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Ensino Superior no Século XXI: Aprender a Aprender Pedro Demo POLÍTICA CIENTÍFICA E EDUCACIONAL NA UNIVERSIDADE Duas seriam as funções centrais da Universidade hoje: reconstruir conhecimento e educar novas gerações. Não insisto na trilogia oficial ensino, pesquisa, extensão porque a considero arcaica. Primeiro, é bem melhor substituir ensino por educação, quando menos para evitar o instrucionismo que nos assola, e, segundo, faz pouco sentido manter a extensão como algo fora da organização curricular. O desafio da cidadania geralmente despachado para a extensão permanece algo extrínseco, voluntário e intermitente, quando deveria ser a alma do currículo. Por isso, defini em outra ocasião a extensão como "a má consciência da Universidade", ou seja: sabendo que está longe da sociedade e incomodada por isso, procura pontos de contato com ela, enredando-se freqüentemente com assistencialismos e pedagogismos eventuais. Cuidar de uma favela, por exemplo, longe de ser apenas a solução eventual de uma Universidade mal- amada, deveria fazer parte do currículo de formação e pesquisa de todos os cursos, ou seja, fazer parte do trajeto formativo de todo estudante e professor. Por outra, não é o caso a extensão organizar um projeto de recapacitação dos professores da rede escolar, porque stricto sensu deveria fazer parte do curso de educação curricularmente falando. Na Europa, as grandes Universidades não conhecem o termo extensão, porque julgam que garantir à sociedade acesso qualitativo ao conhecimento e educar os jovens é o que se espera delas basicamente. Não se trata de condenar a atenção social que a Universidade pretenderia oferecer à sociedade, mas isto só faz sentido se for algo curricular. Caso contrário, é função mais específica da política social pública (Botomé, 1996). Por isso, atenho-me neste trabalho preliminar às duas funções que considero centrais: reconstruir conhecimento e educar novas gerações. Ressaltarei este horizonte principalmente na figura dos professores, responsáveis mais diretos pela qualidade da oferta. Para além deles, desempenha papel decisivo a direção da Universidade, que deveria comprometer-se sobretudo com tais objetivos, não reduzindo a gestão a meros procedimentos gerenciais. A Universidade precisa garantir que os alunos aprendam a pesquisar e a aprender.

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POLÍTICA CIENTÍFICA E EDUCACIONAL NA UNIVERSIDADE

Duas seriam as funções centrais da Universidade hoje: reconstruir conhecimento e educar novas gerações. Não insisto na trilogia oficial ensino, pesquisa, extensão porque a considero arcaica. Primeiro, é bem melhor substituir ensino por educação, quando menos para evitar o instrucionismo que nos assola, e, segundo, faz pouco sentido manter a extensão como algo fora da organização curricular. O desafio da cidadania geralmente despachado para a extensão permanece algo extrínseco, voluntário e intermitente, quando deveria ser a alma do currículo. Por isso, defini em outra ocasião a extensão como "a má consciência da Universidade", ou seja: sabendo que está longe da sociedade e incomodada por isso, procura pontos de contato com ela, enredando-se freqüentemente com assistencialismos e pedagogismos eventuais. Cuidar de uma favela, por exemplo, longe de ser apenas a solução eventual de uma Universidade mal-amada, deveria fazer parte do currículo de formação e pesquisa de todos os cursos, ou seja, fazer parte do trajeto formativo de todo estudante e professor. Por outra, não é o caso a extensão organizar um projeto de recapacitação dos professores da rede escolar, porque stricto sensu deveria fazer parte do curso de educação curricularmente falando. Na Europa, as grandes Universidades não conhecem o termo extensão, porque julgam que garantir à sociedade acesso qualitativo ao conhecimento e educar os jovens é o que se espera delas basicamente. Não se trata de condenar a atenção social que a Universidade pretenderia oferecer à sociedade, mas isto só faz sentido se for algo curricular. Caso contrário, é função mais específica da política social pública (Botomé, 1996).

Por isso, atenho-me neste trabalho preliminar às duas funções que considero centrais: reconstruir conhecimento e educar novas gerações. Ressaltarei este horizonte principalmente na figura dos professores, responsáveis mais diretos pela qualidade da oferta. Para além deles, desempenha papel decisivo a direção da Universidade, que deveria comprometer-se sobretudo com tais objetivos, não reduzindo a gestão a meros procedimentos gerenciais. A Universidade precisa garantir que os alunos aprendam a pesquisar e a aprender.

