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A Guerra do Contestado: elaborações e transformações na Memória e Patrimônio Cultural FÁBIO ANDREAS RICHTER 1 No ano de 2012, ocorreu o centenário do Combate do Irani, considerado o início daquela que ficou conhecida como a Guerra do Contestado. O Combate, ocorrido em 22 de outubro de 1912, envolveu, de um lado, as forças do Regimento de Segurança do estado do Paraná e, do outro, sertanejos que haviam se reunido em torno da figura do “monge” José Maria. O Combate foi resultado da fuga de José Maria para a região do Irani após ser hostilizado pelas autoridades catarinenses. Na época, essa região era um território em litígio entre os estados de Santa Catarina e Paraná. O governo do estado do Paraná havia interpretado o movimento de José Maria como uma manobra do estado catarinense, que, ao enxotar as hordas do monge para o território que considerava paranaense, visava provocar a intervenção do governo federal na região, o que poderia levar à entrega do território aos catarinenses, conforme sentença proferida pelo Supremo Tribunal Federal, mas nunca executada (MACHADO, 2001). Durante o violento combate, acabaram morrendo tanto José Maria como o comandante do Regimento de Segurança do Paraná, o Coronel João Gualberto Gomes de Sá. A personalidade de José Maria, que até então era somente tido como um curandeiro eficaz e mesmo milagroso, acabaria sofrendo um processo de reelaboração por parte dos sertanejos, que o transformariam num monge que retornaria junto com o “exército encantado” chefiado por São Sebastião, um ano após o combate do Irani (MACHADO, 2001:179). Esse processo de “reencantamento do mundo” resultaria no surgimento de instituições místicas e sociais novas, que dariam coesão aos seguidores de José Maria (MONTEIRO apud MACHADO, 2001:185). 1 Historiador da Fundação Catarinense de Cultura. Mestre em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Graduado em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

A Guerra do Contestado: elaborações e transformações na ... · Base (CEBS), pastorais operárias, juventude da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e do Partido dos Trabalhadores

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A Guerra do Contestado: elaborações e transformações na Memória e Patrimônio

Cultural

FÁBIO ANDREAS RICHTER1

No ano de 2012, ocorreu o centenário do Combate do Irani, considerado o início daquela que

ficou conhecida como a Guerra do Contestado. O Combate, ocorrido em 22 de outubro de

1912, envolveu, de um lado, as forças do Regimento de Segurança do estado do Paraná e, do

outro, sertanejos que haviam se reunido em torno da figura do “monge” José Maria.

O Combate foi resultado da fuga de José Maria para a região do Irani após ser hostilizado

pelas autoridades catarinenses. Na época, essa região era um território em litígio entre os

estados de Santa Catarina e Paraná.

O governo do estado do Paraná havia interpretado o movimento de José Maria como uma

manobra do estado catarinense, que, ao enxotar as hordas do monge para o território que

considerava paranaense, visava provocar a intervenção do governo federal na região, o que

poderia levar à entrega do território aos catarinenses, conforme sentença proferida pelo

Supremo Tribunal Federal, mas nunca executada (MACHADO, 2001).

Durante o violento combate, acabaram morrendo tanto José Maria como o comandante do

Regimento de Segurança do Paraná, o Coronel João Gualberto Gomes de Sá.

A personalidade de José Maria, que até então era somente tido como um curandeiro eficaz e

mesmo milagroso, acabaria sofrendo um processo de reelaboração por parte dos sertanejos,

que o transformariam num monge que retornaria junto com o “exército encantado” chefiado

por São Sebastião, um ano após o combate do Irani (MACHADO, 2001:179). Esse processo

de “reencantamento do mundo” resultaria no surgimento de instituições místicas e sociais

novas, que dariam coesão aos seguidores de José Maria (MONTEIRO apud MACHADO,

2001:185).

