observações que forem feitas.” 244

Verifica-se, portanto, a cautela explícita nesse artigo para evitar-se, por um lado, a recusa arbitrária de se tomar a termos possíveis reivindicações de posses por presumíveis posseiros e, por outro lado, acautelar contra a utilização das certidões declaratórias - que apenas serviam para comprovar o cumprimento dos prazos para apresentação das respectivas declarações - como documentos hábeis de comprovação do direito de propriedade.

Entretanto, ao que tudo indica, apesar destas cautelas legais, que distingem estas certidões de declaração de posses, dos títulos definitivos de propriedade, legalmente regulamentados, parece que muitas certidões declaratórias foram ulteriormente utilizadas para gerar títulos de propriedade245, em evidente afronta à legislação, gerando portanto, junto com a grilagem especializada e com a simples fraude, uma verdadeira indústria da titulação. Esta é uma das situações mais graves gestadas no processo de ocupação e legitimação privilegiadas da terra no Brasil e que, antes de mais

243 “Art. 31. Na falta do título das posses de terras, deverá o possuidor fazer, no foro da situação do imóvel, justificação da existência das condições estabelecidas nos arts. 5o, 6o, 7o e 8o, por meio de testemunhas idôneas, residentes no lugar em questão, ou em suas circunvizinhanças, desde antes da soberania do Brasil, nos termos do art. 3o deste regulamento.” (Decreto 10.105/1913). Note-se que esse artigo volta a dar a clara referência de que o Regulamento se refere à situação específica do Território Federal do Acre. 244 Decreto 10.105/1913 (Loc. cit.). 245 Fato que ocorrerá sistematicamente, sobretudo no período do Regime Militar, onde essas certidões foram habilmente utilizadas pela grilagem especializada para “gerar” documentos legitimados, e assegurar supostos direitos, como tem sido, muitas vezes, denunciado por vários depoentes. Ver a respeito o capítulo 5 deste trabalho e o Relatório Final da CPI do Sistema Fundiário (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1979).

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nada, tem que ser enfrentada pelo Estado. Tal constitui-se em medida prévia, portanto, para o reconhecimento e equacionamento da situação fundiária caótica que persiste no país desde os tempos remotos da Colônia e do Império. Este ainda se constitui em um problema atual a ser enfrentado pelo Estado.

No campo da legitimação das terras possuídas, o decreto em análise, aparentemente apresenta um rigor maior, se comparado com o estabelecido na Lei 601/1850. No artigo 29 fica regulamentado:

“o prazo máximo de quatro anos” para revalidação e legitimação de posses e concessões, sob pena de as ver cair em comisso e de serem em toda a sua extensão reputadas devolutas;”

ao contrário da Lei imperial, que reputava em comisso, apenas, a parte não aproveitada efetivamente pelo posseiro ou concessionário que não providenciassem o registro, como se viu no capítulo anterior. Outra observação relevante a este respeito, refere-se ao fato de que a revalidação de que trata este artigo, uma vez procedida, nos termos exigidos, gerava um título processado sob o Sistema de Registro Torrens que, como observado acima, assegurava plenamente o direito de propriedade ( 1o do art. 29 do Decreto 10.105/1913).

Por outro lado, o princípio da proibição da formação de posses sobre terras devolutas, já consagrado na Lei 601, é reafirmado neste Regulamento (art. 43), ficando as mesmas sujeitas a ação de despejo e multas, com a perda de benfeitorias.

Neste caso está implícita neste Decreto a lógica da propriedade burguesa: quer seja propriedade privada ou estatal. E exatamente por se constituir em propriedade, não poderiam ser passíveis de apossamento, apropriação ou uso, sem o consentimento explícito de seu titular de direito. Por isso, ou seja, pelo fato mesmo de se fundarem no princípio liberal da propriedade, é que são proibidas, por definição, as ocupações de terras públicas; aliás, como são vedados, pela mesma razão, a formação de posses sobre as propriedades particulares legítimas. Essas atitudes ou ações - de ocupação de terras alheias - salvo quando asseguradas por outros requisitos legalmente estabelecidos, são consideradas invasões da propriedade (estatal ou privada) sendo, “ipso facto” sancionadas negativamente - com multas, despejo, perda de benfeitorias, indenizações por danos etc. Assim sendo, as grandes invasões de terras públicas, pelo latifúndio, fato notavelmente conhecido na história da terra do Brasil é, antes de tudo um ato de afronta a sociedade ao Estado de Direito e à legislação.

No capítulo VIII deste Decreto, que se ocupa das “multas e penalidades”, são mais uma vez definidas todas as espécies de atos ilícitos em relação à formação fraudulenta da propriedade territorial, que vão desde as “declarações falsas para fins de obtenção de revalidação ou legitimação de terras” (art.138); à exibição dolosa de documentos falsos, que ficam sujeitas às penas do Código Penal (art. 139); à dificultação das atividades de demarcação e estabelecimento de divisas e confrontações (art. 140); à aquisição, por meios fraudulentos, de maior extensão de terras do que a legalmente permitida (art. 141) - cuja penalidade, além de multas, recaía na devolução

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das terras compradas em excesso com perda do preço pago pelas mesmas ao Estado -; a destruição de marcos demarcatórios de trabalhos topográficos, a dilapidação de terras públicas e finalmente, a sabotagem ou bloqueio à execução da Lei (respectivamente, artigos 142 a 145)246. Todos estes atos ilícitos são claramente concebidos como impeditivos à titulação efetiva, podendo e, em certos casos, implicando, a anulação dos títulos, sem detrimento de outras sanções.

Apesar disso as terras públicas continuaram a ser invadidas e, o que é ainda mais grave, tituladas, em evidente contradição com as exigências legais mais elementares, quando não fundadas em documentos falsos, deliberadamente fraudados para fundamentar o registro de propriedades, no contexto do processo que aqui se está denominando de grilagem especializada247. Esse verdadeiro fenômeno da grilagem especializada sempre ocorreu, tanto contra os princípios mais elementares da política de ocupação de terras devolutas, assegurados em todos os diplomas legais vigentes no País, desde a Constituição Federal até o mais simples Decreto ou Portaria de Órgãos do Executivo e, como é evidente, tanto em prejuízo da multidão de pequenos posseiros, quanto da economia do País. Os pequenos posseiros, diga-se de passagem, que efetivamente residiam em suas posses e as exploravam e que, por isso, sempre tiveram o direito de propriedade assegurado legalmente, mas, negado pela ação privilegiada do latifúndio e dos oficiais de registro, quando não encoberto pela ação ou omissão do próprio Judiciário. Este, sempre célere ao reconhecer os “direitos” dos grandes posseiros, elevados à condição de proprietários legítimos, e sempre omisso, quando não deliberadamente “moroso”, quando se tratava de reivindicações, ainda que legítimas, de pequenos posseiros. Esse fenômeno esta amplamente denunciado, documentado e reconhecido na história das terras no Brasil248.

Apesar dos aspectos relevantes e inovadores do Decreto 10.105/1913, que procurou retomar o eixo liberal aberto pela Lei 601/1850, para implementar o processo de regularização fundiária no Brasil, pelo menos no que se referia às terras devolutas da União, não foi efetivamente implementado, tendo sido sumariamente revogado dois anos depois, em 1915, pelo Decreto 11.485, de 10 de fevereiro, cujo único artigo prescrevia:

“Artigo único. Fica suspenso, até que se organize a lei de terras, que será submetida ao voto do Congresso Nacional, o Regulamento a que se referem os Decretos 10.105, de 5 de

246 Ver Decreto 10.105/1913 (Loc. cit.). 247 Ver a esse respeito, entre outros depoimentos da CPI do Sistema Fundiário, que é analisada no último capítulo deste estudo, e o citado depoimento de Oldair Zanatta à CPI dos Incentivos Fiscais da Amazônia, onde este senhor, então Diretor de Cadastro do INCRA, portanto, pessoa insuspeita para se referir a tais fatos, faz referência ao conjunto de equívocos, mas, sobretudo, de fraudes nos registros de terras, especialmente ao se referir a deflagração de “verdadeiros processos de grilagem de terras” (Zanatta. Op. cit.). 248 Ver a respeito, as conclusões e os depoimentos das CPI’s - Comissões Parlamentares de Inquérito - do Sistema Fundiário (1979); dos Incentivos Fiscais da Amazônia (1980) e das Causas da Violência no Campo (1991). As referências específicas a estas CPI’s são feitas no capítulo 5.

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março de 1913 e 10.320 de 7 de julho do mesmo ano; revogadas as disposições em contrário.”

É, no mínimo curiosa, a coincidência dos termos deste decreto de 1915, com a “Resolução249 de Consulta da Mesa do Desembargo do Paço”, de 17 de julho de 1822, que suspendia a concessão de sesmarias até a convocação da Assembléia Geral Constituinte. No caso da Resolução no 76/1822 abriu-se, como foi visto no capítulo 2, vinte e oito anos de “império das posses”, período no qual o latifúndio avançou de forma célere, incorporando as terras devolutas do Império, consolidando-se definitivamente na estrutura agrária brasileira250, para nunca mais perder este espaço e a posição política e econômica a ele inerentes.

O Decreto de 1915, de forma semelhante à Resolução de 1822, reporta-se à “nova lei de terras” que seria submetida ao voto do Congresso Nacional. Esta lei, apenas será votada em 1946, portanto, trinta e um anos depois251, constituindo-se no Decreto-lei 9.760, de 5 de setembro daquele ano. Neste período, como nos 28 anos do “império das posses”, o Governo Federal virtualmente retira-se das disputas pelas terras devolutas, deixando-as, neste novo “novo império do latifúndio”, sob a guarda das oligarquias regionais arraigadas fortemente nos Estados; com a agravante de que, neste caso, os direitos de gestão sobre as terras devolutas do País estavam, juridicamente, assegurados e nas mãos das oligarquias estaduais. Este fato facilitou o avanço da legitimação formal da ação privilegiada sobre a apropriação e alienação de terras devolutas, especialmente no que se referia ao acesso às terras no âmbito dos Estados da Federação.

A esse respeito, assim se pronunciou Oldair Zanatta em Depoimento à Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a Política de Incentivos Fiscais da Amazônia:

“A experiência no trato das terras públicas tem demonstrado que uma significativa parte dos Estados, não soube dar a devida destinação às terras devolutas incorporadas ao seu patrimônio. Alguns conduziram-nas com próprios federais, com próprios estaduais e até com terrenos de marinha. Outros titularam a mesma área mais de uma vez, havendo também diversos casos de alienação por um Estado de terras devolutas pertencentes a outro.(...) Mudou também de modo substancial, a sistemática de alienações de terras públicas: o que antes era para ser regularizado em função de morada habitual e exploração efetiva, deu lugar aos processos de aquisição de terras mediante requerimento.” 252

249 Ver, Resolução 76 de Consulta da Mesa do Desembargo do Paço de 17.07.1822 (In.: MEAF, Op. cit., p. 356). 250 Ver capítulos 1 e 2 deste estudo. 251 Apenas à guisa de curiosidade, entre 1850 (ou 1854) e 1964, portanto, aproximadamente 100 a 110 anos de história agrária do Brasil, somando-se os 28 anos do “império das posses” (1822-1850) aos 31 anos do “novo império do latifúndio” (1915 a 1946), tem-se que, neste período de 110 anos, durante 60 anos as terras públicas foram saqueadas ilegal e ilegitimamente pela grilagem especializada, passado a se constituírem nas “grandes propriedades” hoje conhecidas. 252 CPI dos Incentivos Fiscais da Amazônia (op. cit. pp. 3 - 4. Grifos e sublinhados nossos).

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Por outro lado, a União, no período de 1915 a 1946, baixou um conjunto numeroso de normas legais específicas e regulamentos, entretanto, todas eles voltados para a regulamentação da disposição e uso dos bens federais, isto é, que não atingiam diretamente as terras devolutas dos Estados da Federação. Como registra, de forma correta, Oldair Zanatta, a respeito destas normas,

“todas, no entanto tinham caráter especial e destinavam-se a regular aspectos acidentais de matéria mais ampla: os bens imóveis da União.

São desse período, por exemplo, normas relativas a aforamentos e alienações de imóveis, terrenos de marinha, criação de colônias agrícolas e fundação de núcleos coloniais, florestas, parques nacionais, administração de bens públicos, etc., compreendendo um vasto conjunto de leis e atos caracterizados, na sua maior parte, pelo casuísmo, oportunidade e conveniência político-administrativa.”253

É importante registrar que um ano depois, em 1o de janeiro254 de 1916, com a Lei 3.071, é sancionado o Código Civil, que “regula os direitos e obrigações de ordem privada concernentes às pessoas, aos bens e às suas relações” 255. O Código Civil de 1916, juridicamente bem elaborado e, inclusive, considerado um dos mais avançados do mundo, um “verdadeiro monumento jurídico”, apesar disso, em seu artigo 65 define, apenas genericamente, os bens públicos, distinguindo-os dos particulares nos seguintes termos:

“São públicos os bens do domínio nacional, pertencentes a União, aos Estados e aos Municípios. Todos os outros são particulares, sejam quais forem as pessoas a que pertençam.”256

Por outro lado, o Código Civil de 1916 contempla dois institutos jurídicos relevantes para o problema do direito de propriedade, em especial, para o caso que aqui interessa mais de perto, o Direito Agrário. Tratam-se, por um lado, do instituto do Direito das Coisas, em particular as questões ligadas à posse e à propriedade; e por outro lado, do Capítulo que se ocupa dos Direitos Reais.

Este último é especialmente relevante para o caso das posses agrárias, haja vista que estas sempre se fundaram em direito real sobre as terras ocupadas, sem contudo ter assegurados, formalmente, a plena propriedade - o que apenas poderia ser materializado pela titulação257 conforme as formalidades legais estabelecidas. É nesse contexto que a

253 Zanatta (op. cit., p. 10. Grifos nossos). 254 Curiosamente em um feriado universal. 255 Lei 3.071, de 1o. de janeiro de 1916. Código Civil, artigo 1o (BRASIL: Congresso Nacional. Rio de Janeiro: 1916). 256 Art. 65 do Código Civil de 1916. Ver a esse respeito os comentários de Nascimento (op. cit.,p.104), MEIRELLES (1991, p. 448) e ALVES (1995, p. 97). 257 Como argumenta com propriedade Nascimento (Op. cit., p. 101. Grifos nossos) “o registro imobiliário, nas transmissões ‘inter vivos’ entre particulares é fundamental, porque fato gerador da constituição do direito. Sem ele, o direito real não se caracteriza, não há oponibilidade ‘erga omnes’, há simples direito pessoal que se circunscreve a uma relação obrigacional entre duas pessoas. Mas, entenda-se, sem o registro na circunscrição imobiliária não se forma o direito de propriedade. Isso é absolutamente correto nos

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questão dos registros, conforme abordada anteriormente apresentava relevância fundamental e será quase sempre sobre ela que insistirá o Governo no sentido de disciplinar a propriedade territorial.

De qualquer maneira, mais uma vez, a questão da legitimação e reconhecimento, pelo Estado, da propriedade territorial é apenas genericamente tratada na legislação, permanecendo, portanto, sujeita às flutuações das ações objetivas de apropriação privada, especialmente por parte dos mais poderosos, posto que apenas estes, como se tem evidenciado neste estudo, e como foi vastamente documentado por inúmeros estudiosos - muitos citados neste estudo - tinham, de fato, poder suficiente para apoderar-se de grandes parcelas de terras públicas (e particulares, no caso em que incorporavam inúmeras pequenas posses) e legitimar suas pretensões territoriais. Inclusive pela via da subversão do sistema de registros, sobretudo pela alternativa à fraude, ou aproveitando-se da ignorância a respeito das leis e de direitos que estas asseguravam, por parte de pequenos posseiros e proprietários. Estes, na maioria dos casos, foram surpreendidos pelos “donos das terras” que ocupavam há muitas gerações.”258

A Constituição de 1934, nascida na nova conjuntura da derrota, embora parcial, das oligarquias agrárias, na “Revolução de 1930”, tenta recuperar o terreno cedido pela Constituição oligárquica e ultra-federativa de 1891.

No seu artigo 20, ao delimitar os bens da União, procede a uma ampliação de sua abrangência, incorporando parte das terras devolutas que até então tinham sido transferidas ao domínio dos Estados, incorporando-as aos bens da União; e no artigo 166 amplia a faixa de fronteira para cem quilômetros, estabelecendo o parágrafo 3o deste artigo, a sua subordinação à regulamentação da União e sujeição da sua alienação ao Poder Legislativo, o que limitava a autonomia dos Executivos estaduais. Entretanto tratava-se, ainda assim, de uma modesta incursão neste sentido, o que pode ser um indicador da força que ainda mantinham as oligarquias estaduais.

Ao assegurar, no “caput” do art. 113, “a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, a subsistência, à segurança individual e a propriedade” a Constituição de 1934 parece confirmar o seu caráter “pós-revolucionário”; entretanto, o

negócios entre vivos.” O que não quer dizer que esse direito seja absolutamente assegurado. Por outro lado, o registro imobiliário pressupõe alguma fonte anterior de direito: seja a posse legitimável, comprovada ou qualquer outra forma legítima de acesso à propriedade, como as concessões pelo Estado. Nesse sentido, a matrícula do imóvel e seu respectivo registro apenas dão fé pública, no caso do Registro Torrens, ao título de propriedade caracterizando a oponibilidade ‘erga omnes’. Nesse mesmo sentido, o registro comum de imóveis não trás no seu bojo, senão segurança relativa, porque assegura apenas a presunção de direito, podendo tal presunção ser desfeita quando, por exemplo, há defeito na cadeia dominial. Trata-se, portanto de uma presunção “juris tantum" (Cf. Paulo Tormin Borges, “O imóvel rural e seus problemas jurídicos”, Ed. Saraiva, 1981: 102). Também porque “se quem transmitiu não era dono, a transcrição também não transmite, porque o título não tem validade jurídica”, como afirma Nascimento (Id. Ibdem). 258 Edilson Martins dá um excelente exemplo de situações como esta ao citar o seguinte depoimento de um posseiro da Região do Araguaia: “(...) Quando aqui cheguei tinha minha terra. E quem não tinha? Terra nessas bandas nunca teve dono, os donos chegaram depois, havia roça, criava umas cabeças de gado e até bode.(...) Um dia apareceu os donos da minha terra, e não é que tentei resistir? E não é que me dei mal? Não é que tive de fugir depois de estrepar um filho da puta, o primeiro na minha vida, na ponta de um punhal? Uma desgraça !”. (MARTINS, E. op. cit., p. 142. Grifos nossos).

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item 3, ao assegurar que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”, embora, aparentemente indique o respeito a um preceito genérico do direito liberal, na verdade, criava óbices especialmente no que se referia à tentativa de regularização fundiária, uma vez que poderia ser argüido em defesa de “direitos” adquiridos em conseqüência de efeitos do “fato consumado” e pela sua persistência no tempo: como já se fez referência, os célebres prazos decadenciais e prescricionais, ou simplesmente, ao longo tempo havido na posse, independentemente de sua magnitude ou utilização.

Fato relevante nesta Constituição de 1934, no que toca a propriedade territorial, era a referência feita no item 17 do artigo 113 afirmando que:

“É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido contra o interesse social ou coletivo, na forma que a lei determinar. A desapropriação por necessidade ou utilidade pública far-se-á nos termos da lei, mediante prévia e justa indenização (...).” 259

Ao estabelecer que o direito de propriedade era assegurado na condição de não ser exercido contra o interesse social ou coletivo, esta Constituição dá um largo passo para consagrar o princípio da propriedade condicionada à sua função social. É evidente que a mera proclamação ou mesmo a consagração legal deste princípio não implica mudanças ao nível concreto das relações sociais de propriedade. Entretanto, por um lado, esse fato é indicador de que a luta por essas novas condições de existência já se havia estabelecido ao nível das relações de sociabilidade; e, por outro lado, cria efetivamente, a possibilidade, ao nível jurídico, de ampliar estas lutas sociais ainda mais profundamente, na medida em que se constituia em restrição legal a ação discricionária do latifúndio.

Ainda relevante no contexto da questão fundiária é a referência Constitucional ao direito, assegurado no artigo 125, a adquirir o domínio de até 10 hectares de áreas que possuam e na qual residam e trabalhem, desde que não sejam proprietários rurais nem urbanos, e desde que não tenham sido incomodados por oposição alheia por dez anos, ou seja, reconhecendo o direito a usucapião sobre terras inexploradas, se particulares, ou o direito à legitimação de posse sobre terras públicas, recolocando, desta forma o direito secular de propriedade fundado na exploração efetiva do solo e residência habitual, assegurado por todas as legislações anteriores, desde o instituto das sesmaria.

A consagração deste direito na Constituição é relevante, posto que tem sua validade obrigatória para todos os Estados da Federação e para todas as terras fossem públicas ou privadas. Isso não quer significar que tal preceito assegurou - e de fato não o fez - o acesso à legitimação das pequenas posses; entretanto, instituía a possibilidade legal para a defesa dos pequenos posseiros e para a sua luta pela legalização das terras

259 Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 16 de julho de 1934, art. 113, inciso 17. Cabe registrar a curta duração desta Constituição, substituída pela de 1937, como será comentado adiante.

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possuídas. Na pior das hipóteses servirá, este preceito, para se documentar a expropriação e expulsão ilegal de pequenos posseiros das terras que sempre ocuparam.

Assegura, ainda, a Constituição de 1934, o “respeito” às posses dos silvícolas, onde se acharem “permanentemente localizados260”, sendo proibida a alienação.

Finalmente, outro preceito relevante é estabelecido pelo artigo 130, que limita as concessões a dez mil hectares. Para além desse limite estava sujeita à prévia autorização do Senado. Tratava-se de uma área efetivamente imensa, o que dá a dimensão das pressões no sentido de que fosse estabelecido o limite das concessões livres do controle federal o mais amplamente possível261. Tudo isso dá a exata dimensão da influência que as oligarquias agrárias mantinham sobre assuntos de seu interesse direto, mesmo quando sob a alçada do Governo Federal.

A Constituição de 1937, outorgada após o Golpe do Estado Novo, restringe os direitos assegurados pela anterior. Por um lado, mantém inalterados os mesmos limites assegurados pela Constituição de 1934 para os bens de domínio da União e dos Estados ( artigos 36 e 37 da Constituição de 1937). Por outro lado, limita sutil, mas efetiva e amplamente, os direitos sociais assegurados na Constituição de 1934, pelo artigo 113, e que são reduzidos pelo artigo 122 da Constituição de 1937 nos seguintes termos:

“Art. 122. A Constituição assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no país o direito à liberdade, à segurança individual e a propriedade nos seguintes termos:

(...) 14. O direito de propriedade, salvo desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante indenização prévia. O seu conteúdo e os seus limites serão definidos nas leis que lhes regulares o exercício.”

Observe-se que esse artigo da Constituição de 1937 elimina, em seu “caput” a referência ao fato de que “o direito de propriedade (...) não poderá ser exercido contra o interesse social ou coletivo.” Por outro lado, mantém, apenas, a desapropriação por necessidade social ou utilidade pública mediante indenização prévia, entretanto reportando o seu conteúdo e limites para definição “nas leis que regularem o exercício.” (art.122, 14, da Constituição de 1937). Ora, na medida em que se retira a referência ao fato de o direito de propriedade não poder ser exercido contra o interesse social ou coletivo, a desapropriação por necessidade ou utilidade pública retorna aos termos conservadores da Carta de 1891, já comentados, e que se limitavam a realização

260 Essa expressão “permanentemente localizados”, aparentemente desproposital, foi ulteriormente utilizada para se tentar a expropriação das reservas indígenas, sob a alegação de que se estes se deslocaram para outras áreas - o que sempre ocorria pelo fato de serem nômades - caracterizava-se o descumprimento desse preceito previsto no artigo 125 da Constituição, perdendo, portanto, a proteção assegurada neste artigo, e assim, dando ensejo a sua ocupação ou alienação para terceiros. Há nesse sentido até súmula do STF. 261 Como nos debates parlamentares da década de 1840, que acabaram assegurando na Lei 601 a possibilidade de legitimar posses do tamanho das sesmarias havidas na região ou na mais próxima, sendo ainda assegurado a possibilidade de se acrescer a essas posses novas áreas contíguas, havendo, até aquele limite (ver capítulo 2 deste trabalho). Há muita semelhança nessas duas situações, o que permite levantar a hipótese da persistente tentativa de grandes posseiros em assegurar seus privilégios. Esta será uma constante da questão fundiária brasileira, responsável pela persistente concentração da propriedade rural por um lado e, pela sistemática e crescente exclusão da vasta população de pequenos proprietários, posseiros, trabalhadores rurais e índios, apesar das “garantias” proclamadas em todas as legislações que a eles se referiam.

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de obras públicas, servidões, etc. nenhum limite, de fato, imposto a propriedade territorial enquanto tal, que poderia continuar improdutiva etc. Essa restrição que reaparece na Constituição de 1937, pode ser lida como produto das novas articulações entre Vargas e as oligarquias, na nova conjuntura de sustentação do Estado Novo262. Nesse contexto, são mantidos os limites de 10 hectares para a legitimação de pequenas posses mansas e pacíficas (art.148), tal como na Constituição de 1934, e de 10.000 hectares, para a concessão, independentemente de autorização, federal, no caso transferida do Congresso, para o Conselho Federal (art.155). Esse último artigo indica claramente a influência do latifúndio na conjuntura agrária enfrentada durante o Estado Novo.

A novidade, em termos de terras devolutas da União vai aparecer no artigo 165, onde a faixa de fronteira é ampliada de 100 para 150 quilômetros, que passam a ser controladas pelo Conselho Superior de Segurança Nacional. Esta medida, de fato, ampliava arbitrariamente a área abrangida pelas terras devolutas da União em detrimento das dos Estados. Entretanto, apesar disso a autonomia dos Estados sobre essas áreas pouco será afetada por esta nova diretriz federal.

Em suma, efetivamente a Constituição de 1937 representou um amplo retrocesso quanto aos problemas de política fundiária, o que pode ser uma evidência de que o poder e a influência das oligarquias locais, não foram afetados seriamente pela política do Estado Novo. Por outro lado, um sintoma evidente desse acordo tácito263 do Estado Novo com as oligarquias rurais é o fenômeno, amplamente conhecido, de que as profundas reformas introduzidas por Vargas nas relações trabalhistas, não são estendidas ao campo, que continuou tranqüilamente sua trajetória de sempre.

Como escreveu José de Souza Martins:

“É significativo que Vargas não tenha estendido aos trabalhadores rurais direitos legais semelhantes aos dos trabalhadores urbanos. Vargas não quis ou não pôde, enfrentar os grandes proprietários de terra e seus aliados. Foi em seu governo que se estabeleceram as bases para um pacto político tácito, ainda hoje vigente, com modificações, em que os proprietários da terra não dirigem o Governo, mas não são por ele contrariados.” 264

262 Ver a respeito Foweraker, op. cit. 263 “É significativo que Vargas não tenha estendido aos trabalhadores rurais direitos legais semelhantes aos dos trabalhadores urbanos. Vargas não quis ou não pôde, enfrentar os grandes proprietários de terra e seus aliados. Foi em seu governo que se estabeleceram as bases para um pacto político tácito, ainda hoje vigente, com modificações, em que os proprietários da terra não dirigem o governo, mas não são por ele contrariados”. Assim se refere José de Souza Martins à conjuntura política de sustentação e alianças entre o Estado Novo e as oligarquias rurais, embora tenha sido precedido pela conjuntura da Revolução de 1930, que colocara na direção do bloco de poder “uma aliança de militares e oligarquias regionais marginalizadas pelo sistema oligárquico, aliança de inspiração centralizadora, desenvolvimentista e, em princípio, anti-oligárquica” (In.: MARTINS, J.S. 1994, p. 71-72. Grifos nossos). Ver a esse respeito, além dos estudos citados, Victor Nunes Leal, Coronelismo, enxada e voto”, Editora Alfa-ômega, São Paulo, 1975. 264 MARTINS, J.S (1994, pp. 71-72). Grifos nossos. Ver a este respeito, além dos estudos citados, Victor Nunes Leal, “Coronelismo, Enxada e Voto”. São Paulo: Alfa-ômega, 1975.

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Assim se refere Martins à conjuntura política de sustentação e alianças entre o Estado Novo e as oligarquias rurais, embora, tenha sido precedida pela conjuntura da Revolução de 1930, que colocara na direção do bloco de poder “uma aliança de militares e oligarquias regionais marginalizadas pelo sistema oligárquico, aliança de inspiração centralizadora, desenvolvimentista e, em princípio, anti-oligárquica265.” Ou, nas palavras de Francisco C. Weffort:

“Este tipo de atitude política (de puro equilíbrio) teve suas condições de eficiência no compromisso fundamental entre a estrutura agrária e a indústria incipiente e relativamente marginal à atividade econômica básica que era a agricultura. Permaneceu possível sua eficiência enquanto foi possível a coexistência entre estes dois setores de produção266.”

No que se refere aos problemas especificamente fundiários, como se afirmou acima, a União apenas retomará a ação legislativa 31 anos após a revogação do Decreto 10.105, em 5 de setembro de 1946, com o Decreto-lei 9.760, que “dispõe sobre os bens imóveis da União e dá outras providências”, treze dias antes da promulgação da Constituição de 1946 e após o fim da ditadura do Estado Novo.

Segundo Cláudio José Ribeiro267, diretor do Departamento de Desenvolvimento Rural do INCRA, em painel no Simpósio Internacional de Experiência Fundiária, realizado em Salvador, Bahia, em 1984, o Decreto-lei 9.760 de 1946 foi a maior inovação introduzida na Lei 601 de 1850. Dispondo sobre os bens imóveis da União, esse decreto-lei regulamentou a discriminação das terras públicas, alterando os procedimentos puramente administrativos para instituir o processo administrativo-contencioso. Conforme explicitamente estabelecido no Capítulo II - “Da indentificação dos Bens”, nas partes que se ocupam da discriminação das Terras da União, (artigos 19 a 31)268, regulamenta a discriminação administrativa e na Subseção III, “Da discriminação Judicial”, estabelece o procedimento contencioso:

“Art.32. contra aqueles que discordarem em qualquer termo da instância administrativa ou por qualquer motivo não entrarem em composição amigável, abrirá a União, por seu representante em Juízo, a instância judicial contenciosa.”269

Como se pode inferir pela análise deste Decreto-lei, em certo sentido, ele corresponde a uma consolidação e aperfeiçoamento dos princípios jurídicos e regras estabelecidos desde a Legislação de 1850, incorporando, inclusive todo o conjunto

265 Id. Ibidem. 266 WEFFORT, F. C. 1965, p. 197. 267 RIBEIRO (1984). 268 Esses artigos, pela Lei 6.383 de 7 de dezembro de 1976, que dispõe sobre o processo discriminatório das terras devolutas da União, deixaram de ser aplicados aos imóveis rurais (artigo 32 da Lei 6.383/76). 269 Está é a previsão normativa, infra constitucional do “Princípio da Universalidade da Jurisdição”, para ser exercitado em favor da União, possibilitando expressamente a revisão da matéria apreciada na esfera administrativa, perante o Poder Judiciário.

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confuso das legislações republicanas, especialmente após 1915. Tratava-se, de fato, da referida “Nova Lei de Terras” referidas no Decreto de 1915, e viria com o intuito de substituir o Regulamento de 1854.

Entretanto, parafraseando Faoro ao se referir à Lei de Terras de 1850, pode-se afirmar que essa “nova” Lei de Terras já vinha com, pelo menos 31 anos de atraso. De 1915 a 1946 passaram-se 31 anos de intenso desenvolvimento da economia brasileira, de determinado nível de consolidação industrial e, sobretudo, de profundas transformações tanto no âmbito internacional (a Grande Depressão e a II Guerra Mundial, em particular) quanto no âmbito interno. Como é evidente, nesse período, igualmente, avançaram e consolidaram-se celeremente as grandes apropriações, em boa parte sob o patrocínio aparentemente legal, “vendas” pelos Estados; pela expulsão sistemática, mais uma vez - como no império das posses - dos pequenos posseiros além da continuidade de verdadeiros genocídios contra populações indígenas. Ou seja, nesse período consolida-se, no que toca a questão fundiária, a estrutura do “novo latifúndio”: mais arrogante e cioso de “seu papel na vocação agrícola do país.”

Assim, juntou-se ao argumento do privilégio, a suposta relevância da grande propriedade para o desenvolvimento da economia e da sociedade brasileiras. Muda-se, desta forma, o discurso do latifúndio, mascarando-se de uma justificativa econômica. Será, daí para adiante, em nome de seu papel fundamental para economia brasileira, e sempre, para as exportações, que a sua manutenção, modernização e continuidade serão sistematicamente assegurados, inclusive, e cada vez mais, com forte suporte institucional e apoio dos programas de Governo, especialmente pela via de subsídios, concessões territoriais e créditos subsidiados. Esses procedimentos, supostamente fundados na ciência econômica e na técnica, atingirão seu ápice no período do Regime Militar.

No início do Governo Juscelino Kubitscheck, na Mensagem presidencial de 15 de março de 1956, propõe-se, uma política de Reforma Agrária que desse solução à problemática situação do campo, marcada conforme o diagnóstico oficial, pelo “desequilíbrio entre o número reduzido dos proprietários rurais e o número elevado dos que trabalham em gleba alheia270.”

No entanto, ao final de seu Governo, Juscelino “afirmará como justificativa à sua gestão omissa, posição inversa, ao declarar que mudanças em profundidade na agricultura teriam sido inócuas sem um respaldo de um desenvolvimento industrial que o sustentasse271.” Em entrevista a jornais do País, o Presidente da República afirmava que, tão somente agora, a “Reforma Agrária é uma necessidade inadiável (...) pois já existe no Brasil uma indústria de base capaz

270 Citado em Aspásia de Alcântara Camargo. “A questão agrária: crise de poder e reformas de base (1930-1964). In.: História Geral da Civilização Brasileira. [Org. por Boris Fausto, t.III, v. 3, São Paulo: Difel, 2a ed., 1983, p. 154. 271 CAMARGO, A. A. (1983, p. 154).

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não só de dar cobertura a um tal programa como de levá-lo às conseqüências mais objetivas.”272

Deste modo (como no Governo Vargas) a “política do possível” - na interpretação de Maria Vitória de Mesquita Benevides, no que é seguida por Aspásia Camargo - parece ter sido a de conseguir da facção ruralista uma posição de neutralidade diante do Programa de Metas, em troca da conservação das relações sociais no campo.”273 A tentativa de aplicação por medida legislativa das Leis trabalhistas ao campo, feita pelo PTB, é bloqueada, no governo Juscelino e só será aprovada no governo Jânio Quadros. A estratégia conciliadora do governo Kubitscheck, implicou significativo reforço do Departamento Nacional de Obras Contras as Secas (DNOCS), autarquia Federal, que esteve sempre sob o controle oligárquico274, e a criação da Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste, sob direção de Celso Furtado, declaradamente avesso à Reforma Agrária:

“É certo que as concepções que norteiam a criação da SUDENE não implicam ataque frontal à má distribuição da propriedade do Nordeste. Enfatizando, porém, uma estratégia global de racionalização da produção agrícola (combinada à implantação industrial e à expansão das fronteiras agrícolas) o objetivo é confinar a resolução dos conflitos sociais à tensa Zona da Mata, onde se pretende ao mesmo tempo estimular a elevação da produtividade e liberar parte das terras para o cultivo familiar de alimentos” (...) “a intenção é diluir medidas mais redistributivas e conflituosas no bojo de um amplo programa em que muitos interesses serão beneficiados e poucos radicalmente descartados.”275

Não obstante, se aos interesses industriais contemplados no Programa de Metas contentava o mero controle das medidas cambiais produzidas por uma agricultura latifundiária voltada à exportação e já estruturalmente esgotada, os demais interesses e a Sociedade abriram, no apagar das luzes do governo Juscelino, um amplo debate sobre a propriedade da terra e o conseqüente distino histórico das massas excluídas no campo. As organizações dos trabalhadores rurais expandem-se e no governo seguinte, de Jânio Quadros, o debate é retomado em um âmbito mais vasto e complexo, ao efetivar-se também fora dos quadros institucionais oficiais - Executivo e Congresso. Ao mesmo tempo, como avalia Aspásia Camargo, é possível deslocar do “governo Goulart para o governo Jânio o início da implementação de um programa oficial de reformas, que se frusta em virtude de sólidas resistências que encontra no Congresso, na Sociedade Civil, e no âmbito do próprio Estado (Executivo).” Como diz Camargo, torna-se necessário “captar o impacto das propostas de Reforma Agrária como 272 Id. Ibidem. 273 Idem, p. 155. 274 Cf. Francisco de Oliveira. Elegia para uma re(li)gião. Sudene, nordeste, planejamento e conflito de classes. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. 275 CAMARGO A.A., op. cit., p. 165. Grifos nossos.

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revelador de uma nova crise de poder” , ou a crise do ciclo populista que tivera início com Vargas276.

Como bem registra José de Souza Martins277,

“O fim do governo Vargas promoveu a restauração da democracia(...) e também o retorno ao poder dos representantes dos interesses oligárquicos e rurais, mantidos sob controle durante a ditadura. Vargas, em princípio não necessitara das oligarquias para governar, já que seu governo não dependia necessariamente do voto (quando dependeu, a opção foi pela ditadura)...”

A Constituição Federal de 1946, aparentemente, inaugura uma nova fase no tratamento do problema fundiário brasileiro ao estabelecer no seu artigo 147 que

“o uso da propriedade será condicionado ao bem estar social. A lei poderá, com observância do disposto no artigo 141, .16, promover a justa distribuição da propriedade com igual oportunidades para todos.”

Diz-se que, apenas aparentemente estavam lançadas as bases para uma nova postura em relação à questão fundiária, porque, de fato, os preceitos constitucionais de 1946, na forma como foram formulados, realmente não abriam, em nenhum sentido, espaço para tal perspectiva.

Primeiro porque, na verdade, o artigo 147 da Constituição de 1946, representava um recuo em relação ao preceito no mesmo âmbito, estabelecido pela Constituição de 1934, que era categórico ao afirmar que o direito de propriedade era garantido, mas que não poderia

“(...) ser exercido contra o interesse social ou coletivo na forma que a lei determinar.”(Art. 113, 17 da Constituição de 1934).

Segundo, porque o artigo 147 é facultativo, ao afirmar que a “Lei poderá” promover a justa distribuição, o que significa dizer que poderá ou não. Finalmente, o que é muito relevante e que tem sido realçado por todos os estudiosos, além de se referir apenas à possibilidade, condiciona-a às exigências do artigo 141, 16, que finalmente condiciona as desapropriações por utilidade pública e interesse social, à “prévia e justa indenização em dinheiro”. Assim, veda-se efetivamente qualquer possibilidade de promoção da “justa distribuição da propriedade com igual oportunidade para todos.” Tratam-se, claramente de artifícios legislativos muito bem estruturados para impedir qualquer processo de desapropriação de latifúndios, a menos que lhe seja paga - neste caso, sim, é categórico - “prévia e justa indenização em dinheiro”.

Entretanto, um fato importante que tem sido negligenciado, e que igualmente é uma sutileza da linguagem cifrada do direito, refere-se ao fato, que se tem insistido neste trabalho, de que, ao se falar em desapropriação, fica subsumido o reconhecimento, 276 Idem. p.169. 277 MARTINS, J. S. (1994, p. 71). Grifos nossos.

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tácito, mas efetivo, da propriedade sobre as terras. Esse fato é sempre omisso nas diversas legislações, mas sempre assegurado tacitamente, e como nos textos legais, formalmente. Assim, os privilégios são legalmente assegurados.

Como as leis se interpretam, também, à luz das leis anteriores e da coerência dos Sistemas Jurídicos, deu-se no momento histórico uma forte polêmica a respeito da intenção da lei e da jurisprudência (interpretação teleológica-sistemática-histórica). Voltam à cena medidas já propostas durante o segundo governo Vargas, pelo mesmo que a havia defendido antes Carlos Medeiros Silva. Como disse então esse jurista, a desapropriação por interesse social que é

“ela sim concebida (como modalidade diversa da desapropriação por necessidade ou utilidade pública) na elaboração constitucional, mas a corrente conservadora não aceita a inovação e pretende identificá-la com as fórmulas tradicionais, incompatíveis, por sua natureza com a revenda do bem expropriado. Para vender tal resistência, manifestada na Câmara dos Deputados, Hermes Lima redigiu, emenda ao artigo 147 da Constituição, libertando-a da remissão ao artigo 141, parágrafo 16, como membro da Comissão de Juristas, organizada pelo ministro Nereu Ramos em 1956278.”

Com este procedimento procurava-se estabelecer formas de pagamento estabelecidas em lei, consoante, aliás, na interpretação do jurisconsulto, ao espírito do legislador constitucional. Já, em outra direção, o substitutivo do deputado José Jofilly, que ganhara o apoio público de Jânio previa a indenização prévia em dinheiro pelo valor declarado pelo proprietário para fins de Imposto Territorial Rural, um valor sempre muito abaixo do preço de mercado279.

Nesse contexto, prefere-se neste trabalho, a leitura feita por José de Souza Martins, em oposição a de Oldair Zanatta, por exemplo. Este último, afirma de forma “ufanante”, que

“a Constituição de 1946 inaugurou uma nova fase na evolução do sistema fundiário brasileiro ao consignar no seu artigo 147, que o uso da propriedade será condicionado ao bem estar social.”280

José de Souza Martins argumenta no sentido contrário, e corretamente, de que

“a Constituição de 1946 não alterou substancialmente esse pacto, antes o reforçou (...). Uma garantia essencial da ordem era o dispositivo constitucional que estabelecia como restrição às desapropriações de terra para fins sociais (inclusive, pois, a reforma agrária) a obrigatoriedade da indenização prévia e em dinheiro ao proprietário. Esse dispositivo tornava a reforma agrária economicamente inviável. Sendo dispositivo da

278 Citado em CAMARGO (1983, p. 175). 279 Idem, p. 176. 280 Zanatta, (op. cit., p. 12)

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Constituição, tornava essa possibilidade ainda mais remota (...).” 281

Enfim, tratava-se de assegurar constitucionalmente que as terras em poder dos latifúndios seriam intocadas. Neste sentido, pode-se afirmar que a Constituição de 1946, por trás de uma fachada “democrática” - democrática, aliás, no sentido de ter sido promulgada na conjuntura que sucedeu à ditadura do Estado Novo - na verdade, era absolutamente autoritária no que se referia à questão da propriedade fundiária. Como de outras vezes em que se tentou a reestruturação do ordenamento jurídico-institucional no País, como em 1822, 1850, 1889 e 1930, as oligarquias latifundiárias aparentemente abrem mão de suas prerrogativas, na Lei, para assegurá-las, na prática. Ainda assim, utilizando-se sempre, e sistematicamente, dos artifícios amplamente permitidos pela hermenêutica jurídica.

No que toca aos problemas fundiários, uma análise atenta de outros artigos da Constituição de 1946 não deixa margem à dúvidas quanto à manutenção da mesma estratégia jurídica e política adotada após a aprovação da Lei 601 de 1850: a de deslocar a questão da legitimação de todas as terras em domínio particular e da arrecadação das terras públicas, para o campo amorfo e pantonoso da colonização oficial, sempre em áreas externas ao latifúndio. Projeto esse, como sempre, apresentado, sob as vestes de uma verdadeira política de colonização, bem-estar e justiça social.

Tal caso fica evidente no artigo 156 e parágrafos da Constituição de 1946:

“Art. 156. A lei facilitará a fixação do homem no campo estabelecendo planos de colonização e de aproveitamento de terras públicas. Para esse fim, serão preferidos os nacionais e, dentre eles, os habitantes das zonas empobrecidas e os desempregados.” 1o Os Estados assegurarão aos posseiros de terras devolutas, que nelas tenham morada habitual, preferência para aquisição até 25 hectares. 2o Sem prévia autorização do Senado Federal não se fará qualquer alienação ou concessão de terras públicas com área superior a10.000 hectares. 3o Todo aquele que, não sendo proprietário rural nem urbano, ocupar, por dez anos ininterruptos, sem oposição nem reconhecimento do domínio alheio, trecho de terra não superior a 25 hectares, tornando-o produtivo por seu trabalho e tendo nele morada, adquirir-lhe-á a propriedade, mediante sentença declaratória devidamente transcrita.”

A referência “à preferência para aquisição” funda-se no fato de que as terras devolutas, públicas, não são, legalmente, passíveis de usucapião (assunto tratado no 3o deste mesmo artigo); por isso tinham que ser adquiridas por venda e não adquiridas por sentença declaratória, como no caso da ocupação mansa e pacífica, no tempo, e sem ser

281 MARTINS, J.S. (1994., p.72)

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perturbada, de terras particulares. Neste caso, o suposto é de que estas terras “particulares” não estavam “cumprindo a sua função social”. Ou seja, os conceitos e preceitos jurídicos são rigorosamente definidos, o que implica a aceitação da hipótese de que, quando se trata da legislação sobre a propriedade territorial, não ocorrem equívocos involuntários.

Mais uma vez , fica claro o zelo em assegurar a manutenção do privilégio de acesso às terras públicas, em áreas de até 10.000 hectares; cuja coincidência com a mesma filosofia posta na Lei 601 pelos, então, grandes posseiros, não pode ser atribuída a mero exercício de rotina. Mais uma vez, trata-se de assegurar privilégios de grandes posseiros e de excluir os pequenos. Observe-se que o parágrafo terceiro, referido acima, é repleto de artifícios jurídicos que, em última análise, acabarão por anular o suposto direito a propriedade por ele assegurado aos pequenos posseiros, em termos do Usucapião. A exigência de que a aquisição do direito de propriedade, no caso do usucapião, apenas poderá ser assegurada por sentença declaratória devidamente transcrita, o pressupõe a instalação do processo judicial, com a exigência de todas as formalidades a este necessárias. Como se verá, muitos pequenos posseiros, que objetivamente tinham direito a esse benefício nos termos do usucapião, por não o terem requerido (ou sido impedidos de o requerer) pela ação deliberada de terceiros, inclusive, por expulsões, etc.), Não puderam obter as necessárias “sentenças declaratórias”, acabaram dando ensejo à expropriação por via registral e da grilagem especializada.

Além de se tornarem, esses pequenos posseiros, objeto da violência privada, sobretudo na segunda metade deste século, cujo objetivo era a expulsão e a descaracterização de suas posses, isto é, de seus direitos, como se verá adiante.

Cabe aqui, apenas acrescentar alguma ilustração do que é o procedimento normal de titulação de terras no Brasil de hoje. Em estudo sobre o Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, Maria Aparecida de Moraes Silva reconstruiu este procedimento-padrão através do qual as terras de antigos ocupantes são expropriadas:

“o cenário amedrontou os camponeses das partes baixas (dos chapadões), das veredas e das grotas. A linguagem comum era de que ao governo pertenciam todas aquelas terras e de que ele tomaria tudo.(...) O medo de ficar sem as terras fez com que os camponeses as “vendessem”, a qualquer preço, aos compradores paulistas. (...) As terras compradas foram em seguida revendidas às grandes companhias. (...) Nesta venda, ocorreram as retificações de áreas, um ardil jurídico para disfarçar o roubo das terras282.”

A empresa estatal Rural Minas faz a medição e legitimação (expede um título de domínio) e o Cartório de Registro de Imóveis faz a inscrição titulatória. Pagam-se pequenas posses com área em torno de 10 hectares e titulam-se latifúndios de até 5.000 hectares e mais283

282 Cf. SILVA, M.A.M., Fome: a marca de uma história. In.: Maria Antonieta M. Galeazzi (org.) Segurança Alimentar e Cidadania, 1996, pp. 41-42. Grifos nossos. 283 Id. Ibidem.

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Após a II Guerra Mundial, especialmente no que se estende de 1946 a 1964, a par com a nova conjuntura das tensões internacionais, colocava-se o problema da “Guerra Fria” e, com ele, o da “nova” geopolítica dos grandes blocos ideológicos. Neste contexto, a economia brasileira desenvolve-se e consolida seu processo de industrialização, como parte do Bloco Ocidental. Nesse amplo processo de desenvolvimento e integração hemisférica, a agricultura brasileira expande-se, sobretudo, pela incorporação de novas áreas produtivas, especialmente, ao longo das rodovias construídas ou simplesmente projetadas; fato que viria agudizar ainda mais a situação fundiária do país.

Nesse contexto abre-se um amplo debate na Sociedade sobre a justificativa social da forma atual da propriedade da terra. O presidente Jânio afirma no Cairo que “a era das vastas plantações está terminando.”284

Enquanto a propriedade da indústria não é objeto de questionamento, apesar de o crescimento industrial ser concentrador de renda e fazer-se as expensas de apropriação privada de vultosos fundos públicos, a propriedade da grande lavoura é incriminada em amplos setores da Sociedade Civil, a que faz coro a Mensagem Presidencial de 1961 e a conseqüente criação do Grupo de Trabalho para o Estatuto da Terra e o apoio à ação parlamentar do deputado José Jofilly, da ala jovem do PSD e da Frente Parlamentar Nacionalista como Relator da Comissão Especial da Reforma Agrária. O próprio vice-presidente da Associação Comercial e Deputado Federal pela Paraíba, sai a público para defender medidas semelhantes à da Revisão Agrária do Governador Carvalho Pinto, de São Paulo. E o Instituto Brasileiro de Ação Democrática, promove Simpósio, em cujas conclusões, insere esta recomendação:

“Não é possível recuperar o homem do campo no Brasil, isto é, 65% de sua população sem lhe dar o instrumento por excelência que é a propriedade da terra. (...) A reforma agrária é um instrumento eficaz de democratização e promoção social de que lançam mão hoje os governos dos mais diversos matizes (...) todos obedientes à necessidade de ascensão das massas camponesas, que é uma das constantes de nossa época.285

Os movimentos sociais e a resistência dos pequenos posseiros e proprietários - especialmente contra a sua expulsão de áreas de terras devolutas que ocupavam, na maioria das vezes, há muitas gerações - que sempre existiram no país e que sempre foram objeto da repressão oficial ou da violência quotidiana e privada dos latifundiários, entrará na “era da guerra fria”, sendo “ipso facto” incorporadas ao campo da nova geopolítica da segunda metade do século. Por essa via, a questão agrária, já tantas vezes tratada como caso de polícia, de banditismo social ou de fanatismo religioso, passa a ganhar “status” de “ameaça à estabilidade política e à segurança nacional e hemisférica.”

284 Cf. Jornal do Comércio, 12 de junho de 1959, cit. em CAMARGO (1983, p. 170.). 285 Apud. CAMARGO (1983, pp. 172-173).

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Neste novo contexto, o poder dos latifúndios assume, igualmente, a nova vitalidade de aliados paramilitares na “guerra suja” que se anunciara. O problema fundiário, efetivamente um problema social, passa, nessa conjuntura, a ser encarado como um problema adstrito à segurança interna, sendo, por isso, militarizado.

Os posseiros, especialmente, aqueles que tentam lutar por seus direitos à terra, assumem, juntamente com seus aliados - políticos, intelectuais, sindicalistas, membros do clero, etc. - a condição de “inimigos internos”.

São os novos tempos que se avizinham, e que trarão vinte anos de regime autoritário, nos quais a questão fundiária, nunca resolvida até então, será tratada e retratada com as cores, ora eufóricas, da integração e desenvolvimento nacionais; ora sombrias, enquanto grave ameaça à segurança interna e hemisférica. Neste contexto, da questão fundiária e da luta pela terra, a legislação e o privilégio, têm um novo fundamento: o serviço de defesa da pátria.

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CAPÍTULO 4

A POLÍTICA FUNDIÁRIA DO REGIME MILITAR: 1964-1984

1. Antecedentes Mediatos da Conspiração Militar e Questão Agrária

Não caberia, num estudo desta natureza e tendo em consideração os seus objetivos específicos, uma análise detalhada das diversas conjunturas que, no decorrer de um razoável período de tempo, implicaram na conspiração de 1964.

Entretanto, o tratamento dado pelos Governos Militares à questão da luta pelo acesso à propriedade da terra e pelas condições de trabalho no campo, por um lado, e a compreensão, nesse contexto, da Política Fundiária posta em movimento, por outro lado, não poderiam ser adequadamente fundamentadas sem uma referência, ainda que “en passant”, às diversas conjunturas e movimentos que se vinham gestando no País desde, pelo menos, o segundo Pós-Guerra; e que, finalmente, implicaram na vitoriosa conspiração, em 1964, que repôs no poder as forças mais conservadoras do país286.

Na conjuntura deste período, certamente, a questão agrária era relevante. Entretanto, apenas uma, entre outras questões, igualmente relevantes, como a cambial, a da remessa de lucros, a da nacionalização de empresas, especialmente as refinarias de petróleo, etc. Em suma, tratava-se de um conjunto de questões econômicas e políticas importantes, e que transcendiam, em muito, aos problemas estritamente ligados à questão fundiária.

Tendo-se em consideração os profundos e complexos problemas políticos e econômicos, entre outros - tanto internos quanto nas relações com o exterior -envolvidos na conjuntura do segundo pós-guerra, pode-se afirmar com certa tranqüilidade, que o destaque assumido pela questão agrária, apesar das contradições e da gravidade que, efetivamente, apresentava, estava, apesar disso, muito mais associado à alegada possibilidade da pobreza rural vir a se constituir em base para uma possível

286Para uma descrição e análise detalhadas, desse período, remetemos o leitor aos seguintes estudos, entre outros também relevantes: SKIDMORE, T (1994; 1982-1996 E 1988/1994); BASBAUM, L. (1995-1996); CARONE, (1980 e 1982); ALBUQUERQUE. (1984). Para um estudo mais detalhado da conjuntura imediata da Conspiração, ver o livro de “Diários e Memórias” do Senador Auro Moura Andrade, publicado postumamente, em 1985, por Glauco Carneiro (MOURA ANDRADE, 1985).

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revolução, de fundo agrário e de caráter socialista, nos moldes das Revoluções Chinesa ou Cubana, do que a qualquer outra pretensão dos conspiradores em promover a “justa e eqüitativa distribuição da terra”.

Aquela argumentação, aliás, seria a tecla, reiteradamente acionada, tanto pelos militares287 e grupos conservadores do Brasil, quanto por alguns organismos internacionais, especialmente dos Estados Unidos288, como a “Agência Internacional de Desenvolvimento” (AID) e a “Aliança Para o Progresso289 ” que exerceram forte influência, na época, sobre os países latino-americanos, entre eles o Brasil .