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I. Política científica

Por trás da gestão e da reconstrução do conhecimento está o tema contemporâneo e estratégico da sociedade do conhecimento. Aliás, um dos incunábulos mais expressivos da sociedade do conhecimento é o surgimento das Universidades elas descobriram que a sociedade necessita deste tipo de instituição dedicada à causa do conhecimento. Hoje, de longe a influência do mercado competitivo é mais decisiva, mas, apesar do visível abuso, não deixa de reforçar a seu modo a mesma tese. A rigor, dever-se-ia falar de "economia intensiva de conhecimento", para denotar que conhecimento não é apenas algo fundamental, mas o mais fundamental. A competitividade capacidade de produzir cada vez mais, melhor e mais barato é questão de condição inovadora proveniente do uso e produção do conhecimento. Aronowitz (2000), com seu livro sobre "a fábrica do conhecimento" nos Estados Unidos, traçou com perspicácia contundente esta trajetória: a Universidade vai abandonando seu compromisso educativo para curvar-se às forças do mercado. Com efeito, a capacidade de inovação já concebida como inovação pela inovação, estritamente a serviço do lucro provém do conhecimento, hoje percebido sobretudo nos processos crescentes e açambarcantes da informatização, bom bem nota Castells (1997, 1998). Na verdade, esta evolução do capitalismo já fora prevista por Marx, quando definia a mais-valia relativa como aquela propulsionada pela ciência e tecnologia, ou seja, em vez de explorar apenas a força física do trabalhador, passaria a explorar sobretudo sua inteligência (Demo, 1998).

Espera-se que a Universidade não se torne apenas sucursal do mercado, olvidando seus horizontes educacionais e culturais. Ainda assim, o compromisso com a reconstrução do conhecimento faz parte de sua alma, desde sempre. Olhando a cena nacional universitária, esta exigência parece extemporânea, porque, como regra, as Universidades não se ligam ao processo de construção do conhecimento. Bastam-se em dar aula. O docente também só faz isso: dá aula. Por isso também se inventou o "horista", que é contratado só para isso. Não se espera dele nem é pago para tanto que estude, se atualize, produza conhecimento, acompanhe o processo de inovação do conhecimento. Acabamos definindo o professor pela aula, estritamente. Evito falar de "construção do conhecimento", não porque tenha alguma crítica a Piaget, mas porque considero expressão excessivamente forte: normalmente, reconstruímos conhecimento partindo do conhecimento já existente e disponível. A idéia de construir conhecimento, como aponta Harding (1998), pode sugerir que inventamos sem mais nem menos novas teorias e métodos, e, quando aplicada à realidade, pode sugerir que a inventamos ao bel-prazer. Com efeito, a realidade

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fora de nós existe apesar de nós, embora a concepção que cada qual faz dela dependa essencialmente de nós.

Manejo próprio, crítico e criativo do conhecimento é, hoje, a vantagem comparativa entre os povos e pessoas. É o que distingue entre países avançados e outros atrasados: aqueles produzem conhecimento próprio, estes o copiam. Ou, usando uma alegação provocativa: enquanto o 1o Mundo pesquisa, o 3o Mundo dá aula! Neste contexto a Universidade ocupa papel de absoluto destaque, desde que não se reduza a reproduzir conhecimento. Entretanto, como assevera a argumentação de Aronowitz, não se pode apenas pretender reconstruir conhecimento, porque a tradição universitária está umbilicalmente vinculada à ética do conhecimento (Morin, 1996; Demo, 1999). O pós-modernismo, a par de suas irresponsabilidades relativistas, tem produzido uma crítica acerba em torno do colonialismo do conhecimento científico de cariz europeu, na esteira da teoria crítica da Escola de Frankfurt, ganhando, principalmente na formulação de Popkewitz (2001), a designação criativa de "conhecimento como efeito do poder". Seguindo também a definição de poder de Foucault, tipicamente dialética não-linear, reconhece que poder faz parte do conhecimento intrinsecamente. Ao contrário do positivismo, que sempre teima em ver no poder uma excrescência no campo científico, esta maneira de ver admite que o poder mora dentro do conhecimento, mais que a própria verdade. Não é diferente a noção de Habermas (1989) de verdade como "pretensão de validade": para que o conhecimento seja aceito intersubjetivamente, não pode bastar-se com formalizações lógicas; necessita ainda e sempre de "consenso" negociado. Kuhn, na sua polêmica sobre paradigmas científicos, reconhece igualmente provindo de outro olhar certamente que a manutenção de um paradigma se mescla sempre com efeitos do poder, onde a fidelidade sobrepuja a competência.

