Paper Transplantacao Hepatica

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    Revista Crtica de CinciasSociais79 (2007)

    Nmero no temtico

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    Helena Serra

    Da construo e reproduo doconhecimento e discurso mdicos.Para uma etnografia da transplantaoheptica

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    Aviso

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    Referncia eletrnicaHelena Serra, Da construo e reproduo do conhecimento e discurso mdicos. Para uma etnografia datransplantao heptica , Revista Crtica de Cincias Sociais[Online], 79 | 2007, posto online no dia 01 Outubro2012, consultado o 30 Janeiro 2013. URL : http://rccs.revues.org/731

    Editor: Centro de Estudos Sociaishttp://rccs.revues.orghttp://www.revues.org

    Documento acessvel online em: http://rccs.revues.org/731Este documento o fac-smile da edio em papel. CES

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    Revista Crtica de Cincias Sociais,79, Dezembro 2007: 113-131

    HElENA SERRA

    Da construo e reproduo do conhecimentoe discurso mdicos.Para uma etnografia da transpantao heptica

    Partino algun contributo contmporno a ra a ociologia mica, aprntam algun rultao uma invtigao naturza tnogrfica numa unia tranplantao hptica. elgu uma mtoologia qualitativa, tno comotcnica cntral rcolha informao a obrvao participant continuaa ,como tcnica complmntar, ntrvita mitruturaa aprofunaa, aplicaa vria catgoria rprntaa no trrno obrvao. Coma por tablcr a itino ntr o vrio tipo conhcimnto, vinciano a primazia axprincia clnica m rlao ao conhcimnto trico na contruo o conhcimntomico; aboram aina o icuro() prtica() mica, a propito a contruo o iagntico; finalmnt, a ncrrar a icuo, focaa a quto a

    incrtza na contruo o conhcimnto mico.

    . IntroduoNas abordagens sociolgicas contemporneas, poder e conhecimento assu-mem uma relao profunda, particularmente nos mais recentes trabalhosdo construtivismo social que evidenciam as relaes entre conhecimento ediscurso na construo de estratgias de poder. A construo social doconhecimento e da realidade constituiu igualmente o foco da linha da feno-menologia do pensamento sociolgico, popularizada por Berger e Luckmannos finais da dcada de 60. Berger e Luckman (1967) argumentam que oconhecimento produzido de forma criativa por indivduos e orientadopara problemas prticos particulares.

    A partir desta perspectiva, inmeros trabalhos acerca da natureza doconhecimento mdico tm surgido. Nesta esteira, que se constitui enquantodesafio ideia moderna de racionalidade cientfica, por vincular a produode conhecimento aos poderes e aos seus discursos, procura-se identificar

    os diversos conhecimentos que so produzidos e desenvolvidos no contextodos cuidados mdicos. Esta perspectiva contrasta com a viso tradicionalda medicina que encara a doena como estando localizada num corpo

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    enquanto objecto fsico, e que pode ser objectivamente identificada e tratadacomo condio fisiolgica a partir do conhecimento mdico cientfico.

    Neste artigo, apresentam-se alguns resultados de uma investigao de

    natureza etnogrfica, em torno da construo e reproduo do conheci-mento e discurso mdicos. Partindo de alguns contributos contemporneosda rea da sociologia mdica, particularmente do construtivismo social edaquilo que se designa por abordagem foucaultiana, procura-se identificarnuma unidade de transplantao heptica (UT), os modelos de construoe reproduo do conhecimento e discurso mdicos, analisando como estesdois elementos so reconstrudos em termos estratgicos. Entre outroscontributos, os trabalhos de Freidson (1984, 1986, 1987) constituem umsuporte importante para a anlise das dimenses presentes no trabalho

    mdico. Destacam-se tambm os trabalhos de Turner (1995) e os de Atkinson(1977, 1995), j que ambos evidenciam a centralidade do discurso mdico,que assenta na interaco entre o trabalho mdico e as tecnologias, bemcomo as relaes entre o conhecimento, o discurso mdico e o contextodas prticas mdicas. Elegeu-se uma metodologia qualitativa que inclui autilizao de diferentes tcnicas de recolha de informao, tendo-se optadopor uma tcnica central e outras tcnicas complementares. Neste sentido,elegemos como tcnica central de recolha de informao a observao parti-

    cipante e continuada e, como tcnica complementar, entrevistas semi-estru-turadas e aprofundadas, aplicadas s vrias categorias representadas noterreno de observao.

    O contexto de pesquisa, uma unidade hospitalar de transplantao hep-tica, surge como uma das reas mais sofisticadas da medicina, quer pelatecnologia e as respectivas prticas mdicas que implica, quer, tambm,pela natureza multidisciplinar que necessariamente a caracteriza. A grandecomplexidade da prestao dos cuidados encerra aspectos muito precisosda organizao e diviso do trabalho que decorrem da hiper-especializaomdico/cirrgica que envolve a produo dos cuidados de sade nesteservio. Estamos num terreno caracterizado pela presena do exerccio dediversos poderes que vo sendo constantemente construdos e reconstrudosno exerccio e no cruzamento das prticas mdicas das diferentes especia-lidades envolvidas, cada uma delas subordinada a um esquema prprio deorganizao, to especfico quanto as prticas mdicas que as distinguem.Nesta etnografia, os mdicos assumem um papel central, sendo que, nesteartigo, seleccionaram-se os lugares que nos permitiram observar o trabalho

    das especialidades mdicas de hepatologia, cirurgia e anatomia patolgica.Assim, comeamos por estabelecer a distino entre o conhecimentoterico e o conhecimento adquirido atravs da experincia no terreno das

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    prticas mdicas, evidenciando a primazia da experincia clnica em relaoao conhecimento terico na construo do conhecimento mdico; abordam--se ainda os discurso(s) e prtica(s) mdicas, a propsito da construo do

    diagnstico; finalmente, e a encerrar a discusso, focada a questo daincerteza na construo do conhecimento mdico.