1 Historiador da Fundação Catarinense de Cultura. Mestre em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Graduado em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

2

Uma das consequências desse processo de reelaboração mística foi a progressiva formação de

redutos ou cidades santas, onde os seguidores do monge começaram a se agrupar e

desenvolver suas crenças, desafiando as autoridades governamentais. Esse processo seria

influenciado pela devoção à figura do Monge João Maria, que era venerado pelos sertanejos.

Paralelamente, as autoridades governamentais atacaram os sertanejos, procurando dispersá-

los, por meio da realização de expedições militares. A disposição dos sertanejos em não só

enfrentar os ataques, como em partir para a ofensiva contra aqueles que consideravam seus

inimigos, resultou numa situação de guerra, repleta de violência, com os rebeldes dominando

extensas áreas do estado, o que se prolongou oficialmente até o ano de 1916, quando o último

líder dos sertanejos foi capturado.

Figura 01 – Localização Geográfica Área Contestado – Palco da Guerra (FRAGA, 2006:30)

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Figura 02 – Território sob domínio rebelde em outubro de 1914 (MACHADO, 2001:378)

O período após 1916 foi de intensa repressão contra os remanescentes que participaram do

movimento, como uma forma de controlar as populações da região e reestabelecer a ordem

anteriormente existente.

Contestado e suas percepções

As primeiras obras publicadas sobre o evento foram relatos de militares que participaram da

campanha. Os oficiais do exército, nos relatos que produziram sobre os acontecimentos no

Contestado, buscaram anular o discurso do outro, argumentando que, pelo fato de terem sido

testemunhas oculares do conflito, o que relatavam era um retrato fiel dos acontecimentos nos

sertões catarinense e paranaense (RODRIGUES, 2001).

A atuação na guerra do Contestado foi apresentada por tenentes, coronéis e generais como

uma missão que visava pacificar a região, livrando dessa maneira o país de males como o

fanatismo, a ignorância e o banditismo, sendo igualmente uma forma de os jovens oficiais da

época expor seus projetos e anseios relacionados a uma campanha de modernização do

exército (RODRIGUES, 2001). Os sertanejos acabaram estigmatizados por essas

características – fanatismo, ignorância e banditismo –, que passaram a fazer parte da versão

oficial dos acontecimentos e da memória sobre os mesmos.

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A partir da década de 1950, trabalhos acadêmicos começaram a avaliar os sertanejos do ponto

de vista antropológico, tendo a alteridade ganhado novos contornos, não situando mais o

outro na esfera do inculto ou do incivilizado, sendo que a noção de barbárie, tão comum nas

explicações sobre os iletrados no início do século, perdeu seu sentido anterior, podendo ser

utilizada para designar outros grupos, já não tidos como tão incultos (DALFRÉ, 2004).

Por outro lado, durante as últimas décadas do século XX, as preocupações com o Contestado

levaram a iniciativas que extrapolavam a área da escrita sobre os acontecimentos. A memória

sobre os acontecimentos passou também a ser expressa através de eventos e pela produção de

lugares onde poderia, nos dizeres de Pierre Nora (1993:12), se cristalizar.

As novas preocupações com a memória dos sertanejos vencidos resultariam em uma

progressiva requalificação de posições frente ao discurso oficial inicialmente professado

durante e logo após a guerra.

Dentre a multiplicidade de iniciativas desenvolvidas tendo o Contestado como tema, é

possível assinalar algumas relacionadas à atuação estatal, as quais possibilitam entender em

parte a nova sensibilidade para esse tema e seus desdobramentos na prática do patrimônio

cultural.

O silêncio por parte do governo durante décadas a respeito do Contestado seria quebrado por

ações que buscariam não só enaltecer os sertanejos, ou caboclos, numa total mudança de

postura, mas também estabelecer uma série de elementos que solidificassem uma memória

dos acontecimentos, além de criar e manter legados ou patrimônios na forma de datas

comemorativas, símbolos e locais de apresentação ou exposição do tema Contestado.

Dentre as iniciativas, existem aquelas voltadas à região do Irani, onde ocorreu o combate que

resultou na morte de José Maria e do Coronel João Gualberto em outubro de 1916, evento da

guerra que primeiramente alcançaria o patamar de centenário.