Por outro lado, a sucessão de golpes e tentativas de golpes de estado, no Brasil, deixam evidente que a luta pelo poder, que se travava no País, tinha razões que transcendiam, em muito, a questão agrária e a pobreza rural, embora não fosse a estas indiferentes. Somando-se a isto o contexto do acirramento das contradições políticas e ideológicas engendradas no âmbito da Guerra Fria290, pode-se ter uma noção mais ou menos objetiva da gravidade dos problemas envolvidos no período. Tratavam-se, no caso brasileiro, do golpe de 1945, que pôs fim ao Estado Novo; da tentativa de golpe de 1954, frustrada pelo suicídio de Vargas, e, sobretudo, pela vigorosa reação popular contra os conspiradores; da nova tentativa de golpe, contra o Governo Kubitschek291, também sufocada; da renúncia do Presidente Jânio Quadros, após, aparentemente, afastar-se das expectativas políticas da UDN e da implementação do programa de austeridade do FMI; e, finalmente, da tentativa de golpe para impedir a posse, legítima e constitucional, do Vice-Presidente João Goulart, em 1961. 287 Como se pode verificar pela seguinte passagem do “Manifesto dos Ministros Militares”, de 30 de agosto de 1961, apresentando ao Congresso Nacional as alegações para impedir o retorno e, conseqüentemente, a posse do Vice-Presidente João Goulart: “(...) As Forças Armadas do Brasil, através da palavra autorizada de seus Ministros, manifestam à Sua Excelência o Sr. Presidente da República (Ranieri Mazzilli) como já foi amplamente divulgado, a absoluta inconveniência, na atual situação, do regresso ao País do Vice-Presidente, Sr. João Goulart.” (Vem) “(...) agora com aquiescência do Sr. Presidente da República,(...) ressaltar, de público, algumas das muitas razões em que fundamentam aquele juízo (...) Já ao tempo em que exercia o cargo de Ministro do Trabalho, o Sr. João Goulart demonstrara, bem às claras, suas tendências ideológicas, incentivando e mesmo promovendo agitações(...) E não menos verdadeira foi a infiltração que, por essa época, se processou no organismo daquele Ministério, até em pontos-chaves de sua administração( ...) de ativos e conhecidos agentes do comunismo internacional, além de incontáveis elementos esquerdistas”. (In.: MOURA ANDRADE, op. cit. pp. 66-67. Grifos nossos). 288 A respeito, especificamente, da manipulação ideológica dos problemas econômicos, sociais, políticos, etc. especialmente com relação ao espaço latino-americano, ver o excelente estudo de KATCHATUROV, K.A. (1980), muito particularmente, os Capítulos II, III e IV. Com relação, especificamente, à doutrina da Segurança Nacional, e o caso do Brasil, ver COMBLIN, J. (1978), especialmente os capítulos 1, 2 e 4. 289 Formulado em 1961, o Programa da “Aliança para o Progresso” era parte fundamental da Política de “Novas Fronteiras” do Governo Kennedy. Na verdade este Programa representava a continuação, sob novas formas, dos mesmos princípios formulados pela “Doutrina Monroe” (de 1833) nunca abandonada, e da Política do “Big-Stick”, instituída no Governo Roosevelt, de 1901-1909 (ver. KATCHATUROV, op. cit. Capítulo 1). 290 O “Manifesto dos Ministros Militares”, acima referido, assim se referia a este problema: “Ora, no quadro de grave tensão internacional, em que vive dramaticamente o mundo de nossos dias, com a comprovada intervenção do comunismo internacional na vida das nações democráticas e, sobretudo, das mais fracas, avultam, à luz meridiana os tremendos perigos a que se acha exposto o Brasil” com a possibilidade da posse de João Goulart na Presidência da República. (In.: MOURA ANDRADE, op. cit. 67. Grifos nossos). José de Souza Martins localiza, com propriedade, a relevância do contexto criado pela “Guerra Fria” no sentido da radicalidade com que as lutas camponesas passaram a ser tratadas e reprimidas pelo Estado brasileiro no segundo pós-guerra. Ver MARTINS, J.S. (1994). 291 Ver a respeito desta tentativa de golpe, o conjunto de documentos publicados por Edgard Carone (CARONE, 1980: 142 a 148). Ver também (MOURA ANDRADE, op. cit., especialmente as páginas 27-31).

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Todos esses fatos são indicadores bastante objetivos de que o Golpe de 1964 não era um fato isolado, nem muito menos novo, mas que, ao contrário, apenas representou o momento vitorioso desse conjunto de tentativas frustradas de retomada do poder pelas elites mais conservadoras do país, amplamente comprometidas com um determinado projeto, supostamente liberal, de “abertura” e internacionalização da economia brasileira, mas, sobretudo, de alinhamento do Brasil no âmbito da aliança Ocidental. Ou seja, no âmbito do “bloco anti-soviético”.

Neste sentido, é evidente que não se tratava, apenas, de um Golpe, especificamente voltado contra o Governo de João Goulart292, fundado no fato de que o Presidente ter-se-ia guinado para as esquerdas, ou de haver sido deflagrado em decorrência da inabilidade política do Presidente para lidar com uma crise, supostamente, conjuntural, como argumenta Skidmore293. Este era, certamente, o pretexto, nunca o motivo da conspiração. Tratava-se, como os fatos ulteriores vieram a deixar evidente, de um golpe contra qualquer aspiração à auto-determinação política do País, e sobretudo, contra à escolha, que aparentemente estava sendo feita, por uma via democrática e independente de desenvolvimento da economia nacional, e de não-alinhamento no campo político. Tudo isto feria os princípios consagrados na “Doutrina Monroe”, nunca abandonada, especialmente tendo-se em consideração a conjuntura da “Guerra Fria” e da alegada “ameaça do comunismo internacional”.

Os motivos294 e, sobretudo, os objetivos do Golpe, ao que as evidências parecem indicar, eram outros, e estavam fortemente marcados pelas posições políticas e ideológicas derivadas da “doutrina Monroe” e, em especial, da sua concretização na “política preventiva”, estruturada no início do século, e que lançava as primeiras bases para o “direito” de intervenção dos Estados Unidos nos assuntos internos dos países latino-americanos sob o pretexto de combater “a anarquia reinante e as 292 O Senador Auro de Moura Andrade, presidente do Senado e do Congresso Nacional, na oportunidade da renúncia de Jânio Quadros, assim avalia aquele fato: “Está claro que João Goulart acabaria sendo o herdeiro dos males advindos daquele grande crime praticado por Jânio Quadros (...). Foi ele quem, com sua fuga aos deveres, desamparou e cassou a própria geração e a geração de nossos filhos, os direitos, as garantias, as liberdades de nosso povo no dia em que praticou o supremo crime da infidelidade à democracia. Todos os jovens que até hoje não puderam votar num Presidente da República saibam que isto se dá pelo ato irresponsável do Sr. Jânio Quadros”. Este depoimento, de Auro Moura Andrade deixa claro que o Golpe de 1964 ganha vigor nesta conjuntura. O importante, no depoimento, não é a acusação ao Sr. Jânio Quadros, mas o fato de localizar, na sua renúncia, o terreno fértil, o pretexto, como se afirma neste trabalho, para a aceleração do movimento conspiratório. Por outro lado, fica sub-explícito, neste mesmo depoimento, o fato de que João Goulart e o seu Governo não foram a causa nem provocaram o Golpe, mas, sim, que foram surpreendidos por este. 293 SKIDMORE, T. (1988). Ver, especialmente, os capítulos I e II, onde, apesar de uma vigorosa e sistemática análise de vasto material empírico e de ampla literatura, Skidmore procura argumentar no sentido de minimizar o papel dos Estados Unidos nos acontecimentos de 1964, tendendo a argumentar no sentido de que, caso o Presidente João Goulart fosse um político mais hábil, poderia ter evitado a sua deposição e o Golpe de Estado. Entretanto, outros trabalhos, especialmente, o excelente estudo-denúncia de Marcos Sá Corrêa (CORRÊA, 1977), fundamentado em vasta documentação, inclusive do Departamento de Estado Norte Americano e da CIA, põe em evidência a hipótese contrária. 294 Segundo Ianni vários eram os motivos alegados para o Golpe: “A inflação, a queda da taxa de inversões, as greves operárias, a politização crescente das classes assalariadas, na cidade e no campo, a luta pelas reformas de base (agrária, bancária, habitacional, educacional e outras), vários foram os motivos alegados pelo imperialismo e seus aliados no País, para justificar e apressar o Golpe de Estado de 31 de março da 1964”. (IANNI, 1979(a), p. 17)

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‘transformações políticas indesejáveis’, e, mais tarde (...) a ‘ameaça do comunismo.”295 Essas posições doutrinárias dos Estados Unidos assumiram grande relevância no contexto da Guerra Fria.

Por outro lado, a expressão ideológica e unificadora dessa verdadeira doutrina de ação política, fundava-se no discurso, aparentemente científico, mas prosélito, do anticomunismo, baseado na falsa oposição entre “democracia e socialismo”296, e tendo a sua estratégia pragmática de ação, “teoricamente”, elaborada com base na concepção do combate ao “inimigo interno” e fundado na doutrina da Segurança Nacional e na defesa hemisférica297. Pode-se mesmo afirmar que essa doutrina era a base de uma espécie particular de “marketing político” do capitalismo ou, mais exatamente, do capitalismo norte-americano. Por outro lado, como argumenta Thomas Skidmore298, os problemas e as questões associadas à conspiração de 1964 vinham-se desenvolvendo desde longa data:

“O desenlace do Governo Vargas de 1951-54 criou o contexto político e as linhas de ação para a década seguinte. Havia, em primeiro lugar, a questão do nacionalismo econômico. Como o Brasil deveria tratar os investidores estrangeiros? Que áreas (como petróleo, minérios, etc.) deveriam ser reservadas para o capital nacional, público ou privado? Como poderia o país maximizar seus ganhos com o comércio exterior?

(...) “As relações trabalhistas no setor agrícola também reclamaram atenção durante o governo de Getúlio Vargas. No início de 1954 o presidente autorizou o ministro do Trabalho, João Goulart, a dar começo à organização dos trabalhadores agrícolas do estado de São Paulo. O maior índice de pobreza do Brasil era apresentado no campo, onde a renda e os serviços públicos eram muito precários em relação aos das cidades. Faltava, entretanto, a Vargas, qualquer apoio político mobilizável para aquela

295 KATCHATUROV (Op. cit., p.19). 296 Essa falsa dicotomia é explicitamente utilizada na Mensagem 33, do General Humberto de Alencar Castelo Branco, que encaminha a Lei 4.504, o Estatuto da Terra, ao Congresso Nacional, ao tentar caracterizar as duas alternativas possíveis, segundo os teóricos do documento, para a Reforma Agrária. (BRASIL. Presidência da República. Brasília: 1964). 297 Esses fenômenos são explicitamente reconhecidos por Skidmore: “Os conspiradores sustentavam idéias marcadamente anticomunistas desenvolvidas na ESG (Escola Superior de Guerra), segundo o modelo do National War College dos Estados Unidos. No Brasil a ESG já era um centro altamente influente de estudos políticos através de seus cursos de um ano de duração freqüentados por igual número de civis e militares destacados em suas áreas de atividade. Da doutrina ali ensinada, constava a teoria da ‘guerra interna’ introduzida pelos militares no Brasil, por influência da Revolução Cubana. Segundo essa teoria, a principal ameaça vinha não da invasão externa, mas dos sindicatos trabalhistas de esquerda, dos intelectuais, das organizações de trabalhadores rurais, do clero, dos estudantes e dos professores universitários. Todas essas categorias representavam séria ameaça para o país e por isso, teriam que ser todas elas neutralizadas ou extirpadas através de ações DECISIVAS.” (SKIDMORE, 1988/1994, p. 22. Grifos nossos). 298 A respeito das conjunturas, especialmente, políticas, do amplo período que vai do Governo Vargas, em 1930 à Tancredo Neves, em 1985, ver os excelentes trabalhos de Thomas Skidmore (SKIDMORE, 1988/1994 e 1982/1996). Foi dos trabalhos de deste autor que retiramos o termo “conspiração” que é usado, neste estudo, para se referir ao movimento que derrubou o Governo Constitucional de João Goulart.

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iniciativa. Por outro lado os grandes proprietários de terras estavam bem representados em todos os níveis governamentais, daí resultando o aumento do número dos inimigos ativos do presidente sem que conseguisse realizar qualquer reforma.”299

É nesse contexto, que a resistência dos pequenos agricultores sem terra ou com pouca terra, dos trabalhadores rurais e, sobretudo, dos posseiros, começa, no pós-guerra, a assumir novas formas de organização e de luta. A politização destas lutas sociais no campo começa a assustar, cada vez mais, as oligarquias agrárias e as elites políticas conservadoras, em particular, os militares. Sobretudo, na medida em que passava a articular os movimentos e reivindicações rurais com as lutas urbanas, especialmente no âmbito sindical, oferecendo, desta forma, maior organicidade às reivindicações de acesso às terras, em particular, as devolutas. Por outro lado, ganha certa expressão as reivindicações de direitos trabalhistas e a extensão destes ao campo300, particularmente no Nordeste.

Mais uma vez, e desta vez de forma sistemática e organizada, os pequenos posseiros e trabalhadores rurais procuram garantir o seu direito de permanência ou acesso à terra e aos frutos do seu trabalho, em franca oposição ao livre acesso, que sempre tiveram à terra e à subordinação do trabalho, os latifundiários, os “grandes posseiros” privilegiados. Nesse sentido, tem razão José de Souza Martins ao afirmar que:

“Depois de décadas de imobilismo, quebrado eventualmente pelos movimentos messiânicos e por anárquicas manifestações de banditismo rural no Nordeste, mas também em São Paulo e Santa Catarina, os trabalhadores rurais de várias regiões, durante os anos cinqüenta, começaram a manifestarem-se de modo propriamente político.”301

O que se quer realçar, com as referências acima, é o fato de que a luta pela terra, em particular, e os movimentos de resistência dos pobres do campo, de modo geral, sempre estiveram presentes no Brasil. Portanto, tratavam-se de questões e de problemas que não eram, em nenhum sentido, uma novidade no contexto da conspiração de 1964, nem, menos ainda, produtos de ações ou de omissões deliberadas do Governo João Goulart.

A novidade, em relação ao problema, residia no fato de que as reivindicações dos pequenos posseiros, pequenos proprietários e trabalhadores rurais passaram a assumir formas reivindicatórias organizadas e públicas, fugindo, assim, ao estrito arbítrio da patronagem. Até então, a luta efetiva pela propriedade territorial e pela

299 SKIDMORE, T. (1988/1994, pp. 26 e 27). Grifos nossos. 300 Que, como se viu na citação acima, havia sido levantada na gestão Vargas, em 1954, dando origem à queda do Ministro do Trabalho, João Goulart. 301 MARTINS, J. S. (1994, p. 60). Grifos nossos.

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defesa contra a exploração do trabalho, restrita ao âmbito dos grupos privilegiados, sempre foram, de uma ou de outra formas, resolvidos, como se viu nos capítulos anteriores, ou nos bastidores da administração do Estado, ou fundadas na violência direta dos latifundiários e poderosos. E sempre em detrimento da massa dos pequenos posseiros e dos pobres do campo. Estes, na melhor das hipóteses, ou eram empurrados para regiões cada vez mais distantes, ou assimilados como agregados, “arrendatários” ou “parceiros”302. Quando não eram pura e simplesmente eliminados fisicamente, situação, aliás, não desprezível em qualquer análise desta problemática, considerando-se a sua magnitude e seu significado nos processos de expropriação territorial.

Como foi amplamente discutido no capítulo 2, ao deslocar a questão da legalização da propriedade, pretendia pela Lei 601 de 1850, para a alternativa à colonização (reduzida esta, ou ao colonato nas fazendas de café; ou ao “desbravamento”), o latifúndio empurrou, igualmente, o problema da aquisição da propriedade da terra, pelos pobres, para distante de suas áreas de influência ou interesse. E, sobretudo, para as margens das determinações legais.

Era, como pôde ser verificado em detalhes nos capítulos anteriores, formalmente, reconhecido o direito ao acesso à propriedade terra pelos pequenos posseiros, desde que este direito fosse exercido de forma estritamente limitada, tanto em termos da dimensão das propriedades, quanto realizado em regiões afastadas dos domínios do latifúndio: o que significava uma referência clara à colonização303 no sentido de ocupação e desbravamento das fronteiras. A outra alternativa, a esta associada, era a incorporação de imigrantes, inicialmente estrangeiros e depois, também, nacionais, às grandes explorações. Em síntese, o acesso à terra sempre esteve, na prática, vedado ao grosso da população pobre do campo, embora fosse, formalmente, assegurado.

O fato é que, juridicamente, não havia como assegurar os direitos de propriedade para as grandes posses sem assegurar o mesmo direito, ainda que formalmente, para todas as posses, independentemente dos seus respectivos tamanhos: Portanto, teriam que ser extensivos, também, às pequenas posses. Tratava-se de manter, pelo menos formalmente, o instituto jurídico da “isonomia”, um dos pilares do Direito.

302 Ver a este respeito, entre muitos outros, por exemplo, IANNI (1984). 303José Vicente Tavares dos Santos, em seu excelente artigo “Colonização de novas terras: a continuidade de uma forma de dominação, do Estado Novo à Nova República.” (SANTOS, 1995), coloca com muita propriedade o sentido do processo de colonização, tal como proposto e posto em prática no Brasil, nos seguintes termos: “Há trinta anos, a sociedade brasileira aguarda a implementação ampla da reforma agrária prevista no Estatuto da Terra, razão suficiente para analisar o seu alcance pelo seu inverso, ou seja, o processo de colonização de novas terras, o qual não supõe uma redefinição da propriedade fundiária, mas a incorporação de novas terras, devolutas ou públicas, ao processo de ocupação humana do território” (loc. cit., p. 39. Grifos nossos). Ou seja, sempre em terras afastadas dos domínios do latifúndio. A respeito desta questão, ver, além do artigo citado, o excelente estudo de José Vicente Tavares dos Santos, Matuchos: Exclusão e Luta - do Sul para a Amazônia (SANTOS, 1993) e MINC (1985).

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Por outro lado, os direitos dos pequenos posseiros, embora, diante dessa contingência legal, estivessem, juridicamente assegurados, acabaram por ser efetivamente anulados. Sobretudo, na medida em que apenas poderiam ser materializados pela via judiciária, ou seja, pela respectiva proposição do processo de legitimação e registro, ou do requerimento do direito de usucapião.

Assim, por exemplo, especialmente no caso da aquisição de propriedade pela via do usucapião - que era, basicamente, a única forma efetiva do pequeno posseiro tentar304 adquirir a propriedade sobre terras inexploradas ou abandonadas - apenas poderia ser alcançada pela alternativa judicial, na medida em que este processo dependia de sentenças declaratórias. Sem este procedimento processual, os pequenos posseiros continuavam apenas com o chamado direito real de uso: ou seja, permaneciam meros posseiros.

Como se argüiu no capítulo anterior, de diversas formas, mas sobretudo, pela via registral - especialmente após a instituição do Registro Torrens - os posseiros poderiam ter a sua “presunção” de direito real de posse305, anulada. Por isso, a ação primeira dos supostos proprietários de terras ocupadas por posses, mas sobretudo, dos grileiros, sempre foi a destruição de tudo quanto pudesse caracterizar ou configurar as posses. Quando não do puro e simples assassinato dos posseiros e seus familiares e da respectiva ocultação dos cadáveres.

Quanto à legitimação de posses, que se destinavam às posses estabelecidas em terras devolutas, e sobre as quais era vedada a alternativa ao usucapião, exigia-se todo um rito jurídico e de registro, que, efetivamente, sempre dificultou, quando não, simplesmente, afastou, desta alternativa, a maioria dos pequenos posseiros. Nos termos da Lei 601 de 1850, como foi visto no capítulo 2, cabia aos posseiros a iniciativa deste processo. Em face do sistemático fracasso da política de registros e de arrecadação de terras devolutas, analisados naquele capítulo e no capítulo 3, a maioria das posses permaneceram sem registro, por um lado e, por outro, propagando-se de diversas formas e dimensões, por todas as regiões do País. Por suposto, um dos principais móveis do Estatuto da Terra seria regular essa forma “ilegal” de ocupação de terras devolutas, que se vinha agravando desde 1850. A partir da regulamentação contida no Estatuto da Terra, fundamentalmente, a única forma legal de se adquirir a propriedade fundada na 304 Aqui se diz “tentar” porque, como é fato conhecido, e como bem registra o Documento da CONTAG “Posição da CONTAG Sobre o Programa Nacional de Política Fundiária”: “Historicamente, o usucapião foi sempre considerado ineficaz no que se refere à propriedade particular, para garantir ao posseiro a sua aquisição quando verificado o conflito pela posse da terra, eis que o Direito Possessório, desde o Direito Romano, caracteriza esse conflito como oposição à posse, tornando, desse modo, inaplicável o Usucapião”. (CONTAG, 1982, p. 7. Grifos nossos). 305 Veja-se a este respeito, por exemplo, o insuspeito comentário de Paulo Yokota, Presidente do INCRA no último Governo Militar, ao afirmar que: “A evolução da legislação agrária reconheceu sempre na posse um elemento gerador de uma expectativa de direito, desde que obedecidas as condições mínimas de exploração agropecuária efetiva e morada habitual” (YOKOTA, s.d., p. 1). Na página seguinte o Presidente do INCRA volta a se referir a estas posses, como posses legítimas e que teriam que ser asseguradas nos processos discriminatórios. Esta questão voltará a ser discutida no decorrer deste capítulo, na análise do Estatuto da Terra, neste e no próximo capítulo.

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posse mansa e pacífica de terras devolutas, que corresponderia à “legitimação das posses”, seria através dos processos discriminatórios. Este assunto será discutido detalhadamente neste capítulo.

Na verdade, foi através dessas alternativas que as grandes posses sempre se consolidaram e legitimaram, em verdadeiros e sistemáticos processos de grilagem especializada306 das terras públicas. É evidente que estas ações, também tiveram seus efeitos sobre uma infinidade de pequenas posses mansas e pacíficas de pequenos produtores familiares, que sempre se instalaram pelos sertões do Brasil, desde tempos imemoriais. Assim, o privilégio na apropriação e legitimação, por um lado, e a violência sistemática contra os pequenos posseiros, por outro, sempre foram os meios para a consolidação dos latifúndios em todos os rincões deste país e a causa original dos conflitos pela terra no Brasil.

Em suma, a rápida recapitulação, feita acima, das formas de luta pela terra e de acesso à propriedade rural, já estudadas nos capítulos anteriores, teve apenas o objetivo de introduzir a assertiva de que, no Brasil, para os pequenos posseiros, a luta pela terra, sempre se constituiu em uma guerra constante, permanente, sistemática, sem fronteiras. Sobretudo, uma guerra sem quartel, sem regras jurídicas definidas, sem ética. Sempre foi uma guerra travada fora da Lei: uma “guerra suja”307.

Afora os casos limites de lutas dos pobres rurais contra a opressão por meio de movimentos messiânicos, cangaços etc., que poderiam ser considerados como uma espécie de “proto-história” da resistência dos pobres do campo no Brasil, a sua luta pela terra e pelo trabalho começa a organizar-se, politicamente, na segunda metade deste século. Até porque, com o desenvolvimento econômico do país, especialmente após a Segunda Guerra, e sobretudo no período Kubitschek, em face da transferência da Capital Federal para a região Centro-Oeste e do intensivo programa de rodovias implementado, passou-se, cada vez mais, a apertar o cerco contra a massa de pequenos posseiros dos distantes sertões, sobretudo, na medida em que vastas áreas do território brasileiro passaram a ser incorporadas à economia nacional, senão produtivamente, pelo menos especulativamente, pela implementação de grandes projetos de obras públicas, especialmente, ferrovias, açudes e rodovias308.

306 No capítulo 5 são feitas referências a respeito da grilagem no Brasil pós-1964. 307 Ver a respeito dessas formas específicas de Grilagem e Violência, entre muitos outros, os trabalhos de ASSELIN, V (1982); MARTINS, E. (1979 e 1972 ); PUREZA (1982); KOTSCHO (1982); PEREIRA (1971) e MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA (1987). 308 Neste sentido, vale a pena, mais uma vez, citar o Presidente do INCRA Paulo Yokota, ao proclamar elogiosamente que: “Nem todos os brasileiros possuem a clara consciência de que nestas três décadas, o Brasil dobrou efetivamente de dimensão. Desde 1500 a 1960, portanto, em 460 anos, ocupou-se a metade litorânea, e alguns pontos isolados junto a alguns rios interiores (...) A partir dos anos 70, a ocupação do Centro-Oeste e da Amazônia passou a ser sistemática e contínua. Aragarças, Jacareacanga, entre outros, eram pontos somente conhecidos pelos pioneiros da FAB, e ligados a alguns acontecimentos políticos. Hoje, a ocupação entre Brasília e Cuibá é sistemática (...) O Brasil dobrou de tamanho em três décadas” (YOKOTA. Op. cit., pp.7 e 8. Grifos nossos).

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Como a lógica que, sistematicamente, presidiu a esses processos de expansão dos interesses capitalistas no campo brasileiro, sempre foi a de empurrar para cada vez mais longe os pequenos posseiros, proprietários e indígenas, - inclusive não reconhecendo seus direitos efetivos à legitimação da propriedade das terras que possuíam - foram-se engendrando, nesse contexto, novos confrontos e novos sujeitos309, dando novo impulso e caráter à resistência popular nos sertões do País. Tratava-se do aprofundamento e da verdadeira instituição daquilo que, neste trabalho, se está denominado de grilagem especializada, que se tornou em um dos instrumentos mais importantes da legitimação privilegiada de “falsas posses” e “propriedades”, sobretudo após a aprovação do Estatuto da Terra.

Os casos de Trombas, em Goiás, e do Oeste do Paraná, em relação, especificamente, à luta pelo acesso à propriedade da terra; e das “Ligas camponesas”, em relação à defesa das condições de existência e reprodução dos trabalhadores rurais empregados nos “novos” latifúndios canavieiros, são particularmente esclarecedores do novo colorido que passou a ser impresso aos movimentos de resistência dos pobres e excluídos do campo no segundo pós-guerra. Estes movimentos prolongar-se-ão, de forma sombria e dolorosa, no contexto da repressão violenta desencadeada310 após os acontecimentos de 1964.

No Paraná311, para tomar um exemplo particular, a luta pela garantia de posse da terra era antiga, e vinha-se desenrolando desde os últimos anos do Império, com a doação, pela Coroa, de uma faixa de nove quilômetros de cada lado da ferrovia que seria construída, ligando São Paulo ao Rio Grande. Havia, um contencioso entre os Estados do Paraná e Santa Catarina, acerca dos direitos sobre as terras da região fronteiriça, na divisa destes Estados, “ipso facto”, conhecida como “Contestado”.

Nesta região, o Governo havia concedido à companhia Southern Brazil Lumber and Colonization uma área de 180 mil hectares. Os posseiros, que desde muito se encontravam instalados na região, foram sumariamente expulsos, e a eles vieram se juntar, a partir de 1908, a massa de desempregados das obras da ferrovia, dando início a uma acirrada luta, que culminou com o violento confronto, que ficou, historicamente, conhecido como a “Guerra do Contestado”, cujo ápice ocorreu entre 1912 e 1916,

309 Ver a respeito, MARTINS, J. S. 1994, especialmente o Capítulo II. 310 “Assim, o terror foi desencadeado, na zona do açúcar, diretamente por usineiros e senhores de engenho. Toda a ampla organização sindical dos trabalhadores rurais foi destruída e ainda hoje não se tem idéia do número de dirigentes camponeses assassinados nos primeiros dias da repressão. (...) Ao correr dos meses, as prisões permanecem abarrotadas. Alguns milhares de camponeses, trabalhadores, estudantes, intelectuais encontram-se detidos. As torturas, espancamentos, violações de domicílio, passam a constituir fatos de rotina. Voltam a dirigir a polícia velhos torturadores do período estadonovista” . Nesses termos é descrita a conjuntura de terror e repressão que se seguiu imediatamente a tomada do Poder pelos Militares, em 1964. (In. ARRAES, M. s. d.). Grifos nossos. Ver também, a este respeito, Carlos Minc (MINC, op. cit.). 311 A breve reconstituição aqui feita deste, episódio, deve-se, em particular aos trabalhos de Joe Foweraker, Fábio Alves e José de Souza Martins, entre outros, todos citados (vide Referências Bibliográficas ao final deste estudo).

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quando os posseiros foram violentamente massacrados, aliás, num genocídio similar ao que acontecera em Canudos, nos sertões da Bahia, poucos anos antes.

Mas a derrota na Guerra do Contestado não colocou um ponto final nas lutas desta região. Elas se estenderam, após liquidados os primeiros posseiros, num profundo e grave contencioso acerca das concessões territoriais, que envolveu o Governo do Paraná, as Companhias ferroviárias e de colonização e a União, e que se prolongarão até os primeiros meses do golpe de 1964. Segundo Joe Foweraker:

“Em geral, essas concessões de terras eram feitas em lugar de pagamentos em dinheiro, exigindo as companhias garantias por seus investimentos. As companhias eram de origem estrangeira (tal como a Companhia Brazil Railways, dos Estados Unidos e a sua subsidiária Southern Brazil Lumber and Colonization, isto é, Madeira e Colonização do Sudoeste do Brasil, e Chémins de Fer Sud-Ouest Brésiliens, da França, ou Estradas de Ferro do Sudoeste Brasileiro), e a disposição dos governos Estadual e Federal para abrirem mão do território nacional reflete a dificuldade em atrair capital para esse tipo de empresa (...)

“O estado, a princípio, recusou-se a reconhecer a validade dessa concessão, que havia sido feita a uma distância de 9 quilômetros para cada lado da linha férrea projetada, argüindo que apenas ele administrava as terras dentro das suas fronteiras. No sentido estrito, entretanto, a concessão havia sido feita antes da Constituição de 1891 e, finalmente, parece que o estado teve que se curvar... Neste momento (1917) porém, não havia mais hipótese para a concessão de terra ao longo da ferrovia, porque essa terra se estendia próxima ao litoral e já estava povoada. Assim, em seu lugar, extensas concessões foram feitas bem no interior do estado, francamente dentro da área de fronteira.”312

Observe-se que esse “novo” conflito, agora entre as companhias particulares, o Estado do Paraná e a União, se estabelece em torno do espólio da Guerra do Contestado, encerrada com a liquidação militar dos posseiros. Observe-se, igualmente, que a conciliação de interesses, acabaram, em princípio, assegurando o reconhecimento das concessões do Império às Companhias Ferroviárias e de “Colonização”, por um lado; e, por outro, permitindo compensações, com a abertura de novas concessões e da possibilidade de titulação de terras nas fronteiras. Assim, o conflito apenas é adiado.

A Constituição de 1937 incorporou terras desta região aos bens da União, ao estender a 150 quilômetros a faixa de fronteira313, fazendo reacender o contencioso entre o Estado do Paraná, a União e as empresas de colonização e ferrovias. Observe-se, igualmente, que nesse conflito de grandes interesses, os remanescentes dos pequenos posseiros, boa parte eliminada fisicamente na Guerra do Contestado em 1916, não aparecem como interlocutores nas contendas entre os grandes interesses fundiários. Nesse sentido, como registra Martins,

312 FOWERAKER (op. cit., p. 125). 313 Artigo 165 da Constituição de 1937 (In.: MEAF, op. cit.).

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“Desde o século XIX, a grilagem de terras era uma questão restrita a litígios no interior das próprias oligarquias, envolvendo número restrito de pessoas, casos quase sempre debatidos e, bem ou mal, resolvidos no judiciário como sendo apenas casos de dúvidas, quanto a direitos ou de notória falsificação de documentos.”314

Neste contexto, chama a atenção, José de Souza Martins, para o fato de que a questão da grilagem passa a assumir as feições de uma questão

“política moderna no caso do sudoeste do Paraná, nos anos cinqüenta, quando as terras federais começaram a ser vendidas pelo governo do estado, provocando a duplicidade de títulos.”315

Na verdade, o contencioso sobre as terras do Oeste do Paraná, dá uma noção bastante objetiva da luta pela terra, quando deflagrada por grandes grupos econômicos e, geralmente com o patrocínio ou participação de autoridades do Estado da Federaçãp, e da grilagem especializada. Como registra Foweraker, nos anos cinqüenta, aproveitando-se do amplo contencioso que se estabelecera, e da indefinição acerca da autonomia legal sobre as terras da região, tanto o Governo do Estado do Paraná, quanto o Federal, como as próprias companhias de Colonização estavam titulando terras na região, cada uma delas alegando agir dentro do seu estrito direito sobre as respectivas áreas316; segundo aquele autor, “muitas vezes sequer obedecendo a esse imperativo legal.”

Ainda segundo Foweraker, a liberdade de ação do Estado do Paraná dependia da correlação e da constelação de forças em movimento no período. Dessa conjuntura valeu-se o então Governador do Estado, Moisés Lupion:

“(...) No seu mandato anterior ele havia sido um dos pilares da administração Dutra e continuou influente até 1955. Como foi mencionado...ele próprio havia encabeçado um grupo econômico com importantes interesses no oeste, entre os quais encontravam-se nada menos do que títulos em Missões e parte de Chopin (formando juntos uma grande propriedade de 425.731 hectares) que a firma de Lupion, a CITLA, havia obtido da SEIPU em 1951. Essa transação era absolutamente ilegal e inconstitucional, envolvendo extenso suborno, nepotismo e corrupção (...).” 317

É nesse contexto, de uma prolongada luta contra as populações pobres da região, uma luta que foi levada às raias da violência pela deflagração da Guerra do Contestado contra os posseiros e pequenos colonos, entre 1912 e 1916, que ressurge com muito vigor, o movimento de resistência de pequenos proprietários, em 1957. As raízes desta nova luta eram antigas, como se vê, e não pode, pura e simplesmente, ser imputada à 314 MARTINS (1994, p. 64). 315 Id. Ibidem., p. 65 316 Ver, FOWERAKER (op. cit., pp. 128-130); e MARTINS, J.S. (1994, p. 67). 317 FOWERAKER,( op. cit., pp. 129-130. Grifos nossos).

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presença do Partido Comunista na Região. Quer dizer, não se tratava de uma luta promovida por “elementos alienígenas”, dotados de “ideologias exóticas” nem mesmo insuflada “irresponsável e demagogicamente” pela SUPRA ou pelo Governo João Goulart, como tentou fazer crer o discurso de sustentação ideológica do Governo Castelo Branco318.

A presença de militantes de esquerda neste, como em outros movimentos populares de resistência contra a secular opressão e excludência, de que sempre foram vítimas os pobres da cidade e do campo, é muito mais conseqüência, do que causa, da radicalidade assumida por esses movimentos. Portanto, tais argumentos aparecem, claramente, como o pretexto para se mover novas formas de extermínio, de “cerco e destruição” . As causas sempre foram a excludência social dos pobres, o desrespeito aos seus direitos de propriedade, a violência sistemática contra estes direitos e suas reivindicações, especialmente, sobre a posse das terras de trabalho, aliás, legalmente assegurada.

Enfim, as causas sempre se fundaram no processo de apropriação privilegiada e de legitimação questionável, como se vem tentando demonstrar neste estudo, que remonta ao instituto de sesmarias. E, como será evidenciado objetivamente, esse processo assume novos e mais efetivos contornos no pós-1964, sendo este fato o ponto fundamental, dentre outros, como é óbvio, da análise crítica que se está desenvolvendo da Política Fundiária dos Governos Militares, enquanto continuidade, sob novas formas do mesmo processo de apropriação privilegiada e legitimação, juridicamente questionável, que se vem aprimorando no Brasil desde 1854.

Diversos sempre foram, portanto, os pretextos para se mobilizar as armas da repressão violenta e do genocídio contra as populações pobres do meio rural brasileiro: “acusação de monarquistas”, contra os habitantes de Canudos; “infiltração comunista”, como nos casos do pobres de Porecatu, do Araguaia, de Trombas do Formoso, das Ligas Camponesas, dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais e tantos outros movimentos populares no pós-1964. Como se pode concluir pela pequena revisão feita acima, sempre foram argüidos os mesmos pretextos para justificar a mesma violência contra os pobres do campo. Apenas, a cada circunstância e dependendo das diferentes conjunturas ou objetivos políticos dos que o promoveram institucionalmente, mudando-se os pretextos e as justificativas319. 318 Ver a respeito a Mensagem no 33, do General Castelo Branco ( Loc. cit.). 319 Fugiria aos objetivos deste estudo a análise detalhada dos diversos movimentos de resistência popular no campo e das formas de violência (oficial e privada) usadas para reprimí-los. A abordagem, feita acerca do Caso do Oeste do Parará teve, apenas, o objetivo de exemplificar a historicidade das lutas das populações rurais em defesa de seu legítimo e legal direito à propriedade da terra onde residem e trabalham. Assim, a idéia é evitar que a abordagem de casos específicos dêem a impressão de que surgiram naquela determinada conjuntura específica, quando na verdade, a maioria dos focos de tensão social no campo, embora possam aparecer em determinado momento, são pontas de um “iceberg” que se vinha estruturando desde muito antes; certamente, desde os finais do século passado, como o caso estudado acima deixou claro. A respeito, especificamente, desses movimentos sociais há uma vastíssima literatura. Sobre o tema remetemos o leitor, em especial, às seguintes: MARTINS, J.S. (1994; 1993; 1992; 1990; 1983; 1985); FOWERAKER (1982); IANNI (1979; 1979(a); 1981 e 1984); BASTOS, E. (1984); FACÓ (1980); ARRAES, M. (S.d.); CARVALHO M. (1980); CONCEIÇÃO, M. (1980); CONTAG (1981 (a); D’INCAO (1983); MEDEIROS, L.S. (1989); MARIGHELLA, et. alii. (1980); MARTINS, E. (1979); KOTSCHO (1982).

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2. Mensagem no 33: O Diagnóstico Militar da Questão Agrária

A Mensagem 33, do General Humberto de Alencar Castelo Branco, que encaminhou o Projeto de Lei do Estatuto da Terra ao Congresso Nacional, constitui-se em um documento da maior relevância para a compreensão do encaminhamento dado à questão agrária e agrícola pelo Regime Militar. Ela resume as noções teóricas e ideológicas fundamentais do modelo de “Reforma Agrária e de Desenvolvimento Rural” proposto pelo Governo. Neste sentido, a Mensagem pode ser interpretada como um documento que expõe as Diretrizes de Governo para orientar a Política Fundiária e de Desenvolvimento Rural, que seria implementada.

Nela é realizado um amplo, ainda que superficial, balanço do que, então, se denominava, de “problema agrário” brasileiro e de suas articulações e implicações para com o processo mais amplo de desenvolvimento econômico nacional, sendo indicadas, nesse contexto, as linhas e diretrizes gerais que, no entendimento do Governo que se instalava, deveriam orientar o encaminhamento das soluções necessárias às diversas exigências da conjuntura fundiária e agrícola do País.

Desvendar, portanto, a lógica e o contexto em que este documento foi elaborado e proposto, o sentido do diagnóstico que realizava da questão agrária e as propostas de solução que apresenta, torna-se condição fundamental para se compreender o sentido das reformas indicadas e, mais do que isto, os rumos pretendidos e objetivos perseguidos na busca do desenvolvimento econômico e social brasileiro320 e, dentro deste, o papel que era atribuído à propriedade rural, em geral, e à agricultura, em particular. Fora do contexto da Mensagem 33, que lhe dá o necessário enquadramento de uma Política de Governo - e não, apenas, nem necessariamente, de uma “política pública” - o Estatuto da Terra é mera abstração sem sentido.

Pode-se, de imediato, afirmar que a Mensagem apresenta duas dimensões absolutamente distintas e articuladas. Em primeiro lugar, procura, aparentemente, desenvolver um diagnóstico geral do problema agrário brasileiro e das formas como o mesmo teria sido abordado e enfrentado pelo Governo João Goulart. Neste contexto, o documento desenvolve-se em dois sentidos: (a) Um, recuperando o diagnóstico geral da questão agrária, da concentração fundiária e da renda, da baixa produtividade da agricultura, etc. Estas características, concebidas como bloqueios, deveriam ser ultrapassadas para viabilizar o pretendido desenvolvimento econômico nacional, sobretudo pela integração do setor agrícola ao industrial. (b) Noutro sentido, era uma severa crítica ao Governo Goulart, argumentando que o mesmo, ao invés de enfrentar

320 Segundo a lúcida interpretação de Octávio Ianni, “desde o primeiro momento, o governo militar instalado com o golpe de 1964 foi levado a adotar uma política de portas abertas ao capital estrangeiro, isto é, para o imperialismo. O conjunto do aparelho estatal, em suas condições econômicas e políticas de atuação, foi posto a serviço dos interesses da empresa imperialista multinacional e nacional. Desse modo inaugurou-se uma época de desenvolvimento capitalista intenso e generalizado, na indústria e agricultura, na cidade e no campo. Daí a política agressiva e repressiva, em termos econômicos e políticos, no sentido de superexplorar a força de trabalho do proletariado industrial e agrícola.” (IANNI,1979(a). Pp.19-20. Grifos nossos).

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“realisticamente” os problemas agrários, ter-se-ia aproveitado da pobreza rural para promover a inquietação social, criar expectativas demagógicas, insuflar a luta de classes, e obter por essas formas, dividendos políticos e, enfim, apoio, para um determinado projeto socializante, e portanto, contrário aos interesses nacionais321.

Em segundo lugar, e com base no diagnóstico apresentado nos termos acima, procurava o Documento, fundamentar a sua proposta de solução para o problema agrário brasileiro. A solução apontada, fundava-se em duas diretrizes básicas: (a) promover a regulamentação do preceito da Constituição de 1946 referente à promoção da “justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos”, estabelecendo medidas tendentes a realização de uma “reforma agrária” nos termos Carta de Punta Del Este; e (b) avançando, para além da distribuição da propriedade, implícita na diretriz Constitucional, através da implementação de um conjunto de medidas e instrumentos de apoio à produção agrícola e à sua integração com o desenvolvimento urbano e industrial. Neste sentido, como é explicitamente referido na Mensagem 33, o Projeto que encaminhava ao Congresso Nacional, não era apenas uma lei de reforma agrária, mas

“visava também a modernização da política agrícola do País, tendo por isso mesmo objetivo mais amplo e ambicioso; é uma lei de Desenvolvimento Rural.”

Assim, pode-se afirmar que a Mensagem 33 compunha-se de dois tipos de discursos cuidadosamente articulados: Um discurso “técnico” - por suposto, teoricamente fundamentado - até certo ponto, fundado em uma análise de dados objetivos referentes à realidade rural brasileira; e um discurso ideológico, fundado nos preceitos doutrinários desenvolvidos na Escola Superior de Guerra, muito em particular, referentes à ideologia da defesa interna e da segurança nacional e hemisférica, cuja base era o anticomunismo.

Os dois discursos, como se verá, se completavam. Conjuntamente, representavam, por um lado, a fundamentação teórica e, por outro, a justificativa política e ideológica do projeto Fundiário e de Desenvolvimento Rural do Governo. Do ponto de vista do discurso, pode-se afirmar que se tratava de um documento bem elaborado e, do ponto de vista de um Projeto de Governo, tratava-se de um projeto coerente com os princípios que defendia e bem fundamentado. Por isso mesmo a análise, tanto da Mensagem 33, como do Estatuto da Terra não pode ser feita de forma separada, exigindo, portanto, um estudo cuidadoso de suas proposições fundamentais.

A Mensagem e o Estatuto da Terra importam, assim, em dois diagnósticos específicos. Um, da própria estrutura agrária e da economia agrícola brasileira. Outro, acerca das formas como estas questões foram tratadas pelo Governo Goulart, portanto,

321 Estes argumentos, se verdadeiros, seriam uma justificativa legalista da intervenção militar, constitucionalmente prevista. Não se trataria, portanto de um Golpe de Estado, posto que estariam apenas, as Forças Armadas “restabelecendo a Ordem Constitucional”, ferida pelo Presidente da República. (Ver a este respeito, SKIDMORE, 1988/1994).

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um diagnóstico da dimensão política do problema. Por isso mesmo, as soluções apontadas caminham em dois sentidos: por um lado, pela proposição de uma política de “distribuição” de terras e de apoio à produção e, por outro lado, definindo, com bastante clareza, o sentido que era atribuído, pelo novo projeto, tanto ao problema do acesso à terra, quando, sobre as formas de se combater o atraso e a pobreza rural. O Estatuto da Terra oferecia a forma jurídica ao Projeto de Desenvolvimento Rural.

Quer dizer, a Reforma Agrária, no sentido que lhe era atribuído, de “distribuição” de terras para aliviar tensões sociais, era complementar ao desenvolvimento econômico da agricultura. Especialmente quando se referisse ao atendimento a pequenos agricultores - por suposto, condicionado ou à existência de tensões ou a projetos de “desbravamento” (Colonização)322 - a distribuição de terras era definida como medida social, quer dizer, na linguagem de seus teóricos, “não-econômica”. Ou seja, destinava-se a resolver problemas “sociais” de pobreza, ou tensões e conflitos sociais, não a maximizar a eficiência econômica. É neste contexto que a Reforma Agrária é definida como um projeto “social” e “não-econômico”.

Neste sentido, busca-se dar à Reforma Agrária um caráter específico. Ela deveria se fundamentar na regulamentação do preceito Constitucional de 1946. Isso significava manter, em princípio, o acesso à terra nos termos daquela Constituição que, como se viu no capítulo anterior, estabelecia limites para as pequenas e para as grandes concessões ou aquisições de terras: até 25 hectares323, para preferência de compra ou aquisição de terras devolutas com base nas posses mansas e pacíficas, ou por usucapião, para terras “particulares” inexploradas ou “abandonadas”; e até 10.000 hectares324, para alienações ou concessões de terras públicas, independentemente de autorização do Congresso Nacional. Portanto, no contexto da Reforma Agrária em pauta, a proposta do Governo Castelo Branco era regulamentar os preceitos que já constavam da Constituição de 1946. Esta era a Reforma Agrária proposta claramente na Mensagem 33 e no Estatuto da Terra.

Esse fato, em si mesmo, tem-se que reconhecer, representava um grande avanço, porque como se sabe, a maioria dos “imperativos” constitucionais não são, juridicamente, auto aplicáveis. Necessitam de regulamentação pela legislação infra constitucional para terem vigência prática. E é exatamente a ausência da regulamentação por lei ordinária que faz com que muitas conquistas asseguradas pelas Constituições nunca se materializem, sendo esta, inclusive, uma alternativa geralmente usada pelas forças contrárias a determinadas iniciativas, quando não conseguem,

322 O termo “desbravamento” é explicitamente usado na Mensagem 33, com o sentido de colonização em áreas pioneiras. Como registra YOKOTA (op. cit., p. 8) “Os projetos de colonização oficial estão mais presentes em frentes realmente pioneiras, procurando atender a uma camada mais modesta da população, dando elevada prioridade àqueles que foram obrigados a se deslocar de seus antigos locais de trabalho (...).” (Grifos nossos). 323 Parágrafos 1o e 3o do Artigo 156 da Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 18 de setembro de 1946. 324 Parágrafo 2o, art. 156 da Constituição de 1946, referida na nota anterior. Esta área foi reduzida para 3.000 hectares, pelo Governo Militar, para alienação independente de alienação pelo Senado Federal.

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conjunturalmente, fazer valer seus pontos de vista na Constituição. Assim, através da obstrução, no Legislativo, impedem a elaboração da necessária regulamentação infra constitucional e, com ela, a materialização do direito assegurado na Constituição. Esta é uma prática corrente no Brasil, como se sabe, e que torna ineficaz, por omissão do Legislativo, parte relevante dos preceitos constitucionais.

Isso significa, por outro lado, que o Estatuto da Terra, ao regulamentar o preceito Constitucional citado, criava, juridicamente, a possibilidade para se poder viabilizá-lo. Ou seja, de por em prática, legalmente, o processo de alienação das terras devoluta: de privatizá-las. O que não quer dizer que esta regulamentação por si só assegurasse que isto seria realizado. E, menos ainda que este processo de alienação de terras públicas seria realizado em benefício da pequena propriedade ou dos pequenos posseiros e sem terras. Aliás, os fatos que se seguiram à sua promulgação mostraram exatamente o contrário. A simples leitura do modelo de desenvolvimento rural explicitamente insinuado na Mensagem 33 já era suficiente para se verificar que, naquele contexto, a integração da população marginalizada do setor agrícola, não seria prioritariamente processada mediante a alternativa a uma reforma distributivista de terras, mas pela alternativa à “modernização” da agricultura, pelo incentivo à empresas rurais, empresas estas, não necessariamente pequenas, ao contrário.

A via escolhida, portanto, era a da incorporação da população rural pelo emprego e, não necessariamente pela doação ou distribuição de terras. E pela dinamização paralela do processo de industrialização e urbanização. Neste contexto, pode-se concluir que a reforma agrária era, efetivamente, complementar à política de desenvolvimento rural, e não o contrário. Os fatos e todas as criticas ulteriores à política fundiária do período militar comprovam essa afirmação. Entretanto esta proposta estava claramente formulada na Mensagem 33, de novembro de 1964.

Com base na regulamentação contida no Estatuto da Terra pôde, o Governo, promover, efetivamente, por um lado, um amplo processo de alienação de terras devolutas em todo o território nacional325 e, por outro lado, implementar um amplo e eficiente conjunto de instrumentos de políticas agrícolas e de crédito rural que, inegavelmente, deram grande impulso à produção e a produtividade do setor agrícola brasileiro. A contrapartida da implementação deste modelo foi a reprodução, nas “áreas novas326” incorporadas à agricultura, da mesma concentração fundiária. Esta foi a “reforma agrária”, e, sobretudo agrícola, de fato, feita pelo regime militar. É neste sentido específico, que não procede a afirmação de que o Estatuto da Terra não foi executado.

325 Esse fato será analisado no capítulo 5, ao ser estudado o problema das terras novas incorporadas ao patrimônio privado no período 1964 a 1980. 326 Este problema é objetivamente estudado no capítulo 5, adiante.

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Ele efetivamente o foi, como os dados da incorporação de novas áreas ao patrimônio privado, entre 1960 a 1980, na ordem de 114.965.285 hectares327, ou seja, um acréscimo de 47,9% de área nova, no período, em relação a 1960, não deixa dúvida. Para se ter uma idéia, esta cifra correspondia a 31,10% do total da área de todos os estabelecimentos agrícolas recenseados em 1980328. A estratégia de desenvolvimento implementada e os resultados perseguidos estavam claramente contidos da Mensagem 33 e, portanto, no instrumental normativo que compunha, o Estatuto da Terra. Que era uma alternativa de desenvolvimento excludente e concentracionista, não resta dúvida. Mas era exatamente esta a alternativa proposta pela Mensagem 33 e, portanto, pelo Estatuto da Terra, e que tem que ser colocada clara e objetivamente. O problema, portanto, como muito bem levantou a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura (CONTAG), não estava em negar que o Governo tenha executado o Estatuto da Terra, mas em identificar para que extratos de área essas terras novas discriminadas foram efetivamente destinadas329 e sob que condições. Este problema será analisado no próximo capítulo.

Esta “Reforma Agrária” era coerente com o modelo proposto de maneira clara na Mensagem 33, e, portanto, também no Estatuto da Terra, ao identificar tanto o latifúndio quanto o minifúndio como pontos de estrangulamento, igualmente nocivos, ao desenvolvimento da economia rural. Neste contexto, inclusive, nota-se claramente a tendência a qualificar o minifúndio como ainda mais problemático para a agricultura, do que o latifúndio, na medida em que este último poderia vir a modernizar-se, transformando-se em empresa rural, ou pela incorporação de novas tecnologias e processos, se incentivados adequadamente (aliás, os incentivos eram assegurados pela política de desenvolvimento rural) ou, noutra alternativa, se a isto fosse induzido pelo ITR progressivo. Esse fato está explicitado em dois artigos distintos do Estatuto da Terra, além de ser claramente colocado na Mensagem 33. No Parágrafo Único, letra “a” do artigo 4o, onde se lê:

“Parágrafo Único. Não se considera Latifúndio:

327 Este número foi calculado pelo autor com base nos Censos Agropecuários do IBGE (JONES, 1987). Paulo Yokota apresenta, curiosamente, dados semelhantes, ao se referir às áreas discriminadas pelo INCRA: “Desde a criação do Estatuto da Terra o Brasil já discriminou 115 milhões de hectares, o que significa cerca de um terço da área de jurisdição Federal, sendo mais de 70 milhões de hectares só no Governo João Figueiredo. Desta área, mais de 35 milhões de hectares localizam-se na região Centro-Oeste, preparando uma firme base documental para a expansão agropecuária.” (op. cit.. p. 3. Grifos nossos). Como se verá no próximo capítulo, estes dados são coerentes com a expansão das áreas novas incorporadas ao patrimônio privado no período 1960 a 1980. 328 Tratam-se de cálculos feitos pelo autor com base nos Censos. Estes dados são apresentados de forma detalhada no capítulo 5 adiante. Parte desses dados foram apresentados na Dissertação de Mestrado do autor (JONES: 1987). 329 No documento “Posição da CONTAG sobre a Política Fundiária”, esta questão é levantada nos seguintes termos: “Recentemente, o Presidente da República e o Ministro Extraordinário para Assuntos Fundiários declararam a imprensa que o Governo estava executando o Estatuto da Terra, tendo titulado, desde 1964, cerca de 31 milhões de hectares, área correspondente ao estado do Rio Grande do Sul. Todavia não esclareceu quantos desses 31 milhões de hectares foram titulados para as grandes propriedades e quantos foram destinados aos trabalhadores rurais (...) Estamos convencidos de que foram os latifundiários os grandes beneficiários dessa titulação” (CONTAG, 1984, p. 8. Ver também, JONES, 1987, p.180). Ver o capítulo 5, deste trabalho, onde esses dados são cuidadosamente estudados.

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a) O imóvel rural, qualquer que seja sua dimensão, cujas características recomendem, sob o ponto de vista técnico e econômico, a exploração florestal racionalmente realizada, mediante planejamento adequado.” 330

O curioso é que o art. 4o refere-se às definições gerais, inclusive, de Latifúndio (ver, item “V” deste artigo). Mas insere um parágrafo único, após ter definido o que é latifúndio, para também definir o que “não se considera latifúndio”. Não que se queira aqui fazer uma análise tendenciosa do Estatuto da Terra, mas, realmente, é curioso esta reafirmação pelo oposto. Alhures, neste estudo, já se fez referência às exceções abertas pelas normas jurídicas.

A mesma salvaguarda às grandes áreas é assegurada no parágrafo 3o, alínea “c” do artigo 19 do Estatuto da Terra, onde se pode ler:

“ 3o Salvo por motivo de utilidade pública, estão isentos de desapropriação:

(...) c) os imóveis que, embora não classificados como empresas

rurais situados fora da área prioritária de Reforma Agrária, tiverem aprovados pelo IBRA, e em execução, projetos que, em prazos determinados o elevem àquela categoria.” 331

Veja-se que esta norma refere-se aos imóveis que se subsumem efetivamente na definição de latifúndios. Basta que apresentem projeto ao IBRA para se tornarem isentos da desapropriação por interesse social para fins de Reforma Agrária. Veja-se, igualmente, que, ao ficarem fora das “áreas prioritárias de Reforma Agrária” já teriam, em princípio, a segurança de não correrem o risco deste tipo de desapropriação; apesar disso, assegurou-se-lhes mais esta salvaguarda. Com relação ao ITR, da mesma forma, bastava a apresentação de Projeto para ter o imposto ou reduzido em até 90%, ou por um prazo de carência de três anos (art. 50, 5o e 12 da Lei 4.504, de 30 de novembro de 1964).