    . Entre a teoria e a prtica da medicina: o primado da experincia cnicana construo do conhecimento mdico

    Tal como em qualquer outra rea da medicina, na transplantao hepticao conhecimento mdico constitui propriedade emergente da interacoentre as diferentes especialidades mdicas. A prtica clnica encerra pro-cedimentos que atravessam a actividade mdica estando os processos de

    produo do conhecimento e de formao de opinio dispersos no tempoe no espao.

    A noo de conhecimento est profundamente ligada ideia de compe-tncia, sendo por isso importante perceber como estas noes se interligamnas prticas mdicas quotidianas. Mas importa no esquecer que cada espe-cialidade encerra em si conhecimentos e competncias prprias que, noconjunto das interaces, constroem um patrimnio de conhecimentoscomuns, traduzidos em competncias.

    A propsito das referncias bsicas das noes de trabalhoe competncia,podemos afirmar que se trata manifestamente de um corpo de factos orde-nados por determinadas ideias abstractas ou teorias que se encontram mate-rializadas nos tratados e nos manuais (Freidson, 1984). Estas fornecem asubstncia formal daquilo que os especialistas aprendem nas suas escolas eque considerado como conhecimento. Esse conhecimento ou competn-cia , pois, extremamente limitado enquanto realidade; ele est encerradonos livros ou nos crebros e, definido nestes modos, parece no ter qualquerligao com as prticas mdicas. Neste sentido, Freidson (1984) chama aateno para a absoluta necessidade de redefinir a noo de conhecimento,estabelecendo a correspondncia entre o saber e o fazer.

    Avanando nesta linha, podemos distinguir os que se consagram ao desen-volvimento de um corpo de conhecimentos daqueles que os aplicam. Trata-sede distinguir o corpo dos conhecimentos enquanto tal das actividades huma-nas que consistem em criar esse conhecimento (investigao e pesquisa) eem aplic-lo (a prtica). Podemos avaliar estas actividades de acordo coma sua fidelidade em relao ao conhecimento, i.e., tentar perceber em que

    medida as prticas mdicas se fundam no conhecimento terico. Assim,para avaliar o especialista e a sua competncia, no avaliamos apenas oconhecimento da sua disciplina enquanto tal, mas tambm as relaes entre

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    aco fundada sobre essa experincia encorajada pela ideologia da medicina.Trata-se, precisamente, de uma nfase inversa que ocorre na cincia acercado conhecimento tornado comum, recolhido e verificado graas a mtodos

    que tm como objectivo ultrapassar as deficincias da experincia individual.O saber prtico, em primeira mo, , assim, muitas vezes designado porsabedoria e representa o condensar da experincia de toda uma vida.

    Alguns dos mdicos e cirurgies da UT enquadram-se precisamente nesteperfil. Para alm do director da unidade, que constitui uma referncia rela-tivamente a experincia acumulada e pioneirismo nesta rea da medicina,outros elementos da equipa destacam-se no domnio de tcnicas especficas,no caso dos cirurgies, ou de determinadas patologias, no caso dos hepa-tologistas. Esse domnio tem origem na prpria experincia individual de

    cada um dos sujeitos. Nesta entrevista, vemos referida a importncia daexperincia clnica na construo do conhecimento mdico. No caso daUT, esta experincia acumulada tem vindo a permitir a este servio con-quistar um lugar de referncia no panorama mundial da transplantaoheptica:

    H, com certeza, coisas novas. Primeiro, h um aperfeioamento de dados base, hexperincia adquirida, h uma curva de aprendizagem que, enfim, decorreu. Neste

    momento estamos a uma velocidade de cruzeiro e pouco aprendemos mais a partirde agora no que diz respeito prtica diria, prtica, digamos, rotineira. (HEPATO-LOGISTA, 12)

    A experincia clnica to fundamental na transplantao que o lana-mento do Programa de Transplantao Heptica, na UT, foi antecedido poralguns anos de cirurgia experimental, num laboratrio criado no hospital,exclusivamente para o efeito. Neste biotrio, anestesistas e cirurgies comlarga experincia nas respectivas reas de especialidade, mas ainda no natransplantao heptica, praticavam em porcos as vrias tcnicas de trans-plantao do fgado.

    Ainda a propsito da importncia da experincia clnica na formaodos mdicos que constituem a equipa de transplantao heptica, sobretudodos mais antigos ou pioneiros desta rea em Portugal, verificamos que fre-quentaram estgios em centros no estrangeiro por forma a aprenderem noapenas o conhecimento terico, mas, sobretudo, experincia clnica. Trata-se,no apenas de aprender com a experincia dos outros, mas, sobretudo, de

    ver como os outros praticam e praticar com eles.Temos, assim, duas componentes essenciais na construo do conhecimentomdico, a teoria e a prtica clnica. No entanto, a propsito da natureza do

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    trabalho mdico, Freidson (1984) refere que este pouco terico, j que setrata sobretudo de um trabalho de aplicao, diferindo, deste modo, dotrabalho de investigao. As especialidades clnicas devem, na maioria dos

    casos, utilizar os princpios gerais para controlar problemas concretos. Pelocontrrio, o investigador parte da investigao de fenmenos concretos paraverificar, elaborar ou encontrar princpios gerais. Na medida em que a pr-tica mdica faz to pouco uso da cincia, esta utilizao obedece a umaorientao caracterstica: ela esfora-se por aplicar, mais do que criar oucontribuir. Se o trabalho mdico se concentra em problemas concretos e nasua soluo prtica, importante que ele prossiga mesmo quando lhe faltamfundamentos cientficos, na medida em que este trabalho assenta sobre ainterveno e independente da existncia de conhecimentos confirmados.