A localidade do Irani, apesar de ter sido palco de um acontecimento tido como “fundador” do

conflito, esteve fora da área que se configurou no território de influência direta dos redutos

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rebeldes. Todavia, passou a ter o seu caráter simbólico trabalhado como alvo de investimentos

de atores cujas articulações resultaram em diversas iniciativas, incluindo na área

governamental estadual.

Entre reelaborações e novas perspectivas

As articulações em torno de Irani concentraram-se inicialmente em propostas voltadas ao

local onde, além de ter ocorrido o combate, estariam enterrados José Maria, agora elevado à

categoria de monge, e os demais soldados e sertanejos que morreram no evento.

Uma análise realizada na documentação do órgão executivo do governo catarinense para a

cultura, a Fundação Catarinense de Cultura (ARQUIVO, s.d.), evidenciou que houve, entre os

anos 1979 e 1983, uma troca de correspondências com interlocutores na região de Irani, além

de relatórios de atividades em que há uma forte preocupação em desenvolver formas de

apropriação do local onde ocorreu o combate e transformá-lo em um espaço de memória

sobre o Contestado, incluindo o seu tombamento como patrimônio cultural do estado.

Dentre as propostas iniciais, houve a da criação, em 1980, do Museu do Irani, que deveria:

conservar e transmitir às gerações futuras as tradições ligadas aos fatos históricos

que marcaram toda uma região, através de apresentações artístico-culturais e do

recolhimento de fatos e documentos para o público e os pesquisadores do episódio

conhecido como “Guerra do Contestado” (RELATÓRIO, 1980: 1).

Para viabilizar a iniciativa, já havia disponível uma área de 1.000m2, doada para a construção

do museu, em um sítio próximo ao cemitério dos mortos no Combate, existindo igualmente

interesse da Fundação Universitária de Joaçaba/SC em ser mantenedora do museu, fato que

iria ao encontro da proposta de formação de um campo de estudos sobre o Contestado na

região (RELATÓRIO, 1980:2).

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A proposta seguinte já contemplava a apropriação do espaço do Combate do Irani por meio da

construção, no local, de uma vila de aproximadamente 50 casas, para abrigar uma população

menos favorecida, e que assumiria o papel de “Cidade Santa” (RELATÓRIO, 1983:2),

evocando, dessa forma, os redutos criados pelos sertanejos durante a guerra entre 1912 e

1916. Esse empreendimento acabou sendo descartado em virtude da não adequação do terreno

ao porte das obras de construção pretendidas, além dos danos que essas obras acarretariam ao

sítio histórico.

As atenções dadas ao tema do Contestado pelo governo estadual, que procurava transformá-lo

em símbolo patrimonial cultural, assumiriam uma dimensão maior a partir de 1982. O

candidato ao governo estadual, Esperidião Amin Helou Filho (PDS), utilizaria a imagem do

Contestado como parte de sua campanha eleitoral em 1982, em que a “luta dos pequenos”

(entre os quais estariam os sertanejos que combateram no Contestado) simbolizaria a força

dos catarinenses na busca por justiça e pela defesa do território catarinense (LAZARIN,

2004:115).

Para além de uma apropriação pelo discurso eleitoral, ocorreu, após a eleição de Amin, todo

um investimento no tema, que passou pela elaboração de estudos, publicações, vídeos, além

da construção e implantação de marcos físicos (monumentos e placas) relacionados ao

Contestado em lugares onde haviam se desenvolvido acontecimentos significativos para o

evento, a exemplos de combates e a construção de redutos ou cidades santas.

Figura 03 – Monumento construído em Irani (CAÇADORENSE, 2013)

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Por outro lado, as iniciativas do governo estadual, naquele momento, davam-se em um

contexto onde o Contestado também era foco da atenção de outros grupos sociais. Por

exemplo, a região de Taquaruçu, atual distrito de Fraiburgo/SC, recebeu, em 1986, a Primeira

Romaria da Terra.

