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José Paulo Paes e a inversão do hipertexto: análise do uso de metáforas visuais em Meia palavra (1973) Maurício Guilherme Silva Júnior UFMG / UNI-BH Índice 1 Introdução 1 2 O mínimo como caminho 4 3 Jogos lúdicos 8 4 A inversão hipertextual de Paes 11 5 Os poemas: análise concisa 13 6 Conclusão 15 7 Referências 15 RESUMO: No referido artigo, analisou-se o uso de metáforas visuais no livro Meia palavra – cívicas, eróticas e metafísicas (1973), do poeta paulista José Paulo Paes (1926- 1998). Além da reconstituição de car- acterísticas centrais à poética do escritor, confrontaram-se os conceitos de “hiper- texto” e “transleituras” – cunhados, respec- tivamente, por Pierre Lévy e pelo próprio J.P.Paes – para análise de três poemas visuais do livro aqui abordado. Palavras-chave: José Paulo Paes. Mod- ernismo. Poesia visual. Hipertexto. 1 Introdução Para aquele jovem literato em formação, e também estudante de Química na Curitiba dos anos 1940, o ofício de poeta resumia- se ao talento do amigo paranaense Glauco Flores de Sá Brito. A aguçada atenção sobre a atividade literária do autor de O marinheiro (1947), primeiro livro de poe- mas lançado por Brito, estimulara um cu- rioso José Paulo Paes a desvendar não só o que havia de especial na lírica espontânea do “camarada de lutas literárias” (PAES, 1997, p. 182), mas também de enig- mático na produção de badalados autores modernistas. “Grande alquimista” na in- fância, quando produzia poções mágicas no quartinho-laboratório construído pelo pai no quintal de casa, Paes partiria, não racional- mente, em busca da “pedra filosofal” de sua própria poética futura: a arte de transformar, na mais simples e fina concisão, a experiên- cia cotidiana em poesia. José Paulo enxergava Glauco como poeta “no sentido mais forte da palavra” (PAES, 1997, p. 182). Em ensaio dedicado a Brito, escrito já na década de 1990, Paes ex- plica a capacidade lírica do colega curitibano através da distinção entre o criador autên-

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José Paulo Paes e a inversão do hipertexto: análise douso de metáforas visuais em Meia palavra (1973)

Maurício Guilherme Silva JúniorUFMG / UNI-BH

Índice1 Introdução 12 O mínimo como caminho 43 Jogos lúdicos 84 A inversão hipertextual de Paes 115 Os poemas: análise concisa 136 Conclusão 157 Referências 15

RESUMO:

No referido artigo, analisou-se o uso demetáforas visuais no livro Meia palavra– cívicas, eróticas e metafísicas (1973),do poeta paulista José Paulo Paes (1926-1998). Além da reconstituição de car-acterísticas centrais à poética do escritor,confrontaram-se os conceitos de “hiper-texto” e “transleituras” – cunhados, respec-tivamente, por Pierre Lévy e pelo próprioJ.P.Paes – para análise de três poemas visuaisdo livro aqui abordado.

Palavras-chave: José Paulo Paes. Mod-ernismo. Poesia visual. Hipertexto.

1 Introdução

Para aquele jovem literato em formação, etambém estudante de Química na Curitibados anos 1940, o ofício de poeta resumia-se ao talento do amigo paranaense GlaucoFlores de Sá Brito. A aguçada atençãosobre a atividade literária do autor de Omarinheiro (1947), primeiro livro de poe-mas lançado por Brito, estimulara um cu-rioso José Paulo Paes a desvendar não só oque havia de especial na lírica espontâneado “camarada de lutas literárias” (PAES,1997, p. 182), mas também de enig-mático na produção de badalados autoresmodernistas. “Grande alquimista” na in-fância, quando produzia poções mágicas noquartinho-laboratório construído pelo pai noquintal de casa, Paes partiria, não racional-mente, em busca da “pedra filosofal” de suaprópria poética futura: a arte de transformar,na mais simples e fina concisão, a experiên-cia cotidiana em poesia.

José Paulo enxergava Glauco como poeta“no sentido mais forte da palavra” (PAES,1997, p. 182). Em ensaio dedicado aBrito, escrito já na década de 1990, Paes ex-plica a capacidade lírica do colega curitibanoatravés da distinção entre o criador autên-

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tico, ou poeités – caso de Glauco –, e omero versejador, stixopoiós. No ofício doamigo, Paes percebe a natural espontanei-dade da poesia, que nasce repentina e facil-mente, fruto direto da inspiração, e não dainteligência.

A produção poética de Brito, pois, fazcom que o jovem paulista de Taquaritingaproponha-se a retirar de dentro do caixoteonde guardava livros as “nebulosas” obrasde poetas modernistas, adquiridas anos antesem sebos de São Paulo. Diante dos ol-hos de José Paulo Paes, os versos livresde Manuel Bandeira1, Carlos Drummond deAndrade e Murilo Mendes2 não faziam sen-

1 Manuel Bandeira foi decisivo no ingresso dePaes à prática modernista de poetizar. Em ensaio ded-icado à obra pré-modernista de Bandeira – caracteri-zada em A cinza das horas, Carnaval e O ritmo disso-luto –, o poeta de Taquaritinga lembra a própria sur-presa diante daqueles versos com certo caratér “des-viante”, que, além de ultrapassarem “a estreiteza dasjaulas epigônicas” do parnaso-simbolismo, contin-ham já o gérmen da revolução que, mais tarde, seriao modernismo. Nas palavras de Paes: “Foi lendo erelendo a obra poética de Manuel Bandeira, na antigaedição de 1944 publicada pela Americ=Edit, que con-segui chegar ao entendimento e fruição de poesiamoderna. Isso nos idos da adolescência, dois ou trêsanos depois de completado o curso ginasial, do qualsaíra eu com a anacrônica concepção de ser poesiaum tipo de linguagem obrigatoriamente rimada, met-rificada e enfeitada” (PAES. Pulmões feitos corações.In: Os perigos da poesia e outros ensaios, p.115).