    Assim, o mdico sente-se mais seguro e tranquilo quando procede em situa-es de quase incerteza, ou que ultrapassam mesmo as regras cientficas, doque em situaes onde pura e simplesmente nada faz. Foi possvel observarvrios exemplos concretos na transplantao heptica, sobretudo no que dizrespeito atitude dos cirurgies em face de doentes polmicos, relativamenteaos quais, cientificamente, no existe qualquer indicao para transplante.Mesmo nestas situaes, os cirurgies esto dispostos a correr riscos, namedida em que, no seu entender, mais arriscado ser nada fazer.

    A estes aspectos ainda importante acrescentar que a prtica mdica dizrespeito, acima de tudo, a situaes individuais, procedendo pouco deacordo com aspectos estatsticos ou de conjunto. Este tipo de dados uti-lizado quando serve apenas como referncia para determinar a natureza deum caso especfico. Mesmo quando se dispe de conhecimentos cientficosgerais, o simples facto de as variaes individuais colocarem constantementeo problema da estimativa torna necessria a realizao de exames pessoaise directos em cada caso individual. Como refere um dos hepatologistas,no existem doenas, mas sim doentes (nota de trabalho de campo).

    A propsito da importncia do risco e da tomada de deciso que estesaspectos implicam, Freidson (1984) refere que o risco e os juzos formuladospodem variar consideravelmente consoante as situaes concretas. Noentanto, existe um aspecto que jamais varia: o facto de se tratar de umtrabalho de aplicao que implica a interveno do mdico, seja qual for oestado de conhecimento, e que pressupe a existncia de um elementocentral a experincia directa de casos individuais. Em vrias ocasies, foipossvel constatar que alguns doentes, imediatamente antes de tomarem

    contacto com a UT, tinham como referncia um dos elementos da equipa. o caso de um doente que teve conhecimento do servio por via de umdos cirurgies que procurou por sua iniciativa, na medida em que era

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    reconhecido pela opinio pblica como um dos mdicos mais experientesna rea do transplante heptico. A importncia da experincia clnica , defacto, fundamental tambm do ponto de vista da opinio pblica. De uma

    forma geral, os mdicos, e os servios a que esto associados, so reconhe-cidos pelo nmero de casos tratados, pelos resultados que apresentam epelos anos de experincia em reas especficas de interveno, tal como referido nesta entrevista.

    No adianta ter um centro que transplante uma ou duas crianas por ano. Eu, comopai, no vou dar a transplantar o meu filho a pessoas que fazem um ou dois trans-plantes por ano. Vou a outro centro que tenha uma casustica muito maior, est aperceber. As Unidades s se tornam boas quando fazem muitos, quando tm expe-

    rincia. Aqui ningum iluminado. (CIRURGIO, 8)

    Estes factores que caracterizam o trabalho mdico quotidiano parecemser responsveis pelas atitudes que limitam o sentido de responsabilidade,dando-lhe contornos especiais. O mdico conduzido a valorizar a suaresponsabilidade individual em detrimento de uma responsabilidade colec-tiva, levando, por outro lado, a poucos esforos no sentido de fazer respei-tar as normas profissionais de eficcia. Do mesmo modo, esta situao

    conduz valorizao da primazia da experincia clnica directa sobre as leiscientficas ou as regras gerais, acentuando-se a diversidade de opinies defi-nidas como aceitveis e permitindo resistir, de conscincia tranquila, a even-tuais crticas provenientes dos seus pares.

    Num trabalho acerca dos estudantes de medicina na dcada de 60, Beckeret al. (1961) referem que, durante os anos de formao, so incutidos nosfuturos mdicos padres de comportamento orientados de acordo com duasnormas decisivas a responsabilidade e a experincia. O termo experin-cia refere-se experincia clnica, experincia real em lidar com os doen-tes e a doena, sendo que o seu significado assenta na sua polaridade impl-cita na aprendizagem atravs dos livros (book learning). A experinciaclnica implcita neste termo d ao mdico o conhecimento necessrio paratratar os seus doentes com sucesso, mesmo que esse conhecimento aindano tenha sido sistematizado e comprovado cientificamente. O mdico noadquire este conhecimento atravs do estudo, mas sim atravs da observaodo fenmeno clnico que lhe permite lidar com problemas clnicos. A expe-rincia clnica pode mesmo chegar a substituir o conhecimento cientifica-

    mente comprovado e ser utilizada para legitimar a escolha de procedimentose para eliminar a utilizao de outros que esto cientificamente estabeleci-dos (Becker et al., 1961).

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    No decorrer desta investigao, assistimos a diversas situaes em que aopo pelo transplante acaba por ser justificada com base na experinciaclnica deste servio, fazendo quase tbua rasa do conhecimento cientifica-

    mente comprovado pela literatura. Como refere um dos cirurgies, dadaa qualidade do servio prestado por esta unidade de transplantao, cujosresultados falam por si, podemos ter lugar para excepes (nota de traba-lho de campo).

    Esta ideia assenta no facto de que o mdico, para elaborar o seu diagns-tico, deve ainda utilizar directamente os seus sentidos, que devem ser trei-nados na prtica, o que quer dizer que o conhecimento livresco e cientfico,em face das contingncias prticas e da complexidade dos casos individuais,no suficiente. Seja qual for o motivo, a experincia tem primazia na

    formao mdica. O trabalho de Becker et al.(1961) mostra que a ideia deexperincia clnica organiza a escolha dos estudantes de medicina, na medidaem que estes consagram o mximo de esforos acumulao de experin-cias prticas, em detrimento de conhecimentos abstractos.