Quanto ao minifúndio, este não teria, por suposto do modelo econômico, nenhuma destas possibilidades, dada a limitação “endógena”, representada pela sua diminuta dimensão territorial que, sequer, seria suficiente para a manutenção de uma família de trabalhadores rurais. Essa questão é colocada nos seguintes termos na Mensagem 33:

“Essa distorção fundiária pode ser ainda avaliada pelo aumento da percentagem da área ocupada pelos estabelecimentos rurais que se enquadram nos extremos das classes de área. Dados referentes ao último período intercensitário revelam, na verdade, um inconveniente aumento da ocupação de área tanto no que tange às propriedades com área superior a 10.000 hectares,

330 Lei 4.504, de 30 de novembro de 1964 (BRASIL. Congresso Nacional. Brasília: 1964. Grifos nossos). 331 Lei 4.504, citada.

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como nos estabelecimentos com superfícies inferiores a 10 hectares. “Particularmente com relação a estes últimos, o aumento verificado - mais de 76% - identifica uma inconveniente anomalia estrutural que cabe a uma Reforma Agrária corrigir.”

“Corrigir”, na linguagem do modelo de desenvolvimento rural em pauta, quer dizer eliminar.

Isto, com certeza, não significava, no contexto da estratégia de desenvolvimento, implícita no projeto de Política Fundiária do Governo na época, que as áreas dos minifúndios seriam ampliadas. Pelo contrário, significava, claramente, que ele deveria ceder espaço para a formação empresas familiares, o que é uma outra coisa completamente diferente. Os dados que evidenciam a sua redução tanto em termos de número, quanto de área média332 no período entre 1960 e 1980 são a prova eloqüente deste fato.

Por outro lado, a Mensagem 33, faz clara referência no sentido da manutenção e do reconhecimento da relevância das grandes propriedades, transformadas em empresas rurais, que seriam incentivadas. Esta referência era coerente com a política de incentivo ao desenvolvimento da produtividade do trabalho agrícola, fundado na iniciativa privada, como fica claro no seguinte trecho da Mensagem:

“A extrema variação de situações regionais no Brasil impõe entretanto que não se criem restrições à manutenção e formação de grandes empresas rurais em áreas, onde a pressão demográfica é moderada e onde a natureza do solo ou o tipo de cultivo tornem tecnicamente aconselhável a exploração em grandes unidades desde que garantidos os princípios de justiça social e o uso adequado da terra com alto índice de produtividade. O projeto333 anexo não interfere nem se contrapõe às empresas rurais existentes ou a serem criadas; antes as reconhece como legítimas formas de exploração da terra, dando-lhes o merecido relevo, dentro da definição do inciso V do art. 4o, e propiciando-lhe ainda as numerosas medidas preconizadas no título relativo à Política de Desenvolvimento Rural.” 334

Este trecho da Mensagem 33 deixa claro o sentido atribuído pelo Projeto do Governo à solução do problema agrário. Não omite, sequer, a possibilidade, efetivamente aberta, para a promoção de uma política de formação de grandes propriedades, por suposto, empresariais, nas regiões “onde a pressão demográfica é moderada e onde a natureza do solo ou o tipo de cultivo tornem tecnicamente aconselhável”. Ou seja, estava efetivamente assegurada a alternativa para a implementação de grandes concessões ou “vendas” de terras na Amazônia, no Centro 332 Ver Quadro 2.C (anexo 2). 333 Isto é, a Lei 4.504, de 30 de novembro de 1964, que dispõe sobre Estatuto da Terra e dá outras providências. 334 Mensagem 33 (Loc. cit. Grifos nossos).

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Oeste, etc., por suposto mediante a implantação de grandes empresas agropecuárias. O problema não está, efetivamente, na proposição da diretriz, de se implementar ou incentivar a estruturação de empresas agropecuárias eficientes, independentemente de seus respectivos tamanhos físicos, mas na suposição apriorística de que tais empresas deveriam ser estruturadas sobre grandes áreas, especialmente nas regiões de “baixa densidade populacional”.

Este fato, sim, é que levanta suspeita com relação ao Projeto de Estatuto da Terra do Governo Castelo Branco. Parece que mais uma vez se está diante do mesmo projeto dos “grandes posseiros” e sesmeiros da década de 1840, ou seja, dos latifundiários e especuladores. Os dados sobre áreas novas, que são analisados no capítulo seguinte, evidenciam os resultados implicados por esta diretriz.

Paulo Yokota, discursando sobre a região Centro-Oeste, ao defender com clareza cristalina esta “idéia força” do Estatuto da Terra, procura, inclusive justificá-la “teoricamente” nos seguintes termos:

“Registra-se que a disseminação de grandes propriedades na região Centro-Oeste, com base nos incentivos fiscais, antes mesmo da multiplicação dos meios de comunicação, não pode ser considerada como uma tendência anormal. A própria teoria da localização, com comprovações empíricas (sic) indica a tendência à instalação das grandes propriedades mais distantes dos principais centros do mercado nacional ou pontos de deslocamento para o mercado internacional. Anormal seria a multiplicação de grandes propriedades nos arredores dos maiores centros urbanos.”335

O problema é que esta possibilidade representou, efetivamente, a abertura para a reprodução do latifúndio e da concentração fundiária em vastas áreas de terras devolutas, tornando ainda mais grave a situação da excludência social e da violência no campo, inclusive, sem a pressuposta contrapartida da formação de empresas agropecuárias de alta produtividade.

Veja-se que este posicionamento de Política Fundiária do Governo indica um sentido contrário, em termos de tratamento, ao que é definido para o minifúndio. Como se afirmou acima, essa diferença no tratamento do problema de um e de outro casos, era perfeitamente coerente com o modelo de desenvolvimento agrícola proposto. O vetor do modelo de desenvolvimento defendido pelo Governo, era assegurar a eficiência econômica na alocação de recursos na agricultura. Entre estes recursos, a própria terra, que deveria cumprir uma “função social, o que, por suposto, necessariamente implicava em possuir uma dimensão mínima de área para suportar esta condição e tornar viáveis outros investimentos. Isto, quer dizer que, por não possuir, endogenamente, esta possibilidade, o minifúndio era, por definição, descartado. A par dessa condição prévia, apenas seria possível superar os supostos bloqueios ao desenvolvimento, pelo incentivo à iniciativa privada e à concorrência, no setor agrícola. Nesses parâmetros da economia de mercado é que se fundava o princípio da “igualdade de oportunidades no acesso à

335 Op. cit. Grifos nossos.

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terra para todos”. O sentido liberal do Projeto, inclusive assegurado no Capítulo da Constituição Federal referente à ordem econômica.

De qualquer maneira, a tendência exacerbada à defesa da manutenção e incentivo à formação de grandes propriedades rurais, especialmente nas regiões de pouca densidade populacional, não encontra maiores justificativas, considerando-se o caráter de desenvolvimento capitalista que, supostamente, subjazia ao projeto. Parece, neste sentido e contexto, portanto, muito mais um projeto latifundiário para a subordinação do desenvolvimento do capitalismo336 aos seus interesses agrários, por mais que isto pareça um contra-senso. Trata-se, efetivamente, de uma contradição. Como foi analisado no capítulo 2, a tentativa de 1850, fundada na teoria da colonização sistemática de Wakefield, sofreu o mesmo desvio que, aparentemente, volta a tentar insinuar-se com o modelo de desenvolvimento econômico e de superação da pobreza rural, tal como proposto e viabilizado pelos governos militares após assumirem o poder em 1964.

Neste contexto e sentido, a solução defendida era a promoção da modernização do setor agrícola, que, por suposto, implicaria, uma melhor e mais eficiente “alocação de recursos e de fatores econômicos” na agricultura, em particular, e uma nova dinâmica na absorção e aproveitamento da mão-de-obra na agricultura e do emprego no meio rural. Em conseqüência ter-se-iam efeitos dinâmicos nas atividades industriais, em decorrência da pressuposta ampliação do mercado interno, pela incorporação do setor agrícola e da sociedade rural, tanto à rede de consumo produtivo, como de bens de salários. Desta forma, e indiretamente, seria promovida a otimização do emprego, pela via da integração intersetorial, exigida, segundo os teóricos do modelo, pelo novo estágio de desenvolvimento da economia nacional, o que, inclusive, poderia implicar em uma nova estruturação para o mercado de terras. Esta problemática é colocada nos seguintes termos na Mensagem 33:

“O problema agrava-se agudamente com a crescente industrialização do País e com a concentração populacional nos grandes centros urbanos. Toda essa população absorvida no trabalho urbano cria exigências cada vez maiores de suprimento de alimentos, demandando uma organização mais sistematizada de sua produção, transporte e distribuição. Em contraposição, o crescimento da produção industrial gera a necessidade de alargamento do mercado consumidor, ou seja, a incorporação de novas áreas da população ao consumo dos produtos industriais, o que se obterá pela elevação dos

336Referindo-se à conjuntura da década de 40 do século passado, quando se desenvolveu o debate parlamentar que precedeu a promulgação da Lei 601 de 1850, Murilo de Carvalho conclui dizendo que, “mesmo a modernização conservadora ao estilo prussiano, esboçada em 1843 e em 1850, não se verificaria. Faltariam alguns ingredientes básicos: do lado da sociedade os barões do aço se unirem aos barões da cevada; do lado do Estado, um Exército ao mesmo tempo reformista e confiável à grande propriedade, capaz de garantir pelo militarismo a implantação das reformas.”(CARVALHO, Op. cit. p. 54. Grifos nossos). A imaginar-se, por analogia, a hipótese acima, levantada por Murilo de Carvalho, para o contexto de 1964, pode-se supor que o modelo, então proposto, a sair vitorioso, pelo menos no que toca ao desenvolvimento da agricultura, estariam os mentores da política fundiária e do desenvolvimento rural de 1964, optando pela utilização de uma via “ultra-prussiana” para o desenvolvimento do capitalismo na agricultura brasileira.

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padrões econômicos da população rural, facultando-lhe poder aquisitivo para acesso aos produtos industrializados. A interdependência entre campo e o meio urbano e industrial é contingência do próprio desenvolvimento econômico do País e essa interdependência traduz-se nos seguintes aspectos fundamentais do processo de crescimento e integração nacionais, dando a Política de Desenvolvimento Rural várias e insubstituíveis atribuições.”337

Neste sentido, fica claro que o parâmetro fundamental seria a incorporação do progresso técnico à agricultura, por um lado e, por outro, à implementação de instrumentos de política agrícola, como, por exemplo, o crédito rural subsidiado, voltado para o financiamento da produção (tanto de custeio como de investimentos), o benefeciamento, a estocagem e a comercialização dos produtos agropecuários. No contexto de um modelo desta natureza, a reforma agrária “distributivista” era, efetivamente, uma ação complementar, não prioritária. Era concebida enquanto um solução “social”, ou seja, uma espécie de “mal necessário”.

Isto significa que a pequena produção338, embora não tendo maior relevância econômica - dada a impossibilidade, pressuposta no modelo, de gerar os excedentes necessários à dinamização da economia como um todo - entretanto, em determinadas situações bastante específicas, possuía relevância “social”. Em particular, face às necessidades imediatas de minorar a miséria rural, ou para apoiar os processos de transferência de populações de áreas prioritárias de desenvolvimento, como, por exemplo, nos casos de construção de barragens, hidro-elétricas, vias de comunicação etc. Finalmente, no outro extremo do caso brasileiro da época, quando este procedimento fosse necessário para amortecer as tensões sociais, no sentido de evitar-se implicações políticas “indesejáveis”.

Assim, a prioridade na solução do “problema agrário” deveria recair, como de fato recaiu, na implementação da política de desenvolvimento rural, sendo a reforma agrária “distributivista” reduzida aos limites estritamente definidos pelos projetos de colonização, em particular em áreas de grande incidência de posseiros, arrendatários e, sobretudo de tensões e conflitos sociais. Ou seja, o pressuposto continuava sendo o da existência de uma situação dual na economia brasileira, donde inclusive, a ênfase, por um lado, em duas formas de soluções, uma fundada nos instrumentos de desenvolvimento econômico e outra na “colonização oficial” e reforma agrária “distributivista”. Neste contexto, é idealizado o grande esforço na integração nacional, consagrado no PIN - Programa de Integração Nacional - em 1970.

A alternativa prioritária, proposta para a superação da pobreza rural, neste contexto, era “o aumento da produção, da produtividade e da renda líquida do 337 Mensagem 33 (Loc. cit.). Grifos nossos. 338 Um excelente estudo acerca “das potencialidades do pequeno produtor na oferta de produtos agrícolas”, e suas relações na economia brasileira, foi realizado por Maurinho Luiz dos Santos (SANTOS, M.L. 1993). Outro estudo igualmente importante, referente especificamente, ao problema dos “condicionantes da modernização” da pequena produção, foi feito por Sebastião Teixeira Gomes (GOMES, 1986).

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produtor”, como pode ser lido em quase todos os documentos operacionais das instituições governamentais ligadas ao setor agrícola do período que se seguiu à implementação desse modelo de desenvolvimento rural. Portanto, o modelo era coerente, em sua totalidade, com a solução do problema rural, tal como apresentada pelo diagnóstico do Governo e tendo em consideração a conjuntura da época.

Neste contexto, a distribuição de terras para a formação de pequenas propriedades, na medida em que estas não tinham (ou tinham de forma muito limitada), por definição, a possibilidade de responder, em termos da oferta de excedentes para o mercado, de forma relevante, teria que ser, necessariamente, limitada ao mínimo imprescindível para amortecer ou conter as tensões. E é exatamente isto que fica claro na definição das áreas prioritárias para fins de reforma agrária. Os demais problemas da pobreza rural, neste modelo, seriam resolvidos efetivamente, na medida em que a economia se modernizasse ampliando a produção e a produtividade agrícolas e a sua capacidade de dinamizar os processos de absorção de mão-de-obra e geração de renda no campo. Mas, também, no setor industrial ou agro-industrial. Por isso a Mensagem 33 se refere ao fato de que tinha um objetivo mais amplo e ambicioso, sendo uma lei de desenvolvimento rural.339

Neste contexto, a reforma agrária, tal como proposta, tinha, de fato, apenas o estatuto de objetivo complementar ao processo de desenvolvimento rural. O fundamental era a promoção do desenvolvimento, assegurado pelos instrumentos de política agrícola. É neste sentido que se está, aqui, afirmando que o Regime Militar implementou, efetivamente, o seu (e não outro) projeto de reforma agrária. E sobretudo, implementou, com veemência, o seu projeto de desenvolvimento rural.

Todas essas questões estão claramente colocadas na Mensagem 33 e rigorosamente regulamentadas no Estatuto da Terra. Portanto, neste sentido, não se pode argüir que o Governo apresentou um determinado Projeto de Reforma Agrária na Lei 4.504/64, e executou outro. Ou que não executou nenhum Projeto. O que, de fato, se pode afirmar, é que a Política Fundiária do período pós-1964, fracassou contundentemente, em termos de sua alegada meta de cumprir o imperativo constitucional de “promover a justa distribuição da propriedade, com igualdade de oportunidade para todos”. Neste caso, entretanto, a crítica situa-se noutro patamar: refere-se ao fato de que a Política Fundiária dos Governos Militares foi, efetivamente, a continuidade, por outros meios, do mesmo processo de apropriação e legitimação privilegiadas. Por isto a concentração da propriedade fundiária persistiu e agudizou-se, assumindo novo sentido no contexto do período. Desta forma, é procedente a seguinte crítica realizada pela CONTAG:

“Hoje, não se trata apenas das dificuldades de acesso à terra em função de uma distribuição historicamente desigual de propriedade e do zelo dos latifundiários para com a integridade

339 Veja a Mensagem no 33 (Loc. cit.).

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de propriedades que, mesmo improdutivas, consideram ‘suas’ por tradição. “Hoje, têm os trabalhadores de enfrentar toda uma política agrária cuja tônica tem sido a separação do trabalhador da terra, através da penalização do minifúndio e do apoio, quase sem limites, à grande propriedade. A intervenção governamental no campo cresceu nesses 20 anos, não no sentido de atender às necessidades dos trabalhadores rurais de que falava a Mensagem 33 que encaminhou o Estatuto da Terra ao Congresso Nacional, mas sim no de favorecer a grande propriedade, através de isenções e subsídios, de suporte financeiro a projetos anti-sociais ou, mais diretamente, de grandes obras públicas que se tornaram, elas próprias, motivo de desassossego para a população trabalhadora rural. “(...) A grande propriedade, que já se sabia um aliado precioso do autoritarismo político, tornou-se um suporte econômico fundamental à implementação de uma política econômica... de favorecimento irrestrito ao grande capital.”340

Esta postura oficial era seqüência normal, como contra-propositura, a um processo de feições muito interessantes, que nos planos ideológico e político se foi configurando nos primeiros anos da década de 1960. Uma tendência de pensamento-ação que reuniu governadores estaduais, setores da Igreja Católica, intelectuais e uma parcela importante da opinião pública urbana em grandes centros. Aspásia de Alcântara Camargo enfatizou a aliança que Jânio Quadros procurou estabelecer com governadores, consubstanciada

“em ajuda financeira e administrativa através das ‘reuniões de governadores’ que tinham como objetivo reforçar o desenvolvimento regional e reduzir os desequilíbrios internos (em oposição à “severidade juscelinista” que se nutria de reforço da órbita federal) ... no sentido de neutralizar o clientelismo e o tradicionalismo. Nesse particular é bem sugestiva a amarga hostilidade que o presidente retrospectivamente revela contra o DNOCS e os latifúndios. ... Em contrapartida, as alianças no Nordeste parecem tecer-se na órbita dos executivos modernizantes - como Cid Sampaio, Pedro Gondim e outros, bafejados por uma política de composição mais aberta com grupos até então excluídos, e comprometidos com transformações sociais na região.”341

Essa tendência mostra-se uma vez ainda na tentativa do governador de São Paulo, Carvalho Pinto, de reformar a estrutura agrária paulista com a Lei de Revisão Agrária (Lei Estadual no. 5944/60)342, de iniciativa de seu Governo, e que Caio Prado Júnior saudou como um válido sinal em defesa da Reforma Agrária. Não obstante, o contra-ataque das forças latifundiárias foi imediato e fulminante. Na avaliação de T.

340 CONTAG (1984, pp. 3-4. Grifos nossos). 341 CAMARGO, 1983, pp. 183-84). 342 Cf. A revisão agrária em São Paulo, separata de Agricultura em São Paulo, abril de 1961.

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Lynn Smith, essa tentativa não passou de mero protesto “que se perdeu sem eco no curso da história”, posto que a medida

“foi anulada em 1963 por uma emenda constitucional que proibiu aos Estados a tributação de um imposto geral sobre a propriedade, atribuindo, sem qualquer preparação, aos municípios.”343

Formara-se então, nos grandes centros urbanos, uma opinião pública favorável a teses de “democratização de estruturas arcaicas” no campo, a que, entre outros, Smith e Celso Furtado dão expressão. Furtado refere-se naquele momento às pré-condições revolucionárias no Nordeste, atribuindo-as a uma estrutura agrária caracterizada pelo bloqueio da mobilidade social - requisito de uma sociedade moderna de classes. Smith endossa as teses de um escritor católico conservador (Gustavo Corção) que, falando em 1961, faz entretanto, o mesmo diagnóstico da estrutura agrária: “baixo índice de mobilidade social vertical e alto grau de mobilidade geográfica” e diz ser uma das razões suficientes para uma reforma agrária no Brasil344. O texto de Smith é uma espécie de recensão dessas idéias generalizadas. Ele afirmava, em contra-ofensiva aos argumentos anti-reformistas que privilegiam terras totalmente inexploradas além-fronteira agrícola:

“Mesmo no Brasil, na Colômbia, na Bolívia, na Venezuela e nos outros países em que grande porção do território nacional ainda permanece por desbravar, uma reforma agrária genuína é, em grande parte um projeto que nada tem a ver com a ocupação de novas terras. Por isso cresce entre as técnicas de reforma a importância das medidas pelas quais o Estado torna a imitir-se nos direitos de propriedade de uma porção considerável das terras aráveis e das pastagens dentro de seus limites.”345

Smith refere-se a várias dessas medidas, como a não indenização em dinheiro e pelo valor comum (de mercado) da terra, a fixação de tetos à propriedade (ao seu tamanho), e a necessidade de uma agência pública destinada a comprar as terras onde elas se ofereçam no mercado para formar um fundo de terras e pressionar os preços de mercado pela oferta (voltada aos pequenos compradores).

Na citação a Corção, Smith endossa uma outra avaliação que se tornara lugar-comum nessa corrente de idéias: a altamente problemática “deficiência legal e técnica no registro dos títulos da propriedade territorial.”346 Inquinava-se a propriedade territorial no campo de fraudulenta e iníqua, posto que calcada no privilégio. No já citado estudo de Maria Aparecida Moraes da Silva, consta uma exemplificação dos

343 T.Lynn Smith. Organização rural. Problemas e soluções. São Paulo: Pioneira, 1971, p. 48 e nt. 344 Palestra de Gustavo Corção no simpósio sobre Reforma Agrária patrocinado pelo Instituto Brasileiro de Ação Democrática, citada em LYNN SMITH (1971, p. 55 e nt). 345 LYNN SMITH (1971, pp. 64-65). 346 Op. cit., p. 55.

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procedimentos e ações jurídico-políticas que conduzem a essa “deficiência legal e técnica.”

Portanto, outro tem de ser, necessariamente, o sentido da análise e sobretudo, da crítica à Política Fundiária implementada pelo Governo, especialmente no que se refere à ampliação da violência e da repressão aos movimentos sociais no campo e, sobretudo daquilo que, neste trabalho, se está denominando de grilagem especializada347. Neste âmbito específico, pode-se afirmar que o discurso de justiça social e de realização de uma reforma agrária “democrática” foi, efetivamente, contraditório com a prática da sua implementação no período dos governos militares. Que, ao contrário do que foi proposto e, sobretudo, o que é grave, contra as determinações explicitamente contidas nas diversas legislações, inclusive no próprio Estatuto da Terra, os direitos legalmente assegurados à multidão de pequenos posseiros que preenchiam as exigências de morada habitual e exploração efetiva, (assim como das populações indígenas) não foram respeitados, ao contrário; em verdadeira afronta a lei, inclusive e sobretudo, pelo próprio Estado. Neste caso, caracterizando a ilegitimidade e inconstitucionalidade de inúmeros atos das Autoridades Fundiárias do Governo, especialmente no que se referia aos processos de alienação, venda e concessão de terras públicas. Atos que, portanto, necessitam ser revistos, especialmente quanto a sua validade jurídica, aliás como preceituado pela Constituição de 1988 348.

Neste sentido, a Política Fundiária do Estado apenas “modernizou” o processo de apropriação e legitimação privilegiadas, ampliando-o a uma escala sem precedentes na História do Brasil, tanto em termos da área envolvida (em torno de 114.000.000 de hectares), como pela violência brutal exercida pelo próprio Estado através de seus Órgãos de repressão e de “Ordem Política e Social”, contra os posseiros e trabalhadores rurais, então reduzidos à condição de “inimigos internos” ou de “agentes do comunismo internacional”. Estes fatos estão na base do processo de militarização da questão agrária349.

A segunda dimensão do diagnóstico apresentado na Mensagem 33, como se anotou acima, referia-se a forma como o Governo Goulart vinha se ocupando do problema agrário. Neste contexto, o diagnóstico transfigura-se abertamente num genérico e confuso discurso ideológico, aparentemente com o duplo objetivo, de colocar a relevância do problema, por um lado, e justificar o golpe contra o Governo Goulart, por outro.

Partindo de algumas estatísticas gerais a respeito da desigualdade social no campo e da concentração exacerbada da propriedade rural, apontadas como raízes dos profundos e graves problemas enfrentados pelo País no seu processo de

347 Ver a respeito o próximo capítulo, a CPI do Sistema Fundiário (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1979), IANNI (1979(a), especialmente o capítulo 5). 348 Ver a este respeito as referências feitas por GUEDES PINTO (1995). 349 Ver a respeito da militarização da questão agrária o excelente estudo de José de Souza Martins (MARTINS, 1985).

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desenvolvimento, a análise apresentada na Mensagem 33, desvia-se para acusações ao Governo Goulart, afirmando que este, ao invés de enfrentar “realisticamente” os problemas agrários, propondo soluções adequadas, utilizava-se da situação para promover a subversão da ordem no meio rural, como se pode verificar pelo seguinte trecho do documento:

“(...) A necessidade de se dar à terra uma nova regulamentação, modificando-se a estrutura agrária do País, é de si mesma evidente, ante os anseios de reforma e justiça social de legiões de assalariados, parceiros, arrendatários, ocupantes e posseiros que não vislumbram, nas condições atualmente vigentes, qualquer perspectiva de se tornarem proprietários da terra que cultivam. A ela se soma, entretanto, no sentido de acentuar-lhe a urgência, a exasperação das tensões sociais criadas, quer pelo inadequado atendimento das exigências normais do meio agrário, como assistência técnica e financiamentos, quer pela proposital inquietação, que para fins políticos subalternos, o Governo anterior propagou pelas áreas rurais do País, contribuindo para desorganizar o sistema de produção agrícola existente, sem o substituir por outro mais adequado. “Ao invés de dar ao problema uma solução de direção e construção, a ação governamental, só se exerceu na exasperação das tensões, no agravamento das contradições do sistema rural brasileiro, levando inquietação a toda a parte (...).”350

Trata-se, efetivamente, como se pode verificar, de um discurso simplesmente ideológico, sem maior relevância, enquanto análise, dos problemas enfrentados pelo Governo Goulart e, menos ainda, das formas propostas, por este, para enfrentar o problema agrário. Veja-se, por exemplo, que a premissa básica deste parágrafo, “a necessidade de se dar a terra uma nova regulamentação”, que efetivamente era da maior relevância, já vinha sendo proposta desde os anos que se seguiram ao fracasso do Regulamento da Lei 601 de 1850, tendo sido reiteradas vezes propostas em 1912351, 1913352 1915353 e 1946354, como já analisado no segundo e no terceiro capítulos deste estudo.

Pode-se afirmar, ao analisar a argumentação exposta na Mensagem 33 a este respeito, portanto, o seguinte: os dados apresentados acerca da concentração da propriedade rural e da exasperação dos conflitos no campo eram verdadeiros, mas nada tinha a ver com a gestão João Goulart. Portanto, a imputação, ao Governo Constitucional deposto, de estar promovendo a inquietação social e a subversão da

350 Mensagem 33 (Loc. cit. Grifos nossos). 351 Decreto 2.543-A, de 5 de janeiro de 1912. (Loc. cit.). 352 Decreto 10.105, de 5 de março de 1913. (Loc. cit.). 353 Decreto 11.485, de 10 de fevereiro de 1915. 354 Decreto-lei 9.760, de 5 de setembro de 1946. (BRASIL. Presidência da República. Rio de Janeiro: 1946.).

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ordem no campo e na cidade, realmente soa como mera justificativa da conspiração e do Golpe de Estado.

No que se referia à acusação de falta de proposição de alternativas à solução dos problemas Agrários, pelo Governo João Goulart, a afirmação é efetivamente falaciosa e não se sustenta empiricamente: Além da estruturação da SUPRA, o Governo Goulart havia decretado, em 13 de março de 1964 a desapropriação, para fins de reforma agrária, da faixa de 10 quilômetros ao longo das margens das rodovias, ferrovias e açudes de responsabilidade da União e, em 15 do mesmo mês de março, em Mensagem de abertura da Legislatura de 1964, propunha uma série de outras medidas necessárias ao equacionamento de diversos problemas sociais, entre os quais, um dos mais importantes, senão o mais importante, referia-se a Reforma Agrária.

Antes disto, em 1962, com a promulgação da Lei 4.132, de 10 de setembro, era instituído e regulamentado o instituto jurídico da desapropriação por interesse social, “visando a promover a justa distribuição da propriedade ou condicionar o seu uso ao bem estar social.”355

Havia, inclusive, na mensagem de abertura da legislatura referida acima, o Governo Goulart, proposto mudanças356 na Constituição de 1946, em particular visando a modificação do dispositivo que exigia a indenização prévia e em dinheiro para a desapropriação por interesse social e utilidade pública. Quinze dias depois, a conspiração militar interrompia estas medidas, depondo o Presidente da República.

Como se sabe, todas essas medidas propostas pelo Governo deposto, foram ulteriormente apresentadas, pelo próprio Regime Militar, sendo que, no caso dos modestos 10 quilômetros pretendidos pelo Governo Goulart, o Governo Militar estendeu, em 1971, para 100 quilômetros de cada lado das rodovias federais construídas ou projetadas para a área da Amazônia Legal357.

Portanto, os argumentos contra o Governo Constitucional do Presidente João Goulart, incluídos na Mensagem 33, expunham claramente, a face ideológica da avaliação358. Era, de fato, uma tentativa de justificar a Conspiração contra o Presidente João Goulart, por um lado e, por outro, de lançar as primeiras sementes para a violenta repressão que imediatamente seria deflagrada no campo (e também nas cidades).

Ao mesmo tempo funcionava como uma introdução justificadora, do ponto de vista do planejamento, para o amplo processo de privatização de terras devolutas e da

355 Vide, RIBEIRO (1984, p. 9): “Esse instrumento jurídico (Desapropriação por Interesse Social) foi instituído com a Lei no 4.132, de 10 de setembro de 1962, visando a promover a justa distribuição da propriedade ou condicionar o seu uso ao bem-estar social”. Convém registrar que o Dr. Cláudio José Ribeiro, era Diretor do Departamento de Desenvolvimento Rural do INCRA, no Governo do General João Figueiredo. 356 Que foram, depois, reeditadas com a Emenda Constitucional no 10, de 9 de novembro de 1964, e que foi apresentada pelos tecnocratas e juristas do Governo Castelo Branco, como resultado de “exaustivos estudos” de um Grupo de Trabalho especialmente criado com a finalidade de propor um Projeto Agrário. 357 Ver. Decreto-lei 1.164, de 1o de abril de 1971, “intróito”.( BRASIL. Presidência da República. Brasília: 1971.). 358 Ver a respeito desses fatos, MINC (1985), GUEDES PINTO (1995), CONTAG (1984), SINATORA e outros (1985)

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concentração da propriedade territorial rural, fundados num determinado modelo de desenvolvimento econômico de cunho liberal e, portanto, na “igualdade formal de oportunidades359” por um lado, e na “concorrência” efetiva entre desiguais, em última instância.

3. Instrumentalização Jurídica e Política Fundiária de Governo

3.1. O Estatuto da Terra e Legislações Anteriores

Como se estudou nos capítulos anteriores, desde 1854 vêm, os diferentes governos brasileiros, tentando disciplinar, administrativa e juridicamente, o processo de acesso às terras públicas no Brasil: na verdade, a sua privatização. O objetivo das diferentes tentativas reguladoras sempre foi a de buscar conter e combater a ocupação ilegítima e, sobretudo, especulativa, de grandes áreas de terras públicas. É neste sentido que todas as diversas normas reguladoras do acesso e legitimação de posses e propriedades foram propostas. Entretanto, sempre esbarraram na oposição sistemática dos grandes detentores de terras, especuladores e posseiros, ao nível concreto da sua implementação prática.

A última tentativa, anterior ao Estatuto da Terra, de novembro de 1964, neste sentido, foi, como discutido no capítulo 3, o Decreto-lei360 no 9.760, de 1946 que, entretanto, continuava limitado às terras devolutas federais. Apesar do rigor formalmente estabelecido neste Decreto-lei, como se pode observar pelos artigos abaixo mencionados, os processos discriminatórios e de arrecadação das terras públicas federais continuaram a ser protelados quando não, efetivamente inviabilizados, pelo grandes posseiros e especuladores de terras:

“Art.61. O SPU exigirá de todo aquele que estiver ocupando imóvel presumivelmente pertencente à União, que lhe apresente os documentos e títulos comprobatórios de seus direitos sobre os mesmos”.

(...) “Art. 63. Não exibidos os documentos na forma prevista no art. 61, o SPU declarará irregular a situação do ocupante, e, imediatamente, providenciará no sentido de recuperar a União a posse do imóvel esbulhado.”361

Outras tentativas foram realizadas, desde então, para fazer frente aos problemas; entretanto, todas sem resultados concretos ao nível de campo. Foi assim, por exemplo, com a criação do INIC - Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - em 1954, instituído pela Lei 2.163 de 5 de janeiro, que, entretanto, tinha como objetivos a 359 Isto é, o acesso à propriedade rural estava livremente assegurado à todos, entretanto, subordinado ao princípio da liberdade de competição, ou seja, ao mercado. 360 Em 1956, a Lei 3.081, procurou, mais uma vez, disciplinar o processo discriminatório de terras federais, estaduais e municipais, entretanto não obtendo êxito em face da resistência encontrada, por um lado; e da complexidade estabelecida para o referido processo, por outro. 361 Decreto-lei no 9.760, de 5.09.1946 (Loc. cit.).

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assistência e encaminhamento de trabalhadores migrantes nacionais e estrangeiros para as diversas regiões, a sua seleção, orientação e estabelecimento em colônias agrícolas e, finalmente, a coordenação de um programa nacional de colonização. Um ano depois, em 1955, pela Lei 2.613, de 23 de setembro, foi instituído o SSR - Serviço Social Rural - com objetivo genérico de atender “as necessidades sociais dos homens do campo”. Estes órgãos pouco puderam realizar diante das resistências de diversas ordens encontradas, sobretudo no que se referia ao acesso à áreas em condições adequadas para a instalação de seus projetos. As terras devolutas para as finalidades de colonização e assentamento, geralmente não reuniam as mínimas possibilidades de assegurar o sucesso destes, sobretudo pela suas condições de localização: as melhores terras continuavam sob o controle efetivo de grupos privilegiados, profundamente arraigados na estrutura social rural e, em particular, nas burocracias encarregadas da implementação das políticas de terra, agrícola e de colonização.

Em 1962, já no período inicial da crise do Governo João Goulart, estes órgãos são substituídos pela SUPRA - Superintendência da Reforma Agrária - que tinha, institucionalmente, o objetivo mais ambicioso de elaborar e executar um Programa de Reforma Agrária. A SUPRA, como se registrou acima, teve vida curta, ao ter sido o Governo João Goulart, surpreendido pelo movimento conspiratório de 1964. Aliás, um dos motivos de justificação ideológica da conspiração seria a própria atuação desta Superintendência, considerada como de caráter estritamente ideológico e de promoção da inquietação social no campo.

Tendo-se em consideração todo esse amplo conjunto de medidas normativas, tanto no campo jurídico - com as leis - quanto administrativos - pelo conjunto de decretos, portarias, instruções, etc. dos Órgãos do Executivo - o que se pode afirmar a respeito do Estatuto da Terra é que, ao contrário da ampla propaganda oficial de que a Lei 4.504, de 30 de novembro de 1964, seria uma construção legislativa avançada, elaborada depois de minuciosos e sistemáticos estudos por um específico grupo de especialistas, na verdade esta Lei representa, como sempre foi da tradição legislativa portuguesa, uma consolidação das diversas normas que a antecederam, a começar pela Lei 601 de 1850 e fechando, com o Decreto-lei 9.760, de 1946.

O fato de ter sido uma consolidação de normas anteriores362, diga-se, não constitui, em si mesmo nenhum demérito. Mas este fato necessita ser colocado com

362 Como foi visto nos capítulos anteriores, desde 1850, muitas normas foram propostas para tentar por termo aos processos de apossamento ilegítimo de terras devolutas do país. Assim, os conceitos de discriminação e arrecadação de terras devolutas, o próprio conceito de terras devolutas, o de legitimação de posses, de ratificação de títulos legítimos de propriedade, de colonização etc., todos estes conceitos consagrados no Estatuto da Terra, já se encontravam claramente postos e regulamentados na Lei 601 de 1850 e respectivo Regulamento de 1854. O mesmo pode-se dizer com relação aos processos de registros públicos, aperfeiçoados, quer pelo Decreto 415-B, de 31 de maio de 1890, que instituiu o Registro Torrens, quer pelo Próprio Código Civil de 1916. Todos esses construtos jurídicos e normativos são reiteradamente aperfeiçoados pelas normas e decretos Federais, desde 1912 até 1946, como se viu no capítulo 3. Até mesmo com relação à integração e desenvolvimento da Amazônia, o Decreto 2.543, de 5 de janeiro de 1912, como foi visto, antecipou medidas similares às, depois, proclamadas, pelos dirigentes dos Governos Militares, como criações de sua “lavra”, como o Estatuto da Terra e as medidas preconizadas no PIN - Programa de Integração Nacional. (Ver a respeito os capítulos 2, 3 e 5 deste trabalho).

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objetividade para se evitar a “legitimação” do “bias” que passou a ser uma característica da tecnoburocracia que se instalara no período, de pretender apresentar todos os seus projetos e iniciativas - seja no campo legislativo como em qualquer outro - como construções originais e avançadas, geralmente, omitindo as fontes onde beberam determinadas idéias, conceitos e propostas e, mais que isto, tentando fazer “tabula rasa” das experiências anteriores, quando não, simplesmente, de negar a sua existência.

Com isso não se pretende desqualificar o Estatuto da Terra e, menos ainda, desconhecer que o mesmo tenha oferecido a sua contribuição específica ao tratamento da questão fundiária. Mas trata-se de localizar a Lei 4.504, de 1964 no seu lugar adequado, no conjunto da construção histórica do ordenamento jurídico brasileiro.

Acima já se fez referência à sua relevância pelo simples fato de representar a regulamentação do preceito Constitucional (de 1946), de fazer-se cumprir a função social da propriedade e promover a justa distribuição da mesma com igual oportunidade para todos. Sem esta regulamentação este imperativo constitucional era de fato, mas também de direito, uma proclamação vazia - porque impossível de ser viabilizado e avaliado legalmente. Assim, a Lei 4.504/64 criava, de direito, a possibilidade de o Executivo poder, efetivamente, implementar o processo de regularização fundiária e de privatização das terras públicas. Porque se tratava de privatizar as terras públicas para incorporá-las ao processo produtivo.

As formas como isto seria feito dependiam, efetivamente, das diretrizes de Política Econômica, ou seja, da opção, feita pelo Governo, por um determinado Projeto ou modelo de Desenvolvimento Econômico e Rural. Por isto mesmo não se pode separar o Estatuto da Terra da Mensagem 33, do General Castelo Branco.

Por outro lado, o Estatuto da Terra efetivamente realizou alguns avanços no campo normativo, especialmente ao elaborar alguns construtos, como o de módulo familiar, empresas rurais, latifúndio e minifúndio, de tal forma que, em certo sentido possibilitaria a sua avaliação em termos do preceito constitucional. Entretanto, como será abordado adiante, estes “construtos”, ao se fundarem, como aliás, não poderia ser de outra forma, em parâmetros arbitrários, necessariamente se prestariam a interpretações diversas. Neste sentido, poderiam ser utilizados tanto para promover como para impedir o acesso ou a legitimação a determinados tipos de propriedade rural. Os critérios, neste contexto, continuavam fortemente vinculados, por um lado, às prioridades definidas no modelo de desenvolvimento; e, ao nível dos casos concretos, às mediações das burocracias locais, fortemente influenciáveis, ainda mais em função do contexto de radicalidade ideológica e repressão que se instituiu, muito especialmente após 1968. Essa situação seria ainda mais agravada, com as sistemáticas exceções abertas na Lei e, sobretudo nos Decretos e atos do Executivo, como, por exemplo, no caso da definição de latifúndio e, no mesmo artigo, “do que não se considerava latifúndio”.

3.2. O Estatuto da Terra e a Política Fundiária

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O Estatuto da Terra propunha-se a ser uma “Lei de Desenvolvimento Rural”, fundamentando-se na Mensagem 33 do General Humberto de Alencar Castelo Branco. Exatamente para isto era fundamental estabelecer os critérios de acesso à propriedade rural legítima. Guedes Pinto refere à Lei 4.504/64 nos seguintes termos, buscando enfatizar o fato de que a mesma pretendia dar forma e regulamentação a este projeto de desenvolvimento, tal como formulado, em suas linhas fundamentais pela Mensagem 33 que a encaminhava à análise e aprovação pelo Congresso Nacional:

“Trata-se de texto longo (128 artigos), detalhista, abrangente, e deve-se dizer, bem elaborado. Na verdade, como dizia a Mensagem 33 que encaminhou o projeto ‘não se contenta o projeto em ser uma lei de reforma agrária. Visa também a modernização da política agrícola do País, tendo por isso mesmo objetivo mais amplo e ambicioso; é uma lei de Desenvolvimento Rural363.”

A persistir a confusão e incerteza jurídicas acerca da legitimidade da propriedade territorial, que vinham desde os primórdios da Independência, qualquer possibilidade de um projeto de desenvolvimento rural fundado nos pressupostos da economia de mercado capitalista, como o que se pretendia, seria profundamente dificultada. Os riscos embutidos nesta incerteza legal impunha, necessariamente, “custos adicionais” ao investimentos na agricultura ao perturbar de forma relevante o “mercado de terras” e de trabalho na agricultura364. Portanto, era necessário assegurar-se o acesso à propriedade territorial legítima, por um lado, e por outro, legitimar as ocupações existentes, discriminando as terras públicas da particulares. Além de se prover os instrumentos econômicos de apoio à produção agropecuária.

Curiosamente, tratava-se do mesmo problema enfrentado em 1850, que, como amplamente analisado no capítulo 2, havia sido permanente adiado, nunca tendo conseguido o Estado, apesar de seus inúmeros esforços legislativos e administrativos, equacioná-lo, em face da oposição sistemática da especulação latifundiária.

Entretanto, após 1964, o contexto era outro. Internamente, por um lado, o Golpe de Estado havia assegurado o poder de grupos comprometidos com um projeto econômico e político liberal, fortemente arraigado, tanto interna quanto externamente, fundado um determinado modelo de integração à economia capitalista Ocidental e ao mercado mundial. Por outro lado, o receio de que a pobreza rural servisse de estopim à deflagração de revoluções de caráter socializante colocava, para os grupos que integravam o bloco no poder, a necessidade de amenizar a pobreza rural, promovendo “reformas agrárias” específicas e limitadas365, buscando a formação de uma “camada

363 GUEDES PINTO. Op. cit., p. 12. Grifos nossos. 364 Ver J. Foweraker a respeito da relevância da dimensão jurídica para as relações de propriedade e de mercado na agricultura, especialmente o capítulo 4 “A história Legal da terra na fronteira e a questão da Autoridade dual.” (FOWERAKER, op. cit. , pp. 121-146). 365 Como muito bem registra Otávio Ianni, (1979), tratava-se da necessidade de “distribuir alguma terra, para não distribuir terra nenhuma” no sentido de promover uma ampla reforma da estrutura agrária.

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média rural” que, por suposto, funcionaria como uma barreira à penetração de tendências radicais e de “ideologias exóticas”. É neste contexto, característico da “Guerra Fria”, que se colocam os problemas rurais do ponto de vista do modelo defendido na época. E é neste contexto, igualmente, que se pode situar as propostas de Reforma Agrária de Punta Del Este, à qual se reportava, explicitamente, a Mensagem 33.

Assim sendo, toda a construção normativa do Estatuto da Terra estava objetivamente direcionada. Tratava-se de dar legitimidade a este determinado projeto de desenvolvimento rural e, dentro dele, de acesso à propriedade territorial. No caso do Brasil, os seculares problemas colocados pela simples ocupação de terras públicas pela via da posse, sem a necessária providência de legalização, impunha duas ordens de medidas por parte do Executivo. Por um lado, providenciar a legitimação das terras efetivamente em poder de particulares por título legítimo ou legitimável (as posses); e, por outro lado, arrecadar as terras públicas, as quais deveriam servir de base e sustentação ao projeto de desenvolvimento rural, podendo o Governo aliená-las conforme as diretrizes politicamente estabelecidas e as necessidades econômicas pressupostas no modelo.

É neste sentido que o Estatuto da Terra, ao regulamentar o preceito constitucional referido representava uma medida efetivamente da maior relevância. Entretanto, sua implementação, como se referiu acima, e como será visto no próximo capítulo, mais uma vez, será fortemente viezada no sentido de preservar os grandes e poderosos interesses (e, mesmo, os escusos), aliás, como foram reconhecidos pelas próprias autoridades do Executivo366, sobretudo os da grilagem especializada.

Indícios da influência destes interesses podem ser claramente detectados já no texto da Lei 4.504/64 e, mais ainda, no conjunto de atos normativos que a complementaram ou suplementaram, sobretudo, mas não apenas, após a implementação do PIN - Programa de Integração Nacional - em 1970, que implicou a ampliação, em escala sem precedentes, da especulação imobiliária, especialmente, na Amazônia Legal. Esclarecer estas questões é o objetivo específico deste tópico.

Já nas “disposições preliminares” (Título I)367, ao proceder, no Capítulo I, à formulação dos diferentes “princípios e definições” começam a se configurar, com clareza, os objetivos específicos e os princípios fundamentais que norteariam a sua consecução, na ótica proposta pelo Governo.

Nos parágrafos 1o e 2o do artigo primeiro do Estatuto da Terra são definidas - e, veja-se, de forma separada - as medidas concernentes à reforma agrária e à política agrícola. Ao serem assim formulados, indicam que se tratam de dois conjuntos distintos de ações a serem implementadas no contexto de um mesmo Projeto. Em sendo assim, ficam implícitas, como é normal em qualquer Plano de Governo, prioridades distintas,

366 Ver a respeito: YOKOTA (op. cit.); ZANATTA (op. cit.) e RIBEIRO (op. cit.). 367 Ver Lei 4.504, de 30 de novembro de 1964 ( BRASIL. Congresso Nacional. Brasília: 1964.).

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hierarquizadas. Estas, não podem ser apreendidas, como a aparência pode levar a crer, pela sua ordem na exposição do documento, mas pela ênfase que lhe é imputada no contexto do Projeto. Assim, embora a Reforma Agrária venha conceituada antes da Política Agrícola, isso não quer significar que a sua prioridade esteja assegurada em relação àquela. Na verdade, o problema neste caso, refere-se ao fato de que a “reforma agrária” é conceituada de forma qualificada: destina-se a “distribuição” da propriedade, de forma específica e localizada, objetivando promover a paz social, necessária à implementação do amplo projeto de desenvolvimento rural, no bojo do qual a variável fundamental é a geração de excedentes econômicos relevantes para o conjunto da economia nacional e fundado, não da pequena propriedade familiar, mas no aumento da produtividade, sobretudo em “médias” e grandes empresas agropecuárias.

Assim, reforma agrária passa a perseguir dois objetivos distintos e não necessariamente correlacionados ou, pelo menos, correlacionados de formas distintas e específicas, conforme a sua relevância no conjunto do Projeto e do modelo de desenvolvimento referido:

1. Um, o mais importante, referia-se ao estabelecimento do princípio de que o Executivo poderia, legalmente, interferir, modificando, a distribuição e o acesso à propriedade fundiária - e não só com relação às terras públicas, mas também às particulares, pelo instituto da desapropriação por interesse social.

2. O outro, referia-se ao aumento da produtividade agrícola e da renda: neste caso, não bastava apenas o acesso à propriedade da terra, mas a um determinado tipo de propriedade - a empresa agropecuária - capaz, por suposto do modelo - de valorizar-se e tornar eficientes os demais instrumentos e recursos econômicos postos a serviço da promoção do Projeto de Desenvolvimento Rural. Ou seja, cuja materialização dependia das demais medidas e instrumentos de política agrícola.

Assim, pode-se dizer que havia duas propostas de reforma agrária no Estatuto da Terra: uma de caráter “social” visando tão-somente à resolução de problemas de pobreza extrema e tensões sociais: esta acabaria sendo resolvida (ou reduzida, segundo alguns368 analistas) pelos mecanismos e instrumentos da colonização. A outra - fundada na formação de médias e grandes propriedades369 - priorizada e, efetivamente. executada pelo Governo, básica em seu projeto, destinava-se a promover o aumento da produção e produtividade agropecuárias e à geração de excedentes econômicos, relevantes para a economia nacional e para a exportação. Esta reforma fundava-se na estruturação, fortemente incentivada e subvencionada, pelo Governo, de um complexo

368 Ver, entre muitos outros analistas do tema, por exemplo, GUEDES PINTO (op. cit.); CONTAG (op. cit.); GRAZIANO DA SILVA (1980, 1982 e 1985). 369 Mas, sobretudo, fundadas em grandes propriedades territoriais, especialmente nas regiões de fronteira agrícola, como a Amazônia Legal e a Centro-Oeste. Ver a este respeito YOKOTA (op. cit.) para uma referência oficial a este tipo de prioridade. E também a continuidade deste capítulo e o capítulo 5, em particular.

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de empresas agropecuárias de dimensões e atividades diversas espalhadas por todas as regiões do País.

Vistos desta perspectiva, pode-se compreender com mais clareza como os instrumentos de política agrícola articulam-se com os (“dois”) projetos de “reforma agrária” implícitos no Estatuto da Terra:

1. Uma Reforma Agrária “distributivista”, voltada para a solução de problemas emergentes de pobreza e tensão social, cuja implementação acabou sendo resolvida pela colonização. Esta, por seu turno, era estratificada em Colonização Oficial, voltada para os mais pobres e implementadas em regiões geralmente desprovidas de infra-estruturas; e em Colonização Particular, destinada à agricultores de melhor situação econômica, geralmente, oriundos de regiões minifundiárias tradicionais, especialmente do Rio Grande do Sul e Paraná370, que se destinavam a assentamento em glebas de melhor localização e fertilidade371 nas regiões de expansão da fronteira agrícola, em particular no Mato Grosso, inicialmente, e na Amazônia Legal, sobretudo em Rondônia, na seqüência.

2. Outra, que foi, efetivamente, a “grande reforma fundiária” implementada pelos Governos Militares, fundava-se num vasto e amplo programa de concessões, vendas e legitimação de terras e propriedades, geralmente médias e grandes (em termos de áreas), por suposto, todas, destinadas à estruturação de empresas372, e fortemente sustentadas pelos instrumentos de política agrícola: em particular, o crédito subvencionado, os subsídios, os incentivos fiscais e, em casos mais específicos, contando, inclusive com o financiamento, em condições facilitadas, para aquisição da própria terra, como nos casos do PROTERRA e do FUNTERRA373. Esses casos serão abordados na continuidade deste tópico, ao serem analisados os “instrumentos de ação fundiária” e os processos de “titulação de terras da União” assim como as suas implicações para a estrutura fundiária do País.

É neste amplo contexto que são definidos, no artigo 4o da Estatuto da Terra374, os “construtos” instrumentais básicos do Projeto: “imóvel rural”, “propriedade

370 Ver a respeito da articulação entre os Projetos de Colonização deste período e os movimentos de reconcentração fundiária na região Sul, os excelentes trabalhos de IANNI (1979 e 1981) e SANTOS (1993). A respeito, especificamente do sentido e objetivos da Colonização Particular, tal como concebidos pelo INCRA, ver os trabalhos citados de Paulo Yokota, Oldair Zanatta e Cláudio Ribeiro. Ver também MINC (op. cit.) a respeito destas medidas e suas relações com os interesses do latifúndio. 371 Ver a respeito, Oldair Zanatta, Paulo Yokota e Cláudio Ribeiro, todos citados. 372 Cuja caracterização para efeitos de reconhecimento pelo IBRA, e depois pelo INCRA, fundava-se na formalidade de apresentação de um simples Projetos de exploração agropecuária (letra “c” do .3o do art. 19 da Lei 4.504/64). É verdade que era estabelecido um prazo para sua implementação o que, entretanto, dificilmente poderia ser efetivamente comprovado, haja vista as liberalidades estabelecidas para a implementação do mesmo. Esse assunto será analisado neste capítulo. 373 Para uma crítica ao PROTERRA e FUNTERRA, ver os documentos da CONTAG, citados. 374 Ver a Lei 4.504/64 (Loc. cit.), artigo 4o , incisos I a IX e respectivo Parágrafo Único. Não se considerou necessário transcrever aqui todos estes conceitos que, entretanto, serão abordados no decorrer da análise.

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familiar”, módulo rural, minifúndio, latifúndio, empresa rural, “parceleiro”, “Cooperativa Integral de Reforma Agrária” e “Colonização”. Duas coisas, de imediato, chamam a atenção na análise destes conceitos e, curiosamente, ambas com relação ao “latifúndio”. Trata-se, por um lado, de sua especificação, que poderia ser realizada, aparentemente, à base de indicadores “técnicos”, em “latifúndio por exploração”, quando, independentemente de sua área, não alcançasse os níveis médios de produtividade em termos de seu tipo de exploração e área disponível agricultável; e “latifúndio por dimensão”, cujo conceito de aproxima de sua formulação corrente, mas que é definido em função módulo rural: possuir área superior a seiscentos módulos de exploração familiar. Esse assunto será retomado. A outra curiosidade, refere-se ao fato de também se definir “o que não é considerado latifúndio”, como já comentado acima. Este segundo caso configura-se claramente como uma espécie de salvaguarda legal contra processos de desapropriação.

No caso dos latifúndios (por exploração e por dimensão) vale a pena realizar uma análise mais cuidadosa. Aparentemente, essa conceituação representa um avanço, sobretudo na medida em que permitiria, em princípio, caracterizar como latifúndios a quase totalidade dos imóveis rurais do país. Uns pelo fato de apresentarem áreas imensas e inexploradas, outros porque, mesmo detendo pequenas áreas, permaneciam inexplorados, aguardando valorização. Entretanto, o raciocínio inverso é igualmente aplicável: poderiam estar enquadrados na categoria de empresas, portanto, excluídos do conjunto dos latifúndios, propriedades imensas, de mais de 100.000 hectares, bastando para tanto a existência de Projetos aprovados pelo IBRA ou depois, pelo INCRA e apenas iniciados. “Tecnicamente” seria, como de fato sempre foi, impossível comprovar uma coisa ou outra. Assim, na melhor das hipóteses os contenciosos de desapropriação continuariam tramitando por dezenas de anos nos diversos tribunais, inviabilizado, assim, qualquer alternativa de redistribuição da terra. Finalmente, pelo simples fato de possuir a capacidade de abarcar no seu seio qualquer tipo de propriedade, independentemente de seu tamanho, acabou por tornar impossível a sua aplicação aos casos concretos.

Assim, o que, em princípio parecia um preciosismo técnico capaz de dar maior efetividade e viabilidade à identificação dos imóveis rurais que não cumpriam o imperativo constitucional da função social da propriedade, acabou por assumir o efeito exatamente inverso. Se agregar-se a este fato, as demais salvaguardas e exceções abertas na Lei 4.504, de fato, o latifúndio nunca, na história agrária brasileira esteve tão imune a qualquer ameaça de expropriação ou “comisso”. Nem mesmo no período colonial, quando esteve sujeito às cláusulas resolutivas e às normas contidas nas Ordenações do Reino e subordinados ao instituto das sesmarias.

Aliás, por este meio, os latifúndios se livraram, inclusive, do Imposto Territorial Rural, beneficiando-se das reduções contidas no artigo 50, parágrafo 5o, alíneas “a” e “b”, além, é claro, dos incentivos fiscais e creditícios a que faziam jus pelo simples fato de apresentarem um Projeto ao IBRA/INCRA que, uma vez aprovado os faziam, como

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num toque de mágica, transitar para a condição de “empresas rurais”. Além, evidentemente, de ficarem isentos do risco de desapropriação por interesse social, como explicitamente assegurado no parágrafo 3o , alínea “c” do artigo 19 do Estatuto da Terra, já comentado.

