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Reflexões acerca do Projeto de Código Penal – PL nº 236/12Janaina Conceição Paschoal

Resumo: Trata­se de artigo crítico ao Projeto de Lei nº 236/12, que objetiva compilar toda alegislação penal em um novo Código Penal. No momento da finalização do texto, o projeto seencontra em trâmite no Congresso Nacional, aguardando o relatório do Senador Pedro Taques.Apesar de o projeto trazer vários pontos que mereceriam ser comentados e severamentecriticados, optou­se por selecionar aqueles que, para a autora, seriam os piores.

Palavras­chave: Projeto do Novo Código Penal. Desproporcionalidade. Sociedade de Risco.Ingerência devida.

Sumário: Nota introdutória – Artigo 17 – Artigo 24 – Artigo 33 – Artigo 38 – Artigo 41 – Artigo74 – Artigo 105 – Artigo 122 – Artigo 126 – Artigo 128 – Artigo 140 – Artigo 145 – Artigos 147 e148 – Artigo 189 – Artigo 391 – Artigo 393 – Artigo 394 – Artigo 399 – Notas conclusivas –Referências

Nota introdutória

Em setembro de 2011, fui convidada para participar de uma Mesa de Debates, no InstitutoBrasileiro de Ciências Criminais. O tema seria a iniciativa do Senador Pedro Taques constituir umacomissão de juristas para elaborar um projeto de novo Código Penal. Quando do convite, recebi ajustificativa do parlamentar para tal ato e, desde aquele momento, confesso, não concordei com aideia.

Já no requerimento de instalação da comissão, o Senador Pedro Taques fez uso de expressõesmuito aceitas entre os grandes penalistas modernos, porém, severamente rechaçadas em tese de

nossa autoria.1

A justificativa central do parlamentar para encomendar o novo Código foi o fato de as leis vigentesnão serem apropriadas para a tão aclamada sociedade de risco.

Como consignamos na tese citada, a ideia de sociedade de risco serve apenas ao alargamento, aoincremento, da ingerência do Estado na vida do indivíduo. E esse alargamento é defendido edesposado por aqueles que são tomados como modelo de garantismo, de observância dos direitosindividuais.

Pois bem, a Mesa de Debates ocorreu, e dela participamos o Procurador da República Luiz Carlos

Santos Gonçalves e eu. O debate pode ser conferido, pois foi gravado em DVD.2

No tempo que me coube, procurei evidenciar que as ondas que invadiram a Academia, sobretudono que tange ao Direito Penal, faziam­me temer pelos resultados do trabalho da comissão.

Com efeito, os estudiosos do Direito Penal, a cada dia, desculpam mais os crimes que realmenteafetam os bens jurídicos relevantes, quais sejam, homicídio, estupro, tráfico de drogas e até o

terrorismo.3 Não são raros os casos em que culpam as próprias vítimas. Nesta seara, são todos

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quase abolicionistas.

Por outro lado, os mesmos expertos bradam por maior intervenção em áreas que, a nosso sentir,jamais poderiam ser invadidas pelo Direito Penal; ou, pelo menos, não poderiam ser na mesmavelocidade e violência. Dentre essas esferas, destaco a da livre manifestação do pensamento, pois,crescentemente, convive­se com perseguições penais àqueles que apenas dizem o que pensam.

Procurei alertar que os amantes da sociedade de risco convivem muito bem com a ideia, para miminaceitável, de que, modernamente, a culpa se revela mais reprovável que o dolo, dado que oresultado de um comportamento culposo pode ser dezenas de vezes mais deletério que o de umcomportamento doloso.

Os cultores da sociedade de risco também gostam muito de ampliar a incidência do Direito Penal, atítulo de omissão. Daí que, paulatinamente, todos nós vamos sendo transformados em delatores,como no caso das legislações referentes à lavagem de dinheiro, que prefere punir quem deixoulavar, no lugar de perseguir quem lavou.

Pois bem, passada a Mesa, esqueci completamente o assunto. No entanto, lendo a Folha de S.Paulo, tomei um verdadeiro choque, ao constatar que a comissão de juristas teria criado um crimeconsubstanciado no abandono de animais.

Descrente, fui pesquisar em outras fontes e constatei que tal despautério era mesmo verdade.Além do abandono de animais, a comissão também estava orgulhosa por criar o crime de omissãode socorro aos animais, com pena bem maior que aquela prevista para a omissão de socorrorelativa a uma criança.

Veiculara­se, ainda, o grande feito de criar o crime de “bullying”, retirando da família e da escola opapel de educar, passando para a polícia a incumbência de lidar com jovens difíceis.

A esse respeito, não se deve esquecer que toda vez que cria um crime, o Estado está tambémcriando um ato infracional, dado que o art. 103 do Estatuto da Criança e do Adolescente diz quetoda ação prevista como crime constitui também um ato infracional.

Não me contive e escrevi, para a mesma Folha de S. Paulo, artigo intitulado “Direito penal

politicamente correto”.4 A partir daí, passei a participar de vários eventos, ter contato com os maisdiversos grupos e descortinar um país que ainda não conhecia totalmente.

Nesta breve intervenção, seria impossível relatar cada uma das experiências tidas nesta verdadeira

cruzada contra o projeto de novo Código Penal.5

Igualmente, não seria cabível tentar comentar cada um dos dispositivos de referido projeto; porconseguinte, foram eleitos aqueles artigos que, a nosso sentir, são os piores, os mais deletériospara os bens jurídicos relevantes à sociedade.