    Tambm Freidson (1984) estabelece uma comparao entre mdicos quepraticam a clnica e tericos e investigadores. Assim, e em primeiro lugar,o autor refere que o objectivo dos primeiros sobretudo a aco e notanto o conhecimento, pretendendo agir com sucesso. Mesmo que o fruto

    da sua aco no seja positivo, ainda assim prefervel agir a no fazer nada.A aco transforma-se num fim em si mesmo. Nesta linha surge, em segundolugar, aquilo que Freidson designa por acreditar no que faz. O clnicoacredita, de uma forma geral, que a sua interveno faz sempre mais bemdo que mal. Ele prprio reage como perante um placebo, na medida emque o seu trabalho se processa em torno de uma srie de problemas con-cretos e individuais. O sucesso que o premeia e a causa que o determinararamente so equvocos. Uma vez embrenhado na aco, o clnico, porvezes confrontado com o erro, levado a manifestar uma certa vontade emacreditar no valor daquilo que faz. Em terceiro lugar, seja devido a estaorientao para a aco, seja pela complexidade e pela diversidade dos casosconcretos, o clnico sobretudo um indivduo pragmtico, mais fiel aosresultados concretos do que, propriamente, teoria. Em quarto lugar,enquanto clnico, o mdico aprendeu a acreditar que o tempo ajuda e quepode confiar na acumulao da sua experincia directa e pessoal, no subjec-tivismo, deixando para segundo plano os princpios abstractos, sobretudoquando se trata de avaliar e tratar os aspectos do seu trabalho que no

    revelam automatismos. Finalmente, o mdico clnico acentua, de formaconsciente, o peso da indeterminao ou incerteza, sem perder tempo comquestes de regularidade ou de comportamento cientfico. Que este aspecto

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    possa ou no significar ignorncia nos domnios do conhecimento e datcnica disponveis, no relevante; o que importa salientar que a incertezaproporciona ao mdico o terreno psicolgico que lhe permite justificar a

    importncia pragmtica que concilia com a experincia directa.Mesmo assim, na UT, as especialidades mdicas observadas consideramfundamental a componente de investigao, evocando a dificuldade emconciliar a investigao com a prtica clnica, pelas caractersticas dos pr-prios hospitais e respectivos servios, que influenciam as formas atravs dasquais o conhecimento mdico se reproduz. Neste sentido, a vocao destaunidade hospitalar, sobretudo ligada prestao dos cuidados mdicos eno investigao, condiciona as formas de reproduo do conhecimento,que predominantemente construdo na prtica clnica da prestao dos

    cuidados mdicos.As responsabilidades assumidas pelo mdico em relao aos actos que

    pratica tornam-no, necessariamente, vulnervel. No caso particular da trans-plantao heptica, esta questo assume de facto um enorme peso. Eminmeras ocasies observmos que, se, por um lado, so gratificantes assituaes em que o mdico reconhecido por ter sido bem sucedido, domesmo modo pode incorrer em situaes de reprovao em circunstnciasopostas. Assumir a responsabilidade de uma prtica concreta, seja qual for,

    implica correr riscos. A confiana depositada na experincia clnica pessoaltem um grande peso, de tal forma que o mdico acaba por privilegiar aautoridade das suas faculdades sensoriais, libertando-se ao mesmo tempoda hegemonia presente na tradio ou na cincia. Em ltima instncia, acincia e apenas ela que guia os seus actos, mesmo quando os resultadosesperados no so alcanados. Muitas vezes, o mdico recusa-se a modificara sua tctica com base em consideraes estatsticas ou abstractas. Ele pre-cisa de ver e de sentir por si mesmo. Sobretudo, necessita de tentar salvarvidas atravs do ltimo dos recursos possveis, o transplante.

    Podemos ento distinguir racionalidade clnica de racionalidade cient-fica. Assim, a primeira singular e tcnica, constituindo um todo, umaespcie de classificao com imensos detalhes que provm dos casos indi-viduais. A grande diferena entre estes dois tipos de racionalidades quea primeira no constitui um instrumento destinado a explorar ou a des-cobrir princpios gerais, como o caso do mtodo cientfico, constituindoantes um instrumento destinado apenas a separar e a estabelecer inter-conexes entre os factos que o mdico percebe e aqueles que ele coloca

    como hipteses. Assim, os princpios constroem-se no decorrer da prtica,mas trata-se de generalizaes a partir da experincia clnica, i.e., de umaexperincia pessoal.

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    3. Discurso(s) e prtica(s) mdicas. A construo do diagnsticoNas prticas mdicas, a utilizao de vocabulrio especfico ou linguagemcientfica acerca da doena, parece reforar estratgias particulares que

    deixam adivinhar determinados conflitos de interesses. Nestas interaces,os mdicos comunicam informaes tcnicas especficas que dizem respeitoa casos especficos. Atravs do discurso utilizado, constatamos a existn-cia de um monoplio de competncias e conhecimentos especializadosque sustentam a base do exerccio da profisso por parte destes mdicos,possibilitando-lhes a posse de um estatuto prprio no interior do grupo,que se traduz no poder de tomar decises concretas no que diz respeitoao percurso da doena. Deste modo, a autoridade do mdico, por exem-plo numa consulta, depende da extenso considervel do seu monoplio

    de conhecimento.A propsito do trabalho de diagnstico, Atkinson (1981) refere-o como

    um campo de manifestaes que devem ser interpretadas por forma a pro-duzir um quadro de diagnstico que permita atribuir um rtulo credvel doena. A retrica convencional da prtica mdica apresenta dois tipos dedados disponveis que se referem a sinais e sintomas. No entanto, estesaspectos relacionados com a doena, ao contrrio do que possa parecer partida, esto relacionados com aspectos subjectivos de interpretao dos

