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Edital para Inscrição
Concurso Cultural IX Congresso Médico Universitário de São Carlos
EDITAL – PRÊMIO NISE DA SILVEIRA – 4ª EDIÇÃO
APRESENTAÇÃO
O 9° Congresso Médico Universitário de São Carlos está promovendo seu quarto concurso cultural.
Pretendemos, através dele, mostrar diferentes visões de pessoas de diversas áreas acerca de um determinado tema. A cada ano serão propostos temas relacionados à saúde que deverão ser
abordados através de manifestações artísticas. O concurso tem por finalidade reunir os trabalhos
que serão julgados e premiados de acordo com as normas propostas por esse edital. Vale ressaltar
que os créditos desses trabalhos serão mencionados em qualquer trabalho de divulgação
promovido pela organização do congresso.
TEMA
Para participar do concurso de 2017, os trabalhos deverão estar relacionados com o seguinte tema: O Espectro Autista
REGULAMENTO
ART. 1 – DOS CANDIDATOS
1.1. Poderá participar qualquer pessoa que fizer a inscrição para o Concurso Cultural dentro do prazo estipulado.
1.2. Não é necessário estar inscrito no Congresso para participar do Concurso Cultural. 1.3. Nenhum membro da Comissão Organizadora do 9° CoMUSCar poderá concorrer ao prêmio Nise da Silveira.
ART. 2 – DAS INSCRIÇÕES
2.1. As inscrições serão gratuitas.
2.2. Deverão ser feitas do dia 01 de dezembro de 2017, com prazo máximo até dia 7 de abril de 2018 até as 23:59 horas.
2.3. As inscrições deverão ser feitas através do e-mail [email protected] e nela
devem ser informados os seguintes dados do participante: nome completo, ocupação, idade, número do documento de identidade, telefone para contato e categoria do trabalho. Será
recebida a resposta de confirmação da inscrição em até 48 horas. Caso contrário, envie sua inscrição novamente.
2.4. Junto com a inscrição obrigatoriamente deverão ser enviadas informações complementares que deverão vir anexas para que seja avaliada a viabilidade de exposição de acordo com o espaço e recursos disponíveis. (As limitações para a participação dos trabalhos estão explicitadas no artigo 6).
ART. 3 – DOS TRABALHOS
3.1. Poderá ser inscrito um trabalho por participante.
3.2. Os trabalhos deverão ser entregues à comissão organizadora do congresso no dia 09 de abril de 2018, no DEPARTAMENTO DE MEDICINA (DMed), das 13h às 18h, para montagem da exposição que será exibida durante o Congresso. A obra deverá ser julgada apenas pelo seu conteúdo; para isso, haverá sigilo de identidade até o fim do julgamento dos trabalhos.
3.3. Serão admitidas as seguintes categorias: fotografia, literatura e artes plásticas.
3.4. São vetadas quaisquer manifestações no trabalho que identifiquem o autor. Caso haja, o trabalho será desclassificado.
3.5. Ao se inscrever no presente edital, o (a) candidato (a) declara a inexistência de plágio do trabalho inscrito. Caso seja comprovado plágio o trabalho será desclassificado.
ART.4 – DA AVALIAÇÃO
4.1. O julgamento será feito por voto popular (escolha da maioria) e voto técnico (por especialistas em artes que avaliarão coerência temática, criatividade e forma). Cada um destes contabilizará um ponto. No caso de mais de um voto coincidir em um mesmo trabalho, o vencedor é escolhido na primeira etapa. No caso de empate, os três trabalhos finalistas passarão pelo voto de desempate da comissão geral organizadora do 9° CoMUSCar, por maioria simples. 4.2. Os organizadores do concurso cultural, que compõem a diretoria sociocultural do congresso, não participarão da comissão julgadora para preservar o sigilo dos trabalhos.
4.3 O resultado da avaliação será divulgado no Congresso e pelo site:
http://www.ufscar.br/comuscar/
ART.5 – DOS CERTIFICADOS
5.1. Todos os trabalhos receberão via e-mail certificação de participação no Concurso Cultural.
5.2. O trabalho que alcançar 1° lugar receberá certificação de seu prêmio.
ART. 6 – DAS CATEGORIAS
6.1. FOTOGRAFIA: é livre desde que cumpra as especificações de tamanho de, no máximo, 30x40cm e possua um título.
6.2. LITERATURA: pode ser de qualquer gênero textual, ocupando no máximo uma página (sulfite
A4) e possua um título.
6.3. ARTES PLÁSTICAS: Engloba as categorias desenho, pintura e escultura e é livre desde que cumpra as especificações de tamanho de, no máximo, 30x40cm com título para desenhos e pinturas e 30cm x 30cm x 30cm com título para esculturas.
COLETÂNEA DE APOIO
Psicologia: Teoria e Pesquisa Jan-Mar 2014, Vol. 30 n. 1, pp. 25-33
Identificação dos Primeiros Sintomas do Autismo pelos Pais1
Regina Basso Zanon2
Bárbara Backes Cleonice Alves Bosa
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
RESUMO - Dificuldades no desenvolvimento social são os indicadores mais prováveis de um futuro diagnóstico de autismo,
entretanto o atraso da fala parece ser o motivo que mais mobiliza os pais na busca por assistência. Neste estudo foram investigados
os primeiros sintomas percebidos pelos pais de crianças com autismo e a idade da criança na ocasião. Participaram 32 pré-escolares
e o instrumento utilizado foi a Autism Diagnostic Interview-Revised. Comprometimentos no desenvolvimento da linguagem foram
os sintomas mais frequentemente observados, porém os da socialização foram os mais precocemente identificados. No geral, a
idade média em que os primeiros sintomas foram percebidos foi 15,2 meses. Os resultados corroboram achados de outros estudos,
ressaltando a importância dos comprometimentos sociais para a identificação precoce do autismo.
Palavras-chave: autismo, identificação precoce, percepção dos pais
Parents’ Perception of the First Symptoms of Autism
ABSTRACT - The occurrence of problems related to social development is the best predictors of a future diagnosis of an Autistic
Disorder. Speech delay, however, seems to be the main that reason that leads parents to seek assistance. The present study aimed to
investigate the first symptoms observed by the parents of children with autism and the age that it occurred. Thirty-two preschool
children participated in the study. The instrument used was the Autism Diagnostic Interviwed-Revised. Abnormalities in language
development were the most frequent symptoms reported by the parents, but social impairment was the earliest that was noticed.
The average age when the parents noticed the first symptoms was 15.2 months. The results corroborate other findings, highlighting
the importance of social deficits for the early identification of autism.
Keywords: autism, early identification, parental perception
Nos últimos anos, o termo Transtorno do Espectro do
Autismo (TEA) vem sendo utilizado, nas publicações, para se
referir a uma classe de condições neurodesenvolvimentais que,
geralmente, inclui o transtorno autístico, o de Asperger, o
desintegrativo da infância e o transtorno global do desenvol-
vimento não especificado, também conhecido como autismo
atípico (Barbaro, 2009; Yoder, Stone, Walden, & Malesa, 2009).
Reconhecendo a natureza dimensional desse conjunto de
condições que fazem parte do espectro e as controvérsias em
relação ao diagnóstico diferencial entre elas, a quinta edição do
Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-
5) (American Psychiatric Association - APA, 2013),
recentemente lançado e ainda não traduzido para o português,
propõe a classificação de TEA em substituição a de Transtornos
Globais do Desenvolvimento, adotada no DSM-IV-TR (APA,
2003). De acordo com a nova versão * Apoio: CAPES/Fulbright. Agradecimentos: À CAPES/Fulbrigth pelo
apoio concedido para a realização da pesquisa. À Patricia Manning--
Courtney, MD., professora associada do Departamento de Pediatria da
Universidade de Cincinnati e diretora do Kelly O´ Leary Center for
Autism Spectrum Disorders do Cincinnati Children´s Hospital Medical
Center, pela orientação do projeto geral. À Dr Cynthia Molloy, MD
pelos esclarecimentos concernentes ao banco de dados. A Endereço para correspondência: Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Rua Ramiro Barcelos, 2600. Porto Alegre, RS. CEP
90035003. E-mail: [email protected]
do manual, as manifestações comportamentais que definem o
TEA incluem comprometimentos qualitativos no desen-
volvimento sociocomunicativo, bem como a presença de
comportamentos estereotipados e de um repertório restrito de
interesses e atividades, sendo que os sintomas nessas áreas,
quando tomados conjuntamente, devem limitar ou dificultar o
funcionamento diário do indivíduo (APA, 2013). O TEA é uma condição que tem início precoce e cujas
dificuldades tendem a comprometer o desenvolvimento do indivíduo, ao longo de sua vida, ocorrendo uma gran-de variabilidade na intensidade e forma de expressão da sintomatologia, nas áreas que definem o seu diagnóstico.
Atualmente, o TEA é compreendido como uma síndrome comportamental complexa que possui etiologias múltiplas, combinando fatores genéticos e ambientais (Rutter, 2011). Até o momento, as bases biológicas que buscam explicar a
complexidade do transtorno são apenas parcialmente conhecidas e, por isso, a identificação e o diagnóstico do transtorno baseiam-se nos comportamentos apresentados e na história do desenvolvimento de cada indivíduo (Barbaro, 2009; Daley, 2004).
De acordo com estudos recentes, a estimativa de preva-
lência do TEA é 62/10.000 (ver Elsabbagh et al., 2012, para
uma revisão), com uma incidência quatro vezes maior em
meninos do que em meninas (Fombonne, 2009). De modo
geral, o número de pessoas diagnosticadas mundialmente
25
RB Zanon et al.
com transtorno é crescente, o que não indica, necessaria-mente, o aumento da sua prevalência. Esse fato pode ser explicado pela expansão dos critérios diagnósticos, pelo
incremento dos serviços de saúde relacionados ao transtorno e pela mudança na idade do diagnóstico, dentre outros fatores (Fombonne, 2009).
Conforme os critérios diagnósticos do DSM- 5 (APA,
2013), as primeiras manifestações do TEA devem aparecer
antes dos 36 meses de idade. Todavia, dados empíricos de-
monstram que a maioria das crianças apresenta problemas no
desenvolvimento entre os 12 e 24 meses (Chakrabarti, 2009;
Chawarska et al., 2007; Noterdaeme & Hutzelmeyer-Nickels,
2010), sendo que alguns desvios qualitativos no desenvolvi-
mento aparecem antes mesmo dos 12 meses (Maestro et al.,
2002; Zwaigenbaum et al., 2005). Diversos estudos destacam a intervenção precoce como
fator fundamental para a melhora do quadro clínico do autismo, gerando ganhos significativos e duradouros no desenvolvimento da criança (Howlin, Magiati & Charman 2009; Reichow, 2011) . Devido à plasticidade cerebral, a
precocidade do início da intervenção desempenha papel importante, potencializando os efeitos positivos da mesma. Ademais, estudos indicam que os ganhos decorrentes da intervenção precoce podem reduzir consideravelmente os gastos dos familiares no tratamento das crianças com TEA,
bem como os dos sistemas de saúde pública, quando se ana-lisa os resultados em longo prazo (Järbrink & Knapp, 2001; Mandell, Novak & Zubristsky 2005).