2 José Paulo Paes haveria de buscar muita com-preensão em Murilo Mendes. Na visão do paulista, opoeta mineiro, instaurador e profeta de certa “bagunçatranscendente” na literatura brasileira, fora um dospoetas que mais bem incorporara – e talhara – osfundamentos da revolução de 22. A dizer de outraforma, Paes o considerava o mais apto a manter vivoo ímpeto dos modernistas, sem, em momento algum,radicalizá-lo. “Pois o que era cosmopolitismo turís-tico ou nacionalismo pitoresco na poesia do Oswalde do Mário da fase primitivista vai-se essencializar,

tido algum. Causavam-lhe perplexidade, emcada poema, a “linguagem rasteira de to-dos os dias” (PAES, 1996, p. 34) e a pre-sença de “palavras e idéias amiúde destituí-das de ligação lógica entre si” (PAES, 1996,p. 34). Tão acostumado aos preceitos par-nasianos de poesia elevada, cuja métrica eretórica destinavam-se ao elogio dos “deusesolímpicos, da temática greco-romana, doideal objetivo, descritivo, marmóreo e es-cultural” (SILVA BRITO, 1958), Paes nadacompreendia do despojamento poético dosmodernistas. Segundo o próprio poeta: “Eulia e relia Bandeira e Drummond sem lhesentender os propósitos, embora desconfiasseque tinham algum” (PAES, 1996, p. 8).

Em certo dia de insônia, acontece o “es-talo de Vieira” (PAES, 1996, p. 34). Por iro-nia, como num breve poema do próprio JoséPaulo Paes, cuja obra futura seria marcadapela apurada busca de concisão, o entendi-mento dos “propósitos” modernistas fixa-sena mente do jovem paulista num átimo: abre-se diante de Paes um novo e inquietante hor-izonte, rumo ao qual, a partir de então, dire-ciona sua nau de “poeta em embrião” (PAES,1996, p. 34).

O estalo vivenciado por Paes pode sertraduzido como o que Hugo Friedrich (1978)chama de tensão desviante, terminologiarepresentativa da principal busca da artemoderna: a possibilidade de surpreender oreceptor. Além de fascinar, as expressõesartísticas da modernidade buscariam descon-certar o leitor, utilizando-se, para tal, do re-

aprofundar e dramatizar – sem descambar no patéticoou perder seu travo de humor modernista – na visadauniversal de O visionário e livros subseqüentes [deMurilo Mendes]” (PAES. O poeta/profeta da bagunçatranscendente. In: Os perigos da poesia e outros en-saios, p.171).

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curso da “dissonância”, aqui explicado comoa capacidade, na poesia moderna, de se in-tegrar “incompreensibilidade e fascinação”(FRIEDRICH, 1978, p. 15). O autor afirmaque a poesia quer ser “ma criação auto-suficiente, pluriforme na significação, con-sistindo em um entrelaçamento de tensõesde forças absolutas, as quais agem sugesti-vamente em estratos pré-racionais, mas tam-bém deslocam em vibrações as zonas de mis-tério dos conceitos” (FRIEDRICH, 1978, p.16).

Segundo o crítico, “transformar”, no quetange à língua e ao mundo, é o comporta-mento prioritário da lírica moderna. Alémdisso, o artista não mais participa de sua cri-ação como pessoa particular, mas como “in-teligência que poetiza” (FRIEDRICH, 1978,p. 17). Para Friedrich, “a língua poéticaadquire o caráter de um experimento, do qualemergem combinações não pretendidas pelosignificado, ou melhor, só então criam o sig-nificado” (FRIEDRICH, 1978, p. 17). Napoesia moderna, tal possibilidade de impes-soalização do autor, aliada à força do versolivre – cujas combinações3 de linguagem for-mam o próprio significado do poema – en-canta José Paulo Paes. Ao comentar a análiseque Friedrich faz da poética de Rimbaud, porexemplo, Paes ressalta o quanto o crítico

não se esquece de completar afrase: “É falso dizer: penso.

3 Para Friedrich, na lírica moderna, “traços deorigem arcaica, mística e oculta, contrastam comuma aguda intelectualidade, a simplicidade da ex-posição com a complexidade daquilo que é expresso,o arredondamento lingüístico com a inextricabili-dade do conteúdo, a precisão com a absurdidade, atenuidade do motivo com o mais impetuoso movi-mento estilístico” (FRIEDRICH. Estrutura da líricamoderna, p.16).

Dever-se-ia dizer: pensa-se emmim”. Ao redimir o eu poético docomprazimento em si a que o acos-tumara o individualismo român-tico e ao impessoalizar-lhe o olharaté o ponto crítico de ele se vercomo outro, a lírica moderna põedefinitivamente em xeque a ipsei-dade [princípio de individuação]do poeta. O exemplo mais teatralé o dos heterônimos de Pessoa edo “fingimento” como estratégiade despersonalização. Foi o que,em compasso microscópico, tenteiexprimir num epigrama, “O últimoheterônimo”, que diz: “O poema éo autor do poeta.” (PAES, 1997, p.167)

Anteriormente ao “estalo de Vieira”, so-bre o qual já se discorreu, José Paulo Paes édespertado para a poesia ao ler O corvo, deEdgar Allan Poe, em tradução de Machadode Assis. A atmosfera sombria dos versos dePoe leva-no, naturalmente, ao interesse pela“visada cósmica e o pessimismo existencial”(PAES, 1996, p. 6) de Augusto dos Anjos,sua primeira referência literária. A partir daleitura de Eu, obra, segundo o próprio Paes,muito longe do “convencionalismo” encon-trado à época nos manuais de língua por-tuguesa, o jovem literato passa a compreen-der a poesia “como linguagem de descobertae apropriação do mundo; como fala inaugu-ral diante da surpresa da vida, a vida de forae a vida de dentro” (PAES, 1996, p. 6).

