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erica-ferreira
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Immanuel Kant
Traduo de Brbara Kristensen eEstudo introdutrio de Jom Evans Pim
Instituto Galego de Estudos deSegurana Internacional e da Paz
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ENSAIOS SOBRE PAZ E CONFLITOSVOL. V
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Traduo de Brbara Kristensen eEstudo introdutrio de Jom Evans Pim
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FICHA CATALOGRFICA
NDICES PARA CATLAGO SISTEMTICO
1. Relaes morais entre estados : tica internacional 172.4
2. Sociologia dos conflitos : Resoluo de conflitos 316.485.63. Sociologia da guerra : Causas da guerra 355.013
Instituto Galego de Estudos de Segurana Internacional e da Paz, 2006
Reservados todos os direitos de acordo com a legislao vigente
Primeira edio: Setembro, 2006
Direco da coleco: Jom Evans Pim e scar Crespo Argibay
Desenho, projecto grfico e digitao: Jom Evans Pim
Traduo: Brbara Kristensen
Capa: Desenho de Castelao "Non lle poades chatas obra",lbum Ns (1920)
Edita: Instituto Galego de Estudos de Segurana Internacional e da Paz (IGESIP)
Rua Rinlo 64a, Rianxo 15920, Galiza
Internet: http://www.igesip.org | [email protected]
Impresso e acabamento: Trculo Artes Grficas S.A.
Papel: Offset, 80g/m2
Dep. Legal C-2016/2006
ISBN 84-690-0279-1
Este livro foi impresso em papel
reciclado em Setembro de 2006INDSTRIA GALEGA
Para a paz perptua / Immanuel Kant. Estudo introdutrio / Jom Evans Pim. Traduo /Brbara Kristensen. Rianxo : Instituto Galego de Estudos de Segurana Internacional e da Paz,
2006. (Ensaios sobre Paz e Conflitos; Vol. V). D. L. C-2016/2006. ISBN 84-690-0279-11. Paz. 2. Resoluo de conflitos. 3. Causas da guerra I. Kant, Immanuel; 1724-1804. II. Evans
Pim, Jom; 1983-. III. Kristensen, Brbara; 1984-. IV. Instituto Galego de Estudos de SeguranaInternacional e da Paz, ed. V. Ttulo. VI. Srie.
CDU-172.4 : 316.485.6 : 355.013
Com a colaborao doIlmo. Concello de Rianxo
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ESTUDO INTRODUTRIOPAZ E CONFLITO NO PENSAMENTO KANTIANO
Jom Evans Pim
Antecedentes da paz perptua kantiana......................................................................................................................14Zum ewigen Frieden. Uma aproximao analtica ....................................................................................................21Consideraes finais .......................................................................................................................................................46Bibliografia .......................................................................................................................................................................49
PARA A PAZ PERPTUAImmanuel Kant
Seco Primeira................................................................................................................................................................57Seco Segunda................................................................................................................................................................65Primeiro Artigo Definitivo para a Paz Perptua ........................................................................................................67Segundo Artigo Definitivo para a Paz Perptua ........................................................................................................73Terceiro Artigo Definitivo para a Paz Perptua .........................................................................................................79Suplemento Primeiro......................................................................................................................................................83Suplemento Segundo......................................................................................................................................................93Apndice I.........................................................................................................................................................................95Apndice II .....................................................................................................................................................................109
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Paz e conflito no pensamento kantianouma aproximao efmera para a paz perptua
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tualmente, as Naes Unidas esto formadas por mais de 150
Estados que, por sua vez, acolhem ou reprimem, segundo o caso
e a tica, mais de 1500 comunidades nacionais ou tnicas. Poderamos dizer
que o estado-nao est em crise, ou assim o consideram alguns autores.
Duzentos anos depois da Revoluo Francesa, disputavam-se no mundo
quase uma centena de conflitos armados, dos quais apenas sete tinham ca-rter interestatal, ou seja, correspondiam-se com os que Kant considerava
modelo no ensaio que aqui se aborda (Duque, 1996:213). Parece ser tambm
que, na Era dos Eixos do Mal, os moralistas polticos (der politische Moralist),
que o de Knigsberg condenava por forjar morais acomodativas favorveis
aos governantes, primam ante os polticos morais (der moralische Politiker),
extraviados nos confins do tempo.
Apesar desta crise na que muitos situam as instituies internacionais
em atual encruzilhada (tratado consitucional europeu, conselho de segu-
rana das Naes Unidas, Agncia Atmica, etc.), ou precisamente por isto,
faz-se necessrio retornar s fontes de onde historicamente beberam ditos
projetos para, em vez de conceber o ideal da paz perptua como horizonte
(essa linha imaginria que separa cu e terra, afastando-se mais e mais
quando se se aproxima dele), considerar o entendimento entre povos como,
AA.
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em palavras de Flix Duque (1996:197), um advento, algo que viene a no-
sotros en cuanto promesa de un futuro ya legible en ciertas huellas del pre-
sente. desta forma que podemos entender o ensaio kantiano, Zum ewigen
Frieden: como um mtodo, uma srie de procedimentos (polmicos, desde
logo) para alcanar uma meta determinada, isto , a paz, uma paz que se
aproxima, em vez de afastar-se.
E assim se emarca, de fato, na Populrphilosophie germnica de finais do
sculo XVIII (Soromenho-Marques, 1906:67), sob uma aparente (e atraente)
simplicidade de leitura que esconde, no obstante, os mistrios da sua
riqueza filosfica (pois como ensaio filosfico, apresenta-se em sua primeira
pgina) sobre a que sucessivas geraes de intrpretes divagaram...
Ainda tendo em conta a sua notvel atualidade, ou precisamente por
isso, esta obra suscitou numerosos debates e discusses. At o ttulo da obra
em questo, ou no mnimo a sua traduo, resulta problemtico. Certa-
mente, Zum ewigen Frieden poderia ser interpretado como Sobre a paz perptua
(Vom ewigen Frieden), tal e como aparece em vrias edies, mas tambm
como Contribuies ao problema da paz perptua (Beitrge zum ewigen Frieden)
ou, inclusive, como reza o fnebre cartaz da taverna ao que faz referncia em
sua obra, Para a paz perptua, algo, como veremos, conceitualmente inteligvel
e, portanto, opo pela que se escolheu nesta edio. Alguns autores (Duque,
1996; Pereda, 1996; Rodrguez Aramayo, 1996) defendem que o mais apro-priado aos propsitos do de Knisberg reside em estar-se no caminho (un-
terwegs, zum) ao inalcanvel, encerrando, assim, ideal y escatolgicamente
la doctrina del derecho (Duque, 1996:191-2): Para a paz perpetua.
Ainda assim, tendo, de certa forma, perptuo o sentido de constante,
contnuo, no-perecvel, imortal, poderemos aplic-la aos processos da
vida (em contraposio aos processos de morte: a paz perptua dos cemit-
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rios), por natureza temporais e perecveis? (Pereda, 1996:87). Como o
prprio Kant assinalava em seu Rechtslehre (apud, id., ibid.), a paz eterna (a
ltima meta de todo Direito de Gentes) [] desde logo uma idia
irrealizvel, pois esta paz pleonstica seria um conceito de um estado
perfeito (Vollkommenheit; sua Idade de Ouro) ao que podemos (e devemos)
aproximar-nos, ainda que no seja alcanado por completo.
Os contedos expostos, portanto, poderiam apenas ter valor
(propedutico, ao menos) no somente se todos os estados existentes os
assumissem sem reservas, mas tambm os estados futuros, entrando j
definitivamente na poltica-fico. J que este panorama se apresenta
inverossmil, Kant aponta ao fim final (Endzweck) da Criao como elemento
impulsor, secreto, da paz perptua.
Tal impulso no deixa de estar mediado pelas prprias guerras que, em
um modelo de progresso espiral, elevam-nos a uma fase mais prxima ao
ideal da paz perptua. Da (si vis pacem para bellum) o apoio kantiano a uma
guerra para acabar com todas as guerras, contra oAncient Rgime que, j no
sculo XX, seria retomado por Fukuyama (1993), Ernst Jnger e inclusive
pela Alemanha nacional-socialista com seus mil anos de paz: A guerra
tem que ser vista como modus ius suum persequendi (pacem parare bello), e
haver de ser conduzida at que seja possvel uma confiana mtua no [es-
tado] de paz, como explicava Kant em suas Reflexes (apud, id.:196).
A atualidade dos utopemas kantianos, como se percebe, est fora de
toda dvida, talvez por este ucronismo to caracterstico que trasladava sua
execuo a um futuro, de certa forma assinttico a nosso tempo, a um
mommentum cronotpico no-determinado. Desde logo, muito do que havia
profetizado Kant materializou-se, talvez no como realidade palpvel e
absoluta, mas como simulacro. De certo, tivemos uma Sociedade de Naes,
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mal logrado organismo que trataremos em pginas sucessivas, e hoje as
Naes Unidas, o Tribunal Penal Internacional ou a Unio Europia (certa-
mente um dos mais avanados projetos de integrao regional dos que esto
sendo executado na atualidade) entre outras instituies multinacionais com
maior ou menor arraigo.
Talvez uma dose do inusitado sarcasmo kantiano de Zum ewigen
Frieden, que determina a paz do cemitrio como a nica paz eterna acess-
vel queles polticos incapazes de excluir a guerra das suas andanas seja o
ingrediente necessrio para alcanar caminhos novos e imaginativos, como o
seu que, mesmo que no solucione os problemas de hoje, sem dvida que
nos ajuda a encaminhar-nos trajetria mais correta e apropriada.