Popkewitz quer dizer que, no campo do conhecimento, bem como da educação, as intenções muitas vezes são suplantadas pela revelia. Analisando, em 1990, um programa educacional norte-americano ("Teach for America"), dirigido a alunos marginalizados urbanos e rurais, descobriu que este programa alcançou o contrário do que prometia: marginalizou de vez tais alunos, à medida que os regularizou no sistema excludente dominante. Com isto toca na chaga aberta pela Escola de Frankfurt: o esclarecimento pretendido no modernismo resultou no cultivo da ignorância para os outros. Com efeito, diante de outras culturas a Europa colonizou a todas e em grande parte as destruiu, em nome de uma verdade única e própria. O conhecimento, que poderia libertar os povos, transformou-se em instrumento de colonização impiedosa, o que se pode ver, de modo drástico e sistemático, nos Bancos de Desenvolvimento: seus técnicos sempre se apresentam como os melhores do mundo a serviço da libertação dos marginalizados, mas sua atividade está

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marcada inequivocamente (Caufield, 1998; Tomasi/Warde/Haddad, 2000) pelo favorecimento das elites (internacional e local), além do favorecimento dos próprios técnicos. Assim, a inteligência que pode libertar é

a mesma que pode colonizar. Neste sentido, a Universidade não poderia recair no "efeito do poder" do conhecimento: ao mesmo tempo que precisa reconstruir conhecimento sistemática e criativamente, precisa investir na ética, com vistas a superar dois males intestinos de nosso crescimento econômico: aguçar a concentração da renda e destruir a natureza.

Um problema complexo é que nossas Universidades não se dedicam, como regra, à reconstrução do conhecimento. São, literalmente, um "monte de salas de aula". Os alunos comparecem apenas para assistir a aulas, tomar nota e devolver o conhecimento copiado na prova. O "provão", em vez de conduzir para o caminho do saber pensar, reforça o contexto do vestibular encardidamente reprodutivo. Isto tem muito a ver com uma concepção e uma prática obsoleta de aprendizagem, o que veremos mais abaixo. Por enquanto, é o caso realçar o quadro instrucionista típico: grande parte dos docentes não saberia produzir conhecimento próprio, mesmo que detenham por vezes titularidade legal. Não sabendo manejar conhecimento com autonomia, não conseguem obter nos alunos este efeito essencial. Com isto, não formam profissionais capazes de autonomia própria, mas porta-vozes de mensagens ultrapassadas, dificultando imensamente um dos desafios fundamentais da própria competitividade: a capacidadepermanente de continuar aprendendo. A importância desta capacidade deve ligar-se em primeiro lugar à cidadania, mas cabe vê-la igualmente no mercado. O mercado tipicamente competitivo não absorve profissionais reprodutivos, porque são incapazes de acompanhar o processo de inovação produtiva, sobretudo não conseguem manter-se atualizados em termos de aprendizagem permanente. Neste sentido, a Universidade tende a formar profissionais ultrapassados e obsoletos.

É preciso, por isso, discutir hoje o papel da pesquisa, tanto como princípio científico, quando como princípio educativo, ao lado da elaboração própria (Demo, 2001a). Como regra, não buscamos forjar um pesquisador profissional, mas um profissional pesquisador, ou seja, que sabe usar a pesquisa como expediente permanente de aprendizagem e atualização. Perante o conhecimento não cabe a atitude subserviente de engolir o que vem de fora, mas de fazer-se sujeito de idéias próprias, reconstruídas com mão própria. Piaget, em que pesem as críticas de estruturalismo e cognitivismo, codificou uma mensagem cristalina e certeira: conhecimento não se copia; se constrói (Becker, 2001). Ultimamente, tem desempenhado algum papel o programa do CNPq de pesquisa para os alunos (PIBIC), porque introduziu a oportunidade de os alunos participarem da reconstrução do conhecimento sob orientação dos professores. Embora seja

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programa muito seletivo, detém mensagem cristalina: aprende de verdade o aluno que pesquisa. Os outros apenas assistem a aulas.

