Temas de Direito Eleitoral No Seculo Xxi Sem Marcas

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Eleitoral

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  • temas de

    Direito Eleitoralno sculo XXI

  • Repblica Federativa do BrasilMinistrio Pblico da Unio

    Procurador-Geral da RepblicaRoberto Monteiro Gurgel Santos

    Diretor-Geral da Escola Superior do Ministrio Pblico da UnioNicolao Dino de Castro e Costa Neto

    Cmara Editorial Geral da ESMPUMembros

    Ministrio Pblico Federal

    Robrio Nunes dos Anjos Filho Coordenador Procurador Regional da Repblica 3 Regio

    Antonio do Passo Cabral Procurador da Repblica PR/RJ

    Ministrio Pblico do Trabalho

    Cristiano Otvio Paixo Arajo Pinto Procurador do Trabalho PRT 10 Regio/DF

    Jos Antnio Vieira de Freitas Filho Procurador do Trabalho PRT 1 Regio/RJ

    Ministrio Pblico do Distrito Federal e Territrios

    Ana Luisa Rivera Promotora de Justia

    Maria Rosynete de Oliveira Lima Promotora de Justia

    Ministrio Pblico Militar

    Jos Carlos Couto de Carvalho Subprocurador-Geral de Justia Militar aposentado

  • temas de

    Direito Eleitoralno sculo XXI

    CoordenaoAndr de Carvalho Ramos

    Braslia-DF2012

    Escola Superior do Ministrio Pblico da Unio

  • Escola Superior do Ministrio Pblico da UnioSGAS Av. L2 Sul, Quadra 604, Lote 23, 2 andar70200-640 Braslia DFTel.: (61) 3313-5107 Fax: (61) 3313-5185Home Page: E-mail:

    Copyright 2012. Todos os direitos autorais reservados.

    Secretaria de Atividades AcadmicasNelson de Sousa Lima

    Diviso de Apoio DidticoAdriana Ribeiro Ferreira

    Superviso de Projetos EditoriaisLizandra Nunes Marinho da Costa Barbosa

    Preparao de originaisCarolina Soares dos SantosDavi Silva do Carmo

    Reviso de provas Adrielly Gomes de SouzaAline Paiva de LucenaEduarda Lins de Albuquerque Campos

    Ncleo de Programao VisualRossele Silveira Curado

    Projeto grfico, capa e diagramaoRossele Silveira Curado

    ImpressoGrfica e Editora Ideal Ltda. SIG Quadra 8, 2268CEP 70610-480 Braslia-DF Tel.: (61) 3344-2112E-mail:

  • Autores

    Alice Kanaan

    Procuradora Regional da Repblica na 3 Regio, Procuradora Regional Eleitoral em So Paulo (binios 1998-2000 e 2000-2002), mestre em Direito Constitucional pela Pontifcia Universidade Catlica (PUC/SP).

    Andr de Carvalho Ramos

    Procurador Regional da Repblica na 3 Regio e Procurador Regional Eleitoral em So Paulo. Professor Doutor e Livre-docente de Direito Internacional do Programa de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo (USP).

    Carlos Augusto da Silva Cazarr

    Procurador Regional da Repblica na 4 Regio e Procurador Regional Eleitoral no Rio Grande do Sul. Professor de Direito Penal e Processo Penal nos cursos de preparao carreira do Ministrio Pblico (FMP-RS) e magistratura federal (ESMAFE-RS) e professor no curso de Especializao em Cincias Criminais do Instituto de Desenvolvimento Cultural (IDC-RS).

    Claudio Dutra Fontella

    Procurador da Repblica em Santa Catarina. Mestre em Direito Pblico pela Pontifcia Universidade Catlica (PUC-RS). Professor de Direito Processual Constitucional no Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina (CESUSC).

    Eduardo Pelella

    Procurador da Repblica em Sergipe.

  • Francisco de Assis Vieira Sanseverino

    Subprocurador-Geral da Repblica. Mestre em Instituies do Direito e do Estado pela Pontifcia Universidade Catlica (PUC/RS). Professor de Direito Constitucional e de Direito Eleitoral. Procurador Regional Eleitoral no Rio Grande do Sul (binios: 2000-2002 e 2002-2004). Membro da Coordenao da Ao 7 da ENCCLA que acompanha as discusses, debates em audincias pblicas, acerca do tema Financiamento de Campanha Eleitoral, nas sesses das Comisses Especiais de Reforma Poltica na Cmara dos Deputados e no Senado Federal.

    Luiz Carlos dos Santos Gonalves

    Procurador Regional da Repblica na 3 Regio e Procurador Regional Eleitoral em So Paulo (binio 2008-2010).

    Marcelo Ribeiro de Oliveira

    Procurador da Repblica e Procurador Regional Eleitoral em Gois. Mestre em Direito de Estado pela Universidade de Braslia.

    Mnica Campos de R

    Procuradora Regional da Repblica na 2 Regio, Procuradora Regional Eleitoral no Rio de Janeiro. Mestre em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro (PUC-RJ).

    Paulo Thadeu Gomes da Silva

    Procurador Regional da Repblica na 3 Regio e Procurador Regional Eleitoral Substituto em So Paulo. Especialista em Sistemas de Proteo dos Direitos Humanos pelo Institut International dAdministration Publique de Paris, mestre em Direito pela PUC/Rio, doutor em Direito pela PUC/SP. Foi pesquisador visitante no Max Planck Institut fr europische Rechtsgeschichte de Frankfurt. Professor da Universidade So Judas Tadeu.

    Roberto Moreira de Almeida

    Procurador Regional da Repblica na 5 Regio. Especialista, mestre e doutorando em Direito. Professor da Escola Superior do Ministrio Pblico da Unio (ESMPU), da Escola Superior do Ministrio Pblico

  • de Pernambuco (ESMAPE), da Escola Superior do Ministrio Pblico da Paraba (ESMA/PB) e da Fundao Escola Superior do Ministrio Pblico da Paraba (FESMIP/PB).

    Sandra Cureau

    Subprocuradora-Geral da Repblica. Vice-Procuradora-Geral Eleitoral.

    Sergei Medeiros Arajo

    Procurador Regional da Repblica na 3 Regio, tendo, ainda, atuado como Procurador Regional Eleitoral. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco.

    Srgio Monteiro Medeiros

    Procurador Regional da Repblica na 3 Regio. Mestre em Cincias Jurdicas pela Universidade Federal da Paraba.

    Sidney Pessoa Madruga da Silva

    Procurador Regional Eleitoral e Procurador Regional Eleitoral na Bahia. Doutor pela Universidade Pablo de Olavide. Mestre em Direito Pblico pela Universidade Federal da Bahia.

  • Sumrio

    Liberdade de expresso e ideais antidemocrticos veiculados por partidos polticos tolerncia com os intolerantes?Andr de Carvalho Ramos 15

    Incluso eleitoral e efetivao dos direitos polticosPaulo Thadeu Gomes da Silva 37

    Alistabilidade e elegibilidade dos indgenas no ordenamento jurdico brasileiroRoberto Moreira de Almeida 69

    A ficha limpa e a inelegibilidade avano histrico e democrticoMnica Campos de R 109

    A Justia Eleitoral e o Ministrio Pblico Eleitoral consideraes sobre o sistema de administrao, regulao, normatizao e controle das eleies no BrasilEduardo Pelella 133

    Justia para os vencedoresLuiz Carlos dos Santos Gonalves 203

    Partidos polticos e eleies no BrasilSandra Cureau 217

    Financiamento de campanha eleitoral entre o pblico e o privadoFrancisco de Assis Vieira Sanseverino 251

  • Financiamento pblico, privado e misto frente reforma poltica eleitoral que prope o financiamento pblico exclusivo Alice Kanaan 271

    O financiamento pblico nas eleies brasileirasSergei Medeiros Arajo 315

    Propaganda eleitoral. Espcies. Propaganda antecipada. Propaganda na InternetSidney Pessoa Madruga da Silva 355

    Propaganda eleitoral uma sntese atualClaudio Dutra Fontella 397

    Breve tcnica do recurso especial (na propaganda) eleitoralSrgio Monteiro Medeiros 421

    Crimes eleitorais sua fundamentao constitucional e a deficincia de proteo penal em alguns aspectos do processo eleitoralCarlos Augusto da Silva Cazarr 463

    O artigo 299 do Cdigo Eleitoral um exame sob ticaintegralmente garantista e seu alcance nas hipteses de compra de apoio polticoMarcelo Ribeiro de Oliveira 481

  • Apresentao

    A coletnea de artigos Temas do Direito Eleitoral no Sculo XXI fruto do esforo da Escola Superior do Ministrio Pblico da Unio para atender necessidade de se concretizar uma produo bibliogrfica de qualidade e que sirva ao interesse pblico, em uma matria que sofre constantes atualizaes e frequentes alteraes normativas todos os anos, como o Direito Eleitoral.

    Nesse sentido, a obra rene artigos de membros que atuam ou atuaram perante a Justia Eleitoral e, com isso, acumularam importante conhecimento e grande experincia no tema, lutando sempre pela consecuo dos valores do Estado Democrtico de Direito.

    Assim, inicialmente, Andr de Carvalho Ramos se ocupa da anlise dos limites da liberdade de expresso poltica, especialmente na veiculao, pelos partidos polticos, de ideais odiosos e antidemocrticos, estudando a matria com base no Direito brasileiro e no Direito Internacional dos Direitos Humanos.

    Aps, a caracterizao dos direitos polticos com foco na Constituio brasileira de 1988 como manifestao da liberdade do direito poltico e da igualdade , as vrias facetas da incluso eleitoral e a necessidade de sua promoo constante so objeto da profunda anlise de Paulo Thadeu Gomes da Silva.

    Roberto Moreira de Almeida, por sua vez, faz uma anlise do direito/dever de alistamento eleitoral e voto, bem como da elegibilidade dos indgenas no sistema jurdico brasileiro.

    A seguir, Mnica Campos de R apresenta discusso referente s novas causas de inelegibilidade da Lei da Ficha Limpa, sustentando o significativo avano histrico e democrtico que demandar novos

  • desafios, no s da Justia Eleitoral como tambm do Ministrio Pblico Eleitoral.

    Por sua vez, Eduardo Pelella aborda o tema das superpostas atribuies da Justia Eleitoral brasileira, apresentando-a como o electoral management body do Pas, e demonstra seu histrico e sua organizao. Alm disso, analisa a atuao do Ministrio Pblico Eleitoral.

    O emprego do resultado das urnas como princpio ou argumento para decises judiciais tema de estudo de Luiz Carlos dos Santos Gonalves, que analisa se sua utilizao seria suficiente para no tornar efetivas inmeras aes eleitorais capazes de invalidar o resultado do pleito eleitoral.

