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VI Seminário Internacional AMÉRICA PLATINA (VI SIAP) e I Colóquio Unbral de Estudos Fronteiriços
TEMA: “América Platina: alargando passagens e desvendando os labirintos da integração” Campo Grande, 16,17 e 18 de novembro de 2016
UEMS (Unidade Universitária de Campo Grande)
ISBN: 978-85-99540-21-3
CONCEPÇÕES DE PROFESSORES/AS E ESTUDANTES SOBRE GÊNERO
E SEXUALIDADE, CAMPO GRANDE, MS
Roberta de Souza Salgado
1
Profa. Dra. Léia Teixeira Lacerda2
Resumo: O presente artigo está vinculado ao projeto de pesquisa desenvolvido no Programa de
Mestrado Profissional em Educação da Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul e tem por
objeto de investigação as concepções de gênero e sexualidade evidenciadas nas narrativas de
professores/as e estudantes do 9º ano do Ensino Fundamental em uma escola pública em Campo
Grande – MS. A instituição escolar é um dos espaços sociais primordiais para a construção de
relações de respeito à diversidade e à diferença diante de um contexto brasileiro de desigualdades
de gênero e discriminação quanto à orientação sexual, bem como com a presença das demais
formas de violência física e simbólica. Diante dessa problemática, este trabalho busca analisar
essas concepções e contextualizar a ampliação do Ensino Fundamental a partir da legislação
vigente, dispondo sobre a duração de 9 (nove) anos com matrícula obrigatória a partir dos 6 (seis)
anos de idade. Para isso, propõe-se a: a) caracterizar a referida escola quanto ao seu histórico e
Projeto Político Pedagógico (PPP) e b) identificar e compreender como se constituem as relações
de gênero e sexualidade na escola, tendo como instrumento de coleta de dados o uso das narrativas
de professores/as e estudantes a partir de uma abordagem qualitativa e com metodologia
bibliográfica e documental. Para a análise dos dados, serão utilizados/as autores/as que apresentam
pesquisas relacionadas à educação, gênero e sexualidade, constituindo-se o aporte teórico na
perspectiva de educadores/as das áreas de Sociologia, História da Filosofia, entre outras, além das
contribuições freudianas. Com isso, este artigo poderá apresentar contribuições e subsídios para
práticas pedagógicas que abordem as relações de gênero e sexualidade no cotidiano escolar. Por se
tratar de um trabalho que envolve histórias de vidas, é importante ressaltar também que abordar
essa temática com ética se torna primordial, pois as experiências rememoradas apresentadas nas
1 Formada em Pedagogia pela Universidade Leonardo da Vinci. Mestranda em Educação no Mestrado
Profissional em Educação da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS). Bolsista PIBAP. Orientanda da
Profa. Dra. Léia Teixeira Lacerda. E-mail: [email protected]. 2 Docente do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu Mestrado Profissional em Educação e do Programa de
Pós-Graduação Stricto Sensu Mestrado em Educação das Unidades Universitárias de Campo Grande e Paranaíba nas
linhas de Pesquisa: Formação de Professores e Diversidade; Currículo, Formação Docente e Diversidade e História,
Sociedade e Educação da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS).
E-mail: [email protected].
VI Seminário Internacional AMÉRICA PLATINA (VI SIAP) e I Colóquio Unbral de Estudos Fronteiriços
TEMA: “América Platina: alargando passagens e desvendando os labirintos da integração” Campo Grande, 16,17 e 18 de novembro de 2016
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narrativas podem provocar reflexões que evidenciem sentimentos muitas vezes guardados na
vivência dessas pessoas, e o respeito às histórias trazidas é de total importância para conquistar a
confiança dos/das entrevistados/as, contribuição que produz reflexão essencial para as
transformações sociais e culturais daqueles que atuam na escola. Cientificamente, compreendemos
que trazer as possíveis causas de desigualdade de gênero nesse nível de formação relacionadas aos
preconceitos sofridos e evidenciados na escola em muitos casos motivados pela violência de
gênero é uma indicação para o enfrentamento e para a reflexão dessas violências, podendo
fomentar uma possível intervenção no contexto escolar e também na maneira de ver e viver a
dinâmica psicossexual.
Palavras-chave: Relações de Gênero; Sexualidade; Ensino Fundamental; Narrativas.
Abstract: This article is linked to the research project developed in the Professional Master's
Program in Education of the State University of Mato Grosso do Sul and has the object of
investigation the conceptions of gender and sexuality evidenced in the narratives of teachers / as
and students of the 9th year of elementary school in a public school in Campo Grande - MS. The
school is one of the major social spaces for the construction of respect for diversity relations and the
difference before a Brazilian context of gender inequality and discrimination regarding sexual
orientation, as well as the presence of other forms of physical and symbolic violence . Faced with
this problem, this paper seeks to analyze these conceptions and contextualize the expansion of
primary education from the current legislation providing for a period of nine (9) years with
compulsory registration from the six (6) years of age. For this, it is proposed: a) to characterize this
school as its historical and Pedagogic Political Project (PPP) and b) identify and understand how to
constitute gender relations and sexuality in school, with the data collection instrument the use of
narratives teachers / the students and from a qualitative approach and bibliographical and
documentary methodology. For the data analysis, will be used / the author / those with research
related to education, gender and sexuality, constituting the theoretical framework from the
perspective of educators / the areas of Sociology, History of Philosophy, among others, in addition
to Freud's contributions. Thus, this article may submit contributions and subsidies for pedagogical
practices that address gender relations and sexuality in everyday school life. Because it is a job that
involves stories of lives, it is important also to address this issue with ethics becomes paramount,
because recollected experiences presented in the narratives can cause reflections that show feelings
often stored in the experience of these people, and respect brought the stories is all-important to
gain the confidence of / the respondents / as, which produces essential contribution to reflect the
social and cultural transformations of those who work in the school. Scientifically, we understand
that bringing the possible causes of gender inequality in this level of training related to the
prejudices suffered and evidenced in school in many cases motivated by gender violence is an
indication to face and the reflection of this violence, may fuel a possible intervention in the school
context and also in the way of seeing and living the psychosexual dynamics.
