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Revista InterfacEHS edição completa Vol. 2 n. 5

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A InterfacEHS é uma Publicação Científica do Centro Universitário Senac que publica artigos científicos originais e inéditos, resenhas, relatos de estudos de caso, de experiências e de pesquisas em andamento na área de Gestão Integrada em Saúde do Trabalho e Meio Ambiente. Acesse a revista na íntegra! http://www3.sp.senac.br/hotsites/blogs/InterfacEHS/

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A INCERTEZA CIENTÍFICA E A OPINIÃO PÚBLICA NA BALANÇA DAS

NEGOCIAÇÕES SOBRE MUDANÇA DE CLIMA ¹ Aímola, L. A. L; ² Silva Dias, P. L.

¹ Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais (Procam/Universidade de São Paulo)

[email protected]

² Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG/USP), e Área

de Ciências Ambientais – Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA/USP)

[email protected]

RESUMO A questão do papel das incertezas científicas nas negociações internacionais sobre

mudança de clima é abordada a partir da perspectiva de um modelo matemático integrado

clima-economia-política baseado em agentes. São descritos os principais resultados das

simulações preliminares realizadas com o protótipo Proclin. A conclusão geral é que a

ciência do clima tem papel relevante, mas limitado para levar os governos a assumirem

compromissos para abaterem significativamente suas emissões e ampliar o Protocolo de

Quioto. O papel da opinião pública pode desempenhar um peso significativo nesse

processo.

Palavras-chave: mudanças climáticas; incertezas científicas; opinião pública;

negociações internacionais; modelagem integrada; simulação multiagentes.

www.interfacehs.sp.senac.br http://www.interfacehs.sp.senac.br/br/artigos.asp?ed=5&cod_artigo=87

©Copyright, 2006. Todos os direitos são reservados.Será permitida a reprodução integral ou parcial dos artigos, ocasião em que deverá ser observada a obrigatoriedade de indicação da propriedade dos seus direitos autorais pela INTERFACEHS, com a citação completa da fonte.

Em caso de dúvidas, consulte a secretaria: [email protected]

A Incerteza Científica e a Opinião Pública na Balança das Negociações Sobre Mudança de Clima

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A mídia mundial tem chamado o ano de 2007 de “o ano das mudanças climáticas”.

Isso se deve, primeiramente, ao fato de o Painel Intergovernamental de Mudanças

Climáticas (IPCC) ter publicado neste ano a quarta série de três relatórios de avaliação

sobre o aquecimento global: o primeiro se concentra sobre as bases científicas da

mudança climática e já foi publicado em Paris em fevereiro. O segundo trata dos impactos

das mudanças climáticas e das vulnerabilidades regionais a essas mudanças, e foi

divulgado em abril. A última parte avalia como podemos mitigar as emissões de gases de

efeito estufa (GEE) e foi publicado em maio. A principal mensagem desses relatórios é

que as mudanças climáticas estão ocorrendo em uma velocidade sem precedentes na

história e por isso é necessário tomar duas atitudes básicas: reduzir drasticamente as

emissões globais de GEE e começar a se adaptar às mudanças que já se iniciaram.

Um outro motivo é que vários especialistas em clima têm afirmado que o efeito

estufa conjugado com o fenômeno climático El Niño farão de 2007 o ano mais quente já

registrado, com conseqüências para todo o planeta. Uma confirmação parcial dessa

previsão já se realizou: o inverno no hemisfério Norte foi o mais quente dos últimos 128

anos. A julgar pela grande cobertura dada pela mídia para a publicação dos relatórios do

IPCC, e a sua grande repercussão na sociedade, espera-se ainda muito mais discussão e

mobilização de vários setores da sociedade ainda este ano sobre o problema do

aquecimento global.

O ano de 2007 promete ser também um ano de decisões políticas importantes

nesta área. Pouco tempo depois da publicação do IPCC em Paris, a União Européia

decidiu fixar a meta de reduzir pelo menos 20% de suas emissões de gases do efeito

estufa (GEE) até 2020. Mas nem tudo neste ano pode representar avanços políticos nesta

área. Discussões de bastidores para a 13a Conferência das Partes – que acontecerá no

final do ano em Bali e que definirá as políticas de reduções de emissões após o período

de cumprimento do Protocolo de Quioto, 2008-2012 – têm indicado que, apesar de várias

declarações recentes de muitos governos sobre a necessidade de ação mais vigorosa a

partir de 2013, ainda existem muitas dificuldades a serem superadas até que se alcance

um consenso sobre quem deve nessa próxima etapa reduzir suas emissões – e de quanto

deve ser essa redução.

Os Estados Unidos, maior emissor mundial de GEE, se negaram a participar do

acordo de Quioto, e sua participação em um acordo após 2012 será muito importante

para que haja políticas eficazes de controle do aquecimento global, mas sua posição

ainda é incerta. O Congresso norte-americano tem há muito tempo condicionado um

compromisso dos Estados Unidos em qualquer acordo global a que países em

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desenvolvimento tais como Índia, China e Brasil também assumam metas obrigatórias. De

outro lado, esses países ainda resistem fortemente a quaisquer obrigações de reduções

de emissões, pois, argumentam, precisam crescer para resolver seus graves problemas

sociais, e cortar suas emissões representa um freio nesse processo.

O caminho até a ratificação do Protocolo de Quioto demonstrou que o consenso

entre os países, e mesmo dentro deles, é de difícil obtenção. E não parece que as

negociações para o próximo período serão mais fáceis, embora aparentemente haja um

momento mais propício a um consenso mais amplo, sobretudo pela publicação dos

relatórios do IPCC. Sem dúvida todos esses acontecimentos poderão ter influência no

final deste ano em Bali. A esperança é que o ano termine com a perspectiva de um

acordo que amplie aquele já feito em Quioto. Na realidade ainda é impossível prever o

impacto que os documentos do IPCC terão sobre essas negociações.

O estado do conhecimento científico sobre as mudanças climáticas expresso nos

relatórios do IPCC tem sido a plataforma a partir da qual os governos, as ONGs e as

corporações tomam suas decisões sobre o que fazer para lidar com o problema das

mudanças climáticas. Por isso, espera-se que a cada publicação desses relatórios

assistamos a mudanças cada vez mais significativas nas atitudes dos governos e no

comportamento geral da sociedade em direção a uma política global eficaz de combate às

mudanças climáticas. O motivo básico é a expectativa de que as incertezas científicas

sobre o aquecimento global e seus efeitos diminuam sistematicamente. Dessa forma,

pensa-se, as negociações tenderão cada vez mais a acordos globais mais amplos. Será

que a relação entre o avanço do conhecimento sobre mudança de clima e os acordos

internacionais segue essa lógica simples?

Esses relatórios, embora sejam a melhor informação que temos sobre o assunto,

estão ainda repletos de incertezas sobre quanto exatamente a temperatura global subiria

se nada fizéssemos para evitar o aquecimento. As incertezas se ampliam

significativamente quando tentamos prever essas elevações de temperatura para daqui a

20, 30, 50 ou 100 anos à frente. Uma cascata de incertezas é gerada nos modelos de

circulação geral oceano-atmosfera acoplados, por causa das incertezas nos valores de

inúmeros dos seus parâmetros levando a um largo espectro de situações possíveis

quando se tenta prever quais exatamente seriam os níveis médios de precipitação e de

elevação do nível médio do mar, e qual a distribuição de impactos nos ecossistemas

através do globo.

O sistema do clima é altamente complexo, envolve não-linearidades, muitas delas

ainda não muito bem compreendidas, e o fenômeno do aquecimento global e das

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mudanças climáticas resultantes é de muito longo prazo. Quando esses modelos são

usados para calibrar modelos climáticos de menor complexidade acoplados a modelos

ecológicos e econômicos a situação piora, pois a cascata de incertezas se amplia ainda

mais quando incorpora o elemento humano, que é em muitos aspectos imprevisível. Em

geral os cenários gerados por esses modelos apontam para futuros com inúmeros

impactos negativos em extensas áreas do globo, mas a sua intensidade e a época precisa

em que ocorreriam são questões ainda sem resposta e não podem ser obtidas

rapidamente. Para algumas questões as incertezas são intrínsecas e não simplesmente

estatísticas, o que implica nunca poderem ser reduzidas.

Parece despropositado falar das incertezas em um momento como este, pós-

relatório do IPCC, em que a sociedade parece estar alcançando uma conscientização

sem precedentes, cuja mobilização pode pressionar muito os governos a tomarem

medidas mais severas no combate ao aquecimento global. Mas os fatos mostram que os

governos do mundo todo estão avançando muito pouco nos esforços para dar seqüência

ao Protocolo de Quioto mesmo diante da crescente preocupação da opinião pública com

as mudanças climáticas e os alertas da ONU, de que o problema representa uma ameaça

de dimensões semelhantes às de uma guerra. O fato é que a grande amplitude das

incertezas científicas sobre o tema ainda oferece muito espaço para que coexistam várias

posições contrárias ao movimento de intensificação de reduções de emissões e permite

que vários governos possam continuar a resistir a qualquer compromisso formal para

reduzirem suas emissões de GEE.

Estudos têm mostrado que os países formam suas posições nas negociações

internacionais sobre mudanças climáticas a partir da avaliação de sua vulnerabilidade

potencial àquelas mudanças e dos custos em que incorreriam se viessem a reduzir suas

emissões. Essa conclusão tem sido chamada de teoria do auto-interesse dos países nas

negociações ambientais internacionais, pois preconiza basicamente a idéia de que cada

país forma suas posições visando unicamente seus interesses nacionais, em oposição a

qualquer atitude altruísta que busque o bem-estar de outras nações (SPRINZ &

VAAHATORANTA, 1994).

Um país que, segundo essa teoria, estimasse para seu território danos climáticos

altos e custos baixos para o abatimento de suas emissões domésticas, tomaria uma

atitude promovedora de políticas de reduções mais severa. Daria o exemplo aos outros

países assumindo voluntariamente metas mais ambiciosas de reduções e cobraria desses

países atitudes semelhantes. Esse comportamento é o que observamos, por exemplo, na

União Européia, que assumiu o compromisso acima indicado.

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Um país que, ao contrário do primeiro tipo, estima danos climáticos baixos e

custos de abatimento altos, seguiria o comportamento inverso: resistiria a qualquer acordo

que o levasse a ter de assumir reduções intensas de emissões. Ele pode ser

caracterizado por uma atitude procrastinadora nas negociações. O exemplo típico de um

protelador são os Estados Unidos. Já uma nação que avalia danos climáticos altos, e

custos de abatimento também altos, tem uma atitude intermediária entre os casos

anteriores e sua atitude é na maior parte do tempo ambígua, procurando evitar assumir

custos de abatimento, mas pressionando os outros países a reduzirem suas emissões.

Esse é o caso, por exemplo, da China, do Brasil e da Índia. Finalmente, o país que estima

danos e custos baixos tem uma atitude expectadora, procurando se aproveitar das

situações para fazer acordos que o beneficiem em outras áreas. Esse é o caso, por

exemplo, da Rússia nas negociações do Protocolo de Quioto.

UM MODELO DE NEGOCIAÇÔES SOB INCERTEZA

A partir dessa tipologia, o que podemos esperar daqui para frente em termos das

negociações sobre a mudança de clima? Para tentar responder a esta pergunta,

construiu-se um modelo matemático que representa as economias nacionais e suas

emissões de GEE, as vulnerabilidades de cada país ao aquecimento global e a maneira

como as expectativas de cada um, em função das incertezas científicas, influenciam seu

papel nas negociações. Cada país foi representado como um agente que tem um modelo

clima-economia no qual alguns de seus parâmetros-chave têm incertezas representadas

por distribuições de probabilidades que mudam ao longo do tempo (AÍMOLA, 2006).

Nesse último aspecto, o modelo é inovador. Baseia-se em um método ainda pouco

utilizado para modelagem em mudanças climáticas, a Simulação de Sistemas

Multiagentes. Nele, cada governo faz planos, usa uma metodologia para projetar cenários

futuros de mudança de clima e de impactos econômicos, assim como um critério de

decisão para escolher sua posição. Para modelar as negociações propriamente ditas,

usou-se a Teoria dos Jogos, uma área da Ciência Econômica que trata do

comportamento estratégico dos agentes.

Foram escolhidos alguns parâmetros-chave ainda altamente incertos, sobre os

quais a resolução das incertezas, ainda que gradual, é crucial para antecipar o

comportamento do clima e da economia, e levar à ação mais eficaz. Para o clima, foram

escolhidos como parâmetros incertos a sensibilidade climática e a inércia térmica do

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oceano. Para as economias, a vulnerabilidade às mudanças climáticas e os custos

marginais de abatimento de emissões de GEE. A partir dessa representação, o modelo

explora cenários de evolução dos conhecimentos científicos sobre o aquecimento global e

sua influência no processo político internacional.

O modelo permite realizar simulações variando-se com diferentes velocidades as

distribuições de probabilidades para representar a redução das incertezas e os possíveis

ritmos de tais reduções. É impossível prever como se dará a evolução do conhecimento

científico sobre o clima, a vulnerabilidade de cada país em seu território, bem como os

custos domésticos de abatimento de emissões, mas no modelo podem-se explorar

diversos cenários de redução de incertezas e fazer uma análise global dos resultados de

cada simulação.

O modelo é capaz de reproduzir a tipologia de comportamentos dos países nas

negociações sobre mudança de clima como descritos pela teoria do auto-interesse para

várias situações de incertezas. Com ele podem-se simular cenários em que a diminuição

das incertezas se dá de forma lenta – 5% por década – ou rápida – 20% ou mais por

década, o que significaria a resolução completa das incertezas na metade deste século –

e observar a mudança de comportamento de cada país toda vez que negocia metas de

reduções de emissões de GEE.

Assim, por exemplo, um país que inicialmente é ‘protelador’ nas negociações, com

a diminuição das incertezas sobre sua vulnerabilidade e seus custos pode vir a adotar

uma atitude ‘promovedora’ de reduções de emissões. Países de comportamento

intermediário podem passar a ter posição mais definida, seja pelo lado da ação vigorosa,

seja pela procrastinação. ‘Promotores’ podem manter suas atitudes, ou não, e países

‘indiferentes’ podem se tornar ‘promotores’ ou ‘proteladores’, dependendo do resultado

final da diminuição das incertezas dos impactos e dos custos esperados.

A partir dessas mudanças de papéis, que implicam diferentes distribuições de

metas de reduções de emissões negociadas entre os países, é possível avaliar o efeito da

diminuição das incertezas sobre o aquecimento global e a magnitude dos danos

econômicos em cada território nacional.

Desenvolveu-se um programa de computador, o Proclin – Protótipo para Simular o

Papel das Incertezas nas Negociações Climáticas –, para simular situações simples,

considerando inicialmente somente dois grandes blocos de países, representando as

nações industrializadas e aquelas em desenvolvimento. Isto é, um dos blocos foi calibrado

com parâmetros que representam um grupo de países ricos com emissões altas,

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enquanto o outro representa nações com renda mais baixa e emissões ainda reduzidas,

mas crescendo rapidamente (AÍMOLA, 2006).

O objetivo das simulações é saber sob que condições de diminuição das

incertezas científicas as futuras negociações podem gerar políticas que evitem impactos

climáticos severos ainda neste século em pelo menos um ou nos dois blocos de países.

Considerou-se como dano econômico severo a situação em que o Produto Interno Bruto

de cada bloco começaria a declinar, levando à recessão econômica em virtude das

perdas advindas do aquecimento global – destruição de infraestrutura, quebras de safras

agrícolas, aumento drástico de doenças infectocontagiosas etc.

CONCLUSÃO

A conclusão das simulações preliminares é que somente para reduções muito

rápidas das incertezas, tais como 20% por década, as negociações evitam recessão

econômica em ambos os blocos de países. No modelo, isso ocorre apenas em cenários

onde o aquecimento se dá de forma muito lenta. Para elevações rápidas de temperatura,

a recessão é inevitável para os dois blocos mesmo que as incertezas diminuam muito

rapidamente.

Algumas simulações indicaram que se as incertezas não diminuíssem, ou se o

fizessem muito lentamente, as recessões econômicas viriam mais rápida e intensamente.

Isso mostra que a pesquisa científica tem papel relevante nas negociações, mas limitado

no que se refere à eficácia das reduções negociadas. Ou seja, o clima pode reagir à

quantidade de emissões mais rapidamente do que mudanças significativas de posição

dos países nas negociações. No modelo, é importante lembrar, as mudanças de posições

ocorrem somente após os países obterem um conhecimento científico mais seguro. As

ações são tomadas a partir de nova informação.

Em um cenário de incertezas diminuindo lentamente e com países possuindo

elevada aversão à recessão, a seqüência de negociações simulada evitou a contração do

PIB. O resultado indica que a precaução quanto ao que de pior pode ocorrer é um fator

relevante no processo, mesmo que esse cenário seja considerado de baixa probabilidade.

Nesse caso, abre-se a oportunidade de uma postura proativa por parte de governos e

sociedades, e o conhecimento avança junto com as ações preventivas.

Além da informação científica a aversão ao risco é um fator chave para levar os

governos a tratar o problema com a seriedade que ele merece, e nesse sentido a

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percepção da sociedade com relação às ameaças das mudanças climáticas poderá ter

um papel decisivo como elemento de pressão, para que se amplie o acordo de Quioto.

Por isso, na balança das negociações a mídia e movimentos ambientalistas como o mega

show Earth Live, liderado pelo ex-vice-presidente dos Estados Unidos, Al Gore, realizado

em julho deste ano, que alcançou dois bilhões de pessoas em todo o mundo pela TV e

pela internet, podem contribuir de forma decisiva para mudar o panorama político sobre

as mudanças climáticas.

REFERÊNCIAS

AIMOLA, L. A. L. Cascata de incertezas, impactos climáticos perigosos e negociações

internacionais de mudança de clima global: um modelo exploratório. Tese (Doutorado em

Ciência Ambiental) – Procam/USP. São Paulo, 2006.

SPRINZ, D., VAAHATORANTA. The Interested-based explanation of international

environmental policy. International Organization, v.48, n.1, 1994.

Artigo recebido em 10.09.2007. Aprovado em 01.10.2007.

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O DESAFIO DAS ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS: O OLHAR PARA ALÉM DAS

NOSSAS FRONTEIRAS Aldo Pacheco Ferreira

Professor da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP/Fiocruz), mestre e doutor em

engenharia biomédica (Coppe/Universidade Federal do Rio de Janeiro)

[email protected]

RESUMO A mitigação dos efeitos causados pelas alterações climáticas constitui um desafio

importante. Durante um longo período de intenso progresso científico e tecnológico, a

humanidade concentrou sua criatividade e seus esforços no desenvolvimento e na

produção de novos compostos químicos, destinados a satisfazer as necessidades de

subsistência e de manutenção da saúde de uma população em crescimento exponencial.

Seus impactos ambientais foram descritos à luz dessas propriedades. Foram descritas de

forma inter-relacionadas ações contextualizadas para avaliar, discutir e propor medidas de

conscientização dos problemas atuais e futuros do planeta causados pelo aumento de

temperatura.

Palavras-chave: alterações climáticas; saúde pública; risco; sustentabilidade ambiental;

ecologia humana.

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O Desafio das Alterações Climáticas: O Olhar para Além das Nossas Fronteiras

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As alterações climáticas são uma das maiores ameaças ambientais, sociais e

econômicas que o planeta enfrenta. No século XX, a temperatura média da superfície

terrestre aumentou cerca de 0,6°C. Há fortes indicações de que a maior parte do

aquecimento global nos últimos 50 anos é atribuível a atividades humanas. Os

combustíveis fósseis, que queimamos para produzir energia e assegurar os transportes,

são especialmente responsáveis, libertando para a atmosfera gases, como o dióxido de

carbono (CO2), que aquecem a superfície da Terra.

A mitigação dos efeitos causados pelas alterações climáticas constitui um desafio

importante. O objetivo em longo prazo é evitar que a temperatura global aumente mais de

dois graus acima do nível da era pré-industrial. Isso significa que, até 2050, o mundo tem

de reduzir as emissões de gases com efeito de estufa em pelo menos 15% e,

provavelmente, muito mais em comparação com os níveis de 1990. Um objetivo especial

é o CO2 que emitimos quando queimamos combustíveis fósseis como o carvão, o petróleo

e o gás. Nos casos em que os combustíveis fósseis são ainda utilizados, poderá ser

possível capturar as emissões de carbono e armazená-las em minas abandonadas ou em

campos de petróleo ou gás, em vez de libertá-las para a atmosfera.

Proteger a natureza e a biodiversidade é importante, não apenas pelo prazer que

nos pode dar o nosso ambiente natural, mas, sobretudo porque os nossos recursos

alimentares estão ameaçados pela desertificação e pela perda de espécies vegetais e

animais e de diversidade genética. A qualidade do nosso ambiente tem um impacto direto

na nossa saúde e na nossa qualidade de vida. As doenças causadas por fatores

ambientais estão a aumentar e as alterações climáticas vêm impulsionando as alterações

ecossistêmicas; tudo isso nos conduz a termos como meta um ambiente que não seja

prejudicial à saúde e que mantenha a nossa atual qualidade de vida.