    Sandra Cureau, a seu turno, discorre acerca da histria da legislao eleitoral brasileira, com foco nos partidos polticos e na legislao que os regula, e aborda temas como o voto feminino e a infidelidade partidria.

    Em seguida, Francisco de Assis Vieira Sanseverino apresenta os modelos de financiamento de campanha, inclusive o sistema misto brasileiro. Defende como pontos fundamentais de reforma a maior publicidade do financiamento durante o perodo de campanha eleitoral e a maior efetividade na ao da fiscalizao por parte do Ministrio Pblico Eleitoral, da Justia Eleitoral, dos adversrios e da sociedade civil.

    Tambm versando sobre o tema do financiamento de campanha eleitoral, Alice Kanaan apresenta os pontos fundamentais de cada sistema, para defender a adoo do modelo de financiamento pblico exclusivo no Brasil.

    Sergei Medeiros Arajo, por sua vez, analisa profundamente o financiamento pblico de campanha, abordando conceito, justificativas, modalidades e constitucionalidade, e defende que somente o financiamento misto compatvel com o modelo pluripartidrio.

    Aps, Sidney Pessoa Madruga apresenta ampla anlise da propaganda eleitoral no Brasil, expondo conceitos, caractersticas, diferenciaes e espcies. Estuda tambm, mais detidamente, a propaganda antecipada subliminar e a propaganda eleitoral na Internet.

  • De sua parte, Cludio Dutra Fontella apresenta as espcies de propaganda poltica (eleitoral, partidria e intrapartidria), para ento discorrer sobre a propaganda na Lei n. 9.504/1997.

    Em seguida, Srgio Monteiro Medeiros discorre sobre a tcnica do recurso especial eleitoral, com peculiar foco na propaganda eleitoral.

    Carlos Augusto da Silva Cazarr versa acerca da fundamentao constitucional dos crimes eleitorais, discorrendo a respeito de sua natureza, conceito e bem jurdico tutelado e, ento, analisa a deficincia de proteo penal em alguns aspectos do processo eleitoral.

    A seu turno, Marcelo Ribeiro de Oliveira examina o tipo penal do artigo 299 do Cdigo Eleitoral (corrupo eleitoral), tratando de sua abrangncia e a casustica j enfrentada pela jurisprudncia. Nessa esteira, confere nfase s hipteses de compra de apoio poltico, defendendo que se amoldam ao referido tipo penal.

    Ante a produo bibliogrfica de alta qualidade que aqui se apresenta, a Escola Superior do Ministrio Pblico da Unio espera contribuir com o debate qualificado na seara do Direito Eleitoral, sempre com vista afirmao do Estado Democrtico de Direito.

    Nicolao Dino de Castro e Costa Neto

    Procurador Regional da Repblica na 1 RegioDiretor-Geral da Escola Superior do Ministrio Pblico da Unio

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    Liberdade de expresso e ideais antidemocrticos veiculados por partidos polticos tolerncia com os intolerantes?

    Andr de Carvalho Ramos

    Sumrio: 1 Introduo. 2 Conceito e alcance da liberdade de expresso. 3 A liberdade de expresso e o discurso de dio (hate speech) no Brasil. 4 Liberdade de expresso em perodo eleitoral. 5 As ideias odiosas veiculadas por partidos polticos no Brasil. 5.1 A proibio de contedo odioso na propaganda eleitoral. 5.2 O cancelamento do registro dos partidos polticos. 6 A represso aos intolerantes: uma tradio europeia. 7 A teoria do abuso do direito. 7.1 Conceito. 7.2 A prtica: alguns casos da Corte Europeia de Direitos Humanos. 8 As restries legtimas liberdade de associao poltica. 8.1 Aspectos gerais. 8.2 A dissoluo de partidos polticos turcos. 8.3 A dissoluo do Herri Batasuna (HB). 9 Concluso.

    1 Introduo

    O presente artigo visa analisar, com base no Direito brasileiro e no Direito Internacional dos Direitos Humanos, os limites da liberdade de expresso poltica, especialmente na veiculao, pelos partidos polticos, de ideais odiosos e antidemocrticos.

    Para tanto, responderemos s seguintes indagaes: a) legtima a dissoluo de partidos polticos que, na arena poltico-partidria, apoiem concepes de mundo racistas, xenfobas, discriminatrias e antidemocrticas? b) mesmo que tais ideais sejam compartilhados apenas por uma minoria, deveriam os eleitores ter a opo de escolher aqueles projetos ou sequer essa opo poderia ser dada?

    Essa discusso antiga e existe desde a afirmao histrica dos direitos humanos: qual o tratamento a ser dado, pelo Estado de Direito, aos que justamente almejam destruir liberdades fundamentais? Tolerar os intolerantes ou reprimi-los?

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    A represso aos intolerantes uma das solues possveis que consta em vrios diplomas nacionais e internacionais de proteo de direitos humanos. Nesses diplomas, consagrou-se a possibilidade de proibio da organizao de partidos polticos que possuam ideais antidemocrticos ou discriminatrios. Em resumo, pas de libert pour les ennemis de la libert.

    Outra soluo justamente a oposta, ou seja, permitir que esses ideais sejam discutidos na arena democrtica, uma vez que o debate livre a concesso mnima a ser feita por um Estado de Direito aos que adotam viso minoritria e que necessariamente devem se curvar aos desejos da maioria. Assim, a regra mater do jogo democrtico (aceitao da deciso da maioria) exige, em contrapartida, que todos (maioria e minoria) possam livremente discutir e veicular suas ideias no processo eleitoral, para que, aps, a minoria aceite cumprir as normas aprovadas pelo regime democrtico.

    Este artigo visa estudar, de modo crtico, a opo internacional de reprimir os intolerantes, enfocando, em especial, a jurisprudncia da Corte Europeia de Direitos Humanos. Assim, analisaremos a restrio organizao e existncia de partidos polticos cujos propsitos contrariem os ideais democrticos luz da Conveno Europeia de Direitos Humanos. Ao final, abordaremos o caso brasileiro e a opo constitucional de 1988 de exigir o respeito, pelos partidos polticos, dos ideais democrticos e dos direitos fundamentais do homem.

    2 Conceito e alcance da liberdade de expresso

    A liberdade de expresso consiste no direito de se manifestarem, sob qualquer forma, ideias e informaes de qualquer natureza. Por isso, abrange a produo intelectual, artstica, cientfica e de comunicao de quaisquer ideias ou valores. Para o STF, a liberdade de expresso engloba a livre manifestao do pensamento, a exposio de fatos atuais ou histricos e a crtica1.

    1 BRASIL, STF, HC 83.125, Rel. Min. Marco Aurlio, julgamento em 16 set. 2003, Primeira Turma, DJ de 7 nov. 2003.

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    A forma da manifestao no relevante: o STF decidiu que o gesto de mostrar as ndegas em pblico, em reao a crticas da plateia em um teatro, ainda que a conduta seja inadequada e deseducada, est inserido na liberdade de expresso2.

    A liberdade de expresso prevista, inicialmente, no art. 5, IV, da CF. H, contudo, dispositivos constitucionais correlatos, como o art. 5, VI, que dispe sobre a liberdade religiosa (ver abaixo), ou ainda o art. 5, IX, que prev a liberdade intelectual, artstica, cientfica e de comunicao, independentemente de censura e licena e o art. 5, XIV, que assegura o direito ao acesso informao.

    Esses direitos, em seu conjunto, demonstram que a liberdade de expresso possui duas facetas: a que assegura a expresso do pensamento e a que respeita o direito dos demais de receber, sob qualquer forma ou veculo, a manifestao do pensamento de outrem. Nessa linha, a Declarao Universal dos Direitos Humanos clara: a liberdade de opinio e expresso inclui o direito de, sem interferncia, ter opinies e de procurar, receber e transmitir informaes e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras (artigo XIX).

    A CF/88 protege a liberdade de manifestao do pensamento tambm em outro ttulo da Constituio (ttulo VIII, referente ordem social), no captulo da Comunicao Social. O art. 220, caput, prev, novamente, a liberdade de manifestao do pensamento, da criao, da expresso e informao, sob qualquer forma e veculo. O art. 220, 1, assegura a liberdade de informao jornalstica em qualquer veculo de comunicao social e seu 2 veda expressamente qualquer censura de natureza poltica, artstica ou ideolgica.

    A repetio da vedao da censura (art. 5, IX e art. 220, 2) no deixa dvida sobre a orientao constitucional a favor da liberdade de manifestao, contrria a qualquer forma de censura.

    A censura consiste em ato estatal de direcionamento ou vedao da expresso do indivduo ou da imprensa, o que vedado pela Constituio. Para o STF, No cabe ao Estado, por qualquer dos seus rgos, definir

    2 BRASIL, STF, HC 83.996 , Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 17 ago. 2004, Segunda Turma, DJ de 26 de ago. 2005.

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    previamente o que pode ou o que no pode ser dito por indivduos e jornalistas3 e ainda: [...] a Lei Fundamental do Brasil veicula o mais democrtico e civilizado regime da livre e plena circulao das ideias e opinies4. Apesar dessa posio libertria do STF, cabe agora verificar a possibilidade de imposio de limites liberdade de expresso, em especial no que tange aos discursos de dio (hate speech).

    3 A liberdade de expresso e o discurso de dio (hate speech) no Brasil

    O discurso de dio (hate speech) consiste na manifestao de valores discriminatrios, que ferem a igualdade, ou de incitamento discriminao, violncia ou a outros atos de violao de direitos de outrem. Essa terminologia acadmica de extrema atualidade no Brasil e em diversos pases no mundo, em face do discurso neonazista, antissemita, islamofbico, entre outras manifestaes de pensamento odiosas. O STF debateu essa situao no chamado Caso Ellwanger, no qual, entre outros temas, discutiram-se os limites da liberdade de expresso e seu alcance em relao publicao de obras antissemitas. De acordo com a maioria dos votos (vencidos os Ministros Marco Aurlio e Carlos Britto, que valorizaram a liberdade de expresso), no h garantia constitucional absoluta, ou seja, as liberdades pblicas no so incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmnica, observados os limites explcitos e implcitos (frutos da proporcionalidade e ponderao com outros direitos), previstos na Constituio e nos tratados de direitos humanos. A liberdade de expresso no pode ser invocada para abrigar manifestaes de contedo imoral que implicam ilicitude penal. Em vrios votos, como, por exemplo, o do Ministro Gilmar Mendes, foram feitas referncias coliso entre a liberdade de expresso e o direito igualdade, bem como dignidade humana. No julgado, preponderou o direito igualdade e dignidade humana, admitindo-se que no era caso de se privilegiar a liberdade de expresso de ideias racistas antissemitas.