A bem da verdade, é preciso reconhecer que, sendo nossas Universidades um fenômeno recente e imerso hoje num processo açodado de massificação, não seria viável esperar que começassem pela pesquisa. Mas deve ser viável que as Universidades percebam a necessidade urgente de mudar esta trajetória. Aí entra sobretudo o desafio da "política científica", através da qual se propõe criar um típico ambiente acadêmico marcado pela capacidade sistemática de reconstruir conhecimento. Figura central é o professor. Para começar, será mister mudar sua definição: professor não é quem dá aula, mas quem se compromete a fazer o aluno aprender. Para tanto, precisa, primeiro, saber aprender. Como veremos a seguir, não se aprende sem pesquisar e elaborar. Disto segue, contudo, que o professor precisa de condições adequadas de trabalho, sobretudo de dedicação maior. Não pode consumir-se em aulas. Ademais, com a nova legislação que exige titularidade, a tendência é inventar títulos cada vez mais baratos e facilitados, comprometendo a qualidade acadêmica da formação do professor e, por conseqüência, do aluno. Iremos descobrir rapidamente: o que faz o professor não é o título, mas seu compromisso com a aprendizagem do aluno. Cuidar todo o dia que o aluno aprenda é sua função máxima, sua razão de ser.

Um dos pontos essenciais da política científica será cuidar da qualidade docente. Ou seja, de como se admitem novos docentes, se mantêm aqueles considerados aptos, se excluem aqueles que não sabem aprender, nem conseguem que os alunos aprendam, como se promove a pesquisa, como se apóia a quem produz conhecimento próprio, como se gratifica a quem desponta como referência importante do mundo do conhecimento, como se constrói um plano de carreira, como se organiza um ambiente acadêmico que a todos envolve e contamina, e assim por diante. A idéia, nem de longe, é fazer a todos professores de tempo integral. Mas faz parte da idéia que cada curso só pode ser bem conduzido com um grupo central de docentes pesquisadores que conseguem levar os alunos a pesquisarem. Os outros docentes podem existir, em certas circunstâncias podem ser muito úteis, mas não podem ser a marca da instituição. Por outra, será mister mudar a prática curricular vigente extensiva, para atingir o que se tem chamado de "currículo intensivo". Se o currículo oferece por semestre 7 matérias digamos só pode ser abarcado pela via das aulas e apenas horizontalmente. O currículo intensivo supõe que os alunos pesquisem alguns temas verticalmente, sob orientação, reduzindo-se as aulas ao papel subserviente demandado pelo processo de pesquisa. Com isto também é possível reduzir o número de professores, tendo como contrapartida aumentar aqueles de tempo integral e pagar melhor.

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Ao mesmo tempo, os docentes precisam submeter-se a processo constante de avaliação externa, em particular sua capacidade de reconstrução do conhecimento pela via das publicações sistemáticas. No mínimo, cada docente precisa "elaborar" suas aulas, produzindo algo que possa dirigir-se um dia a uma proposta própria do curso. Embora seja óbvia a resistência, o docente precisa aceitar que, sem pesquisa e elaboração própria, não existe condição de ser professor. Não é o título que decide, mas a capacidade de reconstrução própria de conhecimento. Ao mesmo tempo, a política científica, a par de exigir este resultado, precisa garantir as condições. A rigor, uma Universidade que apenas reproduz conhecimento é dispensável, porque esta função está migrando crescentemente para as instrumentações eletrônicas, com a vantagem de serem ao vivo e a cores, e com efeitos especiais. Informar é questão eletrônica, cada vez mais. Formar é coisa de professor. Nisto é indispensável.

II. Política educacional

A qualidade formal reconstruir conhecimento precisa vir acompanhada da devida qualidade política. Pois esta é fim; aquela é meio. Caracteristicamente, o mercado aprecia apenas a qualidade formal. Promove o "saber pensar", mas pela metade, até ao ponto de saber inovar o conhecimento. Não gosta da cidadania, porque não convive bem com o espírito crítico e a busca de sociedades alternativas. A Universidade não pode pensar apenas na inserção no mercado. Carece preferir a cidadania.

