PAES-MACHADO Jogo de Esconde-esconde

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    O JOGO DE ESCONDE-ESCONDETrabalho perigoso e ao social defensiva

    entre motoboys de Salvador*

    Eduardo Paes-MachadoMaria Anglica Riccio-Oliveira

    Introduo

    Os trabalhadores de moto-entrega ou moto-boys so um trao saliente da cena urbana brasilei-ra contempornea. Mais recentes, numerosos e in-discretos que seus equivalentes norte-americanos eeuropeus, os motoboys transportam em suas mo-tocicletas uma vasta gama de encomendas: desderemdios, alimentos e flores, passando por garra-

    fas de gua mineral, at celulares, cartes de crditoe dinheiro.1A expanso dos servios de moto-en-trega por causa de congestionamento das viasurbanas, praticidade para o consumidor, baixoscustos da mo-de-obra,2facilidade de ingresso naocupao, autonomia e excitao proporcionadaspela conduo de veculos versteis converteu estetrabalho em um plo de atrao para adultos e jo-vens do sexo masculino.

    Trata-se de uma atrao fatal ou quase fatal pelas

    caractersticas da atividade. A enorme presso, exerci-da por empresas e clientes, por rapidez nas entregas(Culley, 2002; Fincham, 2006, 2007) leva os moto-boys a cometerem imprudncias no trnsito. Junta-mente com os conflitos com motoristas,3estas con-tribuem para ocorrncias de acidentes fatais ou no(Culley, 2002; Fincham, 2006, 2007), que transformamestes trabalhadores em lderes do ranking nacionalde acidentes no trnsito (Marin e Queiroz, 2000).

    RBCS Vol. 24 no70 junho/2009

    Agradecemos a Capes pela oportunidade de um estgiode ps-doutorado no Centre for Criminological Research,School of Law, University of Sheffield, Reino Unido,no segundo semestre de 2007, onde este trabalho come-ou a ser elaborado. Agradecemos tambm a Joanna Sha-pland, Simon Holdaway, Philip Stenning, ChristopherBirkbeck, Tony Jefferson, Stevie Edgell, Phil Hardfield,

    Teela Sanders, Srgio Adorno e aos comentaristas anni-mos deste artigo.

    Artigo recebido em abril/2008Aprovado em abril/2009

    *

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    Conquanto a ansiedade provocada pelos aci-dentes ofusque, nos relatos dos atores, os riscos devitimizao por crimes predatrios,4 estes consti-tuem uma segunda sobrecarga, uma vez que os mo-toboys so alvos atrativos de roubo por conta de

    seus veculos, encomendas e pertences pessoais e,ao mesmo tempo, carecem de defesas formais, re-presentadas pelo policiamento estatal ou privado,contra eles (Hobbs et al., 2003). Nesse sentido, amanipulao e o transporte de valores, o trabalhoem trnsito, o grande raio de deslocamentos dirios(Niosh, 1996), a estigmatizao pblica5 e a des-proteo policial geram um dficit crnico de vigi-lncia que eles devem suprir atravs de defesas in-formais. Neste ponto, cabe interrogar: Quais soestas defesas? Como elas se adaptam aos diferentes

    espaos urbanos? Quais as possibilidades e os limi-tes delas para reduzirem as oportunidades de fur-tos, roubos, agresses fsicas?

    Esta linha de indagao remete ao papel da vigi-lncia na preveno de investidas predatrias, visan-do a explorar as oportunidades criadas pelas ativida-des rotineiras de indivduos e grupos sociais (Cohene Felson, 1979; Felson, 1986). Entendendo que taisoportunidades envolvem a disponibilidade de alvosvaliosos e a presena de vigilantes adequados, a faltadestes ltimos determina a opo para vitimizar

    com maior freqncia aqueles que esto em desvan-tagem para responder aos ataques (Cohen e Felson,1979; Birckbeck, 1984-1985; Beato et al., 2004) oumodificar seus padres de atividades (Felson, 2006).Segundo esta abordagem situacional do delito, in-divduos que cuidam de uma casa, membros dafamlia, colegas de trabalho, amigos e at estranhosna rua possuem mais condies de atuar como guar-dies adequados, porque tm mais probabilidadede estarem presentes nos eventos, do que policiais.

    Um dos limites desta teorizao que, embora

    ela reconhea a importncia de laos sociais, inte-resses comuns e responsabilidades compartilhadaspara a vigilncia adequada (Cohen e Felson, 1979;Felson, 2006), no h um aprofundamento da dis-cusso acerca das variaes desses laos na segu-rana de indivduos e grupos em diferentes contex-tos socioespaciais e legais. Este aspecto, delineadopela teoria do capital social (Coleman, 1988), foidirecionado para explicar os nveis diferenciados de

    criminalidade em distintos espaos urbanos pelateoria da eficcia coletiva (Sampson et al., 1997).Nessa linha de raciocnio, a teoria das vantagens eco-lgicas qualifica a influncia da eficcia coletiva combase na posio ecolgica ou posicionamento es-

    pacial dos lugares em termos de oportunidades emeios de controle social de crimes. Ao lado disso,essa teoria chama ateno para dois outros aspec-tos importantes para o presente estudo: os proces-sos de negociao entre atores legais e ilegais e asexpectativas de retaliao das disposies para agirna preveno do crime (St. Jean, 2007).

    Em termos mais especficos, a vigilncia com-preende defesas, primrias e secundrias, que obje-tivam tornar os crimes menos atrativos, mais arris-cados e mais difceis. Elas so aplicadas antes ou

    depois de detectar a presena de ameaas por meiode mtodos de ocultao, dissuaso, superao, de-sestmulo e oposio aos adversrios (Felson, 2006).6

    Ao tempo em que a quase totalidade desse tipo dedefesa depende de recursos prprios, individuais einter-individuais, e, por isso mesmo, se confundecom o que literatura tem denominado de auto-po-liciamento (self-policing) (Radford, 1987; Sanders,2005), a defesa secundria simbitica se d por meioda mobilizao dos recursos de vigilncia de ou-tros atores, legais e ilegais (Felson, 2006).

    Argumentamos que as (des)vantagens ecolgi-cas dos espaos urbanos estruturam e so, por suavez, estruturadas pela ao multidimensional dosatores nos planos da defesa individual, inter-indivi-dual e inter-grupal. medida que essas (des)van-tagens ecolgicas ou facilidades espaciais doslugares para a criminalidade predatria e suas v-timas, atuais e potenciais (St. Jean, 2007), condicio-nam a demanda e a forma de vigilncia adequada,as defesas podem ser pensadas como tticas socio-espaciais (Lysaght e Basten, 2003) restritivas e ex-

    pansivas. Tais tticas esto pautadas na adaptaopragmtica s situaes, na explorao das possibi-lidades existentes e, no caso das defesas expansivas,na negociao de vigilncia adequada de atores lci-tos e ilcitos. Ainda que ambos os tipos de tticasejam complementares, acreditamos que as de car-ter expansivo so mais efetivas para a reduo dasdesvantagens ecolgicas que atingem os motoboysdo que as defesas meramente restritivas.

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    Trabalho de campo

    O trabalho de campo foi realizado em 2004 eincluiu 53 entrevistas, subdivididas em 32 entrevis-tas semi-estruturadas e 21 no estruturadas, e 15

    horas de observao direta. Esta enfocou rotina detrabalho de moto-entrega, assemblias e concen-traes sindicais, audincias pblicas, encontros tc-nicos e reunies com policiais de trnsito. Alm dosmotoboys, foram entrevistados trs proprietriosde empresas de moto-entrega, o presidente do sin-dicato da categoria e o comandante da unidade es-pecial de policiamento de trnsito.