    3 ADI 4.451-REF-MC, Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 2 set. 2010, Plenrio, DJe de 1 jul. 2011.

    4 ADPF 130, Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 30 abr. 2009, Plenrio, DJe de 6 nov. 2009.

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    Consequentemente, decidiu o STF que o

    preceito fundamental de liberdade de expresso no consagra o direito incitao ao racismo, dado que um direito individual no pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilcitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalncia dos princpios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurdica5.

    Nesse sentido, Daniel Sarmento, ao analisar as vises de liberdade de expresso no Brasil e nos Estados Unidos, ensina que a viso norte-americana ultralibertria, com a expanso da liberdade de expresso ao custo do enfraquecimento dos diversos outros direitos a ela contrapostos6. A liberdade de manifestao, nesse contexto, um fim em si mesmo, e no um instrumento.

    A concepo brasileira sobre a liberdade de expresso, por outro lado, foi moldada de forma bastante distinta7. No Brasil, adotamos a viso da liberdade de expresso responsvel, ou seja, com limites explcitos (por exemplo, a vedao ao anonimato, direito de resposta, indenizao proporcional ao dano) e implcitos (ponderao com os demais direitos, que, no caso da divulgao de idias racistas, vulnera o direito igualdade).

    4 Liberdade de expresso em perodo eleitoral

    O Direito Eleitoral brasileiro, sob a justificativa de impedir manipulao do eleitorado, ofensa isonomia entre os candidatos ou favorecimento pela mdia de determinado candidato, possui diversos dispositivos de regulamentao da liberdade de expresso no perodo eleitoral.

    Um dos primeiros casos suscitados no STF, ainda em 1994, foi a vedao utilizao de gravaes externas, montagens ou trucagens na propaganda eleitoral gratuita (vedao que hoje consta do art. 51, IV, da Lei n. 9.504/1997: IV - na veiculao das inseres vedada a utilizao

    5 BRASIL, STF, HC 82.424, Rel. p/ o ac. Min. Presidente Maurcio Corra, julgamento em 17 set. 2003, Plenrio, DJ de 19 mar. 2004.

    6 SARMENTO, 2010, p. 211.

    7 Ibidem, p. 250 e seguintes.

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    de gravaes externas, montagens ou trucagens, computao grfica, desenhos animados e efeitos especiais, e a veiculao de mensagens que possam degradar ou ridicularizar candidato, partido ou coligao). O STF decidiu que essas restries so constitucionais, uma vez que o acesso ao rdio e televiso, sem custo para os partidos, d-se s expensas do errio (h ressarcimento dos gastos s emissoras, pela via de compensao tributria) e deve ocorrer na forma que dispuser a lei, consoante disposio expressa na Carta Federal (art. 17, 3). Essas restries so proporcionais, na tica do STF, pois visam eliminar desequilbrios fruto do poder econmico (por exemplo, vedando computao grfica e efeitos especiais), assegurando-se a isonomia entre os candidatos8.

    Em 2002, o STF analisou a constitucionalidade da proibio da participao, na propaganda partidria, de pessoa filiada a partido que no o responsvel pelo programa (art. 45, 1, da Lei n. 9.096/1995). Para o STF, essa restrio constitucional, pois a propaganda partidria destina-se difuso de princpios ideolgicos, atividades e programas dos partidos polticos, caracterizando-se desvio de sua real finalidade a participao de pessoas de outro partido no evento em que veiculada9.

    Em 2006, o STF reconheceu a inconstitucionalidade do art. 35-A inserido na Lei n. 9.504/1997 (Lei das Eleies), que vedava a divulgao de pesquisas eleitorais a partir do dcimo quinto dia anterior at as dezoito horas do dia do pleito. Decidiu o STF que essa regra ofendeu o direito informao garantido pela Constituio Federal e a liberdade de expresso poltica, sendo,

    luz dos princpios da razoabilidade e da proporcionalidade, inadequada, desnecessria e desproporcional quando confrontada com o objetivo pretendido pela legislao eleitoral que , em ltima anlise, o de permitir que o cidado, antes de votar, forme sua convico da maneira mais ampla e livre possvel10.

    8 BRASIL, STF, ADI 956, Rel. Min. Francisco Rezek, julgamento em 1 jul. 2004, Plenrio, DJ de 20 abr. 2001.

    9 ADI 2.677-MC, Rel. Min. Maurcio Corra, julgamento em 26 jun. 2002, Plenrio, DJ de 7 nov. 2003

    10 BRASIL, STF, ADI 3.741, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 6 set. 2006, Plenrio, DJ de 23 fev. 2007, Informativo 439 do STF.

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    Finalmente, em 2011, o STF declarou inconstitucionais as proibies s emissoras de rdios e televises, na programao normal e noticirios, de uso de trucagem, montagem ou outro recurso de udio ou vdeo que, de qualquer forma, degradem ou ridicularizem candidato, partido ou coligao, ou a produo ou veiculao de programa com esse efeito, a partir de 1 de julho do ano de eleies (art. 45, II, da Lei n. 9.504/1997). Nesse caso, o STF fez valer a liberdade de imprensa das empresas de rdio e televiso, que, at aquele momento, estavam impedidas de veicular os tradicionais programas humorsticos expondo criticamente a imagem dos candidatos (ou os prprios) a situaes cmicas. A nica ressalva feita pelo STF foi quando a crtica ou a matria jornalsticas venham a descambar para a propaganda poltica, passando nitidamente a favorecer uma das partes na disputa eleitoral. Hiptese a ser avaliada em cada caso concreto11.

    Vistas as balizas gerais ao contedo da liberdade de expresso, veremos, a seguir, as proibies existentes no Brasil quanto difuso de ideias odiosas pelos partidos polticos.

    5 As ideias odiosas veiculadas por partidos polticos no Brasil

    5.1 A proibio de contedo odioso na propaganda eleitoral

    O Direito Eleitoral brasileiro do regime militar bastante amplo quanto a restries ao contedo da propaganda partidria ou propaganda eleitoral. O art. 243 do vetusto Cdigo Eleitoral (Lei n. 4.737/1965) dispe que no ser tolerada propaganda I - de guerra, de processos violentos para subverter o regime, a ordem poltica e social ou de preconceitos de raa ou de classes [...]. O art. 243, I, no possui sano direta, podendo ser utilizado, eventualmente, em ao de crime contra a honra ou ainda indenizao por danos morais. No entanto, o art. 40 da Lei n. 9.504/1997 estabelece sano propaganda irregular, que, inclusive, gera o dever de retirada em 48 horas (art. 40-B, pargrafo nico), o que poderia incluir a propaganda ofensiva ao art. 243, I, do Cdigo Eleitoral.

    11 BRASIL, STF, ADI 4.451-REF-MC, Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 2 set. 2010, Plenrio, DJe de 1 jul. 2011.

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    Por sua vez, as leis posteriores redemocratizao so mais concisas. O art. 53 da Lei n. 9.504/1997 (Lei das Eleies) dispe expressamente que no sero admitidos cortes instantneos ou qualquer tipo de censura prvia aos programas eleitorais gratuitos. Porm, vedada a veiculao de propaganda que possa degradar ou ridicularizar candidatos, sujeitando-se o partido ou coligao infratores perda do direito veiculao de propaganda no horrio eleitoral gratuito do dia seguinte. Nessa proibio possvel incluir implicitamente a vedao a ofensas racistas ou odiosas contra determinado candidato. H, ainda, uma clusula proibitiva aberta, que consiste na vedao de propaganda ofensiva moral e aos bons costumes, na qual ofensas discriminatrias poderiam ser amoldadas.

    Nas previses normativas (do Cdigo Eleitoral e da Lei n. 9.504/1997), v-se que os discursos de discriminao odiosa no possuem destaque, salvo o referente a preconceito de raa.

    Apesar de ser possvel o enquadramento normativo dos demais casos de discursos de dio na hiptese de ofensa moral e bons costumes, essa situao resulta em opacidade e insegurana jurdica, no gerando o efeito preventivo que uma clusula expressa ocasionaria.

    Assim, o combate ao discurso de dio incipiente na rea eleitoral.

    5.2 O cancelamento do registro dos partidos polticos

    A extino de partidos polticos foi uma caracterstica da ltima ditadura militar brasileira (1964-1985). J em 1965, aps a vitria da oposio nas eleies estaduais em cinco estados, foi editado o Ato Institucional n. 2, que extinguiu treze partidos polticos e somente permitiu a existncia de duas associaes polticas nacionais, sem que estas pudessem at usar a palavra partido. Foi criada a Aliana Renovadora Nacional (ARENA), aglutinando o apoio ao regime militar e o Movimento Democrtico Brasileiro (MDB), que seria composto por aqueles que aceitassem fazer oposio tmida, limitada aos marcos rgidos fixados pela ditadura12.

    No perodo democrtico, contudo, houve tambm a cassao do registro do Partido Comunista do Brasil, em 1947, por apertada maioria

    12 Cf. FERREIRA, 1992, p. 191.

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    (3 x 2) no Tribunal Superior Eleitoral. Como recorda Pinto Ferreira, na poca, a influncia do macarthismo nos EUA respingou no Brasil e fez como que o PCB fosse considerado um partido aliengena e subversivo13. A declarao de Luiz Carlos Prestes de que, em uma hipottica guerra do Brasil contra a Unio Sovitica, abraaria a causa sovitica foi utilizada amplamente como prova de que o partido comunista seria mero brao de Moscou. Com a cassao, as sedes do PCB foram fechadas e seus representantes posteriormente perderam os mandatos.

    Na Constituio de 1988 foi estabelecido, em seu art. 5, XVII, que plena a liberdade de associao para fins lcitos, vedada a de carter paramilitar, bem como que as associaes s podero ser compulsoriamente dissolvidas ou ter suas atividades suspensas por deciso judicial, exigindo-se, no primeiro caso, o trnsito em julgado (inciso XIX).

    No tocante aos partidos polticos em especial, o art. 17 da CF/88 dispe que livre a criao, fuso, incorporao e extino de partidos polticos, resguardados a soberania nacional, o regime democrtico, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana.

    Contrario sensu, no ser considerado legtimo um partido que atente contra os direitos humanos, abrindo-se a possibilidade de dissoluo de partido poltico cujos ideais sejam antidemocrticos e discriminatrios por ofensa ao caput do art. 17.

    Contudo, no momento de detalhar o modo pelo qual a democracia brasileira defende- se de ideias partidrias intolerantes, a Lei n. 9.096/1995, que rege os partidos polticos, foi omissa. O art. 28 desse diploma legal determinou to somente que o Tribunal Superior Eleitoral, aps trnsito em julgado de deciso, deve ordenar o cancelamento do registro civil e do estatuto do partido contra o qual fique provado ter recebido ou estar recebendo recursos financeiros de procedncia estrangeira (inciso I), estar subordinado a entidade ou governo estrangeiros (inciso II), no ter prestado, nos termos dessa lei, as devidas contas Justia Eleitoral (inciso III) ou, ainda, estar mantendo organizao paramilitar (inciso IV).