    sinais e sintomas, opondo-se ao que muitas vezes assumido como factoresobjectivamente observveis da doena.Neste sentido, interessa analisar estes procedimentos interpretativos, a

    forma como os mdicos falam dos sinais objectivos da doena, construindodesta forma o seu diagnstico. Na linha de Foucault, podemos referir quetudo aquilo que num determinado momento pode parecer claro no o foicertamente noutros momentos da histria da medicina. Tambm determi-nados aspectos que se apresentam bvios para determinados indivduosque pertencem a determinada cultura no o so para outros. Assim, a dimen-so histrica dos olhares ilustrada por Foucault (1963). O autor utilizao contraste entre duas descries clnicas por forma a ilustrar a mudanafundamental associada ao nascimento da clnica. Esta mudana dependeda alterao das formas de percepo, o que quer dizer que a relao entreo visvel e o invisvel altera a sua estrutura que revelada a partir do gazeeda linguagem. Tambm Mol (2002) refere a relao entre estes mltiplosconhecimentos, tecnologias, percepes da doena e a prtica mdica.A par da observao das prticas mdicas em torno do diagnstico e trata-

    mento da aterosclerose, a autora analisa o discurso do doente em torno dadoena, reflectindo sobre uma multiplicidade de olhares sobre a mesma.Do mesmo modo, a respeito do diagnstico, Atkinson (1981) compara esta

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    fase do trabalho mdico ao trabalho de detective. As tarefas de construoda histria clnica, observao, anlise da informao disponvel, prove-niente de diversas fontes, so, assim, comparadas a todo um trabalho de

    reconstruo em que o mdico aplica a famosa tcnica de deteco. Estemtodo est, sobretudo, associado s especialidades mdicas. Por exemplo,a construo do conhecimento mdico que ocorre nos laboratrios de ana-tomia patolgica revela-se como um dos exemplos mais elucidativos doclinical gaze de Foucault. A importncia dos vrios olhares sobre uma rea-lidade que no se apresenta de uma forma evidente partida, ajuda a cons-truir as vrias hipteses atravs de um mtodo de observao rigoroso, noqual a intuio e a deduo se misturam numa espcie de exerccio perma-nente em que a teoria e a prtica se fecundam mutuamente.

    Na transplantao heptica, como refere um dos anatomo-patologistas,a abordagem um pouco subjectiva, o que implica a presena de vriosolhares que observam o mesmo fenmeno de diferentes ngulos. Em todoeste processo, a presena de outros conhecimentos para alm do dos ana-tomo-patologistas, nomeadamente das especialidades clnicas, fundamen-tal. A este propsito, como referem Keating e Cambrosio (2003: 39), interessante observar de perto a ligao entre estas actividades de plataformae as actividades clnicas, j que a estrutura hospitalar no est simplesmente

    organizada em torno de plataformas tcnicas; estas redefinem as prticasclnicas e fazem-no incorporando o conhecimento biomdico. Deste modo,as plataformas tcnicas levam transformao das relaes entre a biologiae a clnica, permitindo a redefinio da organizao e contedo do trabalhoem medicina (Keating e Cambrosio, 2003: 43). No caso da UT, sobretudonos casos mais polmicos, nomeadamente nas rejeies do novo rgo trans-plantado, que a presena do hepatologista imprescindvel, no apenaspelo conjunto de informaes que domina acerca do doente, mas tambmpelos seus vastos conhecimentos e experincia nas reas especficas dofgado, que corresponde a um olhar necessariamente diferente sobre o fen-meno, absolutamente essencial para, em conjunto com o anatomo-patolo-gista, concluir acerca do caso em questo.

    Se aparece uma biopsia [] ns as trs vemos, porque melhor vermos as trs doque uma s. Porque em anatomia patolgica h muito isto, para um maior rigor deobservao. Ns fazemos sempre o controlo com mais de um observador e s vezes muito importante...em certos casos, muitos casos difceis... temos de ter uma for-

    mao terica e prtica. Mas a abordagem um bocado subjectiva... tem algo desubjectivo, no ... No s aquilo que se est a ver [] tipo um raciocnio detec-tivesco, passo a passo como o Sherlock Holmes. Quer dizer, vamos ver dali, vamos

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    ver de acol, e passo a passo chegar a e depois isto tudo no pode ser feito isola-damente s com etiologia, tem de ser em simbiose com os dados clnicos... Nopodemos interpretar sem ter um apanhado clnico de todos os dados do momento,

    do doente. Portanto, se no est completo, temos de completar com o nosso colegaque nos pediu e muitas vezes esclarecemos muito. Ainda ontem, olhe foi ontem,era um caso difcil que o hepatologista me mandou. E depois ao falar com ele eudisse-lhe assim: Olhe, tem uma rejeio muito ligeira, mas eu at me apoiei maisporque vi a as anlises e ele disse assim: Olha, que ela teve uma reaco anterior,portanto. E eu at me estava a apoiar numa coisa... mas eu no sabia que ela tinhatido. Note que tudo isto leva a interpretar e preciso sabermos tudo o que se passaao lado... (ANATOMO-PATOLOGISTA, 26)

    Por outro lado, de acordo com a viso das especialidades mdicas nocirrgicas, relativamente ao diagnstico, as reas cirrgicas so encaradasde uma forma mais limitada, nos termos da qual o trabalho do cirurgio, intelectualmente, e mesmo na prtica, mais restrito. No trabalho deAtkinson (1981), os contrastes da medicina criam um esteretipo de acordocom o qual as tarefas de diagnstico, no cirurgio, exigem menos em com-parao com as dos mdicos. O cirurgio tem de ser mais preciso na iden-tificao de uma situao aguda abdominal, podendo ento avanar e abrir.

    O cirurgio pode, assim, lidar directamente com o problema, enquanto omdico tem de trabalhar distncia, ficando pela deduo clnica. Emltimo recurso, o cirurgio pode confirmar as suas dvidas atravs daobservao directa.

