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Revista Filosófica de Coimbra Publicação semestral Vol. 12 N.° 23 Março de 2003 Artigos Miguel Baptista Pereira - Alteridade, Linguagem e Globalização 3 Amândio Coxito - Natureza, Arte, Acaso e Finalidade na Física do Curso Conimbricense ............................................................. 39 Edmundo Balsemão Pires - Diferenciação Funcional e Unidade Política da Sociedade. A partir da obra de N. Luhmann .............. 69 Alexandre Franco de - Sobre a Justificação Racional do Poder Absoluto : Racionalismo e Decisionismo na Teologia Política de Carl Schmitt .................................................................................... 157 João Carlos Correia - Fenomenologia e Teoria dos Sistemas: Reflexões sobre um Encontro Improvável ....................................................... 181 Notícia ................................................................................................. 215 Recensões ............................................................................................ 225

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Revista Filosófica de Coimbra

Publicação semestral

Vol. 12 • N.° 23 • Março de 2003

Artigos

Miguel Baptista Pereira - Alteridade, Linguagem e Globalização 3

Amândio Coxito - Natureza, Arte, Acaso e Finalidade na Física

do Curso Conimbricense ............................................................. 39

Edmundo Balsemão Pires - Diferenciação Funcional e Unidade

Política da Sociedade. A partir da obra de N. Luhmann .............. 69

Alexandre Franco de Sá - Sobre a Justificação Racional do Poder

Absoluto : Racionalismo e Decisionismo na Teologia Política de

Carl Schmitt .................................................................................... 157

João Carlos Correia - Fenomenologia e Teoria dos Sistemas: Reflexões

sobre um Encontro Improvável ....................................................... 181

Notícia ................................................................................................. 215

Recensões ............................................................................................ 225

RECENSÕES

Q. S. F. TERTULIANO, Apologético. Edição bilingue com Introdução,notas e comentários de José Carlos Miranda. Lisboa: Livraria Alcalá(Philokalia: 3), 2002, 637 p.

Acontecimento editorial de elevado prestígio é o que temos vindo a assistir desde 2001,com entusiasmado apreço pessoal, à colecção «Philokalia» da Livraria Alcalá. Publicadosjá três volumes (Carta aos Coríntios de Clemente Romano e A Diogneto) e com um quartoanunciado (O Pastor de Hermas), a colecção chama a si a invenção alexandrino-capadóciado «amor pelas coisas belas» - leia-se : os textos, as letras - para «facultar a um público deleitores cada vez mais vasto as `jóias' da literatura e espiritualidade cristãs dos primeirosséculos» . Saudamos esta tão ousada iniciativa, que se apresenta além disso numa formaesmerada, de um ponto de vista editorial e tipográfico, agora tão raros, mediante a recensãodo terceiro volume da colecção, trabalho cuidado de José Carlos de Miranda (de quem jáconhecíamos um interessante e oportuno O Livro Apologético de Orósio de Braga, de 1999)sobre o título relevante de Tertuliano, um dos nomes maiores da patrística latina (séculosII-III). De referir que até hoje só a colecção «Origens do Cristianismo» da Verbo, dirigidapor António Montes Moreira, dera uma tradução portuguesa de De cultu feminarum e Despectaculis (Lisboa 1974), embora a partir da edição parisiense de du Cerf (p. 10, n. 11);tenha-se sempre presente porém o que escreve JMC acerca do «primeiro Apologéticoportuguês» (p. 7-74), da autoria de M. Capela (vd. a ed. Comemorativa do 150° doNascimento deste, Terras de Bouro 1992). Já tivemos ocasião de reivindicar por várias vezesa necessidade de se criar nas nossas Faculdades de Letras ao menos uma disciplina dePatrística (vd. v.g. A Síntese Frágil, Lisboa 2002, p. 56). O género da «apologia», por umlado («com a apologética começa uma nova primavera para a criatividade literária danascente cultura cristã» p. 40), e toda a interessante secção do título ora recenseado dedicadaà polémica «anti-filosófica» (XLVI-XLVII), por outro (vd. Ma C. Pacheco, s.v. in Logos 5,Lisboa 1992, 131-3 ou o nosso «A Filosofia Bárbara» in /tinerarium ), provaria, se isso fossepreciso, a justiça do nosso insistente reclame. Acontece que também JCM partilha daconsciênca da necessidade de não amputarmos as nossas «raízes comuns» (p. 7) e por issocontribuiu louvável e habilmente para este terceiro generoso volume de `Philokalia'. Ora,no que concerne à filosofia, acompanhamos sem reticências substantivas a tese de J.-C.Fredouille (Paris 1972) sobre a moderação da sua polémica anti-filosófica; ela passava pori) assinalar a contradição dos filósofos entre si; ii) e entre as suas vidas e o seu ensino; iii)sobre o carácter capcioso da dialéctica filosófica. Não havendo sacrifício da razão peloirracional, outrossim adaptação e conversão de uma cultura às exigências de uma pastorale de uma polémica, perguntamo-nos se ainda faz sentido (e qual a sua comodidade afinal?)manter a habitual dicotomia que inscreve Tertuliano na consagrada linhagem anti-inte-