    As hipteses relativas ao descumprimento dos princpios democrticos e da proteo dos direitos fundamentais das pessoas foram

    13 FERREIRA, 1992, p. 192.

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    olvidadas, devendo ser invocado diretamente o texto constitucional no momento da anlise do cancelamento do registro de um partido cujos ideais sejam antidemocrticos ou discriminatrios.

    Veremos, a seguir, como feito esse combate s ideias intolerantes dos partidos polticos em alguns pases europeus e na Corte Europeia de Direitos Humanos (Corte EDH).

    6 A represso aos intolerantes: uma tradio europeia

    Uma resposta repressora aos inimigos da democracia foi adotada em vrios pases europeus.

    Na Alemanha, a Lei Fundamental de Bonn prev que no so legtimos partidos polticos que atentem contra a ordem constitucional democrtica. Essa vedao levou, em 1952, proibio do Partido Socialista do Reich e, em 1956, do Partido Comunista, esta referendada pela Comisso Europeia de Direitos Humanos14. Recentemente, o Partido Nacional Democrata alemo (NPD) no foi dissolvido pelo Tribunal Constitucional de Karlsruhe por questes processuais.

    Por outro lado, na Holanda, foi proibido, com apoio judicial, o De Nationale Volkspartij, uma vez que esse partido reiteradamente pregava a discriminao racial e a xenofobia, em total contradio s normas constitucionais holandesas e aos tratados internacionais de direitos humanos ratificados por aquele pas.

    Na Itlia, possvel a dissoluo de partidos fascistas ou promotores de ideias discriminatrias e odiosas. Na Frana, foi dissolvido, por decreto de 2002, um partido de extrema direita (neonazista) como represlia participao de um de seus membros em atentado ao Presidente da Repblica. Na Turquia, como veremos, h um longo histrico de dissoluo de partidos fundamentalistas islmicos, tendo ainda existido diversas apreciaes de tais casos pela Corte Europeia de Direitos Humanos15.

    14 CARVALHO RAMOS, 2012b.

    15 Cf. esses exemplos em CASADEVANTE ROMANI, Carlos Fernndez de. Existen proyectos polticos incompatibles con la democracia. Papeles de Ermua, n. 7. Disponvel em: , acesso em 9 abr. 2006.

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    Finalmente, na Espanha, o Tribunal Superior, com apoio do Tribunal Constitucional, ordenou a dissoluo, em maio de 2003, dos partidos independentistas bascos Herri Batasuna, Euskal Herritarrok e Batasuna, por considerar suas atividades como apoio ao terrorismo do grupo armado ETA.

    O solo europeu frtil em exemplos de dissoluo de partidos em nome da defesa do regime democrtico e dos direitos fundamentais. Consequentemente, de interesse a anlise de alguns casos prticos para apurar os fundamentos para tais proibies, bem como para verificar a existncia de limites e controles dessas prticas repressivas.

    7 A teoria do abuso do direito

    7.1 Conceito

    Uma possvel fundamentao dessa drstica limitao liberdade de expresso de ideias polticas a teoria do abuso de direito16. Esse instituto, originrio do Direito Privado, consiste na proibio do exerccio de determinado direito que tenha como objetivo a supresso de outros direitos humanos ou do regime democrtico.

    Essa clusula consta da Declarao Universal de Direitos Humanos, que no artigo 30 estabelece no poder nenhum de seus dispositivos ser interpretado no sentido de conferir direito a outrem de realizar atividades que visem supresso de qualquer outro direito ou liberdade17.

    Assim, percebemos de incio a polmica. No h proteo de direitos humanos para determinadas atividades que tenham como objetivo a destruio de outros direitos ou liberdades, em especial as referentes ao regime democrtico. O passado totalitrio europeu dos anos 20 e 30 do sculo XX (ascenso do nazismo, por meio de eleies na Repblica de Weimar, entre outros) gerou a preocupao de evitar que o regime democrtico cometesse suicdio ao proteger (com direitos liberdade

    16 CARVALHO RAMOS, 2012b, p. 179-184.

    17 Pouco tempo depois, a Lei Fundamental de Bonn estabeleceria que no tem direito proteo constitucional aquele que abusar de seus direitos para combater o regime democrtico (artigo 18).

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    de associao partidria, reunio, expresso, entre outros) aqueles que querem sua destruio.

    O risco latente permitir que maiorias decidam no poderem determinadas ideologias ser livremente discutidas (e qui apoiadas) no seio da arena democrtica, pois seriam antidemocrticas18, e, assim, suprimir ameaas ao seu poder. O jogo conhecido: em determinado momento, uma maioria eleitoral destroa qualquer ameaa futura, por meio da dissoluo de partidos que estejam ganhando adeptos.

    Nesse momento, salta aos olhos que pode existir desvirtuamento da teoria do abuso de direito, em detrimento das minorias. Assim, cabe analisar justamente a casustica da aplicao da teoria do abuso de direito, para verificar a existncia de excessos que tenham desvirtuado esse instituto e a proteo de direitos humanos.

    Para tanto, escolhemos a jurisprudncia da Corte Europeia de Direitos Humanos, uma vez que h vrios casos de invocao da teoria do abuso de direito naquela corte regional.

    7.2 A prtica: alguns casos da Corte Europeia de Direitos Humanos

    A prtica da Corte Europeia de Direitos Humanos valiosa, pois a Conveno Europeia de Direitos Humanos, em seu artigo 17, estabelece a proibio do abuso de direito19. Esse artigo dispe:

    Nenhuma das disposies da presente Conveno se pode interpretar no sentido de implicar para um Estado, grupo ou indivduo qualquer direito de se dedicar a actividade ou praticar actos em ordem destruio dos direitos ou liberdades reconhecidos na presente Conveno ou a maiores limitaes de tais direitos e liberdades do que as previstas na Conveno.

    Nos primeiros anos de funcionamento do sistema europeu de direitos humanos, a Comisso Europeia manifestou-se, em 1957, sobre a dissoluo do Partido Comunista Alemo (KPD) pelo Tribunal

    18 CARVALHO RAMOS, 2012b.

    19 Cf. viso crtica em VAN DROOGHENBROECK, Sbastien. Larticle 17 de la Convention europenne des droits de lhomme est-il indispensable? in Revue Trimestrelle des Droits de lHomme, v. 12, n. 46, 2001 p. 541-566.

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    Constitucional (BVG) da Repblica Federal da Alemanha em 1956. Dito partido foi dissolvido por ter sido considerada a ideologia marxista-leninista antidemocrtica. Seus bens foram confiscados e se proibiu a criao de outras associaes que o substitussem. Em sua defesa, o Estado alemo apelou ao artigo 21.2 da Lei Fundamental de Bonn, que permite a dissoluo de partidos que atentem contra a ordem constitucional e ainda ao artigo 17 da Conveno Europeia.

    Em plena Guerra Fria, a Comisso Europeia de Direitos Humanos julgou a demanda improcedente20, considerando ser plenamente compatvel com a Conveno esse tipo de restrio liberdade de associao e expresso. Foi levado em considerao que, embora o Partido Comunista no realizasse atividades reais de destruio do regime democrtico (pelo contrrio, buscava o poder pelas vias eleitorais), no havia renunciado formalmente revoluo bolchevique ou ditadura do proletariado do iderio comunista.

    Assim, a Comisso no distinguiu entre atos materiais e discursos polticos (como tradicional na jurisprudncia norte-americana sobre liberdade de expresso) e arquivou a demanda. Parte da doutrina criticou duramente essa deciso, por consider-la desproporcional e destruidora do ncleo essencial da liberdade de expresso21.

    Aps, no caso Lawless contra Irlanda, a Corte Europeia analisou a situao de um trabalhador de Dublin que havia estado preso durante quase seis meses em estabelecimentos militares, suspeito do crime de terrorismo, mas sem ser levado presena de um juiz. O governo irlands utilizou em sua defesa a guerra contra o terrorismo, legitimada pelo artigo 17 da Conveno. Nesse caso, a Comisso Europeia decidiu processar o Estado, e a Corte julgou desproporcionais as medidas da Irlanda, pois a violao do devido processo legal em nada auxiliava a luta do Estado contra o IRA.

    20 No havia ainda o direito de acesso direto da vtima Corte Europeia de Direitos Humanos. CARVALHO RAMOS, 2012a.

    21 Cf. mais em GARCIA ROCA, J. La problemtica disolucin del Partido de la Prosperidad ante el TEDH: Estado constitucional y control de las actuaciones de partidos fundamentalistas, 65 Revista Espaola de Derecho Constitucional, 2002, p. 295 e ss.

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    O raciocnio da Corte foi simples: a teoria do abuso de direito era inaplicvel ao caso, pois o Sr. Lawless22, em teoria, teria abusado da liberdade de expresso e de associao, e o Estado restringiu direito totalmente diverso, o direito ao devido processo legal.

    Em 1998, a Corte Europeia foi chamada a avaliar a conduta da Frana, que condenou, por apologia de crime de guerra e colaborao, os responsveis pela publicao de anncio pago no jornal Le Monde, no qual louvavam e pediam a reabilitao histrica e moral do Marechal Petin, chefe do governo colaboracionista de Vichy na 2 Guerra Mundial. O governo francs defendeu-se, alegando que teria existido abuso da liberdade de expresso. A Frana23 invocou, ento, aplicao do artigo 17 da Conveno que excluiria os demandantes da proteo do artigo 10, referente liberdade de expresso24.

    Saliente-se que, de incio, a Corte distinguiu entre o caso em anlise e os chamados casos de revisionismo, em que a negao do holocausto judeu e dos campos de concentrao no deveria merecer a proteo do artigo 10, pois a liberdade de expresso no protege a mentira histrica. Aps, a Corte reconheceu que os fatos narrados referiam-se a pgina dolorosa da histria francesa, na qual um ex-heri da 1 Guerra Mundial havia se transformado em colaborador nazista. No entanto, para que o artigo 17 fosse aplicvel, seria necessrio que os atos impugnados incitassem o dio, a violncia ou o uso de meios ilegais para destruir os direitos previstos na Conveno, o que no havia se passado. Assim, para a Corte, a interpretao do artigo 17 deve ser estrita, pois as democracias devem tolerar vises dspares da histria, sendo desproporcional, para punir a conduta em questo, o uso de sanes penais referentes ao crime de apologia de crime de guerra25.