Antecedentes da paz perptua kantiana
Apesar de encontrarmos as principais aportaes de Kant doutrina
do Direito de Gentes na sua Metafsica dos Costumes (que enfatiza a sua Filo-sofia do Direito e do Estado), Zum ewigen Frieden conforma uma aproxi-
mao original, ao romper com a escolstica da guerra justa (iustum bellum),
que apontava apenas as condies que a conflagrao deveria cumprir para
ser considerada como legtima. No de estranhar que em obras como a de
Grocio (De iure belli ac pacis, de 1625) se faa escassa meno paz, entendida
em seu aspecto contingente como tratado de paz, frente prpria guerra,que no s aparece antes, mas que ocupa a maior parte do ensaio (Truyol,
1996:18). De fato, sendo a alternncia guerra-e-paz entendida como natural,
no de estranhar que eventos como a Paz religiosa de Augsburgo (1555)
entre catlicos e luteranos ou a Paz de Westfalia no tenham sido entendidos
mais alm de um simples impulso da mensagem crist de paz e salvao,
detrs da qual (recordemos que j se havia publicado o Dellarte della guerra
de Maquiavel em 1520) repousava o sonho de alguns monarcas por ressuci-
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tar o Sacro Imprio Germano (Roldn, 1996:129) sob o amparo da mxima
augustiniana: no buscar a paz para fazer a guerra, mas a guerra para con-
quistar a paz.
Pela sua parte, o Direito de Gentes do jusnaturalismo racionalista, em
pleno auge na Alemanha dos sculos XVII e XVIII, representado por pensa-
dores como Samuel Pufendorf, Christian Thomasius ou Christian Wolff,
propugnava uma secularizao do Direito Natural acentuando a separao
entre Razo e Direito, por um lado, e Revelao e Teologia Moral por outro
(Id., ibid.). Kant entronca, por este motivo, com o ideal de paz humanista e
ilustrado, representado em sua dimenso tica por Erasmo de Rotterdam
(com seu ensaio Quaerela pacis de 1517), Luis Vives (com De concordia et dis-
cordia in humano gerere e De pacificatione de 1529) ou Comenius, no marco dos
quais, com anterioridade, haviam se promovido diversos projetos de paz
perptua e organizao internacional (de alcance universal ou europeu), que
veremos a seguir.
Entre estes projetos, encontramos propostas de estadistas como o rei
Jorge de Podyebrad de Bohemia (inspirado por Antoine Marini) e Sully,
ministro de Henrique IV de Frana; arbitristas como o Abbde Saint-Pierre,
Pierre Dubois ou Emeric Cruc; religiosos como Raimundo Lulio e William
Penn ou pensadores como Rousseau, Leibniz ou Dante (Id., ibid.), ainda que
se faa patente a ausncia de juristas que, como dizamos, aceitavam a gue-rra como instituio incorporada ao Direito de Gentes, sempre que seguisse
determinados preceitos de forma e de fundo. E precisamente em sua
aproximao desde o Direito, e nele fundamentada, que radica a originali-
dade kantiana, especialmente ao estar enquadrada em (e revertendo as con-
cepes de) um tempo no que cunda la opinin de que la guerra y la paz
haban de alternarse, habida cuenta de que el espritu mercantil corrompa
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moralmente a los pueblos y la guerra resultaba imprescindible para el resta-
blecimiento de las virtudes (Brandt, 1996:31). De qualquer forma, e ainda
que o de Knigsberg no conhecesse diretamente a existncia de todos eles,
conveniente examinar brevemente seus principais antecedentes no plano
terico.
Sully, sob os auspcios de Henrique IV, explica em suasMemrias (1638-
1662) um projeto de Unio Europia que inclua um Conselho Geral, Con-
selhos Provinciais, um exrcito permanente e a abolio de aduanas. O obje-
tivo terico radicava na unio de esforos frente o inimigo islmico, ainda
que igual (ou mais) importncia tivessem outras metas, como conseguir um
equilbrio europeu frente preponderncia da Casa de ustria ou o equil-
brio entre catlicos, luteranos e calvinistas (Id., ibid.). De natureza similar o
projeto de Penn, Ensaio para chegar paz presente e futura de Europa (1693),
habitualmente considerado precursor da atual Unio Europia, que estabe-
lece uma Dieta ou Parlamento, na que eventuamente poderiam participarRssia e Turquia (Id., ibid.:20).
J entre os claros antecessores de Zum ewigen Frieden encontramos Um
plano para uma paz universal e perptua (1789) de Bentham, um projeto de claro
alcance universal coerente com uma filosofia realista e pragmtica (conde-
nando a diplomacia secreta e instando o desarmamento, a publicidade das
negociaes e o abandono das colnias) e o Abade de Saint-Pierre, no quenos deteremos um pouco mais. Tampouco poderemos deixar de mencionar,
ainda que seu calado tenha sido escasso, Ernest de Hesse-Rheinfels ou Eme-
ric Cruc e seu Le nouveau Cyne ou Discours des ocasions et moyens dtablir
une paix gnrale et la libert du commerce par tout le monde (1623) que, ainda
que desconhecido por Saint-Pierre, constitui um claro antecedente de seu
pacifismo desta. Assim, por exemplo, afirmava no seu prlogo:
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Il ne faut point dire que les propositions qui se font de la paix sontchimriques et mal fondes. Chacun jugera de ce livre selon son plaisir.Jespre quil trouvera place dans le cabinet des grandes, et que les hommes
judicieux en feront tat, malgr lennui (apud. Roldn, 1996:141).
A obra de Charles Irene Castel e Sant-Pierre, oAbb, foi publicada em
trs volumes, lanando-se os dois primeiros sob o ttulo de Projet pour rendre
la paix perptuelle en Europe (1713) em Utrecht e o teceiro, em 1717, sob o
ttulo Projet de Trait pour rendre la paix perptuelle entre les souveraines
chrtiens. Ainda assim, pela extenso (719 pginas) e limitada circulao, a
maioria dos autores (como Kant) tiveram acesso criao apenas atravs do
Jugement sur le projet de paix perptuelle de labb de Saint Pierre lanado por
Rosseau em 1761 e 1782 respectivamente. Conhecendo estas vicissitudes, que
dificultaram notavelmente seu conhecimento na poca, analisemos suma-
riamente o contedo da mesma.
Os prprios ttulo e prefcio, que fazem referncia explcita a estabele-
cer a paz perptua entre todos os estados cristos, apresenta, como antes
mencionanos, a unidade religiosa como base da unidade poltica e sua paz
conseguinte (permanecendo, portanto, em latitudes lonjanas do cosmopoli-
tismo kantiano, no que apenas h uma religio verdadeira para todos os
homens e todos os povos, que no outra que a razo moral, cujo interesse
prioritrio consiste na defesa da liberdade e dignidade do ser humano). Sua
proposta radica em mostrar silogisticamente aos monarcas europeus asexcelncias de estabelecer-se uma Dieta como via para estabelecer a paz, a
segurana e o equilbrio no continente. Redata, para isso, uma Carta da Unio
Europia (union europene) enumerando uma srie de princpios como os de
no-interferncia nos assuntos internos dos Estados membros (La socit
europene ne se mlera point du gouvernment de chaque Etat, si ce nest pour en
conserver la forme fondamentale, et pour donner un prompt et suffisant secours aux
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Princes dans les Monarchies, et aux Magistrats dans les Rpubliques, contre les
Sditieux et les Rbelles), que Kant recolher como 5 artigo preliminar, assim
como a proibio de cesses, compras ou anexaes de uns Estados por
outros (o 2 art. Preliminar de Zum ewigen Frieden).
A Dieta, formada por um representante de cada pas membro (a saber,
Frana, Espanha, Inglaterra, Holanda, Saboya, Portugal, Baviera, Veneza,
Gnova, Florena, Sua, Lorena, Sucia, Dinamarca, Polnia, Moscou, us-
tria, Curlncia, Prssia, Sajonia, Palatinado, Hannover, alm dos arcebispos
eleitores e associados), estaria dotada de poderes legislativos e judiciais,
assim como de um exrcito de 600 mil homens (24 mil por cada membro)
para assegurar a paz onde os acordos no fossem respeitados, mediante um
sistema de arbitragem perptua (arbitrage perptue) de segurana (Soro-
menho-Marques, 1996:73; Roldn, 1996:135-136). Como claro, trata-se de
uma proposta inovadora. Tanto assim que foi imediatamente desprezada
por seus coetneos, talvez no tanto pelo carter utpico, mas pela suaadiantada crtica ao absolutismo (que fez explcita em seu Polysynoide de
1718) e da poltica megalomanaca de guerras de conquista de Lus XIV.
Ainda assim, Saint-Pierre no desistiu de tentar difundir e ganhar
apoios ao seu projeto, para o que recorreu a pensadores como Leibniz, bus-
cando a sua aprovao. Sua contribuio crtica no deixa de ser importante,
pois, ainda que saliente sua falta de realismo poltico e ingenuidade, a levaseriamente. Assim, insiste na necessidade de no ignorar o consubstancial
do conflito natureza humana, que se enfrenta pela incompatibilidade de
seus interesses, tal e como logo recolheram Kant e Hobbes. Ser precisa-
mente do Codex Iuris Gentium (1693) leibniziano de onde Kant recolhe a cle-
bre passagem do cartaz tavernrio Pax perpetua com seu cemitrio abaixo
(Id., ibid.:139). Entre outras crticas, aponta a pouca idoneidade de recorrer ao
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modelo alemo para ilustrar uma federao europia, assim como a dificul-
dade de estabelecer garantias, sobre o que constata:
La ejecucin de su proyecto suministrara una especie de garanta general,pero como por desgracia las garantas precisan algunas veces ellas mismasde garantas, creo que deberais pensar de antemano en la manera de asegu-rar la vuestra. Pues si dos o tres jvenes monarcas de los ms poderosos secansaran de las leyes que les son prescritas, y las quisieran romper, cmoimpedrselo de otra manera que por una guerra cuyo xito sera dudoso? Nosera vano para este propsito que el mayor Banco de Europa estuviera enmanos del Consejo General y que todos los prncipes tuvieran (cada unoproporcionalmente) millones depositados en dicho Banco, los cuales esta-ran all tan seguros como en sus cofres y les proporcionaran incluso intere-
ses (apud Roldn, 1996:142).