Inúmeros aspectos podem retardar a intervenção, como é
o caso da demora na detecção das primeiras dificuldades no
comportamento da criança, na busca pela ajuda profissional e
na realização do diagnóstico. De fato, alguns estudos têm
demonstrado que crianças com TEA dificilmente recebem
esse diagnóstico antes dos 5 anos (Daley, 2004; Howlin &
Asgharian, 1999; Mandell, Listerud, Levy & Pinto-Martin,
2002), sendo que algumas são diagnosticadas apenas quando
atingem idade escolar (Noterdaeme & Hutzelmeyer-Nickels,
2010; Yeargin-Allsopp et al., 2003). Além disso, disparidades
na idade média da realização do diagnóstico foram obser-
vadas quando considerados os diferentes grupos raciais e
étnicos. Mandell et al. (2002) demonstraram, por exemplo,
que crianças brancas são diagnosticadas aos 6,3 anos en-
quanto que as afro americanas o são aos 7,9 anos, em média.
Essas diferenças raciais e étnicas na idade da realização do
diagnóstico podem estar relacionadas a fatores institucionais,
como dificuldades no acesso das famílias aos serviços de
saúde (Mandell et al., 2009). Siklos e Kerns (2007) ressaltam quatro fatores que podem
influenciar no atraso na realização do diagnóstico precoce:
A a variabilidade na expressão dos sintomas do TEA; 2) as
limitações da própria avaliação de pré-escolares, uma vez que
essa população demanda instrumentos específicos e sensíveis
aos comportamentos sociais mais sutis e próprios dessa faixa
etária; 3) a falta de profissionais treinados/habilitados para
reconhecer as manifestações precoces do transtorno; e 4) a
escassez de serviços especializados.
Até o momento, uma importante limitação do diagnóstico
precoce refere-se ao fato de que muitas das características
comportamentais do TEA, tal como constam nos manuais de
classificação e de critérios diagnósticos, baseiam-se princi-
palmente em sintomas que são comuns em crianças e adultos,
mas que dificilmente são vistos em bebês (Gray & Tonge,
2001; Johnson, 2008), como por exemplo, a interação com os
pares. A mesma limitação aparece quando se analisam
dificuldades no desenvolvimento da linguagem em crianças
que ainda não falam, uma vez que o reconhecimento dos
comprometimentos na área não-verbal (e.g., comunicação
através dos gestos e expressões faciais/posturais), ainda é um
desafio (Bosa, 2009; Johnson, 2008). Além disso, os
comportamentos e interesses repetitivos e/ou rituais, difi-
cilmente se manifestam antes dos 18 meses e tendem a se
tornar mais aparentes aproximadamente entre os 3 e 4 anos
(Gray & Tonge, 2001; Turner, 1999), período em que a iden-
tificação do referido transtorno também é menos ambígua.
Em vista disso, geralmente o encaminhamento das crianças
com suspeita de TEA só ocorre quando se percebe um atraso
importante na “fala”, ainda que desvios no desenvolvimento
da sociabilidade possam ser observados mais cedo (Bosa,
2009; 2002b). Devido à convivência diária, envolvendo diferentes con-
textos e ocasiões, reconhece-se que, na maioria das vezes, são
os pais, e não os profissionais, os primeiros a suspeitarem de
problemas no desenvolvimento da criança. Coonrod e Stone
(2004) destacam que as preocupações iniciais dos cuidado-res
são, geralmente, acuradas e legítimas. Sendo assim, a
realização de entrevista com os pais é uma importante fonte
de informação quando se pretende realizar o diagnóstico ou
pesquisas, envolvendo crianças com TEA (Lord, Storoschuk,
Rutter & Pickles, 1993), ainda que haja limitações nesse
procedimento. Entre os obstáculos, destacam-se os vieses e o
desconhecimento por parte dos pais dos aspectos do desen-
volvimento que são esperados para uma determinada idade.
Este último aspecto, por si só, aponta para a necessidade de
estudos e de divulgação dos seus resultados, para além da
comunidade científica.
Os cuidadores e o reconhecimento dos
primeiros sintomas do TEA
Nas últimas duas décadas, estudos têm buscado identificar
a idade do reconhecimento dos primeiros sintomas (IRPS) do
TEA, através de entrevistas realizadas com os pais de crianças
diagnosticadas com esse transtorno. Resultados mostram que
os primeiros sintomas no desenvolvimento tendem a ser
percebidos pelos pais durante os dois primeiros anos de vida,
sendo que a IRPS varia de 14,7 meses (DP=6,5) a 23,4 meses
(DP=11,3) (Chakrabarti, 2009; Chawarska et al., 2007).Não
surpreendentemente, observou-se uma correlação positiva
entre a idade da amostra e a IRPS, isto é, quanto menor a
idade da criança, na época do estudo, mais cedo o reconhe-
cimento dos primeiros sintomas pelos pais (Chakrabarti,
2009; Chawarskaet al., 2007; Coonrod & Stone, 2004; De
Giacomo & Fombonne, 1998). A justificativa é que, no caso
de crianças mais velhas, o intervalo entre as primeiras mani-
festações sintomáticas e a coleta de dados com os cuidadores
pode gerar distorções nas informações, pois estas dependem
da lembrança de detalhes do desenvolvimento da criança.
26 Psic.: Teor. e Pesq., Brasília, Jan-Mar 2014, Vol. 30 n. 1, pp. 25-33
Identificação dos Primeiros Sintomas do Autismo
Sobre a relação entre a IRPS e outros aspectos da vida da
criança, tem sido demonstrado que a deficiência intelec-tual e
problemas médicos associados, nas crianças, tendem a
antecipar a IRPS pelos pais (De Giacomo & Fombonne,
1998; Noterdaeme & Hutzelmeyer-Nickels, 2010; Shattucket
al., 2009; Wiggins, Baio, & Rice, 2006). Da mesma forma,
complicações perinatais e déficits sensoriais também levam
os cuidadores a reconhecer os sintomas mais precocemente
(Baghdadli, Picot, Pascal, Pry, &Aussilloux, 2003). Por ou-
tro lado, a ordem de nascimento, a classe social e o gênero da
criança são fatores que parecem não estar vinculados
diretamente à IRPS (Chawarska et al., 2007; Daley, 2004;
Noterdaeme & Hutzelmeyer-Nickels, 2010). Em relação à natureza dos primeiros sintomas observados
pelos pais, o atraso no desenvolvimento da comunicação e da
linguagem é o sintoma relatado com maior frequência
(Chakrabarti, 2009; Chawarska et al., 2007; Coonrod et al.,
2004; De Giacomo & Fombonne, 1998; Howlin & Asgha-
rian, 1999). Por outro lado, pesquisas demonstram que os
comprometimentos no desenvolvimento social são os pri-
meiros sintomas a emergirem, embora reconhecidos apenas
por uma pequena parcela dos pais (Johnson, 2008; Werner,
Dawson, Munson, & Osterling, 2005). Contudo, ressalta-se
que os estudos retrospectivos raramente especificam quais
aspectos das áreas comprometidas pelo transtorno os pais são
capazes de identificar. Preocupações iniciais concernentes a aspectos da brin-
cadeira, do desenvolvimento motor, da alimentação e do sono
também foram reportadas por cuidadores de crianças com
TEA (Daley, 2004; Werner & Dawson, 2005). Além disso,
um estudo realizado com 36 crianças com TEA e 20
controles, com desenvolvimento típico, e seus pais, encon-
trou que de 20 a 30% dos cuidadores descrevem padrões de
regressão de linguagem, envolvendo a perda de palavras
previamente adquiridas (Werner & Dawson, 2005). De fato,
investigações recentes acerca do tema têm demonstrado que a
regressão é um fenômeno fidedigno, que afeta uma parcela
importante das crianças com TEA (Backes, Zanon, é Bosa, 2013; Wiggins, Rice, & Baio, 2009). Por exemplo,
Backes et al. 2013; Backes, Zanon, Endres, Meimes, & Bosa,
2012, em um estudo realizado com 30 crianças americanas
com Transtorno Autista, conforme critérios diagnósticos da
Autism Diagnostic Interview-Revised (ADI-R), encontraram
que 20% delas apresentaram regressão das habilidades de
linguagem. A média de idade de início da perda encontrada
nessa pesquisa foi de 25 meses (DP= 6,19), o que se aproxi-
ma de achados de outras investigações (Pickles et al., 2009;
Werner & Dawson, 2005). Werner et al. (2005) realizaram um estudo retrospectivo,
analisando as variações no desenvolvimento social precoce
(0-2 anos) de crianças e suas relações com as manifestações
comportamentais aos 3-4 anos de vida. Participaram desse
estudo 145 crianças americanas, sendo 39 com desenvolvi-
mento típico, 34 com atraso no desenvolvimento e 72 com
TEA. Os grupos foram equiparados em termos de desempe-
nho cognitivo, nível socioeconômico e etnia. Para investigar o
desenvolvimento precoce das crianças, foi utilizada a Early
Development Interview, uma entrevista composta por 96
itens, que foram desenvolvidos com o intuito de aumentar
É qualidade da memória dos pais. Perceberam-se diferenças
significativas entre o desenvolvimento social das crianças
com TEA e das crianças com desenvolvimento típico, já no
segundo trimestre de vida. No entanto, quando comparadas às
crianças com atraso no desenvolvimento, as diferenças se
acentuaram somente após os 13-15 meses. Nessa idade, as
crianças com TEA apresentaram sintomas como pouco
contato ocular, falta de orientação ao ser chamado pelo nome
e de engajamento em interações sociais, sobretudo na
habilidade de atenção compartilhada. Nessa pesquisa, os
autores concluíram que os comportamentos sociais são os
melhores indicadores para o diagnóstico diferencial entre
crianças com TEA e aquelas com desenvolvimento típico ou
com atraso no desenvolvimento. Tais achados são simi-lares
aos de outros estudos realizados com base na análise de
vídeos domésticos (ver Saint-Georges et al., 2010, para uma
revisão). Ozonoff et al. (2010), através de um estudo prospectivo
e longitudinal, que comparou o desenvolvimento de bebês posteriormente diagnosticados com TEA com o de bebês com desenvolvimento típico, encontraram que a frequência
do olhar para faces, do sorriso social e das vocalizações só come-çou a declinar a partir dos seis meses de idade no grupo com TEA. Antes disso, os grupos eram altamente comparáveis, o que chama a atenção para o segundo
semestre de vida como um período crítico na emergência de comprometimentos mais substanciais do espectro.
Cabe salientar que é justamente no segundo semestre de
vida, mais precisamente ao redor dos 9 meses de idade do
bebê, que emerge uma habilidade sociocomunicativa
exclusivamente humana, da qual decorrem mudanças sig-
nificativas na maneira como o bebê passa a se relacionar com
os outros, com os objetos e consigo mesmo (Tomasello,
1999/2003). A habilidade de compartilhar as descobertas
sobre o mundo (atenção compartilhada), através do olhar, da
atividade gestual (e.g., apontar, mostrar e dar objetos para os
outros) e de expressões emocionais, é um marco no
desenvolvimento sociocomunicativo da criança, cuja ausência
é um importante elemento diagnóstico do TEA. De fato,
estudos demonstram que o comprometimento e o atraso no
desenvolvimento da habilidade de atenção compartilhada é
um dos sinais mais precocemente obser-vados em crianças
com TEA (Bosa, 2009, 2002a; Naber et al., 2008; Shumway
& Wetherby, 2009), sendo capaz de discriminar de 80 a 90%
de crianças com o transtorno de outras com outros problemas
ou atrasos no desenvolvimento (Charman et al., 1997).