Outra particularidade, esta, ao juízo analítico aqui desenvolvido, ainda mais problemática, refere-se ao diagnóstico fundamental das causas do problema agrário brasileiro, tal como formulado na Mensagem 33: a dicotomia “latifúndio-minifúndio”. Aparentemente, como no caso analisado acima, trata-se de um diagnóstico “perfeito”, preciso, impecável. Só que ele apresenta dois problemas fundamentais que o anulam:

Primeiro, porque o problema agrário no Brasil, como em qualquer outra latitude, não depende estritamente da referência à terra, enquanto “coisa” ou “bem”, como é da sua definição no campo jurídico, mas da propriedade: ou seja, das relações entre os homens a respeito do domínio das coisas. Portanto, trata-se de questão mais complexa e que envolve determinados conjuntos de relações de sociabilidade: disso advém a sua complexidade e o fato de que não basta normatizar para resolvê-la. Se se tratasse de simples relação entre o homem e a coisa, como é colocado, por exemplo no Código Civil, bastava a norma, senão para resolvê-lo, pelo menos para reduzí-lo à dimensões irrelevantes ou pelo menos, aceitáveis do ponto de vista da sociabilidade e, sobretudo do Direito.

Segundo, e mais complexo e de difícil reconhecimento à primeira vista, é o fato deste “diagnóstico” atribuir ao latifúndio e ao minifúndio o mesmo grau de responsabilidade pelas dificuldades enfrentadas pela estrutura fundiária brasileira, estando na raiz da injusta distribuição da propriedade e da renda. Observe-se que esta conceituação só se tronava possível pela condição, anteriormente apontada, de se tratar a terra como uma coisa e não como uma mercadoria, ou seja, uma relação social: um imóvel rural. Segundo porque, de forma sutil e aparentemente “técnica”, coloca no mesmo patamar as grandes e as pequenas propriedades, logo, tanto os especuladores e os latifundiários quanto os trabalhadores e pequenos produtores. Desta forma, torna profundamente difícil localizar as causas mais profundas da concentração fundiária e de suas implicações para a economia rural, sua reprodução e desenvolvimento.

Esta construção “teórica”, tal como posta no Estatuto da Terra, permite e implica qualquer interpretação ou diagnóstico: Ou seja, será, por um lado, a concentração, mas por outro, a dispersão da propriedade, a causa fundamental dos problemas agrários. Assim, volta-se, como no caso anterior, à estaca zero.

O agravante, neste diagnóstico desenvolvido na Mensagem 33, é que ele aponta no sentido da reconcentração fundiária. Como o minifúndio é, por definição, problemático por não possuir, endógena e intrinsecamente, a possibilidade de assegurar o sustento de uma família de trabalhadores, portanto, menos ainda, de gerar “excedentes econômicos”, a única alternativa é excluí-lo da solução do problema. Ou seja, o minifúndio, enquanto tal, é apenas parte do problema, nunca da solução.

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Quanto ao latifúndio, se por um lado, era considerado parte do problema, por outro lado, era, igualmente, considerado parte da solução, sobretudo na medida em que pudesse incorporar os progressos técnicos, administrativos, gerenciais, adequando-se, desta forma, às exigências econômicas e constitucionais de respeito à função social da propriedade. Para tanto, como não possuía restrições endógenas, bastava, apenas, ao Governo, assegurar-lhe os meios adequados, como crédito, subsídios, assistência técnica, etc. e o problema seria resolvido. Este foi o caminho eleito pelo Projeto do Governo.

Tudo isto estaria bem posto, pelo menos teoricamente, se fosse possível correlacionar, objetivamente, as possibilidades de desenvolvimento da produtividade do trabalho na agricultura de forma relevante e unívoca à “variável” área passível de exploração. Ainda assim, por exemplo, há que se considerar que a área média dos minifúndios brasileiros, pouco diverge da área de propriedades familiares de caráter empresarial em outras latitudes, como por exemplo, a França, o Reino Unido375, etc., onde, apesar da pequena área agricultável, o excedente econômico gerado por estes produtores é relevante, em termos comparativos, em relação às suas respectivas economias nacionais.

Portanto, o problema não está, necessariamente, relacionado à dimensão da propriedade em si mesma, mas à excludência com relação a esta e a outras condições de apoio à atividade produtiva no campo que, no Brasil, sempre que implementadas, foram efetivamente apropriadas privilegiadamente, por determinadas camadas sociais. Tais os casos das diversas medidas e recursos colocados, por exemplo, à disposição do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS) para enfrentar os problemas da seca no Nordeste; das regiões ribeirinhas do Vale do São Francisco e de outros rios brasileiros; do sistema de preços mínimos, do sistema de assistência técnica, do sistema de crédito rural, etc.

Após 1964, o mesmo processo volta a repetir-se, como no caso do crédito rural, do PROTERRA/FUNTERRA, do seguro agrícola - o PROAGRO, para ficar apenas nestes exemplos mais conhecidos, que raras vezes chegaram efetivamente aos “pequenos produtores” ou flagelados das secas ou das enchentes, aos quais, por suposto, eram destinados O mesmo pode-se dizer, em sentido inverso, com relação aos latifúndios376 no Brasil: sempre foram objeto de todas as regalias, incentivos e privilégios e, apesar disso, as únicas coisas que conseguiram efetivamente desenvolver foram as suas áreas, as suas cercas, e o percentual de terras improdutivas.

As implicações deste diagnóstico do problema agrário brasileiro, tal como realizado na Mensagem 33 e no Estatuto da Terra, e dos meios e estratégias estabelecidos para resolvê-lo podem ser efetivamente evidenciados por um lado, pelos instrumentos de ação fundiária e respectivos métodos de alienação, ou reconhecimento

375 Ver a respeito ABRAMOVAY (1992), CHONCHOL (1986). 376 Ver a respeito a nossa Dissertação de Mestrado (JONES, 1987).

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de domínio particular sobre terras públicas e, por outro lado, pelos resultados da implementação destes procedimentos em termos de suas conseqüências efetivas sobre a distribuição da propriedade territorial rural e a destinação dada às novas terras, assim apropriadas.

3.2.1 - Execução da Política Fundiária: “Intenção e Gesto377”

Na realidade, o problema fundiário brasileiro, antes de ser posto em termos de urgência na “redistribuição da propriedade” territorial rural (que é necessária), continuava sendo o de proceder à clara separação entre as terras públicas e as que se encontravam em domínio privado.

Por inusitado que possa parecer, persistia, no Brasil dos anos 60, deste século, o mesmo problema já posto nos anos 40 e 50 do século passado e a mesma herança do fracasso da Política Fundiária do Império.

Por isso, admitir, “a priori”, que o problema fundiário fundava-se na desigual distribuição da “propriedade”, apesar de parecer uma posição teoricamente correta e progressista, significava cometer um equívoco de princípio. Porque significa admitir, igualmente, que as grandes posses sobre terras devolutas, públicas, que pertencem, de direito378, ao Estado, seriam propriedades privadas legítimas, sem questionar a sua origem legal. Estas podem, até, apresentarem-se, na aparência, como grandes “propriedades” privadas, porém, não legítimas. E não são, de direito, propriedades legítimas, como demonstrado nos capítulos anteriores, e por várias razões:

Primeiro, juridicamente, por não preencherem os requisitos mínimos, legais, exigidos para caracterizá-las. Segundo, porque, a grande parte das terras ocupadas no Brasil, sobretudo, por grandes posses, ocorreu a partir dos anos cinqüenta deste século, muito particularmente, nas décadas dos sessenta e setenta. Os dados apresentados no próximo capítulo, sobre “áreas novas” incorporadas ao patrimônio privado, entre 1960 e 1980 dão conta deste fato. Aliás, o senhor Paulo Yokota, na época Presidente do INCRA refere-se exatamente a este problema nos seguintes termos:

“Nem todos os brasileiros possuem a clara consciência de que nestas três últimas décadas o Brasil dobrou efetivamente de dimensão... Desde 1500 a 1960, portanto, 460 anos, ocupou-se a metade litorânea e alguns pontos isolados junto aos rios interiores (...) A partir dos anos setenta a ocupação da Amazônia e do Centro-Oeste passou a ser sistemática e contínua(...).” 379

377 Essa expressão é aqui utilizada em referência ao sentido dado à mesma na poesia de Chico Buarque de Holanda e Ruy Guerra (1973), “Fado Tropical”: “É que há distância entre intenção e gesto (...).” 378 Ver Hely Lopes Meirelles : “No Brasil todas as terras foram, originalmente, públicas, por pertencerem à nação portuguesa, por direito de conquista. Depois passaram ao Império e à República, sempre como domínio do Estado” (MEIRELLES, 1991, p. 447). 379 YOKOTA (op. cit., p.8). Grifos nossos.

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Portanto, o problema agrário brasileiro não é de “redistribuir a propriedade”, mas, sim, de distribuir a terra, para torná-la efetivamente produtiva, o que é outra coisa, completamente distinta. Quanto à propriedade, esta terá que ser questionada, especialmente no que se refere ao estatuto jurídico da sua legalidade e da sua legitimidade de direito, muito particularmente quando se tratarem dos imensos “domínios” fundados, ou na simples posse, ou em títulos juridicamente duvidosos, ou simplesmente falsos, portanto nulos. Se o título é falso, é nulo, logo, não se pode argüir, com base nele, o direito de propriedade privada, posto que as terras, no Brasil, nunca foram “res nullius”, ou seja, sempre foram, originalmente, propriedade do Estado380. Portanto, para se tornarem propriedade de terceiros há, necessariamente, que possuir o documento, juridicamente hábil, que legitime a transferência de domínio, ou seja, é imprescindível a transcrição legítima do imóvel. Em suma, que se funde indubitavelmente a cadeia sucessória legalmente exigível. Estes procedimentos são, juridicamente, irrecusáveis. O “ônus da prova” de propriedade não é do Estado, mas do suposto proprietário.

Redistribuir a terra significa, efetivamente, possibilitar a implementação do imperativo constitucional de 1946, referido pela Mensagem 33, de assegurar o acesso democrático e justo à terra, de resto, como se afirmou no parágrafo anterior, um patrimônio que sempre pertenceu à nação. Como tem sido defendido pelos juristas mais respeitados, a terra, no Brasil, é originalmente pública. Portanto, para se encontrar em domínio privado tem que possuir, claramente estabelecido, em algum momento de sua história, o instrumento legal, através do qual, o Estado transferiu o domínio, ou reconheceu transferência anterior, ou a posse legítima, de parcelas de seu território. Este é, efetivamente o problema fundiário a ser resolvido no Brasil. Ele é, aliás, claramente reconhecido, inclusive, pelas autoridades fundiárias do Governo Militar, quando propuseram a regulamentação do preceito constitucional referente ao acesso à propriedade rural e ao reconhecimento, enquanto condição prévia deste, da prioridade dos processos discriminatórios.

Portanto, estes processos têm um papel fundamental e insubstituível no contexto do problema fundiário e da questão agrária brasileira. Sem se identificar, clara e legalmente, quais são as terras devolutas da União, Estados e Municípios e quais as que se encontram, legitimamente, em domínio privado, sejam posses legitimáveis ou propriedades legalmente tituladas, soa como apócrifa, qualquer proposição de redistribuição da propriedade rural no Brasil.

380 Cabe registrar que há controvérsias, entre os juristas, a respeito da existência, ou não, de terras “sem dono”, adéspotas, no Brasil. Neste trabalho, aceita-se o argumento que defende o fato de que, desde, pelo menos, a Lei 601 de 1850, não mais se poderia falar em terras sem dono no Brasil. Como foi amplamente discutido no capítulo 2 deste estudo, a Lei 601 referia-se claramente ao fato de que não estando determinadas terras, “aplicadas a algum uso público nacional, provincial ou municipal” e não estando, por qualquer título legítimo, incorporada à propriedade particular, são terras devolutas (artigo 3o da Lei 601/1850): ou seja, tratam-se de terras incorporadas ao acervo das terras públicas da nação”. Ver a respeito da questão, PONTES DE MIRANDA (op. cit), MEIRELLES (op. cit.); NASCIMENTO (op. cit.) e CARVALHO SANTOS (op. cit.), entre muitos outros.

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É exatamente por esta razão que o latifúndio, os grileiros especializados e os especuladores imobiliários sempre se opuseram, em todos os momentos da história agrária brasileira, aos processos discriminatórios em geral, e aos registros de imóveis, em especial.

Quando a exigência de registros públicos, em face do desenvolvimento econômico e do aperfeiçoamento do ordenamento jurídico do país, tornou necessária a titulação e matrícula dos imóveis, especialmente nos anos que se seguiram ao 1964, a recorrência aos métodos e processos fraudulentos, à grilagem especializada ou à “nova” violência, “politicamente justificada”, tornaram-se os instrumentos privilegiados por esses grupos que sempre tiveram, como se vem demonstrando nos capítulos anteriores, o controle efetivo das terras no Brasil.

Por isso persiste o processo de apropriação privilegiada, fundado nas grandes posses de legitimação questionável, posto que os títulos de que dispõem (quando dispõem de títulos) geralmente não resistem a uma análise jurídica, ainda que superficial381. Em depoimento à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre a Política de Incentivos Fiscais da Amazônia, o Diretor do Departamento de Recursos Fundiários do INCRA, pronunciou-se a respeito desta questão nos seguintes termos:

“No exame da situação dominial, o estado de precariedade da documentação é uma constante. Grande parte dos títulos examinados não resistem a uma análise jurídica mais profunda, pois não só apresentam uma filiação dominial imperfeita, como os dados que estabelecem, relativos à área, limites e confrontações, não correspondem à localização física dos imóveis a que se referem. “Outro fato relevante que tem dificultado a ação do INCRA diz respeito à deficiência dos registros públicos. Muitos Cartórios de Registro de Imóveis (...) deram ensejo à inúmeras irregularidades, algumas praticadas de “boa fé”, sem a intenção de lesar o patrimônio público, outras com a evidente finalidade de dar cobertura à invasões, num autêntico processo de grilagem de terras382.”

O reconhecimento da fragilidade jurídica e da fraude na emissão de “títulos” de propriedade é quase um consenso entre os juristas e especialistas da área. Geralmente a defesa da tese contrária funda-se no argumento, amplamente questionável e, de qualquer forma, juridicamente ineficaz e inaceitável, de que se tratam de propriedades que, embora tendo origens viciadas, são produtivas, portanto devendo ser respeitadas. De qualquer forma, trata-se de um problema que necessita ter uma solução objetiva.

Paulo Yokota, então Presidente do INCRA, após reafirmar o princípio, sempre assegurado por todas as legislações agrárias brasileiras, desde o período colonial, de que

381 Ver a este respeito, o depoimento de Oldair Zanatta, Diretor do Departamento de Recursos Fundiários do INCRA na Comissão Parlamentar de Inquérito sobre política de incentivo fiscal na Amazônia (In.: ZANATTA, 1980). 382 Idem. p. 26. Grifos nossos).

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a posse se constitui em elemento gerador de “expectativa de direito, obedecidas as condições mínimas de exploração agropecuária efetiva e morada habitual”, faz referência à importância da discriminatória para separar as áreas “legitimamente privadas” das privatizáveis e das áreas públicas, que poderiam, estas últimas, ser mobilizadas pelo Governo, para ações fundiárias específicas. Neste contexto, Paulo Yokota faz a seguinte referência ao conceito jurídico de propriedade privada legítima:

“(...) Estas devem contar com uma origem perfeita, ou seja, um claro processo de destaque do patrimônio público para o privado; uma cadeia dominial perfeita, ou seja, uma história contínua e obedecendo a todos os preceitos da legislação, desde a sua origem até o presente; localização e dimensão indiscutíveis, devidamente identificadas por pontos geodésicos ou acidentes geográficos bem definidos, com demarcações e medições tecnicamente aceitáveis383.”

Por outro lado, aponta as seguintes exceções:

“A legislação prevê algumas situações onde as insuficiências parciais das condições de um documento de terras rurais podem ser sanadas pelo reconhecimento explícito das autoridades fundiárias. Tais autoridades contam com limites claros de sua competência, estabelecidos pela legislação, não sendo válidos os atos que extravasem tais limites384.”

Trata-se do princípio fundamental do Direito Administrativo que afirma que, ao servidor público, só é dado o direito de praticar atos explicitamente autorizados em lei. Ao contrário do princípio aplicado ao cidadão comum que pode praticar qualquer ato não vedado pela lei. Por este princípio da legalidade, em vigor, no país, os atos administrativos que exorbitaram são nulos por definição.

Portanto, continua em aberto, pelo menos juridicamente, a possibilidade de ser rever as “aquisições” e “alienações”, pelo Estado, de imóveis rurais no País, inclusive os atos ilícitos praticados por autoridades fundiárias, na via jurisdicional do Estado, sendo que, a revisão da legalidade destes atos administrativos é pacífica, quer pela doutrina jurídica, que pela jurisprudência. Esta revisão das “concessões de terras” foi prevista na Constituição de 1988.

Ou seja, legalmente, qualquer imóvel que não preencha todos estes requisitos legais, não é, do ponto de vista da sociedade de direito e do ordenamento jurídico vigente, efetivamente, propriedade privada legítima. É neste sentido que aqui é feita a referência a hipótese de que estas “propriedades” são juridicamente questionáveis. E as análises realizadas, até o momento, neste trabalho, já permitem afirmar, com certa tranqüilidade que, efetivamente, o são.

A análise dos meios e instrumentos, através dos quais, foram promovidas as ações fundiárias pelo Governo, após a aprovação do Estatuto da Terra, especialmente as

383 YOKOTA (op. cit., p. 2. Grifos nossos). 384 Idem, loc. cit.

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que se destinaram a enfrentar os problemas de legitimação das terras em poder de particulares e sua clara separação em relação às terras públicas, interessa, especificamente, a este estudo.

A arrecadação destas terras e seu respectivo registro pelo Estado, contidos no âmbito dos processos discriminatórios e de arrecadação de terras públicas, são a primeira instância relevante, para se compreender como estas questões foram enfrentadas e suas respectivas conseqüências, enquanto implementação de determinada Política Fundiária ou de acesso à propriedade territorial.

A outra instância relevante, nesta dimensão específica da Política Fundiária, refere-se às ações de Governo no sentido de promover determinadas intervenções na estrutura das relações de propriedade: tratam-se das medidas específicas - uma vez resolvida a questão da legitimidade de domínio sobre as terras - no sentido de adequar a sua distribuição e uso. Nesta segunda instância, com base no ordenamento jurídico implementado a partir do Estatuto da Terra, os Governos Militares desenvolveram ações nos campos da desapropriação de imóveis rurais, aquisição de propriedades e, finalmente, no âmbito da colonização. Por suposto do modelo implícito no Projeto da Lei 4.504/64, estas seriam, objetivamente, as ações da “reforma agrária”, tal como subjacente ao Projeto de Desenvolvimento Rural do Governo.

É neste contexto que podem ser caracterizados e analisados as formas e os meios de regulação e intervenção do Estado na propriedade territorial e na estrutura agrária brasileira, conceituados, genericamente, pelo Governo, como “instrumentos de ação fundiária”. São estes, o processo discriminatório de terras; a arrecadação das terras devolutas, públicas; a desapropriação de imóveis rurais; a aquisição de imóveis pelo Estado; e, finalmente, os processos de colonização385. Conjuntamente a estes instrumentos, foram implementados, pelo Governo, os processos de alienação e titulação da terras públicas, ou seja, o efetivo processo de privatização de terras, provido pelo Estado, fundado na regulamentação expedida com base no Estatuto da Terra.

Este capítulo não poderia ser concluído, portanto, sem a análise destes instrumentos, posto que foi exatamente através deles que o Estado pôde implementar o seu Projeto de Política Fundiária e Desenvolvimento Rural.

3.2.2. Instrumentos de Ação Fundiária

Como já foi registrado, os principais instrumentos de ação fundiária utilizados pelo Estado, após 1964, e com base no conjunto de legislações e atos administrativos que se seguiram à Lei 4.504/64, são: a Discriminação de Terras; a Arrecadação e Matrícula das Terras Públicas; a Desapropriação de Imóveis Rurais; a Aquisição de Imóveis e, finalmente, a Colonização. Estes, portanto, são os meios efetivos pensados

385 Ver a respeito dessa classificação e respectivas conceituações, ZANATTA (op. cit.) e RIBEIRO (op. cit.). Poderão ser igualmente compulsados os “manuais” técnicos e operacionais do INCRA.

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pelas autoridades fundiárias para transformar a “injusta” estrutura agrária existente no País386.

Observe-se que nesta classificação operacional dos instrumentos de ação fundiária oferecida pelo INCRA387, não aparece a “Reforma Agrária” como instrumento de ação fundiária. Esse fato é significativo, posto que deixa evidente que a Reforma Agrária, tal como pensada pelos dirigentes da Política Fundiária, não se constituía, sequer em um instrumento operacional para a transformação da estrutura agrária. A análise dos diferentes processos, neste sentido, implementados pelo INCRA, indica que a Reforma Agrária era pensada, apenas, como última instância que, de resto, seria alcançada em resultado da ação destes instrumentos, evidentemente, entendidos como articulados aos demais instrumentos de política agrícola e desenvolvimento rural, como subsídios, crédito, assistência técnica, etc. Tudo isto é coerente com o Projeto de Desenvolvimento Rural e Fundiário, tal como arquitetado pelo Governo e claramente regulamento no Estatuto da Terra, como se pode verificar pelas análises aqui desenvolvidas.

3.2.2.1. Discriminação de Terras Públicas

As ações discriminatórias, que consistem em separar as terras devolutas, públicas, das que se encontram em domínio particular legítimo, são consideradas, inclusive pelas autoridades fundiárias, como o instrumento fundamental da ação fundiária.

Segundo Cláudio Ribeiro, diretor do Departamento de Desenvolvimento Rural do INCRA, a discriminatória é um criação “genuinamente brasileira” e se deve às especificidades do processo de desenvolvimento da organização fundiária do País, cujas terras, originalmente públicas, foram ocupadas de forma desordenada e, quase sempre, atropelando as iniciativas legais e administrativas.

Este processo, amplamente analisado nos capítulos anteriores, sempre se fundou na apropriação privilegiada, quer estivesse, ou não, baseado no consentimento do Estado. O curioso, neste processo de ocupação de terras públicas, e realmente peculiar à história agrária brasileira - neste caso, efetivamente uma “criação genuinamente brasileira”, para utilizar aquela expressão de Cláudio Ribeiro - foi o fato de que, também o processo de legitimação, ter sido privilegiado e juridicamente questionável. Apenas essa dupla configuração do privilégio pode explicar como e porque, até os dias atuais, persiste a necessidade prioritária das ações discriminatórias, cujo objetivo é exatamente separar, legalmente, as terras públicas das particulares.

Tendo em consideração a persistência desta característica dos processos de ocupação das terras brasileiras e a extensão dos privilégios à própria esfera jurídica, a questão que persiste junto a ela, refere-se ao fato de se saber se a proposta, tão

386 Vide Estatuto da Terra (Lei 4.504/64). Loc. cit. 387 Ver, por exemplo, Cláudio. J. Ribeiro, op. cit., pp. 6-7.

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enfaticamente anunciada pelos mentores do Estatuto da Terra e da Política Fundiária do Estado Militar, realmente significou, pelo menos, a minimização deste problema. Ou seja, se este duplo privilégio no acesso e na legitimação das terras públicas foi, ou não, efetivamente enfrentado e combatido.

Parte da resposta a esta questão será dada neste capítulo, ao serem analisadas as formas, processos, instrumentos e métodos, administrativa e juridicamente estabelecidos, tanto para as ações discriminatórias, como de arrecadação, quanto, sobretudo, no que se refere às diferentes formas de desapropriação de terras em domínio privado ou de privatização de terras públicas.

Por definição, o processo discriminatório tem por objetivo identificar as terras devolutas, públicas, e separá-las, legalmente das terras particulares. Os procedimentos para este mister se fundam, desde a Lei de Terras388 de 1850, que o introduziu no ordenamento jurídico brasileiro, num processo de exclusão das propriedade particulares legitimamente constituídas.

Veja-se que é uma constante no ordenamento jurídico-fundiário brasileiro a referência à expressão “legitimamente constituída” para se referir às terras em poder de particulares. Isto significa que as terras que tenham origem duvidosa ou abertamente fraudulenta - e como se viu acima, é a esmagadora maioria, pelo menos antes da implementação das “ações fundiárias” dos Governos389 Pós-1964 - não são propriedades legítimas. São juridicamente questionáveis. Responder a esta questão sempre foi a tentativa dos diferentes governos brasileiros, desde, pelo menos, 1850. Como já vinha sendo, antes da Independência, preocupação da Coroa portuguesa390.

O processo discriminatório é privativo da União e implementado pelo ICRA no âmbito das terras de seu domínio391, ou seja, as terras devolutas situadas na faixa fronteira, ampliada esta, para 150 quilômetros de largura, paralela a linha divisória do território nacional com outros países, tal como redefinida pela Lei no 6.634, de 2 de maio de 1979392. Como foi analisado nos capítulos anteriores, a faixa de fronteira foi inicialmente definida em 66 quilômetros (Lei no 601/1850), posteriormente foi aumentada para 100 quilômetros (Constituição de 1934, art. 166). Estão igualmente incluídas, entre as erras devolutas da União, a faixa de 100 quilômetros, situada de cada lado das rodovias federais, construídas ou projetadas na Amazônia Legal393.

Os processos discriminatórios sempre enfrentaram a oposição sistemática e persistente dos grandes detentores de terras do Brasil. Exatamente porque, nestes 388 Ver o capítulo 2 deste estudo, onde o tema é detalhadamente discutido. 389 Quantos a estas, há que se questionar a legalidade dos atos das autoridades fundiárias do período. 390 Ver o capítulo 1 deste trabalho, que se ocupa do período colonial. 391 Ou em convênios com os Órgãos de Terras dos Estados da Federação, quando for o caso. 392 Lei 6.634, de 2 de 1979: “Dispõe sobre a Faixa de Fronteira, altera o Decreto-lei no 1.135, de 3 de dezembro de 1970, e dá outras providências”. (BRASIL. Congresso Nacional. Brasília: 1979.). Ver especialmente, o Arts. 1o e 2o, parágrafos 1o , 2o. e 3o, que se referem à instalação de indústrias nas áreas de fronteira. 393 Decreto-lei 1.164, de 1o de abril de 1971, que “Declara indispensáveis à segurança e ao desenvolvimento nacionais terras devolutas situadas na faixa de cem quilômetros de largura em cada lado do eixo de rodovias na Amazônia Legal e dá outras providências”. (Loc. cit.).

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processos, os supostos detentores de terras têm o “ônus”, legalmente previsto, de apresentar as provas da legitimidade de seus domínios, quer sejam títulos, quer sejam testemunhos idôneos, no caso de posses. Como já foi mencionado acima, os títulos de propriedade apresentados não resistem, segundo Carlos Ribeiro, “ao primeiro embate jurídico”, e conclui :

“Têm-se constatado titulações irregulares promovidas por Estados-Membros da Federação, transcrições ou registros irregulares em cartórios, processados em decorrência de ‘grilagens’, gerando presunção de domínio, assim como ocupações especulativas, muitas das quais sem exploração da terra, além de outras situações adversas ao encerramento da instância administrativa.” 394

Quando, neste trabalho faz-se referência à “grilagem especializada” refere-se aos processos fraudulentos de legitimação de terras devolutas (mas geralmente ocupadas por posseiros e indígenas, especialmente nas regiões afastadas dos sertões), promovidos com a aparência legal e, geralmente com orientação jurídica e conivência de Cartórios e dos órgãos oficiais de terras dos Estados. A fraude de documentos vai desde o furto à emissão de documentos falsos ou ao “aquecimento” de documentos frios, utilizando-se de artifícios abertos pela legislação. A pesquisa já citada, sobre o Vale do Jequitinhonha, de autoria de Maria Aparecida de Moraes Silva, reconstrói os mecanismos de expropriação da massa de posseiros e de legalização das novas propriedades. Esta pesquisa confirma as anteriormente citadas avaliações sobre a ilegal e injusta titulação de terras no Brasil. Conforme o seu relato, no Vale do Jequitinhonha, durante o período militar, as grandes companhias se apossaram das áreas elevadas das chapadas e procederam à derrubada da mata e limpeza do terreno pelas queimadas e pelos tratores. Fizeram espalhar pelas redondezas, a notícia de que toda aquela área era propriedade pública e que o governo iria retomar as terras; assim infundindo o medo de perda da terra nos camponeses que as detinham como posses mansas e pacíficas desde tempos imemoriais nas grotas e veredas como terra pessoal, e nas chapadas como terra comum. Compradores, vindos de São Paulo, ou simplesmente identificados como “paulistas” passaram então a comprar os direitos de posse a preços irrisórios.

As compras referem-se a áreas pequenas - 2,4 ha., 4,8 ha., 9,8 ha., 10,9 ha - algumas maiores, sendo uma de 217,6 ha e outra de 969,1 ha. - mas, ao proceder-se, em seguida, à medição e legitimação de domínio, procedimento de que se encarrega a estatal do governo mineiro, a autarquia Rural Minas, de conformidade com o relato da pesquisadora, neste procedimento, já sob patrocínio e tutela das grandes companhias que compraram as áreas aos “paulistas”, as pequenas posses se transubstanciam em vastos latifúndios, com áreas de 807 ha, 2.934 ha, l.620 ha., 217 ha., 898 ha., 3.684 ha., o que representou acréscimos descomunais. Na chapada, os sitiantes detinham o uso de

394 RIBEIRO (op. cit., p.7. Grifos nossos). A mesma posição é exposta por Paulo Yokota e Oldair Zanatta, citados.

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parcelas da terra apossada em comum para a extração de madeira e para pastagem do gado nas beiradas da mata. Alguns deles até já haviam feito pagamentos para a medição, mas não tiveram o dinheiro suficiente para pagar o documento oficial e o registro em cartório. Mas a maioria nem mesmo sequer procedeu à demarcação, de sorte que uma compradora final, a Companhia. ACESITA, adquirira através de terceiros as posses com documentos antigos, já cercadas, nos demais casos simplesmente derrubou cercas e construções e procedeu ao cercamento das terras devolutas.

Já a Companhia. SUZANO, essa não respeitou até terrenos demarcados, segundo relato de sitiantes à pesquisadora395. As terras ali haviam sido, por meio de decreto governamental, - tipificando a ação burocrático-autoritária - declaradas impróprias à agricultura e só adequadas ao reflorestamento, conforme legislação de incentivos fiscais que beneficiou essa atividade destinada a grandes empresas. Pois, conforme o relato da pesquisadora, a

“lei de 1966, ao definir a área dos distritos florestais imprimindo a esta região tais características, negou toda uma história passada de ocupação da terra, além do modo de vida destas populações e da história natural. Neste sentido, baseando-se nos projetos modernizantes, todo um mundo assentado em relações específicas com a terra e dos homens entre si foi determinado a desaparecer. O modo de vida secular assentado nas relações homem-natureza, no direito costumeiro da posse pessoal e da terra comum e na existência de uma história da natureza sucumbiu, em menos de duas décadas, diante do fogo nas chapadas, das grandes máquinas de terraplenagem, das moto-serras, das invasões das terras nas veredas, da destruição dos marcos naturais que separavam as posses, das destruições das nascentes de água. Neste processo avassalador, nem mesmo os mortos foram poupados. Muitos cemitérios desapareceram sob o nivelamento do solo feito pelas máquinas.”396

As citações acima, como outras referidas neste estudo, como uma infinidade de outros pronunciamentos no mesmo sentido, tanto de autoridades fundiárias, como de depoentes nas diferentes Comissões Parlamentares de Inquérito sobre o problema fundiário, que seria impossível e desnecessário, até, arrolar neste estudo, dão a prova mais cabal e objetiva a respeito dos problemas que se encontram na raiz da concentração fundiária brasileira: a apropriação privilegiada e a legitimação questionável, juridicamente, de imensas áreas que, noutro contexto, poderiam efetivamente ser incorporadas à economia rural, possibilitando o acesso produtivo à milhões de pequenos e médios produtores e trabalhadores rurais. E, neste caso, sem nenhum custo de aquisição de Terra, pelo Estado, posto que se tratam de terras públicas. Pelo contrário, podendo, inclusive gerar as receitas necessárias à implementação de um efetivo Projeto de Desenvolvimento Econômico para a agricultura brasileira. E sem que 395 MORAES E SILVA (1996:, pp.41-46 e 47-52). 396 Idem, p. 39.

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isto significasse nenhuma restrição, “a priori”, para o apoio efetivo, por parte do Estado, à implantação e implementação de empresas agropecuárias de diversos portes e produtividade.

É exatamente neste nível, que o diagnóstico apresentado na Mensagem 33 e no Estatuto da Terra é um profundo e estrondoso equívoco. O maior problema a ser enfrentado na questão fundiária brasileira, não se situa na eliminação dos minifúndios, mas nos latifúndios ilegítimos (e não importa se produtivos ou não. O problema é que são ilegítimos e ilegais: em sua maioria produto da fraude e efetivamente especulativos). Este é o primeiro problema a ser enfrentado.

Enquanto não for assegurado o acesso legal e legítimo à terra, como estabelece o preceito Constitucional de 1946, não se pode discutir com objetividade as formas e meios para o crescimento da produtividade na agricultura. Por outro lado, estando assegurado o acesso produtivo e legal, à terra, torna-se, inclusive, possível implementar, de forma objetiva, uma política tributária conseqüente: não para “punir” os “improdutivos”, mas para premiar a produtividade.

É neste sentido, o próprio minifúndio, como todos os problemas que, efetivamente, apresenta, nada mais é do que o resultado da política de apropriação privilegiada e de legitimação questionável, que provocou a profunda excludência social em relação ao acesso à terra no Brasil, apontada por todas as estatísticas e estudos especializados sobre o tema, desde o período em que vigia o instituto de sesmarias.

Até porque é profundamente difícil, senão impossível, dadas as exceções e liberalidades permitidas pelas diversas normas e regulamentos, classificar, qualquer que seja o imóvel rural, de “improdutivo”. Assim, uma política fundiária, tributária e fiscal que procurasse premiar o trabalho, a eficiência e a produtividade, ao contrário da visão “repressiva” e “autoritária”, que só imagina a via da “punição”, certamente daria os resultados até agora nunca conseguidos. Neste contexto - nunca proposto nem tentado pelos Governos Militares - tornar-se-ia, provavelmente, possível uma profunda transformação da estrutura fundiária e da economia rural brasileira.

É neste sentido que, também, a política tributária “progressiva e regressiva”, proposta no Estatuto da Terra (independentemente das exceções que abre e que possibilitam, de fato, a fuga e a sonegação) é, na melhor das hipóteses, produto de uma má compreensão da questão fundiária brasileira e de sua história de privilégios, impunidade e sonegação e, na pior da hipóteses, produto de mera demagogia. Os resultados alcançados pela aplicação desta política é a prova mais evidente do seu equívoco.

De qualquer maneira, como já mencionado anteriormente, o processo discriminatório teve, efetivamente, resultados relevantes. Significou a arrecadação de aproximadamente 129,6. milhões de hectares, segundo Cláudio Ribeiro; 111,8 milhões de hectares, segundo Oldair Zanatta e 115 milhões de hectares, conforme Paulo

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Yokota397, ou seja, segundo as estatísticas do INCRA. Como será visto no próximo capítulo, esta área é coerente com a registrada pelo IBGE, para a incorporação de áreas novas aos estabelecimentos agrícolas entre os Censos de 1960 e 1980, ou seja, à propriedade particular. As duas citações abaixo, respectivamente, de Cláudio Ribeiro e Oldair Zanatta, registram este fato:

“Nas áreas sob jurisdição federal, num total de aproximadamente, 357,5 milhões de hectares, o INCRA já discriminou até junho de 1984, em torno de 129,6 milhões de hectares398(...).”

“A arrecadação de terras devolutas possibilitou a incorporação ao patrimônio da União até o momento, um total de 111,8 milhões de hectares na Amazônia Legal e na Faixa se fronteira. Deste total, estima-se que 70% encontra-se ocupado, titulado ou em fase de titulação399(...).”

A diferença entre as estatísticas apresentadas pelos três diretores do INCRA, muito provavelmente devidas a períodos diferentes, é menos importante do que o fato de que, entre 1960 e 1980 foram discriminados em torno de 112 milhões de hectares de terras no âmbito federal. O problema, de fato, reside em como ou se estas terras foram, ou não, arrecadadas para o patrimônio da União; ou “transferidas” para particulares. E, sobretudo, isto sim, é relevante, em favor de quem400 estas terras foram privatizadas. Este assunto será tratado no próximo capítulo.

Este problema é referido por Oldair Zanatta, nos termos abaixo, fato que já dá um idéia de que o seu tratamento continuaria, como desde sempre a ser protelado sob os mais diversos pretextos:

“Esse processo acelerado de discriminação tem possibilitado resguardar terras devolutas da ação de ‘grileiros’. Todavia, a impossibilidade de sua destinação imediata por problemas de técnica, ou até mesmo de mercado, coloca-as à mercê da invasão de NOVOS POSSEIROS. Isso vale dizer que a destinação de uma área, após algum tempo de sua discriminação, impõe a necessidade de novo levantamento.”401

Como foi analisado nos capítulos 1 e 2, desde o período Colonial os grandes detentores de terras apresentavam os mais diversos argumentos para justificar a ausência de registro das terras em seu domínio, ainda que legítimo. Sempre se referiam à falta de condições efetivas para executar as exigência legais: ausência de técnicos especializados; a “imensidão” do território (e certamente, das concessões ou posses); 397 YOKOTA (op. cit., pp. 2-3). 398 RIBEIRO (op. cit., p. 7). Grifos nossos. 399 ZANATTA (op. cit., p. 18). Grifos nossos. A diferença entre os dados de Zanatta e Cláudio Ribeiro, deve-se ao fato de que este último trabalha com dados até 1984, enquanto os de Zanatta computa estatísticas até o ano de 1980. O dado do IBGE para o período, refere-se a um total de 1114.965.285 de hectares de áreas incorporadas aos estabelecimentos rurais, entre os anos de 1960 e 1980. A análise destes dados será realizada no próximo capítulo, ao se estudar os resultados da Política Fundiária do Regime Militar. 400 Esta questão, de fato, pertinente, foi, como visto acima, levantada pela CONTAG (op. cit., pp.1984: 8-9). 401 ZANATTA (op. cit., p. 7-8).

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falta de aparelhamento dos órgãos públicos encarregados de executar a política de terras, etc. Como se vê pelas palavras de Oldair Zanatta, em pleno final de século XX, os pretextos não de modernizaram.

Isso eqüivale a dizer, completando a exposição de Zanatta, que o processo de ocupação privilegiada é absolutamente ilegal, e continua. Ilegal, posto que agora se tratam de terras discriminadas pelo Governo Federal, portanto de invasões de terras legalmente incorporadas, enquanto imóvel, ao patrimônio público. Isto significa que persiste o privilégio e a impunidade dos grandes invasores. Sim, posto que os pequenos posseiros, nestes casos, no máximo, poderiam ser incorporados a algum programa de colonização oficial.

Na verdade, essa confissão feita pelo Diretor de Recursos Fundiários do INCRA, em um Simpósio Internacional de Experiência Fundiária, dá a dimensão dos grandes interesses que continuavam, em pleno final do Regime Militar (o documento é de agosto de 1984) a vigir no campo.

Destes problemas se tratam, ao se discutir uma efetiva política de reforma agrária para o Brasil, e não da mera re-distribuição da propriedade402. O primeiro passo de um processo efetivo de Reforma Agrária, portanto, é identificar as propriedades legítimas403. O instrumento para deflagração deste processo já existe legalmente e é a ação discriminatória. Veja-se, que neste caso, não há sequer, a necessidade dos famosos e intermináveis debates parlamentares acerca do estabelecimento do “rito sumário”, do “rito sumaríssimo404”, etc. Tratam-se de simples processos de reintegração de posse em favor da União. Senão, as grandes indenizações, geralmente indevidas, transformarão a Reforma Agrária em um “big business” para os latifúndios e especuladores imobiliários. Aliás como efetivamente sempre ocorreu no período aqui estudado, conforme registrado por muitos estudiosos e amplamente denunciado pela imprensa e pelos órgãos representativos dos trabalhadores rurais.

Os juizes têm sido céleres em deferir liminares de reintegração de posse em favor de supostos proprietários e contra pequenos posseiros, sem sequer argüirem, com certeza, a legitimidade dos pleitos que lhes são propostos. Certamente poderiam, da mesma forma, serem céleres em deferir as liminares de reintegração de posse, com maior rigor jurídico ainda, porque fundados numa discriminatória legítima, em favor da União. E disto se trata.

402 Porque para re-distribuir a propriedade, é necessário que hajam propriedades legítimas. E, no caso do Brasil, é exatamente esta legitimidade que se deve questionar. Portanto, na pior das hipóteses, se se quiser colocar o problemas nestes termos, tratar-se-ia de re-distribuir as terras públicas. 403 Ver por exemplo: (a) Foweraker, citado, que faz ampla referência “a indústria da posse”, promovida pelas grandes empreiteiras e especuladores de terra, analisando, em especial, o caso Lupion, no Paraná; (b) CONTAG, no documento citado, sobre a Política Fundiária do Regime Militar. Também poderão ser compulsados os Relatórios das CPIs.: (a) do Sistema Fundiário; (b) dos Incentivos Fiscais da Amazônia e, mais recentemente, a CPI das Causas da Violência no Campo. 404 Processos estes que, sob a aparência de virem a contribuir para a agilização das desapropriações necessárias à execução da Reforma Agrária, na verdade sempre foram o caminho mais curto para retardá-la e, no limite, impedir que ela fosse implementada.

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O fato é que tem sido, praticamente, impossível a implementação da discriminatória administrativa. As discriminatórias levadas para a via contenciosa, legalmente previstas para os casos em que não haja o “acordo”, fundamental àquela, permanecem tantos anos nos tribunais, que acabam por se tornarem inócuas. Até porque, durante este tempo, os especuladores os grileiros “comuns” e “especializados” e os latifundiários - que nem sempre são pessoas diferentes - já encontraram alguma “destinação” para as “suas” terras: ainda que seja, a de transferí-las a terceiros. Os depoimentos contidos nas Comissões Parlamentares de Inquérito, especialmente a que se ocupou do Sistema Fundiário, documentam amplamente estes processos.

3.2.2.2. Arrecadação de Terras Devolutas

A arrecadação das terras devolutas, públicas, é uma implicação recorrente, em princípio, das ações discriminatórias, aliás, constituindo-se no seu primeiro e mais importante objetivo. Assim, as terras extremadas no processo discriminatório, sendo devolutas, são incorporadas, formalmente, ao patrimônio das terras públicas, seja da União ou dos Estados da Federação. Sendo ou estando, legitimamente, em poder de particulares, por suposto, procede-se a titulação em favor de destes.

Os processos de discriminação e arrecadação de terras devolutas estão, do ponto de vista legal, intimamente correlacionados. Entretanto, tantas têm sido as resistências encontradas na implementação destes processos, que os mesmos passaram a ser executados de forma separada, um complementando o outro. Como explica Cláudio Ribeiro:

“Não obstante a arrecadação esteja implícita na discriminatória, o INCRA sempre adotou a política de arrecadar as terras devolutas apuradas, após a lavratura do termo da instância, matriculando-as em nome da União. O procedimento é feito pelos Estados, exceção ao da Bahia, cuja legislação pertinente faculta dessa prática, que se seguida, obriga o órgão fundiário estadual à aplicação do dispositivo da licitação pública, como pré-condição para outorga de título de propriedade.”405

Em continuidade à mesma argumentação, Ribeiro esclarece que, apesar do fato de existir, entre os juristas uma forte corrente doutrinária que entende como dispensável o registro de terras devolutas, com base no argumento de que, historicamente, todas as terras brasileiras são públicas, exceto aquelas por algum título legítimo, transferidas para o domínio particular, portanto não necessitando de outra publicidade senão aquela, ficando o ônus da prova para os pretensos proprietários particulares; entretanto,

“a própria experiência adquirida pelo INCRA no campo da administração fundiária recomendou a efetivação do registro, como forma salutar de publicizar o domínio da União (...)

405 RIBEIRO (op. cit., p. 8. Grifos nossos).

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Assim, as terras devolutas apuradas pelo INCRA foram sempre levadas a registro imobiliário, iniciando-se, a partir de então, a filiação dominial da terra pública federal. Essa providência tem evitado que imensas extensões de terras devolutas sejam incorporadas ilegalmente ao domínio particular, por ação da ‘grilagem’ fabricada por indivíduos inescrupulosos.”406

As citações acima, do Diretor de Desenvolvimento Rural do INCRA, permitem esclarecer algumas questões importantes. A primeira refere-se a um fato central na problemática das ações discriminatórias, que seria o de extremar as propriedades públicas e particulares. Esse procedimento, instituído, formalmente, em 1850, com a Lei de Terras, não tem sentido se não estiver estritamente associado ao processo de arrecadação das terras devolutas enquanto patrimônio efetivo da Nação. Até porque, para se delimitar e reconhecer como legítimas, as terras particulares, é necessário extremá-las das devolutas, o que significa, a delimitação de ambas, e, é evidente, o reconhecimento recíproco e concomitante. Como sempre coube ao Estado a legitimação das propriedades particulares, teoricamente, este não deveria ter tido dificuldades para legitimar o reconhecimento do seu próprio patrimônio.

Entretanto, como se vem demonstrando até aqui, neste trabalho, o Estado nunca conseguiu, efetivamente, sequer, fazer valer o reconhecimento de seus domínios. Este fato é um forte indício de que o controle efetivo sobre as terras do País sempre lhe fugiram.

Estritamente associado a este problema, está o fato de o INCRA, com base na “experiência adquirida” na administração fundiária, ter optado pelo registro, ainda que isso não fosse, legalmente, necessário. Por que? Porque, se assim não procedesse, abriria, ainda mais, as portas à grilagem especializada e à fraude. É o que fica claro nos argumentos de Cláudio Ribeiro e Oldair Zanatta. Resta saber se este procedimento foi suficiente para impedí-las. Segundo Zanatta, não.

De qualquer maneira, era melhor adotar este procedimento do que não fazê-lo, até porque, e este parece o resultado mais relevante, por este meio se fundava a cadeia de filiação dominial, com base na qual, a qualquer momento, poderia o Estado, questionar a legitimidade de determinados títulos de “propriedade”. Se ele assim não tem agido, as razões necessitam ser esclarecidas, senão teórica, com certeza, juridicamente, porque é dever de ofício, portanto irrecusável, das autoridades fundiárias, cumprir e fazer cumprir as determinações contidas no ordenamento jurídico. A omissão ou, mais grave, a conivência com os reconhecidos processos ilegítimos de alienação e aquisição de propriedades, caracteriza crime de improbidade administrativa.

Finalmente, cabe uma análise à referência feita à legislação fundiária do Estado da Bahia que, segundo Cláudio Ribeiro, permite a arrecadação de terras devolutas estaduais, sem a exigência do respectivo registro. Neste caso particular, pode-se argüir por que os baianos, aliás de reconhecida tradição jurídica, optaram pela doutrina que se 406 RIBEIRO (op. cit., p. 8). Grifos nossos.

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fundava na publicidade historicamente constituída, logo, tornando desnecessário o novo registro com a mesma finalidade. Entretanto, o arremate do raciocínio do Diretor do INCRA é sutil e profundo, ao afirmar que, procedendo desta forma, estaria o órgão fundiário do Estado da Bahia desobrigado de submeter os processos de alienação de terras devolutas às exigências legais de licitação pública. Por que? A resposta parece óbvia. Esse tipo de problema será discutido adiante quando da análise dos procedimentos de alienação de terras públicas.

De qualquer maneira, a Lei 6.383, de 7 de dezembro de 1976, introduziu a obrigatoriedade de matricular no Cartório de Registro de Imóveis, as terras devolutas arrecadadas, segundo Ribeiro407, sob a influência da experiência do INCRA.

Outra modalidade de arrecadação, criada pela Lei 6.383/76, era a chamada arrecadação sumária, discriminada pela via cartorial. Consistia em procedimento aparente simples de se levantar nos cartórios de registro de imóveis, a inexistência de domínios particulares em determinadas áreas previamente selecionadas408. Na medida em que não houvesse oposição ou pleitos de terceiros quanto ao domínio ou posse, especialmente em áreas declaradas indispensáveis à segurança e desenvolvimento nacionais, poderiam as terras, assim consideradas devolutas, ser matriculadas em nome da União. Todo o processo se fundava na emissão de certidões negativas409, lavradas pelos Cartórios de Registro de Imóveis e pelo SPU - Serviço de Patrimônio da União - e, complementarmente, pelos Órgãos Estaduais de Terras.

Para não fazer longos comentários sobre este problema que já tantas vezes tem sido mencionado neste trabalho, pode-se afirmar que, embora este procedimento pareça um grande avanço, na verdade ele só afeta os pequenos posseiros, que sequer tomam conhecimento de sua instalação. Assim, pode-se afirmar, o próprio Estado pratica, por este meio, efetivamente, um processo de expropriação por via registral, como já se fez referência neste trabalho ao se analisar as implicações do Registro Torrens. A este respeito pode-se dizer que muitas licitações e alienações de terras devolutas, realizadas por diferentes Estados da Federação, implicaram na transferência para particulares, de enormes áreas, onde viviam e trabalhavam milhares de posseiros e indígenas410. Apenas para fazer uma referência insuspeita a respeito, especificamente, deste problema, vale a

407 Op. cit. 408 Note-se que este procedimento inverte o “instituto” do “ônus da prova”, passando-o ao Estado, e não aos particulares, a investigar a legalidade de seus domínios. É assim que, procedimentos “técnicos” aparentemente criativos e inovadores são “virtualmente inventados” para facilitar certas ações ou atividades administrativas, mas, que na verdade, apenas servem para “legitimar” procedimentos “alternativos” e que acabam por complicar, ainda mais, os processos normais da administração. Na verdade apenas aparecem como complicadores dos procedimentos, inviabilizando-os. 409 Como os pequenos posseiros nunca detinham título de suas posses, portanto, não podiam as mesmas estar registradas nos Cartórios, as certidões negativas, referidas, faziam “tabula rasa”, dessas posses. Assim muitos posseiros foram vítimas da expropriação cartorial, como se tem referido neste estudo. 410 Fatos desta natureza têm sido documentados e denunciados de várias formas e em várias oportunidades. Apenas para referir algumas fontes, veja-se: FOWERAKER (op. cit.), MARTINS, E. (op. cit.); IANNI (1979 e 1981) e YOKOTA (op. cit.). Veja-se igualmente: CÂMARA DOS DEPUTADOS (1979); CONTAG (1984); e MORAES E SILVA (1996).

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pena anotar o seguinte trecho do trabalho de Paulo Yokota, na oportunidade, Presidente do INCRA:

“Também a vastidão do território dificultou o exame acurado das ocupações pioneiras existentes. No passado, infelizmente, autoridades foram induzidas a promover licitações de terras, com grandes lotes definidos na prancheta, sem um prévio trabalho discriminatório. Assim foram tituladas áreas que contavam com posseiros, sem que os direitos dos mesmos, previstos na legislação, fossem respeitados, criando-se um conflito de pretendentes.”411

Yokota refere-se a “autoridades do passado” que realizaram trabalhos de alienação de grandes áreas de terras, levantadas na “prancheta”, o que é, de fato, verdade. Entretanto, não se vê qual a diferença entre lotear terras na prancheta, ou arrecadá-las por via cartorial, como no caso da “arrecadação sumária”: é claro, como este estudo vem demonstrando, e como muitos outros também já o indicaram, que os pequenos posseiros nunca, ou apenas raramente, registraram legalmente, suas posses. Talvez isso explique o porque da “arrecadação sumária”.

3.2.2.3. Desapropriação de Imóveis Rurais

Como foi amplamente analisado nos capítulos anteriores, o instituto da desapropriação foi introduzido no ordenamento jurídico brasileiro desde a Constituição Imperial de 1824412. Entretanto, sempre com o sentido específico de “desapropriação por necessidade ou utilidade pública”, ou seja, estritamente vinculado à idéia de realização de obras públicas, do interesse específico do Estado, tais como estradas, servidões, ferrovias, barragens, edificações públicas, fortificações e construções militares, ruas, avenidas, etc. Nesse contexto, por exemplo, as áreas destinadas à formação de colônias, fossem agrícolas ou militares, seriam sempre e, por definição, em terras devolutas, públicas.

A desapropriação “por interesse social”, concebida numa perspectiva mais abrangente de promoção - além das obras acima referidas, de necessidade ou utilidade pública413 - de outras iniciativas, objetivando mudanças relevantes no ordenamento social, apenas será introduzida no ordenamento jurídico brasileiro com a Constituição de 1946 (art. 141, 16)414. E, certamente esse novo sentido atribuído aos processos de desapropriação, deveu-se à tomada de consciência por parte de determinados grupos

411 YOKOTA (op. cit., p. 5). Grifos nossos. 412 Art. 179, inciso XXII, da Constituição Política do Império do Brasil, de 25 de março de 1824 (In.: MEAF. op. cit., p. 357). Ver a discussão desse problema no capítulo 2 deste estudo. 413 Tais são os casos das Constituições de 1891 (art. 72, 17); de 1934 (art. 113, 17); de 1937 (art. 122, 14). 414 A Constituição de 1967, mantém este princípio da Constituição de 1946, em seu artigo 153, 22 na redação alterada pela Emenda Constitucional no 1, de 17 de outubro de 1969. Antes, porém, com a Emenda Constitucional no 10, de 9 de novembro de 1964, alterava o, então, 16, do artigo 141, instituindo, o pagamento da indenização prévia, em títulos da dívida pública, para os casos de desapropriação por interesse social (art. 5o). (In.: MEAF, op. cit.. pp. 575 e 576). Que passa a ser do artigo 153, 22, na redação final dada a Constituição de 1976, pela Emenda Constitucional No 9 de 17 de outubro de 1979. (Idem , pp. 3-4).

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integrantes do bloco no poder, de que muitas áreas ocupadas ilegal e improdutivamente, estariam dificultando ações de interesse para o desenvolvimento econômico e social, especialmente, a dinamização de atividades produtivas, em particular, no setor agropecuário. Por isso mesmo, a introdução desta nova modalidade de desapropriação começa a ser introduzida no ordenamento político e jurídico brasileiro a partir dos anos trinta deste século, muito especialmente no contexto da Constituição do “Estado Novo” quando começam a se consolidar outras forças sociais no bloco do poder, com a perda paulatina da hegemonia pelas oligarquias agrárias. Entretanto, como foi visto no capítulo anterior, como essa perda de hegemonia implicou, por outro lado, apenas uma nova correlação de forças, mantendo, as oligarquias, o seu prestígio no meio rural, a separação entre a desapropriação por utilidade e necessidade pública, voltada sobretudo para o meio urbano, e a desapropriação por interesse social, mais direcionada ao reordenamento rural, passam a obedecer à critérios diferenciados.