    Como critrios de seleo de motoboys para apesquisa utilizamos o tempo de exerccio profissio-nal (tempo mnimo de seis meses de exerccio e

    tempo mximo de um ano de afastamento), o tipode relao de trabalho (trabalhadores informais ouformais, terceirizados ou com vnculos diretos coma empresa contratante) e o tipo de atividade de en-trega (trabalhadores de lojas de alimentos, farm-cia, autopeas, vendas, correios, documentao eoutros, nas proximidades dos estabelecimentos ondeeles costumam ficar aglomerados em vrios pon-tos da cidade).

    Os contatos com os motoboys foram feitosde trs maneiras: abordagens seguidas por entrevis-

    tas no estruturadas nas ruas, indicaes do sindica-to da categoria e indicaes de colegas j entrevista-dos, com base na tcnica da bola de neve. As novasentrevistas foram realizadas no carro de um dospesquisadores ou em centros comerciais, com du-rao mdia de uma hora e meia. Tanto os nomesdos entrevistados como os bairros referenciadosforam alterados com o intuito de manter sigilo.

    Entre os 53 trabalhadores entrevistados, a siste-matizao dos dados sociodemogrficos correspon-dentes a 32 depoentes evidencia a predominncia

    quase absoluta do sexo masculino, negros-mestios,com segundo grau completo, casados e com filhos.Apenas seis trabalhadores eram solteiros. Os entre-vistados tinham uma idade que variava entre 30 e38 anos, sendo apenas nove com idade inferior aos30 anos e seis com idade superior aos 38 anos. Omais jovem entrevistado tinha 22 anos e o mais ve-lho 49 anos. A totalidade desses motoboys traba-lhava com motos prprias e apenas quatro deles

    possuam seguros de veculo. Todos residiam embairros de baixo poder aquisitivo de Salvador. Con-siderando-se as relaes de trabalho, dezessete tinhamcontrato direto com a empresa, onze eram autno-mos e quatro eram trabalhadores terceirizados. Trs

    deles trabalhavam noite como moto-taxistas.Quanto aos motoboys vitimizados (56% da

    amostra), dois perderam a moto por furto, oitosofreram tentativas de assalto e oito j tinham sidoassaltados. Entre estes ltimos, dois foram vtimasrepetidas de assalto. Contudo, em vez destes ele-vados nveis de vitimizao causarem sentimentosde impotncia (Paes-Machado e Nascimento, 2006),os motoboys entrevistados manifestaram confian-a nas virtudes das suas defesas para enfrentar osperigos e as ameaas do dia-a-dia.

    Tticas socioespaciais restritivas

    As defesas restritivas, individuais e inter-indivi-duais, visam a evitar interaes foradas (Katz, 1988)com indivduos e ambientes hostis e, no limite, con-tra-atacar as ameaas e os perigos advindos da. Taisdefesas so apropriadas para reas ecolgicas, aexemplo de locais de passagem e lugares com rotasde fugas, onde o outro o infrator est l no

    domina por completo a situao ou pode ser neu-tralizado por diferentes artimanhas, como: uso deequipamentos contra furtos, imitao de motoci-cletas velhas, checagem dos endereos dos destina-trios, uso seletivo do uniforme de trabalho, reali-zao de entregas em dupla, cuidados especiais comencomendas de maior valor, mudanas previstas eimprevistas de itinerrios (fugas) e suspenso dasentregas nas reas ecolgicas mais arriscadas.

    Alm de prestarem bastante ateno aos locaisde estacionamento, os motoboys utilizam equipa-

    mentos para dificultar furtos de veculos, como alar-mes, travas e correntes, chegando a retirar peasdos motores dos veculos para estes no funciona-rem. Trata-se de procedimentos que, objetivandoaumentar a inrcia e reduzir a atratividade do alvo(Cohen e Felson, 1979), so compatveis com pelomenos dois aspectos importantes. De um lado, aexistncia de um mercado ilegal de motocicletas epeas roubadas que alimentado pelo consumo

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    predatrio (Zaluar, 1994; Neto et al., s.d) dos mo-tociclistas e dos prprios motoboys. No propsitode rebaixar os custos das motos, tais atores estimu-lam atividades predatrias contra indivduos e gru-pos possuidores desses bens (Paes-Machado, 2006).

    De outro, o fato de a maioria desses trabalhadores,a exemplo de trs quartos dos proprietrios de ve-culos no Brasil, no possuir seguro contra perdastotais ou parciais das suas motocicletas, arriscandoa perder o emprego, j que, como foi declaradopelos entrevistados, sem moto[prpria] no h traba-lho (Weher, s.d). Tais medidas de precauo soinsuficientes, contudo, para impedir que as motoci-cletas sejam furtadas e carregadas por veculos utili-trios, ou mesmo roubadas no trnsito.

    Uma segunda medida contra furtos e roubos

    das motocicletas consiste na reduo do valor e davisibilidade relativa da moto mediante a imitao(Felson, 2006) de veculos mais velhos ou gastos.Isto feito com a colagem de adesivos na carroce-ria, retirada de peas e conservao da sujeira sobreos mesmos (Neto et al., s.d). O objetivo depreciaro valor da oportunidade (Birkbeck, 1984-1985) re-presentada pelas motocicletas para que elas no fi-quem visadas pelos ladres, mesmo que isto sig-nifique abrir mo, ao menos temporariamente, dadistino social e do narcisismo associados posse

    de veculos novos e reluzentes. Em sociedades onde,apesar dos elevados ndices de crimes, os mem-bros das classes altas e mdias insistem com a os-tentao de smbolos de distino que contribuempara torn-los alvos atrativos, esse bom senso dosestigmatizados motoboys algo a ser lembrado.Entretanto, e a exemplo do carter incerto de qual-quer defesa, para predadores interessados no des-manche das motocicletas e venda de peas avulsas,tais truques no chegam a ser um impedimento.

    Embora a checagem de endereos dos clientes

    seja comum na atividade de entrega, ela est per-meada pela funo de segurana (Iafolla, 2004) etem um carter proativo contra roubos. Esta che-cagem feita a partir do catlogo telefnico, dasempresas de telefonia, das consultas aos colegas, daschamadas para localizar endereos, verificando aidentidade e vasculhando riscos associados aos usu-rios (Sanders, 2005). Tal mtodo, porm, pode serneutralizado por falsos clientes ou imitadores (Gam-

    betta e Hammil, 2005; Sanders, 2005; Felson, 2006)que, aps fazerem pedidos e fornecerem endere-os aparentemente corretos, o chamado trote,assaltam os motoboys:

    [...] s vezes a gente tambm assaltado emcertas entregas que a gente faz que so trotes.Isso muito freqente, o cara faz o pedido, do endereo certo e quando a gente chega l, ocara est embaixo esperando a gente pra assal-tar (Edu, 23 anos).

    A manipulao da identidade mediante a imi-tao (Felson, 2006) uma defesa bastante utilizadano transporte de encomendas mais valiosas. A imi-tao envolve o uso seletivo de fardas e equipa-

    mentos no intuito de reduzir a visibilidade (Lysagthe Basten, 2003; Felson, 2006), evitar a identificaoou ocultar a associao (Sanders, 2005) com esta-belecimentos que operam com dinheiro, tales decheque, cartes telefnicos, tquetes e outros obje-tos. Esta prtica, contudo, no est isenta de ambi-valncia. Ao tempo em que os trabalhadores se sen-tem orgulhosos e mais seguros quando usam fardase mochilas com logotipos das suas empresas, elessubstituem, quando esto fazendo este tipo de en-trega, a roupa de trabalho pelo prprio vesturio

    para se confundirem com outros motoboys e, des-se modo, se ocultarem dos agressores (Felson, 2006).