Temperaturas mais elevadas significam uma subida do nível do mar à medida que

as calotas polares se derretem. Tal aumento põe em perigo as zonas costeiras e as

pequenas ilhas. As alterações climáticas tornam o tempo mais instável, trazendo mais

tempestades e secas e, com elas, inundações e escassez de água. Algumas doenças,

como a malária, propagar-se-ão a novas regiões. Algumas espécies, incapazes de

acompanhar o ritmo da mudança, extinguir-se-ão (ASSUNÇÃO & PESQUERO, 1999).

Os padrões de produção agrícola modificar-se-ão. A subsistência e até mesmo a

sobrevivência de comunidades inteiras estarão em risco em algumas regiões do mundo.

Noutras, o ambiente natural e a utilização que dele é feita poder-se-ão modificar

radicalmente. Alguns destes impactos já são irreversíveis (ALVES, 2006).

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O crescimento econômico consome recursos naturais e produz resíduos. O que se

precisa é reduzir o impacto ambiental da utilização dos recursos e produzir menos

resíduos para um mesmo nível de crescimento econômico. Isso significa uma maior

utilização dos recursos renováveis (desde que a sua utilização seja sustentável), maior

recurso à reciclagem e melhor gestão dos produtos residuais dos resíduos.

Para minimizar os ajustamentos necessários e evitar o pior das ameaças, é

preciso recorrer mais a produtos e atividades que resultem em níveis inferiores de

emissões de gases com efeito de estufa (CERRI et al., 2007). Tal implica uma abordagem

de baixos níveis de carbono na política industrial. Significa também uma utilização mais

eficiente dos combustíveis fósseis e a sua substituição por fontes de energia renováveis,

como a energia eólica e a solar.

A crescente preocupação com a qualidade ambiental de ecossistemas, a

preocupação com impactos antrópicos e a busca por melhores resultados ambientais tem

se refletido no aumento de estudos, modelos e sistemas de gestão de recursos naturais.

Algumas destas prioridades estão a ser integradas em estratégias temáticas que adotam

uma perspectiva abrangente em relação à proteção do solo, conservação do ambiente

marinho, utilização sustentável dos pesticidas, poluição atmosférica, ambiente urbano,

utilização e gestão sustentáveis dos recursos e prevenção e reciclagem dos resíduos.

Uma reconversão para fontes de energia e combustíveis menos poluentes é um

fator crucial para respeitar o Protocolo de Quioto, o qual acabou gerando o surgimento

dos Mecanismos de Desenvolvimento Limpo (MDL). Esses mecanismos baseiam-se na

compra e venda de créditos de carbono, o que permite aos países poluentes, em especial

os países desenvolvidos, a compensação de sua poluição até poderem adotar medidas

mais eficazes (GOLDEMBERG, 2000).

Todo esse processo evolutivo da questão ambiental, sendo o meio ambiente

tratado como bem comum e de responsabilidade de todos, principalmente dos setores

econômicos responsáveis pela geração de impactos negativos, acabou por ser a mola-

mestra de grandes mudanças legislativas, governamentais e empresariais pelo mundo

afora, inclusive no Brasil (FEARNSIDE, 2006).

A luta contra as alterações climáticas é um desafio enorme, mas essencial para o

futuro do nosso planeta. Permitirá igualmente melhorar a qualidade do ar e terá benefícios

econômicos, tornando-nos menos dependente das importações de petróleo e gás e

menos vulnerável ao aumento do preço dos combustíveis fósseis (BARROS, 2006).

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POLUENTES QUÍMICOS: UM AMBIENTE (IN)SEGURO E (IN)SUSTENTÁVEL

Durante um longo período de intenso progresso científico e tecnológico, a

humanidade concentrou sua criatividade e seus esforços no desenvolvimento e na

produção de novos compostos químicos, destinados a satisfazer as necessidades de

subsistência e de manutenção da saúde de uma população em crescimento exponencial.

Os produtos químicos parecem desempenhar um papel nesse processo e, no

entanto, a informação de que dispomos sobre o vasto volume de produtos químicos que

utilizamos é escassa e incompleta. Estima-se que os produtores e importadores de

produtos químicos terão de registrar cerca de 30 mil substâncias largamente utilizadas –

apresentando informações sobre as suas propriedades, efeitos, utilizações e formas

seguras para a sua manipulação (HERTZBERG & MACDONELL, 2002). Os produtores e

importadores serão igualmente obrigados a transmitir essas informações a todos os que

utilizam produtos químicos nos seus processos de produção. Esse sistema permitirá

melhorar a segurança dos locais de trabalho e dos produtos finais. O procedimento

facilitará também a colocação no mercado de novos produtos químicos e contribuirá

assim para uma indústria química sustentável e competitiva, cujos produtos obedeçam a

normas de segurança rigorosas (PIMENTEL et al., 2006).

Estima-se que a produção global de compostos químicos sintéticos tenha

aumentado de 1 milhão de toneladas para 400 milhões de toneladas entre a década de

1930 e os dias atuais. Essas substâncias, na sua maioria desconhecidas, foram lançadas

no mercado consumidor, doméstico ou industrial, sem restrições ou sem conhecimento de

seus impactos ambientais de médio e longo prazo. Assim, estamos em contato com um

grande número de substâncias cujos efeitos são desconhecidos. Além disso, essas

substâncias podem reagir entre si gerando novos produtos químicos sobre os quais existe

ainda menos conhecimento. Os eventuais efeitos aditivos e sinérgicos entre essas

substâncias são possibilidades reais que, embora gerando controvérsias, estão sendo

extensamente investigadas.

A Figura 1 mostra a variação das taxas de evaporação e condensação em função

da temperatura, de acordo com a latitude. No equador, onde as temperaturas mais altas

prevalecem, a evaporação é maior do que a condensação e ocorre pouca deposição. Nas

latitudes intermediárias a relação entre esses processos depende das variações sazonais,

e, na vizinhança dos pólos, a condensação prevalece sobre a evaporação. Esse

mecanismo é conhecido como efeito gafanhoto, ou destilação global, pois ocasiona uma

distribuição de substâncias poluentes no globo em função de sua volatilidade.

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A grande quantidade de produtos lançados ao meio ambiente trouxe

compreensivelmente à tona a questão dos eventuais efeitos de sinergia. Em grande parte

das publicações esse efeito é citado como mais uma possibilidade adversa, demandando

pesquisas adicionais para caracterizar a sua existência. Em ciência ambiental este é um

assunto complexo, pois envolve a interação de uma grande quantidade de substâncias

das quais a maioria das vezes não são conhecidos nem seus efeitos isolados.

Reconhecendo que o termo ‘sinergia’ tem sido invocado de forma pouco precisa e

polêmica na literatura, emerge a necessidade de conceituar as variadas classes de

misturas existentes, definindo os tipos de interações toxicológicas, e a interação entre

multicomponentes deve restringir-se a enfoques mais simples e mais realistas, como risco

de mistura e risco cumulativo.

Entretanto é preciso, também, aprofundar os nossos conhecimentos sobre a

interação complexa entre os poluentes e a saúde humana, uma vez que nos encontramos

expostos a muitos poluentes diferentes que, em combinação, produzem um efeito de

cocktail. No âmbito do plano de ação ‘ambiente e saúde’ estamos a obter mais

informações sobre esse efeito, graças à investigação orientada e à monitorização em

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longo prazo da nossa saúde e do nosso ambiente. Os conhecimentos adquiridos serão

utilizados para reduzir a ameaça que a poluição representa para a nossa saúde.

A QUESTÃO DOS RISCOS PARA A SAÚDE PÚBLICA

A saúde é considerada como um bem precioso pela generalidade dos indivíduos,

e, conseqüentemente, as comunidades expressam a defesa da saúde como um objetivo

social (MOREL, 2002).

A humanidade sempre baseou seu desenvolvimento na natureza, extraindo dela

seu sustento. A partir do século XIX, com a Revolução Industrial, as sociedades passaram

a explorar cada vez mais e mais o meio ambiente, contribuindo para o esgotamento de

recursos naturais e gerando impactos (NICOLACI-DA-COSTA, 2002). Tais balizadores

irão dar base para discutir agravos à saúde pública quanto às mudanças climáticas.

A sociedade civil, a partir do final do século XX, passou a exigir dos setores

economicamente ativos uma maior responsabilidade. Responsabilidade essa que abrange

preocupações com a sociedade como um todo, com a qualidade de vida e do meio

ambiente.

A percepção de que as sociedades humanas, mediante suas atividades

econômicas, atuam prejudicialmente na qualidade ambiental começou a se dar em

meados do século XX. Impactos como a degradação de habitats naturais devido ao

crescimento urbano, a extinção de espécies da fauna e flora nativa, a poluição de leitos

de rios e oceanos e o aquecimento global, entre outros, são exemplos claros dos efeitos

negativos do crescimento econômico desenfreado.

O reconhecimento, pela humanidade, da necessidade de se aprender a utilizar o

meio ambiente sem destruí-lo acabou gerando a convocação, em julho de 1972, da

Conferência sobre o Meio Ambiente Humano, organizada pela Organização das Nações

Unidas (ONU) e mais conhecida como Conferência de Estocolmo, por ter sido realizada

na capital da Suécia. Caracterizada como um dos mais importantes marcos da

conscientização ambiental, essa conferência internacional contou com a participação de

mais de 113 países. Os principais resultados formais do encontro foram: a “Declaração

sobre o Meio Ambiente Humano”, mais conhecida como “Declaração de Estocolmo”, que

acabou por definir os direitos da sociedade a um ambiente produtivo e saudável,

assegurados os acessos a água e alimentação, habitação e informação sobre o controle

da natalidade; e o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA),

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coordenador de todas as atividades de organismos da ONU com relação ao meio

ambiente, atuando junto a governos, comunidades científicas, indústrias e organizações

não-governamentais.

A preocupação com o risco pode resultar em um instrumento valioso para a saúde

ecossistêmica que tem como fundamento, na ética da moderna saúde pública, a garantia

da prevenção de conseqüências danosas para a saúde, a curto e longo prazo. A recente

introdução da gestão estocástica do risco para a saúde, em lugar da tradicional gestão

determinística do risco, veio possibilitar resultados de maior precisão. No entanto, mesmo

estes não revelam riscos valorizáveis para a saúde pública.

As metodologias para avaliação e gestão dos riscos para a saúde pública,

decorrentes de presença de substâncias tóxicas no meio ambiente, têm sido objeto de

grande atenção desde o início dos anos 80 (ALVES, 2006). As quatro etapas clássicas,

1) hazard assessment, avaliando o perigo do agente em estudo;

2) exposure assessment, descrevendo detalhadamente as populações expostas

ao agente;

3) dose-response assessment, estimando o efeito à exposição; e

4) risk characterization, descrevendo para cada situação de exposição de cada

grupo populacional exposto à probabilidade de aparição de efeitos nefastos,

obrigam a estudos longos e difíceis de uniformizar, o que sem dúvida dificulta a

transparência da tomada de decisões na gestão do risco. Entretanto, novas abordagens

têm sido postas em prática.

Determinar qual o risco que se associa às atividades em causa e se esse risco é

aceitável, são tarefas que obrigam a contribuição ampla da física, da química, da

engenharia, da meteorologia, da toxicologia, da medicina, da genética, da nutrição, da

sociologia e da epidemiologia, entre outros saberes que podem contribuir para a

construção de um cenário possível. Essa determinação tem em apreço aspectos gerais

(exemplo: natureza e efeito dos poluentes em causa) e aspectos locais ou especiais

(exemplo: ventos dominantes na zona, composição química da matéria-prima). Medida

sob a forma de impacto na saúde e no ambiente, a avaliação do risco é objeto de

preocupação científica geral e, em particular, entre nós, existe disponível informação

proveniente de estudos de impacto ambiental. Para essa avaliação contribuíram múltiplas

aproximações globalmente enunciadas, atendendo nomeadamente a fatores que

interferem no transporte e na difusão de poluentes.

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Os elementos científicos disponíveis permitem-nos, hoje, afirmar respostas não

dubitativas, com confortável segurança, a algumas questões fundamentais. A adoção de

medidas de prevenção primária, como por exemplo a não ingestão de produtos

alimentares hipoteticamente contaminados por poluentes, permitiria ultrapassar os

escassos riscos eventualmente decorrentes. Os riscos potenciais são tão baixos que

medidas de prevenção secundária, diagnosticando e tratando adequadamente os raros

indivíduos que pudessem adoecer em conseqüência da emissão de poluentes, são

socialmente aceitáveis.

Embora conscientes de que poderá haver outras apreciações distintas, o conjunto

de efeitos adversos para a saúde de cada indivíduo em particular, da população, ou

finalmente o equilíbrio do ecossistema, associados com a exposição a metais, partículas

ou poluentes orgânicos persistentes, foram reconhecidos ao longo do tempo com base

em observações de natureza clínica e epidemiológica, no âmbito da saúde ocupacional,

da avaliação de acidentes ou de investigação em toxicologia, particularmente

experiências em animal. Esses efeitos refletem a especificidade do agente, a natureza

aguda ou crônica da exposição, as vias de contato, a diversidade genética, e não a fonte

de emissão, salvo para o caso de ocorrerem interações – mal conhecidas – entre

poluentes com origem comum, não sendo previsíveis diferenças nos resultados a

exposições ao mesmo agente químico ou físico qualquer que seja a sua origem

(KOIFMAN, KOIFMAN & MEYER, 2002).

O fato é que os poluentes químicos de forma generalizada alteram o equilíbrio

ambiental causando a elevação da temperatura. Assim, pode-se usar essa evidência para

uma aproximação geral ao problema em causa, o que reforçaria a idéia de ser lícito

valorizar os impactos eventuais das emissões resultantes dos processos industriais

perigosos na perspectiva de contribuírem local e globalmente como uma fonte adicional

de poluentes. No entanto, porque esses processos se inserem numa estratégia de destino

final para resíduos já produzidos, e para os quais não se dispõe de solução alternativa,

pode antes esperar-se, pelo contrário, que contribuam para uma redução das emissões

poluentes e através dessa via ajudem a assegurar uma melhoria das condições de saúde

da população geral, isto é, promovam melhorias em termos de saúde pública.

O diminuir progressivo dos níveis de emissão permitidos, conseguido através de

aperfeiçoamentos continuados nas soluções tecnológicas para o controle da poluição,

resultante da atividade industrial em geral, bem como a proibição de formas

desorganizadas de acumulação e até queima de resíduos, poderá justificar, por exemplo,

a diminuição progressiva dos teores séricos de dioxinas, apesar de se acompanhar nos

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mesmos países pelo crescente recurso a processos térmicos para tratamento de

resíduos, colaborando sistematicamente para a minimização impactante que esses

processos promovem na temperatura do planeta (ASSUNÇÃO & PESQUERO, 1999).

No entanto, os efeitos da poluição atmosférica sobre a saúde não provêm

unicamente dos poluentes existentes. Sabe-se que os principais fatores que intervêm no

transporte e na difusão de um poluente são: o débito e a temperatura de emissão e a

altura efetiva da rejeição para a atmosfera; a diluição pelos ventos (velocidade do vento) e

a advention (dependente da direção e velocidade do vento); os fluxos verticais que levam

a uma dispersão lateral e vertical do poluente (os fluxos verticais têm um papel importante

na deposição no solo); a estrutura térmica da atmosfera (que favorece ou limita a

expansão vertical dos poluentes na camada de mistura) – quanto maior a instabilidade da

atmosfera, maior a dispersão da mistura; as transformações químicas dos poluentes; as

chuvas; a natureza dos obstáculos no solo e a topografia dos terrenos.

Conseqüentemente são fáceis de compreender as dificuldades de modelização do

transporte e da difusão de poluentes atmosféricos, que também é dependente do

conhecimento de múltiplos outros parâmetros meteorológicos. Além disso, são difíceis de

fixar os níveis de exposição acima dos quais se considera lesivo para a saúde um

determinado poluente. Se atentarmos nas doses diárias consideradas aceitáveis por

diferentes Estados ou organismos científicos para os hidrocarbonetos policíclicos

aromáticos clorados veremos que apresentam larga variação (KOIFMAN &

PAUMGARTETEN, 2002), e a rápida evolução do conhecimento neste domínio e as

diferentes metodologias de avaliação toxicológica obrigam a ponderar freqüentemente

conceitos, indicadores e valores de referência.

Como já referido, a avaliação dos riscos decorrentes da exposição a resíduos

industriais perigosos deve ter em consideração não apenas a avaliação do risco para o

homem, mas também a avaliação do risco ecológico, analisando e rastreando o resultado

da exposição aos poluentes emitidos por rotina em plantas, peixes e caça, e a análise de

acidentes, avaliando as conseqüências e podendo contribuir para a redução de diferentes

classes de acidentes. A necessidade de trabalhos de investigação compreensivos, de

longa duração, vai tendo respostas válidas. São, no entanto, essenciais múltiplos estudos

de vigilância epidemiológica, que devem ter uma base populacional tão alargada quanto

possível, serem de coorte e, se viável, fazendo participar ativamente a população a par

dos profissionais de saúde na investigação dos dados e na sua interpretação a fim de

minorar o impacto psicológico da situação e de prevenir situações de conflituosidade.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

As alterações climáticas, a biodiversidade, a saúde ambiental e os resíduos são

problemas de caráter global. A deterioração dos habitats marinhos no outro lado do

mundo afeta os nossos abastecimentos alimentares. Por conseguinte, torna-se primordial

a participação ativa na negociação dos tratados internacionais no domínio do ambiente.

Alguns são bem conhecidos, como o Protocolo de Quioto sobre emissões de gases com

efeito de estufa e o Protocolo de Montreal relativo às substâncias que empobrecem a

camada de ozônio. Muitos outros são igualmente cruciais para melhorar o estado do

ambiente. Entre os inúmeros temas abrangidos contam-se a poluição atmosférica, a

biodiversidade, o comércio de espécies em perigo, de produtos químicos perigosos e de

organismos geneticamente modificados (OGM), as transferências de resíduos, a

desertificação, as catástrofes, a gestão de cursos de água e o acesso público à

informação ambiental.

Assim, cada situação de produção de poluentes exige uma avaliação específica. A

variabilidade de condições meteorológicas e geográficas, que condiciona riscos distintos

de poluição atmosférica e/ou dos solos, as diferenças de densidade populacional das

comunidades sujeitas aos poluentes, e a caracterização, qualitativa e quantitativa, das

produções agrícolas e animais no perímetro afetado, podem, eventualmente, condicionar

a existência de um risco não desprezível para a saúde, e o conseqüente impacto nas

condições climáticas ambientais.

Garantir que a poluição não ponha em perigo a saúde pública é uma obrigação

fundamental dos governos, o que também faz sentido de um ponto de vista econômico.

As doenças causadas por fatores ambientais custam dinheiro em cuidados de saúde,

medicamentos, licenças por doença, menor produtividade, invalidez e reformas

antecipadas. Esses custos são freqüentemente superiores aos custos da prevenção.

REFERÊNCIAS

ALVES, H. P. F. Vulnerabilidade socioambiental na metrópole paulistana: uma análise

sociodemográfica das situações de sobreposição espacial de problemas e riscos sociais e

ambientais. Rev. bras. estud. popul., v.23, n.1, p.43-59, 2006.

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Psic.: Teor. e Pesq., v.18, n.2, p.193-202, 2002.

PIMENTEL, L. C. F. et al. O inacreditável emprego de produtos químicos perigosos no

passado. Quím. Nova, v.29, n.5, p.1138-49, 2006.

Artigo recebido em 27.06.2007. Aprovado em 03.08.2007.

1

PARADOXOS E O FUTURO DA SEGURANÇA NA ECONOMIA GLOBAL DO

CONHECIMENTO 1 Jerry Ravetz

Professor Associado, James Martin Institute for Science and Civilization, Saïd Business School, Oxford

University

www.jerryravetz.co.uk

RESUMO Os governos enfrentam dilemas cada vez mais graves para assegurar a segurança de

seus cidadãos diante das inovações tecnológicas controversas. Esse estado de crise

resulta de características estruturais da economia global do conhecimento. Os governos

são forçados a papéis contraditórios, agindo não só como promotores da empresa global

de negócios, mas também como reguladores em nome de um público sofisticado e

desconfiado. Explico a crise utilizando o ‘risco’ como o conceito operante que substitui a

‘segurança’, e o paradoxo como uma ferramenta explicativa. Produzo um paradoxo de

ciclo fechado, análogo ao clássico Ardil 22, para mostrar as contradições da situação.

Argumento que ‘segurança’ é um conceito muito útil para a ciência da política, exatamente

porque ela expõe essas e outras contradições latentes na metodologia científica. Discuto

as formas de resolver essas contradições que incluem o reconhecimento da política da

ignorância crucial e a adoção da perspectiva da ciência pós-normal.

Palavras-chave: segurança; paradoxo; contradição; política da ignorância crucial; ciência

pós-normal.