A desapropriação por utilidade e necessidade pública, no sentido acima explicitado, destinando-se, basicamente, à obras de “infra-estrutura” econômica e social, terá critérios que possibilitam maior agilidade na imissão na posse pelo “Poder Expropriante”, cabendo ao expropriados, apenas, a discussão dos valores e condições de desapropriação no campo judiciário, entretanto, sem nenhuma possibilidade de impedir ou retardar o processo de desapropriação.

No caso da desapropriação por interesse social e, especialmente, para “fins de reforma agrária”, o processo expropriatório obedece a critérios que, em última instância, praticamente inviabilizam, senão a desapropriação em si mesma - que poderá ser conseguida pela via contenciosa no curso de um longo espaço de tempo - pelo menos, certamente, a consecução da sua finalidade.

O instituto jurídico da desapropriação por interesse social, apenas veio a ser regulado, infra-constitucionalmente, pela Lei 4.132, de 10 de setembro de 1962, no Governo João Goulart, com o objetivo de facilitar ações de reforma agrária, ou, como afirma Cláudio Ribeiro415:

“esse instrumento jurídico foi instituído pela Lei 4.132 de 10 de setembro de 1962, visando promover a justa distribuição da propriedade da terra ou condicionar o seu uso ao bem-estar social.”

Em assim sendo, também quanto a esta dimensão relevante do ordenamento jurídico referente à desapropriação por interesse social, o Estatuto da Terra apenas o incorporou. Como se disse acima, apenas no que toca ao problema da forma de pagamento da indenização, que passou, a partir da Emenda no 10, a ser permitida em títulos da dívida pública, o Governo Militar conseguiu avançar. Entretanto, mesmo esta medida já havia sido proposta pelo Governo cessante.

415 RIBEIRO, op. cit., p. 9. Grifos nossos.

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A reiteração destes argumentos tem, apenas, o objetivo de registrar o fato, historicamente, posto que, geralmente, o Estatuto da Terra tem sido apresentado como um “monumento jurídico” elaborado pela competência e criatividade dos tecnocratas dos Governos Militares, o que, de fato, não corresponde à realidade. De qualquer forma, pode-se afirmar que, em princípio, o Governo teve o mérito, que não é desprezível, de fazer aprovar a mudança na forma da indenização, o que poderia ter facilitado profundas transformações na distribuição “justa” da terra, especialmente se associado à regulamentação, já referida, do preceito Constitucional referente à função social da propriedade.

De qualquer maneira, como reiteradas vezes já se referiu neste estudo, desapropriar é um ato que apenas pode ser praticado a respeito de quem detém, legalmente, a propriedade legítima do imóvel. Quer dizer, admitida a hipótese da propriedade ser legítima, a desapropriação poderá ser promovida, segundo Ribeiro, quando os demais instrumentos jurídico-legais tornam-se ineficazes para proporcionar o acesso à propriedade rural. Por outro lado, segundo Celso Antônio Bandeira de Mello,

"à luz do direito positivo brasileiro, a desapropriação se define como o procedimento através do qual o Poder Público, fundado em necessidade pública, utilidade pública ou interesse social, compulsoriamente despoja alguém de um bem certo, adquirindo-o originariamente mediante indenização prévia, justa e pagável em dinheiro, salvo no caso de certos imóveis urbanos ou rurais em que, por estarem em desacordo com a função social legalmente caracterizada para eles, a indenização far-se-á em títulos da dívida pública, resgatáveis em parcelas anuais e sucessivas, preservado seu valor real.”416

A desapropriação, em face do exposto, funciona, em termos de sua aplicação, como uma faca de dois gumes: Por um lado, possibilita a perda da propriedade por parte do particular e, por outro lado, é forma de aquisição originária da propriedade, sob a perspectiva do Poder Público. Esta é a interpretação e aplicação do instituto, em face dos sujeitos envolvidos: Estado e particular.

Neste sentido, em face dos pressupostos informados e inferidos neste trabalho, pode-se concluir que a aplicação prática da desapropriação, resta completamente subvertida e sem observância de seus pressupostos e objetivos teóricos e jurídicos. É, portanto, impossível perder um bem do qual formalmente não se é proprietário e, ao mesmo tempo, é impossível, outrossim, adquirir-se e, ainda mais originariamente, algo ou, mais especificamente, um bem imóvel que já se possui. A aplicabilidade da desapropriação, como se pode observar, nestes termos, caracteriza ato de improbidade do Estado e, ao mesmo tempo, enriquecimento ilícito para o particular417 que se beneficiou do mesmo.

416 Curso de direito administrativo. (BANDEIRA DE MELLO, 1996., p. 504). 417Os dois comportamentos, portanto, ensejam providências criminais. Para o Administrador Público aplicador irregular do instituto da desapropriação, implica a perda do cargo, em termos administrativos, sem contar com as

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A desapropriação por interesse social tem os seus objetivos definidos no artigo 18 do Estatuto da Terra418, que, na verdade, busca regulamentar o preceito constitucional da função social da propriedade, recaindo, em princípio e por definição, sobre os minifúndios e latifúndios que se encontrem nas áreas declaradas prioritárias para fins de reforma agrária por Decreto do Governo Federal. Segundo Oldair Zanata, que argumenta fundamentando-se no artigo 18 do Estatuto da Terra, tratam-se de imóveis que, pelas suas próprias características, dimensões ou formas de exploração, não cumprem a exigência legal de sua função social. Neste contexto, Cláudio Ribeiro, argumenta que

“o INCRA tem acionado esse instrumento em regiões onde se apresentem elevada incidência de conflitos quanto à propriedade, posse e uso da terra, no intuito de corrigir a estrutura fundiária da região-problema.” 419

Entretanto, a posição defendida pelos trabalhadores rurais, pequenos proprietários e posseiros, nos Congressos da CONTAG - Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura - apontam críticas fundamentais à implementação deste instrumento. Entre as críticas apresentadas, por exemplo, nos 3o e 4o Congressos, os Trabalhadores Rurais denunciam:

“que nas áreas já desapropriadas por interesse social tem ocorrido com freqüência casos em que os latifúndios, através de fraudes no cadastro, inclusive com a conivência do INCRA, têm conseguido manter grandes áreas irregularmente classificadas como empresa rural.”420

(...) “que em várias dessas áreas os trabalhadores que lutaram pela desapropriação... têm sofrido inúmeras pressões de latifundiários e grileiros devido à demora do INCRA em se imitir na posse da terra;”421

“que os últimos governos não cumpriram as recomendações do Estatuto da Terra em relação às áreas desapropriadas por interesse social.”422 Ou seja, não promovendo o acesso aos pequenos posseiros, trabalhadores, arrendatários, etc., existentes nestas áreas, geralmente de tensão e conflito; pelo contrário, incorporando-as ao patrimônio do INCRA e depois, transferindo-as à iniciativa privada. “que os projetos de colonização, bem como em casos de desapropriação por tensão social, os critérios de seleção

providências civis (restituição do dinheiro ao erário público) e demais tipificações criminais. Ao particular, por seu turno, a mesma sorte de providências e punições, no âmbito administrativo, civil e criminal. 418 Ver Lei 4.504/64 (Loc. cit.). 419 RIBEIRO, op. cit., p. 11. Grifos nossos. 420 CONTAG (1985, p. 75). Grifos nossos. 421 Idem, p. 75. 422 Idem., p. 75; grifos nossos.

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marginalizam os trabalhadores rurais do acesso à terra, além de beneficiar pessoas sem passado nem vocação agrícola.”423

A respeito de questões desta natureza, ver, por exemplo, o seguinte depoimento - e há muitos depoimentos semelhantes - citado por Octávio Ianni, a respeito da privatização das “áreas de interesse para o desenvolvimento e segurança, nacionais”, na faixa de 100 quilômetros das rodovias na Amazônia, que, pelas normas da Lei 5.504, deveriam ser destinadas à “reforma agrária”:

“Essas são terras de barão. Quando abriram essa estrada. Disseram que ia ter terra para os pequenos, que ia haver loteamento para os agricultores que quisessem ocupar lote de terra e tal. Quando abriram as inscrições já estava tudo tomado e só por gente da cidade.”424

Fenômenos semelhantes, que caracterizam o privilégio de grandes interesses ou o desrespeito aos direitos legalmente assegurados aos pequenos posseiros, proprietários e indígenas, são evidenciados nos chamados processos de desapropriação por “utilidade pública”, especialmente nos casos de construção de barragens e hidroelétricas. As seguintes críticas foram postas no 3O Congresso da CONTAG, realizado em Brasília, de 21 a 25 de maio de 1979:

“(...) que as desapropriações por utilidade pública têm sido causa de desagregação de comunidades rurais e de agravamento do êxodo rural;

(...) que os trabalhadores dessas regiões não têm recebido do Poder Público nem mesmo as indenizações justas e prévias estabelecidas pela Constituição Federal.; que, ao contrário, têm tido suas posses e benfeitorias destruídas e, quando muito recebem indenizações irrisórias e tardias.”425

Finalmente, cabe reiterar as afirmações que vêm sendo desenvolvidas a respeito dos processos de desapropriação, de que os mesmos têm como pressuposto necessário a existência da propriedade legítima. Isto significa que as autoridades responsáveis pela gestão da Política Fundiária, especialmente as vinculadas ao INCRA, que é o Órgão especializado do Executivo, legalmente responsável por esta área, não podem, em nenhuma hipótese cometer “equívocos” de propor “desapropriações” e, menos ainda, indenizações, de terras que, no decorrer do processo, vêm a ser reveladas como sendo públicas, nem, muito menos, desapropriá-las para, em seguida, revendê-las ou concedê-las aos antigos “proprietários”, como foi denunciado no Congresso da CONTAG e como se pode deduzir da seguinte Acórdão de Agravo de Instrumento, contra o INCRA:

“EMENTA: Ação de desapropriação - Se no seu curso o órgão desapropriante verificar que o domínio do bem que pretender

423 CONTAG (1979, p.158). 424 (IANNI, 1984, p. 179, grifos nossos). Ver detalhes a respeito de processos similares no Estado do Pará, Paraná e Mato Grosso em FOWERAKER (op. cit.). 425 CONTAG (1979, pp. 166-167).

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incorporar compulsoriamente ao seu patrimônio já lhe pertence, o que lhe cumpre fazer é desistir da ação e, pela via própria, obter reconhecimento da condição de proprietário, nunca, porém, pleitear tal reconhecimento na mesma expropriatória.”426

É realmente curioso o “equívoco” cometido pelo “órgão expropriante”, isto é, o INCRA, como fica evidente nesta sentença do TRF do Mato Grosso. Primeiro, fica evidente que o INCRA estaria pleiteando a desapropriação de imóvel que “já lhe pertencia”; segundo, que havia cometido um erro jurídico elementar, de “Petição”, ao requerer na mesma expropriatória, o reconhecimento de sua condição de proprietário, o que, como indefere o Juiz, deveria ser proposto “pela via própria”. Parece incrível que a Procuradoria Jurídica do próprio INCRA desconhecesse tão elementarmente o procedimento que lhe competia exigir de terceiros.

Entretanto, fatos como este são comuns quando se trata de por em prática qualquer que seja o tipo de ação fundiária, especialmente quando implica interferir nos grandes interesses dos especuladores de terras. Que esse tipo de “equívoco” é suspeito, não resta dúvidas. Especialmente, em se tendo em consideração que as ações de desapropriação são propostas e conduzidas pela Procuradoria Jurídica do INCRA.

3.2.2.4. Aquisição de Imóveis Rurais e PROTERRA

Em 1971, dentro da perspectiva do Governo, de “promover o mais fácil acesso do homem à terra427 ”, é instituído, com base no Decreto-lei no 1.179, de 6 de julho, o Programa de Redistribuição de Terras e de Estímulo à Agro-indústria do Norte e Nordeste (PROTERRA) conforme enunciado no artigo 1o:

“É instituído o Programa de Redistribuição de Terras e de Estímulo à Agro-indústria do Norte e Nordeste (PROTERRA), com o objetivo de promover o mais fácil acesso do homem à terra, criar melhores condições de emprego de mão-de-obra e fomentar a agro-indústria nas regiões compreendidas nas áreas de atuação da SUDAM e da SUDENE.”428

Para se ter uma idéia da importância atribuída a este mecanismo de aquisição de imóveis, foram destinados nada menos que quatro bilhões de Cruzeiros, na época, ao Programa (art. 2o), que deveriam ser aplicados nos seguintes fins (art. 3o):

“a) aquisição de terras ou sua desapropriação, por interesse social, inclusive mediante prévia e justa indenização em dinheiro, nos termos que a lei estabelecer, para posterior venda

426 Agravo de Instrumento no 38.461 - MT. TRF, 3a Turma, de 21 de março de 1979 9 (In.: Diário da Justiça de 24 de outubro de 1979). 427 RIBEIRO (op. cit., p. 11) 428 Decreto-lei no 1.179, de 6 de julho de 1971 (BRASIL. Presidência da República. Brasília: 1979.).

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a pequenos e médios produtores rurais da região, com vistas à melhor e mais racional distribuição de terras cultiváveis;429 b) empréstimos fundiários a pequenos e médios produtores rurais, para aquisição de terra própria cultivável ou ampliação de propriedade considerada de dimensões insuficientes para exploração econômica e ocupação da família do agricultor;

c) financiamento de projetos destinados à expansão da agroindústria, inclusive a açucareira, e da produção de insumos destinados à agricultura; d) assistência financeira à organização e modernização de propriedades rurais, à organização ou ampliação de serviços de pesquisa e experimentação agrícola, a sistemas de armazenagem e silos, assim como a meios de comercialização, transportes, energia elétrica e outros; e) subsídio ao uso de insumos modernos; f) garantia de preços mínimos para os produtos de exportação; e g) custeio de ações discriminatórias de terras devolutas e fiscalização do uso e posse da terra.”430

Como se pode verificar, tratava-se de um Programa ambicioso e relevante. Entretanto, evidentemente, seus objetivos não eram facilitar o acesso à terra aos pequenos produtores, especialmente os sem terra ou com pouca terra. Tratava-se, como fica evidente no enunciado de seus diferentes objetivos, de incentivar a formação de empresas rurais, muito especialmente voltadas para a “modernização” dos processos produtivos, entendida esta, como a incorporação de processos e métodos mais “avançados” de produção, mediante a incorporação de novos insumos e tecnologias, assim como, pela implementação de métodos de gerência “racional” e, sobretudo, voltados para a produção de energéticos e exportáveis. Ou seja, tratava-se de um Programa perfeitamente coerente com o “espírito” defendido na Mensagem 33. Quanto à sua formulação, pode-se dizer que se tratava de um projeto bem elaborado e que, se executado como preconizado, apesar de não ter a possibilidade de efetivar a “justa” distribuição da terra, teria promovido um relevante incremento da produtividade e organização da agroindustria nas Regiões Norte e Nordeste. O problema é que, mesmo neste sentido, o PROTERRA/FUNTERRA fracassaram retumbantemente em atingir os objetivos a que se propunha431.

429 Para este fim foi criado o FUNTERRA (Fundo de Redistribuição de Terras), art. 2o do Decreto 70.677, de 6 de junho de 1972 ( BRASIL. Presidência da República. Brasília: 1972.). 430 Decreto-lei no 1.179/71 (Loc. cit.) 431 Posição contrária a esta é defendida por Cláudio Ribeiro (RIBEIRO, op. cit., p.12): “Este programa, ao longo de 13 anos (...) tem proporcionado resultados bastante expressivos com a aquisição de 626 mil hectares nos Estados de Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Ceará, Piauí e Maranhão, beneficiando cerca de 20 mil famílias.”

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O que efetivamente promoveram foi o mais fácil acesso à terra à grupos específicos, inclusive de profissionais liberais, especialmente da área de ciências agrárias432 (agrônomos, veterinários, e outros). Esses grupos, além de sempre terem sido os tradicionais beneficiários de todos os programas oficiais, tiveram, assim, a possibilidade de, não apenas obter recursos para a aquisição da terra, mas, também, de assegurarem amplos e vantajosos financiamentos aos seus projetos. Mais uma vez, pode-se dizer, foi promovida uma determinada e específica “redistribuição” de terras e recursos, entretanto, não para as populações trabalhadoras, sem terra ou com pouca terra.

Entretanto, como se vem tentando evidenciar neste capítulo, esta era a “Reforma Agrária e Agrícola” contida no Projeto encaminhado pela Mensagem 33 e posta em prática pelos Governos Militares. Este era o cerne de sua Política Fundiária e de Desenvolvimento Rural então proposta.

Essas afirmações podem ser confirmadas, entre outros dados e depoimentos, pelas seguintes colocações levantadas pela CONTAG ao apresentar, em 1984, uma avaliação sobre o Programa Nacional de Política Fundiária dos Governos Militares:

“No que diz respeito à redistribuição de terras o PROTERRA não só representou um retrocesso na Reforma Agrária(...) Ressuscitou o pagamento em dinheiro das indenizações por desapropriação, em flagrante contradição com o que preconizava a legislação em vigor, isto é, o pagamento das indenizações em Títulos da Dívida Pública. Na prática ficou evidenciado que o PROTERRA não passou de um mecanismo de crédito e incentivo financeiro fáceis e vultosos para o latifundiário e como instrumento de liberação de mão-de-obra e seu aviltamento.”433

3.2.2.5. Colonização.

Como foi amplamente discutido nos capítulos anteriores, no Brasil os processos de colonização, especialmente após a aprovação da Lei 601 de 1.850, sempre foram concebidos como forma de atração e fixação de populações pobres, inicialmente, de migrantes estrangeiros, depois, já nas primeiras décadas do século XX, de migrantes nacionais, ou em regiões de fronteira, como o objetivo genérico de ocupação e desbravamento, ou nas áreas dominadas pela produção para exportação, como forma de assegurar a mão-de-obra necessária a estes empreendimentos.

Nesta perspectiva, os processos de colonização, apesar de incorporar tais objetivos, na verdade, situavam-se em um contexto mais amplo de política de ocupação de terras e desbravamento: tratava-se de demarcar com clareza a relevância e os

432 Ver o inciso V do artigo 25 da Lei 4.504/64, que regula as prioridades para venda das terras públicas, e que são os mesmos que regulam as ações, neste sentido, para os financiamentos do PROTERRA/FUNTERRA. 433 CONTAG (1982, pp. 3-4). Grifos nossos.

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objetivos deste processo. Ele teria que ser implementado de forma complementar e não antagônica com os interesses do latifúndio ou das “grandes empresas” agropecuárias: deveriam, ao contrário, funcionar como suporte ao desenvolvimento destas434. Exatamente por isso os processos de colonização sempre foram pensados, pelos Governos brasileiros, ou com a característica de desbravamento de novas fronteiras ou como celeiro de mão-de-obra para as grandes fazendas. E sempre longe dos domínios do latifúndio, especialmente quando se tratasse de colonização voltada para a fixação de populações pobres mediante o acesso a pequenas parcelas de terra.

Na concepção do Estatuto da Terra, apesar de se ter utilizado de uma terminologia atualizada, aparentemente, coerente com determinadas concepções “teóricas avançadas”, o espírito do Projeto de colonização continuava o mesmo. Especialmente quando se tratava da “resolução” de problemas de tensão e conflitos sociais. Desde o início, mas especialmente a partir da implementação do Programa de Integração Nacional (PIN), no Governo do General Emílio Garastazu Médici, a idéia era associar as terras “vazias” da Amazônia aos homens sem terra, especialmente do Nordeste.

Mas não apenas isto: logo começaram a aparecer os argumentos referentes à “crise minifundiária” da região Sul, em especial do Paraná e do Rio Grande do Sul, que, por suposto, passava a exigir o deslocamento de populações dessas áreas para as regiões onde houvesse maior disponibilidade de terras. É no contexto deste tipo de argumentação que será promovido um amplo programa de aliciamemto de pequenos sitiantes435 desta região para que vendessem suas áreas e se deslocassem para áreas maiores nas Regiões pioneiras - inicialmente, no Mato Grosso e, na seqüência, na Amazônia, especialmente Rondônia436. Assim, surge um novo argumento: aliar a experiência destes agricultores à formação de pequenas e médias empresas, na Amazônia e no Centro-Oeste.

Com base nestas duas “concepções”, começam a ganhar corpo, “teoricamente” as teses da Colonização Particular em oposição à Colonização Oficial. Esta destinando-se aos migrantes mais pobres e desprovidos de recursos materiais e experiência agrícola “mais avançada”; aquela, destinada a agricultores, especialmente da Região Sul, ou

434 São relevantes, a este respeito, os trabalhos de José Vicente Tavares dos Santos (citados), que procedem a uma análise fundamentada dos processos de colonização desenvolvidos no Brasil, muito particularmente, as articulações entre a Colonização promovida sob a égide do Estatuto da Terra e suas repercussões na luta pela terra no Rio Grande do Sul. Muito importante é o estudo de Octávio Ianni, “Colonização e Contra-Reforma Agrária”, onde ele realiza uma excelente análise da articulação dos processos de colonização com a reconcentração fundiária, sobretudo nas regiões sul e sudeste, numa perspectiva que antecipa, até certo ponto, as constatações feitas por José Vicente Tavares dos Santos. 435 Ver a respeito, especificamente do problema dos Projetos de Colonização envolvendo pequenos sitiantes do Rio Grande do Sul, o excelente estudo de José Vicente Tavares dos Santos (SANTOS, 1993). 436 Essa questão foi tratada de forma competente e profunda por Octávio Ianni, em seu livro Colonização e Contra-Reforma Agrária. José Vicente Tavares dos Santos procedeu a um excelente estudo deste problema em Matuchos, Exclusão e Luta (ambos citados). Ver igualmente a tese de Mestrado do Autor (JONES, 1987). Ver o depoimento do Presidente da Associação de Empresários a Amazônia à CPI do Sistema Fundiário (citado por JONES, 1987, p. 95).

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estrangeiros, que pudessem aliar experiência agrícola a alguma disponibilidade de recursos, sobretudo financeiros. Estes, por suposto, poderiam pagar pelos lotes, com o produto da venda de suas pequenas parcelas no Sul, resultando assim, num duplo efeito: por um lado, possibilitando a reconcentração das áreas de empresas agropecuárias no Sul, por outro lado, assegurando os lucros da especulação imobiliária437 promovida pelas Empresas de Colonização Particular. Este fato é claramente colocado por Paulo Yokota, então Presidente do INCRA, nos seguintes termos:

“Nas conjunturas agropecuárias favoráveis, os resultados colhidos no Centro-Sul foram utilizados na ampliação de áreas nas regiões Centro-Oeste, principalmente para assentamento de filhos de colonos que foram pioneiros no Sul. Aproveitando mão-de-obra qualificada, treinada numa agropecuária de melhor nível tecnológico, a colonização privada está gerando uma classe média rural de grande importância, tanto na produção pecuária, de cereais, como em alguns produtos de alto valor comercial, como café, cacau, pimenta(...). As necessidades de investimento são elevadas e as limitações de financiamentos a médio e longo prazos constituem restrições para a ampliação dos projetos de colonização privada. Na nova conjuntura de fretes mais caros e custos financeiros mais realistas as atividades exercidas nestes projetos deverão se deslocar para os que proporcionam retornos reais positivos, obrigando a uma maior racionalidade.” “Os projetos de colonização oficial estão mais presentes em frentes realmente pioneiras, procurando atender a uma camada mais modesta da população, dando elevada prioridade aqueles que foram obrigados a se deslocar de seus antigos locais de trabalho, pela formação de reservas indígenas, pela construção de projetos de hidrelétricos, por questões fundiárias. Isso além de atender à corrente de migração expontânea.”438

É exatamente este o sentido em que é regulamentada a Colonização Oficial, no Capítulo II, Seção I, da Lei 4.504 de novembro de 1964, e a Colonização Particular, na seção II do mesmo capítulo. Portanto, mais uma vez, os projetos implementados nesta áreas estavam claramente postos no Estatuto da Terra e claramente referidos nas diretrizes expostas na Mensagem 33 do General Humberto Castelo Branco.

Aliás, essas conclusões são claramente colocadas por Cláudio Ribeiro, Diretor do INCRA, no texto citado, ao afirmar que:

“A colonização propriamente dita é o complemento essencial da desapropriação e intervenção do Poder Público na propriedade privada da terra rural, que não cumpre sua função social, definida em Lei. É também o instrumento utilizado pelo Poder Público para colocar em uso terras discriminadas e arrecadas, transferindo-as ao domínio

437 Ver detalhes acerca deste processo no próximo capítulo. 438 YOKOTA, op. cit., p.8. Grifos nossos.

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privado. Ressalte-se a colonização como instrumento de desenvolvimento em áreas pioneiras, regulando e dando tratamento aos fluxos migratórios naturais ou orientados por ações do Governo.”439

Assim, também em se tratando das ações de Colonização, pode-se afirmar que elas foram implementadas exatamente como eram concebidas no corpo do modelo de desenvolvimento rural e de “reforma agrária” proposto pela Mensagem 33 e pelo Estatuto da Terra. Se estas ações não promoveram, efetivamente, como de fato não o fizeram, a ampla distribuição da propriedade para os posseiros e pequenos agricultores com pouca terra ou para os trabalhadores rurais sem terra, é porque o sentido da proposta do Governo não pressupunha esta alternativa como uma meta relevante ao desenvolvimento rural, mas apenas como um meio de amenizar as tensões sociais mais graves e suprimir conflitos no campo.

Ou seja, o Projeto de Reforma Agrária do Governo era distinto da leitura feita do mesmo pelas camadas pobres e pelos trabalhadores rurais do campo, que tinham a expectativa de ter acesso a um pequeno pedaço de terra, ou, como bem colocou, José Vicente do Santos, que alimentavam o “sonho da terra”. Mas isso não significa que o Estatuto da Terra, tal como foi concebido não tenha sido executado, ao contrário: ele o foi em toda a sua essência. A análise dos instrumentos acima não deixa dúvidas quanto a este fato.

3.2.3. Titulação de Terras Públicas: Alienação e Privilégios

Este capítulo, que analisa a proposta da Política Fundiária do Governo, tal como exposta na Mensagem 33 e regulamentada pela Lei 4.504/64 e normas e decretos que se lhes seguiram durante todo o período dos Governos Militares, não poderia ser concluído sem uma análise das formas de alienação ou privatização das terras públicas.

Afinal, este foi o objetivo fundamental da regulamentação do imperativo constitucional de 1946, proposto na Mensagem 33, que encaminhava o Estatuto da Terra ao Congresso Nacional. Antípoda, do Estatuto do Trabalhador Rural, reduzia o problema da propriedade enquanto condição inseparável da atividade produtiva, portanto envolvendo relações entre o capital e o trabalho, à uma simples relação formal entre o sujeito e a coisa: o homem e a terra.

Neste contexto, o Estatuto da Terra era, efetivamente, “da Terra” e não do Trabalhador Rural, configurando-se, neste contexto, exatamente como o instrumento normativo que possibilitaria ao Governo, assegurar a subordinação do trabalho pela subordinação do processo de acesso à terra a determinados interesses bastante específicos. Tratava-se, senão de regulamentar efetivamente todas as terras ilegalmente em poder particular (o “fato consumado”), pelo menos, de promover, dentro de um

439 RIBEIRO, op. cit., p. 12. Grifos nossos.

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determinado e específico projeto de desenvolvimento econômico, e de integração da agricultura à economia nacional, a alienação das terras públicas dentro de uma específica finalidade.

Subordinado, desta forma, o acesso à terras aos imperativos da geração de excedentes econômicos, o modelo de desenvolvimento proposto de fato colocava o acesso à propriedade fora - e longe - do alcance dos trabalhadores rurais.

Era, portanto, efetivamente um Estatuto da Terra e não do trabalhador rural. Pois, como bem acertadamente José de Souza Martins definiu o Estatuto da Terra:

“O que os militares tentaram fazer (...) juntamente com a elaboração do Estatuto da Terra, foi desenvolver uma política de ocupação da Amazônia, como meio de resolver a contradição que dificultava a solução política para o problema da associação do grande capital com a propriedade da terra. O Estatuto viabilizou essa associação, e a política para a Amazônia, com a criação da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia - SUDAM - , tornou-se real.(...) Através do governo militar, os grandes capitalistas passaram a ser subsidiados para se tornarem, também, grandes proprietários de terra. (...) No caso brasileiro, os militares constataram que, se a propriedade da terra representa um impecilho ao desenvolvimento do capital na agricultura, é necessário remover esse impecilho, sem impugnar ou limitar o direito de propriedade, que ocorreria através da nacionalização da propriedade (da terra) ou através da reforma agrária.”440

Para o bem ou para o mal, foi efetivamente promovida uma ampla modificação no caráter e na forma da estrutura fundiária brasileira. Se isso implicou - como de fato implicou - a manutenção e, até, agravamento, da concentração da propriedade fundiária, talvez a explicação deste fato possa ser dada pelo próprio caráter do modelo de desenvolvimento econômico proposto que, fundado na necessidade de aporte de recursos de forma concentrada, implicava determinado nível de excludência dos trabalhadores com relação à propriedade territorial: esta era uma restrição do próprio modelo, aliás, implícita no conceito do minifúndio como unidade de produção impossível de ser mantida, por suas próprias condições e características endógenas.

É, portanto, no contexto deste modelo e desta concepção do desenvolvimento econômico, segundo os quais, os problemas da superação da pobreza e da excludência, social, em particular, a rural, apenas poderiam ser efetivamente resolvidos pela ampliação da capacidade da economia rural (e industrial) de absorver mão-de-obra e gerar rendas, economias de escala e excedentes, sobretudo, exportáveis, e não

440 José de Souza Martins. As lutas dos trabalhadores rurais na conjuntura adversa. In: Direito insurgente II. 1988-1989. Anais da reunião do conselho do Instituto Apoio Jurídico Popular. Rio de Janeiro: S.d., p. 11.

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necessariamente pela “distribuição” de pequenas parcelas441 de terras, que o processo de privatização das terras públicas é colocado.

Destarte, apenas tendo em consideração estas características do modelo é que se poderá compreender as diferentes formas de alienação de terras públicas ou de legitimação de terras devolutas em poder de particulares, conforme os instrumentos jurídicos e administrativos legalmente estabelecidos para este mister pelos Governos Militares.

3.2.3.1. Legitimação de Posses

O processo de legitimação de posses, legalmente assegurado desde o longínquo instituto de sesmaria e, sobretudo, consagrado na Lei 601 de 1850442, sofreu, com a instituição das normas e regulamentos que se seguiram à promulgação da Lei 4.504, de novembro de 1964, um profundo e imenso recuo. Foram estabelecidas as regras fundamentais que iriam possibilitar um amplo e sistemático processo ilegítimo (mas, aparentemente, “legal”) de expulsão dos pequenos posseiros de suas terras de trabalho.

Pelas novas regras e regulamentos estabelecidos a partir de 1964, a legitimacão de posses dar-se-á para áreas de até 100 hectares e consiste, não no fornecimento, pelo Estado, do título de propriedade, mas em uma Licença de Ocupação (ou Concessão de Direito Real de Uso, assegurado, em princípio, Constituição Federal de 1967, no seu Art. 171)443, com prazo mínimo de quatro anos, aos posseiros que preenchessem as exigências de morada habitual e cultura efetiva, diretamente efetuadas pelo mesmo e sua família, desde que não fossem proprietários rurais. Ao final deste prazo, teria ainda o posseiro (pequeno posseiro, bem entendido) que comprovar a sua “capacidade para desenvolver a área”. Ainda assim, ele teria apenas a preferência para adquirir o lote, pagando pelo mesmo o “valor histórico da terra nua”, constante na tabela do INCRA, sujeitando-se além destas, as seguintes condições:

“Art. 29 O ocupante de terras públicas, que as tenha tornado produtivas com o seu trabalho e o de sua família, fará jus à legitimação da posse da área contínua até 100 (cem) hectares, desde que preencha os seguintes requisitos: I. não seja proprietário de imóvel rural; II. comprove morada permanente e cultura efetiva, pelo prazo

mínimo de 1 (um) ano. 1o A legitimação da posse de que trata o presente artigo consistirá no fornecimento de uma licença de ocupação, pelo prazo mínimo de 4 (quatro) anos, findo o qual, o ocupante terá a

441 Ou, como dizia o Senhor Roberto Campos, “pela distribuição de um bolo insuficiente”: Ver, o capítulo 5 adiante, onde estes argumentos de Roberto Campo são discutidos. Também, SIMONSEN & CAMPOS (1976), especialmente o Capítulo X. 442 Ver capítulos 1 e 2 deste estudo. 443 Esta mesma condição é, inclusive, mantida na Constituição Federal de 1988, no seu Art. 183, parágrafo 1o.

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preferência para a aquisição do lote, pelo valor histórico da terra nua, satisfeitos os requisitos de morada permanente e cultura efetiva e comprovada a sua capacidade para desenvolver a área ocupada.”444

Observe-se que se tratava, evidentemente, de uma arbitrariedade e, além disso, em absoluta afronta ao ordenamento jurídico brasileiro, que sempre assegurou o direito de aquisição da propriedade da terra com fundamento na posse mansa e pacífica, explorada diretamente pelo posseiro e sua família445.

Como será analisado no estudo acerca das “outras formas” de alienação e titulação de terras públicas, a restrição acima, que se referia exatamente aos pequenos posseiros, não terá o menor efeito sobre as pretensões de grandes especuladores, posseiros e grileiros especializados.

Apenas para se fazer uma comparação entre as duas regras de legitimação de posses - a de 1850 e a atual - veja-se como esta questão era colocada na Lei de Terras:

“Art. 5o Serão legitimadas as posses mansas e pacíficas, adquiridas por ocupação primária, ou havidas do primeiro ocupante, que se acharem cultivadas ou com princípio de cultura e morada habitual do respectivo posseiro ou de quem o represente, guardadas as regras seguintes: 1o Cada posse em terras de cultura ou em campos de criação, compreenderá, além do terreno aproveitado ou do necessário para pastagem dos animais que tiver o posseiro, outro tanto mais de terreno devoluto que houver contíguo, contanto que em nenhum caso a extensão total da posse exceda a uma sesmaria para cultura ou criação, igual às últimas concedidas na mesma comarca ou na mais vizinha446.

Só que neste caso, como foi estudado e discutido no capítulo 2, o objetivo era assegurar os direitos e, evidentemente, os privilégios das grandes posses. Na Lei de

444 Lei 6.383, de 7 de dezembro de 1976 (BRASIL. Congresso Nacional. Brasília: 1976.). Grifos nossos. Embora esteja para além do período de análise deste trabalho, é interessante tecer-se alguns comentários a respeito da continuidade destas questões: A Constituição Federal de 1988 introduziu o contraditório nos processos administrativos (Art. 5o, LV). Como avalia Luiz Lanzellotti Baldez: “Os juizes ... não podem mais conceder liminares sem a audiência e defesa da parte ré - a comunidade dos posseiros ocupantes da terra (litisconsórcio), presença necessária no processo para que tenha caracterizado o contraditório. Esse é o maior ganho das ocupações na Constituição.” Cf. A terra na Constituição. In: Direito insurgente II. 1988-1989. Anais da reunião do conselho do Instituto Apoio Jurídico Popular. Rio de Janeiro: S.d., p. 88. 445 O 3o do artigo 153 da Constituição Federal de 1967, ao afirmar que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”, rigorosamente assegurava as “posses legitimas”, assim definidas desde a Lei 601 de 1850, e por todas as legislações ulteriores, as posses mansas e pacíficas, adquiridas de boa-fé e efetivamente exploradas pelos respectivos posseiros e suas famílias. Esse direito à legitimação, amplamente assegurado na Lei 601 de 1850, como se viu no capítulo 2, (para garantir privilégios dos grandes posseiros) mas que também se estendiam aos pequenos, foi, para estes últimos, gradativamente restringido, até reduzir-se a 25 hectares. A Constituição de 1967, aparentemente, beneficia os pequenos posseiros, ampliando o limite para 100 hectares (art.171). Entretanto, transforma o direito líquido e certo de legitimação, restringido apenas pela exploração efetiva e morada habitual, em um “direito” que será disposto pela Lei Federal, que, como se vê acima é reduzido a quase nada. Trata-se da antiga tradição do Executivo de se utilizar da alternativa legal para “dar” formalmente, com uma mão e “retirar”, efetivamente, com a outra. 446 Lei 601 , de 18 de setembro de 1850 (In.: MEAF, op. cit., pp.357-361).

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1976 e no Estatuto da Terra, as formas de assegurar os mesmos privilégios são juridicamente efetivas e especializadas, como será evidenciado pela análise que realiza a seguir.

3.2.3.2. Alienação com Dispensa de Licitação

Esta modalidade de alienação, que procura, aparentemente, compensar as perdas impostas aos pequenos posseiros, aproxima-se da norma consagrada na Lei 601 de 1850 e respectivo Regulamento, em vários sentidos. Destina-se à alienação de grandes áreas, até 3.000 hectares, mantidos os requisitos de posse mansa e pacífica por mais de dez anos, residência habitual e cultura efetiva e direta pelo posseiro e sua família. Trata-se, outrossim, de um processo de alienação de terras públicas, precedido de Decreto Federal que autorize a dispensa de licitação, além do pagamento do “valor da terra nua”. Então não se trata de legitimação, mas de venda de terras públicas; não se trata, também, de reconhecimento do direito de posse, de quem trabalha na terra e a torna produtiva, mas, de assegurar de forma seletiva, o direito de adquirir a propriedade mediante determinados critérios de seleção de clientes.

Veja-se que tais exigências, efetivamente, colocam fora desse tipo de procedimento a grande massa de pequenos posseiros. Além do pagamento do preço da terra nua, que apesar de ser “irrelevante” para os grandes posseiros e, sobretudo para grileiros especializados e especuladores; era “proibitivo” para os pequenos posseiros e agricultores - neste caso, fazendo lembrar os critérios o preço adequado, de Wakefield. Além disto, a exigência de Decreto Federal de dispensa de licitação deixa claro que este procedimento era exclusivo para os processos de apropriação privilegiada e excludentes, em relação ao resto da população que, legitimamente, explorava suas pequenas posses, muitas vezes há muitas gerações. Este procedimento se constituiu, de fato, em um dos métodos da “grilagem especializada” na qual o “proprietário” já se apresentava diante do posseiro munido do respectivo “título legítimo de propriedade.”447 Como se pode verificar, mais uma vez as autoridades fundiárias se utilizam da linguagem cifrada do jargão jurídico, não apenas para restringir os direitos reais dos pequenos posseiros, mas, sobretudo, para facilitar a alienação de terras públicas, inclusive, ocupadas por posseiros e indígenas, para a iniciativa privada. Este tipo de procedimento consagra, portanto, legalmente, privilégios.

3.2.3.3. Concessão com Dispensa de Licitação.

Essa modalidade de alienação e titulação de terras públicas, de forma mais profunda que a anterior, configura-se em um verdadeiro monumento jurídico à grilagem

447 Ver a respeito, o Relatório da CPI do Sistema Fundiário (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1979).

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especializada, à ilegalidade e à fraude. Trata-se de uma verdadeira “obra prima” do estelionato no campo da legislação fundiária.

Ocupa-se, essa modalidade de titulação de terras públicas em favor de particulares, de legitimar títulos ilegítimos. Ou seja, “em áreas de até 600 vezes o módulo de exploração indefinida448” - isto é, de latifúndios, conforme a definição do Estatuto da Terra - contemplando, indistintamente,

“pessoas físicas ou jurídicas de direito privado, detentoras de áreas transcritas no registro imobiliário, com vícios insanáveis, cuja cadeia dominial tenha sido INICIADA EM 28 DE JUNHO DE 1966449.”

Só faltou a esta regra a referência ao nome ou nomes das “pessoas físicas ou jurídicas de direito privado” a que se destinava este privilégio. “vícios insanáveis” em linguagem jurídica, significa fraude, nulidade, documento forjado, ilegal. Como então proceder à mágica de tornar legítimos títulos sabidamente ilegítimos? Como se disse acima, este fato dispensa maiores comentários: trata-se de um monumento ao privilégio. Por isso mesmo preferiu-se explicitar este procedimento com base na citação de trecho do Trabalho do Diretor de Departamento de Desenvolvimento Rural do INCRA, Cláudio José Ribeiro, portanto, pessoa absolutamente insuspeita, neste caso específico, para a definição dessa modalidade de “alienação, venda e titulação” de terras públicas.

É claro que havia, também, determinadas exigências: “o prévio cancelamento dos registros” - que seria desnecessário, posto se tratam, juridicamente, de títulos nulos - e a “implementação de projeto de relevante interesse nacional”, naturalmente, definido como tal pelas mesmas autoridades que tornaram legítimos qualquer documento ilegal.

“A concessão se formaliza com a expedição de Contrato de Concessão de Terras Públicas, antecedido de Resolução do Senado Federal, de Decreto Federal autorizativo de dispensa de licitação e o pagamento da terra nua pela pauta vigente no INCRA.”450

Segundo Oldair Zanatta, diretor do Departamento de Recursos Fundiários do INCRA, tentando minimizar a formulação absolutamente casuística desta norma de alienação de terras devolutas da União para a iniciativa privada, defendia, no Simpósio Internacional de Experiência Fundiária, realizado em Salvador, em 1984, que o Contrato de Concessão de Domínio de Terras Públicas,

448 RIBEIRO, op. cit., p.16. 449 Citado em RIBEIRO, op. cit., p.16. Grifos nossos. 450 RIBEIRO, op. cit.: 16. Grifos nossos.

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“foi uma forma adotada para proteger investimentos pioneiros na Amazônia. Teve pouca aplicação e está praticamente em desuso.”

Difícil compreender uma norma tão casuística, ilegal e danosa a probidade administrativa e ao patrimônio da União. Observe-se que, diante de seu flagrante caráter de fraude contra o patrimônio do país, busca-se agregar um conjunto de “exigências” e especificações com a nítida intenção de oferecer-lhe uma “estética” de justificação: afirma-se que se destinava a “proteger investimentos pioneiros” (de 28 de junho de 1968!).

Por outro lado, segundo os defensores deste procedimento, o mesmo pressupunha a “implantação de projetos de relevante interesse regional”, além de exigir a aprovação do Senado Federal (o que significa afirmar que se tratam de áreas que excediam ao limite constitucionalmente estabelecido para alienação de terras públicas independentemente de autorização). Para finalizar, afirmam que o rigor do procedimento exigia, ainda, o necessário “Decreto Federal” dispensando a licitação pública (ou seja, a concorrência). Tudo isto, na verdade não justifica nem consegue ocultar o evidente caráter de apropriação e legitimação privilegiada451 e de “grilagem altamente especializada”, assegurados por esta norma.

3.2.3.4. Alienação em Concorrência Pública: Licitação452

Trata-se de outra modalidade de transferência de domínio de grandes extensões de terras públicas para particulares, sob a capa, mais uma vez, “do interesse nacional”, pressupostamente compatibilizados os interesses privados, com os planos de desenvolvimento453 . Trata-se de alienação de áreas públicas de até 3.000 hectares, ou seja, o limite máximo permitido pela Constituição Federal, independentemente da autorização do Senado Federal. O negócio se concretiza através de um “Contrato de Alienação de Terras Públicas” ou “Promessa de Compra e Venda”, conforme o caso, no qual o adquirente obrigava-se a determinadas cláusulas resolutivas que, se não cumpridas, dariam, teoricamente, ensejo à anulação do processo de alienação, retornando a área ao Patrimônio da União. Segundo Oldair Zanatta esse tipo de negócio foi amplamente utilizado nas “regiões pioneiras, especialmente Pará e Rondônia.”

Mais uma vez, estava aberta a possibilidade de “Vendas” de grandes extensões de terras públicas da União, bastando que fossem apresentados Projetos que, formalmente, fossem considerados como “relevantes ao desenvolvimento regional” e compatíveis com os Planos de Desenvolvimento. 451 Além disto, se todas estas exigências fossem cumpridas, especialmente a autorização do Senado e o Decreto Presidencial, isto apenas forneceria a prova material de que se tratava de uma fraude em larga escala, envolvendo vários escalões do Governo, inclusive, a “Presidência” Militar da República. 452 Esse procedimento é regulamentado pelo Decreto no 71.615, de 1972; Instruções Especiais do INCRA, números 6-A , 11 e 12; artigo 135 do Decreto-lei no 9.760, de 1946 e artigo 143 do Decreto-lei no 200/67. 453 RIBEIRO, op. cit., p. 16

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3.2.3.5. Alienação com Licitação e Direito de Preferência

Trata-se de uma modalidade específica da forma anterior, onde, curiosamente, “há” concorrência entretanto, é mantido o “direito” de preferência de um dos concorrentes: portanto não há, efetivamente, a concorrência.

Refere-se, esta modalidade de concessão de terras públicas, à alienação de áreas de até 3.000 hectares454, nas quais os pleiteantes não preenchem as exigências legais mínimas para a legitimação de posse ou para alienação sem concorrência (ou seja, cultura efetiva e morada habitual, para legitimação de posse; e projeto de relevante interesse nacional, no outro caso). E, nem mesmo, possuem os referidos “títulos com títulos insanáveis”. Oldair Zanatta coloca claramente esta questão nos seguintes termos:

“Trata-se de procedimento que consiste na venda de áreas ocupadas, nas quais não ocorrem os pressupostos para legitimação de posse ou para alienação sem concorrência. São áreas de até 3.000 hectares, cujos ocupantes geralmente não satisfazem o requisito de morada permanente. Essas áreas são alienadas em concorrência pública, ocasião em que é deferida aos ocupantes a preferência na aquisição (...).” 455

Ou seja, com esta modalidade ficava assegurada a possibilidade de transferir de forma seletiva e privilegiada, - a “ocupantes que não preenchem o requisito da morada permanente”, portanto “ocupantes que não ocupam”, portanto, que não são ocupantes - grandes áreas de terras públicas, na verdade, independentemente de qualquer que seja o critério estabelecido ou situação dos pretendentes, como se vê. Restrições, rigorosamente, apenas recaíam sobre os pequenos posseiros. Como se afirmou acima, nunca o latifúndio teve tanta regalia e segurança na história fundiária do Brasil.

Além da ampla garantia de legitimação de “títulos com vícios insanáveis”, foi criada mais essa possibilidade para assegurar a apropriação e legitimação privilegiadas de terras devoltas, num verdadeiro assinte ao ordenamento jurídico e à consciência nacionais, o que apenas poderia ser explicado pela presença de um “Estado de exceção” e de um regime autoritário em toda a sua plenitude: cerceamento da independência do Legislativo - pelas sistemáticas cassassões de opositores do regime - e do Judiciário; desorganização da sociedade civil, violentamente reprimida, e imprensa sob censura prévia rigorosa. Prisões, torturas...

Assim, como explica Oldair Zanatta, em sua brilhante defesa deste instrumento “técnico” de incentivo ao Desenvolvimento Rural:

454 Sempre e rigorosamente, 3.000 hectares, ou seja, a área máxima situada fora do “controle” mediante a aprovação do Senado Federal, prevista na Constituição, o que agilizaria, ainda mais, as transações. 455 ZANATTA (op. cit., p. 22). Grifos nossos.

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“Essas áreas são alienadas em concorrência pública, ocasião em que é deferida aos ocupantes a preferência de aquisição, assegurando-lhes sempre o direito de indenização das benfeitorias edificadas de ‘boa-fé’, caso não sejam considerados vencedores na concorrência ou não lhes interesse a aquisição da propriedade.”456

Veja-se que a argumentação de Zanatta é absolutamente contraditória: primeiro ele se refere à realização da concorrência pública, mas que é “deferida457” a preferência de aquisição aos “ocupantes”: logo, não há concorrência. Em seguida, refere-se ao fato de que é assegurado aos ocupantes “que não sejam considerados vencedores na concorrência ou não lhes interesse”, etc., o que não faz nenhum sentido, posto que se lhes foi deferida a preferência de aquisição, logo não houve concorrência, portanto, não há a hipótese, de “não serem considerados vencedores na concorrência”, que nunca houve: uma contradição em termos.

O que pode ocorrer, é que especuladores, pois parece que deles se trata neste caso, “desistam” da aquisição, optando pela indenização. Até porque nada assegura que se impedirá, como se tem demonstrado neste trabalho, que ulteriormente estas mesmas terras voltem a cair em suas próprias mãos, como chamava a atenção Ribeiro em citação acima, e, portanto, que todo o processo volte a se repetir, na verdadeira ciranda do assalto às terras da União que foi criada por esses métodos de “titulação de terras públicas” promovidos pela tecnoburocracia da Política Fundiária dos Governos Militares, em nome do desenvolvimento e da segurança nacionais.

3.2.3.6. Concessões Especiais

Essa modalidade de privatização de terras públicas é regida pelos Decretos: 68.524, de 15 de abril de 1971, que “dispõe sobre a participação da iniciativa privada na implantação de projetos de colonização nas áreas prioritárias para Reforma Agrária, nas áreas do Programa de Integração Nacional e nas terras devolutas da União na Amazônia Legal”; 71.615, de 22 de dezembro de 1972, “que regulamenta o Decreto-lei 1.164/71, e fixa as normas para a implantação de Projetos de Colonização, concessão de terras e estabelecimento ou exploração de indústrias de interesse da segurança nacional, nas terras devolutas localizadas ao longo das rodovias, na Amazônia Legal”. Além dos Decreto-lei 178/67, que “dispõe sobre a cessão de imóveis da União Federal para as finalidades que especifica”; e Instruções Especiais do INCRA, nos 13/76 e 15/78. Como se vê, tudo era rigorosa e meticulosamente planejado.

Este modo de privatização de terras públicas destina-se à concessão de áreas para a implantação e o desenvolvimento de Projetos de Colonização através de

456 Id. Ibdem, p. 22. 457 A expressão “deferida”, significa que houve, anteriormente, um “requerimento”. Logo, não se trata de venda, mas de concessão de terras públicas mediante requerimento. A venda, neste caso, é simbólica, mera formalidade, como o caso do “preço vil” da terra nua.

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Empresas Particulares458. A transferência de domínio da propriedade da área é materializada no “Título de Domínio com Condição Resolutiva”, que se refere à obrigação da Empresa concessionária à executar o Projeto de Colonização previamente aprovado pelo INCRA. O mesmo procedimento é extensivo às cooperativas, entretanto, neste caso não há a exigência da concorrência por um lado, nem a transferência de domínio à concessionária, por outro lado.

No caso das cooperativas, apenas é cedido o direito de uso da área para implementar o Projeto de Colonização, sendo que a titulação de lotes, no caso do projeto ter sucesso em sua implantação e implementação, fica a cargo do INCRA que emite os títulos, diretamente para os parceleiros.

3.2.3.7 Doação de Terras Públicas

A doação destinava-se à transferência de terras devolutas federais aos Municípios da Amazônia Legal e da Faixa de Fronteira, especificamente destinadas à expansão ou construção de cidades, vilas e povoados. Neste caso procedia-se, juridicamente, à transferência de domínio aos Municípios, com cláusulas resolutivas vinculando a doação ao respectivo projeto de desenvolvimento municipal. A doação, materializada no Título de Domínio, exigia a autorização formal, por Decreto do Poder Executivo Federal, conforme o que era estabelecido pelas Leis 6.431, de 1977 e 6.925, de 1981, e pelo Decreto 80.511 de 1977.

Além destas modalidades específicas de alienação de terras públicas da União, havia o procedimento de “Ratificação de Títulos”, que se referia a ações de regularização fundiária voltado para a convalidação de títulos de propriedade expedidos pelos Estados-Membros da Federação, especialmente em áreas de fronteira e de terras devolutas pertencentes à União, irregularmente tituladas pelos Estados da Federação. Outra modalidade de legitimação era o “Reconhecimento de Domínio”, que se referiam ao reconhecimento formal, por parte da União, da situação dominial existente na faixa de fronteira e nos Territórios Federais, por ocasião da promulgação do Decreto-lei 9.760 de 1946, amplamente estudado no capítulo anterior.

3.2.3.8. Usucapião Especial

Instituído pela Lei no 6.969459, de 10 de dezembro de 1981, já no último Governo do ciclo militar, o Usucapião Especial, recupera o antigo preceito constitucional, que assegurava a legitimação das posses mansas e pacíficas, para os trabalhadores rurais que residissem nas respectivas posses e que as fizessem produzir com o seu trabalho e de sua família, anulado pela Constituição de 1967. As áreas para legitimação de posses, cobertas por este preceito foram sistematicamente reduzidas nas

458 Que, segundo depoimento de D. Moacyr Grechi, Bispo do Acre e Purus à CPI do Sistema Fundiário (ver capítulo 5) poderia atingir a 500.000 hectares, por projeto. Um verdadeiro “big business”. 459 Lei no 6.969, de 10.12.1981 (BRASIL. Congresso Nacional. Brasília: 1981.).

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sucessivas Constituições Republicanas, sendo inclusive vedado o direito de usucapião sobre terras devolutas.

Como se discutiu no capítulo 2, a Lei 601 de 1850 permitia a legitimação de posses imensas, até o tamanho das sesmarias concedidas, anteriormente na região. As Constituições de 1934 e 1937 reduzem esta área para 10 hectares. A Constituição de 1946 amplia para até 25 hectares, conforme o parágrafo 1o do artigo 156. De qualquer maneira, o que fica evidente nestes procedimentos é que sistematicamente eram impostos limites rígidos à garantia e legitimação de pequenas posses, que passou de direito líquido e certo, como o era na legislação Colonial e Imperial, à simples “concessão” do Poder Público. Ou seja, houve, efetivamente, no que se refere aos pequenos posseiros uma perda efetiva de Direito no período Republicano. Com o regime militar, no Pós-1964, essa perda de direito é plenamente assegurada e consagrada.

O Usucapião, neste sentido, representou uma abertura para o passado. Esse verdadeiro “avanço para o passado” recupera direitos assegurados pelos

imperativos constitucionais acima mencionados, e que foram negados pela Constituição de 1967.

Neste sentido e parafraseando Faoro ao se referir à vitória dos sesmeiros na Lei 601 de 1850, afirmando que, apenas tardiamente, aquela legislação viria a assegurar o direito dos posseiros, em relação aos privilégios dos sesmeiros do Vale do Paraíba, pode-se dizer que o “avanço” realizado, com o Usucapião Especial, em 1981, com a restituição do antigo direito de aquisição da propriedade sobre posses mansas e pacíficas de até 25 hectares, no caso, inclusive, extensivo às terras públicas (para as quais o usucapião sempre esteve vedado460), também chegou tardiamente. A esta altura o cerco, a alienação e a legitimação privilegiados das terras públicas brasileiras já haviam assegurado a maior parte das melhores terras do país para os grupos privilegiados, como os dados acerca da apropriação de áreas novas, analisados no próximo capítulo evidenciam objetivamente.