    Ora, se esta uma boa receita para se safar deassaltantes, o mesmo no vale para o pblico e apolcia. A falta de uniforme alimenta suspeitas e dis-criminao dos transeuntes contra os motoboys.Quanto polcia, cuja atuao constitui, em vriosaspectos, um risco adicional para esses trabalhado-res (Sanders, 2005; Riccio-Oliveira, 2005), por con-ta da estigmatizao da categoria e dos abusos deautoridade, ela pra e revista mais freqentemente

    os motoboys no uniformizados, fazendo-os per-der tempo e mesmo submetendo-os a arbitrarieda-des (Riccio-Oliveira, 2005). Vale lembrar que tambmno recomendvel passar em casa para almoarcom as encomendas, como ainda hbito entre osmotoboys da regio analisada.

    O trabalho em dupla, do motoboy acompa-nhado por um conhecido na garupa do veculo outra forma de defesa grupal (Felson, 2006) contra

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    roubos de motocicletas praticados por duplas demotociclistas infratores. Por disporem de veculosvelozes, celulares e armas de fogo para cometercrimes e evitar flagrantes, em diferentes lugares emomentos, as aes dessas duplas j foram chama-

    das de violncia pau de fsforo. Ainda que omotoboy tenha que pagar ao parceiro com recur-sos do seu prprio bolso, esta prtica explora otemor despertado, em muita gente, por duplas demotociclistas e sinaliza os infratores de planto queele est preparado para reagir. O trabalho em du-pla, porm, apresenta a mesma desvantagem, men-cionada antes, de favorecer as suspeitas do pblicoe as abordagens da polcia:

    Tm atividades que a gente trabalha de dois,

    pelo seguinte: eu s vezes, quando estou entre-gando convite noite, chamo algum amigo meu,dou um dinheiro a ele, e ele vai comigo entre-gando... Por que eu fao isso? Pra minha pr-pria segurana. Eu vou ser parado mil vezes[pela polcia], mas eu vou estar seguro tambm...Porque o ladro vai pensar que eu sou ladro, eno vai querer me parar, e no vai me roubar...O bandido que est l rondando no encostaem mim! (Luis, 30 anos).

    Ao lado dessa forma de defesa grupal, os mo-toboys tambm recorrem chamada defesa socialemergente (Felson, 2006). Fundada na solidarieda-de e advinda das condies de trabalho, da estig-matizao e da sensao de desproteo e de umaconcepo reativa da masculinidade, a defesa socialse expressa na formao de grupos de apoio a co-legas envolvidos em conflitos nas ruas: A classe muito unida e se um motoboy estiver brigando comum motorista, todos vo ajudar (Renato, 26 anos).Tal defesa faz com que os motoboys sejam parti-

    cularmente temidos. Embora a defesa social sejacomum nas situaes de conflito com motoristas,ela no funciona contra ataques violentos e rpidos.

    No transporte de dinheiro e encomendas maisvaliosas, os trabalhadores empregam mtodos deocultao e despistamento. Afora o desejo de noterem prejuzos, os trabalhadores temem ser res-ponsabilizados (Ewald, 2002; Paes-Machado eNascimento, 2006) pelos estabelecimentos: receiam

    ser considerados suspeitos, perderem o emprego eangariarem referncias negativas que dificultaro aobteno de um novo posto de trabalho (Riccio-Oliveira, 2005).

    Essa linha de defesa manifesta-se no cuidado

    com a manipulao e o transporte de dinheiro subatividade de entrega mais perigosa segundo ostrabalhadores dentro e fora das agncias bancriase estabelecimentos comerciais. Nas agncias, elesbuscam no chamar ateno de predadores quecostumam espreitar a movimentao dos saques pararoubar vtimas potenciais, como os motoboys ououtros clientes, quando eles saem dos estabelecimen-tos, de acordo com uma modalidade de crime co-nhecida como saidinha bancria. Os motoboysque trabalham com estas encomendas tambm li-

    mitam, com o consentimento de seus patres, ovolume das retiradas e entregas de dinheiro. Tal pr-tica, que multiplica os trajetos, fragmenta e dilata otempo de cumprimento das tarefas, seria mais com-plicada se a remunerao da fora de trabalho e oconsumo de combustvel fossem mais elevados.7

    O terceiro procedimento consiste em distribuir osvalores em vrios compartimentos, como bolsos,mochilas etc. para evitar perdas totais caso haja umassalto. Esta e outras receitas esto resumidas noseguinte trecho:

    Muitas vezes quando vou entregar valores, voucom as encomendas em mochilas e mais umcolega na garupa para despistar; tambm pro-curo sair em horrios diferentes para no ficarmuito visado. Tambm no uso a camisa como logotipo nem a mochila da empresa (Paulo,49 anos).

    Um dos limites desse tipo de defesa, ignoradopela literatura especializada (Felson, 2006), deriva de

    um dos mais temveis riscos apresentados pelo tra-balho de moto-entrega: a infiltrao predatria dosestabelecimentos por infratores que fornecem in-formaes para seus comparsas roubarem os mo-toboys. Trabalhar com o inimigo sem saber umdos caminhos mais curtos para o inferno. Contraisto apenas o sigilo entre colegas de trabalho e atentativa de desestimular, por meio de vrias arti-manhas, os infratores.

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    Do mesmo modo que outros grupos que sedeslocam em zonas de risco (Lysaght e Basten,2003), os motoboys tambm modificam suas rotasde deslocamento para no se tornarem alvos fceis.Tais modificaes envolvem tanto as mudanas

    previstas de itinerrios para alterar as atividades ro-tineiras (Felson, 2006) ou reduzir a previsibilidadede tempo e lugar de deslocamento (Lysaght e Bas-ten, 2003), como as mudanas imprevistas para es-capar de encontros perigosos e confrontos armados(Linger, 1992; Paes-Machado e Levenstein, 2004).

    Se o uso de carros permite aos motoristas su-perar riscos de violncia associados s divises es-paciais (Lysaght e Basten, 2003), isto no se aplicaao emprego de veculos para atividades profissio-nais (Gambetta e Hammil, 2005). No caso dos

    motoboys, por melhores que sejam a mobilidade ea viso proporcionadas por suas motocicletas, elestransportam bens cobiados e seguem rotinas maisrgidas e identificveis do que os motoristas noprofissionais (Lysaght e Basten, 2003). assim que,quanto maior o limite para modificar esta rotina,por causa dos horrios comerciais, e quanto maio-res os riscos de infiltrao criminosa, mais imperio-sa a necessidade de variar os itinerrios ou attransferir, em acordo com os estabelecimentos, otransporte das encomendas visadas para carros.

    Nestes casos [de assaltos], eles j sabem o que agente leva. Isto aconteceu com um colega meuda empresa. A eu tive que mudar todo o meuroteiro e os meus horrios... cada dia eu ia porum lugar diferente, num horrio diferente, svezes no levava o malote... s vezes eu levavas documentos, [o] dinheiro e cheque ia de carro,porque os caras realmente sabiam tudo. Omalandro deu placa de moto, as cores da moto,a descrio de cada um da gente, o que a gente

    levava, o horrio certinho, tudo... muitas vezes temgente da prpria empresa envolvida, principal-mente pra quem trabalha em banco (Edu, 23anos).

    A competncia espacial,8 a sabedoria de rua(Anderson, 1990) e o conhecimento sofisticado daecologia urbana (St. Jean, 2007) dos motoboys per-mitem rastrear, ao modo de radares ultra-sensveis,

    sinais quase imperceptveis de alterao no ambien-te, registrando movimentos de motociclistas sus-peitos e orientando mudanas imprevistas de iti-nerrios. O lema aqui no esperar para ver:

    A gente j desconfia quando v dois numamoto... qualquer coisa fora do padro, qualquercoisa que seja suspeita voc realmente tem quemudar o seu itinerrio, tem que entrar em al-gum lugar, fingir que parou, que vai falar comalgum, que vai pedir uma informao... fazerqualquer coisa pra poder evitar o assalto... (Car-los, 30 anos).