Os aspectos apresentados até agora apontam para a
importância da investigação e difusão dos marcadores pré-
-linguísticos do TEA, em diferentes centros de excelência
no diagnóstico do transtorno. Esses achados podem subsi-
diar o processo de construção de instrumentos que podem
ser administrados em diferentes contextos (e.g., médico,
educacional – berçário). Em vista dessa importância, o
pre-sente estudo tem como objetivo investigar as
dificuldades específicas do espectro do autismo percebidas
pelos pais, nos primeiros anos de vida do filho, bem como
a idade da criança na ocasião.
Psic.: Teor. e Pesq., Brasília, Jan-Mar 2014, Vol. 30 n. 1, pp. 25-33 27
RB Zanon et al.
Método
Delineamento e Participantes
Trata-se de um estudo de cunho retrospectivo e descritivo
(Robson, 1995), que utilizou um banco de dados internacio-
nal3, tendo em vista a necessidade de se realizar a pesquisa
com base em instrumentos diagnósticos fidedignos, e ainda
não completamente validados no Brasil. Participaram 32 crianças em idade pré-escolar, que foram
atendidas no Cincinnati Children´s Hospital Medical Center
(CCHMC), em Ohio (EUA), nos anos 2008 e 2009. Todas as
crianças são caucasianas e têm o diagnóstico de Transtorno
Autista, realizado por especialistas, utilizando entre outros
instrumentos, a ADI-R (Lord et al., 1993). A média de idade
das crianças é 4,17 anos (DP=1,06) e a maioria delas é do
sexo masculino (75,75%), com uma proporção em relação ao
sexo feminino de 5,4:1.
Instrumentos
Neste estudo, a IRPS por parte dos cuidadores e a na-
tureza dos mesmos basearam-se na parte introdutória da ADI-
R, mais precisamente na segunda sessão da entrevista, na qual
é investigado o desenvolvimento precoce da criança. A ADI-
R é uma entrevista padrão ouro, semiestruturada e
administrada aos cuidadores. É requerido ao entrevistador um
treinamento prévio para a administração do instrumento e
para a codificação dos resultados, no qual ele é instruído a
obter descrições detalhadas dos pais acerca do comporta-
mento do filho, buscando através de cada pergunta exemplos
claros dos comportamentos investigados (Lord et al., 1993).
Foram considerados neste estudo os seguintes itens da ADI--
R: a) item 2 - idade, em meses, quando os pais notaram pela
primeira vez que algo não estava bem nas áreas da linguagem,
do relacionamento social ou do comportamento; b) item 3 à primeiros sintomas que causaram preocupações aos pais; e
c) item 4 – percepção inicial, em retrospecto. Para fins de
análise, o presente estudo contou com as respostas dos
cuidadores a cada um dos itens, que foram registradas na
íntegra no banco de dados, sendo submetidas, posteriormente,
à análise de conteúdo quantitativa (Bardin, 1977). Em relação
aos aspectos éticos envolvidos na pesquisa, ressalta-se que
houve a autorização formal para o uso do banco de dados,
sendo a identidade dos participantes mantida em sigilo, no
próprio banco de dados repassado aos pesquisadores.
Resultados
no comportamento social; 3) comportamento estereotipado e repetitivo; 4) atraso/peculiaridade no desenvolvimento de outras áreas do desenvolvimento. Nos casos em que os
informantes relataram preocupações em relação a mais de um comportamento da criança, estes foram classificados em mais de uma categoria (i.e., respostas múltiplas). Por essa razão, foram contabilizadas um total de 49 respostas/
comportamentos. Evidenciou-se que 83,67% dos comportamentos relatados
(n=41) corresponderam a uma das três áreas comprometidas
pelo TEA: atraso/peculiaridade no desenvolvimento da
linguagem (36,73%, n=18), problemas no comportamento
social (30,61%, n=15) e comportamento estereotipado e
repetitivo (16,33%, n=8). Os demais sintomas observados
(16,33%, n=8) referiram-se a outras áreas do desenvolvi-
mento, incluindo problemas no sono, na alimentação e no
desenvolvimento motor. No que se refere especificamente ao desenvolvimento da
linguagem, quatro subcategorias foram criadas: 1) atraso na
fala (e.g., speech not coming [a fala não vinha]); 2) atraso na
comunicação gestual (e.g., no waving [não abanava]; (3
atraso no balbucio (e.g., when baby not babbling [quando
bebê não balbuciava]); e 4) “parou” de falar (e.g., stopped
talking [parou de falar]). Evidenciou-se que o atraso na fala
foi o sintoma mais relatado pelos pais (61,1%, n= 11),
seguido pelo atraso na comunicação gestual (16,7%, n=3),
pelo atraso no balbucio (11,1%, n=2) e pelo fato de a criança
ter “parado” de falar (11,1%, n=2) (Figura 1). No que tange aos comprometimentos observados no
desenvolvimento social, os comportamentos foram analisa-
dos de acordo com as seguintes subcategorias: 1) interação
(e.g., freaked out in small groups [ficava apavorado quando
em pequenos grupos]) ; 2) olhar/sorriso (e.g., when baby
wouldn’t look [quando bebê, não olhava]); 3) não responde
ao ser chamado pelo nome (e.g., not responding to name [não
respondia ao nome]); e 4) não responde à separação dos pais
(e.g., nevercared if parents left [não se importava quando os
Parou de
falar 11,1% (n=2)
Atraso no balbucio
11,1% (n=2)
Atraso na fala
Atraso na 61,1% (n=11) comunicação
gestual 16,7% (n=3)
Quatro categorias foram criadas para a análise da natureza
dos primeiros sintomas observados, quais sejam: 1) atraso/pe-
culiaridades no desenvolvimento da linguagem; 2) problemas
1 O presente estudo faz parte de um projeto conjunto entre o Programa de
Pós-Graduação de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul e o Centro de Transtornos do Desenvolvimento do Cincinnati
Children´s Hospital Medical Center, financiado pela CAPES/Fulbright.
Figura 1. Frequência dos primeiros sintomas no desenvolvimento da
linguagem.
28 Psic.: Teor. e Pesq., Brasília, Jan-Mar 2014, Vol. 30 n. 1, pp. 25-33
Identificação dos Primeiros Sintomas do Autismo
Não responde a
separação dos pais 7,15% (n=1)
Não responde ao ser chamado pelo nome
7,15% (n=1)
Maneirismos e estereotipias 25% (n=2)
Brincadeira
Repetitiva 50% (n=4)
Olhar / Sorriso Interação 57,1%
28,6% (n=4) (n=8) Rituais e interesses
circunscritos
25% (n=2)
Figura 2. Frequência dos primeiros sintomas observados no desenvolvimento Figura 3. Frequência dos primeiros sintomas observados no desenvolvimento
social. dos comportamentos estereotipados e repetitivos. pais o deixavam]). Encontrou-se que os problemas na intera-
ção, incluindo ansiedade, aversão, medo e/ou indiferença no
contato com outras pessoas, foram os comportamentos mais
identificados pelos pais, representando 57,1% (n=8) do total
nessa subcategoria, seguidos pelos problemas na qualidade do
olhar/sorriso (28,6%, n=4), na ausência de resposta da criança
ao ser chamado pelo nome (7,15%, n=1) e pelo fato de ela
não responder à separação dos pais (7,15%, n=1) (Figura 2). Por fim, no que se refere aos comportamentos repetitivos
e estereotipados, os relatos foram classificados, de acordo
com as seguintes subcategorias: 1) brincadeira repetitiva
(e.g., spinning wheels as soon as he could [girava rodas o
mais rápido que conseguia]); 2) rituais e interesses circuns-
critos (e.g., memorizing books [memorizava livros]); e 3)
maneirismos e estereotipias (e.g., started stimming [começou
a apresentar maneirismos]). Verificou-se que preocupações
precoces quanto à qualidade da brincadeira dos filhos, in-
cluindo ações de girar e/ou classificar objetos, representaram
50% (n=4) dos comportamentos relatados pelos pais. Foram
destacadas também, nessa categoria, preocupações concer-
nentes aos rituais e interesses circunscritos (25%, n=2) e aos
maneirismos e estereotipias (25%, n=2) (Figura 3). Em relação ao aspecto idade, a média de idade das
crianças quando os pais observaram os primeiros sintomas no
desenvolvimento foi 16,43 meses (DP=11,39). Por outro lado,
quando consideradas somente as manifestações preco-ces nas
três áreas características dos TEA, a média da IRPS caiu para
15,17 meses (DP= 8,58). Os sintomas na área da socialização
foram os mais precocemente observados pelos pais, durante o
segundo semestre de vida da criança (M=9,27 meses;
DP=7,01). As alterações no desenvolvimento da linguagem
foram os segundos sinais a serem identificados
(M=18,28meses; DP=8,28), seguidos pelos comportamentos
estereotipados e repetitivos (M=19,25 meses; DP=6,11),
ambos percebidos entre o primeiro e o segundo ano de vida
da criança. A média de idade das crianças cujos pais
identificaram atraso/peculiaridade em outras áreas do desen-volvimento, que não as que caracterizam o TEA, foi 22,87 meses (DP=20,29).
A maioria dos pais (43,75%, n=14) afirmou ter reconheci-
do os primeiros problemas entre o primeiro e o segundo ano
de vida do filho, enquanto que 28,12% deles (n=9) identifica-
ram antes do primeiro aniversário e, do mesmo modo, 28,12%
(n=9), após o segundo ano da criança. Entretanto, quando, em
outro momento da entrevista, foi novamente perguntado aos
pais qual o período mais precoce do desenvolvimento no qual
algo “anormal” possa ter ocorrido, as respostas dos cui-
dadores indicaram que quase a metade das crianças (43,75%;
n=14) apresentou problemas nos primeiros 12 meses de vida;
43,75% (n=14) entre o primeiro e o segundo ano de vida; e
12,5% (n=4) com dois anos ou mais.
Discussão
Os dados obtidos no presente estudo demonstram que os
pais das crianças com autismo foram capazes de perceber
dificuldades no desenvolvimento do filho ainda antes do
segundo ano de vida da criança, quando consideradas ape-nas
as manifestações específicas do espectro, corroborando outros
achados (Chakrabarti, 2009; Chawarska et al., 2007;
Noterdaeme & Hutzelmeyer-Nickels, 2010). Além disso,
estudos prospectivos realizados com irmãos de indivíduos
com TEA, cujo risco estimado de também apresentarem o
transtorno é de 5 a 10% (Rice et al., 2007), têm identificado
diversos comportamentos manifestados entre 12 e 18 meses,
que distinguem os bebês com TEA de outros com desenvol-
vimento típico (Zwaigenbaum et al., 2009). Quanto à natureza dos primeiros sintomas observados,
verificou-se que, consistentes com outros estudos retros-
pectivos, a maioria das preocupações relatadas referiu-se
ao desenvolvimento da linguagem, sobretudo em relação
Psic.: Teor. e Pesq., Brasília, Jan-Mar 2014, Vol. 30 n. 1, pp. 25-33 29
RB Zanon et al.
ao desenvolvimento da fala, seguido pelos problemas no comportamento social e nos comportamentos repetitivos e estereotipados (Chakrabarti, 2009; Chawarska et al., 2007;
Coonrod & Stone, 2004). Entretanto, investigações baseadas em vídeos domésticos ou pesquisas prospectivas mostram que os comprometimentos sociais são os sinais que mais frequentemente aparecem, sendo anteriores ao
desenvolvi-mento da linguagem oral (Saint-Goerges et al., 2010; Ozonoff et al., 2010).