Keywords: Gender Relations; Sexuality; Elementary School; Narratives.
INTRODUÇÃO
Os resultados apresentados neste artigo estão vinculados ao projeto de pesquisa
desenvolvido no Programa Mestrado Profissional em Educação da Universidade Estadual do Mato
Grosso do Sul e têm por objetivo investigar e refletir sobre as concepções de gênero e sexualidade e
VI Seminário Internacional AMÉRICA PLATINA (VI SIAP) e I Colóquio Unbral de Estudos Fronteiriços
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buscar evidenciar a relação entre ambos os conceitos nas narrativas de professores/as e estudantes.
Isso porque a escola mostra-se como um dos espaços sociais para a construção de saberes e de
relações de respeito à diversidade e à diferença diante de um contexto brasileiro de desigualdades
de gênero e de discriminação quanto à orientação sexual, com todos os tipos de violência. Isso
posto, busca-se compreender tais concepções a fim de se visibilizarem essas vivências no cotidiano
escolar, pois a escola é um espaço de socialização e onde as relações sociais se evidenciam.
Sobre o tema, Dayrell (2007, p. 1118) destaca que no cotidiano escolar há uma:
[...] Complexa trama de relações sociais entre os sujeitos envolvidos – alunos, professores,
funcionários, pais – que incluem alianças e conflitos, imposição de normas e estratégias,
individuais e coletivas, de transgressão e de acordos; um processo de apropriação
constante dos espaços, das normas, das práticas e dos saberes que dão forma à vida escolar.
O último Censo Demográfico Brasileiro de 2010 (IBGE, 2011, p. 43), por outro lado,
apontou que o Brasil possui 190.755.799 habitantes, e desse quantitativo 51,5% são mulheres. Já
em Mato Grosso do Sul, estimam-se 2.449.024 habitantes, sendo 50,2% de mulheres e 49,8% de
homens. Assim, vemos que as mulheres são a maioria da população brasileira e sul-mato-grossense,
mas sabemos também que ainda não ocupam espaços de poder e representatividade na mesma
proporção. Podemos observar isso nos espaços públicos como a Câmara de Vereadores de Campo
Grande, capital do Estado de Mato Grosso do Sul, que tem em sua maioria representantes do
legislativo do gênero masculino. Se as mulheres estão em maior número populacional, por que
ainda não estão representadas nesses espaços com equidade de gênero?
Nesse sentido, o Instituto Brasileiro de Geografia Estatística, na Pesquisa Mensal de
Emprego (IBGE, 2012, p. 1-20), aponta desigualdades de gênero no Brasil: no ano de 2011, por
exemplo, o rendimento salarial médio de mulheres foi de R$ 1.343,81 enquanto o dos homens foi
de 1.857,53. Ao considerar os novos arranjos familiares em que, muitas vezes, elas são as únicas
provedoras da família, essa desigualdade é mais evidente, e em Mato Grosso do Sul não é diferente:
as mulheres possuem rendimento médio menor que os homens embora apresentem maior taxa de
escolaridade e são as mais afetadas pela violência doméstica segundo o Mapa da Violência da
Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO, 2015).
Esse Mapa da Violência 2015 – Homicídio de Mulheres no Brasil (BRASIL, 2015, p.
17), revela aumento significante das taxas de homicídio de mulheres (por 100 mil) em Mato Grosso
do Sul. Se compararmos os dados recentes com os do ano de 2006, veremos um aumento de 4,8%
das mulheres vítimas de violência para 5,9%. O mesmo documento mostra ainda que “[...] 5,7% das
mulheres maiores de 18 anos do País sofreram algum tipo de violência de pessoas conhecidas e/ou
desconhecidas” (BRASIL, 2015, p. 65).
Já quando se trata de adolescentes, o número é mais alarmante, pois de acordo com o
mapa da violência contra criança e adolescente (BRASIL, 2015, p. 15), o número de mortes por
qualquer causa entre indivíduos de 0 a 19 anos de idade, no ano de 2013 no Brasil, totaliza 75.893
casos. Especificamente na faixa de 16 a 17 anos de idade, no ano de 2013, foram notificados 3.749
homicídios no Brasil, o que chama atenção à necessidade de políticas públicas de enfrentamento à
violência contra mulheres, crianças e adolescentes.