A leitura dos versos do poeta paraibano,cuja obra centra no ser humano “todas asenergias do universo”, apresenta-se como ocontato inicial de José Paulo Paes com umapoesia bastante calcada na construção desse

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“mistério que é o ‘eu”’ (BOSI, 1976, p. 322).Em certa medida, Augusto dos Anjos é re-sponsável por ressaltar no escritor paulistao primeiro gosto pelo ofício poético. Aos16 anos, Paes escreve os primeiros versos,plágios confessos da obscuridade do Eu, querepresentam o mergulho definitivo do poetano oceano literário pré-modernista.

Além do obscurantismo de Augusto dosAnjos, contudo, até 1945, as preocupaçõesestéticas de José Paulo Paes mantêm-se atre-ladas à realidade dos dramas sociais, frutosda instabilidade política do período, quandoda eclosão da Segunda Guerra Mundial(PAES, 1996, p. 10). Do ponto de vistaliterário, e mais especificamente, poético,eram tempos de consolidação do traço mod-ernista e de definitiva valorização dos versoslivres.

A preocupação social afeta muito o jovemJosé Paulo Paes, de quem os primeiros ver-sos livres, ao invés de se espelhar nos mod-ernistas, são escritos segundo o molde dosPoemas proletários (s/d), de um hoje es-quecido Paulo Torres. Tal produção poéticasurge como extensão natural do sentimentopolítico que caracteriza o período. Segundoo próprio Paes, que à época lia entusias-ticamente Cacau e Suor (1931), de JorgeAmado, além de livros de divulgação marx-ista e romances políticos de Gorki, Gladkove Malraux, dentre outros, “uma angústia in-definida nos roía por dentro, refletindo-se noque tentávamos escrever” (PAES, 1996, p.10).

Apesar disso, curiosamente, Paes revela-se ao universo das letras como estrito apren-diz dos modernistas, sem maior influênciado mistério de Augusto dos Anjos ou daspreocupações ideológicas de Paulo Torres.Nos nove poemas que compõem O aluno

(1947), livro de estréia do autor, com ver-sos nitidamente carregados da herança domodernismo, o autor paulista revela-se um“poeta que ainda não chegara a escreveros próprios poemas”, segundo expressão deCarlos Drummond de Andrade, cuja opiniãode crítico/leitor foi que, de fato,

as influências são sensíveis emv. [José Paulo Paes], e até con-fluências (“Canção do afogado”identifica-se com “Balada”, doGlauco; são simultâneas?). A ver-dade é que há um ar de famíliaentre os novos poetas brasileiros,ar de família que estou aflito paraeles perderem, marchando cadaum para o seu rumo difícil. (AN-DRADE, 1997, p. 35)

O recado de um dos mestres acaba por serevelar vital ao futuro literário de Paes. Tantoé que o poeta paulista, em outro período desua vida, ressaltaria exatamente o quanto oconselho da carta de Drummond fora respon-sável por seus primeiros frutos literários:“Anos mais tarde, numa entrevista, eu diriaque toda a minha trajetória de poeta se ori-entou para a conquista de uma voz própria,fraca que fosse, mas minha” (PAES, 1996, p.15).

2 O mínimo como caminho

Carlos Drummond de Andrade, portanto, fiz-era o autor atentar para uma de suas princi-pais preocupações: ter sua arte própria, pormínima que se configurasse4. Neste ponto,

4 Na referida carta, Drummond dá ainda outraimportante sugestão a José Paulo Paes, que o mar-

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é interessante lembrar, inclusive, a naturalpolissemia intrínseca ao adjetivo “mínima”na poesia de Paes. Muito além de meramodéstia intelectual, pode-se dizer que a ex-pressão “arte mínima” da frase é nada menosque o leit motiv de sua obra. Desde cedociente das auroras, e dos revezes da vida,o poeta encontra na miniaturização artísticadas “coisas” do mundo o caminho pessoalpara a transmissão, e interpretação, de suaexperiência. A constante busca pelo “máx-imo no mínimo” passa a lhe caracterizar apena, principalmente a partir da década de1950, período em que Paes é atraído pelasinovadoras propostas da geração concretista.

Discutir a importância da concisão nofazer poético significa, de certa forma, ter emmãos uma das principais senhas para aden-trar o universo literário de José Paulo Paes.Prova disso está no depoimento do própriopoeta: “As discussões, as teorizações sobrepoesia me interessavam menos, pois o queme atraiu sempre foi a concisão. Desloco ocentro de atenção do verso para a palavra,numa espécie de virada intraverbal, para os’semas’, unidades elementares da palavra”(PAES, 1990, p. 31-34).

Em texto escrito na década de 1990, ao co-mentar o livro Minuto diminuto, edição pes-soal do poeta gaúcho Flávio Luís Ferrarini,Paes revela, a partir da análise dos versos

caria definitivamente. O poeta mineiro comenta aimportância de se conhecer os autores estrangeiros,lendo-os na língua original: “Para fugir aos mode-los nacionais, leia os estrangeiros; é contrapeso ex-celente, e imitação por imitação, a dos últimos nosfaz ir mais longe e nos universaliza mais, isto é, trazconsigo mesma a possibilidade de libertação.” (AN-DRADE. Da fortuna crítica de O aluno. In: PAES.O aluno, p.36). Futuro tradutor de autores de diver-sos idiomas, Paes absorveria, categoricamente, a sug-estão.

do autor sulista, o que sempre considerarauma das mais importantes lições da poéticade vanguarda. Trata-se da “atenção semprevoltada para a fisicalidade da palavra em si,de modo a poder atualizar-lhe as possibili-dades de desdobramento semântico, as maisdas vezes por via paronomásica” (PAES,1996, p. 86). É importante ressaltar, pois,que o caráter miniaturista da arte de Paescalca-se, prioritariamente, na extrema pre-ocupação do poeta com a palavra em si.