Tenho discutido este desafio sob a noção de aprendizagem, entendendo a esta como horizonte reconstrutivo e político. As teorias modernas e sobretudo pós-modernas têm ressaltado com extrema insistência o caráter reconstrutivo da aprendizagem, à medida também em que se afasta a pecha de instrucionismo. A crítica ao instrucionismo parte de sua marca de fora para dentro e de cima para baixo, quer dizer, impositiva externa, tipicamente deseducativa. Sobretudo a biologia tem mostrado que os seres vivos através do fenômeno da autopoiese para Maturana são caracterizados por postura de adaptação ativa, não lhes cabendo a posição de receptores apenas manipulados. Do "ponto de vista do observador", na argumentação de Maturana (Maturana/Varela, 1994), não é a realidade externa que se impõe, provocando no cérebro nada mais que uma "representação" copiada, mas é o cérebro que seleciona o que pode captar e

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perceber. Determinado evolucionariamente, não vê tudo, mas o que o trajeto evolucionário o preparou para ver. Seria, assim, impossível "instruir" um ser vivo. Varela (et alii, 1997) é menos determinista, e, através do conceito de "enação", busca um equilíbrio entre a função seletiva e padronizadora do cérebro e a realidade externa, ainda que predomine, em última instância sempre, a atividade cerebral.

Outros autores apontam para os saltos evolucionários, que ultrapassam muito a simples "replicação", como é caso do surgimento da vida. Edelman/Tononi (2000), estudando a consciência e o cérebro, destacam a propriedade surpreendente de "a matéria produzir imaginação". Que a matéria (o pedaço de carne que é o cérebro) produza imaginação é algo incrivelmente reconstrutivo: a matéria produz algo que parece ir muito além de si mesma. Da forma similar, a aprendizagem também é fenômeno reconstrutivo, não linear, criativo naturalmente. Usando a argumentação mais conhecida das ciências humanas de teor hermenêutico, o conhecimento só pode entrar na cabeça pela via da interpretação pessoal e culturalmente marcada. Por mais que se queira impor idéias aos outros, os outros inevitavelmente as interpretam a seu modo. Por isso, toda cultura é própria, por mais que possa ser imposta. Neste sentido, somos criativos por natureza, e, para quem acredita que a natureza é dialética, complexa, não-linear, como Prigogine (1996; Prigogine/Stengers, 1997) por exemplo, esta criatividade faz parte da própria natureza.

Entretanto, a aprendizagem não é apenas um fenômeno reconstrutivo. É igualmente um fenômeno político. A politicidade de Paulo Freire volta à tona, agora com outros argumentos para além da pedagogia. Como se viu, a própria biologia sugere este entendimento, à medida que o ser vivo tem como marca, para além de outras, saber arranjar-se diante do meio ambiente de modo relativamente criativo: constrói espaço próprio, detém certa margem de manobra, forja perspectivas de evolução própria. Com efeito, aprender é constituir um sujeito capaz de história própria. Não pode ser jogo de objetos, ou jogo de um sujeito que manipula objetos. A politicidade aponta para a capacidade de interferir na história e na realidade, de tal sorte que delas se possa ser sujeito. O instrumento principal para tanto é o manejo do conhecimento, porque este, na história da espécie humana, foi sempre o meio que marcou as intervenções mais criativas, embora nem sempre éticas. Por isso, a aprendizagem está tão vinculada ao conhecimento. Este representa, no ser humano, sua capacidade de revolta e confronto, não aceitando o que está dado. Quer ser dono de seu destino. De um lado, aponta para a capacidade emancipatória, mas, de outro, para as peripécias da colonização imbecilizante.

A aprendizagem apresenta ainda outras marcas centrais, com destaque para a questão emocional e das inteligências múltiplas, mas que aqui não levarei em frente, por ser mais familiar.

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À sombra das duas características reconstrutiva e política, no entanto, é possível fazer uma crítica contundente à didática prevalecente na Universidade, completando a argumentação acima em torno do desafio de reconstruir conhecimento. A necessidade de pesquisar e elaborar comparece com a devida força, já que sem isto não se pode falar de aprendizagem. Acresce a face política: saber aprender, argumentar, contestar, pensar não significa apenas exercício lógico, mas exercício de autonomia, habilidade de intervenção alternativa, capacidade de mudar a história e a realidade. É fundamental perceber o lado pedagógico da pesquisa e da elaboração própria. Por exemplo, uma coisa é preparar o aluno para poder ocupar um emprego, outra é prepará-lo para criar trabalho com autonomia. Na primeira postura, o profissional espera a oportunidade, enquanto na segundo é levado a criá-la. Não se pode, por certo, banalizar esta idéia, como se o mercado fosse passível de modelagem livre, mas o importante é o aspecto educativo emancipatório. A própria ONU, através de seu Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), tem elaborado uma proposta de desenvolvimento calcada na noção de oportunidade, com realce maior para a educação (PNUD, 1900...2001). Com efeito, educação não só é uma instrumentação pertinente para fazer oportunidade, mas sobretudo é o meio para a pessoa "fazer-se" oportunidade (Demo, 2000a).