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À medida que as condições de vida melhoraram em conforto, conveniência e

segurança ao menos para a minoria rica do mundo, os governos assumiram cada vez

mais a responsabilidade de garantir segurança aos seus cidadãos. Agora, porém, essa

função passa por um estado crítico e está relacionada aos dilemas vivenciados pelos

governos no momento atual. Estes enfrentam demandas contraditórias: de um lado, os

negócios globais do setor de conhecimento exigem apoio à inovação; de outro, os

cidadãos aflitos e algumas vezes militantes exigem segurança, seja nos locais que

habitam, seja em regiões afetadas.

Esses tipos de demandas políticas são muito bem ilustrados pela decisão do

governo britânico de iniciar o teste de campo em larga escala de culturas GM

(geneticamente modificadas) em meados do ano 2000. Esses testes foram necessários

para que os argumentos do governo britânico contra culturas GM fossem ouvidos nos

fóruns pertinentes. Pois, sem dados sobre possíveis perigos, o Reino Unido não seria

capaz de apresentar uma causa judicial contra a Organização Mundial do Comércio para

restringir o uso agrícola de culturas GM. Isto seria necessário no caso de algum outro país

fazer uma denúncia contra a política do Reino Unido. E se a OMC não apoiasse a política

britânica, a continuidade da restrição poderia colocar o Reino Unido na condição de ter

infringido suas obrigações de tratado. Estamos, dessa maneira, diante da posição

paradoxal de que esses testes de campo – que alguns argumentam serem

potencialmente perigosos – eram necessários caso o governo britânico fosse autorizado

por uma organização internacional a garantir a segurança desse ramo da agricultura.

Os paradoxos podiam ser ainda confundidos de forma pior. Pois é possível que

(no caso de uma denúncia) os três homens que compõem o comitê da OMC, reunidos

secretamente e sem apelação, pudessem decidir que não há prova suficiente de risco

decorrente do uso em larga escala de sementes GM, para justificar qualquer interferência

com o Livre Comércio. O governo britânico seria então solicitado a dar sua aprovação em

virtude de suas obrigações de tratado internacional, independentemente da opinião

pública interna sobre o assunto. Isso poderia dar origem a outro conjunto de dilemas

políticos ainda mais sérios.

Uma vez que as culturas GM geralmente estão acompanhadas de outros assuntos

polêmicos – sejam eles nanotecnologia, xenotransplantes, a expropriação de genes

humanos por patente, empresa privada de engenharia eugênica, ou a vitimização

daqueles com genes ‘defeituosos’ –, a compreensão desses problemas de governança e

segurança é urgente. Pois, não podemos contar nem com boa vontade por si só, nem

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com melhorias leves na ‘participação’, para resolver os conflitos genuínos de visão e

interesse. Tampouco eles podem eliminar as características estruturais do moderno

sistema global de produção que dá origem a tais disputas e aos dilemas de governança

que daí resultam. A situação é verdadeiramente paradoxal, e utilizaremos o dispositivo de

paradoxos retóricos a fim de esclarecer o assunto.

PANO DE FUNDO: INDÚSTRIA MODERNA E ‘RISCOS’

Podemos iniciar a análise descrevendo como chegamos aqui. Há quase 10 anos,

no trabalho original de Ulrich Beck (1992), nossa condição foi analisada como ‘sociedade

de risco’. Esse autor mostrou como há novas espécies de perigos, aqueles da

‘modernização’, que são elusivos e potencialmente catastróficos. A resposta natural dos

reguladores é tentar controlá-los concebendo-os em termos mais estreitamente

científicos; desta forma, os reguladores conservam sua legitimidade, ao mesmo tempo em

que permitem a continuidade da tecnologia. Em resposta, a ciência se torna ‘reflexiva’ e,

com essa nova consciência, os fatos supostamente ‘científicos’ sobre riscos são

relativizados para serem ‘nada além de respostas a questões que poderiam ter sido

perguntadas de forma diferente’. Então, o foco no debate público move-se dos supostos

‘fatos’ para a investigação do contexto dos problemas do risco (LEVIDOV et al., 1999).

Em seu trabalho original, Beck esperava haver uma contínua separação de funções: os

cientistas fariam a ciência ‘reflexiva’ e os ativistas fariam a ‘subpolítica’.

Na década seguinte, a crise potencial da ‘sociedade de risco’ se tornou real e a

separação de funções de Beck não mais se sustentou. As tentativas que visavam um

monopólio de especialistas em administração de problemas de risco fracassaram

notavelmente no caso da plataforma de petróleo de Brent Spar, no Mar do Norte,

fracassaram catastroficamente no caso da ‘doença da vaca louca’ (BSE/CJD)2 no Reino

Unido, e foram política e comercialmente contraproducentes no caso das sementes GM

importadas na Europa. Em todos esses casos, cientistas fora do establishment fizeram

críticas que não receberam atenção a não ser posteriormente (como no caso do BSE),

algumas vezes tragicamente muito tarde. Também a ‘subpolítica’ de ação direta

desenvolveu sua própria contraciência, que é agora reconhecida no diálogo oficial como

uma voz legítima.

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Além disso, o que se percebe como o ‘retraimento da confiança’ é na verdade uma

resposta racional de um público cujas demandas por segurança, encorajadas por décadas

como parte do programa de modernização, estão aparentemente sendo frustradas e

traídas pelos desenvolvimentos posteriores daquele mesmo processo. A questão está

agora sendo colocada com relação à tecnologia de informação (JOY, 2000), mas

facilmente se generaliza, pela preocupação quanto a nossa tecnologia estar realmente

descontrolada, fora de controle. Sob essas circunstâncias o Estado, necessariamente

agindo não só como promotor mas também como regulador, enfrentará contradições

sempre destrutivas. Este ensaio é uma introdução ao estudo dessa nova síndrome de

governança, usando paradoxos como uma técnica de análise.

Pois, entendendo essas novas contradições, devemos ir além do nível político da

análise e considerar o estado dos negócios modernos. Seu principal setor é comumente

compreendido como ‘a economia do conhecimento’, na qual as principais indústrias estão

envolvidas em ‘tecnologia da informação’. Isso consiste em manipulações da informação,

compreendendo tanto a informação biológica como a eletrônica, esta última incluindo

dados, informação e imagens. As transformações da matéria e da energia, as bases dos

primeiros períodos industriais, são agora subsidiárias. Esta nova base industrial possibilita

e alimenta os processos organizacionais de globalização. Os problemas que ela cria não

são meramente uma questão de escala. Após os recentes episódios de protesto, mesmo

os proponentes da Organização Mundial do Comércio admitem a necessidade de

responder à acusação de que a globalização envolve o aproveitamento de todos os

recursos, materiais, sociais e culturais, em escala planetária, para o lucro máximo da

empresa privada.

Há muito tempo Karl Marx afirmou que o capitalismo promove e depende da

constante revolução dos meios de produção. Foi uma grande ironia histórica que sob o

sistema que ele esperava tornar-se o sucessor do capitalismo, os meios de produção por

fim regrediram! Mas sob o capitalismo contemporâneo o passo da inovação é realmente

acelerado, uma vez que as empresas agora dependem de constante inovação para

manter sua parte do mercado e, conseqüentemente, para sua sobrevivência. Essa

pressão é mais intensa nas empresas do setor avançado; no setor mais tradicional, que

realiza mudanças aos poucos, as empresas consideram mais fácil mostrar interesse pela

segurança e pelo ambiente.

No caso das indústrias de ponta, surge um conflito inevitável entre a inovação e a

segurança. Pois os riscos da modernização como definidos por Beck são extremamente

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difíceis, se não impossíveis, de serem calculados e gerenciados por meio de linhas

científicas tradicionais. Muitos deles são, de acordo com os termos de John Adams,

‘virtuais’ (ADAMS, 1995). Quem poderia ter imaginado que as moléculas daqueles

compostos artificiais de cloro, especificamente desenhados para serem inertes, se

acumulariam na estratosfera e lá, quimicamente combinados, produziriam os buracos de

ozônio? Mesmo antes, quem teria imaginado que uma droga muito útil, DES

(Diethylstilbestrol), após um intervalo de tempo de 20 anos, causaria câncer vaginal nas

filhas das mulheres que fizeram uso dela a fim de estabilizar suas gestações? Por causa

de nossas grandes incertezas e mesmo ignorâncias sobre os processos fisiológicos

especiais pelos quais vírus especiais induzem genes estranhos a se ‘expressarem’ em

plantas, quem poderia garantir a segurança de todas as culturas GM para o ambiente e a

cadeia de alimentos humanos? Quem poderia imaginar os testes pelos quais essa

segurança poderia ser garantida? E, na verdade, quem poderia garantir a própria

segurança dos testes de campo em grande escala?

À medida que a tecnologia se torna mais sofisticada em suas manipulações da

informação, tanto biológica quanto eletrônica, as possibilidades de efeitos inesperados se

ramificam além do controle. Ao contrário de matéria e energia, a informação viva pode se

replicar, pode se espalhar numa variedade de portadores, seguir muitos caminhos e por

fim, transformar suas formas e suas ações. Como essa difusão descontrolada poderia ser

prevenida? Por exemplo, xenotransplantes podem agora salvar muitas vidas; mas podem

introduzir doenças que após longo período talvez se transformem em epidemias fora de

controle. Como sua segurança pode ser garantida? Podemos ter certeza das funções de

todas as seqüências nos genomas dos porcos, por mais que sejam especialmente criados

e clonados de forma que estejam livres de retrovírus infectados? Novamente, como

poderíamos testar de forma mais confiável, ética e segura, a presença ou ausência dos

retrovírus de ação lenta e conseqüentemente letais?

Tais questões sobre segurança podem parecer paradoxais, e o são. Servem

também como introdução útil para as contradições na raiz da política de segurança na

economia global do conhecimento. Ainda mais, elas destacam a ruptura com a clássica

imagem da ciência como essencialmente positiva, promovendo o bem-estar da

humanidade por meio de suas aplicações. Pois aqui temos inovações baseadas na

ciência, afetadas pela política da ignorância crucial sobre seus perigos. E nossas

tentativas de avaliação científica desses perigos, necessárias para garantir a segurança,

estão por si só repletas de suas próprias áreas de perigo e ignorância.

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NOVOS DESAFIOS NA ADMINISTRAÇÃO DA INCERTEZA, DA IGNORÂNCIA E DO

PERIGO

Estes exemplos mostram a distância percorrida desde o simples modelo de ciência

tradicional avançando em conhecimento em seu próprio interesse, até a ciência que,

através de suas aplicações, avança em conhecimento essencialmente em benefício da

humanidade. Agora sabemos que as inovações baseadas na ciência trazem novas

incertezas e perigos junto com seus benefícios esperados. Pior, as tentativas de avaliar

essas características negativas pelo uso de mais ciência se tornam controversas,

inconclusivas, e talvez mesmo perigosas! Ao avaliar os planos para a introdução e difusão

de novas tecnologias, junto com funções e usos pretendidos é agora essencial ter em

conta o possível uso indevido (acidental), abuso (malévolo) e disfunção (afetando seus

vários contextos de forma adversa). Nenhuma dessas questões pode ser resolvida de

forma decisiva pela pesquisa; tudo envolverá debate. Os cientistas com competência

adequada trarão sua contribuição única ao debate; mas serão complementados por

outros com perspectivas e compromissos igualmente legítimos. E as questões de

metodologia, uma vez deixadas seguramente para os filósofos, estão agora à frente do

debate.

Como um exemplo desta nova consciência metodológica, sabemos agora que

suposições prévias podem determinar o resultado até mesmo de uma pergunta que usa a

panóplia completa dos métodos científicos e estatísticos. E tais suposições derivam do

cenário político da pergunta, ela própria, ao menos em parte, uma escolha politicamente

dirigida. Dessa forma, se ‘ausência de prova de dano’ é tomada como equivalente a

‘prova de ausência de dano’, então uma conclusão de ‘não há danos’ é mais provável. Se

histórias ‘meramente anedóticas’ de dano são ignoradas, então é pouco provável que haja

um incentivo para investir em recursos num estudo científico. A ‘prova anedótica’

desacreditada permanecerá como nossa única advertência de perigo ao menos até o

momento em que um grande desastre ocorra. Em tais circunstâncias, a demanda

plausível por uma ‘ciência sólida’ que traga a linhagem de pesquisa tradicional de

laboratório é um desvio da questão real. Equivale a atirar o peso da prova naqueles que

não abraçam incondicionalmente a inovação e que em vez disso defendem a precaução

diante de perigos desconhecidos.

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A administração de dados estranhos, que em certa medida é comum em toda a

prática científica, apresenta muitos problemas e desafios especiais.

Pois a aceitação de tais dados depende fortemente do julgamento do cientista

sobre o que é significativo e o que é meramente anômalo. A história da rejeição

automática dos dados que indicavam um buraco de ozônio sobre a Antártida é bem

conhecida. Quando combinada com o preconceito geral contra a publicação de resultados

negativos, as conseqüências de se ignorar tais dados estranhos podem ser literalmente

muito letais. Desse modo, o mundo médico (junto com seus pacientes) permaneceu por

uns 30 anos na ignorância do número de milhares de mortes causadas anualmente por

uma droga para tratamento de doença cardíaca, porque a taxa de mortalidade –

crescente no grupo de ‘tratamento’ – num teste randômico foi julgada pelos autores como

um artefato meramente estatístico (YAMEY, 1999).3 Mesmo na pesquisa científica mais

rotineira os testes estatísticos pelos quais os dados brutos são convertidos em informação

científica dependem de um parâmetro chamado ‘limite de confiança’. Isso expressa

(embora implicitamente) o equilíbrio dos custos e benefícios entre os erros do excesso de

inclusão (sensibilidade em excesso) e aqueles do excesso de exclusão (seletividade em

excesso) na aceitação de uma correlação. Dessa forma, a prática científica comum está

condicionada na raiz pelo valor atribuído à administração da incerteza.

À medida que os elementos de incerteza e ignorância no estudo de um perigo se

tornam maiores, mais influentes serão os engajamentos metodológicos prévios e mais

remota é a possibilidade de que a ‘ciência normal’ fornecerá os ‘fatos’ que estabelecem o

nível de risco. Na verdade, nós temos convivido com essa situação há décadas; o

eminente engenheiro nuclear Alvin Weinberg criou o termo ‘trans-ciência’ para problemas

que podem ser expressos cientificamente, mas não resolvidos cientificamente

(WEINBERG, 1972). Seu exemplo foi o padrão proposto para a exposição à radiação nas

vizinhanças de instalações nucleares civis. Um por cento do cenário natural parecia um

nível máximo plausível; mas então calculou-se que seriam necessários 8 bilhões de ratos

para se estabelecer se os efeitos significativos estavam presentes naquele nível! Se um

poluente linear e direto como a radiação ionizante pode produzir essas exigências

rigorosamente impossíveis, o que podemos dizer daqueles envolvendo os fluxos

possíveis e as expressões (imediatas e também posteriores) de genes em humanos e nos

ecossistemas?

Com a erosão das anteriores certezas ingênuas sobre fatos científicos, baseadas

na experiência tradicional da ciência matemática e de laboratório, alguns temem que todo

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empreendimento esteja se transformando em ‘pós-moderno’. Isto significa que ‘vale tudo’

e que a racionalidade e o diálogo são postos de lado por uma política de poder nua, um

conflito entre brutais interesses paramentados e demagogos inescrupulosos. Mas há

outras possíveis interpretações de nossa difícil situação. É possível estender os

procedimentos tradicionais da avaliação científica para satisfazer essas novas condições.

Nesta nova perspectiva, vemos que na pesquisa tradicional as incertezas são

administradas normalmente no plano técnico (por técnicas estatísticas). Os valores

também se descomplicam, por serem tanto externos à atividade de pesquisa (como na

escolha das prioridades para problemas), como implícitos (como no estabelecimento do

limite de confiança para testes estatísticos). Mas há outras atividades baseadas na

ciência nas quais ambos os elementos devem ser administrados explicitamente; nós as

chamamos de ‘consultoria profissional’ (como o cirurgião ou o engenheiro sênior), onde as

incertezas apresentadas pela Natureza não podem ser totalmente domesticadas, e onde

valores (em particular, a possível perda da vida resultante de um erro) estão sempre

presentes. Esse tipo de atividade de resolução de problema tem uma clientela diferente e

meios de assegurar qualidade diferentes daqueles da ciência tradicional.

Se agora estendermos nossa visão para onde tanto as incertezas quanto o peso

dos valores são altos, ainda assim precisamos de outra forma de prática. Chamamos a

isso de ‘ciência pós-normal’ (FUNTOWICZ & RAVETZ, 1994). Ela torna-se relevante

quando ‘os fatos são incertos, os valores estão em disputa, os interesses em jogo são

altos e as decisões são urgentes’. Neste caso, precisamos de uma ‘comunidade ampliada

de pares’ que consiste em todos aqueles preocupados com o assunto; e eles devem ser

capazes de oferecer seus ‘fatos ampliados’, incluindo (por exemplo) comunidade baseada

na pesquisa, conhecimentos locais, anedotas, informação oficial obtida de forma não

oficial, junto com seus compromissos de valor comunitários e pessoais. Esse tipo de

processo é agora comumente chamado de abertura ou ‘participação’; e é em geral aceito

que tentativas de reduzir os complexos problemas da política à sua dimensão puramente

técnica fracassaram e continuarão a fracassar. Mas com os conceitos da ciência pós-

normal podemos ver por que esta nova abordagem é necessária e também como ela

pode ser bem-sucedida.

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UMA NOVA COMUNIDADE SE ENGAJA COM OS RISCOS

Os desenvolvimentos na comunidade e seu crescente engajamento na política da

ciência são fomentados pelos mesmos processos que os tornaram necessários. Os

constantes processos de produção de tecnologia da informação exigem sofisticação tanto

em sua base científica como numa prática reflexiva. A força de trabalho tradicional, semi-

instruída, está diminuindo em relação àquela com sofisticação técnica e algum grau de

instrução geral, ao menos nas nações avançadas. Esses novos trabalhadores estão

sujeitos a tendências contraditórias. De um lado, eles são cada vez mais alimentados pelo

‘mingau cultural’ do entretenimento de massa, que os torna mais viciados pelo espetáculo

de tecnologia eletrônica. Mas de outro lado, eles estão obtendo o equipamento básico

para ler e pensar independentemente quando questões os afetam. Agora mesmo, os

ocasionais boicotes de massa aos alimentos suspeitos, e a firme mudança para alimentos

‘orgânicos’ na Europa, não podem ser reduzidos a um simples efeito do pânico criado

pela mídia e pelos grupos de pressão. Eles refletem uma consciência crítica dos novos

cidadãos entre os grupos de pessoas que foram anteriormente rejeitadas como simples

‘consumidores’.

O crescente envolvimento de pessoas leigas em processos políticos é um reflexo

desse novo estado de espírito do público, e da resposta de governos perspicazes ao seu

desafio. Mas esses aumentos na participação não resultam necessariamente num simples

restabelecimento da verdade. À medida que o público se torna mais sofisticado sobre tais

questões, as garantias de segurança por parte do governo podem se tornar ainda mais

suspeitas. Foi verdadeiramente uma ironia extraordinária o fato de a Monsanto ter se

encarregado da pesquisa que mostrava que declarações oficiais verdadeiramente

diminuíram a aceitação de novos produtos por parte do público britânico (GREENBERG

RESEARCH, 1998). Por essa razão o grande aumento na ‘confiança’ em organizações

ambientais, como relatado em pesquisas de opinião, é, sem dúvida, não uma confiança

implícita na sua veracidade, mas ao contrário, uma sensação de que eles estão do ‘nosso’

lado e não do lado ‘deles’.

A crescente rejeição do público pela versão oficial da realidade é também refletida

no aumento de ‘alternativas’ sofisticadas que não podem ser nem destruídas nem

totalmente domesticadas. Elas incluem até contramovimentos ativistas, utilizando o

espetáculo da mídia de massa para a coerção não violenta. Igualmente significativas são

as deserções em larga escala do sistema científico oficial, como ocorre com as dietas e

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os cuidados com a saúde e também a difusão de cosmologias pessoais intensificadas.

Estes últimos tipos de ações não são usualmente radicais de maneira autoconsciente ou

subversiva; afinal, qualquer pessoa pode obter um tratamento de aromaterapia e na

Inglaterra, a ‘ciência’ oriental do Feng Shui é positivamente chique. Mas à medida que se

tornam difundidas, tais práticas equivalem à construção social de novas realidades, com

um novo senso comum no qual as advertências e negações estridentes do sistema

científico oficial são simplesmente ignoradas. Todos esses desenvolvimentos estão

focados em questões especiais; não há sinal de ‘alternativas’ sendo usadas como um

desafio à Ciência, no sentido em que a Ciência foi usada no passado como um símbolo

no desafio à Religião.