O que não quer dizer que ele deixe de ladosua experiência existencial com o intuito dese dedicar a versos “puristas”, caracteriza-dos pela simples integração e justaposição desílabas e sons. Ao contrário, o poeta paulistacritica a boutade de Mallarmé, para quem apoesia é feita apenas com palavras. Difer-entemente do autor de Un Coup De Dés, apreocupação de Paes diz respeito à importân-cia de o poeta encontrar o conjunto certo depalavras para exprimir “vivências, reais ouimaginárias” (PAES, 1996, p. 11). Nesteponto, o autor professa, ainda, da famosaidéia de Drummond, segundo a qual escreveré cortar palavras. A partir de tal máxima,torna-se possível, pois, enxergar o ofício deum bom poeta como se a habilidade especí-fica do referido homem de letras para, “cirur-gicamente”, eliminar excessos.

A partir de tal princípio, pode-se dizer quea miniaturização do mundo, ou a ordenaçãopoética – e subjetiva – da experiência cotidi-ana, em poemetos, ilustra exatamente o per-fil, avesso a excessos, do poeta José PauloPaes. Somado a isso, o escritor paulistabusca incessantemente, como bem o resumeFernando Paixão, “dar formatos novos paraa expressão poética, em vez de se contentarcom um estilo cristalizado” (PAIXÃO, 1999,p. 50-53). A começar pelo resgate do epi-

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grama, gênero clássico5 retomado por Paessegundo propostas – além de inteiramentepessoais - bastante modernas. No ver deArrigucci Júnior, “pela fórmula peculiar deredução do mundo, cada poemeto traz emseus próprios fundamentos os traços típicosdo epigrama e sua vocação para exprimir ostraços da modernidade” (ARRIGUCCI JR.,1998, p. 30).

Quando se fala em miniaturização domundo, ou, de outro modo, em reduçãoda experiência cotidiana à essência poética,não há como escapar da influência diretados modernistas na formação do poeta. Decerta forma, ele absorve exatamente o quediz o mestre Manuel Bandeira em seu Itin-erário de Pasárgada (1954): “Meditei nalição [do crítico João Ribeiro, que havia tran-scrito uma quadra de Carlyle reduzida à es-sência] e até hoje em toda poesia que escrevome lembro dela e procuro só pronunciar aspalavras essenciais” (BANDEIRA, 1984, p.

5 Segundo Davi Arrigucci Júnior, “desde suas for-mas clássicas, enquanto inscrição feita na pedra paraassinalar o reconhecimento de que ali alguma coisaé, até o amplo desenvolvimento que teve na poesiagreco-latina e, posteriormente, nos empregos pontuaisao longo dos séculos da cultura poética ocidental, oepigrama sempre se mostrou renitente à definição pre-cisa. Em princípio, constitui uma fórmula condensadaem poucos versos, na qual se mesclam os gêneros, po-dendo combinar a notação épica do acontecimento eo sentimento do drama ao tom lírico da elegia ou àverve satírica, a que em geral vem associado nos nos-sos dias”. Ao retomar a técnica do epigrama, Paes,além de exibir técnicas e abordagens bastante moder-nas, como a recorrência à temática do cotidiano, in-corpora ao estilo epigramático sua “verve” marcada,principalmente, por recursos como o chiste, que emPaes, segundo o próprio Arrigucci Jr., assume “forçacatártica, como o desafogo que pudesse redimi-lo oua todos nós de uma pressão indizível.” (ARRIGUCCIJR. Agora é tudo história. In: PAES. Melhores poe-mas, p.12).

59). Paes aprendera com “os fundadores danossa modernidade poética” que

poesia é ver as coisas do mundocomo se fosse pela primeira veze exprimir essa novidade de visãoda maneira mais concisa e intensapossível, numa linguagem onde sóhaja lugar para o essencial, nãopara o acessório. Daí, a elimi-nação de tudo quanto cheire a en-feite ou ornato, inclusive rima emétrica, se necessário for. Nuncamais esqueci essa lição funda-mental; disso dá testemunho adicção econômica das dezessetecoletâneas de poemas que até hojepubliquei. (PAES, 1996, p. 34)

Ao absorver, e reinterpretar subjetiva-mente, as propostas dos autores modernistas,Paes passa a definir sua poética, semprecalcada na eliminação de excessos. Nasceassim o poeta cuja obra extrai elementosde diversas tendências, mas não se limitaa nenhuma delas. Em relação à chamadaGeração de 456, por exemplo, à qual oescritor paulista estaria ligado cronologica-mente, sua obra mantém considerável dis-tância. A começar pela noção do grupo,

6 A Geração de 45 provocara polêmica no meioliterário brasileiro, justamente, por desprezar a liber-dade conquistada, até então, pelo movimento mod-ernista. Ao contrário do verso livre, diversos autoresda época retomam formas fixas de cunho clássico,como o soneto, a ode e a elegia. Segundo AlfredoBosi, em sua História concisa da literatura brasileira,os representantes de tal grupo, que se dedicavamà pesquisa formal, “repropuseram no meio literáriobrasileiro um problema básico: o da concepção depoesia como arte da palavra, em contraste com outrasabordagens que privilegiam o material extra-estéticodo texto”.

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não seguida por Paes, presente na nota aoPanorama da nova poesia brasileira (1951),em que o antologista Fernando Ferreira deLoanda comenta a busca de tal geração porum “novo estado poético”, no qual os camin-hos seriam traçados fora dos limites do mod-ernismo. É interessante dizer que havia po-emas de Paes em tal publicação, como tam-bém de João Cabral de Melo Neto e FerreiraGullar, ambos também distantes das preten-sões neomodernistas7.