Novamente, vemos notveis paralelismos com certas organizaes in-
ternacionais do presente. Ainda assim, o que Leibniz propor ser a ex-
panso das artes e cincias (fomentando Sociedades cientficas e Acadmi-
cas) como base pacificadora para cimentar uma Europa unificada e cosmo-
polita. De forma distinta abordaria Rosseau a obra doAbb- como tambm o
fariam em seu momento Vattel, Voltaire, Helvtius ou Richard Price - ainda
que seja atravs da sua, em concreto do Resumo e Juzo da obra santpierrense,
que os escritos deste foram postos em valor no entorno intelectual da se-
gunda metade do sculo XVIII.
Sem considerar quimrico o seu projeto de repblica crist europia (ao
contrrio, a descreveu como slida e reflexiva), a aproximao rosseauniana
parte, no obstante, do Estado republicano que vaticinara Locke, e que Kant
incorporar na sua Zum ewigen Frieden como primeiro artigo definitivo.
Segundo ele, so os princpios da liberdade, igualdade e independncia
(enunciados em 1793 na sua Teoria e prtica) os que garantiriam, junto com a
existncia de um sistema representativo com separao de poderes, um
verdadeiro projeto de paz.
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Apesar de apresentar certo ceticismo sobre a possibilidade de um vo-
luntarismo racional mover o esforo europeu conjunto paz, acredita, por
outro lado, que os benefcios produzidos pela ausncia de guerras (maior
disponibilidade de recursos e facilidades para o comrcio) poderiam redun-
dar no xito de tal iniciativa. Vemos aqui refletido o esprito comercial ao
que Kant alude em seu primeiro suplemento.
Da mesma forma, ainda que chegue a conceber uma espcie de go-
verno de repblicas conferederadas, atravs de um contrato social interes-
tatal, no encontra uma base antropolgica slida para isto. A razo est,
talvez, no seu ceticismo sobre a natureza da sociedade, posto que, frente
insocivel sociabilidade kantiana e hobbestiana, considera que a guerra tem
sua origem no estado social e no na natureza (nao h guerra entre homens,
somente entre Estados, comenta).
Analisando sob este ponto de vista, Zum ewigen Frieden constitui, por-
tanto, o resultado lgico da herana das abordagens sobre a matria levada a
cabo no sculo XVII, enriquecido, em grande medida, pelo enfoque sociopo-
ltico rosseauniano (Roldn, 1996:127). No podemos esquecer que a idia
deste ltimo sobre o confederacionismo (que chegou a plasmar-se em um
volume intitulado Des confdrations) deixou influncia nos escritos de Kant,
com os que magistralmente soube combinar o universalismo leibniziano
(carente tanto em Rousseau como em Saint-Pierre) do que emana seu projetocosmopoltico. Surge, assim, um dos mais singulares representantes da via
proftica da filosofia da histria representada, em palavras de Roldn, pela
introduo de elementos finalistas transcendentes e impessoais, como la
astucia de la razn (List der Vernunft) hegeliana, as como con los determi-
nismos histricos de todo signo, situndose en la base de las teoras de la
predictibilidad e inevitabilidad histricas (1996:153).
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No entanto, inclusive entre as prprias abordagens kantianas de guerra
e paz, encontramos duas categorias de ensaios: aqueles de carter normativo
que versam sobre um futuro hipottico e aqueles outros que constituem
descries de acontecimentos do passado. Enquanto os primeiros se centram
nos possveis desenvolvimentos da conflagrao quando a razo a que
guia as dimenses da natureza (atravs de determinaes normativas, neste
caso, republicanas), os segundos descrevem as conseqncias do potencial
blico, assentado em dimenses antropolgicas inextirpveis, entregue ao
livre jogo da natureza, ainda que, como textos sobre o passado histrico,certamente se regem pela teologia moral da sua construo reflexiva racional
(Villacaas, 1996:219).
Zum ewigen Frieden, no obstante, um escrito que polemiza pela paz,
enfocado aos seus coetneos empiristas, que definem a teoria a partir da
praxis do momento e no a praxis a partir da teoria. Tal como expressa
Brandt, su praxis-terica basada en una pretendida experiencia ocupa eltopos de una teora pura, frente a una praxis regida por la teora y la expe-
riencia de una antropologa real (1996:34). Kant busca atacar a concepo
poltica maquiavlica que fundamenta a poltica na experincia, introdu-
zindo as bases apriorsticas da razo prtica, de modo que esta possua a
superioridade da evidncia e segurana frente experincia evocada pelos
polticos. Vejamos como.
Zum ewigen Frieden. Uma aproximao analtica
Em meados de agosto de 1795, Kant anuncia a Friedrich Nicolovius,
editor de Knigsberg, a concluso e prxima entrega para a publicao de
um ensaio filosfico abordando a paz eterna (Barata-Moura, 1996:11). Me-
ses antes, a princpios de abril, assinava-se a Paz de Basilea entre Prssia e
Frana, que marcava a incluso da recm-proclamada Repblica francesa no
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plano internacional, e conlevava a circulao de um certo esprito pacifista
entre as cortes europias, fruto do novo clima de relativa distenso. Por-
tanto, no podemos obviar a relao existente, por afinidade cronolgica, de
contedo substancial e de inteno prospectiva, entre o escrito kantiano e
seu contexto histrico, articulando-se no somente com um evento poltico-
diplomtico aos moldes do acordo franco-prussiano, mas com o prprio
panorama ideolgico gerado naquele momento.
No so, de qualquer modo, as motivaes doutrinais de vocao uni-
versalista ou seu apoio particular ao avano do processo revolucionrio
iniciado na Frana, os fundamentos nicos das esperanas de paz vertidas
em seu ensaio. Kant, como agente cultural consciente, vai mais alm, exer-
cendo seu dever filosfico de fazer uso pblico (ffentliches Gebrauch) da
razo, neste caso, para fomentar, dentro do novo concerto continental, um
ambicioso projeto de reforma do modo de relao entre estados. Tal reforma,
sob a gide de uma dinmica processual, aponta a uma cidadania universal,regida pelos imperativos do Direito: de um Direito Civil de Estado (Staats-
brgerrecht, ius civitatis) em cada povo; de um Direito dos Povos ou Direito
de Gentes (Vlkerrecht, ius gentium) para regular as relaes entre Estados
(base do atual Direito Internacional Pblico); e um Direito Cosmopolita
(Weltbrgerrecht, ius cosmopoliticum) de vocao mundial e que ligaria a tota-
lidade da espcie humana como cidados de um Estado Universal dehomens (Barata-Moura, 1996:16). Tais esferas do direito se vm plasmadas
respectivamente nos trs artigos definitivos (Garca Caneiro; Vidarte,
2002:79).
Desde o ponto de vista formal, a natureza deste projeto kantiano se
vislumbra na ironia da sua prpria estrutura, baseada, como os solenes
protocolos e tratados diplomticos da poca, em uma sucesso de artigos
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preliminares e definitivos (em lugar de captulos) seguida de seus suple-
mentos e artigos secretos correspondentes. O objetivo, burlar-se daqueles
tratados de paz (como a paz de Basilia, no fundo) que, em realidade, no
pretendem ir mais alm de um simples armistcio, fruto do esgotamento das
partes, que procura apenas recobrar a capacidade ofensiva para reiniciar, em
breve, as hostilidades. Similar ironia, um tanto escassa no conjunto da obra
kantiana, evidencia-se no prprio ttulo, pois recorrendo idiomtica fune-
rria, identifica-se o eterno descanso com a paz perptua, evocando meta-
foricamente o desejo de um fim rpido para as sangrentas turbulncias te-rrenais.
No entanto, tal aluso encerra com esta metfora uma muito sria ad-
vertncia que desenvolve no breve ensaio. Por um lado, alerta-se a humani-
dade de que, mergulhando-se em um espiral belgeno, somente conseguir
confluir em uma funesta guerra de extermnio (Ausrottungskrieg) na que a
paz perptua finalmente ser alcanada... no grande cemitrio do gnerohumano (auf dem groen Kirchhofe der Menschengattung). Ante esta eventuali-
dade, nos proposto um leque de medidas poltico-tico-morais e organi-
zaes, cuja atualidade parece assombrosa, estruturadas sob a forma de seis
artigos preliminares (que estabelecem leis proibitivas, isto , condies ne-
gativas - necessrias, mas no suficientes para evitar a guerra) e os trs defi-
nitivos (condies positivas para alcanar a paz perptua e que projetam,por sua vez, um sistema de Direito Pblico, perfilando uma histria natural
da humanidade que, nas palavras de Brandt (1996:33), halla en la paz tanto
su fin final como su fin ltimo).
Os primeiros rezam: 1) No se deve considerar vlido nenhum tratado
de paz que tenha sido celebrado com a reserva secreta sobre alguma causa
de guerra no futuro; 2) Nenhum Estado independente (grande ou pequeno)
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poder ser adquirido por outro mediante herana, permuta, compra ou
doao; 3) Os exrcitos permanentes (miles perpetuus) devem desaparecer
totalmente com o tempo; 4) No deve emitir-se dvida pblica em relao
aos assuntos de poltica exterior; 5) Nenhum Estado deve interferir pela
fora na constituio e governo de outro; 6) Nenhum Estado em guerra com
outro deve permitir-se hostilidades tais que faam impossvel a confiana
mtua na paz futura, como o emprego no outro Estado de assassinos (pre-
curssores), envenenadores (venefeci), a quebra de capitulaes, a induo
traio (perduellio), etc. Os segundos: 1) A constituio civil de todo Estadodeve ser republicana; 3) O Direito de Gentes deve fundar-se em uma fede-
rao de Estado livres; 3) O Direito Cosmopolita deve limitar-se s condies
da hospitalidade universal.