Mas a longo prazo deve haver um efeito na autoridade da Ciência como um

fundamento de legitimidade do Estado moderno. Anteriormente aceita como uma fonte

independente de conhecimento, bem como de benefícios públicos, ela agora é vista cada

vez mais em outro aspecto, como um instrumento de lucro corporativo e de poder

inexplicável. E com o crescimento das ‘alternativas’ sua autoridade sobre a conduta da

vida comum também diminui. É impossível prever agora as políticas futuras de segurança;

mas estas múltiplas tendências para a perda de legitimidade da capacidade científica

oficial estão presentes e certamente aumentarão.

Portanto, enfrentamos um desafio verdadeiramente sem precedentes. Nossa

ciência e nossa tecnologia, através das gerações, pareceram ter subjugado a incerteza e

a ignorância em um campo após o outro, fornecendo-nos sempre cada vez mais

segurança. Contudo, encontramos a ignorância voltando com ímpeto e em papéis nos

quais ela é relevante e crucial. Nossos métodos científicos anteriores, desenhados em

torno da conquista do conhecimento positivo e da promoção da ignorância da nossa

ignorância, precisarão ser modificados e enriquecidos (RAVETZ, 1997a). Ao focalizar a

natureza paradoxal de nossa difícil situação, este ensaio tenciona contribuir para esse

novo processo de aprendizado.

UMA RE-CONCEITUALIZAÇÃO: SEGURANÇA

A fim de aprender novas maneiras de pensar, devemos primeiro fazer um exame

crítico das velhas maneiras. O termo ‘risco’, agora controlado pela competência oficial,

substitui a maneira de aprender? Pois ele reflete uma concepção reducionista de

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fenômenos e dessa forma, do problema da política. Primeiro usamos cientistas naturais

para estimar a probabilidade de um acontecimento, e cientistas sociais para estimar seu

perigo. Então, compondo ambas as estimativas obtemos um número para direcionar as

escolhas das políticas. O que se soluciona neste esquema é toda a complexidade social,

ética e conceitual do processo por meio do qual os eventos indesejados primeiro

acontecem e então são administrados.

Os opostos ‘segurança’ e ‘perigo’ são os termos mais antigos relacionados

diretamente à experiência humana. Mas com o triunfo da competência científica eles

caíram em desuso no discurso político. Dessa forma, o conceito de ‘segurança’ ou

‘seguro’ é, ao contrário, visto como ‘relativo e subjetivo’, mesmo pelos autores do relatório

da Câmara dos Lordes sobre confiança na ciência (HOUSE OF LORDS, 2000, 4.11). As

pressuposições dos autores, fornecendo boa evidência para as crenças vigentes, estão

expostas na afirmação de que as dificuldades em responder à questão ‘é seguro?’

poderiam ser reduzidas se ‘o público tivesse algum conhecimento de métodos científicos.’

Certamente, se ‘segurança’ é vista como a mesma espécie de atributo que ‘risco’,

por comparação será vaga e subjetiva. Mas isto significa perder a riqueza do conceito e

assim negligenciar sua importância para nossa compreensão dos atuais dilemas.

Podemos olhar para ‘segurança’ de duas formas. Primeiro, podemos considerar ‘O

Seguro’ como um novo acréscimo ao conjunto de absolutos que definem a qualidade da

existência humana. Os tradicionais podem ser citados como: o Verdadeiro, o Bom, o

Justo, o Sagrado e o Bonito. Nada neste mundo é perfeitamente verdadeiro, ou bom etc.

Mas há ideais através dos quais avaliamos, argumentamos e redefinimos nossas crenças

e práticas. Cada um deles, conforme são concebidos numa cultura particular, são

historicamente condicionados, com diferenças entre várias conceitualizações e com

contradições em cada uma deles. Mas apesar disso, como elementos de nossa

consciência, eles são reais e importantes.

Nas gerações mais recentes surgiu a possibilidade de as pessoas poderem

realmente estar seguras, e esse fato tem grande importância histórica. Esse tipo de

aspiração é expresso no ideal das ‘Quatro Liberdades’ anunciado durante a Segunda

Guerra Mundial por Franklin D. Roosevelt: liberdade de fala e expressão, liberdade de

culto, liberdade do querer e liberdade diante do medo. Naturalmente é impossível

alcançar a segurança perfeita, tanto quanto a justiça perfeita; e determinar o grau de

segurança em uma dada situação qualquer pode ser ao menos tão tortuoso quanto

avaliar o grau de justiça. Os filósofos poderiam argumentar que não há nada em ‘O

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Seguro’ para além de uma coleção de imagens socialmente construídas. Mas como um

ideal operante, ‘O Seguro’ está definitivamente implantado na sociedade moderna. O

grande paradoxo deste breve período atual é que a mesma tecnologia que primeiro tornou

a ‘segurança’ possível, então esperada e finalmente exigida, está agora sendo vista como

a causa do comprometimento cada vez maior daquela mesma segurança.

A outra forma de se entender ‘segurança’ diz respeito ao tipo de atributo que ela é.

E esse atributo não é uma mera descrição de uma situação. Ao contrário, é

fundamentalmente um atributo pragmático, com dimensão moral. Alguns dizem que

quando o público exige ‘segurança’ ele quer um ‘risco zero’ impossível, mas com essa

opinião apenas revelam sua própria ignorância da condição humana. Uma situação ou

ação é ‘segura’ quando permite estar num lugar ou fazer algo, de forma satisfatória. Um

lugar ou ação são seguros quando acreditamos que aqueles que estão no controle da

situação (ou do contexto da ação) são confiáveis e competentes. Assim, viagens de

passageiros em massa em companhias aéreas comerciais têm sido consideradas

‘seguras’ apesar dos freqüentes acidentes fatais; mas após o 11 de setembro nos

Estados Unidos, ao menos há um senso de perigo. Nem todas as companhias aéreas são

igualmente ‘seguras’; algumas são positivamente ‘perigosas’. O livro de Perrow sobre

‘acidentes normais’ (PERROW, 1984) foi subversivo porque mostrava como alguns

administradores criarão ‘normalmente’ situações nas quais os operadores devem,

segundo as regras, ‘aproveitar as chances’ ou então perder seus empregos. Nestes casos

o que se anuncia como ‘seguro’ torna-se algo que depende de sorte para operar

continuamente livre de acidentes. A administração tem traído seu dever, violando desse

modo a tarefa de cuidar daqueles que dela dependem. Este é o significado de práticas

‘inseguras’, ou de uma situação ‘perigosa’.

Meu uso de ‘seguro’ não é de forma nenhuma idiossincrásico. Embora as agências

reguladoras importantes empreguem cientistas como analistas de risco, os títulos que

descrevem suas funções protecionistas incluem ‘saúde’ e ‘segurança’ (nessa ordem para

a Comissão Britânica de ‘Saúde & Segurança’ e com os termos invertidos para a ‘Agência

de Segurança Ocupacional & Saúde’ norte-americana). Deve-se mencionar que ‘saúde’ é

um conceito ainda mais desafiador que ‘segurança’, uma vez que nossa cultura não pode

compreender uma ‘morte saudável’ e que, apesar de nosso esforço voltado para a saúde,

sabemos que a morte espera por todos nós.

Um outro aspecto de segurança, que pode parecer bastante irracional para

aqueles que a concebem fazendo uso da analogia científica, é que no julgamento sintético

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e total, ela inclui também benefício pessoal. Há muito se tem observado que pessoas em

geral irão incorrer em riscos voluntários, de estilo de vida, que estão fora de qualquer

proporção em relação àqueles contra os quais os ambientalistas falam; fumar é o exemplo

clássico, seguido não muito atrás pelo uso de álcool e pelo ato de dirigir em alta

velocidade. Seria uma absurda caricatura chamar isso de um ‘cálculo implícito de custo-

benefício’, uma vez que tais decisões podem estar apoiadas numa recusa em aceitar as

quantificações decisivas e claras dos riscos. Mais propriamente, um sentimento de

‘segurança’ pode depender tão fortemente de uma sensação de bem-estar pessoal que

permitirá uma política totalmente anti-científica, bem como um estilo de vida

autodestrutivo a ser seguido. Nesse extremo, ‘segurança’ é de fato um atributo

amplamente subjetivo, embora seja uma subjetividade que é reforçada pela cultura

comercial à nossa volta em cada circunstância. (Veja-se a publicidade de massa que

promove separadamente tanto a bebida quanto dirigir em alta velocidade, quando a

conjunção de ambos é tão letal.) Nos termos políticos atuais, essa inclusão do benefício

considerado explica porque o público europeu em geral é tão desconfiado com relação a

novos alimentos, embora (até agora) mostre pouca resistência a avanços experimentais,

especulativos em tecnologias médicas e de reprodução.

Com esse entendimento de ‘seguro’ podemos nos mover para além da irritação

que aqueles em posições de responsabilidade freqüentemente têm com um público

aparentemente ‘irracional’. Aqueles que têm se envolvido em sério diálogo com cidadãos

comuns descobriram que eles podem ser bastante sofisticados em seu entendimento da

política de riscos e incerteza, e bastante maduros em sua apreciação do que é possível

no caminho da conquista de algum grau de segurança para eles (PETTS, 1997; DE

MARCHI et al., 1998). Essa evidência nos permite ver que a confiança pública não será

restabelecida necessariamente por meio de uma melhoria em algumas práticas de

comunicação, ou por reformas cosméticas no sistema técnico-político total no qual

segurança é vista como comprometida. E uma vez que muito da legitimidade do Estado

moderno depende de sua oferta de segurança (em oposição às justificativas tradicionais

de divindade, nascimento ou riqueza), um fracasso na segurança pode ter conseqüências

severas para a governança como um todo.

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O PARADOXO COMO UMA FERRAMENTA DE DIAGNÓSTICO

Nós já mencionamos alguns paradoxos que afligem a governança dos riscos. Em

nossa tradição filosófica dominante, a reação padrão aos paradoxos (que são expressões

de contradições) é tentar ‘resolvê-los’. No caso clássico dos quatro paradoxos de Zenão

referentes ao movimento, dois milênios e meio de esforço foram necessários para mostrar

que eles não são tão prejudiciais como parecem; como dizem os filósofos, Aquiles ainda

está correndo. No mais famoso dos paradoxos, Aquiles, o corredor mais rápido, competiu

com a tartaruga, a quem foi dada a liderança na partida. Logo Aquiles reduziu pela

metade a distância entre eles, então reduziu novamente, novamente, novamente… Como

podemos descrever o ato para alcançar a tartaruga? Há um último salto, onde metade do

intervalo finito anterior é zero? Não! Daí o paradoxo: embora saibamos que Aquiles

realmente não alcança a tartaruga, neste esquema de descrever o processo não

podemos descrever como ele acontece.

Uma outra abordagem dos paradoxos, característica de outras tradições culturais,

é aceitá-los e tentar aprender com eles sobre os limites das estruturas intelectuais

existentes. Mais significativamente, esta é a maneira Zen. Acontece também aqui, fora

dos círculos acadêmicos. Uma grande obra de ficção do século XX ensinou sua lição por

meio de um paradoxo: ‘Ardil 22’ (HELLER, 1961). Dizia respeito aos pilotos norte-

americanos que participaram do que consideravam ser missões suficientemente

perigosas sobrevoando a Itália. Não era suficiente apenas dizer que queriam ir embora;

alguns então tentaram afirmar que sua saúde mental tinha sido afetada. Mas então, o

Ardil 22 entrava em ação: se sabiam que o trabalho estava tornando-os doentes mentais,

isto era a prova de que estavam mentalmente sãos! Não havia saída; e de fato, se tivesse

havido uma, a guerra não poderia ter sido travada. Foi necessária uma obra de ficção

para transmitir a natureza paradoxal de toda a situação na qual o Ardil 22 resumiu a

mistura íntima de sanidade e loucura, heroísmo e corrupção, que existe na sociedade o

tempo todo, mas que é exposta tão claramente apenas nas condições de uma guerra.

Desse modo, vamos tentar ver, no plano do pensamento, nossos problemas atuais

de segurança como um conjunto estruturado de paradoxos. E antes que nos apressemos

em remover os paradoxos, vamos ver o que podemos aprender com eles. Podemos

chamá-los de ‘Tríplice Ardil 23’, uma vez que envolvem três elementos – a economia, o

governo e o público –, todos numa dança em volta de diferentes espécies de segurança e

perigo.

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Na economia global do conhecimento,

a inovação, constantemente em aceleração

compra segurança temporária para empresas em defesa da concorrência

mas não pode garantir a segurança de suas inovações no ambiente.

Diante desses possíveis perigos decorrentes das inovações,

os governos

perdem a confiança do público ao declarar que são seguras

e recuperam a confiança do público ao admitir que são perigosas.

Mas ao admitir o perigo e deste modo inibir a inovação,

os governos

perdem segurança na política de economia global do conhecimento.

Tal paradoxo de círculo fechado talvez nos faça lembrar de Lewis Carroll mais do

que qualquer outra fonte literária; prega uma peça no leitor mais elaborada do que os

clássicos enigmas de Zen como ‘o som de uma mão aplaudindo’. Suas fontes, a meu ver,

são variadas; incluem a discussão de Dovers e Handmer (1992) sobre as contradições na

idéia de ‘sustentabilidade’ e a discussão de Les Levidow das tensões no sistema britânico

para regular a biotecnologia (LEVIDOW et al., 1999). E, embora sua aparência seja

estranha, ela não tem o mérito de expressar a estrutura essencialmente paradoxal do

problema geral, bem como exibir os vários sentidos nos quais ‘seguro’ se desdobra.

Não é para ser entendido como um conjunto de rígidos vínculos; ao contrário,

exibe as contradições que afetam o sistema total da economia global do conhecimento.

Vamos abordá-lo elucidando os pontos das sucessivas teses.

O primeiro está relacionado a uma característica estrutural inerente à economia

global do conhecimento; aqui, ‘seguro’ refere-se ao bem-estar ou mesmo à sobrevivência

de uma empresa. As avaliações do mercado de ações das empresas inovadoras podem

perder bilhões de dólares num dia e então ganhá-los novamente em uma semana. Pois a

real segurança da empresa moderna, do valor de capital e das vendas atuais são quase

irrelevantes; o que conta é o que está para acontecer em P&D. Sem uma inovação futura

capaz de se tornar um monopólio no seu campo, uma empresa pode perder a confiança

em seus investidores especulativos, perder valor no mercado de ações, e então

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encontrar dificuldades no fluxo de caixa e em breve ser um pouco mais do que uma

divisão de algum predador mais bem-sucedido.

Na próxima tese, a ‘segurança das inovações’ se refere não a elas (ou a suas

empresas), mas aos seus efeitos, em seus ambientes humano, natural e social. Como

aprendemos a partir do exemplo dos farmacêuticos, a garantia de segurança de um

agente biológico, mesmo no contexto limitado do uso médico, pode ser conquistada

apenas a um grande custo de tempo e recursos. Dadas as complexidades de padrões

possíveis de expressão e fluxo de genes, nossa ignorância sobre segurança das

emissões ambientais (deliberadas ou acidentais) é, e foi, multidimensional. Qualquer

esperança de ‘fatos’ que poderiam possivelmente garantir a completa segurança dessas

novas entidades deve ser de fato abandonada. Isto não quer dizer que há uma total

ausência de fatos, nem que o debate político seja impossível; apenas que a experiência

científica oficial ‘normal’ simplesmente não pode garantir a segurança por si própria.

Estamos agora na era da política da ignorância crucial, e negá-la significa tornar-se uma

vítima dos seus paradoxos.

Quando os governos fazem pronunciamentos tranqüilizadores, a resposta lógica,

particularmente no Reino Unido após a ‘doença da vaca louca’, é ‘por que deveríamos

começar a confiar em você agora?’. Durante anos, as autoridades estabelecidas

empenharam suas reputações no sentido de assegurar ao público que a carne britânica é

segura, e que os críticos foram maldosos e desinformados, por implicação. Há a clássica

foto de um ministro da agricultura alimentando sua relutante filha de seis anos com um

hambúrguer; e há os muitos videoclipes de oficiais da mais alta patente reafirmando

solenemente ao público que a carne britânica era segura para os humanos, muito tempo

depois de sabermos que era perigosa para os gatos.

Para as pessoas ‘se sentirem seguras’ não é necessário estarem convencidas de

que um risco particular está no nível zero ou num nível insignificante. Como vimos,

‘segurança’ não é algo subjetivo equivalente a ‘livre de riscos’. Mais propriamente, com

relação ao contexto pragmático e moral de uma situação perigosa, trata-se de confiança

naqueles encarregados de proteger alguém e sua família. Dessa forma podemos afirmar

a mais paradoxal das teses: que ao admitir que uma inovação é perigosa, e deste modo

angariar a confiança do público, um governo pode na verdade fazê-lo se sentir seguro em

suas mãos na medida em que ele dá conta desse perigo e de outros. Embora essa

proposição possa parecer o mais contra-intuitivo de todos os paradoxos, ela tem apoio

empírico na impressionante mudança de atitude sobre alimentos GM por parte do

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primeiro-ministro britânico, Tony Blair. Em comparação com a sua convicção original, a

um dado momento ele repentinamente mudou de idéia e concordou que as críticas tinham

uma causa (BLAIR, 2000).

Mas qualquer governo como esse, que apóia seus cidadãos quanto à segurança,

poderia enfrentar uma imposição: na economia global do conhecimento, a

responsabilidade da prova está efetivamente naqueles que se opõem ao progresso e ao

livre-comércio. Se o comitê de três homens da OMC decide que a prova do risco não é

suficientemente forte, então qualquer resistência adicional é infrutífera; ou

alternativamente a contínua obstrução poderia introduzir elementos novos e

potencialmente muito prejudiciais ao jogo diplomático. Desta forma, a segurança da nação

poderia ficar comprometida por uma insistência em garantias de segurança de inovações

particulares. Mas a afronta pública à deslealdade de sua segurança pessoal pela OMC e

pelo governo pode então introduzir novas fontes de conflito e instabilidade. Isto poderia

dar origem a novas tentativas de reforçar o comodismo e à reação inevitável de ameaças

adicionais à segurança do Estado e da sociedade.

Assim, o ciclo dos paradoxos está completo. Ele descreve a situação que começa

com as pressões sobre as empresas na economia global do conhecimento, se desenvolve

por meio da ‘segurança’ comumente entendida, e conclui com os requisitos paradoxais

sobre nações na economia global do conhecimento, como expressas através das próprias

instituições transnacionais que a governam. Este é o contexto no qual a ‘confiança’ dos

cidadãos em seus governos está ameaçada. Pode-se dizer que nesta nova luta

globalizada pela existência de empresas, a confiança nos governos é a primeira vítima.

As conseqüências adicionais de tal confronto, político ou constitucional, estão além do

escopo desta discussão. Já mostramos como um elemento essencial de confiança no

Estado moderno, a experiência científica oficial, já está mostrando força.

O PARADOXO COMO UMA FORMA DE PENSAMENTO

Uma vez que nossa cultura é tão antitética ao paradoxo, pode parecer que o ciclo

que acabamos de referir seja algo frívolo ou desprovido de significado sério. O que se

pode fazer com tais paradoxos? Nenhuma política prática pode ser estabelecida numa

base tão contra-intuitiva como essa. Em resposta, eu argumentaria que especialmente

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nos anos recentes, nossa sociedade tem dependido dos paradoxos em algumas áreas

cruciais, mas até agora não tem dado a eles o reconhecimento suficiente.

Para o primeiro exemplo, vamos considerar o ‘impedimento nuclear’ que tem

vigorado desde que há armas de destruição de massa (bombas H) e sistemas de

lançamento efetivo (mísseis balísticos intercontinentais). Durante algumas décadas, o

acrônimo oficial paradoxal MAD, que significa, Destruição Mutuamente Assegurada

(Mutually Assured Destruction) foi a doutrina dominante. Sob esse regime, pessoas

responsáveis em qualquer dos lados devem estar prontas para cometer um dos maiores

crimes de guerra, o genocídio das gerações presentes e futuras, possivelmente

desencadeando um ‘inverno nuclear’ global, sob qualquer das duas circunstâncias. O

primeiro é o ‘genocídio da suspeita’, se há razão suficiente para acreditar que o outro lado

está iniciando um ataque. O outro é o ‘genocídio da represália’, no caso do outro lado ter

sucesso ao desferir seu ‘primeiro golpe’.

Tem-se argumentado que tal disposição pode ser bastante moral, desde que ela

assegure que o ato nunca ocorrerá. O argumento pode de fato ser válido, mas o ar do

paradoxo não pode ser dissipado. Ainda, tais paradoxos estão na base da contínua posse

de armas nucleares pelos membros originais do clube nuclear; e seus esforços contínuos

para persuadir outras nações a renegarem armas nucleares se tornam de fato bastante

paradoxais. Paradoxos adicionais no argumento para a posse de armas nucleares

‘independentes’ por parte dos poderes originais de segunda categoria não precisam de

elaboração aqui. Não há indício de que tais argumentos paradoxais estejam agindo de má

fé. Eles estão fazendo o melhor numa situação em que o paradoxo está embutido, graças

à combinação de uma nova tecnologia destrutiva com estruturas políticas velhas. Até

agora o impedimento nuclear tem parecido ser único em sua estrutura paradoxal; mas

como temos visto, os problemas de segurança das novas tecnologias civis apresentam

características estruturais análogas.