Na verdade, José Paulo Paes prima peloque chama de “lucidez da técnica e da ex-periência” (PAES, 1996, p.5), cuja aquisiçãosó aconteceria após anos e anos de árduo tra-balho e imensa vontade de escrever. Tal lu-cidez a que alude o escritor vai ao encontrode muitas das idéias do combativo Mário deAndrade de O movimento modernista, textode 1942 onde o autor interpreta as açõesdo grupo. Ao comentar o surgimento desua obra Paulicéia desvairada (1922), Márioconta como, em determinada noite, bastantealterado pelas discussões familiares, saírapara espairecer. Na volta noturna, aconte-ceria, similarmente ao que se dera com Paes,o “estalo”: em um pequeno caderno, Máriorabisca, pela primeira vez, o título do livroque começa a criar no mesmo instante. É im-portante reforçar, neste ponto, o processo detrabalho de Mário ao conceber a obra. Difer-entemente do que apregoavam os integrantesda Geração de 45, o mecanismo de criação jáse moldava pelo apuro estético. Em O movi-mento modernista, o autor de Há uma gota

7 Cunhado por Tristão de Ataíde, em artigo publi-cado em julho de 1947, o termo Neomodernismo assi-nalava a morte do modernismo e a aparição de umnovo movimento, absolutamente oposto ao anterior.Neomodernistas, pois, seria o codinome para os com-ponentes das chamada Geração de 45.

de sangue em cada poema (1917) comentaos dois níveis de trabalho artístico, que maistarde sistematizaria como o processo de

separação nítida entre o estado depoesia e o estado de arte, mesmona composição dos meus poemasmais ‘dirigidos’. As lendas na-cionais, por exemplo, o abrasileira-mento lingüístico de combate. Es-colhido um tema, por meio dasexcitações psíquicas e fisiológi-cas sabidas, preparar e esperar achegada do estado de poesia. Seeste chega (quantas vezes nuncachegou...), escrever sem coação deespécie alguma tudo o que mechega até a mão – a ‘sinceridade’do indivíduo. E só em seguida, nacalma, o trabalho penoso e lento daarte – a ’sinceridade’ da obra-de-arte, coletiva e funcional, mil vezesmais importante que o indivíduo”.(ANDRADE, 1972, p. 234)

Na famosa conferência de 1942, três anosantes de sua morte, Mário de Andrade con-cede ao movimento de inteligência mod-ernista o status de preparador de mudançaspolítico-sociais. Para ele, o modernismomarcara-se como “criador de um estadode espírito revolucionário e de um senti-mento de arrebentação” (ANDRADE, 1972,p. 241). Dessa forma, revela as três prin-cipais características do movimento mod-ernista: “o direito permanente à pesquisa es-tética; a atualização da inteligência artísticabrasileira; e a estabilização de uma consciên-cia criadora nacional” (ANDRADE, 1972, p.242).

Trata-se de três importantes característicasque fizeram com que a Geração de 45 encon-

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trasse, em sua década de estréia, um cenáriode liberdade muito bem descrito por Máriode Andrade, em que o artista brasileiro

tem diante de si uma verdade so-cial, uma liberdade (infelizmentesó estética), uma independência,um direito às suas inquietações epesquisas que não tendo passadopelo que passaram os modernistasda Semana, ele nem pode imag-inar que conquista enorme rep-resenta. Quem se revolta mais,quem briga mais contra o poli-tonalismo de um Lourenço Fer-nandes, contra a arquitetura doMinistério da Educação, contra osversos ’incompreensíveis’ de umMurilo Mendes, contra o person-alismo de um Guignard?... Tudoisto são hoje manifestações nor-mais, discutíveis sempre, mas quenão causam o menor escândalopúblico. (ANDRADE, 1972, p.241)

José Paulo Paes entrega-se a tal liberdade,expressa nos comentários de Mário de An-drade. Do início ao fim de sua trajetóriapoética e ensaística, ao contrário de boaparte dos puristas da Geração de 45, o po-eta paulista parte em busca do que, categori-camente, Mário classificaria de “normaliza-ção do espírito de pesquisa estética, anti-acadêmica, porém não mais revoltada e de-struidora”, que representa “a maior manifes-tação de independência e de estabilidade na-cional” (ANDRADE, 1972, p. 249) já con-quistada pela inteligência brasileira. Impor-tante, pois, ressaltar que Paes, recusa os ex-cessos verbais e dá prioridade à linguagem

enxuta e a certa observação minimalista dasnuances de seu tempo.

3 Jogos lúdicos

Tal “compromisso” de Paes com a constantepesquisa estética fará com que o poeta, prin-cipalmente em seus livros publicados nas dé-cadas de 1960 e 1970 – Anatomias (1967) eMeia palavra – cívicas, eróticas e metafísi-cas (1973) – busque “refúgio” temporáriona poesia Concreta, movimento estético que,à época, parecer-lhe-á interessante à exper-imentação formal. Além da aproximaçãocom a vanguarda, Paes permanece à catade novos “meios e interfaces de capturapoética”: a partir de um olhar refinado eacurado sobre o cotidiano, o poeta revela-seávido por novos “espaços” de manifestaçãodo poético – naquele contexto, espaços delinguagem capazes de “suportar” as própriasinquirições e interpretações do escritor ac-erca do status sóciopolítico do Brasil, que,desde 1964, vivia, asfixiado, sob regime mil-itar.

Em Meia palavra – de cuja obra retiramosos três poemas a serem discutidos neste ar-tigo –, José Paulo Paes reitera, justamente,sua necessidade de experimentação de novasexpressões poéticas. Somem-se a isso o acir-ramento do gosto pelo epigrama e certo tomoswaldiano para a sátira e o humor. Ao tratarda influência de Oswald de Andrade, aliás, éimportante rever o quanto a maleabilidade dePaes nas formas breves deve-se ao contato,de certa forma tardio, com um dos papas domodernismo brasileiro. A proximidade comOswald, já na década de 1950, levará Paes a

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ler os “epigramas moleques” de Pau-Brasil(1924).

A partir de então, passa a enxergar taisobras como providenciais. A lírica e o sar-cástico humor oswaldianos lhe abrem no-vas e promissoras perspectivas em relaçãoao ofício literário. Ao analisar o Cân-tico, por exemplo, comenta a importânciade tais versos para sua própria compreen-são da proximidade entre poesia e questõessociais. Na obra, Paes encontra o mesmotipo de fusão “entre o lírico e o ideológicoque já aprendera a admirar no Éluard dosSept poèmes d’amour en guerre (1943) e,em bem menor medida, no Aragon de Lesyeux d’Elsa. (...) Daí meu entusiasmo pelalinha Oswald/Éluard na qual subjetivo e ob-jetivo, individual e coletivo se confrontavamsem contradizer-se” (PAES, 1996, p. 14). Jána década de 1990, em A aventura literária,Paes dedica amplo estudo a Cinco livros doModernismo Brasileiro, entre os quais Pau-brasil (1924) e Memórias sentimentais deJoão Miramar (1924), ambos de Oswald.Tal trabalho busca a compreensão das carac-terísticas de obras fundamentais ao adventoda modernidade literária brasileira, além delevantar os principais pressupostos teóricosdo grupo de 22.