Os comprometimentos na área da linguagem, mais fre-
quentemente identificados pelos pais, foram reconhecidos entre o primeiro e o segundo ano de vida da criança. O mesmo aconteceu com os comportamentos estereotipados e repetitivos, que também foram identificados nesse perí-
odo. Watt, Wetherby, Barber e Morgan (2008) analisaram os comportamentos estereotipados e repetitivos, porém em 50 crianças com TEA, 25 com atraso no desenvolvimento e 50 com desenvolvimento típico, entre os 18 e 24 meses
de idade. Os pesquisadores encontraram que as crianças com TEA apresentaram os comportamentos investigados com maior frequência e duração que as crianças dos outros grupos, envolvendo movimentos estereotipados e repetitivos com o próprio corpo, com os objetos, além de
comportamentos sensoriais. Por tal razão, entende-se que os comportamentos repetitivos e estereotipados também são importantes para a identificação precoce do TEA.
De modo geral, no presente estudo, os problemas no de-
senvolvimento social da criança foram os mais precocemente
identificados pelos pais, ainda no segundo semestre de vida
do filho. A maioria dos pais que reconheceu os primeiros
sintomas nessa área relatou dificuldades da criança na inte-
ração social. Estes resultados corroboram achados de outros
estudos sobre o tema (Jonhson, 2008; Werner et al., 2005),
apontando para a importância dos comprometimentos sociais
para a identificação precoce do TEA. Evidenciou-se, também, que algumas dificuldades na
interação social, (e.g., medo, ansiedade, aversão ou indife-
rença na relação com outras pessoas) foram identificadas
pelos pais um pouco depois dos 9 meses de idade da criança.
Ressalta-se que comportamentos dessa natureza, que com-
prometem a relação da criança com os outros, são distantes do
tipicamente esperado para essa faixa etária. De fato,
Papaeliou e Trevarthen (2006) observaram que bebês com de-
senvolvimento típico, aos 10 meses, preferem brincadeiras de
engajamento coordenado com pares ao invés de brincadeiras
solitárias. Além disso, vale dizer que esse período representa
um avanço substancial no desenvolvimento dos processos
sociocomunicativos, devido ao surgimento da habilidade de
Atenção Compartilhada (AC), que se desenvolve em
contextos de trocas sociais (Tomasello, 1999/2003). Nesse
sentido, pode-se pensar que uma criança que apresenta, no
final do primeiro ano de vida, aversão, ansiedade ou medo do
contato com outras pessoas provavelmente apresentará
déficits na AC e, consequentemente, comprometimentos no
desenvolvimento da linguagem oral, aspecto mais frequen-
temente relatado pelos pais. Isso ocorre porque, segundo as
premissas das teorias interacionistas, a AC é a base para o
desenvolvimento social e linguístico subsequente (Tomasello,
1999/2003).
Os resultados desta pesquisa mostraram ainda que, em
uma análise retrospectiva, com base na ADI-R, os mesmos
pais passaram a reconhecer manifestações do TEA ainda mais
precoces do que aquelas que inicialmente geraram
preocupações. Ou seja, os cuidadores identificaram difi-
culdades anteriores aos comprometimentos observados entre
o primeiro e segundo ano de vida da criança, que se referiram,
principalmente, ao atraso no desenvolvimento da linguagem
oral. As mudanças evidenciadas no julgamento dos pais,
quanto ao momento em que os primeiros sintomas
apareceram, podem ter sido efeito do próprio processo de uma
avaliação diagnóstica detalhada, realizada em um cen-tro
especializado e com instrumentos reconhecidos. Nesse
sentido, pensa-se que o fato de já ter iniciado um processo de
avaliação profissional acerca dos comportamentos apre-
sentados pela criança, pode ter atentado os pais para aspectos
próprios do desenvolvimento infantil precoce, bem como para
as manifestações comportamentais do TEA, que são sutis
durante os primeiros anos de vida. Nessas circunstâncias, depreende-se do presente estudo que
há uma sincronia desenvolvimental importante entre as
interações sociais iniciais e o desenvolvimento sóciocomuni-
cativo posterior. Com isso, pensa-se, inclusive, que o atraso na
fala, observado por grande parte dos pais entre o primeiro e o
segundo ano da criança, ainda na etapa das holófrases (i.e.,
quando uma palavra, usada sozinha, é capaz de corresponder a
uma frase) (Tomasello, 1999/2003), pode ter decorrido de
comprometimentos mais precoces na interação social que, por se
tratarem de comportamentos sutis, podem não ter sido
identificados pelos pais no momento em que surgiram. No
entanto, pode-se supor que tais manifestações sutis, concer-
nentes à interação social, passaram e ser reconhecidas por um
número maior de pais no momento da entrevista, mostrando um
possível efeito positivo do processo de avaliação. Assim, destacam-se algumas implicações dos achados do
presente estudo. Embora pesquisas recentes tenham
demonstrado a existência de comprometimentos precoces no
desenvolvimento sociocomunicativo, em especial na ha-
bilidade de AC, os profissionais da saúde devem reconhecer
que a maioria dos pais das crianças com TEA não relatam,
espontaneamente, dificuldades precoces nessa área. Adrien et
al. (1992), em um estudo baseado em vídeos caseiros,
afirmam, inclusive, que os déficits sociais estão presentes na
criança em uma idade anterior àquela que primeiro preocupou
os seus pais. Tal fato pode ser reflexo da falta de informação
dos pais acerca dos marcos do desenvolvimento social (e.g.,
gestos e outros comportamentos envolvidos na AC), especial-
mente quando em comparação com os do desenvolvimento da
linguagem. Outra explicação possível para o não reconhe-
cimento dos sinais no desenvolvimento social consiste no fato
de alguns pais atribuírem a falta de interação da criança a
aspectos da personalidade do filho, independentes do TEA
(Sifuentes & Bosa, 2007), como a timidez ou introversão ou,
ainda, a aspectos do ambiente, como pouca estimulação,
muito “mimo”, dentre outros fatores. Por tais razões, alerta-se que a falta dos relatos parentais
acerca dos comprometimentos sociais são significa, neces-
sariamente, a ausência dessas dificuldades. Recomenda-se,
assim, que os profissionais indaguem os cuidadores espe-
30 Psic.: Teor. e Pesq., Brasília, Jan-Mar 2014, Vol. 30 n. 1, pp. 25-33
Identificação dos Primeiros Sintomas do Autismo
cificamente acerca do desenvolvimento social, buscando
detalhes e exemplos claros dos mesmos, sobretudo quando a
queixa principal consiste apenas no atraso no desenvolvimen-
to da linguagem oral. Tais cuidados são importantes porque o
reconhecimento dos sinais do TEA, ainda na primeira in-
fância, constitui um primeiro passo na direção da realização
do diagnóstico precoce, fato que aumenta a possibilidade de a
criança se beneficiar dos efeitos da intervenção. Especificamente no que se refere ao contexto brasileiro,
ressalta-se a escassez de instrumentos validados para ras-
treamento e diagnóstico do TEA, um importante limitador
para os profissionais e os pesquisadores na área. Por tal ra-
zão, recomenda-se a realização de pesquisas em nosso país
que tenham como objetivo construir e validar instrumentos
específicos para esse transtorno, em especial aqueles volta-
dos para crianças bem pequenas. Nessa linha, ressalta-se a
relevância de algumas dissertações realizadas nos últimos
cinco anos por autores brasileiros, como, por exemplo, a de
Montenegro e Mercadante (2007), na qual foi desenvolvido o
Protocolo de Avaliação da Comunicação Social Inicial, um
método de observação estruturada da orientação social e da
AC. Ainda se tratando de instrumentos baseados na
observação direta da criança, Marques e Bosa (2010) apre-
sentaram evidências de validade preliminares do Protocolo de
Observação para Crianças com Suspeita de TEA, que leva em
conta a frequência, a intensidade e a peculiaridade dos
sintomas próprios dos TEA, avaliados durante cenas de
interação livres e estruturadas com um adulto. Destaca-se,
também, o estudo desenvolvido por Castro-Souza e Pasquali
(2011), que realizaram a adaptação brasileira do Modified
Checklist for Autism in Toddlers, um instrumento de triagem
precoce de TEA, composto por 23 itens dicotômicos do tipo
sim/não, que foi projetado para ser respondido por pais ou
responsáveis de crianças na faixa de idade de 18 a 24 me-ses.
Além disso, foi realizada recentemente a tradução, bem como
as análises preliminares de evidências de validade,da ADI-R
para o português brasileiro (Becker et al., 2012), o que
representa um campo promissor para a replicação do presente
estudo em nosso país. A presente pesquisa apresentou algumas limitações, que
merecem ser consideradas. Muitas delas referem-se ao fato de
ter sido utilizado parte de um banco de dados internacional. A
consequência foi a falta de informações importantes sobre o
nível de escolaridade parental, bem como acerca do desen-
volvimento cognitivo das crianças, aspectos esses que podem
influenciar na IRPS (Noterdaeme & Hutzelmeyer-Nickels,
2010; Shattuck et al., 2009). Do mesmo modo, ressalta-se que
o tamanho da amostra foi reduzido substancialmente devido,
principalmente, ao fato de muitas das crianças que passaram
pelo Cincinnati Children´s Medical Center, especificamente
em 2008 e 2009, não terem sido avaliadas pela ADI-R. A
falta de grupo controle e/ou comparativo também nos impede
de afirmar que os comportamentos relatados são específicos
do grupo analisado. Outra limitação refere-se ao instrumento utilizado. Pelo
fato de a ADI-R se tratar de uma entrevista, as informações
acerca dos primeiros sintomas apresentados pela criança são
investigadas retrospectivamente. Por isso, deve-se considerar
o efeito do tempo na memória dos entrevistados, fenômeno
denominado, na literatura internacional, de “telescópico”
[telescopingeffect] (Hus, Taylor, & Lord, 2011; Sudman &
Bradburn, 1973). Esse fenômeno, comumente discutido em
estudos retrospectivos, considera alguns fatores que podem
influenciar a qualidade e a precisão da informação coletada: a intervalo de tempo entre o evento investigado e a coleta
de dados; 2) qualidade da resposta dada pelo informante; e é estado emocional do informante (Hus et al., 2011). No que
se refere ao presente estudo, vale considerar que a idade da
amostra (pré-escolares), bem como a qualidade reconhecida
do instrumento utilizado (padrão-ouro para avaliação do
TEA) podem ter reduzido os efeitos do fenômeno telescópi-
co, embora não se possa afirmar a não influência do mesmo.