    Pode-se verificar neste trecho como o estadode alerta aos perigos e s ameaas que brotam das

    ruas potencializa a acuidade perceptiva como meiode antecipao, tomando a forma de um habitusque j fez com que esses trabalhadores fossem cha-mados de ases do asfalto (Riccio-Oliveira, 2006).

    A prioridade desencorajar os atacantes emobilizar defesas de outros atores, seguranas oupoliciais, para inibi-los (Felson, 2006) por meio deum verdadeiro jogo de esconde-esconde. Ao ob-servarem motos com dois ocupantes na proximi-dade dos semforos, onde acontecem muitos as-saltos de motoboys (Riccio-Oliveira, 2005) e de

    condutores de outros tipos de veculos, eles fazembruscas e arriscadas manobras de trnsito e de iti-nerrio, reduzindo ou aumentando a velocidade parano parar junto a tais motociclistas. Outras tticassocioespaciais adotadas nessas situaes so: entrarem ruas secundrias, aproximar-se de um aglome-rado de pessoas, parar simulando buscar informa-es, ir para a outra extremidade da via e avanar osinal (Riccio-Oliveira, 2005). Em deslocamento, osmotoboys tambm evitam pilotar prximos aduplas de motociclistas suspeitas ou prestar socor-

    ro, por mais solidrios que sejam com seus colegas(Neto etal., s.d), assim como procuram se aproxi-mar, menor desconfiana de que esto sendo segui-dos, de locais onde haja seguranas ou policiais. Almde aumentarem os riscos de acidentes, essas mano-bras arriscadas nem sempre conseguem esquivar-sede motociclistas delinqentes que, alm de pilota-rem motocicletas mais velozes, tambm possuemum conhecimento sofisticado da ecologia urbana

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    ou tiram proveito da noite para emboscar os mo-toboys, s vezes com arames estendidos nas ruas.

    No caso de serem surpreendidos por atacan-tes, s resta a esses trabalhadores a submisso ou atentativa de fuga (Conklin, 1972; Wright e Decker,

    1997; Matthews, 2002; Felson, 2006). O que determi-na a opo pela fuga, seja ela bem ou mal-sucedida, o receio de que as empresas os responsabilizem,levando os motoboys a assumirem atitudes precipi-tadas para defender os produtos conduzidos (Ric-cio-Oliveira, 2005), ou mesmo a idia de que tmchances de escapar ilesos ou ainda a reao emocionalinesperada (Paes-Machado e Levenstein, 2004). Veja-mos ento dois exemplos de fuga numa situaode encontro perigoso. No primeiro, o fato de osinfratores demonstrarem pouco poder de dissuaso

    (Conklin, 1972; Wright e Decker, 1997; Matthews,2002) fez uma dupla de motoboys desobedecer aordem de parar, empreendendo uma fuga que po-deria resultar em tragdia. No segundo, o mesmomotoboy empreendeu duas fugas arriscadas damesma dupla de assaltantes. Se a primeira fuga foifrustrada pelo disparo de um tiro, na segunda ele sejogou, na falta de rotas alternativas e aparentementetomado pelo desespero, em uma vala com a moto.

    A fuga tambm a principal defesa quandoeles adentram, inadvertidamente, uma rea ecolgi-

    ca de risco transformada em campo de batalha entregrupos de infratores ou entre estes e as foras poli-ciais. Diante de episdios perigosos como estes, osmotoboys buscam um refgio no local e/ou retor-nam empresa sem entregar a encomenda, comoveremos a seguir.

    Suspenso das entregas

    O comportamento de risco no uma ao indi-

    vidual ou isolada, mas modelado socialmente pelasrelaes de poder e negociao entre atores desigual-mente dotados para impor, aceitar ou evitar condutasconsideradas arriscadas (Rhodes, 1997). assim que,em meio s dinmicas complexas que envolvem aexistncia e as reaes ao risco (Best, Lukenbill,1982), preciso atentar para os processos de resistn-cia contra a imposio de condutas que ultrapassamo patamar de tolerncia de indivduos e grupos.

    No contexto aqui estudado, chama ateno ocomportamento dos trabalhadores de suspender asentregas em rea ecolgicas onde foram alvo deinvestidas ou ameaas predatrias. Entre os vrioscritrios de tipificao dessas reas, um fator decisi-

    vo a inexistncia de lideranas criminosas que pos-suam domnio territorial e forneam crditos deproteo aos motoboys.

    Se com respeito s demais tticas socioespaciaish um consenso entre motoboys e estabelecimen-tos acerca da sua validade, isto no acontece com asuspenso das entregas. Por ameaar o fluxo deencomendas e colocar em xeque o precrio equil-brio entre condutas de aceitao e averso a riscos,a suspenso das entregas malvista pelos estabele-cimentos. Uma vez que a base do negcio garan-

    tir acima de tudo a continuidade das entregas parano perder clientes, no importa os meios e os sacrif-cios realizados para isto. A postura temerria de ar-riscar a sofrer ataques predatrios reforada pelaameaa de demisso. Da que, apesar de a grandemaioria dos entrevistados ter expressado o desejode interromper suas atividades nas reas ecolgicasde alto risco, a tendncia geral buscar vencer seusmedos e continuar o trabalho. Esta postura, no en-tanto, pode mudar conforme a gravidade dos pe-rigos e ameaas, levando esses trabalhadores a

    suspenderem velada ou abertamente a entrega deencomendas.

    Na linha da chamada resistncia cotidiana, osmotoboys criam mentiras plausveis, como, por exem-plo, a no identificao dos endereos de clientespor causa do carter acidentado e irregular do cascourbano, para no entrarem em rota de coliso comas empresas (Scott, 1990). Quando tem local peri-goso eu invento uma desculpa. Eu digo que noachei a casa e a empresa liga mandando o cliente irbuscar na loja (Marcelo, 22 anos). Em contrapon-

    to com este procedimento velado, vrios entrevista-dos so mais assertivos: Eu me recuso a fazer entre-ga em local perigoso. A empresa no assume atitudenenhuma(Zivaldo, 28 anos). Sem ignorar o poderde barganha diferenciado de indivduos e gruposdentro da ocupao, esta postura deve ser vistacomo uma forma de resistncia lgica de desres-ponsabilizao ou descaso dos estabelecimentoscom os riscos de vitimizao de seus empregados

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    (Paes-Machado e Nascimento, 2004). Este o casodo entrevistado, j mencionado anteriormente, queaps ter sofrido uma ameaa de assalto resolveususpender as entregas na rea onde aconteceu o fato.

    Quanto posio dos estabelecimentos, fatores

    como os prejuzos resultantes de roubos, a resistn-cia continuada dos trabalhadores e a visibilidadepblica negativa das reas ecolgicas de alto riscopodem lev-los a concordar com as interrupes deentregas e se inclinarem para medidas de maior se-gurana. Em uma linha proativa de gerenciamentode riscos, algumas empresas, a exemplo de cadeias depizzarias, farmcias, entre outras, no somente cortamas entregas em locais mais inseguros, como tambmelaboram mapas de risco informatizados dos pon-tos quentes (hot spots), algumas vezes representados

    com caveiras, para orientar a deciso de entrega.Infortunadamente, essas iniciativas so ou ten-

    dem a permanecer marginais no conjunto da ati-vidade. Em primeiro lugar, por causa das grandesdiferenas entre os estabelecimentos quanto s es-tratgias de venda, gerenciamento de riscos e dispo-nibilidade de tecnologias de segurana. Em segun-do, porque a recusa de muitas entregas faz com queos motoboys relaxem suas defesas e aceitem fazer,pressionados pela sobrevivncia, entregas em reasto ou mais perigosas do que as que foram recusa-

    das (Gambetta e Hammil, 2005).Um balano dessa e das demais tticas socioes-

    paciais restritivas analisadas revela a diversidade, aflexibilidade e a capacidade de adaptao s (des)van-tagens ecolgicas representadas pelos perigos e amea-as percebidas em determinados espaos urbanos.Mostra tambm como, apesar do enorme nus paraos trabalhadores, essas defesas esto comprometi-das por seus efeitos antecipados ou no, e podemgerar efeitos diferentes dos esperados (Sanders,2005). Esta pontualidade e imprevisibilidade das

    defesas restritivas contrasta com a maior continui-dade e previsibilidade das defesas tticas socioes-paciais expansivas.