Aproveitando a conjuntura ps-Basilia, pretende-se revisar, seno a
teoria, pelo menos a praxe de alguns processos da poltica internacional,
radicalizando as exigncias estruturais da paz. Por exemplo, no primeiroartigo preliminar, Kant entende que os tratados de paz no devem incluir
(ou ocultar) reservas mentais (Vorbehalt, reservatio mentalis), obviadas apenas
de forma transitria, mas que mantm pendente alguma matria que, em
breve, possa potencialmente reavivar a conflagrao. Certamente, sabemos
que a guerra tradicional no encontra seu fim com a vitria (Sieg) de uma
das partes, mas pelo pacto (Vertrag) entre beligerantes que celebram umtratado de paz (Friedensschulu). Este tratado pode pr fim s hostilidades
mas, por si s, no necessariamente com o estado de guerra (Kriegszustand),
j que continuar sendo possvel desenterrar algum pretexto (Vorwand).
Como acontece com um incndio, o pensamento kantiano nos adverte que
no basta suforcar as chamas: necessrio continuar com as operaes de
rescaldo que evitem a reapario do fogo (Barata-Moura, 1996:25).
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Desde um ponto de vista mais negativo, poderamos pensar que este
primeiro artigo preliminar pretende alcanar a paz exterior atravs da inte-
riorizao do conflito, isto , a auto-represso dos estados-nao que, como
aponta Duque (1996:201), ahogarn constantemente sus buenos motivos,
seas los que fueren para entrar en guerra, ainda que, a longo prazo,
exist[a] un principio de continuidad entre la poltica interna, domstica, y la
poltica internacional (Pereda, 1996:90). Ainda assim, tais controvrsias
poderiam ter sua via de escape nas propostas apresentadas no articulado
definitivo do projeto, pois a inteno de Kant, como acontecia com Rous-seau, pretende apenas colocar-nos de sobreaviso quanto a trguas passagei-
ras, reclamando intervenes de fundo que consolidem a paz como dever
imediato (unmittelbare Pflicht) dos povos, a ver-se refletido no seu compor-
tamento sucessivo. Talvez por este motivo, explica, ao finalizar uma guerra,
seria mais apropriado um dia de penitncia (Butag), pedindo perdo pelas
atrocidades cometidas, por qualquer lado, contra o bem-estar de tantoshumanos e refletindo sobre as futuras orientaes do seu que-fazer coletivo,
do que as festividades de homenagem (Dankfeste) s maquinrias blicas.
Em seguida (no artigo 2), manifesta-se a pouca convenincia de os go-
vernantes administrarem seus Estados em termos patrimoniais, suscetveis
de doao, herana, troca ou compra e venda. Kant entende que o Estado,
como pessoa jurdico-moral, deve ser respeitado como se se tratasse de umapessoa natural, no podendo, portanto, ser objeto de um ato, como os antes
mencionados, regulados pelo Direito Privado. No sendo um estado um
haver (eine Habe), o fato de o patrimnio (patrimonium) outorgar um preo a
uma pesosoa (ou a um Estado) implica tirar-lhe toda a sua dignidade, coisi-
fic-la, submet-la escravido. O chefe supremo (das hchste Oberhaupt) no
deixa de ser, por isso, um senhor (Herr), mas somente para exercer um poder
(Gewalt) coercitivo sobre as arbitrariedades individualizadas segundo as leis
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(nach den Gesetzen), fazendo obedecer a uma vontade universalmente vlida
(ein allgemein-gltiger Willen). Trata-se, no fundo, de uma crtica ao imperia-
lismo..., posto que as suas guerras de conquista, que favorecem precisamente
a compra e venda, permuta, doao ou herana de Estado, s podem gerar
uma paz imoral. Fica claro que sendo os Estados entes autnomos e sobera-
nos (uma sociedade de homens sobre a que ningum mais do que ela
mesma tem que mandar e dispor, em termos kantianos) no admissvel
que estes possam coexistir com o imperialismo, e sua paz internacional mo-
ral e opressiva, j que requer exrcitos permanentes de ocupao, comopodemos presenciar claramente nos tempos que correm.
Em relao a isto, o terceiro artigo assume a proposta da progressiva
desapario de tais exrcitos permanentes (stehende Heer, miles perpetuus).
Apesar de no seguir a lgica homrica da cautela aos instrumentos poten-
cialmente perigosos (a prpria espada em no poucas ocasies incitou o
homem a lutar, A Odissia, Livro XVI), verdade que se vale de um argu-mento prudencial advertindo que o acmulo contnuo de material blico
por um Estado conforma uma grave ameaa para a segurana internacional,
pois os demais pases se vem obrigados a incrementar reciprocamente seus
arsenais, o que, por sua vez, pode debilitar o bem-estar e desenvolvimento
da nao, desprovida de importantes partidas oramentrias destinadas
manuteno de seus exrcitos. No preciso mencionar exemplos de gigan-tomquina, como a Guerra Fria ou outros que, ainda hoje, apesar de em
menor escala, perpetuam-se em diversas latitudes do planeta.
Semelhante carreira armamentstica, e seus correspondentes gastos,
cada vez mais exorbitantes, podem fazer da paz algo inclusive mais
opressivo que a prpria guerra, incitando guerras ofensivas cuja finalidade
exclusiva seria de amortizar tal inverso. Como havia descrito Hobbes, a
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possesso de um potencial armamentstico dissuasrio constitia a nica
garantia de uma paz incidental dentro do estado bsico de bellum omnium
contra omnes. Ante o fato de que uma nao se arme, os demais Estados se
vem atemorizados perante uma agresso antecipada, pelo que no parecer
complexo criar ou rebuscar alguma explicao para perpretarem eles mes-
mos a primeira agresso, gozando, assim, da vantagem inicial. Diante do
dilema de autoconservao, ao que Hobbes s podia recomendar bem o
ataque preventivo ou o aumento das capacidades militares, Kant busca uma
via alternativa atravs de sua sociedade ou federao de naes.
A esta problemtica, acrescenta Kant que ser tomados em troca de
dinheiro para ser morto ou matar parece implicar um abuso dos homens
como meras mquinas e instrumentos em mos de outro (o Estado), difi-
cilmente convergente com o direito da humanidade em nossa prpria pe-
ssoa. A guerra leva ao indivduo que nela toma parte uma alterao estrutu-
ral radical, pois a premissa societria bsica de proteo da vida passa suaaniquilao e ameaa constante (da prpria e de outros). As mudanas no
ego no afetam somente aos soldados que se associam em unidades organi-
zadas e legitimadas para a destruio de vidas humanas, nas que matar o
inimigo se converte em um princpio teleolgico, mas tambm, e cada vez
mais, ao entorno das hostilidades (Laufer, 1988:34). Como ironicamente
aponta Pereda, para Kant no es del todo compatible ser soldado - al menos,ser profesional de un ejrcito permanente - y ser persona (1996:83).
De todas formas, apesar de recusar os exrcitos permanentes, aceita a
existncia de uma milcia voluntria cidad que realize de forma peridica
os treinamentos oportunos para capacitar-se na defesa da ptria. No esque-
amos que, segundo Kant, se atribui preferente estima (Hochachtung, alta
considerao) inclusive na condio mais civilizada de todas (allergesittets-
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ten), ao guerreiro (ou ao senhor da guerra, general, Feldherrn) frente ao esta-
dista (Staatsmanns). Resulta lgico, posto que o voluntrio que, superando o
instinto da auto-presertao, expe sua prpria vida tendo refletido sobre
isto, torna-se objeto de admirao (Duque, 1996:208).
De fato, na Crtica da Razo, Kant chega a expor enfatizando sua funo
tico-histrica, que a guerra em si mesma, se se leva a cabo de forma sa-
cramente ordenada e respeituosa com os direitos dos cidados, tem algo de
sublime (etwas Erhabenes an sich), e faz da disposio daqueles que a levam a
cabo em nosso nome a mais sublime quanto maiores os perigos aos que se
vem expostos e antes os quais se comportam com valentia. Acrescenta
ainda no 83 da mesma obra que a guerra no uma empresa premeditada
por parte dos homens, mas um projeto intencionado por parte da suprema
sabedoria. E apesar das terrveis penalidades que a guerra impe ao gnero
humano, assim como das atribulaes, acaso ainda maiores, que sua cont-
nua preparao origina durante a paz, supe um impulso para desenvolverat as suas mais altas cotas todos os talentos que servem cultura. Isto
porque Kant aceita que o risco e sacrifcio de uma guerra entre grupos tende
a aumentar o valor da liberdade dentro de cada um, dinamizando-os (formal
e estruturalmente) e acrescentando a cooperao e igualdade em suas bases.
A resposta neutralizadora da conflagrao, pelo contrrio, tende a produzir
sociedades mais amplas e pacficas, com estruturas de governo mais estveise, por isso, mais inclinadas atuao desptica (Villacaas, 1996:223). Con-
cebe, assim, um processo, mais linear que cclico, que vai desde a liberdade
comunitria dos povos em situao endmica da guerra ao despotismo im-
perial dos povos pacificados, sendo Pax uma exigncia imperial e, ao
mesmo tempo, fonte de um agudo despotismo (Id., ibid.). Por este motivo
no podemos entender Pax como Friede, j que no faz referncia a um fim
justo em funo do Direito, apenas o cesse da violncia.