Ressalta-se que fazem parte do treinamento dos entrevista-
dores técnicas de entrevista no sentido de reduzir esse efeito.
Considerações finais
Com o presente estudo, pode-se concluir que os pais, pelo
menos na cultura estudada, foram capazes de reconhecer
sintomas próprios do TEA durante os dois primeiros anos de
vida do filho. Esse aspecto é fundamental porque é um gatilho
na busca por auxílio médico, em uma cadeia de acon-
tecimentos que pode culminar com o diagnóstico precoce. Os
comprometimentos no comportamento social foram os mais
precocemente observados pelos cuidadores, sobretudo a
qualidade da interação social. Uma vez que habilidades sócio-
comunicativas básicas, como é o caso da AC, desenvolvem-se
na relação com outras pessoas, presumiu-se, neste estudo, que
problemas precoces na interação podem ter acarretado atraso
na fala, comportamento relatado com maior frequência pelos
pais. Tal fato ressalta a importância da realização de um
rastreamento detalhado acerca do desenvolvimento sócio
comunicativo precoce da criança, mesmo que os cuidadores
não tenham relatado preocupações iniciais nessa área. Isso
porque a detecção de problemas no desenvolvimento social,
em especial na AC, é crucial para o diagnóstico do TEA, ma-
ximizando a probabilidade de a criança receber intervenção
precoce em serviços especializados. Do ponto de vista dos desdobramentos deste estudo,
sugere-se que pesquisas futuras sejam realizadas a fim de
melhor esclarecer algumas questões, como por exemplo, o
papel da escolaridade parental e do desenvolvimento cogni-
tivo da criança como um possível facilitador deste processo.
Do mesmo modo, recomenda-se que pesquisadores e profis-
sionais nessa área investiguem as primeiras manifestações
sintomáticas, através de instrumentos específicos para essa
faixa etária, a fim de possibilitar a recordação dos pais acerca
dos sinais mais sutis. No que se refere ao contexto brasileiro,
a questão é ainda anterior, uma vez que pesquisas envolvendo
a construção e validação de instrumentos específicos para o
TEA são muito iniciais, principalmente no que tange aos de
rastreamento de casos suspeitos. A replicação do presente
estudo com amostras brasileiras também se faz necessária.
Além disso, estudos longitudinais e prospectivos são im-
portantes para melhor investigar os indicadores precoces do
TEA, sendo este conhecimento fundamental para se pensar
em programas com vistas a habilitar pais e profissionais a
identificarem precocemente esse transtorno.
Psic.: Teor. e Pesq., Brasília, Jan-Mar 2014, Vol. 30 n. 1, pp. 25-33 31
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Recebido em 20.08.2012 Primeira decisão editorial em 05.06.2013
Versão final em 20.06.2013 Aceito em 24.06.2013
Resumo A partir do material clínico
apresentado pela analista de
uma menina com TEA, outra
analista realiza reflexões centra-
das na primeira etapa do traba-
lho, focando-se, principalmente,
nas sensações e na relação corpo
a corpo. Na medida em que o
afeto experienciado, assim como
o encontro com o outro e seu
desejo, é o que outorga sentido * experiência sensorial, a ferra-
menta fundamental nessa etapa do
trabalho será a utilização da
própria percepção e afetividade,
colocadas a serviço de captar os
mínimos signos e convertê-los em
sinais. São analisadas as formas
de intervenção e a modalidade
interpretativa da analista, que
possibilitam experiências novas e
fundantes do psiquismo, por meio
das quais se vão produzindo
movimentos de simbolização. Descritores: autismo; caso
clínico; técnica de análise de
crianças; afeto; simbolização.
Dossiê
REFLEXÕES PSICANALÍTICAS SOBRE
UM CASO COM TRANSTORNO DO
ESPECTRO AUTISTA (TEA)
Ema Ponce de León Leiras Fátima Maria Vieira Batistelli
Tradução: Marina Caldeira Antunes / Tikinet
DOI: http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v19i2p277-293
Introdução
O presente trabalho é composto de duas partes que se
articu-lam: a descrição do material clínico do atendimento de uma criança com transtornos autísticos, realizado pela analista Fátima Maria Vieira Batistelli, e as reflexões psicanalíticas sobre o mesmo realizadas pela analista Ema Ponce de León Leiras.
A Psicanalista. Membro titular da Associacão Psicanalítica do Uruguai e diretora da Clíni-ca
del Niño – Centro del Adolescente, Montevidéu, Uruguai. ■ Psicanalista. Membro filiado do Instituto de Psicanálise da Sociedade de Psicanálise de São
Paulo, São Paulo, SP, Brasil.
277
Caso clínico
A criança, a quem chamarei de Laurinha, começou a análise com 3
anos e 6 meses de idade, em setembro de 2002. Os pais relatam que,
quando Laurinha estava com pouco mais de um ano, passaram a notar
uma defasagem em relação às crianças da mesma faixa etária. Ela havia
aprendido a andar, mas a linguagem mostrava-se cada vez mais atrasada
e ela não se relacionava com outras crianças. Quando me procuram, ela
ainda não tem linguagem verbal, pronuncia alguns sons, aparentemente
sem sentido. Muitas vezes fica emitindo esses sons, com o olhar
“perdido”. Não chama as pessoas, nem mesmo os pais, não fala papai e
nem mamãe. Quando quer algo, busca a pessoa pela mão. Aceita colo,
deixa-se abraçar, mas não abraça de volta e parece entender o que lhe é
dito. Na ocasião, a mãe ainda lhe disponibiliza o seio na hora e no lugar
que Laurinha buscar, é um seio à disposição, como se fosse parte dela. A
mãe relata que fica muito difícil para os pais colocarem limites à filha,
pois Laurinha “desmorona”, se desespera demais, assim eles a deixam
fazer quase tudo o que quer. Ela tem bem estabelecido o controle dos
esfíncteres, o pai diz que a questão da higiene sempre foi algo muito
importante para a mãe. No início, só fazia suas necessidades se lhe
colocassem a fralda. Em casa, tira a roupa toda, com bastante frequência.
Acumula brinquedos nos cantinhos, sendo que anteriormente eram
sapatos. Gosta de pular, subir nas coisas, assistir filmes da Disney, e
imita algumas cenas, por exemplo: nas cenas de medo se esconde, se a
pequena sereia chora, ela faz que chora como ela. Muitas vezes não
atende quando é chamada e tem medo de lugares muito amplos, mas
também dos fechados, como o cinema. Está numa escola comum, mas
fica totalmente ausente, muitas vezes fica só na porta da sala, não
interage com nenhuma criança, fica andando a esmo pelo pátio.
Iniciamos o atendimento com a Laurinha comparecendo três
vezes por semana. Nos primeiros encontros ela perambulava pela
sala, mas não parecia estar exatamente interessada em conhecer o
espaço, não era curiosidade, era um andar como que sem objetivo, e
mexia em algumas coisas que chamassem sua atenção, coisas que
pareciam ter um apelo mais sensorial. Depois de um tempo em que
manipulou sensorialmente os brinquedos, tocando, apertando,
começa uma atividade com eles: levá-los para cima da mesa ou do
divã e lançá-los, emitindo um grito. Depois que todos caem ao chão,
repete a cena
278 Estilos clin., São Paulo, v. 19, n. 2, mai./ago. 2014, 277-293.
por muitas vezes, alguns dias durante
toda a sessão. Ela não me olha, emite
vários sons, mas a única palavra que eu
distingo é o “não”, que é pronunciado
diversas vezes. Eu falo algumas coisas
do tipo: eles estão caindo, assustados,
gritam aflitos etc. Acho que eram falas
só para me manter pensando, e que
talvez para ela dessem a dimensão de
que eu continuava ali. Eu me mantinha
sentada, observando, e as poucas
ocasiões em que tentei chegar mais
perto fisicamente, ela disse “não”
firmemente, mas sem me olhar. Assim
eu ia procurando me aproximar, sempre
atenta à distância que ela considerava
segura. Em algumas sessões ela
interrompia essa atividade para deitar
no divã e ficar olhando o ventilador
girar, ou olhar para cima e falar, sorrir
ou mesmo rir.
Depois de um tempo, ela
descobre água na varanda da minha
sala e passa a mexer nela, encher o
balde, entrar nele. Para isso, tira toda
a roupa, deita no chão molhado,
numa atividade totalmente de
exploração sensorial. Não me olha e
só me busca, com as mãos, se algo
não lhe agrada, como, por exemplo,
acabar a água do balde. Eu vou
tentando me aproximar e dar alguns
contornos a essa vivência, a fim de
que não fiquem apenas ao nível do
sensorial: mostrar a marca que seus
pezinhos fazem no chão, ou a marca
da mão molhada. Nomeio as partes
do corpo que vão ficando molhadas.
Invento algumas musiquinhas
relacionadas às atividades dela no
momento. Ela vai, muito
lentamente, se interessando por essas
minhas observações. Passa a me olhar
quando eu canto, a me mostrar coisas
que parecem chamar sua atenção, me
pega pelas mãos para acompanhá-la
na varanda. Inclusive seu rosto parece
estar adquirindo um ar mais
humanizado, menos estranho. Já estamos com seis meses de
atendimento, e agora ela começa a
não querer ir embora, se digo que é
hora de irmos, me joga os sapatos,
tenta me bater, me morder. Falo
calmamente com ela nessas
ocasiões, e, muitas vezes, sai
chorando, no meu colo, agarrada ao
meu pescoço, vivendo momentos,
não mais de raiva, mas de muita dor. Ela passa também a só entrar e sair
da sala se for no meu colo. Não quer
mais transpor esse espaço com as
próprias pernas. Eu a carrego porque
sinto que precisa disso. Inaugura uma
nova atividade, que é pegar a manta de
lã que fica sobre o divã e passar algumas
sessões inteiras toda coberta, debaixo da
manta, no meu colo, e faz questão de
colocar o seu ouvido de encontro ao
meu peito, penso que para escutar meus
batimentos cardíacos e o ritmo da
minha respiração. Começa a pronunciar
palavras como “mama”, “papa”, mas
nem sempre direcionada à pessoa correspondente. Chama-me
ora de um, ora de outro. Fica muitas
sessões assim. No entanto, intercala
esses momentos com vivências com a
água, para onde agora já leva os
brinquedos, que parecem interagir, num
brincar mais simbólico. Ora ela os joga
279
na água como se pulassem na piscina
e faz carinha e som de prazer, como
se os bonecos é que o fizessem, ora
faz como se os afogasse e gritassem
por socorro. Nessa ocasião já estamos
com oito meses de trabalho. Ela já
fala algumas palavras que são
possíveis de serem entendidas, sempre
em relação a brincadeira, nunca
comigo. Muitas vezes, quando desce
do meu colo, brinca com os objetos
dentro dos meus sapatos, que ela
descalça quando chega à sessão. Essa
brincadeira é meio mecânica e
repetitiva. A turma dos brinquedos é:
um coelho de pelúcia, um fantoche de
pano, duas roupinhas e uma toalha.