Nessa perspectiva, o relatório final da Subsecretaria de Apoio às Comissões Especiais e
Parlamentares de Inquérito do Senado Federal (BRASIL, 2013, p. 20) – referente a dados de 2010 –
aponta Mato Grosso do Sul no quinto lugar quando se refere às taxas de homicídio feminino, dados
corroborados pela Delegacia Especializada de Atendimento a Mulher (DEAM), que identificou que,
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entre janeiro e novembro de 2012, foram registrados 4.000 boletins de ocorrência, com uma média
de atendimento de 70 mulheres por dia.
Durante minha formação no Ensino Fundamental, não me lembro de em nenhum
momento ter discutido gênero e sexualidade na escola. Na aula de ciência, por exemplo, esse era um
tema considerado tabu que não se discutia quando abordávamos a questão das infecções
sexualmente transmissíveis, por exemplo. Hoje, como pedagoga, feminista e lésbica, vislumbro o
machismo presente no cotidiano da escola por meio do comportamento heteronormativo – padrão
centrado no homem heterossexual – e por discursos homofóbicos – discriminação em relação à
comunidade LGBT3 – oriundos de professores/as e de estudantes, revelando machismo, sexismo e
misoginia que se fazem presentes na sociedade brasileira e se evidenciam no espaço escolar nos
“olhares, falas e piadas”, tipos de violência psicológica que muitas vezes antecedem a violência
física, sempre relacionados ao preconceito contra a diversidade no que toca a orientação sexual e a
identidade de gênero (LGBTfobia).
Nesse contexto, torna-se necessária uma problematização em relação às práticas
pedagógicas e às relações sociais vividas na escola que indague sobre as reproduções de
preconceitos na escola para garantir que a instituição escolar se caracterize como um espaço de
autonomia e construção da cidadania.
Diante dessa problemática, este artigo busca refletir as concepções sobre as relações de
gênero e de sexualidade dos/as professores/as e estudantes do 9º ano do Ensino Fundamental no
âmbito de uma escola pública em Campo Grande – MS.
Para compreender essas questões, mostra-se importante o aporte teórico de autores/as
como Auad (2012), com a obra “Educar meninas e meninos”, e Louro (2007), que contribuem para
a compreensão do recorte de gênero e das dimensões das desigualdades presentes na escola. Minayo
(1993), por sua vez, auxilia este trabalho com a obra “O desafio da pesquisa social” e, junto a
Cunha (1997), apresenta as possibilidades de análise e o conceito de narrativas. Também se
constitui como referência para este texto os estudos de Foucault (2007), autor contemporâneo que
aborda as relações de poder evidenciadas na escola e nos espaços públicos. Finalmente,
estudaremos também textos de Sigmund Freud, considerando sua inegável contribuição à pesquisa
sobre sexualidade, entre outros/as autores/as que pesquisam sobre educação, gênero e sexualidade.
1. A ESCOLA COMO ESPAÇO DE FORMAÇÃO E CIDADANIA
A formação na Educação Básica Brasileira, de acordo com a Constituição Federal
(BRASIL, 1988), é obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, sendo
consideradas as seguintes etapas: a) Pré-Escola; b) Ensino Fundamental e c) Ensino Médio. A
Educação Infantil, também gratuita, deve atender crianças de até 5 (cinco) anos de idade. No art. 30
da Constituição Federal (1988), é colocado como competência dos municípios manter programas de
educação Pré-Escolar e de Ensino Fundamental em cooperação técnica e financeira com a União e
com os Estados, sendo que no art. 208 prevê-se ainda que o Estado deve garantir o Ensino
Fundamental gratuito para todas as pessoas que não tiveram acesso na idade própria.
Além dessas questões, a referida legislação (BRASIL, 1988), no art. 210, dispõe que na
formação básica comum deve haver a garantia do respeito aos valores culturais e artísticos,
nacionais e regionais, sendo o ensino religioso facultativo e a língua portuguesa o idioma do Ensino
Fundamental regular, ressalvado o uso da língua materna e de processos próprios de aprendizagem
às comunidades indígenas.
3 Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais.
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Outro instrumento legal que rege a Educação Básica Brasileira é a Lei de Diretrizes e
Bases da Educação – LDB (BRASIL, 1996). Em seu art. 10, dispõe que os Estados são incumbidos
de definir com os Municípios formas de colaboração na oferta do Ensino Fundamental, ressalvando
a distribuição proporcional das responsabilidades de acordo com a população e com os recursos
financeiros disponíveis nas esferas do poder público. Além disso, também cabe aos Estados
elaborar e executar políticas e planos educacionais integrando as ações dos seus municípios. Já o
art. 11 regulamenta que aos municípios cabe a oferta da Educação Infantil em creches e pré-escolas
e prioritariamente o Ensino Fundamental.
Em relação aos níveis e modalidades de ensino, conforme a LDB (BRASIL, 1996), a
educação brasileira se divide em educação básica e superior. A básica engloba a Educação Infantil
(creches, para crianças até três anos de idade; pré-escola, para crianças de quatro a cinco anos de
idade), o Ensino Fundamental (iniciado aos seis anos, com duração de nove anos) e o Ensino Médio
(duração mínima de três anos). No art. 32, destaca-se que o Ensino Fundamental obrigatório tem
por objetivo “[...] a formação básica do cidadão” (BRASIL, 1996, p. 23).