Ao mesmo tempo, podemos combinar melhor qualidade formal e política, traduzindo o saber pensar também com relação à autonomia cidadã (Demo, 2000). Conhecimento é meio. Cidadania é fim. Com isso, torna-se mais viável aproximar-se da ética do conhecimento. Em termos práticos, será então mister analisar criticamente a didática universitária em uso, teimosamente instrucionista. Os alunos são submetidos a processos de reprodução sistemática, gastando grande parte de seu tempo sobretudo quando se trata de alunos que estudam à noite em escutar aulas envelhecidas, tomando notas surradas e fazendo provas memorizadas. É forte a crença entre nós de que o aluno somente aprende se escutar aula. A própria Lei de Diretrizes e Bases (LDB) consagrou este princípio instrucionista, aumento os dias letivos para 200. Aumentaram-se os dias letivos, não a aprendizagem. À revelia de uma montanha de teoria contrária, a didática acadêmica persiste no instrucionismo mais barato, revelando um enorme efeito do poder: a aula como instrumento de força por parte do professor.

Não se trata de acabar com a aula. Trata-se apenas de colocá-la em seu devido lugar: como didática supletiva, jamais como centro da aprendizagem. A aula tem a "vantagem" de evitar que o aluno pense por si, construa conhecimento próprio, argumente com autonomia, elabore com mão própria. Persiste entre nós como função básica do professor "tirar dúvida", quando, na verdade, as teorias da aprendizagem reconstrutivas políticas indicam que papel do professor é fazer dúvidas, até que o aluno entenda que ele mesmo as deve resolver e sobretudo com elas criativamente conviver. Dizia Piaget, a seu modo: sempre que tiramos uma dúvida da criança,

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evitamos que ela aprenda. O espírito do vestibular assola a Universidade, reeditado agora pelo "provão". Imagina-se também que a única maneira de avaliar seja pela prova, quando seria muito mais produtivo e digno colher material de elaboração própria durante todo o semestre, através da pesquisa sistemática. Não se poderia aceitar notas definitivas durante o percurso, porque a avaliação só pode servir para garantir a aprendizagem, ou seja, o que o aluno faz mal ou errado deveria sempre poder refazer. Afinal, esta é a função do professor: garantir que seu aluno aprenda. Para isso, precisa avaliar sempre (Perrenoud, 1999).

Papel estratégico ocupa, nesta discussão, o curso de educação (pedagogia), porque compete a ele definir e praticar a aprendizagem mais pertinente possível. Geral faz exatamente o contrário, mas isto apenas mostra a necessidade urgente de mudança drástica. O curso, em si, é o mais fundamental da Universidade hoje, porque poderia sinalizar de qualidade formal e política se trata. Ao mesmo tempo, todo professor precisa ser pedagogo, no sentido de assumir, para além da capacidade de reconstruir conhecimento, o compromisso com a aprendizagem do aluno. Trata-se menos de táticas de motivação como quer a "qualidade total", por mais que estas possam ser pertinentes, do que da habilidade de "formar". O professor é figura essencial da "formação" do aluno, através de processos bem conduzidos de aprendizagem reconstrutiva política. Com isso, formamos não só profissionais de bom porte, mas principalmente cidadãos que possam mudar nossa sociedade e economia.

Por outra, o curso de educação deveria orientar a Universidade nos caminhos já inevitáveis da teleducação. O futuro da educação está na teleducação: de um lado, o acesso à informação será cada vez mais eletrônico; de outro, a presença virtual vai se impor, embora jamais substitua a presença física. Será difícil, para não dizer impossível, no futuro próximo, convencer os alunos que realmente querem aprender a comparecerem todos os dias para "escutar aula". Como diz Tapscott (1998), falando da "geração digital", esta vai se posicionar frontalmente contra o instrucionismo, buscando autêntica aprendizagem através da pesquisa e da elaboração própria. Talvez ele exagere nesta sede de aprender, mas aponta para um risco cada vez maior para os docentes: encontrar alunos melhor informados, por conta do trânsito virtual e vê-los cada vez mais desmotivados frente às aulas. Talvez seja verdade: a Universidade não vai mudar pelos professores. São muito conservadores. Vai mudar possivelmente pela reação dos alunos que querem aprender, quando não mais nos suportarão. As funções do professor parecem ser,cada dia mais, duas: orientar e avaliar. No meio disto há sempre lugar para aula, mas apenas supletivamente.