Usados todos como personagens. Às
vezes ela interrompe a brincadeira e
sobe no meu colo, se aconchega, me
toca. E depois de um tempo sai
andando. Penso que precisa me ter
disponível para ir e vir, ser neném e
crescer. Entrar e sair e saber que eu
me encontro ali. Depois de um tempo, põe a manta
no meu corpo e brinca em cima de
mim, trazendo brinquedos para o meu
colo. Os bichinhos interagem, mas é
tudo no meu colo, a sessão inteira. Aos
poucos vai deixando o meu colo e
brincando numa “cabana” que faz
embaixo das minhas pernas, também
usando a manta. Empurra as minhas
pernas para que fiquem abertas e brinca
literalmente no meio delas, com a
cabeça encostada em mim. Leva vários
brinquedos para lá e passa a sessão
inteira assim. Aos poucos vai podendo
sair desse espaço entre as minhas pernas
e apropriar-se da sala, dos outros
espaços. Muitas vezes acontece de a
brincadeira se passar dentro dos meus
sapatos, que ela sempre no início das
sessões vem tirar dos meus pés, assim
como tira os dela. Em outras ocasiões,
brincou pela sala calçando os meus
sapatos. Enfim, é uma separação, um
desgrudar-se, que vai ocorrendo
progressivamente, num ritmo proposto
por ela, aceito e respeitando por mim.
No entanto, todos esses
desenvolvimentos são intercalados por
sessões nas quais eu a sinto totalmente
ausente, distante de mim. Tento buscar
uma brecha, algo comum entre nós, e
parece que não encontro nada. Sinto-
me excluída, à parte, não pertencente,
não existindo. Ela fala na “sua língua
estrangeira”, não me olha, parece que
não me escuta, mexe nos objetos
costumeiros, chaveiros, panos, mas
nada parece ter nexo, é bizarro. Essas
são sessões bem difíceis e nas quais eu
preciso de muita perseverança para não
desanimar. Mas se aguento, depois de
um tempo, ela volta. E esses
afastamentos vão ficando cada vez mais
raros, mas são substituídos por outra
forma de me anular, que é querer que
eu faça as coisas exatamente do seu
jeito, uma imposição que é muito mais
do que teimosia: não há brechas para
algo diferente daquilo que ela quer, e
essas situações são muito difíceis para
nós duas. É um período de tirania. Ela
exige as coisas. Grita e se desespera se
não atendo, e eu vou pondo os limites,
os meus, os da situação e os da
realidade. São sessões difíceis, às vezes
me deixam
280 Estilos clin., São Paulo, v. 19, n. 2, mai./ago. 2014, 277-293.
bastante irritada. Mas sobrevivemos também a essa temporada, e
aos poucos ela vai aceitando melhor os limites.
O vocabulário da Laurinha já aumentou muito, mas apresenta
dois tipos de fala. Quando fala a “palavra correta”, no momento
adequado, usa um tom de voz mais grave, como se não fosse ela,
e quando a fala é mais bizarra ou confusa, fala com sua voz de
menininha. Inclusive na sala de espera me chama de Fátima, sob a
supervisão da mãe e com a voz diferente. Na sala me chama de
“mamãe” ou “papai” e com a sua voz mesmo. Descobre os lápis na caixa e eu proponho que desenhemos.
Estamos com quase três anos de atendimento. Eu desenho e ela
pinta. A partir daí passa a querer isso todas as sessões. Tinha que
ser todas as vezes os mesmos desenhos, pintados da mesma cor.
Vou sugerindo pequenas alterações, que ela vai aceitando e se
arriscando a inventar também algumas. Começa ela também a
desenhar, e suas produções são boas. Seu vocabulário aumenta a
cada dia, fala algumas palavras erradas, mas já se comunica
verbalmente. Começa a me chamar pelo meu nome, sua fala passa
a fazer mais sentido e passa a usar os pronomes pessoais.
Começa a teatralizar as brincadeiras, pede que a vista de princesa,
ou de sereia, e o importante é que possamos improvisar com o
material que temos disponível. No início ela ficava muito desesperada
quando o efeito não era do jeito que ela esperava, gritava, se
desesperava, queria me bater, mas aos poucos vai aceitando as nossas
possibilidades e se permitindo aproveitar a brincadeira e o faz de
conta. Depois passamos pela fase de contar estórias, ela me pede para
ler livrinhos e depois ela usa os brinquedos para reproduzir a estória
“à sua moda”. Já se passaram quatro anos, Laura está com sete.
Frequenta uma escola normal onde a classe é bem pequena, mas
corresponde à série que deveria estar para a idade que possui. Tem
coleguinhas, me conta, ainda com certa dificuldade de se explicar
bem, os acontecimentos que lhe são importantes. Algumas vezes fala
como se eu estivesse estado lá e presenciado a cena, então
precisamos de um tempo maior de conversa a fim de se fazer
entender. Agora traz bonecas de casa que “brincam” com as da caixa
e também se despedem ao irem embora. Já fala de saudades, ciúmes,
medo. Nas brincadeiras aparece a questão das diferenças sexuais,
conversamos sobre e brincamos com o tema. Terminar as sessões
continua difícil, ela tenta ganhar tempo, criar alguma situação, mas já
tem consciência de que nosso horário termina.
281
As brincadeiras com os bichinhos e bonecos da caixa estão
cada vez mais simbólicas. Aparece voracidade, medo, ciúmes,
briga, acordos, casamentos e cada vez mais ela pode ir se soltando
de repetir cenas dos livros e ir inventando a sua própria estória.
Os animais têm nome e relações entre eles. Em 2007, com oito
anos, usa a Barbie que tem na caixa e faz “novelas”, são estórias
que se prolongam por muitas semanas. Tem vários personagens e
uma trama. No final da sessão, fala que continua no próximo
capítulo, e sempre retorna, dando continuidade e vida à estória.
Começa a trazer sempre uma gatinha de casa, que tem nome e
tudo, mas que não brinca junto, só a acompanha. Depois essa gata
à substituída por outro bichinho de pelúcia. Anda com ele para to-
dos os lados. Leva na escola escondido na mochila, pois tem medo
que outros vejam e “pague mico” (sic). Na escola quase não tem
amigos, só colegas de classe. Nunca foi na casa de ninguém e não
convida ninguém para a dela. Vai a festinhas, mas o relacionamento
com amigos é difícil. Acho que esses bonecos são os seus amigos.
Em 2008, com nove anos, conversa comigo sobre guardar seus
brinquedos de casa. Vem com o bicho de pelúcia, mas quando entra
na sala de atendimento, joga-o displicentemente no divã e às vezes no
chão. Eu relaciono esse comportamento com o querer e ter medo de
se ver livre dele, dessas coisas de menininha. Ela diz que decidiu
guardá-lo para um dia dar para sua filha. Deixa de trazer os bonecos e passa a trazer uma bolsinha com
batom, quer se ver crescida, fala de pré-adolescência, acho que se
baseia no irmão. Mas, ainda tem que ser concreto. O crescimento está
na bolsa. É essa agora sua companheira. Leva-a para todos os lugares,
até dentro da mochila, na escola. Durante muito tempo ficou com
essa bolsinha para lá e para cá. Conversamos muito sobre isso. Pois à como se ela não existisse sem essa bolsinha. Nessa época, passa a
fazer objetos com biscuit. É muito hábil e criativa, e suas produções
são muito boas. Faz algumas bonecas de biscuit e cria uma família
com elas, interagindo com as da caixa. Elas vão à escola, brincam e é
através dessas bonecas que me conta as aflições e medos que passa na
escola: o de não ser aceita, o de se achar diferente, de não conseguir
chegar nas pessoas, de se sentir preterida etc. Há mais ou menos um ano, voltamos aos livros. Só que agora são
livros de pré-adolescente mesmo. Fala de paixão, de namoro, de
primeiro beijo, de menstruação. Ela menstruou aos 11 anos e foi
tranquilo. Incrível que haja ocorrido logo depois de eu ter tido a ideia
282 Estilos clin., São Paulo, v. 19, n. 2, mai./ago. 2014, 277-293.
de trazer um livro de estória no qual a menina vivia esse dilema.
Então quando ela menstruou, contou-me com toda naturalidade.
Através desses livros me fala de suas dúvidas sobre o futuro. Se
um dia alguém vai querer namorar ela, se ela vai beijar na boca.
Se eu já havia namorado na idade dela. Ou da dúvida de como
os pais começaram a namorar, se o irmão já beijou na boca ou
não. Lemos essas estórias numa posição interessante. Eu sentada
na ponta do divã e ela encostada em mim, mas de costas.
Continua com dificuldade em ter amigos. Esse ano fez amizade
com uma garota que acabou de entrar na escola. Parece que fica
mais fácil se aproximar das crianças que chegam e ainda não
estão enturmadas. Laurinha acabou de fazer treze anos e está
cursando a 7ª série do ensino fundamental.
Atualmente, Laurinha já está com catorze anos e quatro meses.
Ainda lemos livros, mas também conversamos bastante. Tem dois
amigos mais próximos, que apreciam o mesmo tipo de filmes e
seriados que ela e trocam informações, dicas, compartilham
achados. Já acessou a Internet na minha sala para me apresentar
esses filmes e os personagens dos quais comenta. Gosta, mas não é
uma obsessão. Fala muito da família agora e diferencia o
comportamento de cada um na relação com ela. Está no último ano
do ensino fundamental, e muitas vezes me conta que se surpreende
com isso. Outro dia quis desmanchar a caixa, que nunca mais usou,
mas que eu guardava esperando que ela a desmanchasse, e já a havia
convidado para tal em algumas ocasiões oportunas. Ela sempre
deixava para depois. Há mais ou menos um mês desfez a caixa, quis
olhar todos os brinquedos, ler as estórias que havia inventado, e eu
fiquei impressionada de como ela se lembrava de coisas que
fizemos juntas, até mesmo na época em que ainda quase não falava:
da atividade dos desenhos, das fantasias de sereia, das cenas que
fazia com os animais da caixa aos sete anos. Essa sessão foi muito
rica. Enfim eu a vejo crescer a cada dia.
Reflexões sobre o caso clínico
É um desafio muito estimulante comentar este material clínico
excepcional, que nos permite acompanhar os passos, que vacilam,
desconcertam e comovem, de um processo analítico de uma
283
menina com funcionamentos autistas, no decorrer de dez anos.
Quando li esse material, lembrei do famoso relato de St. Exupéry (1943/2000), com suas belas metáfora
sobre os encontros. O autor dirá sobre o Pequeno Príncipe: “Foi difícil entender de onde ele vinha”... “habitava um planeta pouco maior que ele” (St. Exupéry, 1943/2000, pp. 4-5)1. O Pequeno Príncipe, por sua vez, se recorda de uma rosa que um dia lhe disse: “Não tenho medo dos tigres, mas tenho horror às correntes de ar. Você não teria uma redoma para me proteger?” (St. Exúpery, 1943/2000, p.9)2. O analista deve saber utilizar as “redomas” requeridas, como uma função para-excitação materna, tanto para criar telas protetoras da extrema fragilidade, como para saber retirá -las quando for possível enfrentar a solicitação do vínculo e os perigosos “tigres” da vida pulsional.