Na administração dos riscos, mesmo os comuns, alguns paradoxos são facilmente

percebidos. Na lógica da análise dos perigos, sabe-se que é impossível provar uma

impossibilidade. Dessa forma, o ‘risco zero’ nunca pode ser garantido e assim, a política

de administração de risco dependerá dos níveis fixados do que é ‘tolerável’ ou mesmo

‘aceitável’. Esses termos técnicos têm um aspecto ético implícito e assim se torna claro

que enquanto a ‘avaliação’ de risco pode ser um exercício puramente científico, a

‘administração’ do risco é inescapavelmente política. Uma outra característica paradoxal

da administração prática de riscos é que ‘sucesso’ é avaliado em termos de que algo não

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aconteça, isto é, os acontecimentos indesejáveis que a política está designada para

prevenir. Isto pode não ser estritamente paradoxal, mas é certamente contra-intuitivo em

nossa cultura, onde recompensas são normalmente dadas por ações e não propriamente

por inações. Pode-se mesmo considerar isto um tipo de situação Zen, onde a inação é o

tipo de ação que queremos ter.

O conceito de ‘segurança’ parece ser efetivo unicamente ao expor algumas das

profundas contradições em todo nosso sistema de conhecimento, o qual permaneceu

amplamente latente. Assim, a questão de ‘quão seguro é suficientemente seguro?’ aflora

quando quer que haja um padrão duvidoso para ‘risco aceitável’. Primeiro, a forma em si é

paradoxal; há um grau de segurança que não seja seguro o suficiente? Também, uma vez

que segurança (ao contrário de risco) não pode ser reduzida a uma medida de apenas

uma dimensão, há um paradoxo irônico na própria questão. E finalmente, está

completamente claro pela questão que a segurança está, em certa medida, na mente do

espectador. O que é suficientemente seguro para o agente que impõe ou regula o risco,

pode muito bem não ser seguro para a pessoa que sofre ou rejeita o risco. Assim, a

simples questão de ‘seguro o suficiente’ revela que segurança é um assunto de

negociação, no qual não há medidas simples que possam resolver a questão por meio de

um apelo à Ciência. Ele pode mesmo conduzir ao reconhecimento de que a questão de

segurança não se refere tanto a quantidades absolutas de probabilidades e perigos, mas

antes, a competência e integridade daqueles que administram o risco em nome de outros.

Assim, o paradoxo de ‘seguro o suficiente’ é bastante instrutivo ao nos conduzir do

conceito reducionista de ‘risco’ para o conceito sistêmico completo de ‘segurança’.

Com uma apreciação do caráter sistêmico de segurança, estamos preparados

para compreender a força do velho lema latino: ‘Quem guarda os guardiões?’. Isto nos

lembra que a segurança, como outros tipos de qualidade, é um atributo recursivo. Ela não

pode ser capturada num plano único, uma vez que todos os guardiões necessitam

proteção. E ele imediatamente abre a perspectiva de um regresso ilimitado: se

precisamos [guardiões]2, então por que não [guardiões]3 e assim por diante? Na prática, a

recursão pára em algum nível informal, quando o público está engajado por meio de sua

‘opinião’ ou ‘consenso’. Isto é, admitidamente, um mecanismo altamente imperfeito; mas é

importante imaginar que é essencial para os processos de governança, sobre segurança

ou qualquer outra função reguladora. Caso contrário, os processos de controle

permanecem num círculo fechado e, neste caso, como mostra a experiência, ficam

completamente vulneráveis à corrupção.

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Finalmente, os debates sobre segurança, ao contrário das análises de riscos,

fazem aflorar a ignorância como um elemento chave em qualquer indagação. Com a

pluralidade de perspectivas, é difícil para qualquer um emoldurar uma análise que ignora

a ignorância. Os participantes devem confrontar nossa ignorância dos efeitos ramificados

ou a longo prazo de nossas intervenções numerosas na natureza, que podem ser severos

e irremediáveis. Em muitos casos, se na verdade não em todos, uma preocupação

prudente com segurança conduziria à moratória de precaução na larga fronteira das

inovações. Inovação e crescimento, como os conhecemos, seriam inibidos ou vicejariam

em locais onde a regulação é negligente ou inexistente. Mas a ignorância não irá embora

uma vez que vimos muitos exemplos dos efeitos malignos de sua descoberta tardia. Tem

estado muito em voga citar aforismos sobre a ignorância, tais como ‘você precisa se

preocupar com aquilo que você não sabe que não sabe’. Aqui, os paradoxos gritam

positivamente. Como você pode possivelmente se preocupar com coisas que são tão

esquisitas? Porém, estes são exatamente os pontos focais de preocupação.

Uma vez que estamos conscientes da forte presença dos paradoxos em nosso

pensamento, podemos começar a usá-los criativamente. A ‘Segurança Ardil 23’ pode ser

vista como um símbolo do grande paradoxo de nossa civilização industrial: que na busca

de segurança, de conforto e de conveniência para um número cada vez maior de

pessoas, está causando e agravando ainda mais as instabilidades no sistema de clima

global que pode danificar nossa civilização tão profundamente como uma guerra nuclear.

A reflexão sobre tal paradoxo fundamental pode nos induzir a imaginar o que Sheila

Jasanott tem chamado de ‘tecnologia da humildade’, onde começamos a aceitar nossa

ignorância (JASANOFF, 2000). Esta será uma importante tarefa da construção filosófica,

uma vez que a história do pensamento europeu moderno, começando com a geração de

Descartes, estava fundada na supressão da tradição da consciência da ignorância que se

estende pelo passado até Sócrates. Tanto de nossa ciência moderna tem sido baseado

na ignorância-de-nossa-ignorância que uma reforma inteira da filosofia, da pedagogia e

da prática será necessária. O trabalho já começou com reflexões anteriores de minha

autoria (RAVETZ, 1993) e comentários recentes de colegas incluindo Brian Wynne

(HOFFMANN-RIEM & WYNNE, 2002).

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IMPLICAÇÕES PARA A POLÍTICA

Nós mostramos como esses paradoxos de ciclo fechado podem ser usados como

uma ferramenta de diagnóstico para os sistemas sociais. Se os vínculos são tão firmes e

os paradoxos são verdadeiramente insolúveis, isso é sinal de que não há flexibilidade no

sistema. Basta pensar nos sistemas sociais que desmoronaram (a União Soviética), foram

substituídos pela revolução (França em 1789), ou tiveram seus conflitos resolvidos pela

guerra civil (os Estados Unidos em 1860). Daí o uso positivo dos paradoxos de ciclo

fechado como ferramentas analíticas, exibindo as contradições destrutivas de um sistema

social numa tal forma que suas possíveis aberturas ou abrandamentos devem ser

explorados. Os sistemas sociais podem evolver de tal maneira que os conflitos estruturais

sejam resolvidos de alguma forma, e as contradições características assumem uma forma

nova, menos destrutiva. Num dado sentido, nossa situação atual deriva de uma resolução

do problema de distribuição social do século XIX, não por uma expropriação de

propriedade como então era advogado pelos socialistas, mas como um alargamento da

produção parcialmente por meio de uma intensificada expropriação da natureza. A

segurança foi alcançada, no que diz respeito aos rudes perigos tradicionais da pobreza e

da peste, mas a um preço do qual só agora estamos nos tornando conscientes.

Vamos ver como este ciclo de paradoxos pode ser modificado a fim de abandonar

sua forma fechada, destrutiva, e verificar se ele pode ser modificado. Para a primeira fase,

admitimos que no presente não há substituto para a constante inovação; mas se algumas

tecnologias fracassam em atingir sua promessa tão propagandeada (como tantos o

fazem), poderia haver oportunidades de pausas para reflexão. Novamente, para um

diálogo público sobre os perigos das inovações não precisamos de uma ‘garantia’ de

segurança perfeita; o público agora é mais sofisticado do que isso. Reafirmações

contraproducentes por parte dos governos ocorrem quando a confiança foi perdida; se a

confiança de alguma forma for recuperada, então este terceiro paradoxo perde sua força.

E alguns governos já optaram por ‘segurança’ em algumas questões; sobre a questão das

sementes e das culturas GM, vários Estados membros adotaram táticas para retardá-las,

esperando encontrar segurança nos procedimentos intrincados da União Européia (DE

MARCHI & RAVETZ, 1999). Afinal, mesmo se a OMC discordar da avaliação de um

governo sobre segurança, isto poderia ser o começo de um longo processo no qual (como

sabemos pelos exemplos anteriores) o poder coercitivo não está todo de um lado. Então,

na prática, a operação dos paradoxos poderia ser desordenada e modificada à medida

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que eles são praticados, numa variedade de formas. Assim, eles poderiam de fato

funcionar para nós como um instrumento analítico em vez de uma simples previsão de

ruína e desastre.

Já que os paradoxos relativos à segurança dizem respeito à ignorância de forma

tão central, uma consciência renovada dessa categoria pode também ter conseqüências

positivas. A fé herdada na infalibilidade dos fatos científicos, inculcada pelas gerações de

professores e populares agora está erodindo rapidamente. Junto com ela vai a mística

dos ‘especialistas’ que agora são valorizados como completamente necessários, mas

longe de serem suficientes para a resolução das questões de política da ciência. Ao longo

dos anos Brian Wynne mostrou como as questões dos riscos foram erroneamente

entendidas através de uma moldura reducionista dos problemas científicos (WYNNE,

1992); e sua lição foi agora aprendida. Atualmente algo vem se desenvolvendo, parecido

com uma bifurcação dentro da ciência. De um lado são aqueles nas clássicas disciplinas

reducionistas e baseadas em laboratório, as quais ainda desfrutam de grande sucesso.

Seus métodos são desenhados para evitar os problemas de aceitar correlações

inexistentes como reais, e assim elas enfatizam a especificidade em vez da sensibilidade

(comumente medida num desgastante ‘limite de confiança’ no que diz respeito a testes

estatísticos). Mas em relação aos problemas de segurança esta abordagem encontra o

problema de rejeitar possíveis correlações reais e significantes como inexistentes. Dados

que são ambíguos ou fracos são rejeitados como ‘não científicos’ e nunca aparecem na

literatura nem mesmo como um aviso. Assim, a ‘ciência sólida’ não é tão objetiva como

parece, mas tem um viés embutido em favor da inovação em vez de segurança.

Ao contrário, são as mais novas ciências ligadas à política que são chamadas para

resolver os problemas sistêmicos ambientais que as ciências tradicionais criaram por

meio de suas aplicações bem-sucedidas. Nessas ciências pós-normais recentes,

contexto, incerteza e política da ignorância crucial são todos elementos do problema de

pesquisa (RAVETZ, 1999). Na sua moldura, nós iremos procurar pelas novas questões

‘do que haveria se’ e ‘que tal’ bem como as questões tradicionais de ‘o quê e como’ e

‘como e por quê’ (RAVETZ, 1997b). As soluções a esses problemas são mais nítidas em

outros termos do que simples aproximações da verdade, antes como algo mais

pragmático, seja ele ‘a verdade útil’ de Sheila Jasanoff (1990, p.250) ou o ‘conhecimento

socialmente robusto’ de Nowotny et al. (2001).

A distinção entre os dois estilos tem seus aspectos políticos. A tradicional

abordagem científica reducionista parece perfeitamente adaptada às necessidades das

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empresas de ponta da economia global baseada em conhecimento. Esta é obrigada a

ignorar os aspectos sistêmicos, contextuais de seu trabalho. incluindo a incerteza e a

política da ignorância crucial (MEADOWS, 2000). Caso surja uma polarização entre

grupos de interesse, com corporações multinacionais importantes e seus governos locais

de um lado, e grupos de cidadãos que se opõem e governos no exterior no outro, então

esses contrastes metodológicos podem bem se tornar altamente politizados. Uma vez que

a União Européia agora afirma que “decisões devem ser sustentadas por opiniões

transparentes e responsáveis baseadas em pesquisa ética” (EUROPEAN COMMISSION,

2002), poderia surgir uma divergência sistemática entre a União Européia e outras

instituições governamentais.

O uso de paradoxos tem sua própria relevância política, pois nos ajuda a escapar

da ilusão de que esses problemas políticos inerentemente contraditórios podem ser

resolvidos pela analogia com o livro de exercícios da ciência. Aquela lição fundamental foi

aprendida pela primeira geração de especialistas em estratégia nuclear após poucos anos

de tentativas para simular os paradoxos de mega-ameaças de morte por qualquer um dos

modelos matemáticos ou ‘jogos’ interativos (GHAMARI-TABRIZI, 2000). E mesmo quando

mostramos como os paradoxos podem ser amenizados, eles ainda continuam lá como

lembretes da vulnerabilidade de nossos sistemas políticos, sociais e naturais. Os

paradoxos, bastante parecidos com um enigma Zen, apresentam a função socrática de

nos ajudar a conhecer a nós mesmos e a nossas limitações. Dessa forma eles tornam a

necessária política da ‘política da ignorância crucial’ mais plausível e assim, mais efetiva,

apesar de sua estranheza após quatro séculos de triunfalismo científico.

CONCLUSÃO: PARADOXO E POLÍTICA PÓS-NORMAL

O mundo da política compreendida como paradoxos é o contexto conceitual e

societário no qual a nova política de ‘participação’ tem um significado genuíno, como

oposto aos exercícios em relações públicas. Este é o mundo ‘pós-normal’ de política da

ciência no qual demonstrações científicas são complementadas pelos diálogos dos

interessados. Nestes, todos os lados comparecem à mesa com total consciência de que

seus compromissos e perspectivas especiais são apenas parte da história e com uma

disposição para aprender um do outro e para negociar em boa fé. Tal processo pode de

fato parecer paradoxal para aqueles criados nas verdades da ciência natural tradicional,

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na qual cada problema tem uma e apenas uma resposta correta. Seria igualmente

paradoxal para aqueles cujas políticas assumem que seu próprio lado tem a posse única

da razão e da moralidade. Mas é apenas através do entendimento de tais paradoxos que

podemos resolver os enigmas da segurança na economia global do conhecimento,

desenvolver uma política da ‘política de ignorância crucial’ e nos movimentar em direção a

uma nova criatividade na ciência e na governança.

NOTAS 1 As primeiras versões deste ensaio foram publicadas sob o título “Safety in the globalising

knowledge economy: an analysis by paradoxes” no Journal of Hazardous Materials, v.86,

2001, p.1-16, e sob o título “A paradoxical future for safety in the global knowledge

economy” em Futures, v.35, 2003, p.811-26. 2 A Encefalopatia Espongiforme Bovina, vulgarmente conhecida como Doença da Vaca

Louca ou BSE (do acrônimo inglês Bovine Spongiform Encephalopathy) é transmissível

ao homem, causando uma doença semelhante, a nova variante da Doença de

Creutzfeldt-Jakob, abreviadamente vCJD. (N.T.) 3 Devo a David Waltner-Toews este exemplo. REFERÊNCIAS

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DO FUNDO DE DESENVOLVIMENTO LIMPO AO PROGRAMA DE

ATIVIDADES: UMA ANÁLISE DA EVOLUÇÃO DO MECANISMO DE DESENVOLVIMENTO LIMPO

Kamyla Borges da Cunha

Doutoranda do programa de pós-graduação em planejamento de sistemas energéticos, Faculdade de

Engenharia Mecânica da Universidade de Campinas; pesquisadora do Instituto de Energia e Meio Ambiente

[email protected]

RESUMO O Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), previsto expressamente no Protocolo de

Quioto, objetiva, em especial, medidas de mitigação das mudanças climáticas através de

práticas de desenvolvimento sustentável nos países em desenvolvimento, pela

transferência de investimento e tecnologias provenientes dos países desenvolvidos. Sob

uma perspectiva político-jurídica, o MDL apresenta a potencial capacidade de servir como

uma ferramenta de transformação social, na medida em que, nos países em

desenvolvimento, pode fomentar formas sustentáveis de desenvolvimento sócio-

econômico. Contudo, sob a perspectiva da atual dinâmica desse mecanismo, é preciso

indagar sobre a efetividade do cumprimento de seus objetivos e, conseqüentemente, de

seu potencial como ferramenta de transformação de paradigmas. O objetivo deste artigo

é, pois, realizar uma avaliação do MDL à luz de sua evolução regulatória, desde sua

concepção até os dias atuais, buscando identificar a dinâmica e as principais lacunas

inerentes a esse instrumento.

Palavras-chave: Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (COP); Acordos de

Marraqueche.

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Em caso de dúvidas, consulte a secretaria: [email protected]

Do Fundo de Desenvolvimento Limpo ao Programa de Atividades: Uma Análise da Evolução do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo

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A instituição de um regime legal internacional, possível graças à assinatura e à

implementação da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima

(CQNUMC) e seu Protocolo de Quioto, tem possibilitado vislumbrar alguns instrumentos,

como o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL).

Esse instrumento, previsto expressamente no Protocolo de Quioto, objetiva, em

especial, a consecução de medidas de mitigação das mudanças climáticas através de

práticas de desenvolvimento sustentável nos países em desenvolvimento, pela

transferência de investimento e tecnologias provenientes dos países desenvolvidos. Sob

uma perspectiva político-jurídica, o MDL apresenta a potencial capacidade de servir como

uma ferramenta de transformação social, na medida em que, nos países em

desenvolvimento, pode fomentar formas sustentáveis de desenvolvimento sócio-

econômico. Contudo, sob a perspectiva da atual dinâmica desse mecanismo, é preciso

indagar sobre a efetividade do cumprimento de seus objetivos e, conseqüentemente, de

seu potencial como ferramenta de transformação de paradigmas.

O objetivo deste artigo é, pois, realizar uma avaliação do MDL à luz de sua

evolução regulatória, desde sua concepção até os dias atuais, de modo a identificar a

dinâmica e as principais lacunas inerentes a esse instrumento. Para tanto, este estudo foi

estruturado da seguinte forma: primeiramente, explicita-se o contexto em que o MDL foi

concebido tal qual definido no Protocolo de Quioto. Feito isso, apresentam-se as

principais características e dinâmicas, explicitando-se o papel dos Acordos de

Marraqueche e demais regulações acordadas nas COPs. Para avaliar a dinâmica do

MDL, utilizam-se dados de sua atual implementação no plano internacional. Por fim,

apresentam-se os desdobramentos ocorridos nas últimas duas COPs e são feitas

algumas considerações finais.

EVOLUÇÃO DO MARCO LEGAL SOBRE O MDL 1. Do Fundo de Desenvolvimento Limpo ao MDL

O Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, tal qual previsto no artigo 12 do

Protocolo de Quioto, nasceu dos debates entre diferentes propostas: de um lado, a idéia

brasileira do Fundo de Desenvolvimento Limpo, e, de outro, as atividades-piloto de

implementação conjunta, defendidas pelos Estados Unidos (MICHAELOWA &

Do Fundo de Desenvolvimento Limpo ao Programa de Atividades: Uma Análise da Evolução do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo

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DUTSCHKE, 2002, p.7).

Previstas no artigo 4º, parágrafo 2º, alínea ‘a’ da CQNUMC, as atividades de

implementação conjunta começaram a ser realizadas, de forma piloto, em alguns países

em desenvolvimento, como a Costa Rica, já nos primeiros anos de vigência da CQNUMC.

Mas, por possibilitar que os países desenvolvidos atingissem suas reduções de emissões

inteiramente por meio de projetos em países em desenvolvimento, sem previsão de

qualquer contrapartida, tais atividades foram gradativamente ganhando a oposição deste

grupo de países. Tal oposição revestiu-se, durante as negociações do Protocolo de

Quioto, de rejeição formal do Grupo G-77 mais China à formalização das atividades de

implementação conjunta como mecanismo de mitigação das mudanças climáticas a ser

incluído no texto do Protocolo (MICHAELOWA & DUTSCHKE, 2002, p.5).

Em linhas gerais, os principais argumentos contrários às atividades de

implementação conjunta, usados pelo G-77, eram que tais atividades iriam permitir aos

países desenvolvidos atingir metas de redução sem nenhum comprometimento interno; os

menores custos de redução de emissões encontrados nos países em desenvolvimento

possibilitariam aos países desenvolvidos evitar custos de mitigação internos mais

elevados, permitindo a manutenção dos inaceitáveis estilos de vida e padrões de

consumo e produção; essas atividades iriam reduzir o incentivo a mudanças estruturais

nos países desenvolvidos, resultando em níveis tímidos de inovações tecnológicas na

área de redução de emissões; as atividades de implementação conjunta poderiam afetar

as prioridades de desenvolvimento dos países em desenvolvimento; e, por fim, essas

atividades poderiam exaurir opções de redução de emissões de baixo custo, de forma

que, posteriormente, quando os países em desenvolvimento tivessem também metas

quantificadas de redução de emissões, a eles restariam medidas de maior custo

econômico.