    Tticas socioespaciais expansivas

    Conquanto a literatura especializada sobre con-trole da criminalidade saliente o papel das defesas

    restritivas e da vigilncia prestada por atores legais(Shapland e Hall, 2005; Felson, 2006), o mundo socialda atividade de moto-entrega, em espaos urbanoscomo o de Salvador, aponta para direes menosortodoxas. Estas envolvem interaes completas

    (Hannerz, 1980) e negociaes com atores ilegaispara gerenciar crimes aleatrios (St. Jean, 2007) ouse defender de predadores avulsos. Essa negocia-o para lograr vigilncia adequada de atores ilegaisest muito presente em reas ecolgicas onde ooutro o infrator est aqui possui domnio terri-torial e limita a circulao de pessoas, bens e servi-os mediante autorizaes especiais (Fonseca e Bri-to, 2008) ou crditos de proteo.

    Os crditos de proteo fornecidos aos moto-boys pelos caras compatibilizam a manuteno

    da normalidade do fluxo de encomendas com odomnio territorial (Tapparelli, 1996). Se para os mo-toboys complicado suspender as atividades de en-trega, aos membros das quadrilhas tampouco inte-ressa sustar os recebimentos de encomendas, vistoque tanto eles como os moradores dependem delaspara seu abastecimento. Por sua vez, o controle ter-ritorial recomenda limitaes ao acesso e circula-o de pessoas estranhas s localidades, em especial,de condutores de veculos, como carros e motocicle-tas, para se defenderem de ataques. Contra esses,

    os caras possuem dispositivos eficientes de obser-vao, comunicao, poder de fogo e, em algumassituaes, toque de recolher.

    Do ponto de vista dos trabalhadores, os acertospara recebimento de crditos de proteo constituemuma iniciativa corajosa e, ao mesmo tempo, uma ren-dio pela assimetria das relaes entre os atores enatureza das concesses feitas. Esses acertos tambmpodem ser vistos como uma ruptura do princpiodas defesas restritivas, individuais e inter-individuais,pelo fato de os motoboys passarem a depender da

    proviso de vigilncia pelos caras. Pensando nestee em outros exemplos parecidos, pode-se afirmarque a segurana no uma propriedade social cumu-lativa que permite somar todos os meios desejveispara lidar com os perigos e as ameaas. A busca desegurana tambm envolve subtraes resultantes deincompatibilidades de escolhas e compromissos nodesejados, mas incontornveis, que emolduram as ativi-dades e as situaes concretas de indivduos e grupos.

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    A permisso para entrar em reas controladaspor quadrilhas passa pela aceitao de exignciasrelativas liberdade de ir e vir, ao uso de equipa-mentos de segurana e conduo de motocicletas,cujos usos delituosos so bem conhecidos por to-

    dos. Conseqentemente, os motoboys no devemcircular com capacetes e motocicletas, devem sesubmeter ao pagamento de extorses e, em certoscasos, transferir a entrega de encomendas paramotoboys residentes ou conhecidos nestas reas.

    Despir-se do seu principal instrumento de pro-teo individual o capacete a primeira exign-cia a ser atendida. A exemplo do que sucede nasportarias de estabelecimentos financeiro-comerciaise prdios residenciais, os motoboys devem retirarseus capacetes nestas reas ecolgicas (Culley, 2002;

    Riccio-Oliveira, 2005). Os riscos de acidentes, demultas de trnsito ou os inconvenientes causadospela chuva so considerados menos graves do queo descumprimento de uma regra obrigatria de cir-culao. Ironicamente, o artefato que garante pro-teo a uns visto como uma ameaa a outros, porfavorecer, tal como as mscaras, o anonimato peri-goso dos seus portadores (Huggins et al., 2006). Nocaso dessas reas, a justificativa, no de todo infunda-da dos caras, que sob o capacete de um moto-ciclista pode estar um inimigo em potencial, um

    policial ou um delinqente rival.Apesar dessas limitaes, vrios entrevistados

    mencionaram a flexibilidade das quadrilhas comrespeito aos entregadores de medicamentos. Elasno querem se responsabilizar pela falta de medica-o aos doentes porque podem ficar com a ima-gem prejudicada junto aos moradores das localida-des. Aps checarem as credenciais, revistarem asmochilas e verificarem os documentos de identida-de, eles liberam o acesso ao local e at auxiliam osmotoboys a encontrar o endereo desejado:

    Simplesmente tem que esperar que eles venhampara saber qual o problema... voc abre a sa-cola e mostra que est trabalhando. Quando agente mostra que est trabalhando a coisa ficamais fcil. Principalmente quando remdio... uma coisa mais fcil de trabalhar porque elesrespeitam muito quando remdio... E a elesliberam a gente numa boa, chegam a levar na

    casa e tudo, chegam a ajudar... Eles chegaram ame ajudar uma vez, eu procurando um ende-reo de madrugada... mas dava medo! (Valdir,31 anos).

    O pagamento de extorso para circular, ter aces-so ou permanecer nos espaos urbanos um padrodifundido nas cidades brasileiras (Paes-Machado eLevenstein, 2004; Paes-Machado e Noronha, 2002).Os agentes das extorses so, entre outros, men-digos, crianas em situao de rua, vendedoresambulantes, guardadores informais de automveis,vigilantes clandestinos e quadrilhas de bairros. Aolado da presso do emprego (e do subemprego), acompreenso alargada do fenmeno envolve doisdeterminantes sociolegais: a normalizao da intimida-

    o para lograr vantagens monetrias e o descasodas autoridades pblicas com respeito a esse tipo deilegalidade. No que se refere s quadrilhas de bairro,estas se valem da sua reputao de violncia (Volkov,2002) para cobrar proteo ao indivduo e a gruposque vivem ou circulam em reas que esto sob seucontrole. Afora ser uma renda complementar, as ex-torses simbolizam e reforam o domnio territorial.

    Com efeito, nas reas ecolgicas de risco aquireferidas, a liberdade de ir e vir depende do paga-mento do pedgio (toll) ou forma de renda de

    proteo (Volkov, 2002), em dinheiro ou em esp-cie tquetes de alimentao e vales transporte etc.Muita gente j deixa separado um valor para isto(Gambetta e Hammil, 2005; Paes-Machado e Le-venstein, 2004), o chamado dinheiro do ladro.Qualquer tentativa de no pagamento tomadacomo uma ofensa e como pretexto para os agres-sores seguindo a conhecida expresso de ou dou desce intensificarem a presso, roubarem ospertences e at agredirem as vtimas:

    s vezes a gente est indo visitar os clientes erecebe aquela abordagem: Me d um dinhei-ro a! Isso pra poder passar. s vezes arma-dos [...] A verdade essa, entendeu? A s vezesa gente no conseguia dizer que no, porqueeles s esperam que a gente diga no pra tomaraquilo como ofensa, e a vai at mesmo lhe as-saltar, tomar tudo que voc tem... Ento atmelhor dar, entendeu? Pelo menos j ficava at

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    um pouco mais conhecido na rea, pra quandotiver que voltar (Ari, 30 anos).