Ainda no que se refere ao Ensino Fundamental, a LDB (BRASIL, 1996) destaca em seu
art. 32 a importância da compreensão do ambiente natural e social do sistema público, da
tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamentam a sociedade, do desenvolvimento da
capacidade de aprendizagem, tudo visando à aquisição do conhecimento e à promoção de
habilidades que formem atitudes e valores, fortalecendo os laços de solidariedade humana e de
tolerância recíproca em que se assenta a vida social.
Nesse sentido, os conteúdos que tratam dos direitos das crianças e dos/as adolescentes
devem obrigatoriamente fazer parte do currículo do Ensino Fundamental, sendo progressivamente
ampliado o período de permanência na escola (tempo integral), que atualmente é de pelo menos
quatro horas de trabalho efetivo em sala de aula.
Quanto aos dados de escolarização da população brasileira, o Anuário Brasileiro da
Educação Básica de 2015, tendo como fonte dados do Ministério da Educação (MEC), do Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) e da Diretoria de Estatísticas
Educacionais (DEED), demonstra as matrículas gerais (em escolas públicas e privadas) por etapa do
Ensino Fundamental referentes a 2013.
Esse documento registra que os anos iniciais contemplam 15.764.926 matrículas; os
anos finais, por sua vez, somam 13.304.355 matrículas, perfazendo um total de 29.069.281
matrículas em 2013. Em relação às escolas públicas por etapas de ensino, no mesmo ano, foram
13.188.037 matrículas nos anos iniciais e 11.506.403 nos anos finais do Ensino Fundamental,
números que mostram uma maior concentração na rede pública de ensino, evidenciando ainda a
fragilidade e a evasão escolar nos anos finais dessa etapa, pois seus dados são numericamente
inferiores àqueles dos anos iniciais. Essas informações devem ser discutidas, pois apresentam a
desigualdade e a carência de políticas públicas que trabalhem a permanência de estudantes nos anos
finais do Ensino Fundamental.
O Anuário registra ainda, no que se refere aos desafios da educação inclusiva, que:
Entre as estratégias do PNE para o Ensino Fundamental, pelo menos quatro tratam dos
alunos da Educação Especial/Inclusiva e das populações do campo, indígena e
quilombolas, além de que aborda especificamente beneficiários de programas de
transferência de renda e outra voltada para filhos de profissionais dedicados a atividades
itinerantes. Isso comprova que a única forma de passar o atual patamar de atendimento
para a universalização do Ensino Fundamental é a inclusão de todos os segmentos
(BRASIL, 2015, p. 31).
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Quanto aos dados locais relacionados à escolaridade, segundo o Plano Municipal de
Educação de Campo Grande, MS, no ano de 2010, o número de estudantes sem instrução ou apenas
com o Ensino Fundamental incompleto chega a um total de 263.883, enquanto os concluintes dessa
etapa, mas que não completaram o Ensino Médio, totalizam 123.741 pessoas. Isso comprova a
difícil realidade da questão da permanência de estudantes no espaço escolar, pois é maior o número
de alunos/as que não concluem o Ensino Fundamental em relação à próxima fase de escolarização.
O problema da evasão escolar evidenciado no Anuário Brasileiro da Educação Básica e
nos dados municipais nos possibilita questionar sobre as condições de permanência de estudantes
que cursam o 9º ano do Ensino Fundamental. Podemos observar, por exemplo, que o número de
matrículas nos anos finais é inferior ao dos anos iniciais do Ensino Fundamental, e a permanência
na escola pode estar diretamente relacionada às relações de gênero, sexualidade e preconceito, em
um espaço em que o respeito à diversidade é primordial e necessário para a boa convivência social.
Pensando nisso: de que forma a escola pode trabalhar o respeito à diversidade e à diferença na
busca por contribuir para a permanência desses/as alunos/as na escola nessa fase de escolarização?
Para isso, podemos refletir sobre as situações em que são feitas solicitações de
transferência escolar e que podem omitir a expulsão e a desistência de estudantes que cursam essa
etapa, situações essas que precisam ser problematizadas, pois diversos fatores pesam no cotidiano
desses estudantes, como as relações de gênero e sexualidade vivenciadas no contexto escolar e que,
quando visualizadas, auxiliam na permanência de alunos/as no espaço escolar, pois o respeito à
diversidade e à diferença contribui para a inclusão e a permanência na escola, do mesmo modo que
a ética de docentes, estudantes e todo corpo escolar é possível ao tratar as relações de gênero e
sexualidade, buscando igualdade de oportunidades e deferência às especificidades de cada
estudante.