    22 O sobrenome da vtima uma incrvel coincidncia com os fatos em debate.

    23 Como j abordado em obra prpria, o Estado responde mesmo por atos de seu Poder Judicirio. Cf. CARVALHO RAMOS, 2004.

    24 Corte Europeia de Direitos Humanos, Caso Lehideux e Isorni vs. Frana, julgamento de 23 set. 1998.

    25 Cabe salientar que a deciso do caso Petain no foi unnime.

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    Por sua vez, no caso Vogt, uma professora alem ocidental, da rede pblica, foi afastada, em plena dcada de 1980 e antes da queda do Muro de Berlim, aps sofrer processo administrativo pelo mero fato de pertencer a um partido poltico comunista que, diferentemente do antigo KPD, no havia sido banido pelo Tribunal Constitucional. De acordo com o rgido entendimento do governo alemo (apoiado pelo Tribunal Constitucional), essa postura de uma servidora pblica era prova de deslealdade face Constituio alem, pois o iderio comunista (mesmo de um partido legalizado) era contrrio Constituio. A Corte Europeia, por escassa maioria (um voto), considerou que a medida fora desproporcional, uma vez que a perda do emprego, a reduo da penso e todos os malefcios causados a uma professora com desempenho inatacvel, em nome de uma rgida defesa em abstrato da ordem constitucional (herana do trauma da Repblica de Weimar) significavam impor um sacrifcio desproporcional ao ganho (uma vez que o risco ordem constitucional era mnimo, se que existia algum risco).

    O Professor Isi Foighel (Universidade de Copenhague) considerou o caso Vogt o mais importante de todo seu perodo de vrios anos como juiz da Corte Europeia. Para Foighel, ao longo da histria da humanidade, muitos j foram considerados inimigos do Estado (cristos na poca romana, protestantes, judeus, homossexuais, ciganos e, mais recentemente, nos Blcs, muulmanos). No caso Vogt, o mais poderoso Estado europeu (Alemanha) foi processado por uma professora do ensino mdio e obrigado a justificar sua postura perante juzes internacionais. E no convenceu a Corte Europeia do acerto de sua deciso.

    Com isso, v-se que a Corte Europeia de Direitos Humanos adotou o chamado princpio da democracia militante ou democracia apta a se defender (wehrhafte Demokratie), que teria sido acolhido pelo artigo 17 da Conveno, mas necessrio que o Estado prove que suas medidas so coerentes com um juzo completo de proporcionalidade (idoneidade, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito)26.

    26 Corte Europeia de Direitos Humanos, Caso Vogt vs. RFA, julgamento de 23 set. 1995, Srie A n. 323. Cf. FOIGHEL, Isi. Three Judgments from European Court of Human Rights, 20 Magazine Justice (2000), Revista da International Association of Jewish Lawyers and Jurists, p. 25-28.

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    8 As restries legtimas liberdade de associao poltica

    8.1 Aspectos gerais

    Alm do recurso teoria do abuso do direito, a jurisprudncia da Corte Europeia de Direitos Humanos tambm apela, para justificar a dissoluo de partidos polticos, s restries legtimas liberdade de associao poltica. Essas restries constam, genericamente, do artigo 11 da Conveno Europeia de Direitos Humanos, que dispe que o exerccio da liberdade de associao

    s pode ser objeto de restries que, sendo previstas na lei, constiturem disposies necessrias, numa sociedade democrtica, para a segurana nacional, a segurana pblica, a defesa da ordem e a preveno do crime, a proteco da sade ou da moral, ou a proteco dos direitos e das liberdades de terceiros (artigo 11, 2).

    Assim, tal dispositivo convencional estabeleceu trs parmetros de adequao das restries liberdade de associao poltica: previso em lei, finalidades legtimas e necessrias em uma sociedade democrtica.

    A exigncia de que as restries sejam previstas em lei serve para dar publicidade e previsibilidade reao do Estado, evitando-se a surpresa e possibilitando aos destinatrios da norma que evitem uma drstica restrio liberdade de expresso poltica.

    Considerando que a previso em lei , em geral, cumprida, v-se que, quanto s finalidades legtimas, a Conveno Europeia de Direitos Humanos abusa de conceitos indeterminados como segurana nacional, defesa da ordem etc. Isso exigiu da Corte Europeia um adensamento de juridicidade no exame dos casos concretos para impedir que toda ideia poltica contrria ao establishment fosse asfixiada graas aos conceitos indeterminados de segurana nacional ou defesa da ordem.

    Assim, os partidos reformistas que pugnem por mudanas radicais na legislao devem ser aceitos, desde que os meios para as mudanas sejam constitucionais e o contedo da reforma no atente contra a democracia e os direitos fundamentais. Nesse sentido, a Corte Europeia de Direitos Humanos decidiu que um partido poltico pode apoiar a mudana estrutural de normas, desde que os meios invocados para tal fim

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    sejam previstos na ordem constitucional e ainda que a reforma proposta seja compatvel com os princpios democrticos fundamentais.

    Projetos de reformas baseados na violncia ou com objetivos de destruir o acervo democrtico no so compatveis com a Conveno Europeia de Direitos Humanos. Assim, para a Corte Europeia,

    um partido poltico cujos responsveis incitam o recurso violncia ou propem um projeto poltico que no respeita uma ou vrias normas da democracia, ou que tenda destruio desta, assim como o desprezo aos direitos e liberdades nela inerentes, no pode invocar a proteo da Conveno contra as sanes impostas por tais motivos27.

    Por outro lado, ao se exigir que as medidas sejam necessrias ordem democrtica, v-se que a Conveno faz uma opo pela aplicao do princpio da proporcionalidade (medidas idneas e necessrias, cujo benefcio supera o custo) no exame da convencionalidade dos atos de represso. Com isso, parece bvio que a dissoluo de partidos polticos deva ser um ltimo recurso e que tais finalidades no possam ser atingidas por meio de outro instrumento menos gravoso.

    Alm disso, imperioso distinguir aqueles partidos pleiteadores de reformas (mesmo que estruturais) por meio das regras democrticas daqueles que defendem as mesmas reformas, mas pela violncia. De fato, h sempre a possibilidade de identidade de propsitos entre partidos polticos e grupos armados, como, por exemplo, em relao a temas sensveis aos grupos dominantes (distribuio das riquezas, reforma agrria, autonomia de determinada regio etc.), mas tal identidade cessa na escolha dos meios.

    Os partidos polticos permitidos, na viso da Corte Europeia de Direitos Humanos, podem compartilhar dos ideais, mas no da violncia, para o atingimento de tais fins. De fato, se tal identidade de ideias fosse motivo suficiente para a dissoluo de partidos polticos, a nica via para o atingimento dos fins almejados seria justamente a violncia, o que seria um contrassenso. Como argutamente observou a Corte Europeia de Direitos Humanos ao condenar a Turquia no caso da extino do Partido

    27 Cf. Corte Europeia de Direitos Humanos, Caso Refah Partisi vs. Turquia, julgamento de 13 fev. 2003, pargrafo 46, traduo nossa.

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    do Trabalho do Povo, tal medida de dissoluo anula a possibilidade de tratar esses temas no marco democrtico e se permitiria a movimentos armados monopolizar a defesa de tais princpios, o que est em contradio direta com o esprito do artigo 11 e com os princpios democrticos nos quais este se fundamenta28.

    Todavia, o Estado no necessita esperar que haja consecuo prtica das ideias antidemocrticas de um partido para que, ento, seja ordenada sua dissoluo. De fato, para a Corte Europeia de Direitos Humanos

    O Estado implicado pode, de modo razovel, impedir a realizao de tal projeto poltico, incompatvel com as normas da Conveno, antes de que seja posto em prtica mediante atos concretos que possam por em risco o regime democrtico e a paz de um pas29.

    8.2 A dissoluo de partidos polticos turcos

    Nos ltimos anos, a Corte Europeia apreciou vrias dissolues de partidos fundamentalistas turcos30. No caso mais aguardado, tendo em vista o tamanho do partido, a Corte, por deciso unnime de uma Grande Sala (17 juzes), considerou legtima, em 2003, a dissoluo do Partido da Prosperidade (Refah Partisi) da Turquia, por ser fundamentalista islmico e, com isso, atentar contra os fundamentos da Repblica laica turca. Registre-se que tal Partido no era diminuto e contava, em 1996, com 156 dos 450 representantes da Assembleia Nacional31.

    interessante observar que a Corte praticamente no cita o artigo 17 (invocado pelo Governo turco) e se apoia nos limites do artigo 11

    28 Cf. Corte Europeia de Direitos Humanos, Yazar, Karata, Aksoy e o Partido do Trabalho do Povo (HEP) vs. Turquia, pargrafo 57.

    29 Cf. Corte Europeia de Direitos Humanos, Caso Refah Partisi vs. Turquia, julgamento de 13 fev. 2003, pargrafo 80.

    30 Vejam-se os casos do Partido Comunista Unificado (TKBP), o caso do Partido Socialista (SP), o caso do Partido da Liberdade e Democracia (OZDEP), o caso do Partido do Trabalho do Povo (HEP), todos contra a Turquia. Em todos eles, a linha de defesa do governo turco foi a luta contra o terrorismo curdo e o fundamentalismo islmico. Cf. ALLU BUIZA, Alfredo. Pluralismo poltico en Turqua y el Tribunal Europeo de Derechos Humanos, 34 Revista de Estudios Europeos (2003), p. 131-153.

    31 Cf. Corte Europeia de Direitos Humanos, Caso Refah Partisi vs. Turquia, julgamento de 13 fev. 2003.

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    (liberdade de reunio e associao), que no poderia ser invocado por aqueles que no defendem a separao da Igreja e do Estado, tida como essencial para a garantia do pluralismo poltico.

    Por outro lado, no era desconhecido para a Corte Europeia de Direitos Humanos o tratamento privilegiado dado Igreja Catlica em vrios Estados ocidentais, inclusive com educao catlica em escolas pblicas, como na Espanha. A prpria Corte Europeia, no caso Otto-Preminger Institut, no condenou a ustria por ter proibido a exibio de filme (Das Liebeskonzil, baseado em obra satrica de Oskar Panizza e seu julgamento por blasfmia no sculo XIX) considerado ofensivo religio catlica, alegando que a maioria catlica austraca deveria ter sua sensibilidade respeitada32.

    que, no caso da ascenso de um partido poltico fundamentalista religioso, fica ameaada a democracia, uma vez que se transfere o poder da esfera pblica para a esfera religiosa. Essa transferncia radical (que no ocorre em outras reas, como na educao ou na censura a obras consideradas ofensivas a uma religio) de poder vulnera o prprio conceito de Estado Democrtico. Para a Corte, ento, o regime democrtico indisponvel, devendo, mesmo contra a vontade de parcela expressiva do eleitorado, ser protegido. Logo, vulnera-se o princpio democrtico quando a populao de um Estado, de modo inclusive majoritrio, renuncia a seus poderes legislativo e judicial em benefcio de uma entidade que no responsvel perante o povo que governa, seja essa entidade laica ou religiosa33.

    Assim, para a Corte Europeia de Direitos Humanos, quando o pluralismo de ideias inerente ao regime democrtico posto em risco, o Estado pode impedir a continuao do projeto poltico que tenha gerado tal risco34.