    Talvez por estes motivos, os hepatologistas referem-se muitas vezes aoscirurgies como mais tcnicos, por executarem um trabalho de mos (naUT, o termo homens do talho , de um modo geral, atribudo aos cirur-gies), oposto a um trabalho mais intelectual dos mdicos. Da mesma forma, atribudo aos cirurgies um trabalho em torno de doenas especficas elocalizadas, enquanto os problemas da medicina so, na maioria, mais geraise difusos, exigindo muito em termos de agudeza de esprito por parte domdico. Numa ocasio em que trocvamos algumas impresses com umdos hepatologistas acerca de um doente transplantado, este mdico referiaa incapacidade dos cirurgies em avaliarem os doentes a partir de tcnicasque no as cirrgicas: eu consegui ver qual era o problema atravs do TACe eles, mesmo abrindo, tiveram dvidas (nota de trabalho de campo).

    Obviamente que a viso do cirurgio acerca da sua especialidade bem

    diferente. Como podemos constatar a partir da observao, a grande maio-ria dos cirurgies no se encaixa neste esteretipo, muito pelo contrrio.O cirurgio encara a prtica da cirurgia como intelectualmente estimulante.

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    Alis, o prprio acto mdico em torno da cirurgia, com todo o aparatocirrgico do bloco operatrio, a par dos grandes momentos de tenso, d cirurgia um charme prprio ou, como refere Atkinson (1981: 32), a gla-

    mour all of its own.De facto, a importncia da experincia mdica faz-se sentir de uma formaparticular na especialidade de cirurgia, na qual a expresso h que ganharmo, muitas vezes utilizada pelo cirurgio, ilustra o peso desta componentena construo do conhecimento mdico nesta especialidade, que, alis, caracterizado por uma forte componente de equipa, ao contrrio do que sepassa em relao aos hepatologistas, para quem a construo do conheci-mento mdico individual.

    O peso que a experincia clnica tem na formao das competncias

    mdicas ainda mais acentuado na especialidade de cirurgia. Se a esteaspecto acrescentarmos o facto de estarmos perante uma rea cirrgica dasmais sofisticadas, mais reforada e determinante ser a absoluta necessidadede um treino cirrgico que pressupe muitas horas de prtica. Os exemplosnesta investigao so, alis, muito elucidativos.

    Com experincia evidentemente. Fundamentalmente esse conhecimento ganhono dia a dia no dia a dia que se aprende. E com determinada situao que

    apresentada, que o doente apresenta (CIRURGIO, 10)

    A propsito da formao dos cirurgies mais novos, um dos mais jovensmembros da equipa refere a oportunidade que dada aos internos de cirur-gia, logo nos primeiros anos, de poderem praticar a cirurgia de transplantecom os seus tutores, o que testemunha a importncia fundamental da expe-rincia cirrgica.

    Aqui o que a gente ganha em termos cientficos um pouco aquilo a que as pessoas

    chamam experincia e isso. Uma experincia conhecimento cientfico... A gentechama-lhe outra coisa. (CIRURGIO, 2)

    No se pode vir s ao transplante duas vezes por ano; quem quiser tem que vir, temque dar mesmo o litro, porque para aprender tem que dar o litro. E no compatvelcom vir s uma ou duas vezes por ms ou de trs em trs meses... No! No com-patvel, tem que vir [] e sacrificar a vida familiar, sacrificar o tempo livre, sbados,domingos, feriados, e nem toda a gente est disposta a isso. (CIRURGIO, 5)

    Nesta entrevista, a propsito da falta de internos de cirurgia interessadosno transplante, um dos cirurgies refere a importncia da transmisso do

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    conhecimento para os mais novos a partir da prtica cirrgica que funda-mental na formao de um cirurgio. Mesmo no caso dos internos de cirur-gia que no tm, necessariamente, a ver com o transplante heptico, a opor-

    tunidade de aprender a partir da sua presena numa operao de transplanteou de colheita constitui uma mais-valia extremamente importante para aaquisio de conhecimento.

    Para a cirurgia geral, o supra-sumo da cirurgia geral. Para o aluno ns trazemos,os alunos tm que vir connosco, e eles querem muito e ns fazemos e temos a nooque estamos a investir no futuro. Porque h muitos alunos que esto a gostar muitodo transplante e a achar muito interessante, portanto, estamos a colocar o bichinhoda transplantao. [] Dizemos: Vocs deviam ir ao transplante, aquilo realmente

    ptimo para vocs [] Ns tentamos imenso que isso se passe e que as pessoasvo connosco e tentamos puxar as pessoas a ir connosco. Mas realmente vemos quede cada dez que ns, entre aspas, chateamos para virem, h um que vem, ou hdois que vm. E desses dois h um que fica, que gosta e que realmente no podeser mais interessante. Agora, aquela que se calhar d mais nas vistas, percebe?O transplante!! Uma sala muito grande, com muita gente l dentro, com muitaaparelhagem com muito ... muitas horas. (CIRURGIO, 4)

    No caso dos hepatologistas, para alm dos aspectos referidos a propsitoda produo de conhecimento mdico na construo do diagnstico clnico,a experincia clnica assume igualmente um papel de relevo.