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assim que se entende, altura de 1786, que o de Knisberg nos diz
que uma paz perptua naquele preciso momento no beneficiaria o pro-
gresso da humanidade, pois sem o efeito blico dinamizador esta paz no
seria Friede, apenaspax desptica. Nem a desejada paz duradoura busca um
descanso inoperante (mais prprio da paz eterna dos mortos), nem a indo-
lente e ainda endmica despreocupao constitui o cenrio mais propcio
para a humanizao. Na teleologia da paz kantiana, prev-se uma evoluo
processual desde o ocioso deleite (que nega o homem como tal, impedindo a
afirmao e desenvolvimento da sua humanidade) at um nvel superior decultura que implica, e s vezes potencia, a abstinncia dos recursos a solu-
es blicas para a regulao das diferenas. Nas palavras de Barata-Moura
(1996:17), ontologicamente fundado num desgnio natural genrico, este
trnsito abre o espao, constitutivamente humano, da mediao trabalhada
do ser (onde a conflitualidade tambm se inscreve) e da responsabilidade
tica e poltica (individual e comunitria). Segundo o esquema que nos mostrado, trabalho (Arbeit) e discrdia (Zwietracht) constituem um preldio
de uma autntica associao (Vereinigung) de homens em comunidade, a
paixo constitui o motor de todo progresso e a gnese da ordem social mais
louvvel. Talvez por este motivo Kant preferia o enxame de abelhas egostas
ante um rebanho de arcdicas ovelhas entre as que reina a mais doce das
concrdias.
Ainda assim, cabe insistir que em Zum ewigen Frieden se exige de modo
categrico a abolio da guerra, pois, ainda que seja um elemento-chave
para a expanso planetria da humanidade, nos tempos que correm resulta-
ria improcedente e intil. Em uma conjuntura global na que a capacidade
das grandes (e no to grandes) potncias para aniquilar a humanidade
cresce de forma paralela ao desconhecimento por parte da maioria dos ci-
dados do que realmente a guerra (ver Rieber, 1991; LeShan, 2002), esta se
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vem entendendo cada vez mais como uma condio aberrante fora das mar-
gens da experincia normativa humana. Alm disso, como comenta Brandt
la tecnologa moderna ha conseguido fabricar armas de tal poder destruc-
tivo que imposibilita la distincin entre civiles y combatientes e incluso, en
ltimo trmino, entre los integrantes del propio bando y del enemigo o que,
evidentemente, se opoe a qualquer forma de Direito.
Kant acrescenta no artigo 4 que a condio da dvida pblica no deve
comprometer a poltica exterior, posto que os impostos so apenas legtimos
com respeito a determinadas tarefas estatais, afirmao travel a Hume e
sua anlise sobre a relao entre os crditos pblicos e a guerra (1982:164-
165). Isto porque aos governantes era extremamente simples dispor dos
recursos para levar a cabo uma guerra (tesouros ou crditos estatais, exrci-
tos permanentes, etc.) que vem como uma ferramenta para satisfazer as
suas ambies particulares e egocntricas, posto que igualmente simples
evadir-se das misrias que as suas guerras produzam (ou isso pensamhabitualmente em um incio). Ainda assim, chega-se a tal situao, esta paz
individada, prpria dos Estados que contraram dvidas com outros, na que
um sistema de crdito como instrumento nas mos das potncias para suas
relaes recprocas pode crescer indefinidamente resultamente sempre um
poder financeiro (...), ou seja, um tesouro para a guerra. Aqui radica uma
das contradies de Zum ewigen Frieden, j que Kant parece no associar estepoder financeiro com o providencial esprito comercial. No negamos
rotundamente que s vezes a vontade de facilitar as condies dos intercm-
bios possa aliviar tenses em seu estado pr-blico, mas bem sabemos que a
especulao e o mercado no somente coexistem com as conflagraes (que
so um excelente negcio) mas com as ocasies que as incentivam. E se no,
basta que se veja o que tm a dizer a respeito disso os modelos econmicos
como os de ciclos de onda longa (Goldstein, 1998; Shumpeter, 1939).
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Continua Kant o seu discurso (art. 5) recusando a interferncia, por
fora, das potncias hegemnicas nas competncias dos estados menos for-
tes, j que semelhante atentado contra a soberania quebra as regras do jogo
da ordem internacional. Formula assim, de modo singular, no art. 2, o prin-
cpio da no-interveno recproca nos assuntos internos nos seguintes ter-
mos: nenhum Estado deve intrometer-se pela fora na constituio e go-
verno de outro (Kein Staat soll sich in die Verfassung und Regierung eines
andern Staats gewaltttig einmischen), pois o que lhe daria direito a isto?.
Pois bem, conforme comenta Pereda, como ocorre vrias vezes, difcildistinguir entre os atos que se incumbem apenas a um indivduo dos que
transcendem aos demais. Da mesma forma, tambm podemos encontrar
dificuldades em diferenciar aqueles atos de um Estados que implicam outros
e aqueles que no o fazem (no em vo o suposto Direito de Interferncia
continua sendo hoje uma matria extremamente polmica, no tanto pelos
supostos paternalismos, mas pela presena dos mais turvos interesses polti-cos e econmicos).
Para no sair do contexto Kantiano, pensemos na Revoluo Francesa,
constitua, pois, um evento que incumbia somente a Frana ou, ao contrrio,
todo o mundo? Deveriam permanecer impassveis as demais monarquias
europias vendo como caam mais que as coroas dos seus homlogos? (Pe-
reda, 1996:81-82). Ante isto Pereda nos prope uma extensa gama de per-guntas:
quien es el portador de derechos en los Estados?, la mayora del pueblo, lamayora y las minoras ms importantes, la mayora y todas las minoras, elgobierno de turno si posee alguna legitimidad, o cualquiera que sea el go-bierno de turno? O un Estado slo es portador de derechos si se trata de unEstado democrtico? (Id., ibid.).
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Em relao a isto, apesar de admitir a guerra preventiva em caso de
grave ameaa ao equilbrio existente, proscreve-se categoricamente a guerra
que persegue o extermnio do adversrio (Ausrottungskrieg, bellum
internecinum), sua sujeio (Unterjochungskrieg, bellum subiugatorium) ou
castigo, posto que uma guerra entre estados independentes sob nenhum
conceito poderia ser punitiva (bellum punitivum), partindo da base que um
castigo somente cabe na relao superior-sdito (e recusa, por isso, possveis
paternalismos repressores). Mximas como a que afirma que na guerra
nenhuma das duas partes pode ser declarada inimigo injusto (porque istopressupe j uma sentena judicial) deveriam ser observadas atentamente
nos tempos presentes. Cabe uma exceo ao citado princpio da interfercia,
que pressupe a possibilidade de uma transio a uma nova ordem interna-
cional baseada na gesto multilateral e republicana dos conflitos, atravs da
atuao de uma potncia hegemnia benigna.
Tendo muito presente o recente triunfo da revoluo burguesa naFrana, Kant chega a vislumbrar um cenrio no que uma grande Repblica
francesa pudesse servir como foco aglutinador de Estados menores que se
iriam alinhando em um eixo favorvel ao federalismo pacfico. curioso que
Kant no desconfie (ou pelo menos, o que poderia ter sentido, no expresse
no ensaio) que de tal Estado hegemnico, ainda sendo repulicano, no se
visse tentado pelo impulso imperial frente ao apelo pacificador de seusprincpios constitucionais (Soromenho-Marques, 1996:81). Neste sentido,
Kant afirma que
possvel representar-se possibilidade de levar adiante esta idia (reali-dade objetiva) da federao, que deve extender-se paulatinamente a todosos Estados, conduzindo, assim, paz perptua. Isto porque se a fortunadispe que de um povo forte e ilustrado se possa formar uma repblica(que, por sua prpria natureza, deve entender a paz perptua), esta podeconstituir o centro da associao federativa para que outros Estados seunam a ela...
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Assim como reza o ltimo artigo, inclusive nas trevas da conflagrao,
deve-se observar uma srie de regras e princpios sem os quais as bases parauma paz futura estariam profundamente carcomidas. O emprego em outro
Estado de assassinos (percussores), envenenadores (venefici), a quebra de
concordos, a induo traio (perduellio), e demais estratagemas infernais
(hllische Knste) como a espionagem e subveno de opositores internos em
outros pases, que impossibilitariam a confiana mtua na paz futura, posto
que, ainda em plena guerra, h de existir alguma confiana na mentalidadedo inimigo. A partir de certo ponto, as estratagemas desonestas evaporam as
ltimas gotas de humanidade e respeito pelo adversrio, sem a qual este
passa a ser um inimigo de morte na citada guerra de extermnio
(Ausrottungskrieg), conduzindo a uma calamidade generalizada. O que em
temros clauswitzianos poderamos chamar de guerra total, somente trairia
o desaparecimento das partes beligerantes, e consigo, a paz perptua dos
mortos, sobre o cemitrio da humanidade. Tal guerra, da que no estivemos
to longe em certos momentos, no poderia permitir-se (e inclusive dificil-
mente conceber-se), assim como os meios a ela conduzentes (pensemos, pois,
nas armas nucleares).
Examinados os seis artigos preliminares, cabe fazer uma distino entre
eles, pois a execuo de uns deve ser imediata, enquanto a de outros pode
ser posposta durante certo tempo. Com esta separao dentro de seu carter
de negociao, la permisin es interpretada sin contar con una definicin
temporal prxima y en cuanto licencia para la postergacin de su cumpli-
miento, j que la posicin sistemtica del permiso est vinculada (...) con
la proyeccin de una razn compartimentada (Brandt, 1996:42). Kant pre-
tende estabelecer um projeto realizvel e no apenas utpico, como o de
alguns dos seus antecessores, e por isso que parte da aceitao de que uma
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paz estratgica (art. 1); uma paz imoral (art. 2); uma paz opressiva (art. 3);
uma paz endividada (art. 4) ou uma paz imposta (art. 5) podem ser parte
do caminho paz perptua... no deixam de ser paz, bem verdade.
Assim, os artigos 1, 5 e 6 deveriam ser aplicados de forma rgida
(strengen), independentemente das circunstncias particulares, pois se no
estivermos dispostos a aceitar as condies dos tratados de paz, a soberania
das naes e certas condies da jus in bello, podemo-nos esquecer de qual-
quer esperana de paz estvel em plano internacional.