No ensaio, Paes discute a “promoção cultada barbárie” e o processo de “infantilidade”8,dois dos mais marcantes traços artísticos da

8 A “promoção culta da barbárie” revela a buscados modernistas pelas raízes primitivas do Brasil,como forma de desvendar a identidade brasileira. Já ochamado processo de infantilidade diz do intuito deaproximar a expressão artística do gosto pela brin-cadeira. Trata-se, além disso, de um dos modos uti-lizados pelos modernistas com o intuito de parodiar aseriedade da arte acadêmica. Por fim, a inocência e apureza infantis serviam de instrumental para a recusada má consciência burguesa.

modernidade. Trata-se, em certa medida, daarte como gosto pela brincadeira, algo queem José Paulo Paes assume relevância vi-tal, principalmente no livro Meia palavra,onde certas atrações imagéticas do cotidiano– placas e cenas corriqueiras, por exemplo– são registradas em máquina fotográfica e“transportadas”, pelo poeta, às páginas dolivro de poemas, espaço onde ganham novasignificação. Muitas vezes, a modernidadedo poeta paulista encontra no “brincar”9 de-spretensioso dos olhos a essência do fazerpoético. Se para os modernistas a infantili-dade era o recurso utilizado como forma deparodiar a seriedade da arte acadêmica e, aomesmo tempo, recusar a má consciência bur-guesa, para Paes tal atitude assume ares delibertação10.

Tal idéia de libertação aqui disposta podeser explicada como a possibilidade de oartista “brincar” com o significado e a im-agem usuais das palavras. José Paulo Paes,aliás, compara a renomeação e apropriaçãometafórica a “um gesto não só de rever mastambém de reaver, de tornar a achar o jávisto, no sentido de trazer de volta a sur-

9 É interessante, neste ponto, lembrar a importân-cia dos livros infantis na obra de José Paulo Paes. Dealguma forma, o tradutor, o poeta e o ensaísta apren-deram muito com o complexo – e meticuloso – ofí-cio do escritor de obras destinadas às crianças. Paraexercer tal atividade, é preciso conhecer a fundo aséria arte de “brincar” com as palavras, visto que orepertório cultural dos pequenos é muito diferenciadodo usual no universo adulto.

10 Em outro ensaio publicado por Paes, Para umapedagogia da metáfora, o autor compara o mecan-ismo da metáfora à brincadeira infantil do esconde-esconde. Como o jogo lúdico, é bem de ver que ametáfora faz com que o interesse – no caso, do leitor– “não se esgota na primeira vez; prolonga-se e au-menta nos ulteriores encobrimentos/descobrimentos”(PAES, 1997, p.13).

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presa de um primeiro contato que o automa-tismo da repetição embotara” (PAES, 1996,p. 22). Em Para uma pedagogia da Metá-fora, ensaio escrito na década de 1990, o po-eta explica o modo como, no processo deminiaturização poética do mundo, é impor-tante lançar mão de metáforas cuja signifi-cação deve se caracterizar por certo ar “es-trangeiro”, alheio aos sentidos – e empregos– práticos da palavra.

No ver de Paes, as metáforas são as únicascapazes de, no verso, promover um enlaceentre o ser e o não-ser “de maneira a maisestranha” (PAES, 1997, p. 24). Para explicarsua visão acerca da utilização dos recursosmetafóricos, José Paulo recorre a uma analo-gia com determinado jogo infantil, no qualum adulto, diante de uma criança pequena,esconde o rosto para, rapidamente, revelá-lo de novo. No caso, há certa alternânciade presença e ausência a que se associam,simultaneamente, sensações de prazer e de-sprazer. Segundo a teoria de Paes, a ráp-ida mudança de sensações a que está su-jeita a criança faz parte da própria idéia dojogo lúdico. Exatamente como acontece coma metáfora. “Na contínua alternância en-tre o sim/não encontra a metáfora o mo-tor da sua dinâmica, assim como o encontranosso jogo [infantil] na reiteração do enco-brir/descobrir” (PAES, 1997, p. 17-18).

Neste ponto, comenta o que chama de “la-bilidade dinâmica” da expressão metafórica,responsável por unificar presença e ausên-cia numa só ocorrência verbal. Na metá-fora, o inanimado torna-se animado. “Maisque isso, um estatuto de duplicidade passaa consorciar labilmente entre as coisas e osseres, o humano e o não-humano” (PAES,1997, p. 17). Paes ressalta, então, a ex-istência de dois tipos de metáforas: a de

invenção – como os azuis ângelus de Mal-larmé, que transmitem a paz intensa dascores do céu ao entardecer – e as de con-venção – como no caso de arranha-céu, emque tal idéia é automaticamente associadasomente à existência de prédios imensos.Importante explicar, contudo, que as metá-foras de convenção já perderam sua labili-dade – e também o certo ar estrangeiro – de-vido ao uso corrente e coloquial. São, assim,incorporadas por designação direta, e nãomais metafórica. Segundo o poeta paulista,elas terminam “seus dias como meros sinôn-imos no dicionário da língua” (PAES, 1997,p. 20). Em pólo oposto, as metáforasde invenção caracterizam-se pela “labilidadedinâmica”, capaz de instalar,

entre o real e o imaginário, umaponte de mão dupla por onde asurpresa da descoberta irá transitarcomprazidamente num repetido ire vir. Esse tipo de metáfora imantacom suas linhas de força toda a ex-tensão da fala e não apenas o pontodela em que instaurou uma impert-inência semântica. Com isso fundao próprio discurso poético, o qualse constitui num desvio tão radi-cal da lógica da fala comum comque Julia Kristeva o define como odiscurso da negatividade. (PAES,1997, p. 21)