    [] A pessoa no sabe fazer CPREs1se no tiver aprendido a fazer endoscopias, eendoscopias provavelmente no tem nada. Portanto, h todo um caminho que preciso percorrer para que depois se possa dar apoio parte hepatolgica, especifi-camente. Mas para isso preciso uma formao prvia. Por isso que as coisas devemser mais gerais, digamos, mais A partir de uma determinada altura, ento a parte

    tecnolgica quem no pratica no no faz pura e simplesmente. No sabe (HEPA-TOLOGISTA,13)

    . Conhecimento mdico, experincia cnica e incertezaNo contexto da medicina, o conhecimento mdico tem estado associado noo de experincia clnica e garantido pelo privilgio do clinical gaze(Foucault, 1963). Este aspecto veio consolidar a centralidade da aprendi-

    1 Colangio-pancreaticografia retrgrada endoscpica (CPRE). Trata-se de uma endoscopiapancretica e biliar que, associada tecnologia de ultra-sons, proporciona a resoluo de imagensde alta qualidade.

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    zagem na prtica da clnica como forma de transmisso cultural do conhe-cimento. Apesar da fragmentao do conhecimento mdico e do seu ensino,do desenvolvimento crescente de especialidades e da crescente importncia

    da cincia e da tecnologia, o ensino na prtica da clnica continua a assu-mir uma importncia central. Assim, no obstante as alteraes tericas eprticas da educao e formao de mdicos, o ensino das prticas mdicastem permanecido, no seu essencial, inalterado. A sua justificao residenaquilo que Foucault identifica, desde os primrdios da medicina, comoum apelo experincia directa e pr-terica e acumulao de experinciaclnica pessoal.

    A importncia crucial da experincia muitas vezes relacionada comum conjunto de factores referidos como incerteza. Freidson (1984) assi-

    nala a questo da incerteza no conhecimento, sugerindo que o conheci-mento e a experincia pessoal ou individual contrastam com as noes deprevisibilidade e regularidade. A este propsito, Atkinson (1981) refere aquesto do dogmatismo, apresentando este termo no em oposio noode conhecimento pessoal, mas como parte da mesma perspectiva da expe-rincia individual. O mdico que apela ao seu conhecimento individualf-lo, no por referncia sua incerteza, ou incerteza dos seus colegas,mas baseando as suas aces e decises naquilo que se pressupe conso-

    lidado, i.e., a certeza proveniente da experincia directa confirmada ereconfirmada. O apelo constante experincia aceite para criar conhe-cimento acerca da regularidade e da estabilidade. O mdico pratica nacondio da certeza pessoal, seguro da sua prpria experincia, tal comosugere Atkinson (1981) quando refere que o apelo experincia assumidopor forma a prover conhecimento da regularidade e estabilidade, sendoque a ordem assumida para ser inerente ao fenmeno e aberta ao gaze,em vez de residir em sistemas de teoria. A clnica , portanto, tomadapara prover s demonstraes incontestveis da realidade na percepodirecta das suas regularidades. O clnico no est, portanto, a operar numestado de incerteza, mas antes a operar numa garantia segura atravsda experincia.

    O conhecimento mdico , deste modo, produzido com base na expe-rincia. No fundo, trata-se daquilo que Freidson (1984: 171) designa pormentalidade clnica. Tendo de confiar constantemente na sua experinciapessoal, em casos concretos e individuais, o mdico acaba por confiar essen-cialmente na autoridade dos seus prprios sentidos, independentemente da

    autoridade da tradio ou da cincia. Deste modo, o mdico apenas podeactuar com base naquilo que ele prprio experimentou, sobretudo quandoos resultados da sua prtica so positivos.

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    Assim, o carcter intuitivo na percepo da doena, que pouco tem a vercom questes cientficas, testemunhado pelos mdicos com longa expe-rincia clnica. Quanto a este ponto, de referir o excerto de entrevista em

    que apenas o director da UT e o coordenador das equipas de anestesia eintensivismo apoiam a deciso do coordenador dos hepatologistas, no querespeita ao transplante de um doente cujo diagnstico polmico. Emunssono, estes trs elementos de especialidades diferentes reafirmam a vozda experincia que, como podemos verificar, tem um enorme peso natomada de deciso.

    O Dr [coordenador da equipa de anestesia e intensivismo] s vezes vai porque temosuma ligao muito grande com ele. Vai e actua [] eu acho que um indivduo

    ptimo! Tanto que chegou a ir a Cascais ver um doente meu, porque eu achava queaquele doente [] Eu tenho uma espcie de sexto sentido, eu achava que aqueledoente se safava, estava muito mal. E eu apresentei o doente, toda a gente olhou paramim como se eu fosse maluca, excepto o director. Todos! E o director disse estbem, mas eu gostava que o Dr o visse, para ver a parte pulmonar. [] E foi a casadele e apoiou-nos eu concordo consigo, eu acho que ele vai aguentar. E l est,est ptimo. Foi de tal maneira [] Ele tinha uma cirrose heptica alcolica e estavamesmo nas lonas. [] foi de tal maneira que o cirurgio disse quem que o louco

    que mandou transplantar este doente. [risos] [] mas aguentou, est ptimo, ofgado aguentou. (HEPATOLOGISTA, 11)

    Desta forma, fica expressa a importncia de uma atitude interdisciplinarque necessria por forma a conjugar os diferentes conhecimentos e olha-res das vrias especialidades mdicas que, no seu conjunto, contribuem parao sucesso da transplantao heptica. No entanto, conjugar os diferentesconhecimentos, que se traduzem em discursos nem sempre fceis de con-ciliar, conduz, em algumas situaes, a conflitos.

    A questo dos diferentes olhares sobre a mesma realidade aqui colocadade uma forma clara. O hepatologista refere a produo do conhecimentomdico como uma construo a partir de vrios olhares e da forma diferentede questionar essa mesma realidade.

    assim, to importante eu tratar um doente, estar aqui a ver um doente, como to importante eu gastar o mesmo tempo a reflectir sobre o trabalho que fiz. Porqueo reflectir leva depois investigao, pesquisa, a tentar perceber os erros. E da

    relao e do contacto e da discusso com outros colegas das outras especialidades que, s vezes, nascem coisas. Porque ns, por vezes, contactamos pouco, e portantoas coisas vm todas por escrito e s vezes h problemas de comunicao, digamos.