A região de Taquaruçu foi o local de onde José Maria saiu em fuga para Irani, para onde

retornaram os sobreviventes do Combate e onde foi construído, a partir de 1913, o primeiro

reduto ou cidade santa dos sertanejos.

A Primeira Romaria da Terra em Santa Catarina ocorreu em 14 de setembro de 1986,

reunindo cerca de 20.000 pessoas em Taquaruçu, com grupos das Comunidades Eclesiais de

Base (CEBS), pastorais operárias, juventude da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e do

Partido dos Trabalhadores (PT), além do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), com os

declarados objetivos de celebrar a caminhada de luta e de fé do homem do campo e da cidade,

homenagear a luta dos caboclos do Contestado, demonstrar a força da organização e conhecer

a situação do homem do campo (FLORES, 1996:208).

Os romeiros carregaram, durante o evento, uma cruz de cedro, com quatro metros de altura,

tornada símbolo da resistência e da luta pela terra, cruz essa que se reportava àquelas

plantadas pelos monges João Maria de Agustine e João Maria de Jesus2, rememorando, dessa

forma, o movimento do Contestado (FLORES, 1996, p. 208).

2 Foram dois peregrinos que percorreram a região entre os séculos XIX e XX, passando a ser cultuados pelos sertanejos.

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Figura 04 – Cartaz da Primeira Romaria da Terra com a Cruz de Cedro ao centro (DIOCESE DE CHAPECÓ,

2013)

O Contestado era, naquele momento, apropriado por grupos com diferentes perspectivas de

atuação, os quais faziam uso de bens simbólicos presentes na memória das populações que

tiveram alguma forma de proximidade com o conflito de 1912-1916.

A atenção e investimento por parte do governo estadual durante a década de 1980 acabariam

diminuindo, mas haveria um novo recrudescimento durante o início dos anos 2000, em que

tomaria corpo a ideia da construção de um Parque Temático do Contestado em Irani, no local

do Combate de 1912. O Parque seria construído de forma a abranger o espaço tido como

palco do enfrentamento entre soldados e sertanejos, incluindo os locais onde estariam

sepultados o “Monge” José Maria e os demais mortos no combate.

O projeto, apresentado no ano de 2001, previa a construção de diversas estruturas no terreno,

como uma recepção que disponibilizaria informações turísticas, uma Casa da Memória, uma

Igreja (Capela do Monge), dois terminais de trem e linha férrea para deslocamentos dentro do

parque, redomas de policarbonato cobrindo o local do combate, o túmulo do monge e a vala

dos 21 (onde foram sepultados os outros mortos do combate), além de uma Cidade Santa

construída no formato de cruz, com 24 edificações (PROJETO, 2001).

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O Parque contaria também com um anfiteatro de 645m2 para trabalhar luz, imagens e som,

com arquibancada para 1.200 lugares integrada à paisagem de um morro fronteiro ao palco,

além de camarins que ficariam junto ao palco em uma ilha artificial em um lago.

O embasamento histórico-filosófico apresentado no documento do projeto do Parque

justificava a necessidade de sua construção pelo “resgate” que Santa Catarina faria da

verdadeira imagem, som e luz do “povo do Contestado”, procurando saldar a enorme dívida

que haveria com aqueles que eram considerados injustiçados.

A proposta do Projeto Arquitetônico do Parque previa referenciais de cunho histórico da

“epopéia do Contestado”, assim como um simbolismo relacionado ao caboclo, tido como “o

povo” desse evento, e que possuía caráter simples, puro, valente, tendo vivido uma “epopéia”

na sua luta pela justiça social.

O projeto foi construído de forma articulada entre a prefeitura municipal de Irani e o governo

estadual, sob a gestão do novamente governador Esperidião Amin Helou Filho (1999-2003),

tendo a Fundação Memória Viva do Contestado como coordenadora.

O governador Amin, segundo sua assessoria, tinha interesse especial pelo assunto, a ponto de

eleger o Homem do Contestado como símbolo Catarinense, sendo o Parque uma forma de

marcar “de forma indelével o episódio” do Contestado, desenvolvendo um enredo que se

igualaria àquele apresentado nas Reduções Jesuíticas no Rio Grande do Sul (PEDRINI,

2001:04).