460 A Constituição Federal de 1988 reafirma a imprescritibilidade das terras públicas.

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CAPÍTULO 5

POLÍTICA FUNDIÁRIA DO REGIME MILITAR: RECONCENTRAÇÃO E PRIVILÉGIOS

1. Considerações Preliminares

Os problemas de legitimação das iniciativas privatizantes e de legalização das posses em domínio particular, jamais solucionados de forma efetiva, ainda que formalmente tentados, ganharam profunda relevância no período que se seguiu a abril de 1964 e à consolidação do Regime Militar. Com a aprovação, em novembro daquele ano, da Lei 4.504, pela primeira vez, após a aprovação da Lei 601 de 1850 e seu respectivo Regulamento, o Governo Brasileiro conseguiu encaminhar e aprovar uma Legislação que regulamentava o processo de alienação de terras públicas e de legitimação das posses que se encontravam em poder de particulares. A regulamentação do processo de alienação e legitimação de terras, através da Lei 4.504, de novembro de 1964, foi o grande mérito que, efetivamente, teve o Governo Militar, no âmbito da Política Fundiária.

No capítulo anterior, ao analisar-se esta problemática, ficou evidenciado que para muito além deste grande mérito - de regulamentar, juridicamente, o acesso às terras devolutas - estava o fato do Estatuto da Terra ter colocado, objetivamente, nas mãos do Governo, o poder para promover a alienação de terras públicas. Portanto, a possibilidade de conduzir determinado processo de reorganização fundiária, na medida em que assegurava os meios, jurídicos e administrativos, necessários ao processo de venda de terras devolutas ou de reconhecimento de titularidades legítimas existentes sobre estas.

Efetivamente, os Governos militares exerceram este poder: promoveram uma grande transformação na estrutura agrária brasileira, ao implementar um vasto processo de alienação de terras públicas, ou de reconhecimento de posses sobre estas, em todas as regiões do país. Este processo foi especialmente relevante nas chamadas “regiões de fronteira”, onde predominavam as terras devolutas ou irregularmente ocupadas, como as Regiões Centro-Oeste e Norte. Mas, foi também relevante, nas demais regiões do País.

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Como resultado destas ações do Governo no âmbito da Política Fundiária, modificou-se profundamente o perfil da propriedade privada territorial no Brasil. Por um lado, assegurando a “propriedade absoluta” para determinadas camadas, de fato privilegiadas, da população e, por outro lado, aprofundando a excludência social de uma imensa massa de pequenos produtores, posseiros e indígenas. A resultante desses processos de “privatização privilegiada e excludente” foi o aumento, sem precedentes na história do Brasil, de massa de trabalhadores expulsos das terras onde residiam e trabalhavam, que vieram a se incorporar aos contingentes marginalizados dos centros urbanos, fossem estes grandes metrópoles ou pequenas cidades do interior da Brasil.

Portanto, não quer significar a citada regulamentação que o processo de privatização de terras, promovido pelo “Regime Militar”, tenha representado o acesso à propriedade rural para a grande massa de pequenos produtores com pouca terra, posseiros, ou trabalhadores rurais sem terra461, fundado na perspectiva de uma reforma agrária de caráter distributivista ou “democrática” como era, aparentemente, proclamada na Mensagem 33. Como também não significou, sequer, a legalização ou o reconhecimento de posses legítimas que se encontravam em poder destas camadas da população que vivia e trabalhava no campo.

Entretanto, não deixava, apesar disto, de representar uma profunda transformação no ordenamento agrário, sobretudo porque, ao promover a alienação ou a legitimação de posses sobre vastas áreas do território do País, engendrou as condições fundamentais para a incorporação ao processo produtivo (e também especulativo) de porções relevantes das terras agrícolas brasileiras. Este foi o outro resultado da Política Fundiária dos Governos Militares no período, e que pode ser tributado à iniciativa de aprovação do Estatuto da Terra e das medidas jurídicas e administrativas que o complementaram.

Portanto, não se podem situar, singularmente, ao nível destas medidas, as críticas passíveis de serem feitas à Política de Terras do Regime Militar. Estas críticas devem centrar-se nas formas assumidas pelo processo de alienação de terras públicas, que, além de “repetirem erros” do passado, como afirmava o Ministro da Agricultura, Luís Fernando Cirne Lima, em depoimento à Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema Fundiário, na verdade, foram muito além disto. Promoveram, não apenas a incorporação das terras ao patrimônio particular, mas sobretudo, a apropriação especulativa destas terras e a expropriação, ilegítima e ilegal, de imensas camadas de produtores rurais que, secularmente, viviam e trabalhavam nas terras brasileiras. Ou seja, a crítica deve estar centrada no fato de, nos Governos Militares, terem-se aprofundado de um modo deliberado os seculares processos de privatização, apropriação e regulamentação privilegiadas e excludentes das terras públicas. Além de possibilitarem o aprofundamento da titulação questionável e ampliar, desta forma, os

461 Ao contrário. A este respeito ver os Capítulos I e II do Livro, Ditadura e Agricultura (IANNI, 1979(a)) onde é realizada uma análise profunda e competente das articulações entre a Política Fundiária e o Modelo Econômico posto em prática pelo Regime Militar.

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processos de grilagem especializada, geralmente fundados na fraude ou sustentados nas colunas da corrupção.

Por questões desta natureza, é que se pode levantar a hipótese de que, apesar dos possíveis méritos no campo estritamente econômico, - tomado este termo no sentido estrito definido no Modelo462, de aumento da oferta de produtos agrícolas, e da participação da agricultura no mercado interno e externo, da sua diversificação, etc. -, por outro lado, aumentou também, e certamente, mais que proporcionalmente a estes resultados, a excludência social e a miséria de vastas camadas da população rural463.

O Ministro da Agricultura, Luís Fernando Cirne Lima, no depoimento prestado à Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema Fundiário464, em 2 de agosto de 1977, resumiu, nos seguintes termos, a formulação da Política Fundiária, tal como posta em prática, então, pelo Governo Federal:

“Ao assumir responsabilidades públicas em 1 de novembro de 1969 elegi, como uma das metas, o que se convencionou denominar a ocupação dos espaços vazios. A tarefa de ordenar a ocupação de terras rurais e os deslocamentos dos excedentes liberados da agricultura indicou a fusão de dois órgãos então existentes: Instituto Brasileiro de Reforma Agrária - IBRA, e Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrícola - INDA. A reforma agrária só tem sentido se visar ao desenvolvimento agrário, já que a distribuição da terra, quando desacompanhada da assistência técnica e das condições de escoamento e comercialização do produto agrícola, não produz conseqüências duradouras. O pequeno proprietário, desassistido, é presa fácil dos poderosos que acabam por retomar-lhe a terra dentro da chamada “economia de mercado puro.” “Fundado o INCRA em 1970, diversos fatores levaram o novo órgão a enfrentar mais a colonização do que a Reforma agrária. A decisão, antes de entender que aquela seja mais importante do que esta, partiu de pressupostos vários que ainda entendo como certos. “É o Brasil um dos poucos países do mundo com possibilidade de aumentar a sua fronteira agrícola, colocando nas áreas novas os excedentes da população rural. Uma reforma agrária poderia, sem dúvida, cuidar de reduzir os deslocamentos, pela reordenação da propriedade, mas a um custo, na época, talvez muito alto.465”

Observa-se, nestes comentários do Ministro Cirne Lima, que o Governo fazia uma clara distinção entre colonização e reforma agrária. A Reforma Agrária era pensada como a reorganização da estrutura agrária, em áreas amplamente ocupadas, visando a reorganização da posse e uso da terra, a modernização e diversificação da agricultura e

462 Ver a especificação dos objetivos perseguidos no âmbito destas políticas implementadas pelos Governos Militares, o Capítulo II “Agricultura e Acumulação” (IANNI, 1979 (a)), especialmente as páginas 37 a 44. 463 Estes fatos podem ser depreendidos das estatísticas acerca da incorporação das áreas novas por um lado e, por outro, das informações referentes à dinâmica das populações rurais e urbanas, no período, analisados adiante, neste capítulo. 464 CÂMARA DOS DEPUTADOS, op. cit. 465 CAMARA DOS DEPUTADOS, op. cit. p. 10; grifos nossos.

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o aumento da produtividade. Portanto, implicando necessariamente, o processo de desapropriação, além de outros investimentos. Por estas razões era considerada onerosa, devendo, “ipso facto”, ser evitada. Exceto nos casos excepcionais de conflitos e tensões sociais graves466. Por outro lado, a colonização significava o assentamento de populações em áreas de terras devolutas, evitando-se, desta forma, os custos com o processo de “desapropriação”. Mas, sobretudo, evitando-se ferir os interesses latifundiários e especulativos das grandes empresas de colonização particular e empreiteiras. Ou seja, aproveitando-se da “vantagem comparativa” possuída pelo fato de ser “o Brasil um dos poucos países do mundo com possibilidade de aumentar a sua fronteira agrícola, colocando nas áreas novas os excedentes da população rural”. De ainda hoje existirem, no Brasil, amplas reservas de terras livres e públicas.

Entretanto, esta opção significava, também, atender a uma antiga tese do latifúndio em relação à colonização - entendida “como desbravamento” - ou seja, que deveria ser realizada longe de seus domínios. Este problema foi cuidadosamente discutido no segundo capítulo deste estudo. A este respeito é interessante registrar as seguintes observações de Carlos Minc:

“Correspondem, portanto, à instalação de colonos em terras distantes dos grandes centros nacionais de consumo, em áreas mal servidas de infraestrutura básica (estradas, irrigação e eletrificação) e principalmente em zonas distantes das terras dos poderosos latifundiários do Nordeste e do Sudeste. Estes assim tiveram seus domínios intocados, ainda que todos os latifúndios sejam passíveis de desapropriação para fins de reforma agrária, segundo o Estatuto da Terra (...).”467

No âmbito deste diagnóstico, cuidadosamente elaborado pelos “técnicos” do Governo, a colonização apresentava todas as vantagens: significava um móvel fundamental e pouco oneroso para a integração nacional, a ser promovida pela ocupação dos “espaços vazios”, mediante os projetos de assentamento, dirigidos às populações pobres que migravam “expontaneamente”; ou pela via do assentamento dos “excedentes” potenciais de população de regiões mais “desenvolvidas”. Desta forma, evitava-se “desorganizar a produção agrícola, em áreas tradicionalmente exploradas”, como se fazia referência na Mensagem 33, do General Castelo Branco, ao acusar o Governo João Goulart e a SUPRA de promoverem a inquietação no campo e a desorganização do sistema produtivo da agricultura.

Mas, sobretudo, como registraram Carlos Minc468 e Octávio Ianni469 entre muitos outros estudiosos do tema, significava manter intocados os domínios dos 466 Entretanto, mesmo nestes casos, se se tiver em consideração o caráter excepcional do próprio regime, há que se atentar para o fato de que, muitas vezes, as tensões e conflitos pela terra eram simplesmente encarados como atos subversivos, sendo os pequenos posseiros e seus líderes perseguidos ou presos, o que reduzia substantivamente a necessidade de “desapropriação”, e até mesmo, o simples procedimento legal de legitimação de pequenas posses em favor daqueles posseiros. Há que se ter ainda em consideração, neste contexto, que muitas vezes as próprias milícias de jagunços atuavam como forças paramilitares, reprimindo “ações subversivas”, como eram geralmente encarada a resistência dos posseiros à expulsão das áreas onde trabalhavam e residiam. 467 MINC (1985, p. 9). Grifos nossos. 468 Op. cit.

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latifúndios. Neste sentido, o Estatuto da Terra, além de não conter nem defender nenhum Projeto de Reforma Agrária distributivista ou democrática, configurava-se, efetivamente, como um Projeto de “Contra-reforma Agrária” como corretamente demonstrou Octávio Ianni470.

Aparentemente, as teses defendidas por Fernando Cirne Lima - que eram as mesmas teses do Governo na época - apresentavam coerência “técnica”. Seria, aparentemente, menos oneroso e mais “racional” para o processo de desenvolvimento agrícola, nas condições específicas do Brasil, onde permaneciam imensas áreas de terras “livres e desocupadas”, incorporá-las ao processo produtivo, e fornecer assistência técnica e creditícia, etc., antes de promover a desapropriação em áreas onde, bem ou mal, o processo produtivo caminhava.

Para estes espaços específicos, seriam destinados os diversos instrumentos de Política Agrícola, de incentivo à incorporação do “progresso técnico e científico” e de implementação de processos de produção “mais eficientes”, na expectativa de que, por estes meios, os produtores rurais fossem induzidos a modernizar suas propriedades e tornarem-se “empresários rurais”, etc.

Segundo esta linha de argumentação, a reforma agrária era deslocada para a promoção da colonização. Transformada, esta, no assentamento de populações rurais excedentes, em áreas de terras devolutas, e, apenas excepcionalmente, em áreas de ocupação antiga, quando pairassem ameaças de conflitos ou tensões potenciais. Todo o processo pressupunha-se como acompanhado de um amplo programa de assistência técnica e creditícia, extensão rural etc. A implementação de um Projeto de Desenvolvimento Rural deste porte exigia, segundo os “técnicos” e especialistas do Governo, ações concentradas, para se evitar, a “pulverização de recursos” - como era afirmado nos documentos da época - donde a fusão do IBRA-INDA e nascimento do INCRA, no bojo do Programa de Integração Nacional.

Esta formulação, aparentemente coerente, entretanto, escondia contradições importantes. A primeira delas, é que esta estratégia de desenvolvimento rural, ao ser implementada, mostrou-se contraditória com a tese central do Governo, que se colocava em termos promover a maior eficiência nas explorações agropecuárias. Isso, necessariamente, deveria significar, além da implementação dos instrumentos de política agrícola, o combate ao “latifúndio” - quer fosse por dimensão ou, sobretudo, por exploração. Exatamente esta linha de ação não foi implementada: os latifúndios proliferaram por todo o país, muito particularmente nas regiões onde predominavam as terras públicas, como o Centro-Oeste e o Norte471, mantendo-se quase intocado nas demais regiões.

Além disto, os latifúndios, apesar de se beneficiarem do crédito e de toda sorte de incentivos oferecidos pelo Governo, não se modernizaram como pressupunham os 469 IANNI (1979). 470 IANNI (1979 e 1981). 471 Ver os Quadro 1.A e 1.B e a figura 2, adiante.

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“experts” do Governo. Permaneceram quase, senão inteiramente, no mesmo nível de “produtividade” - ou improdutividade - apesar de terem efetivamente abocanhado a maior parte dos créditos incentivados e subsídios oferecidos pelo Estado.

Portanto, o que esta proposta do Governo, de fato, significou, do ponto de vista da propriedade fundiária, foi a reprodução, sob novas formas, da mesma estrutura agrária concentrada e fundada no privilégio e na ilegalidade. E na ampliação do poder latifundiário, agora amplamente capitalizado pela apropriação privada de fundos públicos.

Como muito bem analisou IANNI472 a “estratégia” de proceder a concessões de pequenas parcelas nas áreas distantes das fronteiras agrícolas, especialmente na Amazônia, representava uma alternativa à distribuição de pouca terra, para evitar-se a reforma agrária efetiva, por um lado e, por outro, significava, a promoção da reconcentração da propriedade nas regiões originárias dos migrantes, especialmente as Regiões Sudeste e, sobretudo, Sul. Neste sentido, realizando o que Otávio Ianni denominou de Contra-Reforma Agrária473.

Por outro lado, continua Luís Fernando Cirne Lima, no depoimento citado, a esclarecer as formas pelas quais persistia a tendência à manutenção do latifúndio, apesar das tentativas, da sua gestão no Ministério, em sentido contrário:

“Há, contudo, uma superposição de órgãos, por vezes conflitantes, no trato da ocupação de novas áreas. A SUDAM e a SUDENE (organismos de desenvolvimento regional) não demonstram qualquer desafeição pelo latifúndio. Assim eram, e suponho que ainda o sejam, aprovados projetos extensos, sem qualquer resguardo das posses porventura existentes nas áreas. “Atendendo interesse político-social e acima de tudo por uma questão de justiça ao pioneirismo expontâneo e desassistido, propusemos em 1972, o decreto que leva o número 70.430, de 17 de abril desse ano, e que expressamente estabelece que “as pessoas domiciliadas na área de empreendimentos financiados com incentivos fiscais ou em áreas pioneiras, formem elas ou não coletividades urbanas, não poderão ser desalojadas de suas moradias ou posse de terras por elas cultivadas sem audiência prévia do Ministério da Agricultura.” “Por outro lado, descrente de que a ocupação dos espaços pela grande empresa seja a fórmula ideal, pois ela repete erros, adotou-se uma nova filosofia para a incorporação daquelas áreas sob a jurisdição do INCRA. O começo foi a retomada pelo governo Federal, a partir do Decreto- lei número 1.164, de abril de 1971, da disciplina fundiária das terras devolutas situadas na faixa de 100 quilômetros de largura de cada lado do eixo das rodovias federais na Amazônia Legal.

472 IANNI (1979 e 1981). 473 Representada pelo fato, também citado na Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema Fundiário, pelo Bispo do Acre e Purus, Dom Moacyr Grechi, de que as mesmas empresas colonizadoras que haviam vendido terras a pequenos sitiantes no Sul do País, agora passavam a recomprá-las e vender novas áreas nas regiões Centro-Oeste e Amazônica, num verdadeiro círculo vicioso da especulação imobiliária e dos privilégios no processo de apropriação (In.: CAMARA DOS DEPUTADO, op. cit.).

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Elas passaram à condição de áreas necessárias à segurança e ao desenvolvimento nacionais. (...) Na experiência de colonização da Amazônia, concentrada especialmente na região de Altamira, no Pará, mais uma vez prevaleceu a idéia de criação de uma classe média rural que, lado a lado com a empresa, dentro dos limites constitucionais de 2 a 3.000 hectares, começasse a ocupação de uma área fértil e desse início aos trabalhos práticos que permitissem decisões mais seguras de conciliação de interesses coservacionistas da floresta amazônica com o desenvolvimento da região. “Procurando evitar a especulação e o latifúndio improdutivo, as terras foram vendidas aos empresários em concorrência e com a obrigatoriedade de apresentação de Projetos agropecuários, com prazo de início. Foi a primeira licitação de terras públicas que se fez no Brasil, onde a regra ainda copiava os métodos das sesmarias, mediante doações graciosas ou o reconhecimento de posses latifundiárias artificialmente estabelecidas.”474

Duas dimensões muito importantes da questão fundiária, tal como concebida pelas autoridades do Governo, são colocadas, claramente, nesta parte do depoimento de Cirne Lima. Primeiro, que o objetivo do Governo, nesta área, era a formação e desenvolvimento de uma classe média rural, especialmente, utilizando-se da alternativa de ocupação de áreas novas, ou seja, de terras públicas. Esta alternativa era considerada fundamental ao desenvolvimento e integração nacionais. Neste sentido é implementado o PIN (Programa de Integração Nacional) na gestão do General Emílio G. Médici.

Segundo, ao chamar a atenção para o fato de que pela primeira vez era realizada uma licitação de terras públicas, no Brasil, “onde a regra ainda copiava os métodos das sesmarias, mediante doações graciosas ou o reconhecimento de posses latifundiárias artificialmente estabelecidas.”475

Portanto, não se trata de negar, neste contexto, o fato de que os Governos Militares procederam a uma determina e, em certo sentido, profunda, reorganização da estrutura agrária e agrícola do País. Trata-se, antes, de compreender o sentido e as implicações do seu Projeto neste campo. Neste contexto, é mister reconhecer que os Governos Militares efetivamente, promoveram uma determinada e específica reforma na estrutura agrária e agrícola do País. Uma reforma, inclusive, que reproduziu, sob novas formas, o mesmo projeto concentracionista, que, aliás, vinha-se gestando desde a vitória das forças conservadoras após a aprovação da Lei 601 de 1850476. Foi, entretanto, uma reforma, especialmente no âmbito das políticas agrícolas, que deu um 474 CÂMARA DOS DEPUTADOS (1979, op. cit. p. 10). 475 “Doações graciosas” isto é, privilegiadas, e “reconhecimento de posses latifundiárias artificialmente estabelecidas”, que significa legitimação igualmente privilegiada de grandes posses ilegítimas, portanto, juridicamente questionáveis. E observe-se que Luís Cirne Lima está-se referindo à década de 1970. Além disso, considerando as formas de alienação e titulação de terras públicas, analisados no Capítulo anterior, pode-se ter uma noção exata do que significaram, de fato, esses processos de licitação. 476 Ver a este respeito o trabalho de José Murilo de Carvalho (CARVALHO, op. cit.) e os capítulos 2 e 3 deste estudo.

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efetivo impulso à produtividade do trabalho em determinados setores da agricultura brasileira, se considerada de forma agregada. Mas era exatamente este o modelo de desenvolvimento rural concebido pelo Governo. Os seus “custos sociais” - a excludência, a marginalidade, a repressão aos movimentos de resistência das populações rurais, etc. - eram parte consistente deste Projeto477, e considerados perfeitamente “racionais” na perspectiva de uma análise de “custo-benefício”. A respeito deste Modelo de desenvolvimento Octávio Ianni faz os seguintes comentários:

“Desde o primeiro momento, o governo militar instalado com o Golpe de Estado de 1964 foi levado a adotar uma política de portas abertas para o capital estrangeiro, isto é, para o imperialismo. O conjunto do aparelho estatal, em suas condições econômicas e políticas de atuação, foi posto a serviço dos interesses da empresa imperialista multinacional e nacional. Desse modo, inaugurou-se uma época de desenvolvimento capitalista intenso e generalizado, na indústria e na agricultura, na cidade e no campo. Daí a política agressiva e repressiva, em termos econômicos e políticos, no sentido de superexplorar a força de trabalho do proletariado industrial e agrícola.”478

Portanto, é relevante, neste contexto, procurar compreender o sentido deste processo de privatização de terras públicas, especialmente em termos de seus beneficiários imediatos.

Ao analisar-se, no item 3.2.6 do capítulo anterior (“Titulação de Terras Públicas: Alienação e Privilégios”) as diferentes modalidades e critérios de legitimação de posses e alienação de terras devolutas, ficou claro o sentido de facilitar o acesso à terra ou a legitimação de posses para determinadas camadas privilegiadas, inclusive, assegurando a legitimação e titulação de terras cujos pleiteantes não dispunham de documentação alguma que lhes assegurasse direitos sobre as terras pretendidas; de pleiteantes que detinham títulos com “vícios insanáveis” (isto é, falsos ou produto de fraude); ou, ainda, daqueles que não preenchiam nenhum dos critérios legalmente instituídos para assegurar o direito à propriedade das terras479. Ou seja, foram asseguradas todas as facilidades para o acesso à terra a determinados grupos privilegiados, sob o pretexto de estarem contribuindo para a integração e desenvolvimento nacionais480 .

Em suma, se até então era, pelo menos, exigida a morada habitual dos posseiros ou de seus representantes e a cultura efetiva da terra possuída, depois dos critérios

477 Ver adiante, as teses de Roberto Campos acerca da necessidade do autoritarismo enquanto condição para assegurar “taxas adequadas” de crescimento, ao fazer referência ao que denominava de “premissas cruéis” (SIMONSEN & CAMPOS, 1976. Pp. 223-225) 478 IANNI. 1979(a) pp. 19-20. Grifos nossos. 479 Ou seja, os privilégios assegurados, neste contexto, eram efetivamente muito mais amplos do que os concedidos aos grandes posseiros e sesmeiros pela Lei 601 de 1850. Nunca na história da terra brasileira, os privilégios na aquisição da propriedade foram tão amplos quanto os assegurados pela legislação e pelos atos administrativos que deram forma à implementação do Estatuto da Terra. E nunca a ilegalidade e a inconstitucionalidade destes atos foram tão amplas e escancaradas, quanto neste período. 480 Ver capítulo 4, onde estas questões são ampla e objetivamente detalhadas e discutidas.

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instituídos, sobretudo administrativamente, pelo Governo e por seus Órgãos fundiários, eram assegurados o reconhecimento ou a legitimação de posses, ou mesmo o direito de preferência para aquisição de propriedades fundiárias, a grupos e pessoas que não preenchiam nenhum dos requisitos legalmente estabelecidos.

Nestes casos, cuja incidência maior passa a verificar-se a partir dos finais dos anos 60 e inícios de 70 deste século, fica absolutamente caracterizada a inconstitucionalidade481 dos atos administrativos de alienação de terras públicas ou de legitimação de posses sobre estas, por contrariarem a legislação em vigor. Inclusive, por ferirem os imperativos constitucionais que regulamentam a matéria. Isto torna questionável, juridicamente, a maioria dos títulos concedidos pelo Regime Militar, independentemente dos seus possíveis resultados econômicos482.

O Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema Fundiário documenta vastamente este fato. Naquele Relatório, ao incorporar e comentar o depoimento de José Francisco da Silva, Presidente da CONTAG, o Relator da Comissão expressa-se nos seguintes termos, tentando dar conta da relevância e gravidade deste fenômeno de privatização privilegiada; especialmente enfatizando os riscos de que, por estes meios, fosse reproduzida a mesma estrutura fundiária concentrada em áreas novas, ou seja, ainda não incorporadas ao patrimônio particular:

”Indicou o último recadastramento de imóveis rurais (que), em 1972, foram cadastrados apenas 393.230.000 hectares, o que corresponde a menos de 50% da área terrestre do País, sugerindo, portanto, que mais da metade do nosso território está para ser ocupado, sobretudo a região norte, em que a taxa de ocupação é estimada em 12%.” “Afirmou o depoente que ‘embora a elevada concentração da posse da terra possa ser considerada oficialmente como prejudicial ao desenvolvimento econômico e social da agricultura, ao se promover a alienação de grandes extensões de terras públicas a poucos favorecidos, estamos correndo o grave risco

481 Até porque, os atos administrativos dos órgãos fundiários ou os Decretos do Poder Executivo não podem contrariar a Legislação pertinente à matéria e, ainda menos, a Constituição Federal. Por isso, são juridicamente questionáveis, porque inconstitucionais. 482 Entretanto, considerando-se as teses de Roberto Campos, um dos mais importantes e prestigiados teóricos do modelo de desenvolvimento econômico brasileiro da época, pode-se concluir que o desprezo pela Constituição ou o desdém pela excludência social e econômica de boa parte da população, eram parte substantiva do Projeto. Isso fica claramente estabelecido na seguinte passagem do seu trabalho “A Opção Política Brasileira” , publicado como o Capítulo X no livro “A Nova Economia Brasileira” (SIMONSEN & CAMPOS, 1976. pp. 224 e seguintes): “(...)A terceira premissa cruel é que no atual contexto histórico, um certo grau de autoritarismo parece inevitável na fase final de modernização, isto é, na transição para a sociedade industrial(...) Essa desagradável conclusão é acentuada mesmo por ‘grandes liberais’, como Raymond Aron e Gunnar Myrdal(...) O problema torna-se ainda mais sério nas sociedades que sofrem ao mesmo tempo de inflação e estagnação. Pois então se trava uma espécie de guerra civil incruenta, em que as diversas classes lutam pela redistribuição de fatias de um bolo insuficiente(...) Não é de estranhar portanto que o autoritarismo, longe de ser um caso de patologia política, parece ser hoje a forma política prevalecente na maioria dos Países.” (Grifos nossos).

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de transplantar, para as áreas ainda não ocupadas, a mesma injusta distribuição da terra vigente nas regiões já ocupadas’483.”

Esses trechos dos depoimentos de Luís Fernando Cirne Lima e de José Francisco da Silva, transcritos e enfatizados no Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema Fundiário, colocam claramente o cerne da contradição embutida no discurso da Mensagem 33 e no texto do Estatuto da Terra, e que se refere ao reconhecimento “formal”, pelo Estado, de que a elevada concentração da propriedade da terra e a dicotomia minifúndio-latifúndio são prejudiciais “ao desenvolvimento econômico e social da agricultura” mas que, na prática, age-se de forma inversa ao diagnóstico, ao promover a reprodução da mesma reconcentração em áreas ainda não efetivamente ocupadas pela iniciativa privada. Ou seja, em áreas onde há predominância de terras públicas e nas quais, se realmente fosse objetivo do Governo proceder a alguma espécie de reforma agrária, poderia o mesmo ter implementado o processo de acesso à terra, atendendo ao preceito constitucional referido na Mensagem 33.

Tudo isso significa, como ficou amplamente discutido na capítulo 4, que o Projeto de Desenvolvimento Rural e de “Reforma Agrária” propostos no âmbito do Estatuto da Terra, efetivamente, caminhavam no sentido da consolidação de “médias” e, sobretudo, “grandes” empresas agropecuárias, enquanto formas pretensamente adequadas a superar a miséria no meio rural. Portanto, que não havia, naquele Projeto, o objetivo de facilitar o acesso à terra à população sem ou com pouca terra. Pior: sequer se pretendia assegurar os direitos reais de pequenos posseiros, direitos estes, aliás, garantidos por todos os diplomas legais e pelas Constituições Brasileiras anteriores a 1967, como amplamente documentado nos diversos capítulos deste estudo.

Antes de entrar na análise de alguns dados sobre o processo de privatização das terras novas por extratos de área nas diferentes regiões do País, convém fazer alguma referência a um trecho do Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema Fundiário, que esclarece exatamente este aspecto da questão, referente ao tipo de propriedade e de dimensões de áreas tais como definidos pelo INCRA:

“(...) Além disso o INCRA prevê para 75/79 a instalação de 4 mil propriedades-famílias (110 ha) e 1.200 médias empresas (até 3.000 ha) e 120 grandes empresas (até 72 mil ha), perfazendo um total de mais de 10 milhões de hectares.”484

483 CÂMARA DOS DEPUTADOS, op. cit. p. 10. Grifos nossos. 484 Trecho do Depoimento de José Gomes da Silva, comentado no Relatório Final da CPI do Sistema Fundiário (CÂMARA DOS DEPUTADOS op. cit. p. 5). Apenas para uma ilação sem maiores pretensões, esses dados significam que o INCRA, pelo menos ao nível de “planejamento” imaginava a seguinte proporção na implementação destas metas: Propriedades-Família = 440.000 ha; Médias Propriedades = 3.600.000 ha; Grandes Empresas = 12.680.000 ha. Essas metas, embora apenas ao nível da “imaginação” dos “Planejadores” dispensam maiores comentários; e dão uma idéia de como era “pretendida” a ação fundiária na época. É a idéia de reforma agrária e desenvolvimento rural pretendidos.

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Este trecho extraído do depoimento de José Gomes da Silva oferece uma pista para a compreensão das dimensões atribuídas pelo Governo aos conceitos de “propriedade-famílias” com área em torno de 110 hectares; “médias empresas” com área de até 3.000 hectares e, finalmente, grandes empresas, com áreas de até 72.000 hectares. Observe-se que o “gap” entre as propriedades familiares (de 110 hectares) e “médias” (de até 3.000) e, sobretudo, de “grandes empresas” (de até 72.000 hectares!!!), não deixam margem a nenhuma dúvida de que se tratava de um projeto de manutenção e, mais que isto, de ampliação, dos interesses do latifúndio.

Ao proceder-se a análise dos dados dos Quadros 1.A e 1.B adiante, referentes à distribuição do processo de apropriação de áreas novas por estratos e regiões, ficará mais claro o sentido e implicações deste modelo conceitual, tal como proposto e implementado pelo INCRA. De qualquer maneira, definir propriedades “médias” como imóveis com áreas de até 3.000 ha, e “grandes empresas”, com áreas de até 72.000 hectares, é claro indicativo do vínculo latifundiário, ou especulativo, do Projeto Fundiário do governo.

Por outro lado, e para encerrar estas observações introdutórias ao estudo das implicações da Política Fundiária posta em prática a partir da aprovação do Estatuto da Terra, é interessante, ainda, fazer mais uma referência ao Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito citada, onde é realçada a “filosofia do Ministério da Agricultura” no âmbito de implementação desta política de distribuição de terras e de desenvolvimento rural:

“Por outro lado a filosofia do Ministério da Agricultura é no sentido de dar cobertura às grandes empresas, relegando por completo a colonização em sentido social que foi a meta almejada pelo Governo passado. O próprio Ministro da Agricultura teve a oportunidade de afirmar: “a ausência de regularização fundiária constitui o principal obstáculo ao desenvolvimento agrícola da região, na medida em que o colono, sem possuir legalmente sua terra, fica marginalizado do processo econômico (...).” “Da preocupação com a colonização em sentido social, nós chegamos à filosofia da ocupação da Amazônia pela pata do boi e estes frutos estamos colhendo hoje. Prestando depoimento nesta CPI, na sua reunião de 11.5.77, o Bispo D. Moacyr Grechi, do Acre afirmava: ‘A respeito das empresas de colonização que, na Amazônia, podem conseguir a absurda extensão de até 500.000 hectares de terra para cada projeto, resta questionar se a propalada experiência delas neste tipo de empreendimento não camufla o processo típico da exploração da população migrante, sendo uma das causas da própria migração. Vejam: empresas que “colonizaram” o Paraná, por exemplo, estão hoje readquirindo as terras por elas vendidas aos colonos atraídos do Sul ou do Norte e estão vendendo novas terras aos mesmos colonos na Amazônia. Tudo isso é normal?”485

485 CAMARA DOS DEPUTADOS op. cit. pp. 5-6. Grifos nossos.

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Este trecho do Relatório da CPI não deixa dúvidas quanto às implicações do processo de privatização privilegiada, promovido pelo Governo, embora, estivesse este, fundamentado no discurso de justa distribuição da terra com igualdade de oportunidades para todos. Nos capítulos 2 e 3 foram feitas referências ao papel que passaram a desempenhar as “Empresas de Colonização”, enquanto alternativa à promoção do monopólio e exercício do controle efetivo sobre as terras devolutas do Governo.

Por este meio, estas empresas passaram a adquirir o “direito” de promover, em nome do Poder Público, o controle sobre o próprio processo de alienação de terras. Quer dizer, antes de se deflagrar o processo de privatização da terra, o próprio controle e gestão deste processo passa a ser desenvolvido pela “iniciativa privada”. Esta é, de fato, uma invenção peculiarmente brasileira, para usar a expressão do Ministro Cirne Lima, e que permitiu a privatização das próprias ações do Estado. No limite, o próprio Estado.

A referência feita, pelo Bispo do Acre e Purus, de que as empresas colonizadoras conseguem até a “absurda extensão de até 500.000 hectares por projeto” não deixa nenhuma dúvida a este respeito. Esta é a outra forma, mais avançada, da grilagem especializada a que se tem feito referência neste trabalho. Assim, o próprio processo de privatização de terras públicas, no período do regime militar é “terceirizado” de forma peculiar.

Feitas estas observações gerais, cabe afirmar que este capítulo não tem por objetivo levantar evidências empíricas, enquanto condição para comprovar hipóteses. Limita-se, apenas, a apresentar alguns dos resultados relevantes destas políticas de governo, especialmente no que toca ao problema da privatização de terras públicas e da sua distribuição por extratos de áreas e por regiões, tal como efetivamente ocorreram no período, em decorrência da implementação das medidas preconizadas no Estatuto da Terra e nas diversas normas administrativas e legais que o complementaram.

Especialmente, busca-se a análise desses fenômenos, em relação ao que, neste estudo, é denominado de “áreas novas”, ou seja, o diferencial de áreas em domínio privado, computado entre os censos de 1960 e 1980, e que passou, por suposto, a ser incorporado à propriedade particular neste período. Como foi registrado no capítulo anterior, estas áreas correspondem, aproximadamente, ao volume das terras discriminadas486 pelos órgãos fundiários do Governo, após a aprovação do Estatuto da Terra.

É evidente que a escolha pela análise dos dados referentes às “áreas novas” é arbitrária. Entretanto, tem a vantagem analítica, de permitir o estudo específico das formas e meios, através dos quais, se processou a alienação de terras públicas, ou a legalização de posses sobres estas, em decorrência da aplicação dos instrumentos e ações fundiários definidos pelo Estado, no período, em função da Lei 4.504/64 que, ao regulamentar o “imperativo constitucional” de 1946, na verdade, instrumentalizou jurídica e administrativamente o Estado para que pudesse promover a alienação de terras públicas, ou o reconhecimento de domínios particulares sobre estas. Estes dados 486 Ver a respeito das estatísticas correspondentes, YOKOTA e ZANATTA (citados) e o Capítulo 4 deste estudo.

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serão complementados pela análise de outras estatísticas, particularmente as relacionadas com os movimentos da população rural e urbana, por um lado, e com a destinação dada às terras agrárias, no país, por outro lado.

Destarte, as análises feitas neste capítulo têm, apenas, o objetivo de lançar mais alguma luz acerca dos resultados da Política Fundiária do Governo no período, tal como proposta e tal como implementada pelo Governo. Neste sentido específico, o presente capítulo procura complementar as análises anteriores, buscando esclarecer aspectos relevantes associados ao projeto e ao discurso de desenvolvimento rural do Governo. Por outro lado, procura indicar algumas referências gerais que possam permitir a comparação entre a Política de Terras dos Governos Militares, e iniciativas similares implementadas em outros momentos da história agrária brasileira.

Nesta perspectiva, além da constatação do fato concreto de que a estrutura fundiária brasileira sempre se caracterizou por um elevado grau de concentração, conforme evidenciaram inúmeros estudos, alguns dos quais citados neste trabalho487, é fundamental que se busque compreender as especificidades e os meandros dos fenômenos e processos que o engendraram - e como visto nos capítulos anteriores, ainda o engendram - assim como os motivos econômicos, sociais, políticos, etc., que se encontram subjacentes a esse processo de alienação e apropriação privilegiadas das terras públicas no Brasil. Neste trabalho, esta problemática é analisada a partir de uma perspectiva específica: o estudo das mediações entre a formulação de normas jurídicas e administrativas e suas respectivas relações e implicações, ao nível concreto, da sua implementação.

A tarefa de deslindamento deste processo vem sendo desenvolvida em dois níveis estritamente articulados: um quantitativo, no qual se buscou colocar em evidência a dinâmica física e espacial do processo de apropriação e do incremento de quantidades de terras devolutas incorporadas à propriedade privada rural e sua respectiva destinação, no período, com a referência a estratos de áreas dos estabelecimentos e a regiões do país; outro, qualitativo, pelo qual se buscou colocar em relevo as formas, meios e instrumentos, jurídicos e administrativos, utilizados pelo Estado, para justificar e sustentar a implementação deste processo específico de alienação de terras públicas ou do reconhecimento de domínios privados sobre estas; e os seus efeitos sobre a estrutura fundiária e os movimentos da população rural e urbana.

A análise, especialmente desta segunda perspectiva, oferece a possibilidade de captar e compreender a especificidade do Projeto de Desenvolvimento Rural e da Política Fundiária, tal como propostos pelos Governos a partir de 1964. A análise quantitativa foi desenvolvida com base no levantamento e tratamento estatístico de dados específicos, relativos: (a) às quantidades de áreas, diferencialmente apropriadas, discriminadas por estratos de área, regiões do país e em nível agregado do país (Quadros 1.A - Terras novas; e Quadro 1.B - Distribuição Intrarregional e

487 GRAZIANO DA SILVA (1980 e 1982); DELGADO (1985); MARTINS (1983), JONES (1987).

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Interregional); (b) às variações da população rural e urbana no período (Quadro 2.A - População Rural e Urbana; e Quadro 2.B Taxas de Incremento da População); e (c) ao estudo dos dados referentes à utilização ou destinação das terras, produtiva ou especulativamente (Quadro 3 - Utilização e Destinação das Terras).

Estas análises estão estritamente associadas a, e, em certo sentido, são informadas pelo modelo de desenvolvimento rural e, muito especialmente, pelos instrumentos jurídicos e administrativos instituídos e utilizados pelo Governo para implementar uma determinada política de alienação de terras públicas e de legitimação de terras em poder de particulares.

Isto porque, conforme as diretrizes definidas na Mensagem 33 e nos diversos atos administrativos e documentos do Governo, elaborados para justificar ou orientar a execução da Política de Terras, as transferências de domínio e o reconhecimento de propriedade privada sobre as terras públicas, subordinavam-se, sempre, à execução “projetos relevantes” para o desenvolvimento nacional ou regional - por isso, amplamente subsidiados - ou para coibir tensões e conflitos sociais considerados significativos.

Assim sendo, torna-se legítima a expectativa de que a taxa de utilização das terras agrícolas, então apropriadas, fosse, na pior das hipóteses, proporcional à taxa histórica de ocupação das terras agrícolas. Portanto, que se elevasse no período.

A tendência contrária seria, em certo sentido, indicativa do fracasso da “Política” implícita no Projeto de Desenvolvimento Rural do Governo, especialmente a vinculada à implementação do imperativo constitucional de promover a justa e eqüitativa distribuição da propriedade da terra. Ou, na melhor das hipóteses, significaria o desvirtuamento do projeto específico da Reforma Agrária, tal como proclamado pelo Governo. Observe-se que este desvirtuamento da idéia da promoção da “Reforma Agrária Democrática”, proclamada na Mensagem 33 e no Estatuto da Terra, apresenta semelhanças com o desvirtuamento das teses da “Colonização Sistemática” em relação a Lei 601 de 1850, como evidenciado pela análise realizada no capítulo 2. Em ambos os casos os Projetos Fundiários e de Colonização que se implementou efetivamente, pouco, ou nada, tinham a ver com as teses originalmente defendidas e incluídas nas respectivas legislações e, menos ainda, com os objetivos originalmente definidos. Ou seja, estes foram apenas pretextos para a continuidade das mesmas tendências anteriores.

Nesta hipótese, pode-se afirmar que persistia o mesmo e antigo processo de alienação e legitimação privilegiadas, embora sob nova roupagem. O que não significa que o governo não tenha implementado um determinado projeto de reestruturação fundiária, ao contrário.

Neste contexto, a compreensão objetiva da Política Fundiária desenvolvida pelo Estado, no período, exige procedimento metodológico complexo. Não pode ser reduzida à sua expressão puramente quantitativa, tal como evidenciada pelas estatísticas da concentração na distribuição da propriedade rural. Exige, para além destas evidências, a

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análise cuidadosa e objetiva de outras manifestações do processo de ocupação e legitimação da propriedade e seus efeitos sobre a economia e à sociedade rurais. Nesta conjuntura, a análise dos movimentos interregional e intraregional do processo de apropriação e privatização de terras públicas exige, no mínimo, o estudo de sua articulação com a destinação (produtiva ou especulativa) dada às terras incorporadas ao patrimônio privado, por um lado, e com as variações entre a população rural e urbana, por outro.

Estritamente associada a esta análise, é fundamental que se procure discutir os meios e métodos utilizados pelo Estado na efetivação concreta dos processos de incorporação das terras “novas” ao patrimônio de novos ou de antigos estabelecimentos. Ou seja, a análise efetiva dos instrumentos de política fundiária, estudados no capítulo anterior, em articulação com os seus resultados, no período. Até porque, como vem sendo registrando reiteradas vezes neste estudo, a incorporação de “terras novas”, seja pela ação ou pela omissão das autoridades fundiárias do Estado, não significa, necessariamente, que se trataram de alienação ou de reconhecimento de domínio sobre terras devolutas, “livres” e desocupadas. Logo, o processo de alienação de terras públicas, incorpora, necessariamente, determinadas e específicas relações de expropriação de populações ao nível do exercício da força bruta e do engodo contra direitos reais. Portanto, de grilagem especializada. Especialmente quando se referem aos “pequenos posseiros” e indígenas que, legal e legitimamente, sempre tiveram seus direitos reais ou civis, de propriedade, assegurados, como se demonstrou amplamente nos capítulos anteriores.

Direitos estes, sistematicamente anulados na prática, como se vem documentando nesta pesquisa. Este fato é a evidência mais contundente de que persiste a legitimação privilegiada e juridicamente questionável.

Em sendo assim, pode-se afirmar que a Política Fundiária do Governo, no período, em vez de promover o imperativo constitucional de assegurar a “justa distribuição da terra, com igual oportunidade para todos” nem sequer, promoveu, na maioria dos casos que envolveram pequenos posseiros e indígenas, a titulação da propriedade territorial, legalmente exigida, portanto obrigatória para o Governo. Como se fez menção no capítulo anterior, este fato caracteriza o ato de improbidade administrativa por parte das autoridades fundiárias, por um lado; e de enriquecimento ilícito, por parte dos cidadãos que dele se beneficiaram488, por outro.

Estes fatos, independentemente de que se faça qualquer referência aos atos de violência pura e simples contra posseiros e indígenas - atos estes, vastamente conhecidos e documentados - caracterizam ilícitos, do ponto de vista jurídico, praticados pelas autoridades fundiárias e por inúmeros cidadãos que se tornaram detentores de grandes “propriedades”, muito especialmente, nas Regiões Centro-Oeste,

488 Mas que, na verdade, eram objeto de muitas posses legítimas de terceiros, que portanto, detinham o direito real sobre a terra e a expectativa de sua legalização, pelo Estado.

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Nordeste e Norte. Mas, em menor escala, também nas demais regiões. Tratam-se, portanto, de atos passíveis de questionamento e, mais do que isto, de enquadramento civil e criminal pelo Poder Judiciário489, posto serem atos praticados ao arrepio ou em clara contradição com preceitos constitucionais.

A caracterização dos atos ilícitos ficou amplamente demonstrada no capítulo 4. Entretanto, considerando-se que esse é um dos traços fundamentais no processo de “distribuição” de terras púbicas - sob a capa de vendas, licitações, etc.-, convém destacar como estes atos são praticados: Na medida em que terras públicas são “concedidas” a particulares, em contradição com determinados preceitos normativos e legais, o Estado, ou como preferem os juristas, o Poder Público, atua, na prática, privilegiando poucos cidadãos em detrimento da imensa camada da população rural, que efetivamente, detinha direitos reais sobre as terras onde vivia e trabalhava, inclusive cumprindo os requisitos legais quanto ao acesso, posse e uso da terra. Neste sentido, o ilícito configura-se objetivamente, quando a materialização do direito de propriedade afeta direitos reais precedentes, fundando-se em deliberações privilegiadas das autoridades públicas. É neste sentido, do ponto de vista jurídico, que se consubstancia e caracteriza, na prática, o ato ilícito. Segundo Hely Lopes Meirelles, o controle judiciário ou judicial

“é o exercido privativamente pelos órgãos do Poder Judiciário sobre os atos administrativos do Executivo, do Legislativo e do próprio Judiciário quando realiza atividade administrativa. É um controle a posteriori, unicamente da legalidade, por restrito à verificação da conformidade do ato com a norma legal que o rege. Mas é, sobretudo um meio de preservação de direitos individuais porque visa impor a observância da lei em cada caso concreto, quando reclamada por seus beneficiários. Esses direitos podem ser públicos ou privados - não importa - mas sempre subjetivos e próprios de quem pede a correção judicial do ato administrativo, salvo na ação popular em que o autor defende o patrimônio da comunidade lesado pela Administração490.”

Nesta mesma linha de argumentação, Celso Antônio Bandeira de Mello, salienta que, acerca do controle judicial dos atos administrativos

“é ao Poder Judiciário e só a ele que cabe resolver definitivamente sobre quaisquer litígios de direito. Detém, pois, a universalidade da jurisdição, quer no que respeita à legalidade ou consonância das condutas públicas com atos normativos infralegais, quer no que atina à constitucionalidade delas. Neste mister tanto anulará atos inválidos como imporá à Administração os comportamentos a que esteja de direito obrigada, como proferirá e imporá as condenações pecuniárias cabíveis.”491

489 Refere-se aqui ao princípio jurídico do “controle da legalidade dos atos administrativos”, praticados pelas autoridades do Estado. 490 Op. cit., p. 601. Grifos nossos; itálicos de Hely Lopes Meirelles. 491 BANDEIRA DE MELLO, op. cit., p. 70.

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Apesar disso, a reprodução, em áreas novas, da mesma estrutura agrária concentrada é, entre inúmeras outras, uma evidência contundente de atos ilícitos, portanto, juridicamente questionáveis.

Por motivos desta natureza, cuja relevância é indiscutível, é que se torna absolutamente necessária a análise das evidências referentes à luta pela posse da terra, muito especialmente dos movimentos de resistência dos posseiros, lesados em seus direitos reais e legítimos e escorraçados das terras onde sempre viveram e trabalharam. A análise desses processos, dado o seu caráter eminentemente qualitativo, e até porque as estatísticas a respeito da violência são de difícil levantamento, pode, entretanto, ser intentada por vias indiretas, como por exemplo, pela estudo da dinâmica da população rural e urbana, dos conflitos e dos crimes praticados na luta pela terra, etc.

Igualmente difícil, ao nível agregado, seria aferir o volume e a qualidade dos processos de alienação de terras, pelo Estado, se feitos de forma legal ou não, como acontece nos casos de grilagem, em particular, quando se trata daquilo que neste estudo se está denominando de “grilagem especializada”. Aquela que é processada sob a cobertura de procedimentos aparentemente legais, mas que são “legais” apenas na aparência formal. Na realidade, ferem direitos assegurados legalmente a terceiros. Entretanto, este método de grilagem especializada está amplamente caracterizado em diversos depoimentos prestados à Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema Fundiário e analisada no seu Relatório Final. Naquele Relatório, este procedimento de grilagem é descrito da seguinte forma:

“Por sua vez, Dom Moacyr Grechi, Bispo do Acre e Purus, destacou que, ‘80% das terras do Acre foram vendidas a investidores do Centro-Sul sem que se procedesse a regularização fundiária do Estado, e que muitos especuladores adquiriram seringais a baixo preço para vendê-los mais tarde com grande margem de lucro’. Ressaltou que os abusos são cometidos de duas formas: a) pelo esticamento, ou seja, pela compra de área sem delimitação exata, à qual são, posteriormente anexadas áreas subjacentes, com a conivência dos cartórios; b) pela falsificação de títulos, inclusive na Bolívia. “Além destas irregularidades, bastante generalizadas, agravam-se os problemas sociais a partir do momento em que começam a ser derrubadas as áreas adquiridas pelas empresas, para formar pastagens. Sendo que a terra é ocupada geralmente por famílias de seringueiros ou agricultores; um dos primeiros objetivos dos fazendeiros é o de “limpar a área”, isto é, tirar das terras os moradores que nela trabalham há 5, 10, 20 ou 40 anos, sem o menor respeito pelos direitos dessa gente. Aproveitando-se do fato de que os seringueiros e colonos não conhecem as leis agrárias e os direitos que elas lhes garantem, ou por não ter como fazê-los respeitar, é comum a prática de expulsar posseiros por métodos como: a) não fornecimento de mercadorias para os seringueiros, obstrução de varadouros, proibição de desmatar e fazer roçados; b) destruição

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de plantações, invasão de posses, derrubadas até perto das casas dos posseiros, deixando-os sem ou quase sem terras para trabalhar; c) compra de posses e benfeitorias por preços irrisórios ou, quando muito, em troca de uma área muito inferior ao módulo, que não permitirá ao posseiro e família trabalhar e progredir; d) atuação de pistoleiros que amedrontam os posseiros numa guerra psicológica através de ameaças ou mesmo de espancamentos e outras violências; e) ameaças feitas por policiais a serviço de proprietários; prisões de posseiros, por questões de terra, sem ordem judicial ou por ordem judicial sem que tenha sido movida a ação competente(...).”492

A métodos similares se fez referência em capítulo anterior. Estes são, em linhas gerais, os métodos da grilagem especializada: da apropriação e da regulamentação privilegiadas, que caracterizaram de maneira relevante a execução da Política de Terras posta em prática no período Militar.

Tendo em estrita consideração as restrições metodológicas citadas acima, é que se fez a opção, neste capítulo, por complementar à análise documental, realizada no capítulo anterior, com algumas estatísticas referentes ao volume e distribuição de terras incorporadas ao patrimônio privado no período, ao movimento da população rural e urbana, e à destinação dada à terra.

2. Alienação e Apropriação de Terras Novas

O conceito “áreas novas”, tal como definido neste trabalho, não significa que estas terras estivessem desocupadas ou livres. Na verdade, não há nenhuma razão lógica, nem histórica, nem jurídica, para esta suposição. Pelo contrário, todos os estudos anteriores e todas as evidencias dão conta do fato de que essas terras, ao serem discriminadas ou incorporadas ao patrimônio público ou privado, já haviam sido, na maior parte dos casos, objeto de ocupação ou posse anterior: por posseiros e pequenos proprietários, ou eram o “habitat” histórico de indígenas. Todos estes, detendo, portanto, legitimamente, direitos reais sobre estas terras493. Essa situação ficou amplamente demonstrada nos capítulos anteriores.

Portanto, a extinção destas posses não caracteriza, apenas, um processo de expropriação dessas pessoas em relação ao seu direito real à propriedade, mas uma expropriação arbitrária e ilegal: uma modalidade qualificada de grilagem especializada, ilegítima.

Nos casos de posses legítimas, como inclusive reconhecia Paulo Yokota494, Presidente do INCRA, caberia ao Estado, legitimá-las e fornecer os respectivos títulos

492 CÂMARA DOS DEPUTADOS op. cit., p. 13-14. Grifos nossos. 493 Exceto nos casos de áreas reservadas que são, juridicamente, consideradas como inalienáveis; o mesmo se aplicado, em certo sentido às terras tradicionalmente habitadas por indígenas que da mesma forma estavam “legalmente protegidas”, sendo que estas últimas necessitavam de demarcação. Entretanto, tanto umas quanto as outras sempre foram objeto de invasões, sobretudo por latifúndios e, em escala mais reduzida, mas nem por isto menos relevante, de pequenos posseiros e sobretudo por garimpeiros e madeireiros. Estes últimos, geralmente, orientados e dirigidos por grandes grupos de especuladores imobiliários e contrabandistas. 494 Op. cit.

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de Propriedade. A ausência desta providência administrativa e, mais que isto, o descumprimento deste imperativo legal, pelo Poder Público, está na base da apropriação privilegiada, da titulação juridicamente questionável, e da exacerbação da violência na luta pela terra, que são as características fundamentais deste período. Além de caracterizar ato delituoso de improbidade administrativa ou, na melhor das hipóteses, de negligência culposa na gestão da “coisa pública”, por parte das autoridades fundiárias do Governo. Isto significa afirmar que se tratam, “ipso facto”, de atos nulos: portanto, que não transmitem a propriedade, que, desta forma, continua ilegal e ilegítima.

Isto posto, o conceito de “áreas novas” refere-se, apenas, ao diferencial de áreas em poder de particulares, recenseadas entre os Censos de 1980 e 1960. Tratam-se de áreas que, por suposto, foram objeto de apropriação ou alienação neste período. Os Quadros 1.A e 1.B adiante, permitem uma visão de conjunto da dinâmica física do processo de apropriação diferencial da propriedade fundiária sobre estas áreas no Brasil, no período, tanto em termos de diferentes regiões como intraregionalmente. Estes dados estão, para facilitar a sua compreensão, discriminados por estratos de área.

O Quadro 1.A oferece uma visão objetiva da distribuição (e direção) seguida pela incorporação à propriedade privada, de áreas novas no Brasil, pelas diferentes regiões e por estratos de propriedades rurais. Este quadro indica claramente que a maior quantidade de área incorporada privadamente no País deu-se na Região Centro Oeste, 46,5%, o que significa quase a metade de todo o incremento no período. Isto significa 53.449.893 de um total de 114.965.285 hectares495. QUADRO 1. A

Áreas Novas (1960-1980): Distribuição Inter-regional, Brasil

Fonte: FIBGE - Censo Agrícola de 1960 e Censo Agropecuário de 1980, com dados agrupados e percentagens calculadas por JONES (1987).