Estas palavras e imagens transmi- tem algo próximo à atmosfera emo- cional deste encontro, marcado pela capacidade da analista de sustentar o enigma, o desejo de compreender, a disponibilidade, a espera paciente por ser encontrada e ao mesmo tempo a busca ativa por encontrar essa menina desconectada e perdida, de se comuni- car por meios não verbais, próximos ao corpo, e, quando possível, por meio de palavras. A comunicação vai nascendo porque todos esses meios são portadores de emoções e afetos, modulados delicadamente, próximos ao que Laurinha podia ir recebendo e
284. Estilos clin., São Paulo, v. 19, n. 2, mai./ago. 2014, 277-293.
processando em cada encontro. Assistimos durante o
processo, através dos pequenos-grandes, ao nascimento e
crescimento de um sujeito psíquico. Os poucos dados apresentados sobre o ambiente de Laurinha
nos fazem pensar em desajustes importantes entre a menina e seus
pais, ressaltando-se a falta de limites e o peito da mãe que está
presente o tempo todo, impedindo a falta e o desejo. Apesar dessas
falhas, não podemos hoje imaginar que esses quadros tão graves
sejam responsabilidade exclusiva do ambiente. Há consenso sobre a
etiologia plurifatorial, a convergência de fatores constitucionais e
ambientais e a relação de feedback que se estabelece entre eles.
Normalmente os pais não estão preparados para enfrentar a
frustração que produzem as respostas desconcertantes ou a falta de
resposta dessas crianças, e se criam circuitos de relação patológicos
que impedem uma transformação.
Quando assistimos a processos como o de Laurinha, nos
perguntamos o que o encontro analítico oferece que os pais não
podem ou não puderam oferecer. A posição do analista possui
vantagens enquanto uma relação que está mais livre dos ideais e
das feridas narcisistas que sofrem os pais. Ele pode aceitar essa
menina tal como ela é, porque sua função está atravessada pela
castração simbólica. Isso lhe permite oferecer-se como um objeto
disponível, mas não intrusivo. Esse quadro possibilita uma
relação bastante próxima, fortemente corporal e, no entanto,
discriminada, com limites colocados em jogo a cada sessão no
momento da separação. É uma relação que não está habitada pela
culpa e pelos afetos intensos de ódio e frustração não
metabolizados. Os afetos se mostram de forma mais atenuada
que nos pais e podem ser pensados no contexto da transferência. Mas, sobretudo, o que permanece específico da psicanálise
com esses pacientes, é a posição do analista com respeito à
subjetividade. O analista antecipa um lugar de sujeito, do qual
a criança irá se apropriar pouco a pouco.
Escolhemos como foco a etapa inicial do processo, já que ela
marca uma diferença no trabalho analítico em relação a outras
patologias da infância. Nessa etapa, vemos que a relação com o
mundo dos objetos e das sensações exerce maior atração que as
pessoas. Também é muito característica a etapa na qual a relação
corpo a corpo é o eixo da experiência analítica. A temática do
peculiar funcionamento sensorial e a importância do corpo no
285
trabalho com esses pacientes me
interessa particularmente. Essa
escolha supõe um recorte importante
e deixa de lado muitos aspectos
interessantes a serem pensados e
conceitualizados. Todos os autores psicanalíticos que
têm abordado o tema do autismo
descrevem essas crianças como imersas
em um mundo sensorial, e têm
desenvolvido hipóteses a respeito. Para
contextualizar alguns comentários,
queremos recordar e relacionar dois
aspectos da teoria freudiana: a
importância do perceptivo na
constituição do psiquismo e a
conceitualização dos afetos como sinais.
Para Freud, as sensações que proveem
do mundo exterior estão na origem da
consciência, dos processos mnésicos e
da representação. Em 1915, em “O
inconsciente” (Freud, 1982a), ele se
refere ao afeto como um processo de
descarga cujas manifestações finais são
percebidas como sensações com
qualidades de prazer ou desprazer. Ou
seja, Freud estabelece uma relação entre
as sensações e os afetos, fixada no
corpo, mesmo que se manifestando
psiquicamente. Em 1923, o “Eu e o Id”
(Freud, 1982b) nos diz que o Eu deriva
de sensações corporais, principalmente
as que partem da superfície do corpo, e
estabelece sua conhecida concepção de
que o Eu é, antes de tudo, um Eu
corporal.
Em 1926, em “Inibição, sintoma
e angústia” (Freud, 1982c), Freud
postula os afetos como sinais para o
Eu. A expansão deste modelo enfatiza
a função reguladora que o afeto cum-
pre no aparelho psíquico. Entretanto,
em uma perspectiva intersubjetiva, os
afetos são sinais não apenas para o
Eu, mas também para o outro. São os
sinais mais importantes na relação
com o outro. É a emoção, o afeto
experimentado, o que outorga sentido à experiência sensorial. Porém, não
é concebível emoção nem afeto fora
da relação e da adjudicação de
sentido com o outro.
Também queremos destacar o
papel que tem o desejo materno e a
sexualidade em interjogo com a sen-
sorialidade inicial. A zona sensorial se
transformará em zona erógena a partir
do encontro com a mãe e seu desejo.
Diz Piera Aulagnier: “É necessário
que a mãe experimente um prazer
psíquico, com seus componentes ero-
tizados, para que o infans possa sentir
plenamente sua própria experiência de
prazer” (Aulagnier, 1991, p.160)3 e a
princípio “o objeto apenas existe
psiquicamente por seu mero poder de
modificar a resposta sensorial (e,
consequentemente, somática) e, por
essa via, de atuar sobre a experiência
psíquica” (Aulagnier, 1991, p.141)4. A
criança autista impõe ao objeto uma
categoria onde o poder sensorial é o
que o torna existente (Aulagnier,
p.147). Falta construir um corpo
erógeno, unificado, através das expe-
riências de prazer com o objeto. Antes de expor nossas hipóteses,
queremos salientar que a Psicanálise
conta com desenvolvimentos teórico-
clínicos bastante ricos sobre o autis-
mo. Tal como acontece com muitas
286. Estilos clin., São Paulo, v. 19, n. 2, mai./ago. 2014, 277-293.
de nossas teorias, devemos distinguir quais são as de índole especulativa e considerá-las como hipóteses parti- culares e não gerais. Um dos riscos é reproduzir as teorias sobre a cons-
tituição psíquica para se realizar uma
leitura do autismo como “o negativo”
daquilo que deveria ter acontecido,
com tendência a uma etiologia ex-
clusivamente psicógena. É fato que
encontramos uma série de “ausên-
cias” essenciais e padrões atípicos em
relação ao desenvolvimento normal,
mas encontramos fundamentalmente
a ausência de uma subjetividade. A
antecipação da ideia de um sujeito na
mente do analista é condição de
humanização, e não se refere a uma
preconcepção teórica, mas requere
que o analista se coloque em jogo de
corpo e alma, a partir de sua própria
subjetividade. Ao mesmo tempo, nos parece
fundamental para contrastar as teorias
existentes com a clínica, e para desen-
volver as próprias, prestar atenção no
que surge no campo das investigações
atuais, realizadas com o rigor requerido
e considerando a dimensão subjetiva, a
perspectiva interdisciplinar, assim como
a integração dos aspectos psicanalíticos
e neurobiológicos. Na última década,
vêm sendo realizadas investigações
relativas às falhas constitucionais no
processamento sensorial das crianças
com transtornos do espectro autista. É
o caso de Stanley Greenspan, psiquiatra
e psicanalista de destaque, que apresenta
uma hipótese interessante: a de que,
287
nesses transtornos, se produz um déficit constitucional na
conexão do afeto que acompanha as experiências sensoriais e
motoras, dando lugar a modalidades peculiares de reação e
processamento dos estímulos (Greenspan, 2001). No comportamento de Laurinha se observa uma “hiporreação”
aos estímulos, o que produz uma busca de sensações, no meu modo
de ver, destinada a ter a experiência mais básica de existir como
“corpo que sente”. A “hiper-reação”, pelo contrário, faz com que se
evite os estímulos que se mostram intoleravelmente excitantes.
Frequentemente as duas reações ocorrem de maneira combinada: o
“sentir” não aparece ou transborda. Acreditamos que, efetivamente, o
que falha nessas experiências sensoriais é a ligação com as emoções e
afetos que normalmente as acompanham, dificultando processos de
inscrição psíquica. Estes afetos só podem ser gerados e regulados no
encontro com o outro. Se esses encontros são frustrados, pelas
limitações da criança e pelas respostas do ambiente, não se produz a
significação afetiva da experiência sensório-motora precoce, que é o
primeiro elo da simbolização. Na relação com os objetos, observamos claramente em
Laurinha a importância do tocar, como uma forma de dar
existência aos objetos e a si mesma. Mesmo que aconteça com os
objetos inanimados, o contato com o outro é ameaçador, por
conta da perda de controle conferida pela intensidade das
sensações que os afetos trazem. O outro é portador de estímulos
cuja excitação a criança autista não pode processar e modular. Na sua primeira interação com os objetos do consultório, se
limita a atirá-los e vê-los cair, enquanto grita. Parece uma atividade
pré-simbólica, na qual atua sua relação com o mundo. A analista
nomeia alguns significados possíveis, instaurando a violência primária
necessária quando há outro portador de sentidos. Equivale à resposta
de uma mãe a um pranto aflitivo: “o que está acontecendo, meu bebê
está assustado? Estou aqui para que você não se sinta sozinho”. A
queda e o susto são significantes que poderão logo ser resinificados,
mas as emoções transmitidas pela analista se expressam e deixam
marcas no aqui e agora, com as qualidades de sua presença sensorial:
voz, movimentos, afetos, que Laurinha não possui. Trata-se de uma
função de espelhamento que se vai instalando em um espaço
potencial, disponível para ser usada. A função de espelhamento é
desenvolvida por distintas concepções teóricas, todas elas destacando
a importância do olhar do outro e o reflexo de “si mesmo”
288. Estilos clin., São Paulo, v. 19, n. 2, mai./ago. 2014, 277-293.
oferecido à criança, tanto em relação a
seus estados afetivos quanto a sua
imagem corporal, promovendo um
processo integrador do psique-soma,
assim como processos identifica-
tórios. Acreditamos que aí habita a
ferramenta fundamental da análise
nessa etapa: a utilização da própria
percepção e afetividade colocada a
serviço de captar signos mínimos e
convertê-los em sinais. A modalidade
da presença, a forma de estar, é a base
da qual proveem as intervenções do
analista: seus pensamentos, seus atos,
suas palavras para esse paciente e não
para outro. O inconsciente que está
em jogo no momento é o do próprio
analista5. Enquanto a criança normal repete
suas brincadeiras, mas as vai
transformando porque o outro é aceito
desde o início como um agente
transformador, o ato de repetir de um
modo fixo e estereotipado uma
experiência mostra a enorme
dificuldade de transformação da mesma,
porque não se introduz a diferença por
meio da presença do outro. No início,
Laurinha mostra atividades
autocentradas: assim como toca, lança
objetos, se escuta gritar, fala e ri para si
mesma, olha o movimento rítmico do
ventilador. Nesse contexto, nos chama
a atenção o uso do “não”, que Laurinha
utiliza de forma apropriada para
expressar repúdio à proximidade da
analista. No desenvolvimento normal, a
criança registra o “não” a partir da
frustração do objeto, mas sua utilização
na linguagem supõe uma
comunicação à distância. Surpreende
seu uso em Laurinha, se pensamos
nos pais com dificuldades para impor
limites, que representa, talvez, um
embrião de si mesmo que pode se
enunciar a partir da negação. Este tipo
de signo mais evoluído, em contraste
com um desenvolvimento global
perturbado, é frequente nessas
crianças e abre uma brecha de
esperança a respeito do prognostico. As atividades de Laurinha com a
água são parte de sua busca de
sensações prazerosas muito
primárias, que evocam o contexto
intrauterino. É interessante a consciência da
existência do outro quando ela não
pode solucionar algo por si só. Mesmo
sendo um uso instrumental do outro,
também há uma noção de que a ação do
outro pode promover uma mudança
desejada. As intervenções da analista
são de formulação simples, como
devem ser, e ao mesmo tempo são
bastante finas e de efeito amplificador,
ao relacionar as marcas dos pés nas
superfícies ou as mãos molhadas, assim
como as marcas água em partes do
corpo. São intervenções que condensam
muitos níveis: a relação com o próprio
corpo e seu movimento com a
exterioridade, os efeitos do elemento
externo no próprio corpo, a
diferenciação “eu e não-eu”, a
causalidade. As marcas visíveis
estendem uma ponte até as marcas
psíquicas, mediadas pela palavra e o
afeto do outro, movimentos fundantes
da simbolização. Nesse momento de
abertura dos sentidos até as emoções, a
analista
289
incorpora oportunamente a musicalidade da voz, o prazer
compartilhado e, desta forma, vemos emergir em Laurinha o
interesse pela analista, o início de uma comunicação de ida e volta.