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lectualista que, alegadamente , de certas epístolas paulinas passaria pelos anti -dialécticos do

séc. XI, Pedro Damião, Berengário e São Bernardo, João de Jandum, os projectos de

Erasmo, os deistas dos séculos XVII e XVIII, a libertinagem erudita, o modernismo, a

teologia dialéctica destruidora dos símbolos e o projecto do Tractatus de Wittgenstein de

ruptura entre ciência e mundo (vd. as nossas referências in Itinerarium 41, 1995, 22). Para

além de uma tradução exemplar (do texto fixado com base na ed. W. Waltzing, p. 61),

recheada de notas de pendor variado (da estrita filosofia à história da teologia com incursões

pela filosofia e a erudição pura), JMC é autor de uma boa introdução ao Apologético

(c. 197), lido sob duas chaves, certamente adequadas, «idolatria» e «tempo/história»

(p. 12-34). O seu contributo não termina sem antes acrescentar preciosas «Notas Técnicas»

(p. 35-75), que versam a Vida e Obra de Tertuliano, abordam o Género Literário e a redac-

ção do presente título, a língua, o estilo e a sua transmissão , uma útil c actuali zada biblio-

grafia com suplemento - acrescentaria no entanto a reflexão do malogrado J. Roussclet,

'Tertulicn joue de Ia distance', in Rev des Et. August. 44, 1998, 3-11 e, no mesmo local (46,

2000, 235-271), a atribuição tertuliana de um fragmento Ms. Vat. lat 3852 do De execrandisgenrium düs; o estudo de G. Follict sobre a transmissão dos Setenta em África com base

em Tertuliano, in Rev. Bénédictine 110 (2000) 181-203; uma interessante leitura sobre avolúpia, a propósito da noção de prazer: Kessler, A., «Tertuilian und das Vergnügen in `De

Spectaculis '» Freib. Zeitschrif. für Phil. und Theol. 41 (1994) 313-53; ou a bibliografia que

em qualquer caso nos é mais acessível : M. Sordi in Humanística e Teologia 13 (1992) sobreApologético V, a tese de B. Bernardo, Simbolismo e tipologia do Baptismo em Tertuliano

e St°Ambrósio, Lisboa 1989. Este belo volume termina com um necessário índice temático

e onomástico (p. 603-33, leia-se porém: Luciano de Samósata). Algumas gralhas e descuidos

de revisão (pp. 9, 40, 48, 228, 252, 576, etc.) não são suficientes para despromoverem estanotável iniciativa e para deixarmos de congratular o jovem tradutor e editor, por mais este

trabalho. Oxalá as suas duas obras de tradução artística sejam apenas as primícias de umfecundo labor.

Mário Santiago de Carvalho

K. GROTSCH (ed.), E W. J. Schelling Weltalter-Fragmente, init einer Ein-leitung von W. Sehmidt-Biggemann, Stuttgart - Bad Cannstatt, From-mann-Holzboog, 2002, 2 vols. Pp. 442 + 328, Einleitung: "Schellings«Weltalter» in der Tradition abendlndischer Spiritualitt", pp. 1-78;Vorbemerkung, pp. 79-104.

Na colecção Schellingiana da editora Frommann- Holzboog, editada por W. E. Ehrhardt,foi publicada uma pré-edição crítica dos manuscritos de F. W. J. Schelling sobre as épocasdo mundo.

De acordo com o responsável editorial, K. Grotsch, a obra baseia-se em um trabalhode edição histórico-crítica de sete grupos de textos manuscritos de Schelling conservadosno Arquivo da Academia das Ciências de Berlin-Brandenburgo com a cota de arquivo NLSchelling, 86, S. 20. A presente edição não foi directamente incluída na edição crítica dasobras de Schelling de Munique, por lhe faltar o elemento ordenador cronológico dosdiferentes textos e ser, nesta medida, o espelho de uma "obra em progresso".