2. O PLANO MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO
Embora nos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN (BRASIL, 1997, p. 25) – esteja
disposto que é obrigatório constarem nos currículos escolares temas transversais como meio
ambiente, saúde, orientação sexual, entre outros, em Campo Grande – MS, o texto original do Plano
Municipal de Educação 2015-2025 que contemplava as relações de gênero, diversidade e orientação
sexual teve rejeição por parte da maioria dos/as vereadores/as, sendo que somente uma legisladora e
um legislador votaram a favor da manutenção do texto original, que continha essas questões. No dia
da votação, católicos e evangélicos marcaram presença na Câmara Municipal e utilizando de
discurso fundamentalista religioso solicitaram, inclusive por meio de uma carta enviada aos
vereadores horas antes da votação, a retirada de pontos importantes (preconceito e discriminação
por questões raciais, de gênero e de orientação sexual) do Plano, como:
2.14 fomentar e apoiar políticas de promoção de uma cultura de direitos humanos no
Ensino Fundamental, pautada na democratização das relações, respeitando as diversidades
de orientação sexual e identidade de gênero, e na convivência saudável com a comunidade
escolar;
2.15 implementar políticas de prevenção à evasão, motivada por preconceito e
discriminação racial, por orientação sexual ou identidade de gênero, criando rede de
proteção contra formas associadas de exclusão (CAMPO GRANDE, 2015, p. 103).
Diante dessa premissa, é possível afirmar que retirar direitos é coibir o acesso ao
conhecimento político-histórico e cultural e negligenciar sua relevância na construção da formação
de cidadãos/ãs que têm direito a uma educação não sexista, não racista, anti-homofóbica e de
qualidade.
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Esse é um movimento de retrocesso proposto por um projeto de Lei nº 8.242, a “Lei da
Mordaça”, que não considera as relações de gênero e sexualidade presentes no contexto escolar no
município de Campo Grande/MS. Dessa forma, o referido Projeto de Lei ratifica o poder do Estado
sobre o sistema educacional, o que se reflete na ação pedagógica, retirando de professores/as a
autonomia em sala de aula e desconfigurando o papel da educação, em desacordo ao que prevê a
LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação) no que se refere à formação da cidadania.
Esse dispositivo legal foi proposto por um grupo de vereadores organizado por
fundamentalistas de âmbito nacional que distorcem a abordagem dos conceitos das relações de
gênero e sexualidade no ambiente escolar e ignoram a relevância de apresentar e problematizar
essas temáticas nos dias de hoje. Podemos perceber assim uma bancada fundamentalista e
conservadora no legislativo, que no âmbito municipal vetou propostas de enfrentamento à
discriminação, propondo inclusive projetos de lei que reforçam o preconceito e tiram a autonomia
dos/das professores/as no contexto escolar. Todavia, no dia 26 de abril de 2016, o Prefeito Alcides
Jesus Peralta Bernal de Campo Grande/MS vetou o PL nº 8.242/2016 após receber nota de repúdio
e manifesto de 32 (trinta e duas) entidades contrárias ao conteúdo proposto pelo referido PL. Entre
elas, estão a Federação de Trabalhadores em Educação de Mato Grosso do Sul (FETEMS), o
Sindicato Campo-Grandense dos Profissionais da Educação Básica (ACP) e a Confederação
Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), que solicitaram o veto por entender que o PL é
anticientífico. Diante disso: podemos ignorar a temática das relações de gênero e sexualidade
evidenciadas no contexto escolar?
Frente ao exposto, o presente artigo imprime sua relevância social ao visibilizar essa
problemática, discutindo a dinâmica das relações de gênero e as vivências da sexualidade na escola
e considerando que as transformações sociais passam pela educação quando se trata de preparar
cidadãos e cidadãs que respeitem a diversidade. Dessa forma, as práticas pedagógicas que abordem
as especificidades de cada estudante são primordiais na prevenção da evasão escolar, ocasionada
muitas vezes pela “exclusão” escolar dos estudantes.
Assim, o presente estudo visa apresentar reflexões sobre as relações de gênero e
sexualidade no ambiente escolar e destacar a importância de práticas pedagógicas que abordem
essas questões para enfrentar o preconceito.
“[...] Se a escola é o fim de nossas pesquisas e de tudo o que escrevemos, o resultado de
nossas pesquisas deveria a ela chegar e, de algum modo, a ela beneficiar” (GARCIA, 2011, p. 15-
16). Sendo assim, torna-se necessário o retorno da pesquisa à instituição escolar no processo de
estudo com histórias de vidas, respeitando a comunidade escolar e visando à construção de uma
educação de qualidade para a diversidade no ambiente escolar.
3. GÊNERO E SEXUALIDADE NA ESCOLA
O aporte teórico que contribui para este artigo baseia-se em Freud (1980) e sua inegável
contribuição à pesquisa sobre sexualidade; em Durkheim (1952), que apresenta o conceito de fato
social; em Foucault (2007), autor contemporâneo que trata as relações de poder evidenciadas na
escola e espaços públicos; em Louro (2007), que contribui para a compreensão do recorte de gênero
e para as dimensões das desigualdades presentes na escola; e em Auad (2012), Minayo (1993) e
Cunha (1997), que apresentam as possibilidades de análise e o conceito das narrativas, entre outros.
No que se refere à legislação brasileira, consultamos o Anuário Brasileiro da Educação
Básica (BRASIL, 2015), pois permite comparar os números de matrículas dos anos iniciais e finais
do Ensino Fundamental; a Constituição da República Federativa do Brasil (BRASIL, 1988); a
LDBEN (BRASIL, 1996), que discorre sobre o direito dos/as alunos/as à educação pública gratuita;
VI Seminário Internacional AMÉRICA PLATINA (VI SIAP) e I Colóquio Unbral de Estudos Fronteiriços
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os PCN (BRASIL, 1998), que apresentam os temas transversais e a Lei n. 11.274, 2006 (BRASIL,
2006), que legisla sobre a ampliação do Ensino Fundamental, entre outros documentos.