Contrariamente à idéia das atividades de implementação conjunta, a proposta

submetida pela delegação brasileira rapidamente ganhou a simpatia do G-77,

notadamente porque congregava dois elementos: uma nova abordagem de definição dos

compromissos de redução de emissões, afastando a responsabilidade dos países em

desenvolvimento, e um mecanismo punitivo aos países que não atingissem suas metas, a

financiar um fundo de apoio a projetos de desenvolvimento sustentável (ESTRADA-

OYUELA, 1998, p.23). Tratava-se do Fundo de Desenvolvimento Limpo (FDL), a ser

administrado pelo GEF (Global Environment Facility), e que seria composto por uma

espécie de multa a ser paga pelos países do Anexo I1 que não conseguissem atingir suas

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metas quantificadas de redução de emissões, sendo destinado ao financiamento de

projetos de desenvolvimento sustentável nos países em desenvolvimento na proporção

das respectivas contribuições (destes) para o efeito estufa adicional (LA ROVERE,

MACEDO & BAUMERT, 2002, p.159).

O FDL não ganhou a simpatia dos países desenvolvidos, principalmente em razão

de sua natureza punitiva, o que não era bem-vindo no contexto de um tratado

internacional. La Rovere, Macedo e Baumert (2002, p.160) acrescentam que a alocação

dos recursos do FDL exclusivamente aos países em desenvolvimento também era

questionada na medida em que os países mais beneficiados seriam aqueles que mais

contribuíam para o problema das mudanças climáticas.

Todas essas críticas à proposta brasileira levaram a delegação norte-americana a

intervir formalmente nas negociações, requerendo um debate bilateral com a delegação

brasileira. Da combinação dos pontos de vista das duas delegações nasceu a concepção

final do MDL, cujas principais diferenças em relação à proposta original brasileira foram

assim elencadas por Estrada-Oyuela (1998, p.25):

1) de um ‘fundo’, moveu-se para um ‘mecanismo’ de flexibilização;

2) a idéia original de multas relacionadas a hipóteses de não cumprimento do

Protocolo de Quioto foi substituída pelo conceito de assistência às Partes do

Anexo I na consecução de suas metas quantificadas de redução de emissões;

3) as Partes não pertencentes ao Anexo I seriam beneficiadas por “atividades de

projetos que resultariam em reduções certificadas de emissões” enquanto as

Partes do Anexo I se beneficiariam com as reduções certificadas de emissões.

Como bem assinala Goldemberg (1998, p.14), a definição do MDL retrata um

compromisso político inusitado, resultante da conciliação de dois posicionamentos

opostos, os quais quase levaram ao colapso das negociações do Protocolo de Quioto. A

criação do MDL emergiu como o meio termo entre, de um lado, um grupo de países

liderado pelos Estados Unidos, para quem o elemento essencial do Protocolo de Quioto

deveria ser o comércio de emissões baseado na adoção de compromissos mandatórios

de redução a todos os países; e, por outro, o G-77 mais China, para quem qualquer forma

de comprometimento formal de redução de emissões mostrava-se inaceitável. Essa

conciliação somente se tornou possível porque conseguiu, de forma mais ou menos bem-

sucedida, encampar as prioridades e principais exigências de um e outro grupo

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(DESSUS, 1998, p.81): para os países em desenvolvimento, representados por G-77

mais China, o MDL poderia ser usado como ferramenta de desenvolvimento, transferência

de tecnologia e assistência na adaptação às mudanças climáticas. Para os países

desenvolvidos, o MDL poderia ser usado como instrumento de redução de emissões de

GEE a custos marginais menores, além de introduzir maior flexibilidade no enfrentamento

das mudanças climáticas, possibilitando o comércio de reduções certificadas de

emissões, integrando os países em desenvolvimento nos esforços comuns de mitigação

das mudanças climáticas, mobilizando os fundos de financiamento privado e aumentando

os investimentos nesses países.

Não obstante a relativa facilidade com que o MDL foi aceito pelas Partes nas

negociações do Protocolo de Quioto, já naquela época foi objeto de importantes críticas,

cabendo citar a opinião do embaixador Raúl A. Estrada-Oyuela (1998, p.25), coordenador

das negociações do Protocolo de Quioto sob o Mandato de Berlim. Para ele, o MDL

representa apenas uma nova configuração das atividades de implementação conjunta tão

rebatidas pelos países em desenvolvimento, pois enquanto os benefícios a serem trazidos

pelo MDL às Partes do Anexo I mostram-se bem claros e até mensuráveis (em forma de

reduções certificadas de emissões, as RCEs), o mesmo não se pode dizer a respeito dos

países em desenvolvimento, dada a dificuldade e complexidade na aferição das

contribuições ao desenvolvimento sustentável.

2. MDL: conceito e objetivos

O MDL foi introduzido no regime climático como um mecanismo de flexibilização,

tendo como escopo permitir a participação dos países em desenvolvimento na dinâmica

de mitigação das mudanças climáticas instaurada por aquele tratado. Com efeito, nos

termos do artigo 12 do Protocolo

o objetivo do mecanismo de desenvolvimento limpo deve ser assistir às Partes não

incluídas no Anexo I para que atinjam o desenvolvimento sustentável e contribuam

para o objetivo final da Convenção, e assistir às Partes pertencentes ao Anexo I

para que cumpram seus compromissos quantificados de limitação e redução de

emissões.

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Em outras palavras, tem-se que um país desenvolvido, isto é, uma empresa nele

sediada ou o seu governo, pretendendo complementar suas metas de redução de

emissões, poderá financiar um projeto, desenvolvido por outra entidade privada ou

pública, que reduza, limite ou seqüestre emissões de gases precursores do efeito estufa

(GEE) num país em desenvolvimento, obtendo, com isso, reduções certificadas de

emissões (RCE). As RCEs representam a comprovação de que aquele projeto

efetivamente reduziu emissões em determinada quantidade de tCO2e (tonelada

equivalente de dióxido de carbono).

O princípio básico do MDL é que os países desenvolvidos possam investir em

oportunidades de redução/seqüestro de emissões a custos menores nos países em

desenvolvimento, recebendo créditos de redução e diminuindo a necessidade de

implementar medidas internas de mitigação das mudanças climáticas, possivelmente a

maiores custos marginais. Em contrapartida, os países em desenvolvimento beneficiam-

se com o incremento do fluxo de investimentos, agora direcionado a alcançar metas

nacionais de desenvolvimento sustentável (URC, 2003, p.16).

Nesse sentido, o MDL pode atrair capital para projetos que apóiem transição a

uma economia mais próspera e menos intensiva em carbono; incentivar e permitir a

participação ativa tanto do setor público como do setor privado; agir como ferramenta de

transferência de tecnologias ambientalmente sustentáveis; ajudar a definir prioridades de

desenvolvimento sustentável, através de: transferência de tecnologias e recursos

financeiros; alternativas sustentáveis de geração de energia elétrica; incremento de

medidas de conservação e eficiência energética; diminuição da pobreza através da

geração de emprego e renda e benefícios ambientais locais.

Qualquer projeto que comprove ter reduzido, seqüestrado ou limitado emissões de

GEE é elegível como atividade de MDL, destacando-se: melhoria da eficiência no uso

final e na oferta de energia, projetos de energia renovável, substituição de combustíveis,

reduções de emissões de CH4 e N2O na agricultura, processos industriais (redução de

CO2, HFCs, PFCs, SF6 etc.). Concentrando as principais divergências entre as Partes, as

atividades relacionadas ao uso da terra – denominadas LULUCF (land use, land use

change and forestation) acabaram restritas a projetos de florestamento e reflorestamento,

para o primeiro período de compromisso, isto é, 2008-2012.

O Protocolo de Quioto restringiu-se a definir os requisitos básicos para qualquer

projeto de MDL, deixando para posteriores decisões da COP a definição dos

procedimentos do ciclo do projeto. Esses requisitos são denominados critérios de

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elegibilidade e encontram-se listados no parágrafo 5 do artigo 12. A razão desses critérios

é, em última análise, fazer que um projeto comprove o cumprimento dos objetivos do

MDL, quais sejam, reduzir emissões de GEE por meio de atividades de desenvolvimento

sustentável. Ao todo, são considerados quatro critérios de elegibilidade, três dos quais

expressamente previstos no parágrafo 5 do artigo 12: participação voluntária, benefícios

reais, mensuráveis e de longo prazo e adicionalidade. Somente a comprovação do

desenvolvimento sustentável acha-se implícita no texto do Protocolo, o que não lhe tira o

caráter obrigatório. Para gerir a implementação do MDL, o parágrafo 4 do artigo 12 do

Protocolo de Quioto impôs a instituição de um Conselho Executivo, a ser submetido à

COP/MOP. A estrutura e as atribuições desse órgão foram posteriormente definidas nos

Acordos de Marraqueche.

3. Acordos de Marraqueche e demais decisões das COPs

Os Acordos de Marraqueche formam um conjunto de decisões que disciplinam

regras operacionais das medidas de mitigação das mudanças climáticas instauradas pelo

Protocolo de Quioto, como avaliação do cumprimento do Protocolo pelas Partes do Anexo

I e procedimentos de operacionalização dos mecanismos de flexibilização, entre eles, o

MDL. Assim é que, na Decisão 17 dos Acordos, definiu-se o procedimento do ciclo do

projeto2 para o MDL, isto é, uma série de etapas pelas quais os proponentes de um

projeto devem demonstrar o cumprimento dos critérios de elegibilidade.

As decisões compiladas nos Acordos de Marraqueche resultaram de um

complexo processo de negociação entre os Estados signatários da CQNUMC, iniciado na

COP 4, em Buenos Aires (Argentina) e finalizado na COP 7, em Marrocos, no final de

2001. Durante aquela COP, ocorrida em 1998, estabeleceu-se o Plano de Ação de

Buenos Aires, que propunha um cronograma de discussão de regras para operacionalizar

o Protocolo de Quioto. Contudo, a intensificação de divergências entre os países sobre

temas cruciais, como uso do solo e das florestas (LULUCF) e transferência de

tecnologias, entre outros, ganhou contornos de crise na COP 6, ocorrida em Haia

(Holanda) em 2000, especialmente depois do anúncio dos Estados Unidos de que não

ratificaria o Protocolo de Quioto, culminando na suspensão da Conferência sem nenhum

tipo de acordo entre as Partes (SANDS, 2003, p.377).

No intuito de tentar salvar a integridade do Protocolo de Quioto, a União

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Européia, os países do Leste Europeu e o G-77 convocaram a retomada da COP 6, o que

ocorreu em meados de 2001, em Bonn (Alemanha). Essa reunião, chamada COP 6-bis,

caracterizada por um forte teor político, conseguiu finalizar negociações de muitos dos

temas propostos no Plano de Ação de Buenos Aires, resultando nos Acordos de Bonn. A

discussão dos temas mais polêmicos, como a operacionalização dos mecanismos de

flexibilização e LULUCF, foi postergada para a COP 7, quando então foram regulados nos

Acordos de Marraqueche (FBMC, 2002, p.14).

No plano político, os Acordos de Marraqueche representam uma vitória do

multilateralismo e da cooperação internacional entre União Européia, países do Leste

Europeu e os países pertencentes ao G-77, em prol da manutenção e evolução do regime

instituído pela CQNUMC. Em outras palavras, significou uma atitude positiva de

continuação das negociações internacionais sobre mudanças climáticas, em resposta à

crise que se instaurou com a saída unilateral dos Estados Unidos do Protocolo de Quioto,

em 2001 (FBMC, 2002, p.13). No plano jurídico, os Acordos de Marraqueche, ao

estabelecerem as normas procedimentais do MDL, fortaleceram o prompt start dado a

esse mecanismo, permitindo, mesmo sem a entrada em vigor do Protocolo de Quioto, o

desenvolvimento de projetos e a atuação dos órgãos criados para gerenciar o MDL.

A possibilidade de operacionalização imediata de projetos de MDL com início de

atividades em 2000 foi um dos fatores do imediato sucesso desse mecanismo. Os

primeiros projetos partiram de experiências piloto, viabilizadas particularmente por parte

de fundos destinados especificamente para isso, como o antigo CERUPT, do governo

holandês, e o PrototypeCarbon Fund, do Banco Mundial.

No intuito de garantir transparência, acurácia e integridade ambiental ao Protocolo

de Quioto, o ciclo do projeto do MDL foi se revelando complexo e caro.

Comparativamente aos outros mecanismos de flexibilização, o MDL é o que apresenta os

maiores custos de transação, isto é, custos despendidos desde o início até a formalização

das transações das RCEs, incluindo negociação com parceiros, consulta a advogados e

especialistas, monitoramento das transações, desenvolvimento dos projetos, pagamento

de taxas e tributos, pagamento às Entidades Operacionais Designadas3 contratadas etc.

(MICHAELOWA et al., 2003, p.262). Diante dos custos de transação, os projetos de

pequeno porte não apresentavam a mesma atratividade daqueles que ofereciam maiores

volumes de RCEs.

Reconhecendo o risco de que pequenos projetos de MDL ficassem à margem do

mercado de carbono, e lembrando que parcela significativa dos países em

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desenvolvimento não tem potencial para desenvolver grandes projetos, as Partes, por

meio dos Acordos de Marraqueche, definiram tipos de projetos considerados de pequena

escala, deixando para COPs seguintes a instituição de procedimentos específicos. Essa

regulamentação formalizou-se na COP 8, ocorrida na cidade de Nova Delhi, em 2002, em

cujo Anexo II da Decisão 21/CP8 definiram-se procedimentos e requisitos simplificados e

menos burocráticos para os projetos considerados de pequena escala, de modo a reduzir

os custos de transação.

Também nos Acordos de Marraqueche, as Partes incluíram algumas orientações

sobre reflorestamento e florestamento, incumbindo ao SBSTA4 elaborar procedimentos

específicos. Esses procedimentos haveriam de considerar questões como não-

permanência, adicionalidade, vazamentos, escala, incertezas e impactos ambientais e

sócio-econômicos (como impactos na biodiversidade e ecossistemas naturais) (FBMC,

2002, p.34). Depois de anos de difícil negociação, o tema LULUCF foi parcialmente

regulamentado na COP 9, realizada em Milão em dezembro de 2003, com a aprovação

do procedimento padrão para projetos de MDL de reflorestamento e florestamento. O

procedimento simplificado para tais atividades foi posteriormente aprovado na COP 10,

realizada em Buenos Aires, em dezembro de 2004.

ESTADO DE IMPLEMENTAÇÃO DO MDL

Passados 10 anos da criação do MDL e quase 6 anos desde sua regulamentação

pelos Acordos de Marraqueche, hoje esse mecanismo já conta com 806 projetos

registrados, os quais contabilizam um total de quase 168,5 milhões de RCEs anuais,5

segundo dados oficiais (UNFCCC, 2007). De acordo com o CDM Pipeline (UNEP/RISOE,

2007), até o final de setembro de 2007 havia um total de 2.551 projetos de MDL na ONU,

em diferentes fases do ciclo do projeto.

A plena operacionalização do MDL é corroborada ao se verificar sua participação

no mercado de carbono. Segundo dados do Banco Mundial (COOPER & AMBROSI,

2007, p.9), somente em 2006 o MDL supriu o mercado com aproximadamente 450

milhões de tCO2e, o que equivaleu ao montante negociado de 5 bilhões de dólares.

Diferentemente do que ocorreu em outros mercados,6 os preços pagos para as RCEs

oriundas do MDL têm-se mantido estáveis – numa média de US$ 11/tCO2e, o que, para

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os autores citados, representa claro sinal da aceitabilidade do MDL no mercado

internacional de carbono.

Porém, se por um lado o MDL tem-se destacado no mercado de carbono, por

outro a experiência de sua implementação tem revelado uma série de falhas e lacunas.

Os dados disponibilizados pela ONU (UNFCCC, 2007) apresentam uma grande

concentração de projetos por tipo de atividade e localização. A maior parte dos projetos

transacionados caracteriza-se por ser de baixo custo e risco, com um número reduzido de

países hospedeiros.

Assim é que apenas China e Índia concentravam praticamente 50% dos 806 projetos

registrados até o final de setembro de 2007 – aquela com 35,11% e esta com 14,76% dos

projetos. O Brasil mantém-se na terceira posição, com 13,4% dos projetos, seguido pelo

México (11,54%), Chile (2,48%), Malásia (1,99%) e Coréia (1,86%). O restante dos países

em desenvolvimento concentra apenas 18,86% dos projetos. A África detém apenas

2,61% dos projetos registrados.

Ao se ampliar a avaliação, considerando-se todos os projetos de MDL submetidos

à ONU (e não apenas os já registrados), o cenário de concentração de projetos em

poucos países e regiões não muda: a Ásia continua dominando o mercado de MDL com

72,9% dos projetos (majoritariamente na China e na Índia); a América Latina detém 23,6%

(com predomínio de projetos brasileiros); a Ásia Central e a África continuam à margem,

com respectivamente 0,9% e 2,6% do mercado (UNEP/RISOE, 2007).

A desigualdade do MDL também é marcante ao se avaliar a distribuição dos

projetos por tipo de atividade. Dos 806 projetos registrados, 53,1% referem-se a

atividades do setor de geração de energia, seguido pelo setor de disposição e

gerenciamento de resíduos (20,64%), conforme os dados da ONU (UNFCCC, 2007).

Tomando como base o CDM Pipeline do UNEP/RISOE (2007), o setor de energia também

domina, e, dos 2.551 projetos submetidos à ONU, os de hidreletricidade dominam com

24% do total (612 projetos), seguidos por geração de energia a partir da biomassa (18%

ou 462 projetos) e eólicas (12% ou 311 projetos). Os projetos do setor de aproveitamento

e destruição de gás de aterro sanitário vêm em segundo lugar com 7% (177) do total de

projetos. No lado oposto estão as atividades de florestamento/reflorestamento com um

total de 11 projetos e o de transportes com 6 projetos.

Apesar de não serem a maioria em número de projetos, as atividades de redução

de GEE industriais, particularmente o HFC-23, têm ganhado destaque nos últimos anos.

Isso se deve, em grande medida, ao baixo custo de investimento associado ao enorme

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volume de RCEs resultantes. Em termos de mercado de carbono, essas atividades

dominaram a maior parte das transações feitas entre 2005 e 2006, detendo 34% de todo

o mercado de RCEs, segundo dados do Banco Mundial (COOPER & AMBROSI, 2007,

p.27). Esse fato também está na base da expansão da China como principal país

hospedeiro de projetos de MDL, já que a maior parcela desse tipo de projeto tem sido

desenvolvida nesse país.

Para autores como Ellis et al. (no prelo), a resposta a essas iniqüidades está no

mercado. Em estudo perpetrado por esses autores, foi feita uma correlação direta entre

atratividade do país para projetos de MDL e para o investimento estrangeiro direto (FDI),

constatando-se que os países campeões de projetos de MDL também são os que mais

recebem FDI. Essa coincidência sugere que as condições mais favoráveis para suporte

ao investimento em MDL são similares às da presença do FDI – essencialmente [1]

regimes políticos estáveis, [2] ambiente de crescimento econômico favorável e [3]

existência de capacidade institucional dos países. O estudo também destaca que o

predomínio no mercado por projetos de HFC-23 e de geração de energia renovável é

resultado óbvio da preferência por projetos de baixo risco, a envolverem tecnologias já

consolidadas no mercado.

Como apresentado no item 1, não se pode perder de vista que o MDL foi

concebido como um mecanismo de mercado. Dessa forma, como afirmam Egenhofer et

al. (2005), ao invés de sinal de imperfeição desse instrumento, o fato de a dinâmica do

MDL seguir as oportunidades e a lógica do mercado é o retrato do próprio design dado a

esse instrumento, sendo que as iniqüidades de distribuição regional e por atividades não

são falhas, mas, ao contrário, resultados da abordagem por mecanismos de mercado

encampada no Protocolo de Quioto.

Porém, não se pode olvidar para o fato de que o mercado do MDL, ao priorizar os

projetos de menor custo de mitigação das mudanças climáticas, marginaliza o objetivo

legal desse instrumento de promoção do desenvolvimento sustentável. De acordo com

Ellis et al. (no prelo), projetos que trazem benefícios tanto em termos de sustentabilidade

como de mitigação das mudanças climáticas não necessariamente são os que oferecem

as RCEs de menor custo e, conseqüentemente, não têm a preferência na dinâmica do

MDL. Em outras palavras, a existência de opções de baixo custo pode ser vista como um

obstáculo para projetos de MDL com grande potencial de replicabilidade de experiências

positivas em termos de redução da poluição local, desenvolvimento tecnológico e outros

benefícios ambientais e sociais. Merece destaque, pois, que apesar de o desenvolvimento

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sustentável ser o objetivo principal do MDL para os países em desenvolvimento, em geral,

tem-se mantido marginal nas escolhas do mercado (ELLIS et al., no prelo).