Em situao distinta, segundo Kant, encontram-se os art. 2, 3 e 4, que
engloba dentro do plano das leis permissivas (Erlaubnisgesetze, leges permis-
siv), cuja execuo prorrogvel se no perdermos o fim ltimo, podendo
conviver en la paz con la paz inmoral, con la paz opresiva, con la paz en-
deudada: a aceptar la paz internacional con guerras locales de conquista, con
ejrcitos permanentes y con deudas entre los Estados (Pereda, 1996:86).
Trata-se, em certa medida, de uma autorizao para que algo contrrio s
exigncias racionais do Direito possa perdurar sempre que esteja motivado
por um movimento enfocado sua transformao, pelo que, cabe pensar...
ser que esta gama taxonmica estaria formada por degradaes da paz ou
por aproximaes mesma?
Todos estos tipos de paz son, en alguna medida, tipos de paz de los vivos,tipos imperfectos de paz y hasta fetiches de la paz pero tipos de paz al fin;en cambio, el contraejemplo fuerte, la paz perpetua de los muertos no es, ensentido estricto, ningn tipo de paz, puesto que la paz es un circunstanciade vida, y la muerte no es una circunstancia de vida, sino su ausencia (Id.,ibid.).
Por exemplo, no que diz respeito relao externa dos Estados (das
ussere Staatenverhltnis), no se pode esperar que um pas renuncie sua
constituio (ainda que desptica) quando se encontrar gravemente amea-
ado ao ver-se absorvido por outros Estados, sendo uma melhor oportuni-
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dade (bessere Zeitgelegenheit) a execuo das requeridas formas suscetveis
posposio. Agora bem, esta licena no pode se separar da obrigao de
impulsar seriamente tais melhoras uma vez obtido o mommentum apropiado
(como, por exemplo, a Paz de Basilia). deste modo que podemos entender
os artigos definitivos (Definitivartikel) como normas de un processo a ser
executado progressivamente atravs da absteno de certos comportamentos
(os artigos preliminares).
Assim, no primeiro deles, Kant, partindo da noo de que o cidado
livre defende racionalmente a instaurao da paz generalizada, avana-nos
que em qualquer Estado a constituio poltica deve ter carter republicano
(Die brgerliche Verfassung in jedem Staat soll republikanisch sein) pois, segundo
ele, a repblica (ou o Estado regido desta forma) o nico governo que pode
evitar a guerra ofensiva por princpio e, portanto, a base necessria para
assegurar a paz entre os povos (note-se que, no seu aparelho conceitual,
Kant diferencia a constituio jurdica (rechtliche), da legtima (rechtmigen)ou justa, isto , a republicana).
Os cidados, fazendo especial meno a seu esprito comercial (pois o
comrcio s possvel sob condies pacficas, explica) no outorgariam seu
consentimento participao em uma conflagrao, sendo que todos os
desastres da guerra acabariam revertendo-se sobre si mesmos (Sec. II, I art.
def.). Certamente, o ideal seria que tal Estado explicitasse, mediante uma lei,sua renncia ao iniciar uma guerra ofensiva, mas, como contemplamos no
amplo leque de conflitos de baixa (e no to baixa) intensidade dos ltimos
50 anos, no parece que as atuais democracias, mais prximas herdeiras do
sistema propugnado por Kant, nem seus cidados, tenham renunciado a
embrenhar-se nas mais sangrentas batalhas.
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Apesar disso, cabe dizer que estas guerras aconteciam geralmente em
zonas longnquas e sem pr em perigo significativo o solo ptrio. Parace que o
dilema platnico faz sentido, pois sua repblica constitui uma forma de
governo para seres humanos como devem ser, mas no como em verdade so.
Vejamos este argumento com calma. Segundo Kant, no marco dos re-
gimes no-despticos (republicanos), no se pode esperar a gerao (es-
pontnea) do tipo de apoio universal guerra existente durante as guerras
clssicas do passado, do Ancien Rgime. A legitimidade de uma ao deter-
minada pode ser questionada abertamente, convertendo-se em uma deciso
do indivduo, que pode ver em perigo no s seus bens, mas a sua prpria
vida, ao apoiar ou no o governo. Trata-se apenas de uma eleio intelectual
sem os imperativos que impunha a salvaguarda dos interesses privados e
coletivos nas guerras de sobrevivncia do passado. O resultado, como acon-
teceu no Vietn, e na ltima invaso do Iraque, a existncia de oposio aos
conflitos por um segmento mais ou menos representativo da populao. Estaoposio pode ser suficiente para constituir uma recusa do mandato do
governo inerente ao contrato social, ameaando a sua base de legitimidade
(Young; Jesser, 1997:10).
Os pressupostos de submisso da populao em tempos de guerra po-
dem ser questionados pelos que John Rawls chama de objetores de cons-
cincia (Parekh, 1982:172). Rawls, fundamentando-se, em parte, no pensa-mento de Kant, apia-se em uma forma de contrato social na que o cidado
est isento de obrigaes polticas, somente tendo deveres naturais baseados
em um conceito individual do justo. Aqui se incluem princpios como a
igualdade das naes, o direito autodeterminao, autodefesa em casos
de ataques externos, o dever de observar os tratados, de no utilizar a
violncia de forma desproporcional em tempos de guerra e a excluso de
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ganncias econmicas, territoriais ou a glria nacional como motivos justifi-
cativos para uma conflagrao. Segundo isto, o cidado pode apelar ao prin-
cpio da justia para argumentar sua negao, por motivos de conscincia, a
participar no que entende como uma guerra injusta (Parekh, 1982:174).
De qualquer forma, como se verificou, comum (ainda hoje) que os
Estados, com fundamento ou sem ele, reluzam os mesmos argumentos de
defesa da segurana e sobrevivncia como base para o requerimento de um
apoio universal. E funciona, pois mtodos existem para implementar tal
estratgia (Ponsonby, 1991):
A Government which has decided on embarking on the hazardous and te-rrible enterprise of war must at the outset present a one-sided case in justifi-cation of its action, and cannot afford to admit in any particular whateverthe smallest degree of right or reason on the part of the people it has madeup its mind to fight. Facts must be distorted, relevant circumstances con-cealed, and a piture presented which by its crude colouring will persuadethe ignorant people that their Government is blameless, their cause is right-eous, and that the indisputable wickedness of the enemy has been proved
beyond question. A moment's reflection would tell any reasonable personthat such obvious bias cannot possibly represent the truth.
Como bem explica Pereda, o sistema (democrtico-republicano) per-
feitamente compatvel com a demagogia ms contundente y las manipula-
ciones ms sutiles que permiten que ciertos grupos hagan olvidar a la
mayora de la poblacin los deseos y creencias y emociones que mejor res-
ponden a sus intereses ms legtimos para perseguir metas que em nada osbeneficiam, arriscando irracionalmente seus bens e vidas (1996:93). Talvez
por isso Kant assumisse a democracia como uma espcie do gnero despti-
co, posto que a democracia , no sentido prprio da palavra, necessaria-
mente um despotismo, porque funda um poder executivo onde todos deci-
dem sobre e, em todo caso, tambm contra um (quem, portanto, no d o seu
consentimento); com o que todos, sem ser todos, decidem (Sec. II, I art. def).
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A contradio (Widerspruch) reside no fato de que o executor e legisla-
dor estariam reunidos em uma mesma pessoa (no cumprimdo assim o
Staatsprinzip republicano de separao de poderes) e que, se se chegasse a
decidir contra algum de seus membros (que tambm formam parte do todo),
se estaria infringindo um suposto democrtico, porque nem todos fariam ou
executariam a lei. De todas as formas, para Kant, talvez lo que posee mala
fama no es, en concreto, la democracia sino, ms en general, lo poltico, toda
la poltica (Id., ibid.). Talvez por isso acrescenta em seu artigo secreto para a
paz perptua que no h que esperar que os reis filosofem nem que osfilsofos sejam reis, como tampouco h que desej-lo, porque a possesso do
poder dana inevitavelmente o livre juzo da razo.
Prossigamos agora com o segundo artigo definitivo que afirma: O Di-
reito de Gentes deve fundamentar-se em um federalismo de Estados livres
(Das Vlkerrecht soll auf einen Fderalism freier Staaten gegrndet sein). Segundo
Kant, os Estados compartem ainda o apego dos selvagens liberdade sem leido hobbesiano status naturalis (Naturstand), que preferem tal estado liber-
dade dos seres racionais unidos na sociedade civil. Os chamados Estados
civilizados valem-se da sua soberania (Majestt) para no se submeterem a
nenhuma fora legal externa permanecendo, assim, nesta barbrie, primiti-
vismo e degradao animal da humanidade. O prprio imperativo categ-
rico que obriga os indivduos a se associarem dentro de um Estado, obriga-ria igualmente os Estados a superar o estado de natureza existente entre eles,
no que se prejudicam uns aos outros por sua mera coexistncia, para formar
uma unio de Estados (Staatenverein), um Estado de povos (Vlkerstaat,
civitas gentium) potencialmente extensvel a todos os povos da terra, consti-
tuindo esta federao mundial cosmopolita (weltbrgerlich).
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Vejamos: em uma etapa intermediria se criaria uma liga ou federao
de povos (Vlkerbund) que, ainda carecendo do poder soberano, constitui um
avano frente ao mero tratado de paz: H de existir, portanto, uma federa-
o de tipo especial que se possa chamar federao da paz (Friedensbund,
foedus pacificum), que se distinguiria do pacto de paz (pactum pacis) j que
este buscaria acabar com uma guerra e a outra buscaria terminar com todas
as guerras para sempre (Sec. II, II art. def.). Esta associao, de forma simi-
lar s atuais organizaes internacionais, buscaria a manuteno e garantia
(Erhaltung und Sicherung) a liberdade de cada Estado, como nica via susce-tvel de situar outros povos no caminho certeiro para a paz eterna. Mas,
como sucedneo do pacto social civil (Surrogat des brgerlichen Gesellschaft-
bundes) trata-se de um federalismo defensivo que busca, em um plano supe-
rior, garantir os direitos fundamentais dos cidados dos diversos pases,
evitando sua leso pela ecloso de guerras (Soromenho-Marques, 1996:80).