Todo curso deveria adotar a pesquisa como "ambiente" da aprendizagem, do início ao fim. Não basta apenas ter um ou outro semestre dedicado à pesquisa (métodos e técnicas, e

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metodologia científica), até porque geralmente se fazem tais semestres sobre pesquisa sem pesquisar: conhecem-se os métodos sem nunca os usar concretamente. Nesse sentido, é sempre útil começar o 1o semestre de forma propedêutica, para que os alunos aprendam a aprender e a pensar, antes de pretender qualquer outra coisa. Este 1o semestre poderia ser comum a todos os cursos, sem exceção, tendo como objetivo central a pesquisa e a elaboração própria como metodologia fundamental da aprendizagem, nas suas faces formal e política. No fundo, a política científica e educacional servem para consolidar este "ambiente" reconstrutivo político nos professores e alunos.

Para concluir

Ser professor hoje está mudando de rota, visivelmente. Duas virtudes comparecem cada vez mais: reconstruir conhecimento e educar novas gerações. Estes papéis tornam o professor figura absolutamente estratégica do desenvolvimento. Segue daí que é mister, em qualquer política científica e educacional da Universidade, cuidar do professor. Geralmente é apenas alvo de crítica, por mais que a mereç

am (DEMO, 2000b). Deveria ser igualmente alvo de todo cuidado que merece a figura central da qualidade da oferta. Precisa formar-se bem, manter-se sempre bem formado, reconstruir conhecimento com criatividade, mas precisa igualmente de remuneração e condições de trabalho adequadas. A exigência cada vez mais pesada que recai sobre ele precisa ser correspondida com sua valorização pertinente.

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UNIVERSIDADE E APRENDIZAGEM

1. Mandato essencial:Conhecimento & Educação

2. Aprender a aprender3. Sociedade do conhecimento

4. Economia intensiva deconhecimento

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APRENDIZAGEM

1. Reconstrutiva

2. Política

3. Emocional

4. Professor

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CONDIÇÕES DE APRENDIZAGEM

1. Pesquisa como ambiente2. Elaboração própria

3. Avaliação para garantir4. Currículo intensivo

5. Formação da autonomia

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INSTRUCIONISMOINSTRUCIONISMO

1. Instrução, ensino, treinamento

2. Aula e prova

3. 200 dias letivos

4. Currículo extensivo

5. Domínio reprodutivo de conteúdos

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ARGUMENTOS RECONSTRUTIVOS

1. CIÊNCIAS SOCIAIS:a) filosofiab) psicologiac) psico-sociologiad) psicanálisee) lingüística

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ARGUMENTOS RECONSTRUTIVOS

2. CIÊNCIAS NATURAIS:a) biologiab) físicac) matemáticad) inteligência artificiale) interdisciplinar

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REDEFINIR O PROFESSOR

1. Profissional da aprendizagem

2. Fazer o aluno aprender3. Reconstruir conhecimento

4. Educar novas gerações5. Saber pensar6. Saber intervir

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POBREZA POLÍTICA

1. Ignorância cultivada2. História própria

3. Oportunidade/emancipação4. Vida e aprendizagem

5. Educação permanente

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POLÍTICA CIENTÍFICA

1. Reconstruir conhecimento

2. Pesquisa = princípio

científico e educativo

3. Iniciação científica

4. Qualidade formal

5. Produção científica própria

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POLÍTICA EDUCACIONAL

1. Politicidade2. Qualidade política

3. Saber pensar e intervir4. Ética do conhecimento5. Alternativas históricas

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DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

1. Conhecimento colonizador

2. Concentração de renda

3. Destruição da natureza

4. Combate à pobreza política

5. Cidadania e autonomia

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TECNOLOGIA EM EDUCAÇÃO

1. Teleducação e presença virtual

2. Desafio da aprendizagem

3. Informação e formação

4. Nova mídia e aprendizagem

5. Potencialidades e abusos

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UNIVERSIDADE E FUTURO

1. Educar o conhecimento2. Cidadania acima do mercado

3. Patrimônio humano4. Lugar da aprendizagem5. Lugar das alternativas