O desafio desta investigação está em evidenciar as concepções de gênero e sexualidade
nas narrativas de professores/as e estudantes do 9º ano do Ensino Fundamental de uma escola
pública em Campo Grande – MS, buscando apontar para a necessidade da conceituação das
categorias necessárias ao estudo a que nos propomos, como já mencionado: gênero, sexualidade e
narrativas, e sua correlação com a educação, considerando a produção acadêmica disponível no
Portal de Domínio Público da Capes, do período de 1998 a 2015.
As relações de gênero e sexualidade que emergem no cotidiano escolar tornam-se um
desafio para os/as educadores/as e essas situações podem ser debatidas e problematizadas na escola
com o objetivo de quebrar o ciclo do preconceito e da discriminação, considerando que o “fato
social” não é a diversidade, mas a violência e a discriminação que perpetuam o preconceito por
meio das relações sociais.
A cultura cristã ensinou homens e mulheres, desde o nascimento, a viverem sob os
padrões estabelecidos pela sociedade. Durkheim (1952) disserta que herdamos sistemas linguísticos,
regras comportamentais e estilos que se repetem socialmente, independente do desejo do indivíduo
com a influência dos fatos sociais independentes e externos. E esses fatos são sociais pois
independem da manifestação individual, não propriamente orgânicos nem unicamente psíquicos,
mas que exercem pressão social sobre os indivíduos. A sociedade é, pois, determinante, e exige que
a pessoa se adapte totalmente aos seus objetos, sendo a educação o principal instrumento para essa
adaptação, que transforma estudantes desprovidos/as de um senso social em uma peça ativa
socialmente.
O autor ainda destaca que não podemos escapar de uma formação voltada para o bem-
estar dessa sociedade e fundamenta sua teoria a partir do método funcionalista, comparando a
sociedade com um organismo vivo, no qual os órgãos trabalham em função da harmonia do todo.
Para ele,
[…] A educação é a ação exercida, pelas gerações adultas, sobre as gerações que não se
encontrem ainda preparadas para a vida social; tem por objetivo suscitar e desenvolver, na
criança, certo número de estados, físicos, intelectuais e morais, reclamados pela sociedade
política, no seu conjunto e pelo meio especial que a criança, particularmente se destine
(DURKHEIM, 1952, p. 32).
Quando afirma que “[...] a educação é a ação exercida pelas gerações adultas”
(DURKHEIM, 1952, p. 32), podemos trazer essa assertiva para o contexto escolar, em que os
adultos que ocupam espaços na escola, ou seja, os docentes que atuam diretamente com estudantes,
têm autonomia e responsabilidades para exercer a docência.
A sociedade desenvolve tipos de educação e, assim, tipos de família, estado ou de
religião e os/as alunos/as recebem influências que se estendem ao contexto escolar. Dessa maneira,
estudantes e professores/as exercem seus papéis sociais, sendo que ao/à educador/a compete mediar
as relações de ensino e aprendizagem.
Nos espaços de mediação professores podem atuar de forma ética no que tange a
categoria ‘gênero’, pois esta não deve ser compreendida como um sinônimo de sexo (masculino ou
feminino), mas como relações, representações construídas socialmente no decorrer da história para
“[...] atribuir significados, símbolos e diferenças para cada um dos sexos” (AUAD, 2012, p. 21),
As características biológicas entre homens e mulheres são entendidas a partir das
construções de gênero e precisam ser problematizadas, inclusive na escola, visto que quase sempre
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o feminino é associado à fragilidade, à passividade, à meiguice e ao cuidado, enquanto o masculino
à agressividade, ao espírito empreendedor, à força e à coragem (AUAD, 2012, p. 21-22).
As construções sociais em torno do que é ser homem e do que é ser mulher, pois, são
feitas em uma perspectiva heteronormativa, centrada no homem, branco, heterossexual, adulto,
estudado, cristão, sem deficiência, rico, urbano, entre outros. A heteronormatividade alicerça uma
sociedade caracteristicamente machista, androcêntrica, sexista, lesbofóbica, homofóbica e
transfóbica, que possui aversão a tudo que foge desse padrão. Nela, crimes de ódio contra a
diversidade são contextualizados, pois se tornam uma ameaça ao padrão social oficial, hegemônico
e vigente.
Em “O Esclarecimento Sexual das Crianças”, carta aberta ao Dr. M. Fürst (1907), Freud
oferece algumas respostas a certos questionamentos da época sobre a sexualidade infantil e a forma
de esclarecer as crianças sobre a sexualidade e ainda pergunta: “[...] que propósito se visa atingir
negando às crianças, ou aos jovens, esclarecimento desse tipo sobre a vida sexual dos seres
humanos?” (FREUD, 1980, p. 01).
O psicanalista destaca ainda que “[...] ocultar esclarecimentos sobre a sexualidade
infantil aos estudantes o maior tempo possível não impede a criança de ter contato com a
sexualidade” (FREUD, 1980, p. 02). Isso porque o tema está presente na sociedade e
consequentemente na escola em diversos momentos (olhares curiosos, comparações dos corpos...).