Tal visão do discurso poético como “neg-atividade”, a partir do uso das metáforas deinvenção, aparece amiúde na obra de JoséPaulo Paes, para quem, na economia do pro-cesso metafórico literário, “figurante e figu-rado vão alcançar estatuto de plena equipon-derância” (PAES, 1997, p. 13). Em in-úmeros momentos, Paes leva ao extremo

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tal desvio do sentido ordinário das palavras,principalmente através da criação de pe-quenos – e intensos – chistes. Em Paes,o chiste pode ser definido como o recursocapaz de unificar, condensar e metaforizaro mundo dentro da pequena célula poética.De outra forma, pode-se dizer que o poeta,através do lúdico jogo do chiste, encontrasua forma peculiar de tratar das questões so-ciais, políticas e econômicas de seu tempo.Davi Arrigucci Júnior ressalta que em Paes“o prazer lúdico do lance verbal, o gostodo disparate, tudo o que parece fazer a ten-são, a graça e o prazer do chiste assumenele força catártica, como o desafogo quepudesse redimi-lo ou a todos de uma pressãoindizível, feito uma arma de combate em lutacontra a repressão vinda de dentro ou fora dopoeta” (ARRIGUCCI JR., 1998, p. 12).

4 A inversão hipertextual dePaes

Já nas décadas de 1960 e 1970, aviva-seem José Paulo Paes o interesse pela poe-sia Concreta. Neste sentido, Anatomias(1967) e Meia Palavra – cívicas, eróticase metafísicas (1973) revelarão o interessede Paes pela então propalada obra dos po-etas concretos. A veia epigramática, concisae cômica do autor, aliada à desconstruçãopoética do concretismo, culminará com po-emas criados a partir de recursos como de-struição paródica; desmontagem do verso edestaque da palavra isolada; remontagem vo-cabular e trocadilhos; e incorporação do vi-sual à estrutura da composição poética. Decerta forma, pode-se dizer que Paes irá re-

definir, segundo critérios pessoais, o poema-piada modernista. E o autor revela que, rap-idamente, as técnicas da poesia concreta lheatraíram pela

extrema condensação de sentidosalcançada pela eliminação, totalou parcial, das conexões gramat-icais, já que a atenção do poetase voltava para as palavras em si,não para a sucessão delas no verso.Por outro lado, a exploração dobranco na página ou fragmentos depalavras ali disseminados ganhas-sem ênfase e ressonâncias. (PAES,1996, p. 55)

Principalmente em Meia palavra, tudopassa a se reduzir ao mínimo, como se numaincessante busca por incluir o mundo emapenas um grão de areia. Trata-se, em ver-dade, da incorporação do signo não-verbalà poesia de José Paulo Paes. Além dapreocupação anti-retórica, o poeta paulistapercebe que a ênfase dos concretos namedula ideogrâmica vai ao encontro da poe-sia epigramática que ele próprio já produz,como reação

a certo metaforismo ornamentalem voga entre os da minha ger-ação [Geração de 45] e seus con-tinuadores; nessa reação, não tivemedo de ir até o poema-piadade 22 tão abominado por eles.Não cheguei a ser um poeta con-creto em sentido estrito; faltavam-me raízes poundianas ou mallar-maicas. Outrossim, mais do que oprojeto teórico, interessou-me so-bretudo a prática poética dos con-cretos. Utilizei-lhes alguns dos

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procedimentos não por amor doexperimento verbal em si, masna medida em que pudessem rad-icalizar o viés epigramático daminha dicção. (PAES, 1996, p. 17)

Importante ressaltar, neste momento, omodo como aqui trabalharemos o conceitode “hipertexto”, no que diz respeito à poe-sia do escritor paulista, para explicar a trans-posição poética, realizada por Paes em Meiapalavra, de imagens cotidianas da São Paulodos anos 1970. Para Pierre Lévy (1993), ohipertexto poderia ser explicado como certoconjunto de “nós” interligados por conexões.Tais “nós” são representativos de palavras,páginas, imagens, gráficos, sequências sono-ras ou, até mesmo, documentos e índicescomplexos. Apesar de não ligados linear-mente – como ao longo de uma corda –,tais nós apresentam conexões reticulares, emforma de “estrela”.

Ao transportar cenas do cotidiano para aspáginas de Meia palavra, José Paulo Paes,à forma do conceito de Lévy (1993), pro-move, contudo, certa inversão do jogo hiper-textual da atualidade, calcado nos proces-sos digitais: ao invés de abrir links para o“exterior” – como nas páginas da Internet,que levam o usuário a conexões reticularesnão-lineares e sem “compromisso entre si” –, Paes irá propor links interiores (e tambémnão-lineares), através dos quais será possívelao leitor, que contempla a imagem singu-lar da capital paulista nas páginas do livrode poemas, reavivar sentimentos, interessespolíticos e sociais próprios de sua trajetória.Trata-se, em suma, de certa “viagem” hiper-textual invertida: ao invés de seguir a novasinstâncias – links externos e não-lineares -, o leitor é convidado a refletir a partir de

sua própria vivência – também composta deconexões reticulares e em forma “estelar” –, estimulada pela re-significação da imagempoética nas páginas do livro.

Para explicar tal rede de conexões inter-nas, aliás, o próprio José Paulo Paes desen-volveu um conceito importante. Trata-se dotermo “transleitura”, analisado da seguinteforma:

O prefixo trans – visa simples-mente, no caso, a acentuar quea leitura de uma obra literária éum ato de imersão e de distancia-mento a um só tempo. Tal duplici-dade do ato de leitura responde, si-metricamente, à duplicidade do atode criação literária. Este faz sur-gir o que antes não existia – daífalar-se em criação –, mas a novaobra, por mais original que seja,nem por isso deixa de se inscr-ever no sistema da literatura, for-mado teoricamente por todas asobras literárias jamais escritas epor todas as interpretações ou co-mentários críticos que vêm susci-tando. Só dentro desse vasto sis-tema, por nexos de continuidadeou de ruptura ou, melhor ainda,de continuidade/ruptura, pode elaadquirir a plenitude de sua signifi-cação. (PAES, 2005, p .5)

No caso específico da rede de conexõesinternas proporcionada pelo que aquichamamos de “inversões hipertextuais” dapoesia de José Paulo Paes em Meia palavra(1973), certo mecanismo de “transleitura”pode ser acionado diante dos poemasvisuais, que, a partir de imagens aparente-mente corriqueiras, estimulam novos “nexos

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de continuidade”, capazes de – princi-palmente naquele período sóciopolítico –transportar o leitor a novas instâncias (links)de significação ética e estética.