O Parque chegaria a ser inaugurado em outubro de 2001, em uma festa onde teriam

comparecido, segundo a imprensa, cerca de 5.000 pessoas (A NOTICIA, 2001).

Todavia, a maior parte de suas estruturas não foram efetivadas, existindo atualmente, no

terreno destinado ao parque, um pequeno museu, o antigo cemitério da região, trilhas com

plaquetas indicativas e informativas, além das ruínas do anfiteatro no lago artificial e suas

arquibancadas em meio às matas da encosta fronteira a ele.

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Figura 05 – Anfiteatro do Parque Temático do Contestado, Irani-SC, visto das arquibancadas (ESCOLA

MUNICIPAL VIVER E CONHECER, 2013)

Por outro lado, a preocupação do governo estadual catarinense, no início dos anos 2000, em

afirmar o caráter simbólico e patrimonial do Contestado, teria ainda outros direcionamentos,

como a promulgação de leis específicas para essa finalidade.

A Lei nº 12.060, de 18 de dezembro de 2001, reconheceu a bandeira do Contestado como

símbolo regional do Estado de Santa Catarina, sendo que essa bandeira poderia ser hasteada

em eventos oficiais do Estado. A bandeira em questão foi aquela utilizada como símbolo

pelos sertanejos em suas lutas contra as forças governamentais no conflito entre 1912-1916,

sendo composta por uma cruz verde sob um fundo branco.

Figura 06 – Reprodução de uma bandeira do Contestado (HORA ONLINE.COM, 2013)

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Por sua vez, a Lei nº 12.143, de 05 de abril de 2002, instituiria a Semana do Contestado, que

deveria ser comemorada anualmente entre os dias 20 e 27 de outubro, devendo o Poder

Legislativo Estadual desenvolver debates e conferências, além de “comemorações cívicas e

históricas” na rede escolar pública e particular.

O tema Contestado não apresentaria novamente, por parte do governo estadual, uma agenda

tão repleta de investimentos em elaborações simbólicas que procurassem levar a sua

impressão na materialidade e no cotidiano de forma tão intensa.

As comemorações oficiais do Centenário do início da Guerra do Contestado ocorridas em

outubro de 2012 procuraram lembrar o evento, mas sem o investimento em novos marcos de

caráter simbólico.

Um exemplo foi a exposição intitulada Guerra do Contestado: 100 Anos de Memórias e

Narrativas, evento oficial das comemorações, apresentada no Museu Histórico de Santa

Catarina em Florianópolis/SC, instituição administrada pela Fundação Catarinense de Cultura.

A exposição, que irá percorrer o estado durante o ano de 2013, procurou problematizar as

diversas percepções construídas em diferentes segmentos da sociedade (exercito, intelectuais,

imprensa, igreja) com relação ao evento, buscando não desqualificar, ou mesmo enaltecer as

partes envolvidas no conflito de 1912-1916, e sim apresentar as diferentes visões existentes e

construídas ao longo do tempo sobre o conflito e seus protagonistas.

Considerações finais

As elaborações traçadas sobre a memória dos acontecimentos são fundamentais no processo

de construção do patrimônio cultural de determinadas coletividades. Tais elaborações

decorrem frequentemente da reconfiguração das percepções sobre a memória existente sobre

questões presentes em contextos sociais específicos. A construção, o estabelecimento e o

reconhecimento de bens culturais patrimoniais estão intimamente ligados a essa dinâmica.

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A Guerra do Contestado representou um evento de grandes implicações na época em que

ocorreu, afetando de forma direta a economia, a sociedade e a política dos estados de Santa

Catarina e do Paraná, assim como a do próprio Brasil.

A memória de um evento desse porte não poderia deixar de ser objeto de atenção das elites

dirigentes desses estados, pois, como observou Jacques LeGoff (2003:422) “tornar-se

senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos

grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas.”