De 1806 em diante trabalhou Schelling no seu conceito das "épocas do mundo". Em1811, algumas folhas contendo este núcleo doutrinal chegaram a ser impressas mas nuncafoi publicada qualquer obra. Em 14 de Agosto de 1814 revelava o filósofo ao editor Cotta

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a existência de uma primeira parte do texto sobre as "épocas do mundo" pronta parapublicação. Da nota enviada ao editor se pode concluir que o filósofo punha no manuscritoas mais elevadas esperanças e considerava-o o coroamento de vinte anos de actividade.

A presente pré-edição crítica das "idades do mundo" conta com uma Introdução decarácter histórico-filosófico, escrita por W. Schmidt-Biggemann, muito útil do ponto de vistainformativo.

Graças a esta introdução ficamos na posse dos elementos conceptuais e doutrinais quena história do pensamento determinaram o núcleo temático dos fragmentos sobre as "idadesdo mundo".

W. Schmidt-Biggemann mostra como a teoria das potências de que partiu Schelling nasua carreira filosófica tem uma origem neoplatónica. Em Plotino, na Eneade sobre o Unoe o Bem, em especial, encontramos a discussão do tema da processão da multiplicidade apartir da unidade primitiva, da qual, contudo, não conhecemos qualquer determinaçãoconcreta e só é acessível à alma mediante a visão mística. Esta unidade pré-numérica édepois reconceptualizada por Schelling na sua concepção do "ponto de indiferençaabsoluto".

Também nos textos de Proclo conhecidos com o título de Liber de Causis se comunicouàs Idades Média e Moderna esta perspectiva do uno e da multiplicidade e da geração causaldo múltiplo a partir do uno como era exigido na ideia de uma processão de todas as coisasa partir de uma primeira causa. Mas o mais decisivo na tradição, que importa observar paraentender os textos de Schelling, é o facto de o Uno nunca se poder captar na sua própriaposição, na sua própria realidade, mas ter de se captar pela causa segunda, como que poruma via oblíqua.

Esta invisibilidade e ininteligibilidade do Uno como causa primeira da geração de todosos seres é o tópico que recorre desta tradição neoplatónica antiga na Mística medieval emoderna e na chamada Teologia Negativa. O Pseudo Dionísio já transforma o problema dainacessibilidade do Uno na questão da acessibilidade do entendimento às condições derevelação desse Uno.

Junto dos autores cristãos se foi progressivamente reforçando a ideia segundo a qualsó conhecemos Deus mediante a forma como ele escolheu revelar-se.

A doutrina teológica da trindade vem juntar-se a esta fonte neoplatónica pagã paraconceber as pessoas divinas com base nas noções de hipostase e processão.

Na progressiva aproximação e fusão de neoplatonismo e cristianismo tornou-se cen-tral a interpretação do Pai como a expressão mais essencial da vontade de Deus e como asua dimensão mais secreta, a interpretação do Filho como expressão do conhecimento davontade do Pai e do Espírito Santo como Vida, ou seja, realização da unidade do Pai e doFilho.

Situada acima do Ser a Vontade é tomada como a unidade de Deus, em autores que vãode Marius Victorinus, a Pseudo Dionísio, Eriúgena, Nicolau de Cusa, Reuchlin, J. Bbhmeaté aos neoplatónicos do século XVII.

Ao lado destes tópicos do neoplatonismo cristão encontra-se ainda uma outra ideiaresultante do conceito platónico de mundo inteligível. Trata-se do "mundo primordial" comouniverso constituído por arquétipos e conceitos que estão no fundo de uma sabedoriainalterável. Para a mundividência cristã este "mundo primordial" não podia deixar de tersido criado por Deus, mas antes da criação do Mundo e para lhe servir de apoio naexteriorização da sua vontade. Assim, entendido como se fosse uma quarta hipostase dadivindade, o "mundo primordial" como universo dos arquétipos de todas as coisas passouda obra de Fílon de Alexandria para a Patrística assim como para a cabala judaica e cristã.

É sobretudo na interpretação cabalística do "mundo primordial" que vamos encontrara ideia de uma estrutura ideal do mundo associada não só à fonte criadora das coisas mas

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igualmente ao paradigma de unidade ao qual todas as coisas vão regressar. Como o mundono seu estado presente pode ser encarado como um conjunto de seres separados da suaprimitiva unidade e, por isso, desde logo manchados pelo pecado, o retorno à unidade (como"apokatastasis panton") é um anseio inscrito desde o seu nascimento na alma do mundo,como um impulso para a perfeição.