Sendo assim, sua discussão deve seguir a forma mais natural possível, assim como sobre outros
fatos dignos de conhecimento, já que a curiosidade dos/das estudantes não será exagerada se for
adequadamente satisfeita de acordo com as etapas de seu desenvolvimento e de forma gradual para
torná-los/las sujeitos cientes de sua sexualidade e de seu significado social.
Louro (2007, p. 210) acrescenta a esta discussão que os estudos de Michel Foucault são
referência. Para a autora, quando o filósofo francês diz que “a sexualidade é o nome que se pode dar
a um dispositivo”, ele relaciona isso com os jogos, mudanças de posição, de funções envolvidas na
sexualidade, a qual pode ser compreendida assim como compreendemos gênero, como uma
construção social. Os gêneros e as sexualidades estão implicados com poder, “[...] não apenas como
campos nos quais o poder se reflete ou se reproduz, mas campos nos quais o poder se exercita, por
onde o poder passa e onde o poder se faz” (LOURO, 2007, p. 210): as relações de poder das
instituições impõem a normatividade, oprimem o diverso existente nesses espaços de poder e
definem quem detém o poder, de forma centralizadora, que desconsidera a diversidade na escola.
Em “A vontade de saber”, por exemplo, Foucault (1988, p. 10) traz o conceito de uma
sexualidade contida, reprimida e hipócrita, em que o sexo é silenciado pelo puritanismo moderno,
que chama de “moral vitoriana”.
As crianças, por exemplo, sabe-se muito bem que não têm sexo: boa razão para interditá-
lo, razão para proibi-las de falarem dele, razão para fechar os olhos e tapar os ouvidos onde
quer que venham a manifestá-lo, razão para impor um silêncio geral e aplicado. Isso seria
próprio da repressão e é o que a distingue das interdições mantidas pela simples lei penal: a
repressão funciona, decerto, como condenação ao desaparecimento, mas também como
injunção ao silêncio, afirmação da inexistência e consequentemente, constatação de que,
em tudo isso, não há nada para dizer, nem para ver, nem para saber. Assim marcharia com
sua lógica capenga, a hipocrisia de nossas sociedades burguesas.
Nessa perspectiva, o filósofo francês chama a atenção para uma possível interdição,
porém afirma que é necessário ir além do discurso científico para mais bem articular a sexualidade e
questiona o motivo de culpabilidade das questões sexuais, além de discutir também uma ruptura
histórica entre a idade da repressão e sua análise crítica. Argumenta ainda sobre instituições como a
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Igreja, que exerce poder de regular o sujeito demonizando a sexualidade e intensificando esse
tópico nos discursos, como nos confessionários, por exemplo.
Já em se tratando dos estudos sobre os corpos e a sexualidade, a respeito de sua
diferenciação e os significados culturais, Laqueur (2001, p. 23) esclarece:
[...] Meu livro e o conhecimento feminista em geral são insoluvelmente presos nas tensões
dessa formulação: entre a linguagem, de um lado, e a realidade extralinguística que outro;
entre a natureza e a cultura; entre o “sexo biológico” e os intermináveis marcos de
diferença social e política. Nós nos mantemos em suspenso entre o corpo como uma massa
de carne extraordinariamente frágil, sensível e passageira que todos nós conhecemos bem
– bem demais – e o corpo tão profundamente ligado aos significados culturais que não é
acessível sem mediação.
As diferenças não são então meramente naturais, pois a cultura exerce papel
normatizador dos corpos e as relações sociais definem os valores de acordo com a
heteronormatividade. Em outras palavras, o valor está na capacidade de exercer padrões que
estabelecem o poder, como o corpo “masculino forte” e corpo “feminino fraco”; assim a cultura
heteronormativa impõe espaços de poder utilizando a diferenciação, que não naturalmente
biológica, mas uma construção social.
E essas questões estão presentes no ambiente escolar:
[...] A sexualidade está presente das mais variadas formas: nos pressupostos acerca da
conformação das famílias, dos papéis e do comportamento de homens e mulheres; nos
textos dos manuais e nas práticas pedagógicas; em inscrições e pichações nos banheiros e
nas carteiras; em olhares insinuantes que buscam decotes, pernas, braguilhas, traseiros; em
bilhetes apaixonados e recadinhos maliciosos; em brincadeiras, piadas e apelidos que
estigmatizam os rapazes mais “delicados” e as garotas mais “atiradas” etc (BRASIL, 2009,
p. 115).
Por isso, as questões de gênero e sexualidade que emergem no cotidiano escolar tornam-
se um desafio para os/as educadores/as e precisam ser problematizadas na escola e transformadas
em fontes de reflexão com o objetivo de se quebrar o ciclo do preconceito e da discriminação, visto
que “[...] ‘problema social’ não é a diversidade, mas a violência e a discriminação que perpetuam o
preconceito” (BRASIL, 2009, p. 172).
Proibir que a temática seja abordada em sala de aula se aproxima muito da censura que
Michel Foucault (2007) apresenta como “moral vitoriana”, invisibilizando os temas “tabu” e com
isso negando à escola seu papel principal, que vem a ser formar cidadãos críticos e autônomos,
revelando assim um retrocesso ao se negar a formar sujeitos políticos.