As referências a respeito deste período, feitas pelas autoridades fundiárias brasileiras em relação às ações discriminatórias e ao incentivo à formação de médias e

495 Ver o ANEXO 1 - QUADRO 1 - Distribuição de Áreas Novas Incorporadas ao Patrimônio Privado: 1960-1980 - Números Absolutos.

Especificações: Estratos de Área

Brasil e Regiões Total 0 - 10 10 - 100 100 - 1000 1000 mais

1. Brasil 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0

2. Norte 15,7 10,0 30,1 25,0 4,7

3. Nordeste 22,1 57,7 38,8 20,0 16,6

4. Sudeste 7,9 (- 4,3) 8,0 13,2 4,4

5. Sul 7,8 32,7 13,7 11,3 1,8

6. Centro-Oeste 46,5 3,9 9,4 30,5 72,5

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grandes empresas rurais, especialmente nas chamadas “regiões de fronteira”, reforçam estes dados496.

Em seguida, curiosamente497, vem a Região Nordeste, com 22,1% do total das áreas incorporadas ao patrimônio privado, o que denuncia, efetivamente, que boa parte das propriedades desta região não se encontravam legalmente regularizadas no período, configurando-se em posses sobre terras devolutas. Segue-se, em importância, a Região Norte498, com 15,7%, da incorporação ao patrimônio privado, de terras novas. Este é, em linhas gerais, o perfil da expansão da propriedade privada, sobre a “fronteira agrária”, em termos físicos de ocupação de terras, por suposto, devolutas. Reflete, neste sentido específico, o processo de privatização de terras públicas, ou do reconhecimento de domínios, que foram “legalizados”, nos termos analisados na capítulo anterior. Nas regiões Sul e Sudeste, as taxas são de 7,8% e 7,9%, respectivamente, o que indica a menor disponibilidade de terras “devolutas” ou “irregularmente” tituladas, além do fato de se tratar de regiões onde o processo de ocupação das terras se encontrava, aparentemente, melhor consolidado no período.

QUADRO 1.B ÁREAS NOVAS (1960-1980): DISTRIBUIÇÃO INTRA-REGIONAL, BRASIL

Especificações: ESTRATOS DE ÁREA

Brasil e Regiões Total 0 - 10 10 - 100 100 - 1000 1000 mais

1. Brasil 100,0 2,6 14,7 35,5 47,2

2. Norte 100,0 1,7 28,1 56,1 14,1499

3. Nordeste 100,0 6,9 25,8 32,0 35,3

4. Sudeste 100,0 (- 1,4) 14,9 59,7 26,8

5. Sul 100,0 11,0 26,1 51,9 11,0

6. Centro-Oeste 100,0 0,2 3,0 23,3 73,7

Fonte: FIBGE - Censo Agrícola 1960 e Censo Agropecuário de 1980, com dados agrupados e diferenciais e correspondentes percentagens calculados por JONES (1987).

496 Ver, especialmente, os dados citados por YOKOTA (op. cit.) e ZANATTA (op. cit.) no capítulo 4. 497 Diz-se “curiosamente” por se tratar de uma Região de ocupação muito antiga e de estrutura agrária fundamentalmente consolidada já da década de 50 do século passado (ver CARVALHO e FAORO, citados). Este fato é um forte indício de que, também neste caso, a maioria das áreas eram apenas posses que foram legitimadas neste período. 498 Deve-se fazer uma ressalva em relação aos dados referentes à Região Norte, que apresentaram problemas entre os Censos de 1960 e 1980. Segundo GRAZIANO DA SILVA (1974, p.5), “embora o número de estabelecimentos tenha quase dobrado no período, a área total recenseada na região diminuiu ligeiramente, devido à forte redução apresentada pelos Estados do Acre, Amapá e Amazonas”. Com base na constatação de que a referida redução afetou sobretudo os estratos de área mais elevada, Graziano da Silva defende a suposição de que “não foram recenseadas em 1970 algumas das grandes propriedades existentes em 1960, o que explicaria a redução da área total apesar de quase ter duplicado o número de estabelecimentos.” (Id. Ibidem., p.5). Isto talvez explique o segundo posto ocupado pelo Nordeste. 499 Vejam-se as observações de GRAZIANO DA SILVA constantes da nota anterior.

247

O Quadro 1.B, acima, permite o detalhamento dos dados do quadro anterior, em termos da distribuição interna a cada região. Ao analisar-se, com base nos dados deste quadro, a distribuição da apropriação de áreas novas, por estratos, verifica-se que 47,2%, portanto, virtualmente, metade de todo o incremento observado no País, irá destinar-se aos estabelecimentos com mais de mil hectares. Por outro lado, 35,3%, destinam-se à propriedades de área situada entre 100 a 1000 hectares. Estes dois estratos, em conjunto, totalizam, em relação ao país, a privatização de 82,7% de toda a expansão de áreas novas. Isso significa 95.039.359 hectares, de um total de 114.965.285. Apenas 14,7% e 2,6%, respectivamente, são incorporados aos estabelecimentos dos estratos de 10 a 100 e de até 10 hectares. Estes dados confirmam a tendência, e, mais que isso, a proposta e a estratégia de ocupação e privatização de terras devolutas, tais como defendidas pelos Órgãos Fundiários do Governo, no período, fatos amplamente discutidos no capítulo anterior.

Este perfil pode ser observado para todas as distintas regiões do País, muito especialmente para aquelas onde o volume de terras devolutas era mais significativo, como as regiões Norte e Centro-Oeste.

A maior concentração é observada para os estratos de 100 a 1.000 hectares (35,5%) e, sobretudo, os acima de 1.000 hectares que, sozinhos, apropriaram-se de 47,2% do total da terras devolutas, reconhecidas como propriedades privadas no período500.

Por outro lado, apesar da análise da Região Norte ficar prejudicada, como se observou acima; ao analisar-se os dados da região Centro-Oeste, que significou 46,5% do incremento total do País, tem-se que, nesta Região, 73,7% do total da área destinaram-se aos estabelecimentos com mais de 1.000 hectares. Fica, portanto, evidente o viés latifundiário do Projeto de Política Fundiária do Governo.

Essas informações poder ser visualizadas nos gráficos adiante:

500 Ver figura 2.

248

Figura 1 - Apropriação de áreas novas: Distribuição interregional, em percentagem. Brasil, 1960-1980

Nordeste22,1%

Sul7,8%

Centro-Oeste46,5%

Norte15,7%

Sudeste7,9%

Fonte: Dados da Pesquisa

Figura 2 - Apropriação de áreas novas por estratos, em percentuais. Brasil, 1960-19800 - 102,6% 10 - 100

14,7%

100 - 100035,5%

1000 mais47,2%

Fonte: Dados da Pesquisa

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De qualquer maneira, é também relevante, o fortalecimento dos estabelecimentos com área entre 100 a 1.000 hectares, o que é indicativo de que, em certo sentido, verificou-se o fortalecimento de unidades produtivas consideradas como “médias empresas”, na ótica do modelo do Governo501.

Entretanto, o dado mais relevante que aparece nestes quadros, é eloqüentemente documentado pela Região Centro-Oeste. Tratava-se, no período, de uma típica região onde predominavam terras públicas, e portanto, onde o Governo tinha a plena liberdade de dispor das terras e implementar o seu projeto de desenvolvimento Rural. Exatamente nesta região, observa-se o privilegiamento de grandes propriedades: As pequenas propriedades, de menos de 10 hectares detêm apenas 0,2% das áreas novas e as chamadas “propriedades-família”, de até 100 hectares, apenas 3,0%. Por outro lado, as chamadas propriedades “médias” (em torno de 100 ha) detêm apenas 23,3% da área. Entretanto, o verdadeiro privilégio do processo de alienação de terras devolutas aparece, com as propriedades do estrato de mais de mil hectares, que se apropriam de 73,7% do total das áreas novas, nesta Região502 que, sozinha, representou 46,5% do total de áreas novas privatizadas no País503.

Outra informação importante refere-se à Região Sudeste, onde há uma redução de 1,4% no estrato de propriedades de até 10 hectares - que significou, em relação à distribuição das terras deste estrato, para o Brasil, uma redução de 4,3%, conforme se pode verificar no Quadro 1.A - o que denota que este estrato foi penalizado pela política de terras do governo. Talvez pelo fato de se situar, em princípio, nos estreitos limites entre o minifúndio e as chamadas “empresas-família”, imaginada, pelo modelo do Governo, como situando em torno de 110 hectares. De qualquer maneira, os estabelecimentos deste estrato tiveram um comportamento coerente com o processo de concentração da propriedade que acompanhou a estratégia de desenvolvimento rural posto em prática pelo Governo, de privilegiar “médias” e “grandes” empresas rurais504. Observa-se, neste sentido, que o estrato de estabelecimentos com 100 a 1.000 hectares é o que apresenta maior ganho de área no período, correspondendo a 59,7%, ou seja, mais da metade da incorporação de áreas novas, seguido pelos estratos de mais de mil hectares, correspondendo a 26,8%, e, finalmente, em situação bem mais inferiorizada, aqueles que, pelas conceituações do INCRA, poderiam ser definidos como propriedades familiares, correspondendo a apenas 14,9%.

Esses dados, certamente, indicam, que para além da regulamentação de áreas novas, isto é, as que foram privatizadas no período, de apenas 7,9% do total do País (ver Fig.1), houve uma redistribuição de áreas entre as propriedades existentes na Região: nesta redistribuição, foram ampliadas as propriedades de 100 a 1.000 hectares e, em 501 Entretanto, cabe registrar que as áreas médias para as empresas deste tipo, conforme as informações de Oldair Zanatta e Paulo Yokota, como se registrou no capítulo anterior, situavam-se em torno de 500 a 700 hectares, conforme a região. 502 Dados do Quadro 1.B - Áreas Novas: Distribuição Intraregional: Brasil - 1960-1980. 503 Vide Quadro 1.A - Áreas Novas: Distribuição Interregional: Brasil - 1960-1980. Cf. Figura 1. 504 Ver depoimentos de Fernando Cirne Lima e José Gomes da Silva, na CPI do Sistema Fundiário (op. cit.).

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certo sentido, de forma também importante, as de mais de mil hectares e, em menor escala, as de 10 a 100 hectares em detrimento, sobretudo, das pequenas propriedades, de menos de 10 hectares. Estas últimas, de acordo com os dados de ambos os quadros (1 A e 1 B), perderam áreas: -4,3% em relação ao estrato no país e -1,4% internamente à Região Sudeste.

Tratava-se, portanto, de um modelo de desenvolvimento francamente fundado no pressuposto da concentração da propriedade da terra em grandes áreas, estruturadas em “empresas agropecuárias”, como estratégia para a promoção do desenvolvimento rural. É evidente que, neste contexto, não se pode, sequer, imaginar que pretendia o Governo, no período, proceder a nenhuma espécie de “reforma agrária distributivista”. E, pelos motivos discutidos no capítulo anterior, menos ainda, que ele tivesse interesse em reforçar o volume ou o número de “pequenas propriedades”, entendidas estas, como as de área inferior a 110 hectares. Este deveria ser, segundo as autoridades fundiárias, o tamanho mínimo adequado para uma “propriedade-família”, como foi registrado no depoimento de José Gomes da Silva à Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema Fundiário, citado acima505.

Embora esses dados, referentes à dimensão física das áreas e sua distribuição, sejam insuficientes para se caracterizar o significado mais profundo do processo de apropriação territorial, especialmente quanto aos seus efeitos na dinâmica da produtividade do trabalho na agricultura e os seus resultados econômicos fundamentais, por outro lado, são um indicador seguro do processo de discriminação social e excludência da população rural506 em relação à propriedade da terra, ou seja, aos meios de vida e de trabalho no campo507.

Neste sentido, por exemplo, se se tiver em consideração que o vetor fundamental do diagnóstico do “problema agrário”, tal como apresentado na Mensagem 33, indicava a necessidade de eliminação do minifúndio e do latifúndio (o que, em si mesmo, faz supor que se referia às áreas “antigas”, isto é já ocupadas), a persistência, nas áreas “novas”, incorporadas ao patrimônio privado no período, da mesma tendência concentracionista e polarizada, com certeza, é indicativa de que a proposta do Governo resumia-se, na prática, aliás, como foi exaustivamente documentado no capítulo anterior, à simples eliminação dos minifúndios e ao reforço das grandes propriedades,

505 Ver a este respeito, os Depoimentos de José Gomes da Silva, José Francisco da Silva, Don Moacyr Grechi, Edilson Martins Silveira, Luiz Fernando Cirne Lima, João Carlos de Souza Meireles, entre muitos outros, à CPI do Sistema Fundiário (CAMARA DOS DEPUTADOS, 1979). Ver, igualmente, o depoimento do Senhor Oldair Zanatta à CPI dos Incentivos Fiscais da Amazônia (INCRA, op. cit.). 506 Este fenômeno será evidenciado ao se analisar os movimento da população - rural e urbana - adiante. 507 Embora a ênfase nestes dados a respeito do processo de apropriação da terra seja de grande relevância para a análise da questão agrária, considera-se procedentes, e por isto, registra-se nesta nota, as críticas e ressalvas de Sérgio Silva (in BELLUZZO & COUTINHO, orgs. 1993., pp. 177 e seguintes), no sentido de que a análise do “processo de produção brasileiro”, como coloca aquele autor, tem de incluir, além do estudo da “distribuição da terra como fator explicativo da questão agrária e, em particular da estrutura da produção agrícola no Brasil”, outras informações e dados que permitam captar a dimensão relevante entre os dados físicos acerca das áreas e as suas outras relações relativas “à questão da terra no capitalismo” (loc. Cit. p.176).

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fossem ou não definidas como empresas ou latifúndios pelo INCRA, como pode-se visualizar com clareza na figura 2.

Portanto, persistiam, sob novas formas, os mesmos processos de alienação, apropriação e legitimação privilegiadas, que sempre caracterizaram todas as Políticas de Terra e respectivas iniciativas de reorganização da estrutura fundiária brasileira postas em prática desde o fracassado Regulamento de 1854. Este fenômeno ficou objetivamente esclarecido pelos dados do Quadro 1.B .

Aliás, esse procedimento era facilitado, ao nível da formulação legislativa, no âmbito do Estatuto da Terra, pelo construto de “empresa rural” que fora habilmente formulado como oposto (ainda que apenas formalmente) ao de “latifúndio” (“por dimensão” ou “por exploração”), por um lado, e ao de minifúndio, por outro. Este procedimento permitia transformar, como num toque de mágica, “latifúndios por dimensão” em “empresas” e minifúndios em “latifúndios por exploração”. Essa tipologia, criada no Estatuto Terra e aparentemente coerente enquanto uma formulação de critérios “técnicos”, na verdade, permitia tornar iguais cousas e, sobretudo, realidades, profundamente diferentes, como o latifúndio e o minifúndio. Além de permitir, o que é ainda mais relevante e grave, na medida em que se definia como “causa” fundamental dos problemas rurais a persistência da dicotomia “latifúndio-minifúndio”, a colocação de grandes propriedades especulativas e geralmente ilegítimas e de pequenas explorações de subsistência, na mesma situação de “nocividade” em relação ao desenvolvimento da agricultura brasileira. Inviabilizava-se, desta forma, qualquer possibilidade de ação jurídica ou administrativa coerente neste âmbito.

E, ainda mais relevante, colocava o minifúndio apenas como parte do problema, enquanto os latifúndios, se eficientemente incentivados, poderiam vir a se constituir em empresas rurais eficientes e, desta forma, transformarem-se num dos suportes fundamentais do processo de desenvolvimento rural. Este diagnóstico, tal como realizado pelo Governo, por outro lado, oferecia aos defensores do latifúndio, a possibilidade de justificarem política e economicamente, a sua existência, ainda que calcada na ineficiência.

A necessidade de sua existência, neste sentido, seria justificada na medida em que, por suposto, eles reuniam as condições potenciais, em termos de área, que, se adequadamente apoiadas pelo Estado, poderiam sustentar o crescimento da produção agropecuária e contribuir para o desenvolvimento nacional mediante a oferta de produtos, tanto para o consumo interno quanto para a exportação, auxiliando, neste sentido, a amenizar os problemas da “balança de pagamentos”, etc. Ou seja, tinham, potencialmente, a possibilidade de dar respostas rápidas aos incentivos econômicos e as oportunidades do mercado. Quanto à sua secular ineficiência, esta seria “explicada técnica e cientificamente”, como resultado de determinadas conjunturas econômicas e até mesmo edafo-climáticas, etc. Entretanto, sempre e sobretudo como resultado da falta de incentivos por parte do Governo, sobretudo no que se referia à ausência de políticas adequadas. Especialmente no que se referia à oferta de créditos, preços, subsídios, etc.

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Neste contexto, não sendo, portanto, a ineficiência, uma característica intrínseca ao latifúndio, mas produto da “insensibilidade” do Governo para com a necessidade de implementação de políticas agrícolas. Desta forma, o latifúndio passava de “vilão”, como aparentemente era conceituado na Mensagem 33, à vitima.

Estes argumentos, “teoricamente fundamentados” pelos “especialistas” em desenvolvimento e economia rural do Governo, forneciam, na verdade os insumos e instrumentos básicos para a defesa ideológica do latifúndio: a sua linha de argumentação econômica fundamental. Estes argumentos serão os instrumentos e recursos cada vez mais utilizados pelos grandes detentores de terras, ou seus representantes no Legislativo e no Executivo, para exigir créditos subsidiados, incentivos diversos e, até, para aplicarem calotes ao Banco do Brasil e às agências públicas de desenvolvimento regional. Além, é claro, e acima de tudo, de servirem para assegurar a defesa pura e simples da propriedade latifundiária, mesmo quando pouco produtiva ou não-explorada, posto que a responsabilidade sempre caberia, a considerar-se válidas estas teses, ou às “Políticas Agrícolas”, ou às “catástrofes naturais” ou, ainda, até mesmo, à sazonalidade da “natureza” ou “da demanda”, etc.

Afinal, segundo o discurso do Governo, para que os latifúndios pudessem cumprir esta tarefa e serem classificados como empresas, bastaria que preenchessem certos requisitos “técnicos”, e, neste sentido, era suficiente que apresentassem Projetos de aproveitamento agrícola para sua exploração aos Órgãos fundiários. Por esta mágica, não apenas os latifúndios se transformavam em empresas mas, o que é ainda mais relevante ao caso, passavam a ser beneficiários dos amplos incentivos fiscais e outros, generosamente postos à sua disposição pelos Governos Militares. Tudo isso estava claramente posto na Mensagem 33 e rigorosamente definido e regulamentado no Estatuto da Terra508.

Neste contexto e sentido, não é de se estranhar que o próximo passo nesta batalha para a consagração dos seculares privilégios do latifúndio, tenha sido a estruturação e defesa de um novo construto, o de “latifúndio produtivo”, intentado, quase que imediatamente após o final do ciclo militar, pelos grupos que se opunham à realização efetiva de uma reforma agrária no País. Especialmente diante da perspectiva de que fosse retomada a idéia da reforma agrária509, com o sentido de democratizar o acesso à propriedade rural e questionar a legitimidade dos latifúndios, na conjuntura favorável, que então se criara, para estas teses, e que aparentava se consolidar após o retorno do País à chamada “normalidade democrática”.

Entretanto, a simples análise dos dados acima já é suficiente para identificar o sentido da política de terras posta em prática pelos governos militares no período. Esta política estava, como se demonstrou no capítulo anterior, explicitamente colocada no Projeto de Desenvolvimento Rural do Governo, e era minuciosamente regulamentada no Estatuto da Terra. Por esta razão não se pode, em nenhum sentido, argüir que foi 508 Ver Mensagem 33 (BRASIL. Presidência da República. Brasília: 1964). 509 A análise desse fato, embora da maior relevância, situa-se para além do período definido para este estudo.

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proposta uma reforma agrária avançada, no Estatuto da Terra, e outra, distinta, na sua execução.

Neste sentido específico, as análises realizadas neste estudo, não deixam nenhuma dúvida de que a “reforma agrária” incursa na Lei 4.504, de novembro de 1964, foi, efetivamente, a que o governo implementou. O que fica, também, evidente neste contexto, é que a proposta de desenvolvimento rural apresentada na Mensagem 33 e no Estatuto da Terra jamais incluiu a proposição de uma reforma agrária distributivista e democrática, especialmente se esta é entendida no sentido de beneficiar aos pequenos posseiros ou aos agricultores sem terra ou com pouca terra, como foi analisado amplamente no capítulo anterior.

O Projeto de Desenvolvimento Rural proposto e posto em prática pelo Regime Militar, como se vem demonstrando, era, de fato, concentracionista, aliás, como o era o próprio “Modelo” de desenvolvimento econômico: fundado na estruturação das condições fundamentais e dos instrumentos básicos para a assegurar a reprodução ampliada de capital, o que pressupunha a concentração e centralização de determinados recursos econômicos. Sobretudo a concentração do capital e da terra. Isto implicava, o arrocho salarial, a concentração de renda, dos meios de produção e, evidentemente, também da propriedade fundiária510. Octávio Ianni resume de forma objetiva esse fenômeno nos seguintes termos:

“Durante os anos 1964-78, o Estado Brasileiro foi levado a realizar uma política econômica razoavelmente agressiva e sistemática de subordinação da agricultura ao capital. Nesses anos, o processo de subordinação da agricultura à indústria, do campo à cidade, entrou em uma fase mais intensa e generalizada do que em ocasiões anteriores de tempo recente. As medidas governamentais adotadas propiciaram a aceleração e a generalização do desenvolvimento intensivo e extensivo do capitalismo no campo. Nas atividades em que já se havia organizado uma agricultura capitalista, como na cana de açúcar, por exemplo, o poder estatal foi levado a apoiar ou induzir a concentração e a centralização do capital, juntamente com a maquinização e a quimificação do processo produtivo. Nas atividades em que eram escassas, dispersas ou inexistentes as organizações capitalistas de produção, como na pecuária rústica da Amazônia, por exemplo, o poder estatal foi levado a induzir, incentivar ou apoiar tanto a constituição de empreendimentos capitalistas como a concentração e a centralização do capital. Por um lado, principalmente nas atividades agrícolas localizadas no Centro-Sul, o Estado foi levado a favorecer o desenvolvimento intensivo do capitalismo. Por outro lado, como nas terras-do-sem-fim, devolutas, tribais ou ocupadas na Amazônia, o Estado foi levado a favorecer o desenvolvimento extensivo do capitalismo. Nos dois casos, isto é, nos dois extremos, a atuação do poder estatal desempenhou-se e desempenha-se de modo

510 Ver especificamente a respeito do Modelo Econômico e de desenvolvimento do período, TAVARES (1983), BRESSER PEREIRA (1985); DELGADO (1985), entre outros.

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particularmente agressivo e repressivo, em termos econômicos e políticos511.”

3. Reconcentração Fundiária e População: Uma Face da Excludência Uma das conseqüências do processo de reconcentração fundiária e que denuncia,

objetivamente, o efeito perverso - e inverso ao proclamado na Mensagem 33, a respeito da promoção da “justiça social no campo” - pode ser, ainda que de forma indireta, depreendido da análise da variação das populações rural e urbana no período.

Quadro 2.A - População Rural e Urbana: Brasil e Grandes Regiões 1960 - 1880

(Percentuais)

ESPECIFICAÇÕES 1960 1970 1980

Brasil e Regiões Rural Urbana Rural Urbana Rural Urbana

1. Brasil 55,3 44,7 44,0 56,0 32,4 67,6 2. Norte 62,6 37,4 55,0 45,0 48,4 51,6 3. Nordeste 66,1 33,9 58,2 41,8 49,5 50,5 4. Sudeste 43,0 57,0 27,3 72,7 17,2 82,8 5. Sul 62,9 37,1 55,7 44,3 37,6 62,4 6. Centro Oeste 65,8 34,2 52,0 48,0 32,2 67,8 FONTE: FIBGE - Anuário Estatístico (1984), com dados agrupados e correspondentes percentagens calculados por JONES (1987).

O Quadro 2.A, acima, evidencia que, ao nível agregado do País, a população rural caiu, entre 1960 e 1980, de 55,3% para 32,4%, enquanto a urbana cresceu, inversamente, na mesma proporção. Observa-se, por outro lado, que, em todas as regiões, indistintamente, há uma queda relevante da população rural em relação a urbana. Parece óbvio que não se pode explicar esse fenômeno, apenas, afirmando que o mesmo reflete um comportamento “normal” e inerente, ao “processo de desenvolvimento econômico”. Primeiro, porque é necessário especificar qual o caráter e de que tipo de desenvolvimento se trata. Portanto, de qualificá-lo. Segundo, e mais importante, porque este comportamento, no caso do Brasil, é comum a regiões profundamente distintas no que se refere aos níveis de desenvolvimento como, por exemplo, as Regiões Sudeste, Norte e Centro Oeste.

Fugiria aos objetivos deste estudo a análise das causas mais profundas dessas flutuações da população rural e urbana. Entretanto, é interessante observar suas relações, paralelamente aos movimentos de concentração da propriedade rural, nas diferentes regiões do país. Uma observação, ainda que genérica a este respeito, parece indicar que nas regiões onde a apropriação de áreas novas deu-se de forma mais concentrada, privilegiando grandes propriedades, como por exemplo, a Região Centro-Oeste, é mais acentuada a queda da população rural e mais exacerbado o crescimento da

511 IANNI (1979(a), pp.,16-17). Grifos nossos.

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população urbana512. No caso desta Região o fenômeno do extremo crescimento da população urbana, por exemplo, parece indicar que o mesmo se deveu, por um lado, à imigração em larga escala de habitantes de outras regiões e, por outro lado, à expulsão de boa parte da população rural desta região em face da extrema concentração da propriedade, como se observou no item anterior.

É verdade que esse fenômeno está associado, fundamental e genericamente, ao processo de desenvolvimento econômico do País, que amplia a demanda efetiva por novas áreas, em face da necessidade de expansão do processo produtivo, como também, especulativo, face a valorização das terras. Entretanto, não se limita apenas a isto.

O fenômeno de incorporação de novas áreas, a menos que se tratem de terras livres e desocupadas, mas, sobretudo, quando essa incorporação é feita de forma especulativa, implica necessariamente processos de expropriação que, em última análise, podem representar redução significativa da população rural. Por outro lado, inversamente, a incorporação produtiva de novas áreas agrícolas tende a aumentar, em números absolutos - embora possa implicar, em determinadas condições, reduções em termos relativos - a população trabalhadora rural.

No caso do Brasil pós-64, a expropriação e expulsão de trabalhadores rurais de suas posses foi mais do que proporcional à incorporação de “novos” trabalhadores ao processo produtivo, em face da privatização das terras, tal como promovida pelo Governo. Isso significa, certamente, que estas terras permaneceram inaproveitadas, improdutivas ou, apenas extensivamente exploradas. Ou seja, tratou-se de um processo de privatização privilegiada e de caráter amplamente especulativo. Neste caso, negando o discurso da Política Fundiária do Governo: tanto o de promover a ocupação produtiva da terra513, quanto no que se referia ao acesso à propriedade pala massa dos pequenos posseiros e arrendatários e a reinstalação de outros trabalhadores expropriados. É neste sentido que o dignóstico exposto na Mensagem 33 pode ser interpretado como uma espécie de justificativa ideológica do “Golpe no Campo514”, portanto como simples “pretexto” para as iniciativas no âmbito da alienação privilegiada de terras devolutas e da “grilagem especializada”.

Entretanto, não se pode atribuir este fenômeno demográfico, exceto em situações e regiões específicas, como, possivelmente, o Sudeste, à excludência social de trabalhadores que se tornaram supérfluos, em resultado do aumento da produtividade do trabalho em determinados ramos da economia rural. Menos ainda, quando a excludência se referiu aos trabalhadores empregados na produção imediata na

512 É verdade que a transferência do Distrito Federal é um dado relevante a ser considerado neste contexto. Entretanto este dado é parte do mesmo fenômeno, não podendo ser dele separado. Ver Quadro 2.B adiante. Para uma visualização dos resultados dessas relações entre área total privatizada, área utilizada e população rural e urbana, ver a Figura 5 (vide conclusões) 513 Para uma visualização da variação percentual da área utilizada por atividade agroprcuária e florestal, ver a Figura 3. 514 Expressão utilizada por Carlos Minc. Op. cit.

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agricultura. Ou seja, embora, por um lado, seja verdadeira a asserção de que o aumento da produtividade do trabalho agrícola gere certo nível de desemprego, de população rural excedente em relação às necessidades de mão-de-obra na produção imediata; por outro lado, este processo apenas opera a ampliação, em escala crescente, desta excludência, em relação à população trabalhadora já expropriada de seus meios de existência e produção. Ou seja, da terra e dos instrumentos de trabalho. Ambos os fenômenos geram e ampliam a excludência social e a expulsão do trabalhadores em relação ao processo de produção imediata.

Isso não quer significar que esta situação específica de excludência social da força de trabalho não ocorra na agricultura, e menos ainda, que este processo não seja relevante. Significa, contrariamente, que no caso específico da maioria das regiões do país, a excludência social observada é muito mais produto da expropriação territorial do que da incorporação do progresso técnico e do aumento da produtividade do trabalho na agricultura. Essa afirmação ficará mais reforçada ao se analisar a taxa de utilização das terras agrícolas, adiante.

Feitas estas ressalvas, pode-se afirmar que os dados demográficos referentes ao comportamento das populações rurais nas Regiões Sul e, em particular, na Sudeste, podem sugerir, quando associados à dinâmica das áreas dos estabelecimentos e à relevância dos processos produtivos e sua vinculação mercantil, que, nestas regiões, parcela significativa da redução das populações rurais pode estar associada à intensificação dos processos de produção, que igualmente, acompanharam a reconcentração das propriedades, como se estudou no item anterior. Sem excluir, evidentemente, a simples expropriação de pequenos posseiros, proprietários e indígenas pela via especulativa e ilegal, próprias dos métodos da grilagem especializada e da “acumulação originária”, se se quiser utilizar esta categoria analítica desenvolvida por Marx.

Esta situação é especialmente significativa para a Região Sudeste. Por outro lado, no que toca à Região Sul, outros estudos515 chamaram a atenção para a relevância, associada a esses processos, do deslocamento de contingentes de pequenos produtores para as regiões de “fronteira”, particularmente para a Amazônia e Centro-Oeste.

Quer dizer, o deslocamento de contingentes de pequenos produtores para estas áreas novas de ocupação e colonização, fizeram com que, neste período, o Governo se utilizasse da Política Fundiária com o objetivo, também, de possibilitar a liberação de terras em determinadas regiões, como o caso da região Sul e Sudeste. Tratavam-se de regiões que passavam a exigir, na opinião dos especialistas do Governo516, a ampliação da área das propriedades para torná-las economicamente eficientes, sob pena de se criar entraves ao desenvolvimento do setor agrícola.

515 Por exemplo, IANNI (1979), TAVARES DOS SANTOS (1993), VELHO (1979 e 1981) . 516 E de empresários e especuladores imobiliários, como fica claro no depoimento de João C de Souza Meireles.

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É neste contexto que o conceito de “minifúndio”, como uma situação impossível de ser mantida, evidencia toda a sua exuberância de uma argumentação, aparentemente, fundamentada na teoria econômica, mas que, na prática, correspondia muito mais a uma justificativa ideológica para a implementação do processo de reconcentração fundiária pretendida.

É neste sentido e contexto que se enuncia, claramente, o depoimento de João Carlos de Souza Meireles, Presidente da Associação de Empresários da Amazônia, à Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema Fundiário, ao afirmar que:

“...é assim que verificamos que no Rio Grande do Sul o problema do minifúndio passa a ser um dos mais graves problemas daquele Estado. No Vale do Rio Uruguai, tanto no Rio Grande quanto em Santa Catarina, existem municípios onde a propriedade média não tem dimensão superior a 2,5 hectares, ou seja, um alqueirinho [paulista] ou meio alqueire goiano; não tem dimensões, portanto, para fazer sobreviver a uma família. Os estudos da Secretaria de Agricultura e das Cooperativas do Rio Grande do Sul demonstram que no Vale do Rio Uruguai a dimensão econômica para uma propriedade deveria ser de 45 hectares. Portanto, para cada 18 agricultores daquelas regiões de 2,5 hectares, 17 deveriam ser deslocados para novas fronteiras, e como lá, como no Paraná, como em Santa Catarina e São Paulo, e como já começa a acontecer no Sul do Mato Grosso, a alternativa, se não for aberta uma nova fronteira, que significa a Amazônia, vai ser o incorporar-se desse patrimônio da Nação, que é a capacidade de trabalho desse agricultor, que é o seu conhecimento efetivo no trato da terra, à comunidade dos marginais urbanos que, tendo a vida inteira sido treinado para a lavoura da terra, passa a ser o homem que vai à cidade à busca de alguma coisa que não sabe fazer e não tem prática para fazer517”.

Observe-se que este discurso do Presidente da Associação de Empresários da Amazônia, que anteriormente fôra político militante em São Paulo, retomava exatamente o argumento do INCRA em defesa da Colonização Dirigida. Na verdade estava defendendo, não apenas a abertura das fronteiras, mas, provavelmente, a aquisição das terras a que se referira, na mesma CPI, o Bispo do Acre e Purus, destinadas ao desenvolvimento de Projetos de “Colonização Particular”, que era um excelente negócio para as companhias privadas de “colonização”.

Pelo depoimento acima fica evidente a “estratégia” de ocupação das “fronteiras”, tal como proposta e posta em prática pelos Governos Militares e coerentemente articulada com a sua Política Fundiária. Tratava-se, não apenas de possibilitar a expansão do capital em condições vantajosas para as regiões de “desbravamento”, ou pioneiras; mas, sobretudo, e paralelamente, significava também

517 Depoimento prestado à Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema Fundiário (CÂMARA DOS DEPUTADOS (1979, p.48); grifos nossos.

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uma forma de possibilitar a intensificação da produção em escala cada vez maior e mais profunda nas regiões de ocupação antiga como o caso das regiões Sudeste e Sul. Nesse sentido, o avanço extensivo do capital nas regiões de “fronteira econômica” funcionava como “motor complementar de acumulação” ao nível do país518. Neste contexto é interessante registrar a referência ao “Sul do Mato Grosso”, atual Mato Grosso do Sul, típica região de expansão da “fronteira econômica” recente, na época, e que, segundo este depoimento, já se encontrava saturada e exigindo a “abertura de nova fronteira que seria a Amazônia”.

De qualquer maneira, não se poderá estender o raciocínio acima, referente aos casos das Regiões Sul e Sudeste, generalizando-o para as demais regiões do país, particularmente as Norte e Centro Oeste. Nestas, o que parece ter acontecido foi o avanço extensivo do capitalismo, aproveitando-se, sobretudo, das amplas vantagens, subsídios e privilégios colocados à sua disposição pelo Estado. Antes de todas, as relativas ao acesso fácil e quase, quando não gratuito, mas sempre privilegiado, à propriedade de vastas áreas pelo interior do País. Facilidade esta, aliás, que uma vez materializada, abria as portas dos cofres públicos a toda a sorte de subsídios e privilégios. Esta parece ser a conclusão a que chegaram alguns importantes pesquisadores desta questão, no período, tais como Foweraker519, Ianni520, Bresser Pereira521, entre muitos outros.

É interessante notar como as maiores reduções observadas em relação à população rural encontram-se nas Regiões Sudeste e Sul, exatamente as regiões do país nas quais a agricultura mercantil é mais desenvolvida e integrada e nas quais a emigração, especialmente na região Sul, foi fortemente induzida no período522. Nestas regiões, a população rural registrou uma redução, respectivamente, de 32,5% e 3,2%, no período. Estes dados encontram-se no Quadro 2.B. No caso da Região Sudeste, a significativa queda da população rural provavelmente está associada, além do processo anotado de reconcentração da propriedade, ao desenvolvimento da produtividade do trabalho na agricultura, fortemente sustentado pela incorporação de inovações técnicas ao processo de produção.

Quadro 2.B - População Rural e Urbana: Taxas Percentuais de Incremento, Brasil e Grandes Regiões, 1960 -1980

E S P E C I F I C A Ç Õ E S Total Rural Urbana 1. B r a s i l 69,8 (-0,5) 157,0

518 JONES (op. cit.). 519 Op. cit. 520 Op. cit. 521 BRESSER PEREIRA (1985). 522 Ver a este respeito, especialmente os trabalhos de TAVARES DOS SANTOS (1993 e 1995) e IANNI (1979, 1979(a) 1981 e 1984).

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2. N o r t e 129,5 77,2 217,1

3. N o r d e s t e 57,0 17,6 133,7

4. S u d e s t e 68,9 (-32,5) 145,3

5. S u l 61,9 (-3,2) 172,4

6. C e n t r o - O e s t e 156.4 25,5 407,7

Fonte: FIBGE - Censos Demográficos 1960 e 1980

Parece evidente que não se pode atribuir essas extremas variações da população ao fato de as pessoas terem “decidido” mudar de região ou de atividade; ou, ainda, que tenham sido “atraídas pelas luzes das cidades”. Nem, simplesmente, pode-se atribuir este fenômeno, de maneira simplista ou linear às transformações internas aos processos de produção imediata. Embora estas transformações sejam uma das variáveis que acelera o processo, ao gestar, em escala crescente, um excedente de população em relação à demanda efetiva por força de trabalho na produção imediata523.

É, por outro lado, necessário associar esses dados com os fatos concretos que subjazem a eles e que podem ser levantados em diversas fontes: estatísticas econômicas e demográficas, imprensa, pesquisas especializadas, etc. No caso do Brasil, a própria existência, cada vez mais acentuada por pesquisas e noticiada pela imprensa, dos níveis de pobreza, da concentração da renda e da propriedade, assim como do desemprego, do subemprego e da criminalidade nas grandes cidades, são evidências de que essas pessoas não “emigraram” apenas porque resolveram mudar de vida. Na prática, o que ocorre é o contrário, elas migram porque mudaram de vida: foram transformadas em “população excedente”, em elementos excluídos da cidadania e da sociedade estabelecida.

Afinal, fica realmente muito difícil explicar como, “voluntariamente”, essas pessoas resolveram tornar-se proletários, bóias-frias, desempregados, mendigos, marginais urbanos, “meliantes”... presidiários.

Essa busca de “melhores condições de vida” na cidade, como a aparência dos fatos leva a crer, é, ela mesma, uma forma de ilusão que se cria para o homem expropriado ou em vias de expropriação, sobretudo através dos mecanismos de manipulação da opinião pública. É relevante, neste sentido, lembrar a imensa publicidade acerca das “vantagens existentes nas zonas de colonização” das regiões Centro Oeste e Norte, amplamente divulgadas entre pequenos produtores e sitiantes, muito particularmente nas Regiões Sul e Sudeste524, tanto pelos órgãos fundiários do Governo quanto por cooperativas e companhias de colonização, etc; com o objetivo

523 Seria de interesse ver, a este respeito, os argumentos desenvolvidos por Marx no capítulo XXIII, especialmente, seções 3 e 4, paginas 730-752. (MARX, 1975). 524 Ver a este respeito IANNI (1979), TAVARES DOS SANTOS (1994), JONES (1987).

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claro de seduzir525 os pequenos produtores a alienar seus sítios e emigrarem para as áreas onde eram executados os Projetos de Colonização.

Na verdade, há de pelo menos suspeitar-se, ao intentar uma análise dessas questões, de que as mesmas não possuem existência independente dos demais processos de reprodução econômico-social. Assim, basta uma rápida confrontação entre os dados demográficos e os referentes à concentração fundiária526, para se concluir que apresentam relações “demais” para não estarem articulados.

Uma informação complementar a esse respeito pode ser retirada da variação das populações urbanas. Pela análise dos dados do Quadro 2.B pode-se observar que as taxas de incremento da população urbana foram elevadas em todas as regiões, mas especialmente nas chamadas regiões de fronteira, nas quais a apropriação ou legitimação de posses sobre áreas novas foram mais relevantes. São os casos da Região Centro-Oeste, com um incremento de 407% e da Região Norte, com 217%.

As altas taxas de incremento da população urbana nessas regiões devem, provavelmente, ser atribuídas, para além do grande fluxo migratório, oriundo de outras regiões, ao próprio “êxodo rural” intrarregional, provocado, este, pelos processos de reconcentração da propriedade sobre “áreas novas”, promovida pela alienação de grandes áreas, por suposto devolutas e livres, mas que, na verdade, abrigavam uma imensidão de pequenos posseiros que, assim, foram empurrados para os centros urbanos.

Observa-se, pelo mesmo Quadro, que as Regiões Sudeste, Sul e Nordeste apresentaram, igualmente, alta taxa de crescimento da população urbana. No que se refere à Região Sudeste, essa taxa deve-se, em boa parte, às migrações interregionais, fenômeno largamente conhecido. E o qual parece, igualmente, estar acrescido pelo êxodo rural da própria região provocado tanto pela intensificação da agricultura, e pelo desenvolvimento da escala de produção na agropecuária, como, também, pela reconcentração da estrutura agrária.

No que se refere à Região Sul, embora os dados acima não permitam avançar maiores detalhes, o fenômeno urbano parece ser devido, por um lado, à reconcentração fundiária intraregional, ao passo que na Região Nordeste, a esses fenômenos de reconcentração estão, possivelmente, associados tanto a manutenção dos altos padrões de concentração, como a transformações no processo de produção, que foram acrescidos às conhecidas dificuldades edafoclimáticas, sobretudo provocadas pelas secas. A taxa de redução na população rural (de -3,2%) é relativamente alta na comparação com o Sudeste, dada a, ali e ainda em 1970, elevada proporção de população rural sobre o conjunto da população (55,7%, se comparada a 27,3% no Sudeste).

525 Ver a respeito destes processos de “manipulação da opinião pública” os excelentes trabalhos de Hernry Lefebvre e Norbert Guterman, La Conscience Mistifiee (LEFEBVRE & GUTERMAN, 1979) e La Presencia y la Ausência - Contribucion a la Teoria de las Representaciones (LEFEBVRE, 1983). 526 Ver a figura 5. Comparar esta com as figuras 1, 2, 3 e 4.

261

Essas informações, como se afirmou acima, têm apenas o caráter complementar, no sentido de lançar mais alguma luz sobre o fato central em questão. Neste trabalho não caberia a análise pormenorizada das causas mais específicas e profundas dos movimentos demográficos, posto que tal fugiria aos objetivos deste trabalho.

4. Destinação e Utilização das Terras: Caráter Parasitário da Privatização

Se a análise do volume físico das terras privatizadas neste período indica que persistiu a tendência, historicamente conhecida, à manutenção e agravamento do elevado padrão de concentração da propriedade fundiária e da estrutura agrária, o estudo das variações entre as populações rurais e urbanas indicaram, ainda que genericamente, que àquela concentração corresponderam determinados padrões de distribuição regional entre populações rurais e urbanas, a destinação efetivamente dada às terras daquela forma apropriadas ou privatizadas pode oferecer a possibilidade de se captar o caráter, sentido e objetivos da Política de Terras e de Desenvolvimento Rural postas em prática pelos Governos Militares.

Mais uma vez, cabe chamar a atenção para o fato de que a análise da variável “Utilização e Destinação das Terras” (Quadro 3) é realizada, neste item, apenas com a intenção de levantar algumas indicações gerais a respeito de possíveis relações entre estes fenômenos, e em nenhum momento tem o objetivo de testar hipóteses ou relações que efetivamente existam entre eles. Este estudo mais aprofundado - embora relevante - fugiria aos propósitos específicos deste trabalho.

Feitas estas ressalvas, a análise da destinação e utilização das terras tomou como indicadores, os dados gerais constantes dos Censos Agropecuários para os anos de 1960, 1970 e 1980, referentes a, por um lado: áreas total, utilizada, produtiva mas não-utilizada e improdutiva, por um lado; e por outro lado, os dados referentes ao detalhamento da área utilizada por tipo de exploração: lavouras, pastagens naturais e plantadas, matas naturais e plantadas e florestas. Esses dados constam do Quadro 3, adiante:

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QUADRO 3 - Utilização e Destinação das Terras: Brasil e Regiões: 1960 - 1980 (Percentuais)

Brasil e Área Produtiva Não Lavouras Patagem: Patagem Pastagem Matas Matas

Regiões Utilizada Utilizada Perm./Temp. Total Natural Cultivada Naturais Plantadas

Brasil

1960 83.0 11.7 12.0 46.8 s/r s/r 24.1 s/r

1970 83.6 11.4 11.5 52.4 80.7 19.3 19.1 0.6

1980 85.4 9.2 13.4 47.8 65.3 34.7 22.8 1.4

Norte

1960 84.3 12.8 1.8 9.5 s/r s/r 73.0 s/r

1970 81.8 14.8 2.6 19.2 85.6 14.4 59.8 0.2

1980 86.0 9.7 4.2 18.6 51.2 48.8 62.7 0.5

Nordeste

1960 72.7 20.0 13.8 34.5 s/r s/r 24.4 s/r

1970 73.7 20.6 14.0 37.5 79.4 20.6 22.1 0.1

1980 77.0 18.3 16.0 38.6 69.7 30.3 22.2 0.2

Sudeste

1960 87.5 7.2 15.6 59.6 s/r s/r 12.3 s/r

1970 89.1 5.6 13.8 64.4 76.2 23.8 9.6 1.3

1980 90.3 4.0 16.4 59.3 63.0 37.0 11.0 3.6

Sul

1960 86.0 10.5 20.9 46.7 s/r s/r 18.4

1970 85.6 10.0 24.2 47.5 83.2 16.8 12.5 1.3

1980 88.3 5.8 30.4 44.5 73.6 26.4 10.4 3.0

Cent.-Oeste

1960 89.2 6.5 2.2 69.8 s/r s/r 17.2 s/r

1970 87.5 7.7 2.9 68.0 83.6 16.4 16.6 0.0

1980 87.4 6.6 5.7 59.6 63.6 36.4 21.6 0.5

Fonte: Dados da Pesquisa.

A figura 3 - “Área utilizada por tipo de exploração” - e a Figura 4 - “Variação da área utilizada - oferecem uma melhor visualização do caráter parasitário que subjaz aos processos de apropriação privada das terras neste período.

263

Dado o caráter e propósitos da análise acerca do problema em estudo, não se julgou necessário descer a pormenores em termos de especificação do processo produtivo, mesmo porque as estatísticas, ao nível agregado, além de serem incompletas para o período, não contribuiriam de forma relevante para a elucidação dos objetivos estabelecidos. Por outro lado, os dados e as evidências que foram trabalhados durante o processo de pesquisa mostraram-se suficientes para a elucidação da hipótese básica de trabalho e objetivos propostos.

Neste item realiza-se a análise da destinação (produtiva ou especulativa) que, em última análise, foi dada às terras. Quando se estudou, acima, a dimensão física das áreas novas apropriadas, pôde-se ter uma visão dos rumos gerais do processo. A análise da variação da destinação dada às terras no período 1960 a 1980 possibilita a compreensão do caráter efetivamente assumido pelo mesmo. A unidade destas duas dimensões oferece as condições necessárias à interpretação do processo de privatização de terras, tal como posto em prática pelo Governo e suas respectivas articulações no bojo do seu Projeto de Desenvolvimento Rural.

O Quadro 3, oferece uma visão de conjunto dos padrões de utilização das terras no período, para o País e pelas diferentes Regiões, com algum detalhamento para os tipos de exploração527.

Analisando-se a coluna referente às terras declaradas como utilizadas, verifica-se que o padrão de utilização das mesmas permanece virtualmente constante em todo o período528, tanto para o conjunto do país, como para todas as regiões, exclusive a Centro-Oeste, onde este padrão cai, ligeiramente, de 89,2% para 87,4%. Essa queda é, aparentemente, irrelevante, mas se se considerar que esta Região representou a incorporação de 46% de todo o incremento de área do país, pode-se imaginar o significado deste dado. Esses problemas serão melhor elucidados adiante. De qualquer maneira, pode-se perceber que o conceito de “terra utilizada” é de caráter declaratório. Ou seja, ao responderem ao Censo, os proprietários declaram como utilizadas as terras indistintamente destinadas a explorações efetivas, assim como as terras simplesmente “aproveitadas” de forma extensiva, como as pastagens e matas naturais. Independentemente de qualquer avaliação subjetiva deste fato, ele efetivamente distorce a realidade no que diz respeito à utilização efetivamente produtiva da terra apropriada.

Feitas estas observações, o que se pode depreender, em linhas gerais, pela análise dos dados do Quadro 3 é que a variação do padrão de aproveitamento ou utilização das terras, apesar da ampliação da área apropriada no período ficar em torno de 46%, como se verificou acima, é estatisticamente pouco significativa, nunca ultrapassando o valor dos 5%. Por outro lado, esse dado é ainda muito geral e oferece uma idéia incompleta do quadro efetivamente assumido pelo processo de utilização produtiva das terras no País e nas diferentes regiões. Uma noção um pouco mais 527 Para uma visualização desse fenômeno, ver a figuras 3 adiante. 528 Ver a figura 4.

264

esclarecedora, entretanto, pode ser conseguida ao se analisar este dado desagregando-o por tipos de exploração ou destinação (ver Quadro 3 e fig. 3).

Procedendo desta maneira, percebe-se que o volume significativo das terras em propriedade particular, no período, destinou-se, sobretudo, às pastagens naturais (isto é, à pecuária extensiva) e à exploração de florestas e matas naturais (isto é, extrativismo vegetal), sendo que as áreas destinadas à lavouras (incluindo permanentes e temporárias) permaneceram, em todo o período, efetivamente em segundo plano ( por exemplo, em relação ao País como um todo, variando, entre os anos de 1960 a 1980, entre 12 a 13,4% da área utilizada) o que, efetivamente, reflete um padrão de utilização irrelevante, sobretudo se se tiver em consideração a dimensão da área incorporada, entre 1960 e 1980 à propriedade privada. Esse dado torna-se ainda mais dramático pelo fato de ser padrão generalizado em todas as regiões do País.

Para o conjunto do País, observa-se que a utilização das terras, ainda que sobreestimada nas declarações, como se observou acima, apresentou os seguintes resultados:

No ano de 1960 registrou-se que apenas 12,0% das terras em propriedade particular foram destinadas à plantação de lavouras, incluindo temporárias e permanentes. Por outro lado, 46,8% da área, portanto, quase metade, foram destinadas à pastagens, incluindo pastos naturais que, para este ano, os dados censitários não fizeram distinção com relação às pastagens plantadas, o que apenas acontecerá a partir do Censo Agropecuário de 1970. A exploração de matas naturais representou 24,1% de toda a utilização de terras para o país, isto é, incorporando, indistintamente, as diferentes regiões. Estes dados não deixam dúvida a respeito do padrão de utilização das terras em seu sentido mais geral: abstraindo-se dos 11,7% ocupados com as lavouras, pode-se afirmar que a exploração da terra é realizada, sobretudo, extensivamente, pela exploração de pastos e matas naturais.

Os dados referentes ao ano de 1970 não indicam nenhuma mudança relevante neste padrão de utilização que se mantém, virtual e praticamente o mesmo. A área produtiva e não-utilizada, que em 1960 situava-se em torno de 11,7% permanece neste patamar (11,4%). Por outro lado, e contraditoriamente à expansão das áreas apropriadas, as terras utilizadas para as lavouras caem meio ponto percentual (para 11,5%) em relação ao censo anterior, o que é um dado significativo se se considerar a expansão de área referida. As terras destinadas às pastagens, isto é, à pecuária, sobem ligeiramente, de 46,8% em 1960, para 52,4% em 1970; entretanto, 80,7% da pecuária é feita em pastos naturais (a chamada “ocupação de fronteiras pela pata do boi”), e apenas 19,3% é destinada a áreas plantadas. A exploração de matas e florestas cai de 24,1% para 19,1%, o que denota o avanço do desmatamento para formação de pastagens extensivas, sendo que apenas 0,6% são indicados como destinados à exploração de matas e florestas cultivadas.

Finalmente, em 1980, as áreas destinadas a lavouras passam para 13,4%, o que é um incremento absolutamente irrelevante para o período se se considerar a expansão,

265

em torno de 46%, da área apropriada, o que, efetivamente indica que esse processo de privatização de terras, realizado sob forte estímulo estatal, como se viu acima, não implicou, efetivamente, uma ocupação verdadeiramente produtiva e, menos ainda, a implantação de lavouras.

Por outro lado, as pastagens, surpreendentemente, regrediram em relação à década anterior, em termos de áreas, caindo de 52,4 para 47,8%, retornando, praticamente, aos níveis de 1960, embora a área de pastos plantados tenha aumentado em 15,4% em relação a 1970, passando para a casa dos 34,7%, o que, ainda assim, deixa claro que, da mesma forma que na agricultura, a expansão das pastagens ficou muito aquém do que seria de se esperar, tendo-se em consideração a incorporação de áreas novas, especialmente nas Regiões Centro-Oeste e Norte.

Nestas Regiões, as alienações e “concessões” de imensas áreas de terras devolutas, eram justificadas sobretudo à base de Projetos agropecuários que, por suposto, exigiam grandes áreas529. Este dado deixa evidente de que essas apropriações não tinham nenhuma pretensão efetivamente produtiva, ainda que simplesmente extensiva - como a alegada pela chamada “ocupação pela pata do boi”: Destinou-se, sobretudo à especulação. Tratou-se, de fato de apropriação privilegiada530: Além das terras, permitiu, a estas camadas privilegiadas, beneficiarem-se - na medida em que a alienação ou legitimação de grandes áreas era incentivada, exigindo apenas a apresentação de Projetos Agropecuários aos Órgãos Fundiários - de vultosos recursos, tanto via incentivos fiscais, mas sobretudo, pelo financiamento de projetos a créditos fartos e subsidiados.

As áreas de empreendimentos florestais permaneceram sobretudo na forma de exploração de matas naturais (22,8%), apenas 1,4% destes empreendimentos sendo feito em “matas plantadas”; o que oferece uma noção precisa do avanço do desmatamento, sobretudo na Amazônia, para a extração pura e simples de madeiras nobres, muito mais que para a implantação de pastagens ou da pecuária extensiva, como se alegava, apesar da nocividade social e econômica igualmente representada por este tipo de “pecuária rústica”, como bem a denominou Octávio Ianni531.

Esses dados indicam, seguramente, que a agropecuária brasileira, apesar da elevada expansão de sua área física e da sua concentração em grandes propriedades, no período, caracterizou-se fundamentalmente, pela implementação de explorações extensivas, especialmente nas zonas “incentivadas” pelo Governo (como Amazônia Legal532 e Centro-Oeste). Ou se destinaram as terras à pura e simples exploração de recursos naturais e à especulação usurária com os custos não apenas sociais, mas igualmente econômicos, até aqui indicados: tanto em termos de “excludência social” dos pequenos posseiros e indígenas, quanto de prejuízo aos cofres públicos, pelos

529 Ver os argumentos de Paulo Yokota, em YOKOTA, loc.cit.). 530 Ver a respeito de detalhes desta problemática, DELGADO (op. cit.) e JONES (op. cit.). 531 IANNI (1979(a)). 532 Que incorporava parte das Regiões Nordeste e Centro-Oeste.