Neste sentido, no nos esqueamos que federaes econmicas como aComunidade Europea ou o Mercosul, ou defensivas como a OTAN ou o
Pacto de Varsvia, tm como fim proteger-se no somente de terceiros, mas
tambm de si mesmos.
Seguindo a brilhante ironia que reluz em todo ensaio, Kant denuncia o
paradoxo de que o Direito (ento e ainda hoje) invoque-se pelos que cifram
tudo na fora: de admirar, certamente, que a palavra direito, por pe-dante, ainda no tenha sido expulsa da poltica de guerra, e que nenhum
Estado tenha se atrevido a manifestar-se publicamente a favor esta opinio.
Da mesma forma, critica veementemente jusinternacionalistas quando
afirma: permanece-se citando a Hugo Grocio, Pufendorf, Vattel e outros
(ditoso consolo...) - ainda que seus cdigos elaborados filosfica ou diplo-
maticamente no tenham a menor fora legal nem possam t-la (pois os
Estados como tais no esto sob uma fora exterior comum) - como justifica-
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tiva de uma agresso blica, mas no se conhece nenhum caso de que um
Estado tenha abandonado seus propsitos por causa das argumentaes de
to importantes homens (Id. ibid.).
O ltimo caminho que nos pode levar paz perptua , portanto, a
instaurao de um estado civil entre os Estados, consentindo leis pblicas
ativas e formando um Estado de povos organizado em repblica mundial
(Weltrepublik, civitas gentium), o Estado universal de homens (allgemeinen
Menschenstaats). Ainda assim, Kant qualifica este Estado internacional como
uma idia irrealizvel (e talvez terrvel) j que se tal federao pretendesse
respaldar leis internacionais, esta teria que, inevitavelmente, poder impor
sua autoridade sobre cada um dos membros associados, devendo estes,
portanto, renunciar sua inteira soberania, idia que Kant recusa. Isto pode
ajudar a entender as numerosas reticncias existentes acerca do tratado
constitucional europeu ou uma hipottica reforma das Naes Unidas. o
que Pereda denomina otimismo evolutivo, j que ainda que empirica-mente no se possa realizar semelhante Estado mundial, trata-se de uma
idia moral regulativa que nos deveramos aproximar gradualmente, ape-
sar de no pretender alcan-la por completo, e que resulta necessria para
conceber a perfeitabilidade e o progresso contnuos, caractersticos do pen-
samento ilustrado (1996:97). Quanto a isso, talvez o mais curioso radique em
que seja precisamente a natureza a que, de modo mecnico, impulse semel-hante processo, convertida em Razo intencionada e motor de designio
tecnolgico.
Quem proporciona esta garantia ningum menos que a grande artista da
natureza (natura daedala rerum), em cujo curso mecnico brilha visivelmente
uma finalidade: que atravs do antagonismo dos homens surja a harmonia,
inclusive contra a sua vontade. Por esta razo se chama indistintamente
destino, como causa necessria dos efeitos produzidos segundo suas leis,
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desconhecidas para ns, ou providncia, por referncia sua finalidade no
transcurso do mundo (...) [Tratando-se sempre de uma] causa que no po-
demos reconhecer realmente nos artifcios da natureza nem sequer interfe-rir, mas que somente podemos e devemos pensar, para formar em ns
mesmos um conceito da sua possibilidade, por analogia com a arte humana.
Em outras palavras, j que o gnero humano progride de forma cont-
nua para o melhor, no devem preocupar-nos males mundanos como a
guerra, j que a razo providente divina, escondida na natureza das coisas
mesmas, instaurar a pacfica harmonia universal, ainda sendo muitos os
obstculos com os que a instvel natureza do homen cruze neste caminho.
Isto porque quando damos um passo atrs, faz-se apenas para poder saltar
afrente neste progresso infinito inalcanvel por definio, j que a infinita
indivisibilidade do contnuo impede a chegada ao seu fim (Roldn,
1996:153). Entronca, assim, o modelo linear, com base na tradio judaico-
crist, que assume a descrio (e, portanto, tambm predio) histrica como
uma seqncia de eventos, desde a criao at o Apocalipse, que em seu
momento plasmou Santo Agostinho no seu De ciuitate Dei (413). Sua contra-
parte residiria em pensadores como Empdocles, Marco Aurlio, Aristteles
ou, mais recentemente, Giambattista Vico, que em 1725 lanou sua Scienza
Nuova, e Edward Gibbon (contemporneo de Kant), partidrios de modelos
cclicos, que inclusive chegaria a retomar a teoria marxista, com base ao mo-delo espiral hegeliano (vid. Gibbon, 2000; Spengler, 1998).
O terceiro e ltimo artigo definitivo para a paz perptua estabelece que
O Direito Cosmopolita deve limitar-se s condies da hospitalidade uni-
versal, reduzindo ao mnimo as atribuies de tal direito, vinculado a um
Estado mundial que, por sua prpria natureza, precisa ser o mais descentra-
lizado possvel. Vale dizer que hospitalidade, aqui, traduz-se como o dire-
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ito que tem um extrangeiro de no ser tratrado hostilmente pelo fato de estar
em um territrio alheio. No se pode falar de um Direito de Hspede, mas
de um direito de visita, o qual tm todos os homens em virtude do direito
da propriedade em comum da superfcie da terra, sobre a qual o ser humano
no pode extender-se at o infinito, por ser uma superfcie esfrica, tendo
que suportar-se uns juntos aos outros e no tendo ningum originariamente
mais direito que o outro a estar em um determinado lugar. Seria atravs
deste direito natural que se viabilizariam relaes pacficas com as gentes
dos lugares mais recnditos do planeta podendo assim aproximar o gnerohumano a uma constituio cosmopolita.
O ensaio kantiano no pra por a, pois nos seus suplementos onde
encerra o aval do seu projeto: a natureza, que toma forma de providncia ou
destino. Partindo da conhecida metfora da insocivel sociabilidade (die
ungesellige Geselligkein: as rvores crescem altas e retas em um bosque ao ter
que buscar o sol necessrio por cima delas, em vez de se retorcerem varia-velmente a seu capricho como quando esto sozinhas). Kant entende que a
cultura e a ordem social so frutos do antagonismo de nossas tendncias
egostas (anteriormente mencionamos a preferncia entre as abelhas ao re-
banho). Este processo dialtico concrdia-discrdia emana de dois meca-
nismos antagnicos: um centrfugo - idioma e crenas que desgregam os
povos -, e outros centpreto, que os une. Em sntese, do enfrentamento resistncia (Widerstand) emana a cultura pelo estmulo do esprito da liber-
dade (Geist der Freiheit) que, apesar e atravs do males (da sua superao)
que origina, conduzir inevitavelmente a formas superiores de desenvolvi-
mento (Barata-Moura, 1996:18). Por acaso no precisamente nos maiores
aougues da humanidade onde tm sua origem, patologicamente provo-
cada, todas as tentativas de construir mecanismos internacionais para con-
seguir uma paz duradoura?
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Retomando o argumento kantiano, afirma-se que a natureza-providn-
cia quer irresistivelmente (unwiderstehlich) que o direito finalmente triunfe,
no como imposio externa de uma obrigao razo prtica, mas como
imperativa racional que se d a si mesmoa. Desta sorte garante a natureza
a paz perptua mediante o mecanismo dos instintos humanos; esta garantia
no certamente suficiente para vaticinar (teoricamente) o futuro, mas, em
sentido prtico, suficiente e converte em um dever (Pflicht) o trabalhar com
vistas a este fim, em absoluto quimrico (nich blo schimrischen). Aqui
radica precisamente o espao de responsabilidade humana na configuraocomunitria da histria (Barata-Moura, 1996:39), pois a chave desta hiptese
especulativa global radicaria no na inteno da providncia, mas no marco
de conexo entre antagonismos humanos que encomenda a moral (Apel,
1996:27). O homem sente a dupla inclinao de entrar em sociedade para
acelerar o seu desenvolvimento e afastar-se dela, dada a qualidade insocial
que alimenta as resistncias mtuas entre as foras do homem (Conill,1996:55): Y justo el hecho de que las inclinaciones -origen del mal- se con-
trarresten mutuamente facilita a la razn un libre juego para dominarlas a
todas, y para hacer que, en lugar de reinar el mal, que se autodestruye, reine
el bien, que, una vez implantado, se mantiene por s mismo en lo sucesivo.
Insiste assim, mais uma vez, na convenincia de valer-se dos resultados
patologicamente provocados pelas conflagraes como oportunidades
(ocassioni, diria Maquiavel) para a consecuo de uma ordem que em si
mesma conleve o direito e a paz (Apel, id.), pois o homem se distingue
precisamente dos outros seres no somente por seus progressos tecnica-
mente mediados ou sua capacidade pragmtica de valer-se de outros
homens para a consecuo de seus fins, mas pela sua capacidade moral.
Em um posterior suplemento, agregado na segunda edio sob a forma
de um artigo secreto, estabelece a obrigao do intelectual de criticar inelu-
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bivelmente o poder estabelecido, abtendo-se sempre de chegar a ele, j que
ningum pode assumir a esquizofrnica tarefa de exercer e criticar constru-
tivamente o poder de forma simultnea. S uma filosofia armada com a
crtica pode abrir a perspectiva (Aussicht) para uma paz eterna. Conside-
rando sua prpria experincia vital, perturbada notavelmente um ano antes
com a publicao de Die Religion innerhalb der Grenzen der bloen Vernunft,
quando convidado por Frederico Guilherme II, a instncia do ministro
Johann Christoph von Wllner, a abster-se, no futuro, de abordar matrias
sensveis religio ou o Estado (Barata-Moura, 1996:14), cifra como indis-pensvel permitir que a classe dos filsofos (die Klasse der Philosophen)
possa falar abertamente (ffentlich sprechen) sem impedimento algum.