    32 Cf. CARVALHO RAMOS, 2012b.

    33 Cf. Corte Europeia de Direitos Humanos, Caso Refah Partisi vs. Turquia, julgamento de 13 fev. 2003, pargrafo 42.

    34 Cf. Corte Europeia de Direitos Humanos, Caso Refah Partisi vs. Turquia, julgamento de 13 fev. 2003.

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    8.3 A dissoluo do Herri Batasuna (HB)

    Em 2003, a Espanha dissolveu o Partido Herri Batasuna (HB), considerado brao poltico do grupo terrorista Euskadi Ta Askatasuna (ETA), tendo sido essa deciso mantida pelo Tribunal Constitucional espanhol e pela Corte Europeia de Direitos Humanos35.

    Referida dissoluo foi fruto da aplicao da Lei Orgnica espanhola dos Partidos Polticos e, em especial, de seu artigo 9, que, anteriormente, havia sido alvo de alegao de inconstitucionalidade perante o Tribunal Constitucional Espanhol (TCE).

    Nesse caso, o TCE entendeu ser constitucional a previso de dissoluo de um partido poltico envolvido com grupos terroristas. Para o Tribunal, no exerccio do controle de constitucionalidade abstrato das leis, a existncia de um partido poltico que, com sua atividade, colabore ou apoie atos terroristas de violncia pe em risco a sobrevivncia da ordem pluralista adotada pela Constituio e, frente a tal risco, no cabe outra sano que no seja a sua dissoluo36.

    Por seu turno, na anlise concreta do Tribunal Supremo Espanhol, a dissoluo do HB foi necessria, uma vez que ficou provado, por meio da anlise de posturas, homenagens, discursos, manifestaes e atos dos militantes do partido poltico em questo, que havia endosso luta armada do grupo terrorista ETA.

    Em resumo, buscou-se harmonizar o legtimo interesse de uma sociedade democrtica em se proteger de atividades dos grupos terroristas e o dever de respeitar e garantir a liberdade de expresso poltica de todos, e, em especial, das minorias37.

    35 Cf. Tribunal Supremo Espanhol, acrdo de 27 mar. 2003, Sala Especial, por meio do qual foram dissolvidos os partidos polticos Herri Batasuna, Euskal Herritarrok e Batasuna. No Tribunal Constitucional, em 15 dez. 2003 houve a denegao da ordem de amparo (Auto nmero 417/2003). Sobre tais decises, ver BILBAO UBILLOS, J.M. Guin para el debate sobre la disolucin de los grupos parlamentarios vinculados a partidos que han sido ilegalizados judicialmente, Revista Espaola de Derecho Constitucional, n. 68, maio/ago. 2003, p. 249 e ss.

    36 Cf. STC n. 48/2003, de 12 mar. 2003. Sobre o papel dos tribunais constitucionais europeus no controle de constitucionalidade, CLVE, Clmerson Merlin, 2000.

    37 Sobre essa tenso, cf. Corte Europeia de Direitos Humanos, Zana vs. Turquia, de 25 nov. 1997. Em especial, o pargrafo 55.

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    9 Concluso

    No Brasil, a restrio s ideias odiosas veiculadas por partido poltico engatinha; o que resultado, por certo, do trauma causado pelas inmeras restries ao mercado de ideias geradas pela ditadura militar recente.

    Por outro lado, em vrios pases com democracias consolidadas na Europa, aceita-se a possibilidade de derrogao da liberdade de expresso poltica em nome da prevalncia do Estado Democrtico de Direito, que deve possuir mecanismos que assegurem sua existncia em casos de perigos extremos. Os defensores da democracia militante sustentam existir apenas um aparente conflito de valores, que seria resolvido pela certeza de que, somente com a permanncia do Estado de Direito (suscetvel de ser ameaada pelas situaes anormais), todos os direitos humanos sero efetivamente protegidos. Porm, os diversos casos, vistos acima, dos pases europeus reavivaram a polmica da democracia militante e da possibilidade do uso camuflado da extino de partidos polticos para impedir que minorias cheguem ao poder.

    A teoria do abuso de direitos ou a teoria das restries liberdade de expresso poltica, quando aplicadas ao pluralismo poltico, devem sofrer escrutnio estrito. Ademais, deve a dissoluo de partidos polticos ser considerada interveno gravssima nos direitos fundamentais, a ser justificada em poucas ocasies, qui quando o partido for mera camuflagem de uma associao armada. Nem preciso dizer que a dissoluo de partidos polticos representativos das vises de mundo de parcela da populao frustra toda a esperana de tomada do poder por meios democrticos38.

    Os velhos e novos desafios s democracias (xenofobia, ideais neonazistas camuflados ou no em partidos de extrema direita em vrios pases europeus, por exemplo) no podem ser esquecidos, mas no devem levar a conjuntura de pnico, com a eliminao de partidos polticos e a asfixia das minorias.

    Por isso, urge que os sistemas internacionais de direitos humanos atentem para o crivo estrito das referidas restries, no confiando (e

    38 Ver GARCIA ROCA, J. La problemtica disolucin del Partido de la Prosperidad ante el TEDH: Estado constitucional y control de las actuaciones de partidos fundamentalistas, 65 Revista Espaola de Derecho Constitucional (2002), p. 295 e ss.

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    alinhando-se) cegamente em uma pretensa tradio democrtica do Estado que adota regras limitadoras.

    A vigilncia internacional dos direitos humanos serve justamente para oferecer um contraponto viso majoritria nacional. Isso assegura que restries eventualmente adotadas no sejam meramente um disfarce para salvaguardar interesses eleitorais de maiorias de momento, asfixiando minorias.

    Referncias

    ALLU BUIZA, Alfredo. Pluralismo poltico en Turqua y el Tribunal Europeo de Derechos Humanos, 34 Revista de Estudios Europeos (2003), p. 131-153.

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    Incluso eleitoral e efetivao dos direitos polticos

    Paulo Thadeu Gomes da Silva

    Sumrio: 1 Introduo. 2 Direito poltico. 3 Incluso eleitoral. 4 Concluso.

    1 Introduo

    O ttulo deste artigo j traz consigo uma contradio, expressa em que quando se pensa em incluso pensa-se em direitos sociais, pressupondo-se que com relao aos direitos polticos ela, a incluso, j se efetivou. Essa imediata associao da palavra incluso com os direitos sociais por meio de uma falsa ideia, a de que o Estado de Bem-Estar Social significou a positivao, apenas, dos direitos sociais, esconde um fato da realidade histrica, que representado pelo reconhecimento jurdico de vrios outros direitos, entre os quais, os polticos, sob regime de extenso a um maior nmero de pessoas1, o que quer dizer, de incluso.

    A inadequada associao aqui tratada talvez decorra da, hoje, ao menos pela pena deste autor, combatida classificao dos direitos fundamentais, entre os quais os polticos, em geraes, pois, se em determinado contexto histrico ela serviu a algum propsito cientfico, hoje se encontra um tanto desgastada no que diz com seu potencial para significar alguma coisa. que, como ser visto, na sociedade moderna, complexa e contingente, os direitos fundamentais se manifestam quase que sob suas diversas formas, sendo, por exemplo, de defesa e de prestao. Isso acaba por impedir sua classificao em geraes histricas estanques e separadas umas das outras.

    Uma maneira de se dissolver a contradio aqui apontada analisar as palavras-chave em jogo pelo seu prprio significado, o que, uma vez feito pelo intrprete, leva, necessariamente, a uma inverso dos termos,

    1 Nesse sentido, cf. MAUS, A. G. M. Poder e democracia: o pluralismo poltico na Constituio Federal de 1988. Porto Alegre: Sntese, 1999, p. 19.

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    isto , primeiro deve-se analisar o que significa a expresso direitos polticos, para depois abordar o significado de incluso eleitoral. A inverso se justifica porque, na sociedade moderna atual e no momento histrico presente, j houve a positivao dos direitos polticos, seja em nvel constitucional, seja em nvel internacional, fenmeno esse que pode, potencialmente, produzir a incluso eleitoral.

    E assim foi desde o incio da histria do tema, pois a positivao dos direitos polticos, fruto das lutas dos movimentos sociais organizados, funciona como um necessrio antecedente de um compulsrio consequente que a incluso, ou seja, para que esta seja realizada, impe--se que a primeira se concretize.

    2 Direito poltico

    Nessa linha, direito poltico pode ser analisado tanto por abordagem sociolgica quanto por dogmtica, que no se excluem, antes se complementam. Para a Sociologia, direito poltico expresso de um paradoxo, pois remete o pensamento a ideias dissociadas entre si e ligadas a sistemas diferentes: o jurdico e o poltico.

    O fato de se qualificar como um paradoxo no impede sua anlise pela decomposio de seus significados. A proeza de unir conceitos pertencentes a sistemas diferentes oriunda do evento conhecido como positivao do direito, fruto de uma deciso que optou por tornar direitos fundamentais determinados fatos levados a cabo na sociedade, com base em valores atinentes participao poltica dos cidados nos negcios do Estado, o que fornece uma ideia, ainda que parcial, de autogoverno.

    Se num primeiro momento essas aes podem ser qualificadas como manifestaes de liberdade, num outro se apresentam sob as vestes da igualdade, uma vez que, ao lado da liberdade do sufrgio, h a igualdade de sua realizao que se expressa no valor igual do voto de cada um, no mais interessando sua origem de classe, de nascimento, de sobrenome etc. A positivao do direito poltico, ento, acaba por incluir a todos no prprio sistema jurdico e contribui, decisivamente, consolidao da passagem histrica do estgio de privilgios ao de direitos.

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    Se por um lado essa incluso significa o reconhecimento de direitos de participao no sistema poltico aos indivduos, por outro constitui a maneira que o sistema jurdico encontrou para dar efetividade a um princpio que norteia o sistema poltico e representado pela norma constitucional de que todo poder emana do povo e em seu nome ser exercido, conforme dispe o art. 1, pargrafo nico. Cria, assim, um artifcio para que se possa convencer o prprio povo de que ele a fons etorigo de todo poder e, portanto, ele quem governa: artificialmente, bem entendido, pois se a democracia no significa alguma coisa, essa exatamente ser um governo do povo, pelo povo e para o povo2.

    O documento formal mais adequado positivao do tipo de direito poltico a Constituio, e isso porque ela se qualifica como no sendo de propriedade exclusiva do sistema jurdico e do poltico, o que faz destacar seu carter e no a falta deste ambivalente: vale tanto para o direito quanto para a poltica. Esse documento, por gozar de supremacia formal e ter valor maior se comparado a outros nveis hierrquicos formais e materiais (por exemplo e respectivamente, ordenamento infraconstitucional e internacional de direitos humanos), positiva em seu texto o processo de sua prpria reforma, o que acaba por produzir dois interessantes efeitos na teoria constitucional: a) positiva-se uma autolgica em que a prpria lei determina como deve ser modificada; b) faz cair por terra o dogma de que lei posterior revoga a anterior, pois a Constituio continuar a existir, mesmo no caso de uma lei posterior a ela e que com ela conflite.