MDL EM NOVA PERSPECTIVA: DESDOBRAMENTOS DAS COPS 11 E 12

O reconhecimento da incapacidade inerente do MDL em servir como instrumento

de efetiva promoção do desenvolvimento sustentável ganhou notoriedade na COP 11,

ocorrida em Montreal, no final de 2005. Não à toa, essa COP ficou conhecida como a

reunião dos três ‘is’: improvement, implementation e imagination. O improvement

caracterizou as discussões de aperfeiçoamento dos instrumentos existentes no âmbito da

Convenção do Clima, como os mecanismos de capacitação, transferência de tecnologia e

os fundos de assistência aos países menos desenvolvidos. O implementation caracterizou

as decisões da primeira MOP, na qual se deu a aprovação formal dos Acordos de

Marraqueche.7 E, por fim, o imagination caracterizou o início formal das discussões sobre

o arranjo legal a ser dado ao período depois de 2012 (WITTNEBEN et al., 2005, p.3).

As iniqüidades do MDL também ocuparam espaço central nas discussões na COP

11/MOP 1. Temas como os altos custos de transação, a complexidade do procedimento

do ciclo do projeto e as discrepâncias na distribuição regional e de atividades levaram a

algumas decisões importantes. Dentre estas, o Conselho Executivo, reconhecidamente

parco em capacitação técnica e financeira para dar conta de suas atribuições, ganhou

reforço com a promessa de maiores recursos e aumento do seu corpo técnico

(WITTNEBEN et al., 2005, p.11).

Outro avanço importante foi o estabelecimento do chamado “Programa de

atividades no Âmbito do MDL” (POA). No parágrafo 20 do Further Guidance, aprovado na

COP 11/MOP1, definiu-se que as “atividades de projetos no âmbito de um programa de

atividades podem ser registradas como uma única atividade de projeto do Mecanismo de

Desenvolvimento Limpo”. O problema que surgiu foi exatamente a ausência de definição,

na COP 11/MOP 1, sobre o que seriam os programas de atividades. Como bem traduz

Mehling (2007), a COP 11/MOP 1 estabeleceu uma “carta aberta”, delegando ao

Conselho Executivo a atribuição de detalhamento e regulação do POA.

Figueres (2006) explica que um POA pode ser definido como um programa cujas

reduções de emissão de GEE são obtidas de uma multiplicidade de atividades

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desenvolvidas como resultado de uma medida governamental voluntária ou de uma

iniciativa do setor privado. Para essa autora, o POA teria as seguintes características:

1) é um programa baseado no setor público ou privado;

2) resulta de uma multiplicidade de ações de mitigação de GEE, a ocorrerem em

diversos locais, dentro de uma cidade, uma região ou num país;

3) as ações não ocorrem necessariamente no mesmo período de tempo, mas

sempre dentro do período de duração do programa;

4) as ações podem ser implementadas por diferentes agentes, mas desde que

sejam gerenciadas no âmbito de um programa, coordenado por uma entidade

definida como a responsável pelo POA (esta pode ser um órgão ou agência

governamental, uma empresa ou um grupo empresarial etc.).

Indo ao encontro das conceituações discutidas na literatura, o Conselho Executivo

apresentou um draft logo depois da COP 12/MOP 2, na sua 28ª reunião (dezembro de

2006), segundo o qual o POA seria uma “ação voluntária coordenada, gerenciada por

uma entidade pública ou privada, responsável por implementar uma meta ou política

setorial com o objetivo de reduzir/seqüestrar emissões de GEE adicionais ao que

ocorreria na ausência do POA, por meio de um número ilimitado de atividades de

programas (CPA)”. Ainda de acordo com esse documento, os POAs devem basear-se em

metodologias aprovadas de linha de base e monitoramento que, entre outras coisas,

definam o limite adequado, evitem dupla contagem e contabilizem as fugas, além de

assegurar que as reduções de emissões ou as remoções antrópicas líquidas por

sumidouros sejam reais, mensuráveis e verificáveis, bem como adicionais a qualquer uma

que ocorreria na ausência da atividade do projeto.

Mesmo tendo, em reuniões posteriores, definido outros aspectos do POA (como o

modelo-padrão para o documento de concepção do projeto), o Conselho Executivo ainda

precisa enfrentar questões essenciais à plena operacionalização do POA. De qualquer

modo, a idéia por detrás do POA é clara no sentido de abrir a possibilidade de se acoplar,

sob um único projeto, uma série de atividades setoriais de pequeno porte, que, se

pensadas individualmente, não teriam atratividade suficiente para serem desenvolvidas. O

objetivo desse novo instrumento seria, assim, reduzir custos para viabilizar atividades com

benefícios sócio-ambientais reconhecidos (MEHLING, 2007), e, portanto, minimizar as

discrepâncias existentes no MDL.

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Apesar de ter inovado ao permitir o estabelecimento do POA, as discussões da

COP 11/MOP 1 foram consideradas fracas em relação ao problema da iniqüidade da

distribuição regional dos projetos de MDL. Segundo esclarece Muller (2006, p.7), a

particular situação dos países africanos e dos considerados menos desenvolvidos levou a

COP/MOP a decidir por convidar as Partes a submeterem propostas de equacionamento

“sistêmico ou sistemático” da distribuição dos projetos de MDL.

Não por coincidência, a situação dos países menos desenvolvidos no âmbito da

Convenção do Clima acabou por ser o tema principal discutido na COP 12/MOP 2,

ocorrida em Nairóbi em novembro de 2006. Com efeito, o presidente da Conferência – o

ministro do meio ambiente do Quênia – elencou como um dos objetivos da reunião a

discussão acerca a distribuição regional dos projetos de MDL e alternativas de torná-la

mais eqüitativa. Mesmo tendo sido intensamente discutida, essa questão não avançou a

contento, resultando apenas em compromissos de fortalecimento dos mecanismos de

capacitação dos países em relação ao MDL (ENB, 2006). Como afirma Muller (2006), a

maior dificuldade aqui reside exatamente em moldar um mecanismo cuja dinâmica

depende das forças do mercado.

CONCLUSÃO

Criado para servir como instrumento de transferência de recursos e tecnologias

aptos a implantar atividades de desenvolvimento sustentável nos países em

desenvolvimento, o MDL tem-se revelado um instrumento limitado diante dos desafios

que as mudanças climáticas estão a impor no mundo em desenvolvimento.

Como se demonstrou neste artigo, o MDL, por ser um instrumento moldado como

mecanismo de mercado, tem sua dinâmica e sua implementação no mundo norteadas

pela lógica econômica. Num tal contexto, projetos com baixos custos e maior potencial de

RCEs sobrepõem-se comumente a atividades mais complexas, onerosas, mesmo que

estas contemplem benefícios sócio-ambientais comparativamente mais relevantes. O

retrato dessa dissonância está presente nas iniqüidades da distribuição regional e por

atividades de MDL.

Todas essas questões têm sido colocadas sob foco nos foros internacionais de

decisão e regulamentação do regime climático, abrindo espaço para a discussão sobre

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medidas de aprimoramento do MDL, não apenas para aplicação imediata, mas,

principalmente, para o período pós-2012.

NOTAS

1 A CQNUMC traz, no seu Anexo I, a lista de países que têm obrigações diferenciadas, particularmente a de redução quantificada de emissões. Essa lista engloba tanto os Estados que eram membros da Organização para a Cooperação Econômica e Desenvolvimento (OECD) em 1992 quanto os Estados com ‘economias em transição’ (basicamente a Federação Russa e outros países do Leste Europeu). 2 O ciclo do projeto é composto pelas seguintes etapas: propositura do documento de concepção do projeto (PDD), validação, registro, monitoramento, verificação/certificação, emissão das RCEs. 3 Entidades Operacionais Designadas (EOD) são entidades (públicas ou privadas) credenciadas na ONU, que atuam como “certificadoras” nas etapas de validação e verificação/certificação do ciclo do projeto. 4 SBSTA é o Órgão Subsidiário de Assessoramento Científico e Tecnológico da Convenção. 5 Informações obtidas até o dia 5.out. 2007. 6 O mercado internacional de carbono é composto por um conjunto pulverizado de diferentes mercados: além do mercado de MDL, das joint implementations e do comércio internacional de emissões – os três regulados pelo Protocolo de Quioto –, há mercados regionais (com destaque para o Emission Trade Scheme da União Européia), nacionais, estaduais (como o New South Wales, na Austrália) e voluntários (como o Chicago Climate Exchange). 7 Apesar de aprovados na COP 7, em 2001, os Acordos de Marraqueche, por estarem atrelados ao Protocolo de Quioto, poderiam ser validados formalmente apenas depois da entrada em vigor desse tratado. REFERÊNCIAS

COOPER, K., AMBROSI, F. State and trends of carbon market 2007. Washington (DC):

World Bank, 2007.

DESSUS, B. Equity, sustainability and solidarity concerns. (Chapter 6). In:

GOLDEMBERG, J. (Ed.). Issues & Options: The Clean Development Mechanism. New

York: United Nations Development Program Publications, 1998. p.81-9.

Do Fundo de Desenvolvimento Limpo ao Programa de Atividades: Uma Análise da Evolução do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo

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1

MECANISMO DE DESENVOLVIMENTO LIMPO NO BRASIL: NECESSIDADE

DE INSTITUIÇÃO DE INDICADORES DE SUSTENTABILIDADE E RESPECTIVOS MECANISMOS DE AFERIÇÃO

Sandra Amaral Marcondes

Diretora jurídica da Marcondes Advogados Associados

[email protected]

RESUMO O Protocolo de Quioto estabeleceu o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), o

qual permite que países desenvolvidos alcancem parte de suas metas de redução de

emissões de gases de efeito estufa mediante a implantação de projetos que promovam o

desenvolvimento sustentável nos países em desenvolvimento. A avaliação quanto a

contribuir ou não para o desenvolvimento sustentável cabe ao país hospedeiro do projeto

do MDL. Assim, o presente trabalho se propõe a demonstrar que o modelo atual de

apuração de sustentabilidade de projetos do MDL de que o Brasil dispõe, baseado nos

critérios de sustentabilidade dispostos na Resolução nº 1 da Comissão Interministerial de

Mudança Global do Clima, mostra-se, ao que parece, deficiente. Razão pela qual o país

corre o risco de desenvolver projetos do MDL, pelo menos em tese, que não contribuam

efetivamente para o desenvolvimento sustentável do Brasil.

Palavras-chave: MDL; sustentabilidade; Brasil.

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Mecanismo de Desenvolvimento Limpo no Brasil: Necessidade de Instituição de Indicadores de Sustentabilidade e Respectivos Mecanismos de Aferição

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“Se quisermos baixar as emissões de gás estufa, teremos que fazer

mudanças radicais na economia mundial e na maneira como vivemos.”

Kofi Annan, ex-Secretário Geral da ONU, 2000.1

Diante das crises, social e ambiental, entre outras, que vive o homem, a

humanidade do século XXI tem a empreitada de idealizar uma nova relação entre o

homem e o meio ambiente. De qualquer modo, um dos avanços da humanidade do

século XX, principalmente nas últimas décadas, foi perceber que os recursos naturais são

esgotáveis e que, como conseqüência, há necessidade de se encontrar um equilíbrio

entre as ações humanas e a preservação/conservação do meio ambiente.

Cardoso destaca que

chegamos ao século XXI da nossa breve história para descobrir que nós,

humanos, podemos interferir com o clima. Infelizmente, porém, de forma

tão drástica que estamos colocando em risco a vida em nosso Planeta nos

próximos cem anos. Poucos têm desfrutado do bem-estar que nosso

modelo de desenvolvimento trouxe a partir da Revolução Industrial no

século XIX. O desenvolvimento que se beneficiou da queima de

combustíveis fósseis, sobretudo o carvão e o petróleo, está ameaçando a

existência da vida. (CARDOSO, 2001, p.5)

Portanto, torna-se fundamental a busca pelo alcance do desenvolvimento

sustentável do Planeta, compreendido como a continuidade do desenvolvimento

econômico, com a utilização racional dos recursos naturais, garantindo melhor qualidade

de vida para as presentes gerações, sem que a geração futura seja comprometida em

usufruir os bens ambientais hoje disponíveis.

Além disso, saliente-se que atualmente existe um consenso mundial no sentido de

que a operacionalização do conceito de desenvolvimento sustentável deve ocorrer

através da conciliação entre as questões econômicas, sociais e ambientais.

Nesse cenário, e tendo em vista o problema das mudanças climáticas globais

causadas pelo aumento da concentração de gases de efeito estufa na atmosfera pela

ação do homem, a comunidade internacional entendeu por bem estabelecer a

Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima e o Protocolo de Quioto

(adendo à Convenção do Clima). O fio condutor das ações dos países que fazem parte

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desses tratados internacionais (inclusive o Brasil) corrobora metas para o

desenvolvimento sustentável.

O Protocolo de Quioto foi adotado em 1997 e estabelece metas concretas para

países desenvolvidos reduzirem suas emissões de gases de efeito estufa no período de

2008 a 2012.

Assim, com o intuito de auxiliar esses países a alcançarem suas metas de

reduções de gases de efeito estufa, o Protocolo de Quioto estabeleceu, entre outros, o

denominado Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, o qual permite que os países

desenvolvidos alcancem parte de suas metas de reduções, através da implantação de

projetos que promovam o desenvolvimento sustentável nos países em desenvolvimento.

Isso significa que a demonstração de comprometimentos de promoção do

desenvolvimento sustentável é jornada obrigatória no encaminhamento de projetos do

MDL.

A avaliação do projeto do MDL quanto a contribuir ou não para o desenvolvimento

sustentável é do país hospedeiro do projeto, que é quem, aliás, estabelece seus próprios

critérios de sustentabilidade. Isto porque é o país anfitrião que poderá efetuar uma

conexão entre as metas de desenvolvimento nacional e os projetos do MDL.

No caso do Brasil, tal avaliação compete à Comissão Interministerial de Mudança

Global do Clima (CIMGC), que instituiu os critérios de sustentabilidade para o Brasil

através da Resolução nº 1, de 2 de dezembro de 2003, e toma por base os seguintes

aspectos: contribuição para a sustentabilidade ambiental local; contribuição para o

desenvolvimento das condições de trabalho e a geração líquida de empregos;

contribuição para a distribuição de renda; contribuição para a capacitação e o

desenvolvimento tecnológico; e contribuição para a integração regional e a articulação

com outros setores.

Assim, no Brasil, para a comprovação do desenvolvimento sustentável, basta que os proponentes do projeto do MDL descrevam, segundo seus próprios fundamentos, como a atividade proposta do MDL coaduna-se com os aspectos acima mencionados. Porém, a Resolução nº 1 da CIMGC não demonstra quaisquer mecanismos de aferição da compatibilidade efetiva entre o projeto proposto e os critérios de desenvolvimento sustentável. Logo, tal situação dificulta sobremaneira eventual análise de projetos do MDL desenvolvidos no Brasil, quanto a estarem efetivamente contribuindo ou não para o desenvolvimento sustentável do país.

Por isso, tal situação demonstra que o modelo de apuração de sustentabilidade de projetos do MDL de que o Brasil dispõe atualmente, baseado nos critérios de sustentabilidade dispostos na Resolução nº 1 da CIMGC, mostra-se, ao que parece, deficiente. Razão pela qual o país corre o risco de desenvolver projetos, pelo menos em tese, que não contribuam efetivamente para o desenvolvimento sustentável do Brasil.

Mecanismo de Desenvolvimento Limpo no Brasil: Necessidade de Instituição de Indicadores de Sustentabilidade e Respectivos Mecanismos de Aferição

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Detecta-se, assim, a necessidade de que o Brasil institua indicadores de sustentabilidade e respectivos mecanismos de aferição para avaliação de projetos do MDL desenvolvidos no Brasil no tocante ao desenvolvimento sustentável.

Ora, a avaliação de projetos do MDL com base em indicadores claros de sustentabilidade e mecanismos para aferi-los representa menos risco para o empreendedor nacional e/ou internacional com relação a eventuais problemas de ordem econômica, social e/ou ambiental. Isso torna o ‘carbono’ brasileiro diferenciado mundialmente, atraindo investimentos nacionais e/ou estrangeiros.

Para tanto, é importante, sem a pretensão de esgotar o assunto, que as autoridades brasileiras envolvidas na problemática analisem os fundamentos teóricos e empíricos que caracterizam as ferramentas de avaliação de sustentabilidade, e levantem as mais importantes e oportunas ferramentas de avaliação de sustentabilidade aplicáveis no contexto nacional e internacional, e definam que sistemas de avaliação de sustentabilidade aplicar.

Ademais, nesse processo de criação dos indicadores de sustentabilidade e mecanismos de aferição para projetos do MDL, sugere-se que o país estabeleça uma Política Nacional sobre Mudanças Climáticas, além de políticas, planos e sistemas de controle para o desenvolvimento sustentável do país.

Salienta-se, ainda, que o processo ora em questão seja elaborado com base em consulta aos atores envolvidos, estando aí incluídos setores governamentais e sociedade civil. E, ainda, que o país esteja atento no sentido de que os indicadores a serem criados demonstrem uma abrangência de proporção entre as dimensões econômica, ambiental e social, mesmo porque, as reduções de emissões de GEE e os objetivos do desenvolvimento sustentável devem ser buscados sincronicamente. Em outras palavras: não se pode falar em sustentabilidade ‘fragmentada’.

De qualquer forma, é importante ressaltar que o MDL não tem a ‘capacidade’ de transformar o Planeta em um local ‘perfeito’. Trata-se de uma ferramenta que traz a possibilidade de contribuir para uma melhora planetária, pois induz à atividade produtiva e quiçá o homem a repensar, compreender e agir de modo mais aperfeiçoado diante dos graves problemas multilaterais de ordem econômica, social e ambiental, sendo esta última especialmente no que diz respeito à questão das mudanças climáticas causadas por atividades humanas.

Enfim, recomenda-se que o Brasil dê início o mais cedo possível ao processo de desenvolvimento de indicadores oficiais de sustentabilidade e mecanismos que possam aferi-los para avaliação dos projetos do MDL no país, pois o frágil modelo atual de aferição pode fazer que o MDL não cumpra seu papel de auxiliar o Brasil a alcançar o desenvolvimento sustentável. Eis aí um grande desafio a ser alcançado pelo Brasil.

NOTAS 1 Citado em: PEARCE, Fred. O aquecimento global: causas e efeitos de um mundo mais

quente. (Trad. Ederli Fortunato). São Paulo: Publifolha, 2002. p.65.

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MARCONDES, S. A. Mecanismo de Desenvolvimento Limpo no Brasil: o desafio de

implantar projetos de desenvolvimento sustentável. São Paulo, 2006. 144 f. Dissertação

(Mestrado em Gestão Integrada em Saúde do Trabalho e Meio Ambiente) – Centro

Universitário Senac.

1

MUDANÇA DO CLIMA 2007: IMPACTOS ADAPTAÇÃO E VULNERABILIDADE 1

Josilene Ticianelli Vannuzini Ferrer

Secretária Executiva do Programa de Mudanças Climáticas do Estado de São Paulo, e Coordenadora do

Programa de Prevenção à Destruição da Camada de Ozônio da Cetesb. Mestre em Ciência Ambiental

(Universidade de São Paulo)

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Mudança do Clima 2007: Impactos Adaptação e Vulnerabilidade 1

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O IPCC é a sigla pela qual o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas é

conhecido pela imprensa do mundo todo, especialmente após a divulgação dos seus

relatórios de 2007 e do Prêmio Nobel da Paz, compartilhado com o ex-vice-presidente

americano Al Gore. Não se trata de um prêmio científico,3 e esse importante aspecto

destaca o caráter estratégico da premiação.

O painel de cientistas que estuda a mudança do clima e o arauto das novas

práticas receberam o Nobel da Paz. O prêmio demonstra o entendimento de que a

temática é extremamente urgente e que precisa ser considerada.

Compreender os desdobramentos efetivos do aquecimento do planeta, informar a

sociedade, implementar políticas eficazes que reduzam a emissão de gases de efeito

estufa, preparar nossas cidades para conviver com os impactos que já estão ocorrendo,

entre outras medidas essenciais, hoje, são partes de uma estratégia mais ampla para a

paz. Deve-se ampliar a compreensão da palavra ‘paz’, que deixa de se referir apenas à

ação de ‘evitar conflitos armados’ e passa a incluir a importância da segurança e da

segurança alimentar; o incentivo a ações que gerenciem conflitos entre cidades e regiões,

e mesmo nações carentes por recursos essenciais como água e conseqüentemente

alimentos; e ações para dirimir disputas por fronteiras. Enfim, o panorama é muito mais

complexo do que se podia prever na década de 1990.

E nesse cenário turbulento surgem os ‘bons ventos’ do IPCC, agregando

pesquisas e disposição institucional para chegar ao entendimento que a ciência possa

nos oferecer. O debate científico está alçado ao centro do cenário internacional e pode

respaldar, quando há interesse dos governos, a tomada de decisões.

Esta Contribuição do Grupo II pode incentivar o desenvolvimento de novas

pesquisas e focalizar propostas para ação dos governos locais e nacionais, e apresenta

os principais resultados do Quarto Relatório de Avaliação desse Grupo de Trabalho do

IPCC. Tem por objeto “o entendimento científico atual dos impactos da mudança do clima

nos sistemas naturais, manejados e humanos, a capacidade de adaptação desses

sistemas e sua vulnerabilidade. Baseia-se nas avaliações anteriores do IPCC e incorpora

novos conhecimentos gerados desde o Terceiro Relatório de Avaliação”.