Temos então, aos seis meses de tratamento, possivelmente uma bebê
de seis meses no consultório, que busca morder e bater, podendo
esboçar o amor-ódio estruturante, a angústia da separação. A etapa em que se cobre com a manta nos evoca um processo
relativo à necessidade de criar uma envoltura corporal própria,
mas a partir do contato corporal com a analista. Recriação de uma
cena intrauterina ou de recém-nascida, buscando os referentes da
respiração e o ritmo cardíaco da analista, identificadores muito
primários do objeto materno, que produzem um efeito calmante.
Lembremos que Winnicott denomina verdadeiro self a aquele que
“surge dos tecidos e das funções corporais, inclusive da ação do
coração e da respiração” (Winnicott, 1960)6. Assim mesmo, considerando a contribuição de Winnicott,
podemos dizer que as sensações corporais se mostram afetadas pelas
qualidades do holding e do handling que é capaz de prover a figura
materna. Nesse caso, a analista é a que está conferindo novas
qualidades ao contato físico a partir de sua modalidade de apoio e
contenção. Laurinha começa a se referir à analista como mamãe e
papai, se dando conta do reconhecimento dessas funções a partir de
suas experiências com ela. Ao mesmo tempo, vai podendo esboçar
um jogo em que aparecem qualidades de prazer-desprazer. Junto com
todos esses avanços, se intercalam momento nos quais Laurinha
retoma seus funcionamentos autistas. São momento de desesperança
para a analista, de espera paciente, de sobrevivência. Para Laurinha é
um ir e vir até o objeto, buscando o contato e se afastando, armando
a ausência em presença do outro. É muito comovente todo o processo de brincadeiras que se
desdobram sobre o corpo da analista e entre suas pernas, ou dentro
de seus sapatos. É comovente porque dá conta de experiências novas
e fundantes do psiquismo, e da peculiar convergência de processos
pertencentes a distintos momentos do desenvolvimento afetivo.
Laurinha brinca com os brinquedos, em movimentos progressivos de
simbolização, como um bebê que brinca com o corpo da mãe
enquanto é amamentado, carregado no colo, banhado etc. Ou seja,
aqui se juntam de modo singular os primeiros objetos a serem
simbolizados pelo bebê, segundo Klein, partes do próprio corpo e do
corpo materno, como suporte real do jogo simbólico com outros
290 Estilos clin., São Paulo, v. 19, n. 2, mai./ago. 2014, 277-293.
objetos. É como se Laurinha condensasse nesse jogo processos do começo
da infância e outros mais evoluídos. Certamente com movimentos
progressivos e regressivos entre a equação simbólica e o símbolo, segundo
Segal, ou entre a chamada simbolização primária e secundária, segundo
Roussillon7. Não há distância do objeto primário, é necessário que seu corpo
esteja presente como um cenário no qual ao mesmo tempo “brinca” com
outros objetos que passam a ser símbolos.
Como reflexão final, diremos que o processo de Laurinha mostra que
para a criação de símbolos é necessário um vínculo, são necessários dois
elementos que possam estar ausentes um do outro e logo presentes, para que
se possa unir as partes e co-criar um significado. Esta alternância com um
mesmo objeto, mais a consciência da alternância, permite que o objeto seja o
mesmo quando está presente e quando está ausente. A constância do objeto
na mente é condição e efeito de simbolização. Isso acontece se ele é fruto de
uma experiência co-criada, se as vivências são compartilhadas e significativas
para ambos. A simbolização tem lugar em um vínculo em que o outro seja
fonte de emoções e afetos variados, prazerosos e penosos, com matizes e
contrastes, mas onde predomine o prazer da presença, e que possa oferecer
uma continuidade externa e interna para sustentar esses processos.
Os funcionamentos autistas podem se transformar em um encontro como o
da analista com Laurinha, se aproximando com passos muito leves, partindo da
sintonia dos corpos, de suas qualidades sensoriais, da comunicação não verbal,
acompanhada da realidade dos sentimentos entre ambas. Para terminar, retomaremos um diálogo entre o Pequeno Príncipe e a
raposa. A raposa pedirá ao Pequeno Príncipe que a domestique, para que ela
possa brincar com ele: “Você deve ter muita paciência. No começo você se
sentará um pouco longe de mim, assim, no chão; eu te olharei com o canto
do olho e você não me dirá nada. A linguagem é fonte de maus entendidos.
Mas a cada dia você poderá se sentar um pouco mais perto” (St. Exupéry,
1943/2000, p. 23)8.
Resumen
REFLEXIONES PSICOANALÍTICAS SOBRE UN CASO CON TRASTORNO DE
ESPEC-TRO AUTISTA (TEA) A partir del material clínico presentado por la analista de una niña con TEA, otra analista realiza reflexiones
centradas en la primera etapa del tratamiento, centrada en las sensaciones y la relación cuerpo a cuerpo. Dado que es el
afecto experimentado y el encuentro con el otro y su deseo lo que otorga sentido a la experiencia sensorial, será
herramienta fundamental del análisis la propia percepción y afectividad al servicio de captar mínimos signos y
convertirlos en señales. Se analizan las formas de intervención y la modalidad interpretativa de la analista, habi-
litando experiencias nuevas y fundantes del psiquismo, donde comienzan a producirse movimientos de simbolización. Palabras clave: autismo; caso clínico; técnica psicoanalítica en niños; afecto; simbolización.
291
Abstract
PSYCHOANALITICAL REFLECTIONS
ON A CASE OF AUTISM SPECTRUM
DISORDER (ASD)
Some reflections are made by an analyst from the clinical
material presented by the analyst for a girl with ASD,
focusing on the first stage of treatment, which is centered in
sensations and body-to-body interaction. It is the ex-
perienced affect and the encounter with the other one and
his or her desire what brings meaning to the sensorial
experience. The fundamental tool of psychoanalysis in this
stage will be the analyst’s perception and affect, at the
service of perceiving minimal signs and transform them into
signals. The author discusses the form of intervention and
the interpretative mode of the analyst, which enables new
and building psychic experiences through which
symbolization movements start to occur.
Index terms: autism; clinical case; child
psychonal-ysis technique; affect; symbolization.
REFERÊNCIAS
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origen de una historia. In L. Hornstein et al.
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yecto identificatorio. Buenos Aires: Paidós. Freud, S. (1982a). Lo inconsciente. In S.
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Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho
original publicado em 1926) Greenspan, S. I. (2001). The affect diathesis
hypothesis. The role of emotions in the core
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intelligence and social skills. Journal of De-
velopment and Learning Disorder, 5, 1- 44.
Rousillon, R. (1995). Agonie, clivage e
symboli-sation (Collection Le fait
psychanalytique). Paris: PUF. St. Exupéry A. (2000). El principito. Disponí-
vel em http://www.vicentellop.com/TEX-
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original publicado em 1943) Winnicott, D. (1960). La distorsión del yo
en términos del self verdadero y falso.
In D. W. Winnicott,w Los procesos de
maduración y el ambiente facilitador
(pp. 182-189). Buenos Aires: Paidós.
NOTAS
1. N. do T.: “Me costó mucho comprender
de dónde venía”…“habitaba un planeta
apenas más grande que él” 2. N. do T.: “no temo a los tigres, pero
tengo miedo a las corrientes de aire ¿No
tendrías un biombo?” 3. N. do T.: “Es necesario que la madre experi-
mente un placer psíquico, con sus componen-tes
erotizados, para que el infans pueda sentir
plenamente su propia experiencia de placer.” 4. N. do T.: “el objeto sólo existe psíquicamen-
te por su mero poder de modificar la respuesta
sensorial (y por lo tanto somática) y por esta vía,
de actuar sobre la experiencia psíquica.” 5. Nos referimos ao inconsciente reprimido. O
autismo coloca diante de nós um problema
metapsicológico relativo ao estatuto do psíquico
e das marcas ou inscrições. Nos processos
analíticos desses pacientes, se constrói um
psiquismo, algo prévio à promoção de processos
de repressão estruturante, fenômeno frequente
na análise de crianças. Na condição de hipótese,
pensamos que a referida construção se apoia no
encontro com um outro que outorgue
significado aos signos, às expressões somáticas
relativas a marcas que tenham conservado um
caráter predominantemente sensorial por falhas
no processo de ligadura com o afeto (ausência
de prazer ou excesso de dor no encontro com o
objeto). Se trata de um processo
292 Estilos clin., São Paulo, v. 19, n. 2, mai./ago. 2014, 277-293.
abortado à espera de uma experiência com significação afetiva que possibilite sua integração. 6. N. do T.: “surge de los tejidos y las funciones corporales, incluso de la acción del corazón y de la respiración.” 7. Roussillon propõe uma simbolização primaria que “religa a primeira inscrição... da matéria primeira... à representação de palavra... e
a inscreve no aparelho da linguagem” (1999, p. 218)9. Isso supõe integrar a linguagem verbal, a linguagem do afeto, a linguagem do
corpo e do ato. 8. N. do T.: “Debes tener mucha paciencia. Te sentarás al principio un poco lejos de mí, así, en el suelo; yo te miraré con el
rabillo del ojo y tu no me dirás nada. El lenguaje es fuente de malos entendidos. Pero cada día podrás sentarte un poco más
cerca.” 9. N. do T.: “religa la primera inscripción…de la materia primera…a la representación de cosa… y una simbolización secundaria
que religa una representación de cosa a una representación de palabra…y la inscribe en el aparato de lenguaje.”
[email protected] Almirante Harwood, 6144
11500 – Montevideo – Uruguay.
Rua Artur de Azevedo, 243 05451-000 – São Paulo – SP – Brasil.
Recebido em setembro/2013.
Aceito em março/2014. 293