    E isso no pouca coisa, se se pensar em que, como decorrncia direta desses postulados, na mesma Constituio que se encontra positivado o ncleo intangvel, no qual se inclui, de forma parcial bis in idem, os direitos polticos. Vale ressaltar que dessa fora normativa da Constituio3 que decorre a possibilidade de existncia de um direito que

    2 LUHMANN, 1997, p. 162.

    3 Pelo gnio de Luhmann, a Constituio diz eu a si mesma (Die Verfassung sagt ich zu sich selbst), conforme, em alemo, Verfassung als evolutionre Errungenschaft. In: Rechtshistorische Journal, n. 9, 1990, p. 176-220 (187); em francs, La Constitution comme acquis volutionnaire. In: DROITS Revue Franaise de Thorie Juridique, PUF, Paris, n. 22, p. 103-125 (113); e em italiano, La Costituzione come conquista evolutiva. In: ZAGREBELSKY, G.; PORTINARO, P. P. e LUTHER, J. (a cura di),

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    seja poltico, pois o s-fato de se admitir que haja essa possibilidade j implica ter de aceitar que uma parte da poltica foi constitucionalizada em termos de direitos e, portanto, em termos jurdicos. No limite, essa forma de pensar leva ao argumento de que o poder domesticado, pois a Constituio se afigura como restrio a sua atuao. E uma das possibilidades de se limitar a atuao do poder exatamente positivar normas de direitos polticos.

    o que ocorre, por exemplo, com a soberania popular (prevista no art. 14, caput, da Constituio), normatizada, expressamente, em termos de seu exerccio, seja de forma direta pela prpria norma constitucional no que diz com o sufrgio universal e o voto direto, secreto e igual para todos, seja de forma indireta, mediante remisso explcita lei infraconstitucional que tratar do plebiscito, do referendo e da iniciativa popular de lei.

    Essa verdadeira formalizao da soberania popular na Constituio produz a reflexo acerca de que a soberania do povo deve ser compreendida como positivada naquele texto; vale dizer, a soberania popular que existe aquela constitucionalmente positivada, a soberania popular tal como posta na Constituio. Raciocnio dessa natureza, se num primeiro momento pode demonstrar que se est a escrever uma tautologia, num segundo momento fornece a base para que se defenda, por exemplo, a repulsa a uma suposta manifestao da tirania da maioria, o que quer dizer, o povo no pode tudo, pode apenas aquilo que a Constituio autoriza e, quando esta o faz, leva em considerao os direitos da minoria.

    Normatizar a soberania popular em nvel constitucional, portanto, serve como real obstculo a aventuras polticas de carter autoritrio ou totalitrio, e tendo sempre em vista por necessidade de sobrevivncia dos padres civilizatrios alcanados custa de muita luta , nunca demais se afirmar, que nem sempre se deseja efetivar, e em alguns casos nem mesmo saber, o que quer o povo.

    Sob a perspectiva dogmtica, direito poltico , na tradio dos direitos fundamentais, um direito de participao. Jellinek, em sua obra

    Il Futuro della Costituzione, Einaudi, Torino, 1996, p. 83-128 (94). E pela pena deste autor: a Constituio dirige a palavra em primeira pessoa.

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    Sistema de direitos pblicos subjetivos4, h mais de cem anos, j escrevia a respeito e classificava os direitos fundamentais de acordo com a posio jurdica ocupada por seu titular. Assim, havia os direitos de participao e de status ativo, os de defesa e de status negativo e os de prestao e de status positivo, e ao lado desses trs os deveres de status passivo.

    Na poca em que foi escrito esse livro havia uma certa oscilao a respeito do significado de direito poltico, ali apontado por Jellinek, uma vez que, por exemplo, o Tribunal de Justia austraco submetia a esse ttulo pretenso de juzes de acordo com a lei ao lado do direito de voto parlamentar e tambm referente comunidade5. Hoje j no h muita dvida a respeito de seu significado, ainda que, de acordo com o aqui articulado mais adiante, o direito de constituir partido poltico e de se associar a partido poltico tambm possa ser considerado sob esse conceito.

    Para Jellinek, ento, poderiam ser considerados direitos polticos o direito do monarca, o direito dos regentes, que eram os representantes constitucionais dos monarcas, o direito dos chefes de Estado e juzes republicanos, o direito de voto, o direito dos eleitos, o direito de nomear um parlamentar no eleito, a votao e o direito de votar na democracia direta e, por ltimo, as pretenses s funes pblicas.

    A descrio proposta por Jellinek se ajusta a um tempo histrico no qual ainda se construa a ideia de personalidade como iuris publici, o que implica afirmar que apenas como membro de um Estado a pessoa era titular de direitos: o Estado como que criava a personalidade6. Essa compreenso leva afirmao de que havia uma relao entre a personalidade e o Estado, relao essa que acabava por limitar a prpria personalidade e que possibilitava pensar que a vontade estatal era a vontade humana, exatamente porque os indivduos passaram a ser titulares de direitos polticos, compostos por uma qualificao passiva e uma ativa7, as hoje denominadas condies de elegibilidade e inelegibilidades; portanto, direitos de participao (conforme Jellinek, Der aktive Status oder Status

    4 Cf. JELLINEK, G. System der subjektiven ffentlichen Rechte. Elibron Classics, Lexington, USA, 2010. Texto original.

    5 Ibidem, p. 133-134.

    6 Ibidem, p. 82-83.

    7 Ibidem, p. 133-135.

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    der aktiven Civitt) na tomada de decises polticas e que diziam respeito aos prprios representados, vale dizer, a ideia de autogoverno que se mantm at o tempo histrico presente.

    Os direitos polticos vm positivados, na Constituio, no interior do catlogo formal dos direitos fundamentais, que vai desde o art. 5 at o 17, mais especificamente no Captulo IV, que compreende os arts. 14 a 16. Essas normas especificam, por exemplo, o sufrgio universal como gnero pelo qual a soberania popular exercida, do qual so espcies o voto, o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular de lei. O significado desses direitos tanto esclarecido pelo ordenamento infraconstitucional, para o caso geral a Lei n. 9.709/1998, quanto, para o caso particular da iniciativa popular de lei, pelo art. 61, 2, da Constituio.

    A localizao topogrfico-formal dos direitos polticos nos arts. 14 a 16 da Constituio no pode impedir a incluso, em seu rol exemplificativo, do disposto no art. 17 do mesmo texto e que tem por ttulo Dos Partidos Polticos. Essa necessidade de se considerar as normas positivadas, nesse ltimo artigo, como tambm atingidas pela ideia de direitos polticos encontra justificao no fato de que, entre os direitos polticos, h aqueles atinentes instituio de e ao pertencimento a determinado partido poltico, sem embargo de que esses mesmos direitos possam encontrar sua fundamentao em outras normas constitucionais de direitos fundamentais, v.g., o direito de livre associao, que, no caso dos partidos polticos, torna-se associao poltica.

    Dilui-se, por essa forma de interpretao, a confuso causada pela inadequao de tratamento da matria pela prpria Constituio, que, ao dividir os temas em captulos distintos, produz razovel perplexidade naquele que observa, levando compreenso de que o tema dos partidos polticos no se insere no dos direitos polticos. Essa confuso em nada esclarecida pela prpria norma internacional que trata do tema, qual seja, o artigo 25 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Polticos, ao positivar tratamento generalizado.

    Compreender o tema dos direitos polticos, por esse modo de observar, implica que ele: a) se liga, numa relao de complementaridade, a outros direitos fundamentais, tais quais o de livre expresso e o de

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    associao; b) manifestao imediata de um direito de liberdade e mediata de um direito de igualdade, conforme se pode extrair do disposto no art. 17, caput, da Constituio.

    A relao de complementaridade existente entre os direitos polticos e os direitos de liberdade de expresso e de associao, no caso, polticas, demonstra a manifestao dos direitos fundamentais na sociedade moderna, sob a gide de uma forma polifacetada, pois pode representar vrios direitos fundamentais a incidirem, simultaneamente, na realidade social.

    Por sua vez, considerar os direitos polticos, na modalidade de criao e pertencimento a um partido poltico, como direito de liberdade demanda uma interpretao, ainda que breve, do preceituado no art. 17, caput, da Constituio. Esse artigo prescreve que livre a criao, a fuso, a incorporao e a extino de partidos polticos, resguardados a soberania nacional, o regime democrtico, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana, observados os preceitos elencados nos incisos I-IV do mesmo artigo.

    Ser livre a criao de partido poltico (que gnero do qual so espcies a fuso, a incorporao e a extino, como acessrios que acompanham o principal), bem assim o pertencimento a um determinado partido poltico, e possuir como limitao essa liberdade de ao, exatamente os direitos fundamentais da pessoa humana, significa a restrio expressa do direito de liberdade por outros direitos fundamentais de mesma bitola, tais quais a mesma liberdade e a igualdade.

    Essa forma de pensar de grande ajuda para o tema aqui tratado, pois essa mesma ideia de restrio liberdade de ao partidrio-poltica que pode produzir argumentos favorveis incluso das pessoas no processo poltico. Vale dizer, aos partidos polticos estaria vedado excluir com base em critrios proibidos de discriminao, o que, se imediatamente promove a incluso, mediatamente refuta a excluso. Essa proibio oriunda do direito de igualdade, que aqui ocupa um lugar no direito de liberdade, para limit-lo.

    De igual efeito, os direitos polticos, por fora do disposto no art. 14, caput, da Constituio, podem ser tidos na conta de beneficirios do regime mais amplo da legalidade estrita e do menos abrangente da

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    reserva legal. Com relao primeira hiptese, verifica-se que o disposto no art. 62, 1, ao impedir a disposio, por medida provisria, sobre a matria dos direitos polticos, confere a estes o beneplcito garantista da legalidade estrita, com seu sentido complementado pelo que preceitua o art. 5, inciso II, tambm da Constituio, norma pela qual ningum ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa seno em virtude de lei, norma com um alcance, portanto, bastante extenso, pois objetiva impedir o arbtrio estatal, o que, na linguagem montesquiana, significa dizer que a forma garantia da liberdade.

    A reserva legal a que se submete o regime de regulamentao dos direitos polticos tem como fundamento de validade tanto o disposto no art. 14, caput, quanto o prescrito no mesmo artigo, 3 e 9, no art. 15, inciso V, e no art. 16, todos da Constituio, os quais exigem lei que disponha sobre as matrias neles mencionadas, v.g., respectivamente, plebiscito, referendo, iniciativa popular, condies de elegibilidade, outros casos de inelegibilidade distintos daqueles j positivados na Constituio, improbidade administrativa como causa de restrio a direito poltico e alterao do processo eleitoral.