Nicolau de Cusa integra-se na tradição do pensamento neoplatónico da unidade e damultiplicidade e na sua noção de "possest" pretendeu unir a vontade e o ser de Deus. Mas,na medida em que a própria unidade do ser e do poder está mantida em segredo no Uno,ela é inacessível sem uma revelação especial do Nome de Deus.

A geração da pluralidade das coisas presentes no mundo é explicada pelo cusano combase no devir do múltiplo desde a unidade, graças ao duplo movimento de contracção e deexpansão.

Na continuidade da narrativa histórico-filosófica de W. Schmidt- Biggemann mostra--se como J . Reuchlin continuou o projecto cusano de interpretação da fonte da realidadeno Uno e como a obra deste autor tinha por base uma síntese entre a filosofia pitagórica ea cabala sob a designação geral de uma "Filosofia simbólica". A compreensão do Tetragramapor meios cabalísticos levou-o a concluir, em consonância com a tradição pitagórica relativaao número 10, que no nome de Deus se continham já as dez circunferências do diagramados sefirots, que revelam o "Adão primordial".

Ora, com a doutrina do significado do diagrama sefirótico está também em causa a indi-cação de um plano superior, que é o da unidade inteiramente secreta de Deus ou oEn-Sof.

Também em G. Bruno vamos encontrar vários desenvolvimentos da concepção doaparecimento de todas as coisas a partir de uma unidade pré-numérica, tendo-se apoiadoigualmente, em alguns aspectos, em N. de Cusa.

Na obra de J. Bõhme, que é uma das fontes mais directas do pensamento de Schellingrelativamente às "épocas do mundo", encontramos tematizada a processão a partir do unocomo um movimento querido pela vontade de Deus, mas nunca inteiramente coincidentecom o seu ser secreto.

Para além disso J. Bõhme desenvolveu uma doutrina qualitativa dos elementos domundo material em que estão presentes as perspectivas alquímicas sobre a composição domundo material e as relações internas entre os elementos e os seres.

É na cidade de Amesterdão que no século XVII se vão localizar os acontecimentoseditoriais mais significativos para a compreensão da influência e recepção do neoplatonismomístico-cabalístico na Europa do Norte..

Knorr von Rosenroth publicava em 1677 e 1684 a sua Kabbala Denudata que foi amais importante colecção de filosofia cabalística do século XVII. O Tractatus Teológico--Político de Espinosa apareceu em 1670 e a sua Obra contendo a Ética publicava-se em1677. A primeira edição alemã da obra de J. Bõhme veio à estampa em 1682.

Nesta mesma Amesterdão Knorr von Rosenroth, Espinosa e J. Bõhme foram lidos nomesmo círculo de intelectuais dedicados a uma literatura "espiritual" dissidente. É com baseneste ambiente teosófico que logo que se conhece o conteúdo da Ética de Espinosa tomamlugar as discussões em torno do ateísmo do filósofo.

Em redor de Espinosa vão ter especial importância as interpretações do conceito de"causa sui" e a perspectiva do acesso a Deus a partir da causa segunda.

Segundo os intérpretes, Deus só se daria a conhecer obliquamente mediante a figuraçãodo Adão primordial e no diagrama dos sefirots, permanecendo o seu nome secreto parasempre oculto. Se admitirmos por certo que Espinosa desenvolveu a sua doutrina sobre"Deus sive Natura" na base da ideia de uma produtividade imanente no Todo, que o filósofopretendeu fundamentar com apoio em Paulo aos Coríntios 15, 28, então, da combinaçãodestas duas ideias se conclui que o seu panteísmo é ateísmo.

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J. Jelles, editor de Espinosa, julgou ser possível tornar compatível a doutrina da Éticasobre a manifestação de Deus com o cristianismo e, mais particularmente, com o conceitode Logos jaonino vertido por Erasmo no conceito de ratio.

Na sequência de uma viagem que fez à Holanda com uma bolsa prussiana, J. G.Wachter publicou em Amesterdão, em 1699, um Spinozismus im Jüdenthumb. A sua leiturade Espinosa e particularmente da Proposição 18 da Ética (Deus est omnium rerum causaimmanens) vai no sentido de considerar quer o espinosismo quer a concepção cabalísticado En-Sof, formada no Bahir como no Zohar, meras variedades de ateísmo, pois nem umanem a outra das doutrinas se aproxima de um Deus pessoal.