O Sumário representa um conjunto de dados relacionados ao período que se

iniciou em 1970. É expressivo o aumento da quantidade de publicações sobre as

pesquisas com as tendências observadas no meio físico e biológico e suas relações com

as mudanças climáticas. Publicações recentes também possibilitaram uma avaliação mais

abrangente sobre a relação do aquecimento do planeta e seus impactos, do que as

Mudança do Clima 2007: Impactos Adaptação e Vulnerabilidade 1

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conclusões observadas nos trabalhos que respaldaram o Terceiro Relatório. As pesquisas

mais recentes ganharam qualidade, porém, ainda existe uma grande defasagem entre o

número de trabalhos publicados nos países desenvolvidos e nos países em

desenvolvimento.

No relatório atual de avaliação foi possível concluir que “as evidências obtidas por

meio de observações de todos os continentes e da maior parte dos oceanos mostram que

muitos sistemas naturais estão sendo afetados pelas mudanças climáticas regionais,

principalmente pelos aumentos de temperatura”. Os pesquisadores indicam um nível alto

de confiança de que sistemas naturais sejam afetados no que diz respeito às mudanças

no solo e na neve, como por exemplo o aumento de instabilidade nas áreas de

permafrost.4 As evidências registradas pelos pesquisadores também demonstram5 efeitos

que estão ocorrendo no sistema hidrológico, como o aquecimento de lagos e rios em

inúmeras regiões, afetando a qualidade das águas. O aquecimento recente está afetando

os sistemas biológicos terrestres,6 até mesmo com mudanças, na antecipação de

“eventos da primavera, tais como a emissão de folhas, migração de pássaros e postura

de ovos”.

Os efeitos já documentados dos aumentos de temperatura são relatados:

• No manejo agrícola e florestal nas latitudes mais altas do Hemisfério Norte, como

a antecipação do plantio das culturas na primavera e alterações nos regimes de

perturbação das florestas por causa de incêndios e pragas;

• Em alguns aspectos da saúde humana, como a mortalidade relacionada com o

calor na Europa, vetores de doenças infecciosas em algumas áreas e pólen

alergênico nas altitudes altas e médias do Hemisfério Norte;

• Em algumas atividades humanas no Ártico (por exemplo, caça e transporte na

neve e no gelo) e em áreas alpinas de elevação mais baixa (como os esportes de

montanha).

Sobre o conhecimento atual dos impactos futuros, o IPCC entende que “Existem

agora informações mais específicas de uma gama de sistemas e setores acerca da

natureza dos impactos futuros, inclusive para alguns campos que não foram tratados nas

avaliações anteriores”.7 Os impactos nos recursos hídricos, com o aumento da extensão

de secas, de eventos de precipitação extrema, com subseqüente elevação do risco de

inundações, diminuição do estoque e disponibilidade de água doce nas geleiras que

Mudança do Clima 2007: Impactos Adaptação e Vulnerabilidade 1

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abastecem mais de um sexto da população mundial, exemplificam esses impactos

futuros. Ações de adaptação e gerenciamento de risco para o setor hídrico já estão sendo

praticadas em alguns países, que reconheceram as projeções para o setor como

possíveis.8

No campo temático que aborda os ecossistemas, as considerações da Súmula são

inquietantes, pois indicam uma ampliação das mudanças do clima, e que provavelmente a

absorção líquida de carbono atinja o ápice ao longo deste século. É provável a extinção

de 20% a 30% de espécies vegetais e animais avaliados, se a temperatura global média

aumentar entre 1,5° e 2,5° C. Para os aumentos de temperatura média que ultrapassarem

1,5° a 2,5° C, os cenários sinalizam grandes mudanças na estrutura e na função dos

ecossistemas, e conseqüências para a oferta de água e alimento, entre outras.

Para a saúde, considera-se a possibilidade de mudanças climáticas afetarem

milhões de pessoas, especialmente as populações que residem em locais com baixa

capacidade de adaptação, implicando aumento de:

• Subnutrição, com impactos no crescimento e desenvolvimento infantil;

• Mortes, doenças e ferimentos causados por ondas de calor, inundações,

tempestades, incêndios, secas etc.;

• Alteração da distribuição espacial de vetores de doenças infecciosas;

• Redução ou aumento do potencial de transmissão da malária na África;

• Nas áreas temperadas é possível haver benefícios, como por exemplo menos

mortes por exposição ao frio.

São projetados cenários de impactos, para serem considerados pelos tomadores

de decisões, para áreas essenciais como alimentos e produtos florestais; sistemas

costeiros e áreas de baixa altitude; indústria, assentamento humano e sociedade. Existem

agora disponíveis informações mais específicas para os continentes, sobre a natureza

dos impactos futuros. Os cenários são distintos, e igualmente preocupantes:

• Para a África, projetam até 2020 entre 75 e 250 milhões de pessoas expostas “a

maior escassez de água por causa da mudança do clima”. O acesso aos

alimentos será comprometido por mudanças do clima e pela redução da área

agrícola, fato que, ocorrendo, agravará as condições de nutrição do continente. A

oferta de alimentos também será comprometida pela redução da pesca nos

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grandes lagos africanos. Os estudos mais recentes indicam que a África é uma

das partes mais vulneráveis do planeta.

• Para a Ásia, anunciam que o derretimento das geleiras do Himalaia aumentará as

inundações e escorregamentos nas encostas desestabilizadas, afetando os

recursos hídricos da região nos próximos 20 ou 30 anos; posteriormente ocorrerá

uma redução no fluxo dos rios, acompanhando as reduções das geleiras. As

áreas costeiras, densamente povoadas, estarão expostas a riscos de

inundações. Faz parte do panorama futuro o aumento de morbidade e

mortalidade endêmicas, principalmente agravadas pela diarréia.

• Para a Austrália e a Nova Zelândia, intensificação nos problemas com a água

em algumas áreas; perda de biodiversidade até 2020; elevação do nível do mar e

tempestades mais severas até 2050, e queda da produção agrícola até 2030.

São países com melhores condições e recursos de adaptação, graças às suas

economias, porém, seus sistemas naturais têm pouca capacidade de adaptar-se.

• Para a Europa estão documentados impactos como retração de geleiras; épocas

de cultivo mais longas; impactos na saúde decorrentes de ondas de calor;

ampliação de diferenças regionais; riscos de inundações, inclusive no litoral.

Esses fenômenos, que já estão ocorrendo, devem se intensificar. Grandes

desafios econômicos podem emergir para muitos setores da economia européia,

entre eles, o turismo de inverno. No norte da Europa projeta-se que a mudança

do clima provoque efeitos mistos, inclusive alguns benéficos como uma

diminuição das necessidades de aquecimento e o aumento de safras, entre

outros.

• Para a América do Norte, projeta-se aquecimento nas montanhas no Oeste e

redução da camada de neve, com mais inundações no inverno; maior competição

por recursos hídricos já usados em excesso; perturbações nas florestas advindas

de pragas, doenças e incêndios´; grande risco de incêndios e grande expansão

nas áreas queimadas; ondas de calor mais intensas nas cidades que já convivem

com o problema, e maiores riscos para a população idosa. O crescimento da

população nas áreas costeiras e a caríssima infra-estrutura local aumentam a

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vulnerabilidade às variações climáticas. O preparo para um aumento de

tempestades fortes ainda é pequeno.

• Para as Regiões Polares, entre os principais efeitos biofísicos previstos estão as

reduções na espessura e extensão das geleiras e alterações nos ecossistemas

naturais, com impactos para inúmeros seres, como pássaros migratórios e

grandes mamíferos. No Ártico, prevêem-se impactos mistos para os

agrupamentos humanos: por um lado, redução nos custos de aquecimento e

aberturas de rotas navegáveis no Mar do Norte, e por outro, comprometimento da

infra-estrutura e do modo de vida tradicional dos povos árticos tradicionais. Serão

necessários consideráveis investimentos para apoiar a adaptação das

comunidades tradicionais ameaçadas, principalmente para relocar as estruturas

físicas e as comunidades.

• Para as Pequenas Ilhas, que são muito vulneráveis à elevação do nível do mar e

aos eventos extremos, prevê-se erosão das praias, branqueamento dos corais e

conseqüente impacto nos criatórios de peixes, com diminuição da importância

turística desses locais. Escassez dos recursos hídricos em regiões como o

Caribe e o Pacífico. Com a elevação do nível do mar, aumento de inundações e

de “marés de tempestades, erosão e outros riscos costeiros, ameaçando, assim,

a infra-estrutura vital, os assentamentos humanos e as instalações que propiciam

os meios de subsistência das comunidades das ilhas”.

• Para a América Latina,9 até meados deste século estão previstos aumentos de

temperatura e a correspondente redução da umidade do solo. Faz parte desse

quadro a possibilidade de substituição gradual da floresta tropical por savana no

leste da Amazônia; a substituição da vegetação semi-árida por vegetação de

terras áridas; risco de perda de biodiversidade causada pela extinção de

espécies em áreas tropicais; nas terras mais secas, graves riscos de salinização

e desertificação em áreas hoje agricultáveis; diminuição na produtividade de

algumas culturas e pecuária; em áreas temperadas, aumento da soja; risco de

inundações pela elevação do nível do mar; menor disponibilidade de água para

consumo humano, agricultura e geração de energia; mudanças na localização

dos estoques pesqueiros no Pacífico. Entre as possibilidades de adaptação

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descritas para o continente estão: a conservação dos ecossistemas importantes,

o desenvolvimento de sistemas rápidos de alerta, gerenciamento de riscos na

agricultura, gestão nas áreas vulneráveis a inundações e secas. Também se

destaca o aprimoramento dos sistemas de vigilância para doenças. Alguns

aspectos são descritos como responsáveis por diminuir a eficácia das ações de

adaptação, entre eles, a falta de informação básica, de sistemas de

monitoramento, de capacitação e de estruturas políticas, associados à baixa

renda da população e à existência de assentamentos humanos em áreas

vulneráveis.

Algumas considerações expostas e comentadas na Súmula deverão referenciar o

desenvolvimento de políticas públicas consistentes além de estimular a produção

científica, entre elas:

• Alguns eventos climáticos de grande escala têm o potencial de causar impactos

muito grandes, especialmente após o século XXI.

• Os impactos da mudança do clima irão variar entre as regiões, mas se o seu valor

for agregado e descontado para o presente, é muito provável que imponham

custos anuais líquidos que aumentem ao longo do tempo na proporção do

aumento das temperaturas globais.

• A adaptação será necessária para tratar dos impactos provocados pelo

aquecimento que já não pode ser evitado, por ser decorrente das emissões

passadas.

• Há uma vasta gama de opções de adaptação, mas é necessária uma adaptação

mais ampla do que a que está ocorrendo atualmente para reduzir a

vulnerabilidade à futura mudança do clima. Barreiras, limites e custos existentes

ainda não são completamente conhecidos.

• A vulnerabilidade à mudança do clima pode ser exacerbada pela presença de

outros fatores de tensão.

• A vulnerabilidade futura depende não apenas da mudança do clima, mas também

da trajetória do desenvolvimento.

• O desenvolvimento sustentável pode reduzir a vulnerabilidade à mudança do

clima, e a mudança do clima poderia interferir na capacidade das nações para

alcançar trajetórias e desenvolvimento sustentável.

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• Muitos impactos podem ser evitados, reduzidos ou adiados pela mitigação.

• Um portfólio de medidas de adaptação e mitigação pode diminuir os riscos

associados à mudança do clima.

O Quarto Relatório do IPCC do Grupo II relata uma série de pesquisas recentes

sobre os impactos globais na oferta de alimentos, risco de inundações costeiras e

escassez de recursos hídricos. As novas informações apontam para a possibilidade de

ser consideravelmente maior o volume de pessoas afetadas, do que já foi projetado em

estudos anteriores, e esse grande contingente populacional abrange pessoas com poder

aquisitivo muito baixo e em áreas de grande crescimento populacional. Este é um campo

de estudos a ser explorado, principalmente nos países em desenvolvimento, e os países

do Hemisfério Sul apresentam carências históricas nessa área.

Acompanhando-se os eventos internacionais e nacionais sobre essa complexa

problemática e os relatórios do IPCC já divulgados, observa-se que se faz urgente o

aprofundamento de pesquisas nos países em desenvolvimento, com a contribuição das

áreas de ciências humanas.

A pesquisa científica reflete o limite contemporâneo do conhecimento e é uma

fronteira continuamente ampliada por esforços conjuntos de uma legião de instituições e

pesquisadores dispersos pelo planeta. É urgente ampliar a compreensão sobre as

dinâmicas de população, hábitos e padrões de consumo, e impactos das intervenções do

homem sobre o sistema climático do planeta. Ou seja, é necessário ampliar a fronteira do

conhecimento existente e a precisão dos cenários de que se dispõe.

O esforço das Nações Unidas, da Convenção do Clima e do Protocolo de Quioto

em reunir o contingente de pesquisadores que compõem o IPCC é significativo, e o

conteúdo dos seus relatórios precisa ser divulgado.

Novos estudos e relatórios ainda estão por vir e desvendar limites no

entendimento da relação das ações humanas com o sistema climático, a biodiversidade e

os agrupamentos humanos.

Têm-se disponíveis informações e fundamentos sólidos para orientar os

tomadores de decisões, porém lacunas de informação precisam ser preenchidas e o

envolvimento das áreas das ciências humanas também é necessário. Existe uma

sucessão de desafios a serem vencidos, e um dos maiores é a transposição das barreiras

entre a pesquisa científica e as decisões políticas que norteiam as ações públicas e

privadas.

Mudança do Clima 2007: Impactos Adaptação e Vulnerabilidade 1

Josilene Ticianelli Vannuzini Ferrer INTERFACEHS

9©INTERFACEHS – Revista de Gestão Integrada em Saúde do Trabalho e Meio Ambiente - v.2, n.5, Resenha 2, dez 2007

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Paz e estabilização do sistema climático global são alguns dos desafios que

precisamos vencer!

NOTAS 1 Disponível em: www.mct.gov.br/clima. 2 IPCC – Intergovernmental Panel of Climate Change. 3 Aspecto destacado pelo Dr. Gylvan Meira Filho, ex-vice-presidente do IPCC, em uma palestra nas Faculdades Senac – Sigas 2007, de 19 a 20 de novembro, durante a Mesa 2, Mudanças Climáticas: balanço da década e os impactos na saúde e meio ambiente. O evento foi realizado com o apoio da Cetesb. 4 Solos e subsolos congelados permanentemente. 5 Segundo a Súmula com “um nível alto de confiança”. 6 Neste item “há um nível muito alto de confiança, com base em um número maior de evidências obtidas de uma gama mais ampla de espécies...”. 7 A Súmula destaca que as mudanças de temperaturas “são expressas como a diferença em relação ao período de 1990 a 1999. Para expressar a mudança relativa ao período de 1850 a 1899, acrescenta-se 0,5°C”. 8 “Procedimentos de adaptação e práticas e gerenciamento de risco para o setor hídrico estão sendo desenvolvidos em alguns países e regiões que reconheceram as mudanças hidrológicas projetadas com as incertezas correspondentes”. 9 O maior detalhamento dos impactos previstos para a América Latina foi proposital e não reflete o conteúdo da Súmula, que é bastante igualitária na descrição de todos os continentes.

1

O NOME DA MARCA: MCDONALD’S, FETICHISMO E CULTURA

DESCARTÁVEL Rachel Biderman Furriela

Doutoranda em Administração Pública e Governo pela Eaesp/Fundação Getúlio Vargas

[email protected]

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O Nome da Marca: Mcdonald’s, Fetichismo e Cultura Descartável

Rachel Biderman Furriela INTERFACEHS

2©INTERFACEHS – Revista de Gestão Integrada em Saúde do Trabalho e Meio Ambiente - v.2, n.5, Resenha 1, dez 2007

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Viajar com Isleide Fontenelle pela história recente da sociedade de consumo,

guiados pela evolução do negócio e da marca McDonald’s, é um deleite para aqueles que

pretendem compreender questões fundamentais da cultura de consumo prevalente nos

dias de hoje. Originária de um nome de família associado a um restaurante de comida

fast-food, construído na década de 1930 na Califórnia, a marca McDonald’s foi escolhida

pela autora como objeto de análise por simbolizar a própria evolução do capitalismo e da

sociedade de consumo.

O livro reflete cuidadosa pesquisa e levantamento de dados históricos relevantes

para a compreensão de um dos maiores fenômenos do capitalismo moderno: o consumo

baseado no fetiche das marcas, associado ao culto à imagem e alimentado pela

expansão do marketing e da sociedade midiática.

Na primeira parte do livro, um levantamento histórico, urbanístico e arquitetônico

permite compreender como se deu a construção do modelo de negócio da marca

McDonald’s, liderado por Ray Kroc. Esse homem de negócios comprou a marca e o seu

direito de uso dos irmãos que a criaram, e foi quem agregou valor ao símbolo dos arcos

dourados, edificando um sólido império, inspirador de tantos outros modelos baseados na

construção da imagem das marcas. O momento histórico do pós-guerra nos Estados

Unidos, em que prevaleceu um modelo de crescimento econômico baseado na

construção de rodovias e na ampliação das cidades em direção à periferias, foi o pano de

fundo da ação visionária de Kroc. Ele associou a expansão de seu negócio ao próprio

modelo de expansão econômica do país, construindo seus restaurantes na beira das

estradas e na periferia das cidades, ou seja, no coração dos próprios vetores do

crescimento econômico. Nesse contexto, a autora demonstra como o uso da imagem da

marca foi fundamental para a expansão do negócio.

A visão crítica contida em todo o texto nos permite entender como o simbolismo

das marcas tornou-se relevante para influenciar a tomada de decisão das pessoas nos

seus atos de consumo, por penetrar nas áreas mais profundas do pensamento humano,

escondidas no inconsciente. A manipulação deliberada desse ambiente psicológico,

através de técnicas e métodos de marketing, é apresentada no livro, ampliando a

compreensão do conteúdo subliminar do mundo da publicidade, subjacente ao modelo

capitalista atual. O marketing, ao utilizar conhecimentos advindos da psicanálise,

abandona pesquisas tradicionais sobre o perfil de consumidores, e passa a utilizar a

irracionalidade como meio de atrair o consumidor ao seu objeto de consumo.

O Nome da Marca: Mcdonald’s, Fetichismo e Cultura Descartável

Rachel Biderman Furriela INTERFACEHS

3©INTERFACEHS – Revista de Gestão Integrada em Saúde do Trabalho e Meio Ambiente - v.2, n.5, Resenha 1, dez 2007

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O uso da marca para instigar o desejo de consumo através dos meios de

comunicação e de personagens associados a ela, bem como sua associação ao consumo

de uma experiência de lazer, são reflexões contidas no livro, que ilustram como imagens

podem apelar para instintos e emoções básicas dos seres humanos, conduzindo-os a

ações impulsivas, impensadas e irracionais. Pode-se argumentar que essas ações

estariam na base do modelo de negócio do McDonald’s e de tantos outros edificados

sobre o terreno das imagens e das marcas, pautando o universo da produção e do

consumo e, conseqüentemente, do capital.

O paradoxo principal apontado por Isleide é o de que o desejo da marca é, afinal,

o do próprio capital, ou seja, o de criar um estado de dependência absoluta do sujeito,

fazendo que não lhe seja mais possível prescindir desse desejo e desse consumo. A

autora escolhe a ‘marca’ como símbolo e sintoma de nossa época. Seria a protagonista

de um processo de descartabilidade da cultura. Ela se propõe a compreender a formação

da subjetividade que corresponde a esse tipo de cultura descartável e denuncia a

exploração do imaginário do consumidor como um laboratório de metáforas visuais.

A autora transita livremente entre conteúdos de psicologia, filosofia, sociologia e

marketing, e constrói um arcabouço sólido e instigante para aqueles que buscam

explicações para as causas dos problemas ambientais e sociais do mundo

contemporâneo, decorrentes do modelo de desenvolvimento atual, centrado no

consumismo exacerbado de bens e serviços e, segundo a linguagem de Isleide, baseado

cada vez mais no consumo de imagens e experiências.

O advento das mudanças climáticas globais, amplamente divulgado pela mídia,

reconhecido por cientistas do mundo tudo, objeto de impactante estudo econômico

realizado pelo governo britânico – o Relatório Stern –, e alardeado internacionalmente em

missão pessoal empreitada por Al Gore, ex-vice-presidente dos Estados Unidos, é

resultado do impacto do modelo de consumo e produção vigente há dois séculos. Esse

modelo, que teve início na Revolução Industrial e implicou o uso exacerbado de recursos

naturais e o abuso da queima dos combustíveis fósseis e emissões de gases de efeito

estufa, é hoje a causa do maior problema ambiental que afeta o planeta. O estudo da

sociedade de consumo, proposto por Isleide Fontenelle, é fundamental para compreender

as origens do fenômeno do aquecimento global, pois é na mente humana e nos fetiches

complexos construídos artificialmente e impulsionados pelo marketing inerente ao modelo

capitalista que encontraremos a chave para as soluções do problema.