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vultosos recursos que, por suposto, eram utilizados nos Projetos de Desenvolvimento Agropecuário, sempre apresentados pelas “empresas” rurais sem retornos sociais ou econômicos palpáveis. Se estes Projetos tivessem, de fato, sido implementados, ainda que em mínima realização, a taxa de utilização produtiva da terra, especialmente nas regiões incentivadas, como na Amazônia Legal e Centro-Oeste, seria certamente muito mais elevada, assim como teria crescido a oferta de alimentos e matérias-primas, como sempre se buscava justificar o gasto público e as transferências de propriedade estatal nos respectivos projetos533.

Esta é a dimensão fundamental que pode definir o caráter do processo de ocupação das áreas novas e de sua privatização, pelo Estado, neste período: tratou-se da alienação de grandes áreas de propriedade estatal que, no fundamental, vieram a transfigurar-se tão só em “pequenas explorações” - dada a insignificância do capital produtivo investido - e, portanto, permanecendo com o caráter de latifúndio. Este fato tem levado muitos estudiosos do assunto a afirmar que esta ocupação caracteriza-se pela apropriação da terra como “reserva de valor534”. Este conceito, inclusive, acha-se, pelo menos aparentemente, embutido no conceito legal de “latifúndio por exploração535” que relaciona a área do imóvel rural à área efetivamente explorada ou passível de exploração econômica, o que, em última análise, significa classificar os imóveis pelo seu padrão de exploração. Infelizmente, este conceito, como foi visto, permite também o contrário, transformar pequenas áreas em latifúndios e, desta forma contribui mais para obscurecer que para esclarecer o problema.

O Estatuto da Terra define como latifúndios por exploração os imóveis que, mesmo situando-se em termos físicos, dentro dos limites de 600 módulos fiscais ou familiares, não têm realizada a exploração efetiva de suas áreas, as quais se mantêm improdutivas, “com fins especulativos ou de exploração deficiente ou inadequada” (INCRA, 1984). Não fora o adjetivo “inadequada” utilizado pela legislação em vigor e pelo INCRA, e que se presta a interpretações dúbias, os dados do Quadro 3 acima permitiriam classificar a quase totalidade dos estabelecimentos rurais brasileiros, independentemente das regiões nas quais se situam, como latifúndios “por dimensão” e sobretudo “por exploração”. Esses fatos fornecem a outra perspectiva para a análise do processo de apropriação e privatização das terras devolutas neste período: tratou-se de um processo de privatização de terras públicas ou irregularmente ocupadas, não necessariamente voltada para a utilização efetiva ou produtiva das terras, uma vez que a maior parte das mesmas, em todas as regiões, quase que indistintamente, destinaram-se, na melhor das hipótese, à ocupação extensiva ou ao mero extrativismo vegetal

533 Ver a respeito deste tema e do “enriquecimento ilícito” que se debateu, no contexto da análise desses “incentivos fiscais” e financiamentos, na CPI do Sistema Fundiário, o “Relatório Final” (CÂMARA DOS DEPUTADOS, op. cit.). 534 GRAZIANO DA SILVA (1980 e 1982); SILVA (1981); MARTINS (1983); DELGADO (op. cit.) entre outros. 535 Ver a Lei 4.504/64 do Estatuto da Terra (Op. cit.)

267

(sobretudo madeireiro), quando não permaneceram, simplesmente, inexploradas e aguardando valorização. Este fato foi singularmente característico nas Regiões Norte e Centro-Oeste, onde a maior parte dos estabelecimentos rurais destinaram-se ou à extração vegetal ou à pecuária extensiva.

A outra dimensão característica deste processo - típico dos chamados métodos da “acumulação primitiva ou originária” de capital - é fornecida pela forma violenta sob a qual se deu a expropriação e a expulsão de posseiros que detinham direitos reais, e de indígenas, sobretudo pela intervenção efetiva dos Órgãos Fundiários do Estado, na promoção privilegiada da alavancagem destes processos. A asserção acima pode ser documentada pelo seguinte trecho do texto intitulado “Conflitos de Terra”, editado pelo Ministério da Reforma e Desenvolvimento Agrário:

“Certos órgãos públicos ao alocarem no meio, nos últimos anos, um enorme volume de incentivos, subvenções e concessões de terras públicas, antes de democratizarem o acesso à terra contribuiram para agravar a concentração da propriedade fundiária e dos recursos públicos destinados à agricultura e à pecuária. A maior parte dos projetos agropecuários aprovados no âmbito da SUDAM e da SUDENE refletem esta situação. A implantação deste novo tipo de latifundismo não abdicou, entretanto, das formas tradicionais de imobilização de mão-de-obra (peonagem da dívida) e, além disto, instituiu mecanismos coercitivos, fundados na violência, objetivando a desorganização da economia dos pequenos produtores agrícolas que há décadas, senão séculos, cultivam e têm morada habitual nestas regiões. O resultado mais imediato destas tentativas tem sido a expulsão de imensos contingentes de trabalhadores rurais das terras que cultivam e a implantação de um clima de violência sem precedentes na área rural536.”

Enfim, os dados até o momento analisados parecem pôr em evidência que o processo de privatização da propriedade fundiária no período do Regime Militar reproduziu, sob novas formas e agravando, o mesmo padrão de baixa utilização e extrema concentração do passado. No caso deste período, todas as evidências indicam que este processo de apropriação, sobretudo nas ditas “regiões de fronteira” (Centro-Oeste e, particularmente, Amazônia Legal), não esteve acompanhado da intenção de implantar nenhum processo de produção agropecuária efetivamente relevante, à qual, por exigência legal e por suposto lógico do “modelo” de desenvolvimento proposto, deveriam ter-se subordinado as alienações estatais e os subsídios despendidos. Tratou-se, portanto, efetivamente, de um processo de alienação e titulação de propriedade oferecidas na qualidade de privilégio a determinadas camadas da população contra os direitos reais de posseiros e indígenas, assegurados legalmente. Portanto, de legalidade questionável.

Um exemplo cristalino deste fato é dado pelo depoimento do Senador Alexandre Costa à Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema Fundiário. No referido depoimento, o aludido Senador da República afirma e esclarece as formas como as terras adquiridas a “preço vil” ao Governo do Estado do Maranhão, são incorporadas ao “capital social” de “sua empresa rural” com valor aumentado pela reavaliação da mesma 536 Cf. MIRAD/INCRA,Secretaria Geral. Coordenadoria de Conflitos Agrários. Conflitos de Terra. Vol. I, 1986; grifos nossos.

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propriedade, tomando por base a existência de “árvores, madeira, benfeitorias”. E como esta nova avaliação acabou gerando o inesperado enriquecimento dos respectivos sócios desta “empresa rural”, ao habilitá-la a realizar um “aumento de capital” e por isto possibilitando a obtenção favorecida de empréstimos de dinheiro à guisa de financiamento a juros subsidiados e prazos de carência excepcionalmente vantajosos junto ao Banco do Nordeste do Brasil, etc537. Uma história muito interessante.

Processos similares ocorreram em relação aos “incentivos fiscais”, especialmente na área da SUDAM, onde, normalmente eram estabelecidos na proporção de duas unidades de incentivo para uma de “capital próprio” declarado no Projeto a ser investido pelo “empresário”. Quer isto dizer, na verdade, que o referido “investidor”, que já havia por incentivos adquirido a terra, recebe, além desta, duas unidades de capital “como outros tantos incentivos”. Estas são conhecidas particularidades das formas como se pode “acumular capital” às custas dos fundos públicos sem necessariamente envolver-se em nenhuma atividade ligada à produção, seja ela diretamente produtiva ou não. Estas são formas que vigiram de um modo muito especial no período do Regime Militar, particularmente nas regiões de “fronteira e integração nacional”.

É neste contexto e sentido que Bresser Pereira refere-se aos processos através dos quais o Estado, em nome da necessidade da “ocupação dos vazios demográficos”, da modernização e do desenvolvimento da agricultura, etc., transfere vultosos recursos do orçamento nacional para determinadas frações de classe do capital, reforçando desta forma, ainda mais, os instrumentos e mecanismos utilizados pela “burguesia em expansão, na sua luta para a subordinação plena da agropecuária ao grande capital”538. Delgado (1985) põe em evidência essas formas e mecanismos através dos quais

“(...)esses capitais encontram também na agricultura possibilidades de captura de margens monopólicas de lucro operacional e ganhos financeiros, oriundos da valorização do patrimônio territorial.”

Assim, em suas linhas fundamentais, ficam caracterizadas as formas de alienação e legitimação privilegiadas, tais como postas em prática no âmbito da Política Fundiária e de desenvolvimento rural do período militar. Por um lado ela possibilitou, embora sob novas formas, a manutenção e agravamento da estrutura fundiária historicamente concentrada, em contradição com o discurso contido na Mensagem 33. Por outro lado, ampliou em escala sem precedentes a excludência das populações rurais, fundada, sobretudo, nos processos de expropriação de posseiros, pequenos proprietários e índios, provocados pela alienação de terras devolutas sem o necessário - e legalmente exigido - processo de discriminação, o que transformou estas “vendas” em uma espécie muito particular de grilagem especializada, ampliando de forma exacerbada e iníqua as populações carentes das áreas urbanas, em particular nas regiões onde sua ação

537 CÂMARA DOS DEPUTADOS (op. cit.). 538 BRESSER PEREIRA (1985 e 1986).

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fundiária foi mais efetiva, como por exemplo o Centro-Oeste. Apesar deste amplo processo de alienação de terras públicas que, no período, alcançou uma cifra de aproximadamente 46% da área agrícola do país, as taxas de ocupação da terra permaneceram virtualmente estacionárias nos mesmos níveis de 1960 (ver a fig.3), o que não deixa duvidas de que a apropriação de vastas áreas de terras públicas, promovida e extremamente facilitada no período, nunca teve o objetivo de proceder à exploração efetiva da terra: antes teve caráter especulativo em relação à valorização meramente financeira dos imóveis. E sobretudo, representaram uma via de acesso fácil, não apenas à terra, mas através desta, ao crédito favorecido e outros subsídios alocados especificamente a essas regiões do país, na espécie de privilégios inadmissíveis que geraram o rápido enriquecimento dos maiores beneficiários desta Política de Desenvolvimento Rural.

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CONCLUSÕES

I

Este estudo ocupou-se da análise sistemática do processo de formação e legitimação da propriedade privada territorial no Brasil, recuando às suas origens no sistema sesmarial, e avançando até a aprovação do Estatuto da Terra, em novembro de 1964, e sua implementação no período dos Governos Militares.

Este recuo no tempo objetivou apenas permitir a análise comparativa da materialização deste processo, tal como ocorrido no período do Regime Militar, com a sua ocorrência, ou não, em outras circunstâncias e conjunturas da história da terra no Brasil, por um lado; e, por outro, possibilitar a efetiva verificação da ocorrência, em algum outro momento da história fundiária brasileira, da efetiva legitimação e legalização, de forma relevante, das terras em domínio privado. A resposta a esta última questão, como ficou evidenciada no decorrer da análise realizada, é negativa.

Muitos estudos relevantes foram realizados em torno desta problemática, especialmente a abordando de perspectivas teóricas e concretas distintas: acerca do caráter e especificidades da sociedade e economia coloniais; do desenvolvimento do capitalismo na agricultura, assim como dos efeitos e conseqüências deste processo, sobre as condições de sociabilidade, as relações de trabalho, a produção familiar ou de subsistência e do desenvolvimento do mercado interno, etc. Muitos desses estudos, centraram-se na problemática da modernização da agricultura, da incorporação de inovações e do progresso técnico e científico. Outros ainda, discutiram questões específicas acerca da viabilidade econômica da pequena produção nas condições de uma economia de mercado, especialmente, as suas possibilidades de gerar excedentes econômicos relevantes e, desta forma, vir a ter a possibilidade de contribuir para o atendimento da demanda interna de alimentos e de determinados bens de salário, assim como da sua transição ou integração ao mercado e aos chamados complexos agroindustriais, etc. Ainda outros, procuraram demonstrar as possibilidades econômicas do desenvolvimento da agricultura vir a se constituir em um forte suporte à consecução de divisas, fundamentais ao desenvolvimento sustentado da economia brasileira.

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Uma breve referência a essas linhas de pesquisa e análise e à respectiva bibliografia a respeito foi resenhada, em seus traços e características fundamentais, na Introdução deste trabalho.

No contexto deste amplo e significativo debate, buscou-se, com esta pesquisa, desenvolver uma linha específica de análise, ainda pouco explorada, que, por isso, poderia vir a se constituir em uma contribuição de relativa importância para a compreensão da questão fundiária e do Direito Agrário. Trata-se do estudo do processo de privatização ou legitimação da propriedade territorial rural, abordada da perspectiva de sua formulação jurídica e implicações concretas: da transferência, para o domínio privado, do domínio sobre terras que são originalmente públicas.

Como foi amplamente demonstrado no decorrer do estudo, as terras brasileiras são, originalmente, públicas, pelo fato de terem sido, primitivamente, integradas ao Império colonial português, por direito de conquista. Passaram, ulteriormente, com a Independência Política, em 1822, ao Império Brasileiro e, com a Proclamação da República, ao domínio da União, sempre como propriedade do Estado. Neste contexto, a sua incorporação ao processo de produção e reprodução social não prescindiu da sua transferência para a iniciativa de particulares. Trata-se, efetivamente, neste sentido específico, de um amplo e multifacetado processo de privatização territorial. O estudo deste processo foi o objetivo central deste trabalho, com especial relevância para a Política Fundiária implementada pelos Governos Militares.

Uma dimensão relevante à análise da estrutura agrária brasileira, amplamente realçada nesta pesquisa, refere-se à institucionalização de determinados processos de alienação ou reconhecimento e legitimação, pelo Estado, da propriedade territorial rural. Trata-se de um processo de privatização de terras públicas: da transferência, para a esfera privada, do domínio sobre um território que nasceu público. Este é exatamente o caso que foi analisado, detalhada e objetivamente, neste estudo.

É desta perspectiva e neste contexto, que se pode afirmar com certa tranqüilidade que uma dimensão relevante no estudo da questão agrária, que exige tratamento específico, refere-se a análise do problema da legitimidade dos processos de privatização das terras agrícolas do País, e das condições concretas e objetivas sob as quais este processo foi implementado em diferentes momentos da história agrária e, sobretudo econômica do Brasil. Como foi documentado por esta pesquisa, este processo de legitimação, de reconhecimento, pelo Estado, de domínios privados sobre terras públicas, ou a alienação destas, está na origem da formação e desenvolvimento da propriedade privada legítima da terra no Brasil e exerce, ainda hoje, forte influência sobre as condições de sociabilidade e de reprodução e desenvolvimento da agricultura brasileira. Neste sentido, representando uma dimensão fundamental na discussão da Questão Agrária, em particular, da Reforma Agrária.

Ficou amplamente esclarecido que a dimensão de legitimidade do processo de alienação das terras públicas, ou do reconhecimento do domínio privado sobre estas, é aqui referida em relação às formas institucionais - jurídicas, administrativas e concretas

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- através das quais o Estado, em diferentes momentos da história do País, consentiu - ou impediu - o acesso, a aquisição ou o reconhecimento de posses ou a ocupação particular, de terras do seu patrimônio, procurando regulamentá-las.

Neste contexto, foi enfatizado que é necessário, na análise deste problema, nunca perder de vista, que o reconhecimento legal da propriedade privada rural, pelo Estado, envolve, necessariamente, processos sociais e de sociabilidade, que se materializam na inclusão - ou excludência - de determinadas camadas da população em relação ao acesso à propriedade da terra. E que é neste contexto muito particular que são engendradas e efetivamente estruturadas as condições objetivas da concessão, alienação e apropriação privilegiadas.

Portanto, como ficou evidenciado pelas análises - da legislação, dos dados e de outros documentos, assim como da literatura especializada - e pela abordagem feitas, trata-se, de estudar as formas e meios jurídicos, administrativos e concretos, através dos quais, o Estado buscou, não apenas, assegurar o acesso à propriedade da terra e sua respectiva legalização formal, para determinadas camadas sociais (privilegiadas) da população. Porque este processo significou, também, e objetivamente, por outro lado, a negação deste mesmo direito de acesso à propriedade, ou ao simples uso da terra, para o amplo conjunto da população. População esta que, desde os momentos iniciais do processo de ocupação territorial e colonização do Brasil, havia-se alojado, com ou sem o consentimento do Estado - mas sempre, e em última análise, em seu interesse - em pequenas posses, onde se dedicou à agricultura de subsistência, sustentada pelo trabalho da própria família. Até ser expulsa da terra.

É assim que o objetivo central deste estudo foi o de evidenciar que o processo de ocupação e privatização das terras brasileiras, - que assumiu diferentes formas conforme as diversas conjunturas enfrentadas ou vividas pelo País desde a sua origem colonial até os dias atuais - sempre se fundou no privilégio, quanto às concessões ou alienações e na ilegalidade quanto a sua legitimação formal, por parte do Estado.

Esta situação equivale a afirmar que a propriedade privada sobre as terras no Brasil, ainda hoje, carece de legitimidade: que, portanto, a maior parte das terras em domínio privado, do ponto de vista da legalidade e do Direito, permanece pública. Tratam-se, neste sentido, de meras posses, algumas passíveis de legitimação.

Isto equivale, igualmente, a afirmar que, ainda hoje, talvez a tarefa política e administrativa mais relevante do Estado, no âmbito da regularização fundiária, ainda seja a da legitimação das posses: isto é, do reconhecimento e legalização das posses legítimas. E, diga-se de passagem, tanto as grandes, quanto, sobretudo as pequenas. Este processo necessita, como a análise dos problemas criados pela ocupação e alienação desordenada de terras públicas, - sobretudo no Pós-1964 - demonstrou, subordinar-se, de forma veemente, aos critérios da exploração efetiva da terra e do cumprimento da função social da propriedade. Especialmente no caso da legitimação ou reconhecimento

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das imensas posses, este processo deve ser regulamentado de forma a assegurar, rigorosamente, os limites constitucionais estabelecidos539.

Aliás, como se verificou, especialmente no capítulo 4, este é, fundamentalmente, o objetivo das “ações discriminatórias”. Estas permanecem urgentes e, na verdade, são a pré-condição necessária - ainda que não suficiente - para a realização de uma Reforma Agrária efetiva no Brasil.

Junto a este procedimento legal, e tão importante quanto ele, é a efetiva arrecadação das terras devolutas, públicas, separando-as, definitivamente, do espaço das terras particulares legítimas540. Neste contexto é que, espera-se, resida a relevância deste esforço de investigação e análise.

Embora uma Conclusão não deva ser um resumo das teses ou hipóteses defendidas nos diferentes capítulos, nem a simples repetição dos mesmos argumentos já enunciados no texto, mas uma síntese das hipóteses e argumentos defendidos, vale a pena sumarizar os pontos fundamentais que foram levantados e discutidos.

II A hipótese central, que orientou a análise realizada neste trabalho, baseou-se no

fato fundamental de que as terras brasileiras, sendo públicas, implicaram, para a sua incorporação ao processo de produção e reprodução econômico-social, em determinados processos de alienação e privatização. Ou seja, implicaram, necessariamente, a mediação do Estado, para que se pudessem configurar como propriedades privadas, legitimamente reconhecidas. Este fato implicou um processo de transição do domínio público para o privado, sobre as terras agrárias, que assumiu diferentes especificidades e

539 Que, ainda assim, permitem a alienação ou a apropriação de terras públicas, sem a verificação pelo Estado, de verdadeiros latifúndios, sobretudo especulativos. O limite constitucional poderia e deveria ser rigorosamente reduzido no que toca à aquisição de terras públicas, ficando, outrossim, aberta a possibilidade de aquisição de áreas maiores, que a este limite excedessem, pela via da aquisição no mercado privado de Terras. Esta seria uma excelente alternativa para o Estado, de fato, regular a problemática do cumprimento da função social da propriedade e evitar a formação da “propriedade especulativa”. Esta poderia ser, efetivamente, uma metodologia, uma regra, ou mais que isto, um corolário, para a realização da Reforma Agrária necessária, capaz, neste contexto, de organizar a ocupação fundiária do País. 540 Procedimentos estes que, como ficou evidenciado neste estudo, necessitam ser revistos, uma vez que foram profundamente subvertidos, quanto aos seus efetivos e legítimos objetivos, pelas autoridades fundiárias do Período Militar, que os transformaram, de forma ilegal e ilegítima, em verdadeiros monumentos à grilagem especializada e ao privilégio, em verdadeira afronta ao ordenamento jurídico, em particular à Constituição da República. O mesmo se aplica às alienações feitas por estes meios no período, especialmente no que se refere à “licitação”, “venda” ou “titulação” de grandes posses, particularmente na Amazônia Legal e na Região Centro-Oeste, que necessitam urgentemente ser revistas, posto que em sua maioria são juridicamente questionáveis, cobrando-se a respectiva responsabilidade civil e penal daquelas Autoridades que, notoriamente, cometeram atos ilícitos de improbidade administrativa e, em certos casos, de “crime de colarinho branco” ou mesmo corrupção, na melhor das hipóteses, passiva.

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características, conforme os distintos momentos e conjunturas vividas e enfrentadas pelo País.

Iniciando-se com base no instituto português das sesmarias - analisado no capítulo 1 - a transição das terras públicas brasileiras para o âmbito da iniciativa privada, entretanto, não se configurou nos termos da propriedade privada absoluta da terra. Na verdade, como ficou amplamente discutido e demonstrado nos capítulos 1 e 2, a Coroa Portuguesa, durante todo o período colonial, apenas cedeu a “posse útil” sobre as terras. Raras foram as sesmarias efetivamente confirmadas, sobretudo se se tiver em consideração o volume das concessões que nunca o foram ou das que caíram em comisso após terem sido confirmadas. Além, é claro, das imensas áreas dos “grandes sertões” que não foram efetivamente alcançados neste período.

Isso posto, é necessário nunca esquecer que o Governo Português, desde os primeiros momentos do processo de colonização, sempre teve o cuidado de apenas ceder a “posse útil”, condicionada, sujeita às cláusulas de resolubilidade e não do domínio pleno sobre as terras agrícolas. Isso fez com que a formação da propriedade fundiária, no Brasil, sempre estivesse marcada pela problemática do privilégio, em sua concessão, e da ilegitimidade, na sua confirmação ou titulação.

É neste contexto que o processo de legitimação da propriedade privada da terra no Brasil, apenas teve a oportunidade de se constituir, legitimamente, e assim ter a possibilidade de passar a assumir a sua forma jurídica moderna, de propriedade absoluta, burguesa, com a aprovação da Lei 601 de 1850 - a Lei de Terras - e, sobretudo, após a sua Regulamentação, em 1854, estudados no capítulo 2. Ainda assim, o processo de reconhecimento legal das terras possuídas, no âmbito da Lei de Terras - exceto para as sesmarias e outras concessões não devolutas, que foram reconhecidas como propriedades privadas legítimas - permaneceu eivado de impedimentos políticos e sobretudo jurídicos, administrativos e burocráticos.

Apesar disso, como foi sistematicamente estudado no capítulo 2, a Lei de Terras, de 1850 - por ter sido a primeira legislação fundiária do Brasil Independente que regulamentou a matéria - constituiu-se numa espécie de marco zero da legalidade da propriedade privada territorial do País: reconheceu como propriedades legitimas as antigas sesmarias confirmadas e regulou sobre as terras devolutas (sem destinação pública nem privada), as sesmarias irregulares (sujeitas à revalidação) e as posses, que poderiam ser legitimadas, após medidas, demarcadas e verificada a sua exploração efetiva pelos respectivos posseiros.

Desde então, a legalização da propriedade rural no Brasil foi profundamente dificultada pelos interesses dos latifundiários, que desviaram a solução do problema fundiário, jogando-o no campo amorfo da colonização, afastando-o do âmbito da separação legal entre terras públicas e particulares.

Desta forma, engendraram-se definitivamente as condições fundamentais que possibilitaram e que são responsáveis, até os dias atuais, pela desorganização e concentração fundiárias e pelo apossamento e ocupação indiscriminados e ilegais das

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terras públicas, especialmente pelos grandes posseiros e pela grilagem especializada. Processos estes, como se viu nos capítulos 2, 3 4 e 5, sobretudo, fundados no privilégio e na ilegalidade.

De modo geral, como foi discutido no capítulo 2, os estudiosos associam a Lei de Terras de 1850 às teses da colonização sistemática de Wakefield, e o debate parlamentar da década de 1840, que a precedeu, parece dar-lhes razão. Entretanto, uma análise mais cuidadosa mostra que não é exatamente a proposta da colonização sistemática, tal como teorizada por Wakefield, a que vem a ser implementada após a Lei 601. Na verdade, a colonização sistemática baseava-se na disponibilidade de terras públicas e livres, que pudessem ser privatizadas, servindo, assim, para atrair colonos ricos, investidores, por um lado e, colonos pobres, por outro, que não podendo pagar pelas terras "livres estatais" teriam que sujeitar-se ao assalariato, trabalhando para aqueles, até poderem “poupar” o pecúlio necessário à aquisição de sua própria parcela de terra. Permanecendo como pressuposta, a possibilidade legal de aquisição de pequenas parcelas de terra por colonos com melhor situação econômica e por assalariados, após a acumulação de determinado pecúlio.

A idéia subjacente a esta proposta de Wakefield era a criação de um mercado de trabalho - formalmente livre - permanente, alimentado pelo bloqueio ao acesso livre e imediato à propriedade da terra; acesso este que seria inevitável no caso de se permitir a “colonização expontânea” e o livre acesso à terra. Daí a expressão “colonização sistemática” - em oposição a “expontânea”- isto é, promovida e regulada pelo Estado.

Entretanto, não foi este o projeto efetivamente implementado no Brasil, após a aprovação da Lei 601, na segunda metade do século XIX, onde o colonato e, em situações críticas, a parceria, e muito poucas vezes o assalariato puro foram as formas de incorporação do trabalho ao processo produtivo. Ou seja, o mercado de trabalho (formalmente) livre, suposto pela teoria de Wakefield, foi, na prática, substituído pelo sistema de colonato; e o acesso à pequena propriedade (familiar) - igualmente suposta pela teoria da colonização sistemática - como rotina do fluxo da economia, no Brasil, apenas se torna uma possibilidade nos períodos de crise do setor agro-exportador.

Desta maneira, os pressupostos fundamentais da teoria da colonização sistemática, que seriam a formação de um fundo de terras livres e estatais, por um lado, e de trabalhadores livres e pobres, por outro (os ingredientes básicos à estruturação de relações capitalistas na agricultura) foram completamente desvirtuados, e efetivamente subvertidos, no Brasil, senão em sua formulação legislativa, certamente ao nível de sua implementação: redefinidos em função dos interesses latifundiários. Portanto, da persistência da apropriação privilegiada.

A colonização sistemática foi, como se registrou neste estudo, reduzida, desta forma e nesta conjuntura, à simples importação de imigrantes pobres para servirem de mão-de-obra barata para os latifúndios, ou para a colonização - concebida como desbravamento - em zonas de alto risco, como as fronteiras do Império ou nos sertões. Em regiões afastadas, portanto, das áreas de interesse imediato dos potentados da terra.

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Por outro lado, a arrecadação de terras devolutas, públicas, que deveriam formar o fundo de “terras livres e estatais” necessário à implantação da agricultura fundada no trabalho livre, (autônomo ou assalariado), foi bloqueada na prática: os latifundiários não legalizaram as terras possuídas e, associados às burocracias locais, a ele, geralmente, atreladas, bloquearam qualquer alternativa à demarcação e sobretudo de arrecadação das terras devolutas pelo Estado, que assim permaneceram à sua disposição, sobretudo quando a demanda por novas terras exigia a expansão das fronteiras agrícolas, ampliando, assim de seus domínios.

É no contexto deste processo que os pequenos posseiros, que anteriormente, se haviam instalado nessas regiões, ou os indígenas, sempre foram, “ciclicamente” empurrados para terras mais longínquas, originando aquilo que tem sido denominado de “fronteira pioneira” ou “em movimento”: na verdade constituída, sistematicamente, pelos “expulsos da terra”, os excluídos. Fenômeno este que caracteriza, além do privilégio, citado acima, a ilegitimidade das propriedades assim constituídas, uma vez que o direito desta camada da população à permanecer na terra onde vivia e trabalhava sempre esteve assegurado, juridicamente, pela legislação e pelos costumes. Portanto, privilégio e ilegalidade permanecem sendo os traços fundamentais do processo de apropriação e legitimação destas, pelo Estado, no Brasil.

Foi assim, que fracassou, na origem, a possibilidade de desenvolvimento do projeto agro-fundiário de cunho liberal, tal como inspirado por Wakefield, no Brasil, com as conseqüências conhecidas. Talvez este fato explique a aprovação da Lei 601 por Gabinetes conservadores. Daí para adiante dificilmente se tocará efetivamente na questão da legalização da propriedade, menos ainda, em reforma agrária, ou simplesmente em reordenamento fundiário, mas em colonização. Esta, sempre dirigida para terras distantes dos domínios dos latifundiários.

Por isso fracassou, até mesmo, o processo de atração de colonos, fossem pobres ou, sobretudo, ricos, para a agricultura, na segunda metade do século XIX. Processo este, de imigração de colonos pobres, que apenas se intensificará, nas últimas décadas do século XIX com a expansão da cafeicultura de exportação, portanto, ainda aqui, impulsionada pelos interesses latifundiários. Além de algumas iniciativas de colonização dirigida à terras afastadas (em oposição e antípoda da reforma agrária), como se observou nas primeiras quatro décadas da República. Colonização e assentamento, e nunca reforma agrária, torna-se o lema e o tema predileto dos latifundiários e das diferentes políticas fundiárias governamentais, desde então.

Esta a herança deixada pela política fundiária do Império e que, a rigor, como se analisou no capítulo 3, jamais foi enfrentada pela República que, de 1891 a 1964, limitou-se à tímidas iniciativas jurídicas e, sobretudo, administrativas, no âmbito da regulamentação do uso dos bens da União. Enquanto, nos Estados da Federação, prosperava a alienação e legitimação privilegiadas, sobretudo subordinadas ao comando e aos interesses das oligarquias locais.

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Cabe notar, neste contexto, uma interessante curiosidade: entre 1915 e 1946, ocorre um fenômeno semelhante ao provocado pela “Resolução 76 de 1822”, que inaugurou os 28 anos de “império das posses”, nos quais o latifúndio expandiu-se e consolidou-se definitivamente no País. Trata-se do Decreto no 11.485, de 5 de janeiro de 1915, cujo único parágrafo determinava: “fica suspenso até que se organize a Lei de terras, que será submetida ao voto do Congresso Nacional”, o Decreto 10.105/1913, que regulamentava a utilização e acesso às terras devolutas e aos bens da União. Esta nova Lei de Terras, como foi visto no capítulo 3, apenas viria a ser aprovada, 31 anos depois, sob a forma do Decreto 9.760, de 5 de setembro de 1946. Abriu-se assim mais 31 anos de plena possibilidade, como de 1822 a 1850, para um novo ciclo de expansão latifundiária.

Somando-se estes dois períodos, tem-se que, de 1822 à 1946, portanto, em 124 anos de história fundiária, durante 59 anos, não havia nenhum regulamento que limitasse as possibilidades de expansão latifundiária. Se a isto se somarem os períodos em que as normas instituídas foram sistematicamente desrespeitadas, na prática, como de 1850 a 1891 (quando é promulgada a primeira Constituição republicana) tem-se que, destes 124 de história da propriedade da Terra, entre a Independência e o Decreto de 1946, pelo menos durante 100 anos - um século, portanto - os latifundiários foram, efetivamente os “donos” de todas as terras do País. “Donos”, não proprietários. Posto que esta mesma “ausência” legal não permitia a legitimação das terras apossadas que, portanto, permaneceram juridicamente questionáveis.

É assim que a maioria das “propriedades” continuaram ilegítimas e a violência privada do latifúndio sempre agiu à sombra da lei e sob a proteção do Estado, avançando no campo, expulsando pequenos posseiros e índios, parindo os sem terra e sem pátria - a miséria rural e urbana - que assume a sua forma mais acabada, de grilagem especializada, no período do Regime Militar.

III O breve quadro resumido acima das análises realizadas nos três primeiros

capítulos deixou, entre muitas outros fatos relevantes, evidente, que o processo de apropriação, apossamento e alienação de terras públicas, sempre se fundou no privilégio, assim como as ações administrativas, jurídicas e cartoriais de legitimação e registro, quando efetivadas, geralmente o foram de forma juridicamente questionável.

Juridicamente questionável, sobretudo, porque nunca cumpriram as exigências e requisitos legais ao procederem os respectivos registros. Na medida em que a sociedade e a economia se desenvolviam, na primeira e, sobretudo, na segunda metade do século XX, passando a exigir a exibição dos títulos formais de propriedade, mais uma vez, buscou-se, na generalidade dos casos, alternativas ilegítimas ou apenas aparentemente legais, como os instrumentos particulares de compra e venda, quando não, a simples falsificação de documentos, tanto pela adulteração de escrituras legítimas (alterando para mais, as áreas), realizadas no interior dos cartórios, quanto, simplesmente, pela

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geração destas a partir de documentos que não se destinavam a esta finalidade, como as Certidões de Declaração de Posses, quando não, ainda, simplesmente forjados e de falsidade evidente. Fatos que são caracterizados, pelo INCRA e pela legislação, eufemisticamente, como “vícios insanáveis”.

É no contexto desse amplo processo de falsificação, que tem origem a grilagem especializada, conceito este, que foi introduzido por este estudo para caracterizar todos os tipos históricos de falsificação de títulos e documentos, sobre os quais se procuraram edificar a “legitimidade” das “propriedades ilegítimas”: de autênticos e incontestáveis processos de grilagem de terras públicas e de posses legítimas, sobretudo pequenas, assim como das terras reservadas e indígenas.

Este processo surge de forma tímida ainda nos finais do período sesmarial e mais intensamente após o “império das posses”, quando a Lei 601 de 1850 passa a exigir a legitimação das posses e a revalidação das sesmarias. É desta época, como foi visto no capítulo 2, que teve início o procedimento de se permitir a ocupação de pequenos espaços, geralmente nos extremos de áreas apossadas, por trabalhadores pobres, com a condição de testemunharem a “propriedade” ou “titularidade” em “favor” do patrão ou “concessionário”. Outra forma utilizada, ainda na época do Império, era a “cessão” ou venda de “terras públicas”, mediante instrumentos particulares ou celebração de simples contratos de arrendamento, aforamento ou parceria, os quais, ulteriormente, uma vez registrados em Cartórios, ensejavam uma “espécie” particular de “prova” - evidentemente ilegítima - que servia para promover o registro das “propriedades”. Outra forma historicamente conhecida, era o próprio registro de vigário, que deu ensejo a toda espécie de arbitariedades e fraudes no processo de legitimação privilegiada. E assim por diante, como foi amplamente discutido neste trabalho. Todo esse processo era sustentado pelas colunas do privilégio, da impunidade e da ilegitimidade.

É neste contexto que neste estudo sustenta-se a hipótese de que a maioria da propriedades territoriais rurais no Brasil são efetivamente ilegítimas, isto é, juridicamente questionáveis, fato este, aliás, pressuposto na Legislação pertinente que sempre previu - e exigiu - nas ações discriminatórias, a comprovação da titularidade legítima, quando se tratavam de terras em domínio particular. O ônus da comprovação de titularidade sempre cabendo, ao suposto proprietário ou posseiro. Entretanto, a simples exibição de documentos, na maioria dos casos com vícios insanáveis - como reconhecia o próprio INCRA - geralmente era suficiente, e simplesmente aceita, servindo destarte, para se proceder ao reconhecimento de titularidade, especialmente das grandes posses. Isto, para não insistir no fato de que muitos destes títulos tinham a sua origem efetivamente forjada, ainda que mesmo no interior dos Cartórios de Registros, como foi amplamente documentado neste estudo e como tem sido denunciado e comprovado por inúmeros outros pesquisadores e admitido pelo próprio INCRA.

O “esticamento da propriedade” referido pelo Bispo do Acre e Purus perante a CPI do Sistema Fundiário e levantado em inúmeras pesquisas, algumas delas discutidas

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neste estudo, era apenas uma das formas que sempre foram utilizadas. A outra era a grilagem direta, fundada na violenta intimidação e expulsão dos pequenos posseiros. Todos esses fatos, amplamente conhecidos, fazem parte da história da formação da “propriedade privada da terra” no Brasil. É evidente que este processo não poderia ter logrado o êxito que logrou, se não tivesse contado com a omissão ou a conivência efetiva do Estado, e em especial dos Cartórios e do Poder Judiciário, especialmente em suas representações ao nível local.

Este processo de apropriação privilegiada e legitimação juridicamente questionável, assume a sua forma mais acabada de grilagem especializada a partir de novembro de 1964, com a consolidação do Regime Militar e a aprovação e implementação da Lei 4.504 que instituía o Estatuto da Terra. Essa problemática foi amplamente analisada nos capítulos 4 e 5 deste estudo, mas vale a pena recordar seus traços fundamentais nesta conclusão.

Como ficou amplamente documentado e discutido naqueles capítulos, os problemas de legitimação das iniciativas privatizantes e de legalização das posses em domínio particular, jamais solucionados de forma efetiva pelo Estado, ainda que formalmente tentados, ganharam profunda relevância neste período. Com a aprovação do Estatuto da Terra, o Governo Militar conseguiu encaminhar uma legislação que regulamentava efetivamente o processo de alienação de terras públicas e de legitimação das posses que se encontravam em poder de particulares. Foi enfatizado neste estudo que o fato de haver instituído esta regulamentação foi o grande mérito que, efetivamente, teve o Governo Militar no âmbito da Política Fundiária, posto que, desde o fracasso na implementação do Regulamento de 1854, jamais havia o Estado conseguido regulamentar efetivamente o procedimento de alienação de terras públicas ou de reconhecimento de domínios particulares sobre estas.

Como se procurou enfatizar, para além deste grande mérito - de regulamentar juridicamente o acesso às terras devolutas - estava o fato do Estatuto da Terra ter colocado, objetivamente, nas mãos do Governo, o poder para promover a alienação de terras públicas; portanto, a ampla possibilidade de conduzir determinado processo de reorganização fundiária, na medida em que assegurava os meios, jurídicos e administrativos, necessários ao processo de venda de terras devolutas ou do reconhecimento de “titularidades” sobre estas. Isso tornou possível, contrariamente, a própria legitimação do privilégio, contra a antiga legitimação privilegiada, até então vigente no País. É neste sentido que a grilagem especializada assume a sua forma definitiva neste período, como se fundamentou efetivamente nesta pesquisa.

Foi neste contexto e na conjuntura da época, que os Governos Militares exerceram efetivamente este poder. Promoveram uma grande transformação na estrutura fundiária brasileira, ao implementar um vasto processo de alienação de terras públicas ou da legitimação de grandes posses, ou de concessões privilegiadas sobre estas, especialmente nas regiões Norte e Centro-Oeste, mas em certos limites, em todas as demais regiões do País. Como resultado deste processo modificou-se profundamente o

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perfil da propriedade privada territorial no Brasil. Por um lado, assegurando e promovendo a “proriedade absoluta” de grandes extensões de terras para camadas, de fato, privilegiadas, da população; por outro, aprofundando a excludência social e provocando a expulsão ilegal de uma imensa massa de pequenos produtores, posseiros e índios, elevando a um nível jamais conhecido na história agrária brasileira, o processo de apropriação, concessão e legitimação privilegiadas. Instituindo, definitivamente, a grilagem especializada como meio, método e forma de aquisição e legitimação da propriedade privada da terra no Brasil.

É neste sentido e contexto que, neste trabalho se defendeu e fundamentou a hipótese de que o Estatuto da Terra jamais contemplou qualquer iniciativa efetiva no âmbito da promoção da reforma agrária. Muito pelo contrário. É assim, que a leitura feita neste estudo a respeito desta problemática diverge daquela que supõe que o Estatuto da Terra continha uma efetiva proposta de reforma agrária distributivista e que, foi subvertido, desvirtuado, tendo o Governo implementado um projeto diferente do original, desviando a proposta e a reduzindo às iniciativas da colonização.

A tese aqui defendida é que esta subversão ocorreu, como foi amplamente discutido no capítulo 2, no âmbito da aprovação da Lei 601 de 1850, quando o projeto de “colonização sistemática” que, efetivamente previa o controle do acesso a terra pelo Estado, e sua venda a colonos, foi simplesmente reduzido à mera atração de colonos pobres para servirem nos latifúndios ou desbravarem regiões de fronteira ou de risco. O Estatuto da Terra, neste sentido, apenas foi uma espécie particular de consolidação formal e concreta desta proposta em novos termos.

É neste sentido específico que se defendeu a hipótese de que o Estatuto da Terra não se resumiu a um ato de “estética política” mas, ao contrário, que o Projeto de Política Fundiária e de Desenvolvimento Rural contido no mesmo foi efetivamente implementado pelo Governo, exatamente nos termos propostos. Assim, ao contrário da leitura geralmente feita, especialmente no que se refere ao problema da reforma agrária tal como exposta na Mensagem 33 e no Estatuto da Terra, ficou demonstrado que a mesma era, de fato, concebida, apenas, como uma possibilidade, entre outras, para a promoção do desenvolvimento econômico e integração nacional. Por isto pôde ser reduzida aos procedimentos de colonização e assentamento. Na verdade, a reforma agrária era concebida apenas com o objetivo de aliviar tensões sociais. Mas era esta, exatamente, a “reforma agrária” contida, fundamentada e defendida no âmbito do Estatuto da Terra. E neste sentido específico foi, efetivamente implementada. Ou seja, ficou evidenciado, contrariamente ao que geralmente é colocado, que o Estatuto da Terra em nenhum momento, em sua versão levada à ratificação pelo Congresso Nacional, contemplou uma efetiva reforma agrária democrática e distributivista.

É, enfim, neste contexto que, efetivamente, a proposta de “reforma agrária”, colonização e desenvolvimento rural, contida no Estatuto da Terra foi efetiva e amplamente implementada pelos Governos Militares. A crítica - de que os Militares não

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executaram o Projeto de Reforma contido no Estatuto da Terra, conforme aqui amplamente discutido e documentado, carece de fundamento empírico e concreto.

A conclusão desta pesquisa, neste caso específico, permite afirmar que o Projeto de Desenvolvimento Rural e de Política Fundiária contido e detalhado no Estatuto da Terra, na Mensagem 33 e em todos os documentos específicos do Governo para este mister foram efetivamente executados na forma e conforme os métodos propostos e sobretudo os objetivos políticos e econômicos claramente propostos.

Neste contexto, a “reforma agrária” sempre foi concedida como destinada a resolver problemas de tensões sociais em áreas de conflitos potenciais e em nenhum momento era pensada e menos ainda concebida, como ficou amplamente esclarecidos e demonstrado, como alternativa para possibilitar o amplo e democrático acesso à terra, sobretudo, se este acesso é pensado em termos de pequenos produtores e propriedades. Este problema está analisado e discutido nos capítulos 4 e 5 deste estudo.

A crítica passível de ser feita ao Regime Militar, neste contexto, refere-se exatamente, ao fato de que o seu projeto fundiário, coerente com o seu “Modelo de Desenvolvimento Econômico” era de cunho concetracionista; que se fundou na consagração, sob novas formas, dos antigos processos de alienação e apropriação privilegiadas; que persistiu o caráter juridicamente questionável, que continuou inerente aos diferentes processos de legitimação das posses, atingindo, inclusive as ações de alienação, licitação e venda de terras por parte dos órgãos fundiários e pelas autoridades do Estado. Porém não se pode, fundamentadamente, criticar os Governos Militares de terem apresentado uma proposta ou projeto no Estatuto da Terra e implementado outro. Esta argumentação, como ficou evidenciado neste estudo, carece de fundamentação empírica. Ela é facilmente contestada pelas simples análise da Mensagem 33.

Estes fatos estão amplamente comprovados, em especial na parte final do capítulo 4, onde foram analisadas as formas de alienação ou titulação de terras públicas postas em prática pelos Órgãos Fundiários do Governo, em especial, pelo INCRA.

Para finalizar estas conclusões vale a pena fazer referência a estes procedimentos que, na verdade, se configuraram em verdadeiros monumentos à grilagem especializada e de afronta ao ordenamento jurídico brasileiro.

A Legitimação de Posses (de pequenas posses, bem entendido) sempre assegurada desde o longínquo instituto de sesmarias e amplamente consagrado na Lei 601 de 1850 é reduzido a nada, ou quase nada, com a instituição das normas e regulamentos que se seguiram à promulgação da Lei 4.504 de novembro de 1964, em especial, após a instituição do INCRA. Com estes instrumentos, foram estabelecidas as regras fundamentais que iriam possibilitar um amplo e sistemático processo (ilegítimo, mas aparentemente “legal”) de expulsão dos pequenos posseiros e índios das terras onde viviam e trabalhavam.

Por outro lado, para assegurar o domínio dos grandes posseiros e sobretudo dos novos especuladores e grileiros especializados foi edificado um verdadeiro monumento à concessão de privilégios e a entrega, a “preço vil”, das terras brasileiras,

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especialmente nas regiões que começavam a valorizar-se em face das iniciativas do Governo, especialmente, no âmbito do Programa de Integração Nacional.

Tratava-se de muito mais do que um simples processo de concessão, ainda que privilegiada, de terras. Apenas este fato não explicaria as amplas “aquisições de terras devolutas”, por exemplo, na distante Amazônia. O fato mais relevante e que necessita ser devidamente levado em consideração, neste contexto, é que, junto com as terras (e a promessa de explorá-las e de contribuir para o desenvolvimento, integração e, sobretudo, a segurança nacional, que era “comprovados” pela simples apresentação de um “Projeto Agropecuário ou Florestal”) vinham os subsídios, os créditos à juros negativos e prazos de carência generosos, além da ausência completa de fiscalização quanto a aplicação dos recursos ou da implementação dos “Projetos”. Ou seja, a terra era, antes de tudo, um meio para o acesso fácil aos cofres públicos, ao enriquecimento fácil (e ilícito), etc. Além de permitir, no caso das pessoas físicas mas, sobretudo jurídicas, amplas deduções no Imposto de Renda pela via da famosa “Cédula G”, o que se constituía, efetivamente, em um recurso adicional para aumentar as “rendas” das pessoas físicas ou os “lucros” das empresas ou pessoas jurídicas, que representavam reduções, muitas vezes relevantes, nos preços ou custos de produção, viabilizado pela sonegação de impostos e tributos devidos ao Estado.

Em suma, a terra não era, apenas, uma simples reserva de valor. Era muito mais do que isto: pela via dos subsídios e dos créditos incentivados, ela permitia o acesso imediato a vultosos financiamentos que permitiram a transformação das antigas oligarquias latifundiárias em verdadeiras oligarquias agro-financeiras, ou, na pior da hipótese, viabilizava, na conjuntura da Ditadura Militar, a associação entre aquelas e os novos “industriais” e grupos econômicos, nacionais e estrangeiros, que afluíam ao Brasil no período. Apenas este fato ou “esta hipótese” pode explicar como, apesar dos vultosos recursos e do imenso volume dos projetos incentivados e aprovados pela SUDAM e pela SUDENE, e financiados pelos bancos estatais, a agropecuária na Amazônia e no Nordeste (excluindo talvez o PROALCOOL, que, ainda assim, se configurou em outra conjuntura, cuja análise fugiria ao âmbito deste estudo) continuou no mesmo patamar de baixa produtividade e utilização de terras historicamente conhecidos.

É neste contexto que são instituídas as distintas modalidades de alienação, titulação ou de reconhecimento de domínio sobre terras públicas de todo e qualquer tipo de pleiteante, e a regularização de qualquer tipo de títulos e documentos de “posse” ou “propriedade”, inclusive aqueles que estão gravados de “vícios insanáveis”, isto é, absolutamente ilegais, falsos.

Excetuando-se a “alienação com dispensa de licitação” que apesar de não se destinar, efetivamente, a facilitar o acesso à terra aos pequenos posseiros e proprietários, aproxima-se da norma consagrada pela Lei 601/1850, de assegurar a propriedade aos detentores de posses mansas e pacíficas; as demais modalidades de alienação legitimação, titulação ou concessão de terras públicas, postas em prática neste período,

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são, efetivamente, a evidência mais contundente da ilegalidade, da inconstitucionalidade e da consagração da grilagem especializada, como ficou documentado no capítulo 4 e cujos resultados, nocivos ao patrimônio público e à população brasileira, que foi excluída amplamente do acesso a este patrimônio, foram amplamente evidenciados pelas estatísticas apresentadas.

Para não estender, desnecessariamente, esta conclusão, posto que os dados já foram suficientemente estudados, basta relembrar o caso da chamada Concessão com Dispensa de Licitação. Esta modalidade de alienação de terras públicas é um verdadeiro monumento à grilagem especializada, a ilegalidade e à fraude. Ocupa-se efetivamente de legitimar títulos ilegítimos “em áreas de até 600 vezes o módulo de exploração indefinida” - noutras palavras, latifúndios e, mais que isto, oculta-se a referência aos “3.000 hectares” que é o limite constitucional para alienação de terras públicas sem a exigência de aprovação do Congresso Nacional; o que autoriza supor a possibilidade de exceder a este limite legal.

O fato mais relevante desta modalidade de titulação é que ela se destina “(a) pessoas físicas ou jurídicas de direito privado, detentoras de áreas transcritas no registro imobiliário, com vícios insanáveis, cuja cadeia dominial tenha sido iniciada em 28 DE JUNHO DE 1966541 .”

Como foi comentado no capítulo 4, apenas faltou nesta norma do INCRA a referência ao nome ou nomes das “pessoas físicas ou jurídicas de direito privado” às quais se destinava este indiscutível e ilegítimo privilégio.

A análise das informações contidas na figura 5, abaixo, que associa os resultados da implementação do “Projeto de Desenvolvimento Rural” como se referia a Mensagem 33, em termos das áreas novas, isto é da legitimação de posses sobre terras devolutas, confrontando-a com as variações da área utilizada e das populações rurais e urbanas, no período, não deixa nenhuma margem à dúvidas acerca do caráter de privilégio e excludência envolvido no Modelo Econômico e na Política de Terras e Agrícola posta em prática entre 1964 e 1984.

541 RIBEIRO, op. cit., p. 16. Grifos nossos.

284

Figura 5 - Variação da Área Nova Total e Área Utilizada; População Rural e Urbana: Brasil 1960-1980

(PERCENTUAIS)

46

2,4-0,5

157

-30

-10

10

30

50

70

90

110

130

150

170

Área total Área Utilizada População Rural População Urbana

%

Fonte: Dados da Pesquisa.

Enquanto a área nova apropriada privadamente no período chegou a 46%, a utilização agrícola, pecuária e florestal, para o conjunto das terras brasileiras, entre 1960 e 1980, cresceu apenas 2,4%, o que é, em si mesmo um dado eloqüente a denunciar que a alienação de terras pelo Estado, e, junto com estas, que todo o imenso volume de subsídios e outros recursos postos à disposição desse processo, apesar de terem sido realizados sob o pretexto de promover o desenvolvimento agrário, na verdade não conseguiram lograr este objetivo. Ou seja, certamente forma em sua maior parte destinados, como as terras, para outras finalidades.

Os efeitos disto ficam claros, por um dado, na redução da população rural, que embora aparentemente pequena, de 0,5% seria contraditória com o volume das terras apropriadas. Este dado, associado ao pequeno incremento da área utilizada indica, seguramente, o caráter parasitário e especulativo da Política Fundiária posta em prática no período. A outra face deste problema, que foi analisado objetivamente no capítulo 5, é visualizada na Figura 5 acima, na coluna referente ao incremento da população urbana, da ordem 157%, ou seja, um número que apenas pode ser explicado pela imensa distorção contida, no Modelo, mas, sobretudo, pela excludência e expulsão da terra, sem nenhum precedente na história agrária brasileira, de que foi vítima a população trabalhadora rural, neste período dos Governos Militares.

É neste sentido que, aprofundou-se, especialmente no capítulo 4 e 5 as hipóteses fundamentais defendidas neste trabalho. O estudo objetivo dos “instrumentos de ação fundiária” e das formas de alienação de terras públicas, implementados pelos Governos Militares, não deixam dúvidas de que o processo de apropriação e legitimação privilegiadas, que vinha, desde longa data, estruturando-se na história agrária do Brasil, assumiu a sua forma mais acabada de grilagem especializada, neste período. Este conceito, como foi registrado, é criado e desenvolvido neste trabalho, para definir os atos de apropriação ilegítima de terras devolutas, ou que são objeto de exploração por

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posses legítimas, por pequenos produtores rurais - mas também de terras reservadas - geralmente fundadas na exploração de artifícios legais e jurídicos, quando não, na simples falsificação de documentos, com o objetivo de “criar a aparência de legalidade” da propriedade.

Este processo fica igualmente qualificado e caracterizado quando autoridades fundiárias, com base em meros atos administrativos e geralmente contrariando as exigências da legislação em vigor, promovem alienações de terras em licitações, públicas ou não; ou, mais grave que isto, quando instituem “formas de titulação” visivelmente voltadas para o privilegiamento de determinadas situações ou camadas sociais, como ficou amplamente evidenciado e comprovado documentalmente nos capítulos 4 e 5 deste trabalho. Neste caso, caracterizam atos de improbidade administrativa e, em determinadas situações, de “crime de colarinho branco” ou simples corrupção. De qualquer maneira tratam-se de atos de titulação ou legitimação privilegiadas e juridicamente questionável.

Isso significa afirmar que estes processos, que vêm persistindo na luta pela terra desde os tempos do instituto de sesmarias, teve plena continuidade, sob novas formas, no período do regime militar. Esta é a conclusão geral deste estudo e que procura fechar com o conjunto da análise comparativa do processo de privatização de terras no Brasil.

Por estas razões, pode-se com certa tranqüilidade afirmar, que a maior parte das terras que atualmente se encontram em domínio particular continuam ilegítimas. Portanto, que permanecem públicas. Até prova em contrário.

Esta é a contribuição que se espera oferecer com este estudo.

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Figura 1 - Apropriação de áreas novas: Distribuição interregional, em percentagem. Brasil, 1960-1980

Nordeste22,1%

Sul7,8%

Centro-Oeste46,5%

Norte15,7%

Sudeste7,9%

Fonte: Dados da Pesquisa

Figura 2 - Apropriação de áreas novas por estratos, em percentuais. Brasil, 1960-19800 - 102,6% 10 - 100

14,7%

100 - 100035,5%

1000 mais47,2%

Fonte: Dados da Pesquisa

295

296

Lavoura Pastagem Matas

12,0 11,5 13,4

46,8

52,4

47,8

24,1 19,7 24,2

0,0

10,0

20,0

30,0

40,0

50,0

60,0

%

Lavoura Pastagem Matas

Figura 3 - Área utilizada por tipo de exploração, em percentagem. Brasil, 1960-1980

1960

1970

1980

297

Brasil Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste

83,083,6 85,4 84,3 81,8 86,0

72,7 73,7

77,0

87,589,1 90,3

86,085,6 88,3 89,2 87,5 87,4

0

10

20

30

40

50

60

70

80

90

100

%

Brasil Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste

Figura 4 - Variação da área utilizada, em percentagem. Brasil e Regiões, 1960/80

1960

1970

1980