Restam ainda os dois apndices finais: Sobre a discrepncia entre a
moral e a poltica a respeito da paz perptua e Da harmonia da poltica
com a moral segundo o conceito transcedental de Direito Pblico. No pri-
meiro deles, em relao com o anterior, vai-se contra o moralista polticofrente ao poltico moral, recordando aos polticos prticos (Praktiker) que,
dado que criticam os sbios de escola (Schulweisen) por serem inoperantes os
seus inofensivos conhecimentos claustrais (no prticos), no deveriam ser
obstaculizados no exerccio da sua liberdade de expresso. Mostra, ademais,
que, apesar de os princpios emanados pela experincia mostrarem como foi
o mundo, precisam, contudo, de fundamento para afirmar que necessaria-mente houvesse de ser assim, frente o dever ser propugnado desde o ponto
de vista prtico-moral. Reduz aos moralistas prticos as suas mximas
oportunistas prediletas:fac et excusa, si fecisti nega e divide et impera. Ante isto,
o poltico moral no deve partir do fim que cada Estado de prope como
supremo princpio da sabedoria poltica (ainda que princpio emprico), mas
do conceito puro do dever jurdico, sejam quaisquer as conseqncias fsicas
que se derivem (a partir do dever, cujo princpio est dado a priori pela
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razo pura). Esta obrigao moral, afirma Karl-Otto Apel (1996:13), com-
patvel con el dualismo metafsico de la hiptesis de dos mundos total-
mente independientes: el mundo de la experiencia y el mundo de la praxis
moralmente responsable, em paralelo sua hiptese oposta de estabelecer
um estado de direito para un pueblo de demonios. deste modo que a
discrepncia entre a moral e a poltica constitui o pressuposto da con-
cepo da astcia da Natureza histrico-dialtica, antes descrito como
meio de resoluo do antagonismo de motivaes subjetivas; No h,
conseqentemente, nenhum conflito objetivo (em teoria) entre a moral e apoltica. H, contudo, subjetivamente (na inclinao egosta dos homens, que
no deve chamar-se prtica, j que no est fundamentada em mximas da
razo) e pode hav-lo sempre, porque serve de estmulo virtude.
O segundo se assenta na mxima de que So injustas todas as aes
que se referem ao direito de outros homens cujos princpios no suportam a
publicao. Kant havia assinalado que os juzos do conhecimento devemser comunicveis pois, tal e como explica na Crtica da Razo, a verdade des-
cansa na concordncia com o objeto e, portanto, consecuentia uni tertio, con-
sentitunt inter se: el criterio de la verdad es la reproductividad del conoci-
miento en la relacin al objeto idntico (Brandt, 1996:62). Em relao a isto,
devemos admitir que um princpio de publicidade, como o que aqui se de-
fende, no seria dos mais problemticos a consensuar em uma hipotticasociedade de naes, posto que, apesar de limitar, em certas ocasies, o mais
poderoso (que se via favorecido pelo segredo) pode lhe proporcionar uma
una garanta para los casos en los que o fuera menos fuerte o le fuera per-
judicial tener que prever todos los riesgos ocultos (Gmez Caffarena,
1996:72). certo, no entanto, que a afirmao de que todas as mximas que
necessitam da publicidade (para no falhar nos fins aos que se propem)
concordam ao mesmo tempo com o Direito e com a Poltica (apndice II),
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pois no caso contrrio as partes atacadas poderiam reagir para frustr-las,
encontra hoje seu paralelismo na obrigao de transparncia das administra-
es pblicas.
O princpio da publicidade aqui inserido no designa um mero impe-
rativo de publicitar. Partindo de seu sentido de dar conhecimento, como
desgnio primeiro da justificativa de toda norma jurdica, supe a consti-
tuio de um espao pblico ao que vai dirigido. Esta esfera pblica a
reunio de liberdades individuais em um contrato social de formao da
vontade geral, pelo que toda norma que no se concilie com a vontade geral
(sem receber, portanto, o consentimento de todos os cidados como artigo de
uma unio contratual universal de vontades em uma comunidade poltica)
seria injusta (Alves, 1996:58). Deste modo, o interesse geral (de ir ou no
geurra, por exemplo) consiste no resultado da expresso reacional dos inte-
resses, pois s assim o ponto de vista do todo comunitrio pode aparecer e
definir-se como tal (Id., ibid., 61).
Consideraes finais
Vimos sumariamente como os diversos projetos, sem ser inocentes
mantm sua correlao emprico-histrica com os contextos determinados. O
modelo de Saint-Pierre buscava essencialmente uma aliana bipolar entre
Frana e Espanha; a Europa da Restaurao assentava-se nos quatro Estadosque subjugaram Frana napolenica (ustria, Rssia, Prssia e Gr-Bre-
tanha): a Sociedade das Naes implicava um diretrio formado por Frana,
Inglaterra, Itlia e os Estados Unidos, fracassando desde um incio, ao negar-
se estes ltimos a ratificar o acordo; as Naes Unidas foram outros diretrio
falhado (reunindo Estados Unidos, Unio Sovitica e Gr-Bretanha), mas
limitando-se, de fato, em um instrumento secundrio do jogo bipolar du-
rante a I Guerra Fria (Soromenho-Marques, 1996:82) e hoje o futuro das
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diversas construes internacionais que pervivem e se multiplicam, tremen-
damente burocratizadas e cujos membros no so, na sua maior parte e em
sua definio kantiana, republicanos incerto... e preocupante.
Para Kant, a paz no uma idia vazia de contedo, mas um trabalho a
ser realizado de maneira conscientizada (keine leere Idee, sondern eine Aufgabe).
Corresponde-se a um dever de razo ao que se deve conferir eficincia pr-
tica atravs de um cultivo dialtico segundo um vetor prospectivo de reali-
zao e um esforo cultural para que possa ser concebida como possibili-
dade real (Barata-Moura, 1996:44-45). Sem dvida, a questo da guerra e da
paz eram centrais no pensamento do de Knigsberg, tanto na sua filosofia da
histria e cultura, como nas suas aproximaes antropolgicas e jurdicas
compreenso do homem e seu destino como ser livre e comunitrio, sendo a
prpria paz o fim ltimo da doutrina do Direito. Por isso, havia sentenciado
categoricamente na suaMetafsica dos Costumes (Parte I, Th. del Derecho, Sec.
III) no deve haver guerra. Ainda assim, o estado de paz sem dvidafruto de uma tarefa rdua e complicada, um elaborado mas frgil logro da
razo contra a natureza (Pereda, 1996:88) que, como explica Kant, portan-
to, deve ser instaurado (er mu gestiftet werden) de forma quase permanente,
perptua. Como destacava Truyol:
la guerra es violencia institucionalizada entre sociedades polticas, y su su-presin no es, como entendi gran parte del pacifismo tradicional, una
cuestin que dependa tan slo de la moral individual de los gobernantes(aun cuando no carezca sta de cierta influencia al respecto), sino una cues-tin institucional: la de la transferencia del monopolio legal de la fuerza demanos de los Estados a una organizacin dotada de un poder legislativo yun poder ejecutivo propios sobre la base de un Estado de Derecho mundial,en respeto de la identidad de los pueblos (1996:29).
Kant advertiu aos filsofos, como mestres do ideal (Lehrer im Ideal), a
no renunciar na sua misso de levar as luzes ao povo, promovendo as fina-
lidades essenciais da razo humana, posto que, em caso contrrio, se veriam
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seulptados por seus prprios doces sonhos (se Trume). Assim, o ideal de
paz lanado em Zum ewigen Frieden converte-se em mera quimera ou fruto
exaltado do entusiasmo se partimos da infundada crena da sua execuo
iminente (como aponta Rousseau na crtica ao projeto de Abb de Saint-
Pierre). Devemos, pois entend-lo na sua exposio original, como princpio
regulador e como dever racional a promover e impulsar, nesta aproximao
que progride ao infinito (ins Unendliche fortschreitende Annhrung). Somente
assim chegaremos paz da vida e no do cemitrio, esta paz kantiana
situada ucronicamente no outro lado do tempo.
A paz, diz Pereda, es una tarea tan difcil y tan indispensable que no
se puede exigir demasiado, basta con lo que realmente se consiga (1996:89).
Ainda assim, devemos manter-nos ativos na materializao de dito ideal,
sem buscar nada mais alm da constatao de estar, de fato, realizando uma
contribuio, sem importar seu tamanho, para o complexo processo de
construo da paz. Como apontava anos depois (em 1798) na sua Antropolo-gia em sentido pragmtico, antropologia autncia no somente lhe corres-
ponde ocupar-se da questo relativa do que o ser huano faz em si no plano
dos feitos, mas tambm lhe compete quanto deve fazer e em que consiste seu
destino racional (apud Brandt, 1996:60). Por isso, a construo da paz exige
aprender das experincias passadas, para saber quais se aproximam e quais
se desviam deste caminho de paz duradoura, procurando, precisamente,como apontava Kant, a possibilidade de uma paz, se no perptua, pelo
menos estvel; a paz perptua dos vivos como alternativa (certamente com-
plexa e provavelmente irrealizvel em suas ltimas instncias) paz perp-
tua dos mortos, esta sim, certeira e bem previsvel. Como concluia Max
Acheler em seu ensaio Zur Idee des ewigen Friedens und der Pazifismus (2000
[1927]:202-203):
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O que necessitamos um so sentido da realidade e um esprito firme, no-bre e valeroso do qual emane uma direo clara e firme dos ideais, de nossasidias e de nossa vontade em relao com a guerra, a paz e o exrcito; (...)
no um amor profundo mas estagnado, apagado e histrico, mas um amorsereno ptria e humanidade - no humanidade tal como , mas comoaparece na imagem eterna da sua determinao essencial dada por Deus -proporcionada a fora e a orientao luta espiritual por alcan-la.
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