Na perspectiva Queer, a partir dos estudos culturais norte-americanos, Miskolci (2009)4
discorre sobre a heteronormatividade compulsória, ou seja, um conjunto de prescrições que
fundamenta processos sociais de regulação e de controle e que se apresenta nas demandas e nas
obrigações sociais. É possível respeitar a diversidade na escola que considera apenas o padrão
heteronormativo? Essa é uma das questões que procuraremos refletir neste artigo, tendo em vista
que há um discurso naturalizado na sociedade sobre a dinâmica desse modelo e que precisa ser
considerado diante dos diferentes comportamentos discriminatórios.
4 A Teoria Queer surgiu nos Estados Unidos no final da década de 1980 em oposição crítica aos estudos
sociológicos sobre minorias sexuais e gênero (MISKOLCI, 2009, p. 150) Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/soc/n21/08.pdf. Acesso em: 01 out 2016.
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Para compreender essas relações de gênero e sexualidade, utilizaremos o registro de
narrativas como técnica de coleta do artigo. As narrativas podem ser entendidas como alternativas
pedagógicas visto que não somente as falas que empregam substancialmente as experiências dos/as
professores/as e estudantes serão consideradas, mas também a forma, como estas se dão, pois, ao
narrar, é possível vivenciar os sentimentos e expor de forma subjetiva as concepções a serem
analisadas.
Para Cunha (1997, p. 01-02),
[...] Quando uma pessoa relata os fatos vividos por ela mesma, percebe-se que reconstrói a
trajetória percorrida dando-lhe novos significados. Assim, a narrativa não é a verdade
literal dos fatos, mas, antes, é a representação que deles faz o sujeito e, dessa forma, pode
ser transformadora da própria realidade.
As narrativas então se colocam como técnica privilegiada de coleta de dados porque não
são um mero instrumento em si, mas um caminho para a transformação da realidade e, logo, do
próprio cotidiano escolar, ao “incluir[em] concepções teóricas da abordagem, articulando-se com a
teoria, com a realidade empírica e com os pensamentos sobre a realidade” (MINAYO, 1993, p. 15).
Ou seja, a utilização desse viés metodológico promove múltiplas perspectivas que permitem
compreender as relações de gênero e sexualidade evidenciadas nos relatos de experiências de vidas.
O estudo de narrativas, assim, visa ao entendimento da história, “[...] captar não apenas
como o desenrolar dos acontecimentos é descrito, mas também a rede de relações e sentidos que dá
à narrativa sua estrutura como um todo” (BAUER; JOVCHELOVITCH, 2002, p. 108), valorizando
não somente o que é dito, mas também a forma como se dão as falas, pois falar é lembrar e
evidenciar em um segundo momento a situação vivida, o que oportuniza a reflexão sobre
determinada situação.
Nessa perspectiva, “[...] nunca recuperamos nossa infância, nem o ontem, tão próximo,
nem o instante que fugiu instantaneamente” (ARFUCH; BENVENITES 1974, 1983, p. 73). Porém,
com o uso das narrativas, é oportunizado recuperar momentos vividos na infância que podem trazer
a quem narra a reflexão sobre suas práticas na idade adulta. Ao lembrar, é possível vivenciar, o que
proporciona a reflexão. Destarte, o uso das narrativas proporciona refletir sobre a história passada e
repensar o presente em construção e, na perspectiva de se retomarem vivências passadas, remetem a
histórias de vidas individuais e coletivas, que trazem o momento histórico e cultural de
professores/as e estudantes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente artigo reflete como sobre as relações de gênero e sexualidade podem ser
observadas na escola e como um dispositivo de poder a serviço do sistema capitalista evidencia o
controle do estado sobre os sujeitos, limitando o acesso ao conhecimento político, histórico-crítico e
cultural, o que condiz com Furlani (2005, p. 18), que já afirmara que “[...] as instituições são
generificadas e sexualizadas”.
Nesse sentido, no momento em que alunos/as têm suas especificidades e diversidade
ignoradas, o contexto escolar não se aproxima de sua realidade social, provocando um
distanciamento entre escola e estudantes e ter a compreensão da situação normativa que se coloca
no ambiente escolar, além de problematizar essas relações de poder, contribui com professores/as
no sentido de poderem mediar situações e viabilizarem, em sala de aula, questões que levem à
consciência do empoderamento e ao protagonismo de estudantes.
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A atuação docente, nesse sentido, é fundamental nesse processo, pois a autonomia
desses profissionais lhes permite agir diante de momentos em que é necessário contornar o
excedente fluxo de conteúdos e trabalhar de forma criativa as situações vividas no contexto escolar
e evidenciadas nas próprias narrativas de estudantes, sem descuidar a sequência didática dos
conhecimentos propostos pela escola. Dessa forma, uma formação de professores/as voltada ao
aprendizado, mas que contemple também outras formas de aquisição de conhecimento sem engessar
caminhos e ignorar vivências, adjeção de conteúdo e prática e com a disposição para considerar
vivências, respeita as memórias do tempo presente e passado e evidencia as perspectivas para o
futuro trazidas nas narrativas, possibilitando trabalhar as especificidades dos sujeitos com uma
educação voltada para os conteúdos, mas também para o respeito ao espaço em que dialogam.
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