    Tais extorses esto de tal modo integradas rotina desses trabalhadores que so vistas de modo

    positivo, como um meio de ficarem conhecidos,ganharem a simpatia e facilitarem suas atividades.Nessa condio, os pagamentos podero ser sus-pensos, relaxados ou mesmo substitudos por favo-res. Uma vez conhecido, o motoboy passa a mere-cer uma considerao pessoal que opera comocrdito de proteo contra investidas de terceiros,elementos da quadrilha ou predadores avulsos:

    Logo quando eu comecei a trabalhar aqui em-baixo, eu no conhecia ningum, ento eu pas-

    sava e os meninos: Me d um dinheiro pra eucomprar maconha, me d um real pra inteirara maconha a.... Eu no conhecia muita gente,a eu dava com medo de ser assaltado... Eu viaeles fumando maconha, ficava com medo, entodava... Mas agora que eu j conheo eles, todosj me conhecem, a agora eu no dou mais...tambm eles no pedem mais... e tambm sever algum mexer comigo, eles j no deixam... que eu j conheo todos eles, j fiz amizadecom todo mundo. Meninos, pessoas adultas,

    todos gostam de mim... (Pedro, 31 anos).

    Conforme este depoimento, os contatos iniciaisdo motoboy com a quadrilha pavimentaram ocaminho para uma relao proveitosa, e o que po-deria se converter em extorso continuada (Volkov,2002; Misse, 1997; Cano e Iooty, 2008) resultou naaquisio de vigilantes capazes de reduzir a vulnera-bilidade do trabalhador.

    Por fim, quando os caras s permitem o aces-so de trabalhadores conhecidos ou de sua confiana,

    os motoboys recusados informam seus estabeleci-mentos e buscam, sob a orientao destes, identificare contatar trabalhadores adequados tarefa. A con-fiana proveniente dos laos de conhecimento substi-tui os demais mecanismos de credenciamento deproteo e at os pagamentos monetrios, contri-buindo para estabilizar transaes e render benef-cios aos atores envolvidos: Escapei vrias vezes por-que conheo os caras de onde eu moro e eles no

    me assaltavam. Quando via que iam me assaltar, eucumprimentava e a velho, ento no me roubavamporque sou da rea (Cassandro, 22 anos). Aqui,como em muitos domnios sociais, as relaes infor-mais, iniciadas de modo casual ou a partir das reco-

    mendaes de terceiros, constituem uma credencial(Monaghan, 2002) mais eficiente para lograr vigiln-cia adequada do que qualquer canal burocrtico-legal.

    Redes sociais de vigilncia

    Considerando o dficit crnico de vigilncia dostrabalhadores de moto-entrega, as expectativas e asobrigaes criadas e consolidadas por meio de la-os sociais (Coleman, 1988) com os moradores tam-

    bm cumprem um importante papel na provisode segurana a eles. Ainda que no se possa exage-rar a influncia destas expectativas e obrigaes napreveno do crime em especial de crimes consi-derados srios como assaltos e trfico de drogas ,ela suficiente para prover vigilncia a atividadescomo a entrega de encomendas, que no incorremem riscos de retaliao por parte de elementos cri-minosos (St. Jean, 2007). Nessa linha, o apoio dosmoradores funciona como um amortecedor (buffer)ecolgico mais eficiente do que o crdito de prote-

    o concedido pela gangues de bairro.A mobilizao desse capital social, incluindo a

    familiaridade com o espao, se manifesta na obten-o e na transmisso de informaes, proviso devigilncia pessoal e patrimonial e auxlio, direto eindireto, s entregas em reas onde os motoboysesto impedidos de realizar seu trabalho. As redessociais de vizinhos a principal fonte de informa-o para mapear riscos, avaliar ameaas e conheceras regras de circulao estabelecidas como, porexemplo, a exigncia, j examinada antes, de os

    motoboys no usarem capacetes. Este foi o casode um motoboy que trabalha como fiscal do servi-o de limpeza pblica e que, ao entrar em um bair-ro inseguro, foi alertado por um transeunte a retiraro capacete para no ser confundido com um inimigo,evitando assim, porventura, um desfecho trgico.

    Rapaz, eu vou lhe falar uma coisa, quando vocentrar no bairro Q tire o capacete. Voc j foi

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    confundido ali dentro com polcia, eu que disseaos caras [delinqentes] que voc no era pol-cia. Voc j soube que teve gente que j quis atmeter bala em voc l dentro? E eu no sabiade nada... Ele disse: Quando voc entrar no

    Bairro X tire o capacete e quando voc me vse aproxime e v conversar comigo. A eu fizisso, ele me apresentou malandragem e rela-tou aos caras o que conversou comigo. Elesdisseram: Voc pulou uma fogueira aqui den-tro, estava tendo a maior guerra aqui, os poli-ciais estavam encarnando [fazendo operaes],e voc pra l e pra c com essa moto a... Jteve gente que teve vontade de meter a bala emvoc... Voc veja, eu poderia estar morto semsaber por que! (Mateus, 33 anos).

    Dadas estas e outras restries impostas pelasquadrilhas, tudo seria mais difcil sem a vigilnciapatrimonial igualmente proporcionada pelos vizi-nhos (St. Jean, 2007). assim que, no que se refereao impedimento de circular de motocicleta, os tra-balhadores tambm recorrem aos moradores dasua confiana para guardar seus veculos e pertencespessoais enquanto realizam os roteiros de entrega ap, o que prolonga o tempo gasto na tarefa, causaprejuzos financeiros e desgaste fsico-psicolgico.

    No bairro Q a rota tinha que ser toda a pmesmo. S ia de moto at o incio, pois esseera o nico bar onde eu podia largar a moto,porque eu j tinha uma certa confiana com odono do estabelecimento. Eu deixava a motol, chamava por Deus e ia fazer a rota... Querdizer, uma rota que de moto eu acabava emuma hora, mas como eu tinha que fazer a p...na cara e na coragem mesmo... eu gastava, maisou menos, umas trs horas, trs horas e meia

    de relgio... (Jos, 34 anos).

    Ao lado desse apoio logstico, os trabalhadorescontam com a ajuda dos vizinhos para a redistri-buio das encomendas (Fonseca e Brito, 2008). Pormais banal que parea, esta redistribuio operacomo uma socializao informal de riscos, respon-sabilidades e tarefas que modifica a forma da ativi-dade e redimensiona o papel dos motoboys na

    aproximao dos domnios da oferta e da deman-da. Seguindo esta lgica de flexibilizao da cadeiade entregas, os motoboys delegam parte de suasatividades a moradores, comerciantes e lideranaslocais, que passam a atuar como pontes de ligao

    com clientes e vigilantes patrimoniais. Assim, osmoradores assumem, de modo voluntrio, tarefastpicas dos motoboys, a exemplo da identificao edos contatos com clientes, guarda e entrega de en-comendas. Para os trabalhadores, ficar na retaguar-da dos moradores enquanto esses assumem encar-gos da distribuio garante a efetivao das entregas,poupa tempo e evita, ao modo de um amortece-dor, ataques predatrios.

    No bairro M tem uma escola que a gente no pode ir. A

    gente tem que entregar o material da escola diretora deuma outra escola, porque tem uma professora que tododia tarde vai at l... a a gente d uma quantidade maiordos folhetos e a professora pega e faz esse trabalho pragente... leva l (Luis, 30 anos).

    Isso tambm acontece para as encomendas quenecessitam de comprovante de recebimento como,por exemplo, cartas registradas. Como as experin-cias de colegas assaltados desaconselham entregasdiretas, os trabalhadores limitam-se a transmitir re-cados para os destinatrios irem buscar suas enco-

    mendas na sede do estabelecimento, o que maisuma inovao nessa atividade (Culley, 2002; Fincham,2006, 2007; Wehr, s.d).