Jacobi vem directamente associar-se ao diagnóstico de J. G. Wachter de uma identidadeentre panteísmo, cabala, espinosismo e ateísmo e vai ensaiar, muito próximo do contextodo Idealismo Alemão, a demonstração do carácter nihilista da filosofia de Espinosa numdiálogo famoso com Lessing, publicado em 1785.

No ponto de partida do pensamento de Schelling vamos encontrar o debate em redordo alegado ateísmo de Espinosa. Mas de modo algum de uma forma isolada, pois Schellingtomou contacto com diversas fontes do neoplatonismo e da filosofia da cabala,independentemente do seu conhecimento da obra de Espinosa.

Por um lado, parece comprovado que Schelling leu Orígenes e F. von Baader, queestudou J. BShme e que tomou contacto com textos cabalísticos por mediação de F. C.Oetinger.

Por outro lado, a filosofia de Espinosa serviu a Schelling sobretudo para elaborar a baseobjectiva da sua filosofia da natureza, que ele considerou impossível ir encontrar na filosofiatranscendental.

A filosofia da natureza de Schelling consiste num ensaio vasto de tornar perceptível aforça e mobilidade interna dos processos orgânicos, como se a vida se tratasse de uma"auto rodução sem consciência".

E^deste ponto de vista que parte o Sistema do Idealismo Transcendental e ainda o Bruno.Já naquela primeira obra se ocupava Schelling com uma doutrina da natureza que

permitisse harmonizar duas séries aparentemente incompatíveis: a série relativa às fases dodesenvolvimento da vida e a série das épocas do desenvolvimento da consciência. Ambasdeveriam estar coordenadas uma à outra tanto de um ponto de vista processual comogenético.

No Bruno desenvolveu o filósofo as bases de uma doutrina do espaço e do tempo empleno território conceptual neoplatónico, tendo-se servido da exposição figurativa quecomparava o nascimento da multiplicidade das coisas do mundo material à contracção eexpansão do ponto na direcção do espaço e do tempo, como uma semente do múltiplo.

Schelling nunca terminou o seu trabalho sobre as "épocas do mundo". Mas desde oesboço de 1810 que a moldura triádica proveniente de Orígenes está claramente visível.Deste ponto de vista, as "épocas do mundo" coincidem com uma era do Pai ou épocateogónica e da pré-concepção do Todo; a era do Filho e do presente do mundo e a terceiraépoca que coincide com o retorno à Alma de todas as coisas e que é a época do Espírito,como "apokatastasis panton". Esta última época encontra-se por cumprir e é ela quecondiciona a abertura do futuro.

Na sua Introdução à edição dos fragmentos considerou W. Schmidt-Biggemann que umdos fragmentos mais claramente delineados e estruturados é o fragmento NL 81 datado de1817. Aqui estão em causa os desenvolvimentos dos principais tópicos da tradiçãoneoplatónica já assinalada e o ensaio de repensamento de Deus de um ponto de vistaprocessual e trinitário, graças a um conceito de tempo.

No entendimento do começo do universo a partir da vontade está o conceito de umaliberdade sem qualquer limitação e sem objecto definido.

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O começo é depois desenvolvido e articulado como um processo contractivo e nãosimplesmente emanacionista : Anfang allen Anfangs bedeutet sich selbst anziehen (p. 57).

Na medida em que este começo absoluto se identifica com a liberdade é possível, apartir dele, definir a própria liberdade : Die Freheit ist das, was sich anzieht und sie ist dasAnziehende selbst ( idem).

À luz do processo que se inicia com o próprio começo absoluto cabe também afirmarque a liberdade é como um processo que autodesencadeia a sua formação.

Como resultado do autodesencadeamento deste processo surge uma outra perspectiva,distinta do processo autoreferente da liberdade , que é o processo do ser. Este último nascecomo consequência do processo da liberdade no cumprimento da contracção e dirige-se nosentido da efectivação de Deus na natureza e no homem.

A este processo do ser se vai seguir o processo do espírito, que cumpre o movimentodo retorno das coisas a Deus, sempre em aberto, e que deve resultar na "apokatastasispanton".

Só neste último se cumpre a totalidade das relações entre Deus , natureza e humanidade.

Edmundo Balsemão Pires

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Revista Filosófica de Coimbra ISSN 0872-0851

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Miguel Baptista Pereira

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