Os protagonistas e vencidos da Guerra, os sertanejos, acabaram transitando de uma

perspectiva que os apresentava, na memória oficial do conflito, primeiramente como

ignorantes, fanáticos e bandidos, para a condição de serem enaltecidos como homens bravos e

puros que lutaram pela justiça social. Semelhante reelaboração não só os tornou dignos de

serem lembrados em monumentos, mas os alçou à condição de símbolo da gente do estado de

Santa Catarina.

Apesar da necessidade de se levar em conta o estímulo que possa ter decorrido de uma

situação de disputa entre governo e movimentos sociais durante a década de 1980 sobre os

usos da memória dos sertanejos do Contestado, também é preciso ter em mente a progressiva

importância dada à memória a partir da disposição das sociedades do período considerando a

questão da temporalidade.

A emergência da centralidade da memória nas preocupações culturais e políticas das

sociedades ocidentais ocorreu com o deslocamento, a partir da década de 1980, do foco de

atenção dessas sociedades do futuro para o passado, além da emergência de discursos de

memória de um novo tipo na busca de história alternativas e revisionismos (HUYSSEM,

2000: 9).

O tratamento dado ao passado está ligado àquilo que François Hartog (2006:263) sintetizou

como regime de historicidade, ou seja, como a sociedade trata o seu passado, os modos de

relação estabelecidos com o tempo, as formas de experimentar e as maneiras de ser no tempo.

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A nova ótica atribuída ao tema Contestado acaba, em certa medida, sendo uma repercussão

dessa mudança na perspectiva temporal, que traz à tona anseios contemporâneos da sociedade

e reposiciona o sentido da experiência sertaneja, com reflexos no tratamento a ela dispensado

até mesmo no campo do patrimônio cultural e nas ações relacionadas ao governo.

O Brasil contaria ainda com as perspectivas decorrentes do progressivo processo de

redemocratização pelo qual passaria o país, a partir de meados da década de 1980, fato que

resultaria igualmente na tentativa de considerar e mesmo evidenciar segmentos sociais

identificados com as camadas populares.

A memória sobre o Contestado passou, destarte, por um processo de reelaboração, através da

incorporação de novos interesses e sob influência de outras sensibilidades. A transformação

de sertanejos tidos como ignorantes, fanáticos e violentos em exemplos de bravura, pureza e

luta pela justiça social assinala o quanto mudaram os interesses e as sensibilidades sobre o

tema.

A disposição em realizar um conjunto de iniciativas visando explicitar, ou mesmo manter essa

nova percepção sobre o tema do Contestado, por meio de criações simbólicas, locais de

memória ou de patrimônio, assinala não só o quanto essas iniciativas tiveram respaldo e

atenção em determinados momentos, mas também o quanto elas repercutem sensibilidades e

expectativas do conjunto da sociedade, resultando do deslocando de conceitos de memória e

de patrimônio e, ao mesmo tempo, influenciando a prática desses campos.

REFERÊNCIAS

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diferentes sujeitos na historiografia do Contestado (1916-2003). Florianópolis, 2005. 147 f.

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– Departamento de História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade

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(Doutorado) – Programa de Pós-graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento,

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Patrimônio Cultural. Série: Diversos. Sub-série: Projeto contestado. Assunto: Levantamento;

Marcos e pesquisa; Relatórios; Documentação do Parque Temático do Contestado Irani.

Caixa 05.

RELATÓRIO de visita ao Sítio Histórico do Contestado – Irani em 16, 17 e 18 de agosto de

1983. Arquivo da Diretoria de Patrimônio Cultural. Série: Diversos. Sub-série: Projeto

contestado. Assunto: Levantamento; Marcos e pesquisa; Relatórios; Documentação do Parque

Temático do Contestado Irani. Caixa 05.

Jornal

PEDRINI, Nelson. Parque Temático do Contestado. O Estado, Florianópolis, 08 ago. 2001.

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<http://dahoraonline.com/index.php?ap=3&id=17>. Acesso em: 27 mar. 2013.

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