    No bairro Q tem uma associao de morado-res onde deixo as correspondncias normais.Quando carta registrada, deixo um bilheteavisando para o cliente ir buscar na agncia. OsCorreios no fazem a entrega [direta ao cliente]porque muitos motoqueiros j foram assalta-dos [...]. Se ns formos [entregar], iremos ficar

    tomando informaes e corremos o risco desermos assaltados (Edvaldo, 43 anos).

    Mas isso no esgota a socializao de riscos pelaflexibilizao das entregas, uma vez que os destina-trios e seus conhecidos tambm entram no jogo.Se nas sociedades contemporneas indivduos e gru-pos no medem esforos para participar do con-sumo, o mesmo se aplica ao consumo mediante

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    entregas no contexto de grandes cidades, comoSalvador. No caso dos moradores das localidadesaqui mencionadas, entre serem cortados das listasdos estabelecimentos por residirem em reas arris-cadas, de um lado, e fazerem sacrifcios, como es-

    perar mais tempo ou se deslocar para recolheremas encomendas, de outro, eles preferem a segundaopo. Tais acertos, feitos por telefone ou com amediao de terceiros, versam sobre a definio depontos fsicos de entrega satisfatrios, sob a tica dasegurana e da distncia, ou de pessoas nas mosdas quais os destinatrios devero buscar seus produ-tos lojas, sedes de associao de moradores e atmesmo representantes de rgos pblicos.

    Por essas razes, reafirmamos que a negocia-o e mobilizao dos recursos de vigilncia ade-

    quada, de atores externos ao grupo (out-group), tor-na os resultados das tticas socioespaciais expansivasmais contnuos, previsveis e efetivos para evitar ata-ques predatrios do que os das tticas socioespaciaisrestritivas, limitadas aos recursos individuais e inter-individuais do grupo (in-group).

    Concluses

    Neste trabalho, acerca das solues engenhosas

    e defesas informais mltiplas dos trabalhadores demoto-entrega contra crimes predatrios, discutimosas possibilidades e limites de eficcia dessas defesaspara a reduo das oportunidades atrativas paraesses crimes.

    Para comprovar a pertinncia deste foco, en-contramos, entre os motoboys entrevistados, umadupla, simultnea e imbricada jornada de trabalho:a primeira relativa ao cumprimento das obrigaesprofissionais e a segunda voltada para a reduodas oportunidades de vitimizao resultantes des-

    sas obrigaes. Alm de esta segunda jornada im-plicar esforos adicionais, prejuzos profissionais efinanceiros no compensados pelos contratadores e representar, portanto, uma forma perversa deauto-explorao e precarizao das relaes de tra-balho no setor de servios , ela possui particulari-dades que esto no cerne de alguns debates atuaisem torno da preveno do delito (Felson, 2006; St.Jean, 2007).

    Tendo em vista a centralidade do conceito deespao nos estudos a respeito do crime, parte dessedebate aborda as defesas ligadas ao uso, organiza-o e reconhecimento dos espaos urbanos pelosautores e pelas vtimas, potenciais e atuais, de deli-

    tos (Cohen e Felson, 1979; Sampson et al., 1997; St.Jean, 2007). Nesta linha e ao contrrio das visesnormativas e estatistas hegemnicas, o nosso argu-mento realou o significado das defesas informaispara a proviso de vigilncia adequada aos traba-lhadores. Dentro de uma viso alargada do policia-mento como instrumento de manuteno de ar-ranjos coletivos desejveis e indesejveis, ilegais elegais , essas defesas fazem parte do que vem sen-do categorizado como autopoliciamento (self-poli-cing) (Radford, 1987; Sanders, 2005).

    Ao levar em conta as referncias espaciais queinfluenciam nas oportunidades atrativas para os cri-mes, classificamos essas defesas informais mltiplasem tticas socioespaciais restritivas e tticas socioes-paciais expansivas. Primando pela sensibilidade,potencial de cobertura e complementaridade, essastticas dependem da ao criativa dos sujeitos pararesponder s (des)vantagens ecolgicas, dos espa-os urbanos, em suas atividades. assim que, asdefesas socioespaciais restritivas so apropriadaspara reas onde, a exemplo de locais de passagem

    e lugares com rotas de fugas, o outro o infratorest l no domina por completo a situao oupode ser neutralizado pelas artimanhas dos traba-lhadores. Por sua vez, as tticas socioespaciais ex-pansivas so empregadas em dois outros tipos deespaos: reas onde o outro o infrator est aqui capaz de administrar, pelo domnio territorial, oacesso e circulao (Brito e Fonseca, 2008) de pes-soas, bens e servios e, em terceiro lugar, em reasonde o infrator tambm est aqui, mas disputa odomnio territorial com outros infratores ou com

    as foras policiais.Ao lado dessas caractersticas criminognicas, a

    eficcia coletiva ou a capacidade das redes de mo-radores de prover vigilncia, no segundo e no ter-ceiro tipo de espao urbano, faz uma grande dife-rena para a validade e o sucesso das defesas contrao crime (Sampson et al., 1997). Nessa perspectiva,os nossos achados relativos negociao de prti-cas espaciais com possveis atacantes (Lysaght e

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    Basten, 2003), fluidez de limites (Ruggiero e South,1997; Misse, 1997) e aos acertos entre atores legaise ilegais para evitar crimes aleatrios (St. Jean, 2007)evidenciaram a existncia de uma complementari-dade de aes entre os mesmos, a qual remete ao

    conceito de defesa simbitica (Felson, 2006).Embora no tenhamos estudado as quadrilhas

    de bairros, a anlise dos relatos dos motoboys, bemcomo os resultados de outros estudos nos permiti-ram verificar que elas jogam um papel positivo nasegurana dos motoboys. Isso sucede quando asquadrilhas possuem outras prioridades delituosas a exemplo do trfico de drogas e da extorso con-tinuada , no enxergam ameaas ou extraem van-tagens da oferta de proteo (Misse, 1997; Cano eIooty, 2008), Por mais oposta que seja s concep-

    es sustentadas pela justia criminal e por algumasteorias criminolgicas, esta proviso coerente comuma realpolitik da rua que aconselha prestar maisateno micropoltica das (des)vantagens ecolgi-cas do que aos cdigos legais e s polticas de segu-rana. Nas agendas do dia-a-dia e fazendo uso damxima de que melhor um pssaro na mo doque dois voando, a prioridade dos demandantesde vigilncia a boa vizinhana, a construo deum modus vivendi(Paes-Machado e Noronha, 2002)e a obteno, mesmo que mediante um preo, de

    crditos de proteo dos caras que ditam os c-digos de acesso, circulao e permanncia nos seusespaos de atividades.

    Quanto ao papel de destaque das redes demoradores na segurana dos motoboys, este con-sistente com as teorias que tratam da influncia po-sitiva dos laos sociais (Coleman, 1988) e da efic-cia coletiva (Sampson et al., 1997; St. Jean, 2007) nascondies de segurana, bem como na disponibili-dade de vigilncia adequada (Cohen e Felson, 1979)para a preveno de crimes. Cabe salientar, porm,

    que no contexto de Salvador, e provavelmente deoutras cidades brasileiras, essa influncia positivaassume um carter generalizado e difuso que des-toa dos padres anglo-americanos mais contidosque norteiam essas teorias. Nesse sentido, a situaodesses atores brasileiros contrasta com a de traba-lhadores vulnerveis do setor de servios de pasesdo hemisfrio norte-ocidental (Gambetta e Ham-mil, 2004; Sanders, 2005), cuja menor disponibili-

    dade desse tipo de capital pela maior auto-suficin-cia dos indivduos (Coleman, 1988; DaMatta, 1985;Barbosa, 1992) faz com que contem apenas comas prprias foras e, eventualmente, com as dopoliciamento estatal para se defender.