5 Os poemas: análise concisa

Sob o título O ESPAÇO É CURVO (PAES,2008, p. 203-204), grafado em caixa altana página anterior ao poema visual, a im-agem em preto e branco, em Meia palavra(1973), revela duas placas de metal, dis-postas lado a lado e em tamanhos distin-tos, a exibir a mesma mensagem: “Ruasem saída”. Em segundo plano, percebem-se vestígios do que os olhos passam com-preendem como postes – onde uma das pla-cas está afixada –, fios e semáforos urbanos.No interior de uma das placas que compõemo poema, há, ainda, a marca da instituiçãopública – Detran – responsável pelas regrasdo trânsito na metrópole:

(PAES, 2008, p. 203-204)

Com significados que transcendem a meraestilização, o referido poema visual deJosé Paulo Paes afirma-se a partir da re-significação entre a função utilitarista doscomponentes da cena e os sentidos por trásda imagem. Artefatos de utilidade práticaà melhoria do bem-estar no trânsito deuma megalópole – no caso, São Paulo –,as tais placas com aviso utilitarista estim-ulam, quando expostas em Meia palavra,percepções outras, capazes de fazer como que o leitor desenvolva sua transleituraparticular, de modo a criar novas redes deconexão interna, fruto direto das “inversõeshipertextuais” da poesia de Paes: placas deaviso, aparentemente banais, transportam o“motorista/leitor” a novos “nexos de con-tinuidade”.

Tais nexos, no contexto de publicação dopoema, carregam em si o “calor dos acontec-imentos”: em plena década de 1970, a “ruasem saída” metaforiza as nuances de “umBrasil sem saída”, marcado pela opressãopolítica e social dos militares no poder. Asredes reticulares internas, links de signifi-cação engendradas pelo poema e que provo-cam novas instâncias de relação entre ética eestética, também são estimuladas em SICKTRANSIT (PAES, 2008, p. 188-189), títulodo seguinte poema:

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(PAES, 2008, p. 188-189)

Aliada ao irônico Sick transit, título queaqui traduz-se livremente como trânsitoadoentado, a imagem do poema repete a es-tratégia da re-significação através da relaçãoentre a “função utilitarista dos componentesda cena” e os sentidos “por trás da imagem”.A função denotativa da placa é dizer a mo-toristas e pedestres que as vias que levamao bairro paulista da Liberdade estão inter-ditadas. Portanto, para chegar às regiõesParaíso e Vila Mariana, seria preciso seguira seta, que também conta com a indicaçãodo órgão governamental responsável – no-vamente, como em O ESPAÇO É CURVO(PAES, 2008, p. 203-204), o Detran.

A função conotativa do poema, contudo,revela outras fontes de sentido: no auge doregime militar, momento em que a sociedadebrasileira ressente-se pela ausência de dire-itos sociais, políticos e civis, importante ob-servar a força de um “verso cotidiano” comoLiberdade interditada. Some-se a tal força,proporcionada pela inversão hipertextual dapoesia de Paes – que leva a imagem às pági-nas de Meia palavra –, a ironia intrínseca aodestino da seta exibida pela placa: “Paraíso”.A vasta condensação de sentidos propor-cionada pelo poema, através de conexões vi-

suais e gramaticais, revela a exploração, pelopoeta, “do branco na página”, assim como ouso de “fragmentos de palavras ali dissemi-nados”, que “ganham ênfase e ressonâncias”(PAES, 1996, p. 55).

Por fim, entre as experiências visuais dePaes, EPITALÂMIO (PAES, 2008, p. 198-199) discute as relações conjugais através daimagem de duas escovas de dente que, dis-postas num copo, “relacionam-se” intima-mente.

(PAES, 2008, p. 198-199)

Através do descolamento da fotografia detrês objetos em simbiose – duas escovas eum copo –, o poeta estimula novas conexõesde significado: o hipertexto, neste sentido,provoca transleituras que dizem respeito àintimidade das relações humanas e, de certaforma, elucida o subtítulo do livro de Paes– cívicas, eróticas e metafísicas. O ero-tismo inerente à sobreposição das escovas –pré-figuração do entrelaçamento dos corpos

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– reacende, no leitor, a discussão em tornoda(s) união(ões) amorosa(s).

Também o título do poema, EPI-TALÂMIO, amplia ainda mais seussignificados: o termo é referência direta aocântico nupcial, de natureza religiosa, quebusca reivindicar aos noivos a bênção dosdeuses. Mais uma vez, a inversão hipertex-tual do escritor paulista, aliada à concisãoprópria de seus versos, é capaz de levar oleitor à revisão de seus próprios “nós”. Naspáginas de Meia palavra, a delicadeza e asimplicidade do “apego” entre as escovas,eroticamente acomodadas no interior docopo, estão aptas a estimular discussões –políticas, por que não? – em torno da vida(íntima) em sociedade.

6 Conclusão

Nos três poemas analisados, buscou-se rev-elar de forma sucinta a habilidade de JoséPaulo Paes, através do uso concentrado derecursos estilísticos, linguísticos e metafóri-cos, para subverter em poesia a lógica da im-agem cotidiana; assim como para diminuir –através da inversão hipertextual e a rede denovas conexões que suscita – a distância en-tre territórios por vezes antípodas: ética e es-tética; amor e política; significante e signifi-cado; imagem e palavra.

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