    Aqui mais um destaque se impe: o representado pelo sentido da palavra sufrgio. Quase de forma automtica, o intrprete constitucional associa a palavra sufrgio escolha, seleo, o que no inadequado, uma vez que um dos significados dessa palavra exatamente esse. Todavia, se esse significado pode se atrelar ao gnero sufrgio e s espcies referendo e plebiscito, que se concretizam por meio de voto, o mesmo no se pode afirmar com relao iniciativa popular de lei, pois aqui no se trata, genuinamente, de escolha ou seleo, mas sim de aprovao ou concordncia, que podem ser os outros dois significados da palavra sufrgio: aprovao de e concordncia com determinado projeto de lei a ser apresentado por iniciativa popular.

    Essa abordagem dogmtica, pela qual se constata e se acusa o tratamento normativo bastante forte no sentido de proteo dos direitos polticos, permite, tambm, afirmar que ao menos um deles, o direito de voto, positivado por mais de um modal dentico, vale dizer, num primeiro momento ele veiculado sob a forma de permisso, pois um direito fundamental, e, num segundo momento, sob a forma de obrigao,

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    desde que passe a interpretar o regime desses direitos como um subsistema da Constituio e a se traga ao processo de interpretao o disposto no art. 14, 1, inciso I, de seu texto, que preceitua que o alistamento eleitoral e o voto so obrigatrios para os maiores de dezoito anos.

    A veiculao de um direito fundamental por mais de um modal dentico no matria de todo estranha teoria dos direitos fundamentais, o que pode ser ilustrado pelo caso de o direito social de frias ser, na norma constitucional, uma permisso e, no ordenamento infraconstitucional, uma obrigao, devendo o trabalhador, compulsoriamente, gozar dos dias referidos ao perodo respectivo, ressalvada a possibilidade de venda de um tero correspondente, o mesmo se podendo afirmar com relao ao direito de liberdade de livre expresso do pensamento que, conforme o disposto no art. 5, inciso IV, da Constituio, , em sua parte inicial, uma permisso quando se afirma ser livre esse tipo de manifestao, e, em sua parte final, uma proibio quando se veda o anonimato; contudo, essa contradio no anula o prprio direito fundamental de que se cuida.

    Para o caso aqui tratado, no se observa uma excluso do direito em si mesmo considerado porque ele vem positivado por dois modais denticos: um que permite e outro que obriga. Sua anulao, por certo, poderia derivar de uma situao normativa na qual primeiro se permitisse o direito de voto para depois se proibir o mesmo direito. Pelo fato de haver previses normativas que permitem e obrigam, resulta da que no se trata de anular o direito em jogo.

    Se certo pensar dessa maneira, no menos correto pensar que, uma vez aplicada essa aparente contradio ao tema versado neste artigo, qual seja, incluso eleitoral e direitos polticos, a s existncia de preceitos normativos que permitem e obrigam como que causam uma incluso forada, pois que, apesar de se ter o direito de voto, -se obrigado a exerc-lo, i.e., no se cogita, dessemelhana de vrios outros direitos de carter individual, da no fruio da ao, situao ou posio jurdica ocupada pelo titular do direito fundamental: h de se fru-la, ainda que seja para se anular o voto e, como dizem os italianos, basta.

    Por uma outra perspectiva de anlise, os direitos polticos, na modalidade de sufrgio, podem ter, atualmente, ndole positiva, no

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    sentido de que o Estado tem a obrigao de prestao para efetivar esse direito, e ndole negativa, no sentido de que nem o Estado nem o particular podem interferir no processo de seleo que se d na conscincia de cada um e que se exterioriza, de forma secreta, pelo depsito da cdula ou pela digitao do nmero do candidato na urna eletrnica. Relaciona-se esse direito, como se pode observar, com o de liberdade de conscincia, previsto no art. 5, inciso VI, da Constituio.

    E isso no pouco porque tanto o direito de liberdade de conscincia, que alberga o processo interno (que ocorre no mesmo do fluxo da conscincia) de escolha dos candidatos, quanto a sua exteriorizao, que se efetiva pelo voto, so de ndole absoluta, nada existindo que possa flexibiliz-los: primeiro porque, num regime de normalidade democrtica, a tortura proibida, conforme art. 5, inciso III, da Constituio, e segundo porque, mesmo num regime cuja normalidade democrtica se encontre abalada, v.g., estado de stio e estado de defesa, no h como pensar na possibilidade de se lanar mo de medidas coercitivas que representem a revelao do contedo do que foi pensado, escolhido e selecionado.

    Os direitos polticos gozam de proteo reforada pelo disposto na prpria Constituio, art. 60, 4, incisos II e IV, normas pelas quais se probe a deliberao de emenda tendente a abolir o voto direto, secreto, universal e peridico e os direitos e garantias individuais. Essa forma de proteo constitui um parcial bis in idem, e isso porque protegem-se, diretamente, o direito de sufrgio pelo voto e os direitos individuais.

    Explica-se isso. Os direitos polticos, embora na tradio dos direitos fundamentais se distingam dos individuais, podem ser considerados, tambm, como direitos individuais, uma vez que, a par de ombrear com a liberdade e a igualdade, porque se trata, exatamente, de uma das formas de autogoverno, exercem-se de forma individual, e no coletiva.

    Alm disso, na anlise a ser empreendida com relao ao disposto no art. 60, 4, inciso II, esse comando expressa-se por uma explcita proibio no que diz com a tendncia a abolir o voto: a) direto, de modo que no parece acertado pensar na possibilidade de se instaurar, no sistema poltico brasileiro, mtodo de exerccio indireto de voto, tal qual faz exemplo o processo eleitoral nos Estados Unidos, mais conhecido como eleies primrias; b) secreto, de maneira a no ser possvel excepcionar-

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    se a hiptese do segredo para nele admitir-se, ainda que em caso isolado, qualquer possibilidade de se devassar o voto, aqui residindo, repisa-se, um aspecto absoluto desse exerccio do direito de sufrgio; c) universal, de forma que no se admite o carter censitrio do voto, nesse ponto se manifestando uma caracterstica bastante forte da concepo moderna de direito, positivo, por certo, em detrimento da ideia de privilgio; d) peridico, de modo que no se possa tentar tornar o exerccio do voto algo perene, e no intermitente. Essas duas ltimas caractersticas que marcam a ferro e fogo o exerccio do voto guardam relao de pertinncia temtica com o princpio republicano, construdo sobre as bases da universalidade do voto e da periodicidade de mandatos.

    Alm de tudo o que vem de ser escrito, importante destacar que, ao lado dos tipos clssicos de exerccio da soberania popular de forma direta, h outras possibilidades isoladas de participao popular na administrao pblica, positivadas na Constituio, sem que haja a necessidade de se lanar mo de direito poltico no processo eleitoral, v.g., arts. 5, incisos XXXVIII e LXXIII; 29, incisos XII e XIII; 37, 3; 74, 2; 187; 194, pargrafo nico e inciso VII; 204, inciso II; 206, inciso VI; e 2248.

    3 Incluso eleitoral

    Foi escrito neste artigo que a positivao constitucional dos direitos polticos produziu a incluso de todos no sistema jurdico. Essa afirmao pode ser problematizada por trs abordagens: a) a descrio da evoluo semntica da palavra incluso; b) todos, a significa a parcela do povo que pode votar e ser votada; c) a incluso como fenmeno que nunca se exaure, i.e., sempre est a se manifestar, o que se aplica incluso eleitoral como espcie do gnero incluso.

    Para Luhmann, a incluso s existe se existir a excluso9. Na evoluo semntica da incluso, esta era produzida pelo pertencimento a um segmento, na sociedade segmentria; a um estrato na sociedade estratificada, pelo pertencimento a um determinado estrato social.

    8 Para o caso, ver a ADI n. 244, Relator Ministro Seplveda Pertence, DJ 31 out. 2002.

    9 LUHMANN, 1997, p. 621.

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    Nesses tipos de sociedade, a solidariedade com os excludos era alcanada apenas artificialmente, e em geral as pessoas sem estamento social, sem disciplina, sem senhor e sem casa representavam um perigo para a sociedade, situao que mudou no incio da Modernidade, quando ento o problema passa a ser de competncia do poltico, que por sua vez reage a ele por meio da organizao do trabalho10.

    Os recrutamentos que os mosteiros e as marinhas de guerra faziam nas classes mais pobres continuam a ser feitos nas altas culturas da construo das cidades; contudo, a j no se resolve mais o problema da excluso pela expulso11ou pela morte por execuo12. De mais a mais, a prpria cristianizao do Imprio Romano produziu excluso por causas religiosas, v.g., nos primeiros pargrafos do Cdigo Justiniano se define quem pode ter o nome de cristo catlico e os hereges eram tidos como dementes e sem juzo e, assim, sobre eles recaa a infmia13.

    Na sociedade diferenciada funcionalmente, portanto moderna, a regulao da incluso feita pelos sistemas parciais. Consequentemente, as pessoas j no detm mais um status social de acordo com sua origem ou qualidade, mas sua incluso depende de oportunidades de comunicao altamente diferenciadas, o que, ao menos para o sistema que aqui interessa, que o jurdico, pode ser representado pela possibilidade de que cada um possa ser sujeito de direitos14.

    Para o caso aqui estudado, sujeito de direitos polticos, ainda que, com relao aos analfabetos, refira-se apenas ao direito de votar o que significa uma incluso parcial , e no ao de ser votado, conforme dispe o art. 14, 4, da Constituio, operando-se, na realidade social brasileira, o processo reflexivo da excluso da excluso por meio de uma incluso,

    10 LUHMANN, 1997, p. 622-623.

    11 Da que bem se pode exemplificar como incluso a norma do art. 5, inciso XLVII, da Constituio, que veda a pena de morte e a de banimento. Neste ponto, o fato de existir a pena de morte em pas como os Estados Unidos da Amrica exemplo de uma forma de excluso presente na Modernidade, mas que com ela incompatvel, exatamente porque o tempo histrico presente marcado pela extino desse tipo de excluso, apesar de produzir outras espcies respectivas.

    12 LUHMANN, 1997, p. 623.

    13 Ibidem, p. 624.

    14 Ibidem, p. 624-625.

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    pois, ao mesmo tempo em que se inclui parcialmente o analfabeto, se exclui do mbito da titularidade de um direito fundamental poltico uma pessoa j excluda socialmente, ou, numa linguagem sistmica, j excluda dos outros sistemas parciais.

    Com relao segunda problematizao, est em jogo o direito de liberdade dos indivduos de votar e de ser votado. Nessa linha, esse direito representado, na histria constitucional e poltica mundial, ao menos na ocidental, pelo ganho paulatino de direitos polticos no que diz com o incremento dos direitos em si mesmos considerados e tambm de seus prprios destin