    Uma sntese geral dos resultados evidencia arelevncia das tticas socioespaciais expansivas paraa preveno do delito: a propriedade destas tticasde criar amortecedores (buffers) ecolgicos ou redu-tores de perigos e ameaas aos motoboys, median-te a negociao e mobilizao de vigilncia de qua-drilhas e redes de moradores, que, pelo domnioou familiaridade territorial, podem fazer com quesejam concretizadas ou evitadas essas ameaas.

    Por fim, apesar do carter preliminar destetrabalho, acreditamos que ele suscite novas investi-

    gaes sobre as variaes ecolgicas da criminalida-de e do controle social em espaos urbanos emparticular, os habitados pelas classes populares que, apesar das evidncias contrrias, continuamsendo vistos como homogneos (Machado da Sil-va, 2008). Ao lado disso, esta pesquisa pode con-tribuir para discusses mais aprofundadas de m-todos informais que inspirados na mxima deque a melhor defesa o ataque investem no capi-tal social/eficcia coletiva e na negociao de vigi-lncia com distintos grupos, para melhorar a segu-

    rana dos trabalhadores do setor de servios,garantir o fluxo de entregas de encomendas e resis-tir aos efeitos perversos dos crimes predatriossobre as condies de vida e trabalho das classespopulares urbanas.

    Notas

    Estima-se que s em Salvador existiam cerca de 7 milmotoboys circulando pelas ruas em 2005, enquantoem So Paulo o nmero atingia 160 mil no ano de

    2000.Diferentemente de outras atividades em que o em-pregador fornece os instrumentos de trabalho, na ati-

    vidade de moto-entrega a maior parte das empresasexige que o trabalhador possua seus prprios equi-pamentos (Wehr, s.d). As relaes de trabalho so ocontrato formal direto com uma empresa principal, aterceirizao, o trabalho autnomo e o chamado traba-lho free-lancer. A jornada de trabalho divide-se emquatro etapas: espera e recebimento da encomenda,

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    deslocamento no trnsito e entrega da encomenda(Oliveira, 2003; Riccio-Oliveira, 2005), sendo que as

    vitimizaes por acidentes e crimes se concentram nasetapas 3 e 4.

    Estes conflitos resultam das diferenas tcnicas entre

    motocicletas e automveis (Riccio-Oliveira, 2005) edas condutas de ambos os grupos de condutores de

    veculos. As condutas dos motoristas esto relaciona-das com a frustrao pela reduo da automobilidadee o incmodo causado por motociclistas que no obe-decem s mesmas regras de trnsito que eles (Fin-cham, 2006, 2007). Por sua vez, os comportamentosdos motoboys resultam de um estilo de conduoassertivo e agressivo e de uma cultura ocupacional que

    valoriza os perigos dirios e as infraes de trnsito(Ficham, 2006, 2007; Wher, s.d). Entre os motoboysentrevistados, por exemplo, as principais explicaes

    para suas imprudncias foram a j mencionada pres-so pela rapidez nas entregas e gosto da excitao ouadrenalina produzida pela velocidade.

    Conforme Felson: Na ecologia do crime o termocrime predatrio tem um significado no culinrio,remetendo a agresses nas quais uma pessoa tomaou danifica a pessoa ou propriedade de outra, que no uma co-participante neste crime ou vtima repetidadeste agressor (2006, p. 351, traduo nossa).

    Os motoboys so demonizados e criminalizados porsuas condutas nas ruas (Culley, 2002; Fincham, 2006,

    2007; Wehr, s,d; Oliveira, 2003; Riccio-Oliveira, 2002,2005), assim como pelos delitos violentos (e transa-es com drogas) envolvendo motociclistas e pela in-filtrao criminosa da categoria.

    Cada um desses mtodos se subdivide, por sua vez,em procedimentos especficos: ocultao (evitao ecamuflagem), dissuaso (imitao), superao (defe-sas fsicas e defesas grupais), desestmulo (distancia-mento, comunicao da inteno de fuga, despista-mento e defesas simbiticas), oposio (defesasarmadas, armamento repentino e defesas sociais emer-gentes). Ver Felson, 2006.

    As motocicletas percorrem uma mdia de 33 km porlitro de gasolina, o que chega a representar umaeconomia superior a 100% quando comparada aoscarros brasileiros mais econmicos (Oliveira, 2003).

    Tal competncia depende de quatro caractersticas doseu ambiente de trabalho que tambm so comparti-lhadas por outros condutores profissionais: o vecu-lo, as vias de circulao, o pblico (Young, 2002; Sten-ning, 1995) e os agentes de controle de trnsito.

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    O JOGO DE ESCONDE-ESCONDE: TRABALHOPERIGOSO E AO SOCIALDEFENSIVA ENTREMOTOBOYS DE SALVADOR

    Eduardo Paes-Machado eMaria Anglica Riccio-Oliveira

    Palavras-chave: Motoboys; Crimespredatrios; Vigilncia adequada; Van-tagens ecolgica; Ao social defensiva.

    Este artigo utiliza entrevistas semi-estru-turadas e observao direta para discutira rdua busca de segurana entre traba-lhadores de moto-entrega (motoboys) deSalvador. Mostra como o dficit de vigi-lncia faz esta categoria desenvolver umaao social defensiva mltipla contra cri-

    mes predatrios visando seus veculos,encomendas e pertences pessoais. De-monstra como as (des)vantagens ecol-gicas dos espaos urbanos estruturam eso, por sua vez, estruturadas por estaao defensiva. Estabelece ainda uma dis-tino entre as tticas socioespaciaisrestritivas, fundadas na prpria capaci-dade de vigilncia, e as tticas expansi-

    vas, envolvendo a negociao de recur-sos de vigilncia de terceiros.

    PLAYING HIDE-AND-SEEK:DANGEROUS WORK ANDDEFENSIVE SOCIAL ACTIONAMONG MOTORCYCLECOURIERS IN SALVADOR

    Eduardo Paes-Machado andMaria Anglica Riccio-Oliveira

    Keywords: Couriers; Predatory crimes;Capable guardianship; Ecological advan-tages; Defensive social action.

    Based on semi-structured interviews anddirect observation, this paper discussesthe stress-filled pursuit of safety by mo-torcycle couriers (motoboys) in Salva-dor, Brazil. A lack of capable guardian-ship forces these workers to take multi-faceted defensive social action against

    predatory crime to protect their vehicles,consignments, and personal belongings.

    The ecological (dis)advantages of urbanspaces structure are, in turn, structuredby this defensive action. Restrictive socio-spatial tactics based on individual guard-ianship capabilities are compared andcontrasted with expansive socio-spatialtactics involving the negotiation ofguardianship resources with others. Theconclusion is that, although restrictiveand expansive tactics are complementary,the former are more effective means ofreducing the ecological disadvantages

    affecting motoboys than the latter.

    JOUER CACHE-CACHE:TRAVAIL DANGEREUX ETACTION SOCIALE DFENSIVEENVERS LES COURSIERS MOTO DE SALVADOR

    Eduardo Paes-Machado etMaria Anglica Riccio-Oliveira

    Mots-cls:Coursiers; Crimes prdateurs;Surveillance approprie; Avantages co-logiques; Action sociale dfensive.

    Cet article utilise des interviews semi-structures ainsi que lobservation directepour aborder la pnible qute de scuritdes coursiers ( moto) de la ville de Sal-

    vador, au Brsil. Il montre de quelle fa-on le manque de sret oblige cette ca-tgorie professionnelle dvelopper une

    action sociale dfensive contre les atta-ques envers leurs vhicules, marchandi-ses et biens personnels. Nous dmontronscomment les (ds)avantages cologiquesdes espaces urbains structurent et sont leur tour structurs par cette action d-fensive. Nous distinguons galement lestactiques sociospatiales restrictives, fon-des sur la propre capacit de vigilanceet les tactiques expansives, qui englo-bent la ngociation de ressources de vigi-lance de tierces personnes.