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    A pessoa escreve uma coisa e pensa que est a transmitir outra, outro l e pensacompreende outra coisa e pronto, fundamental. As reunies multidisciplinaresso uma parte do trabalho multidisciplinar. Quer dizer, eu ir-me sentar ao lado de

    uma anatomo-patologista a ver uma lmina que ela j me descreveu e no sei que tal e tu no achas que tambm podia ser isto. Porque, por muito objectivo queparea ser uma lmina, que uma coisa que est ali a meter-se pelos olhos adentro,aquilo depende muito das hipteses que se pem, a gente olha para as coisas dumamaneira diferente. E, portanto, eu, s vezes, costumo dizer que nos relatrios quefao, costumo dizer a brincar que para puxar pelo anatomo-patologista. Ponhohipteses malucas para ele pensar, para ele estar a olhar para ali e pensar naquelashipteses e dizer no isto no , ou isto ou isto pode ser, porque realmenteso as coisas [] deve haver sempre uma informao o mais circunstanciada

    possvel, para a anatomo-patologista [] para ele perceber o que a gente viu, oque a gente pensa daquilo tudo, para ver com esses olhos o que ele acha disso.(HEPATOLOGISTA, 13)

    Refora-se aqui um factor primordial para o sucesso do transplanteheptico a conjugao de vrios olhares construdos a partir de conhe-cimentos diversos e especficos sobre uma mesma realidade. De facto, natransplantao heptica, tal como em outras reas especficas da medicina,

    o conhecimento mdico est repartido pelas diversas especialidades mdi-cas que compem a equipa. A estes vrios fragmentos do conhecimentomdico correspondem diferentes olhares sobre o doente e a doena, queoperam dentro do seu campo de aplicao de forma autnoma. Destemodo, a capacidade de deciso encontra-se, tambm ela, fragmentadapelos diversos momentos do circuito de transplantao, em que cada umadas especialidades assume maior autonomia. Acresce que nas zonas defronteira destes conhecimentos que estes olhares divergentes assumemcontornos de conflito, sobretudo quando esto presentes casos polmicos(Serra, 2006).

    grande especializao dos saberes mdicos corresponde, necessaria-mente, uma maior restrio do olhar clnico. Na transplantao heptica,dada a exigncia de conhecimentos muito especializados, os diferentes olha-res so cada vez mais estreitos e, portanto, menor a capacidade de obser-var o doente como um todo. Neste sentido, torna-se cada vez mais funda-mental a conjugao com os restantes saberes. A interdisciplinaridade, sema qual no possvel a construo do conhecimento global de transplanta-

    o heptica, constitui o grande mote de convergncia de todos estes olha-res, conhecimentos, tcnicas, prticas e discursos mdicos.

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    . ConcusoNa transplantao heptica, o conhecimento e discurso mdicos constituemtecnologias de poder por excelncia. Estes dois elementos so construdos

    no quotidiano das prticas mdicas, e a experincia clnica assume umafuno primordial nessa construo. A utilizao de um discurso cientficoacerca da doena, parece reforar estratgias particulares que deixam adi-vinhar conflitos de interesses. Nestas interaces, os mdicos trocam entresi informaes tcnicas especficas em torno dos casos clnicos. A partir dodiscurso utilizado, constata-se a existncia de um monoplio de competn-cias e conhecimentos especializados que sustentam a base do exerccio daprofisso mdica e que se traduz no poder de tomar decises concretas noque diz respeito ao percurso da doena.

    Estamos, claramente, perante um servio com uma componente tcnicaextremamente complexa, bem manifesta no modelo de produo dos cui-dados mdicos, verificando-se a coexistncia de prticas mdicas heterog-neas na produo dos cuidados, fruto da hiper-especializao mdica exis-tente no servio. Esta complexificao da prestao dos cuidados, marcadapor concepes e olhares distintos sobre a doena, valorizando-se ora adoena, ora um rgo em particular, ora as tcnicas, constantemente nego-ciada atravs de um discurso cientfico que a justifica, coexistindo de uma

    forma dinmica vrias abordagens em torno do mesmo caso clnico.Nas especialidades observadas, podemos constatar que a experinciaclnica assume um papel central na construo e reproduo do conheci-mento, relativamente a outros processos, tais como a investigao cientficaou a apreenso de conhecimentos tericos. A partir da prtica clnica, osvrios casos que se apresentam constituem importantes elementos a partirdos quais os mdicos das vrias especialidades recolhem informao ereconstroem esse conhecimento. Em termos de diversidade de patologiasdo fgado e tratamentos a elas aplicados, o conhecimento mdico renova-seconstantemente a partir das prticas mdicas quotidianas. Mesmo assim,todas as especialidades consideram fundamental a componente de investi-gao, invocando a dificuldade em conciliar a investigao com a prticaclnica, pelas caractersticas dos prprios hospitais e respectivos servios,que influenciam as formas atravs das quais o conhecimento mdico sereproduz. Neste sentido, a vocao desta unidade hospitalar, sobretudoligada prestao dos cuidados mdicos e no investigao, condicionaas formas de reproduo do conhecimento que predominantemente cons-

    trudo na prtica clnica da prestao dos cuidados mdicos.A experincia clnica igualmente um factor que contribui para contor-nar os contextos de incerteza, i.e., o conhecimento construdo a partir das

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    prticas mdicas legitima a aco e deciso mdicas mesmo que, muitasvezes, contrarie o conhecimento terico. Desta forma, o conhecimentomdico produzido com base na experincia, a partir de casos concretos e

    individuais, apela para a natureza intuitiva da percepo da doena, inde-pendentemente da legitimidade do conhecimento cientfico.

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