O leitor vai perceber que há artigos da Parte Geral e há artigos da Parte Especial. Também notaráque, na Parte Especial, não se elegeu um tema, em específico. O critério foi o da nossa indignação.

Por razões diversas, no meio do caminho, outros profissionais do Direito, sobretudo professores deDireito Penal, perceberam que o PL nº 236/12 não era (e não é) bom.

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Para a sorte do país, Miguel Reale Júnior abraçou a causa e promoveu um histórico ato no SalãoNobre da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, o qual contou com penalistas de todo oBrasil.

A maior crítica que vem sofrendo o projeto diz respeito ao pouco tempo conferido à comissão paraelaborá­lo.

Por questões de honestidade intelectual, devo alertar que as ponderações que serão deduzidas, nasequência, são exclusivamente de minha responsabilidade, pois sei que muitos pontos que meincomodam não perturbam outros críticos do mesmo projeto.

Antes de iniciar esta breve análise de cada um dos dispositivos eleitos, aproveita­se a oportunidadepara, mais uma vez, consignar que minha objeção ao projeto não guarda qualquer relação com osmembros da comissão. Muito ao contrário, todos são profissionais que trabalham com a matéria,em cargos significativos, sendo certo que há, inclusive, diversos professores da disciplina.

Ainda que não fossem, penso que as leis não precisam ser feitas apenas por especialistas, pois oespecialista quase sempre se move pelo cérebro, pelo lógico, pelo matemático. O leigo é guiadopelo coração e é dele que vem o sentimento de justiça. Tobias Barreto, em texto memorável,consegue delinear bem essa incompatibilidade entre o desenvolvimento sentimental e o mentalhumano, não obstante, diversamente do que se faz aqui, confira maior importância ao mental, em

outras palavras, ao racional.6

É verdade que o coração sem cérebro pode se equivocar. Mas não se pode perder de vista que o

nazismo, para sua época, era científico e racional.7

Acredito, firmemente, que o legislador penal deve ouvir, além dos especialistas, as vítimas, ospoliciais, as pessoas que foram processadas e absolvidas, as pessoas que foram indiciadas e nãoforam processadas, os presos provisoriamente, os condenados pelos mais diversos delitos. Nessa

aparente irracionalidade mora a verdadeira racionalidade da lei penal.8

Enquanto redijo esta análise, anuncia­se que o Senador Pedro Taques está para publicar seurelatório acerca do projeto. Mesmo que em tal relatório o parlamentar modifique os dispositivos aseguir comentados, penso que esta inserção será interessante, pelo menos para suscitar areflexão.

Concluo esta parte inicial, reiterando que, muito embora tenha maior afinidade com SantoAgostinho do que com São Tomás de Aquino, os ensinamentos deste são mais apropriados a estaintervenção, sendo digno de destaque que o próprio São Tomás de Aquino se reporta muito aSanto Agostinho.

Pois bem, em sua Suma Teológica, mais especificamente na resposta à Questão de numero 97, ofilósofo/teólogo ensina que a lei humana só deve ser modificada quando o resultado da alteraçãolevar a algo melhor. Com todo respeito, não é o que o PL nº 236/12 anuncia.

A lei humana é corretamente mudada à medida em que por sua mudança se provê à utilidadecomum. Contudo, a mudança da lei constitui em si mesma certo prejuízo das salvaguardas comuns.Isto porque a observância da lei em muito contribui o costume e de tal maneira que o que se fazcontra o costume comum, por mais leve, pareça ser mais pesado. Daí seguir­se que, quando se

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muda a lei, diminui o vigor coercitivo da mesma, à medida que é abolido o costume. Eis porquenunca se deve mudar a lei humana a não ser quando, de um lado, se favorece tanto a salvaguardacomum, quanto de outro lado se derroga, o que ocorre, ou porque alguma utilidade máxima eevidentíssima provém do novo estatuto, ou porque é máxima a necessidade, seja por conter a leicostumeira manifesta iniquidade, seja por sua observância ser sobremodo nociva. Donde dizer ojurisconsulto que “nas coisas novas a serem constituídas deve ser evidente a utilidade, para que seabandone aquele direito que por muito tempo foi considerado de acordo com a equidade” (Digesto,

L. t. 4, lg. 2, KR I, 35a).9

Artigo 1710

O art. 17, alínea “c”, do Projeto de novo Código Penal, atribui a condição de garantidor a quemcriou o risco da ocorrência do resultado mediante seu comportamento anterior.

O inciso em referência diz respeito à ingerência, que é uma das bases para atribuição deresponsabilidade penal por omissão. Haja vista o fato de a responsabilidade penal por omissãoconstituir uma flexibilização ao princípio da legalidade, seria desejável procurar limitar ashipóteses em que tal forma de atribuição de culpa é admissível.

A ingerência já está prevista no ordenamento pátrio. No entanto, como se procurou demonstrar emIngerência indevida: os crimes comissivos por omissão e o controle pela punição do não fazer, nasociedade moderna, dado o fortalecimento da teoria da imputação objetiva, fundamentar aresponsabilidade penal por omissão na criação do risco significa abrir uma porta muito larga para apunição por condutas não previstas como criminosas pelo legislador.

No que toca à responsabilidade penal em sede de crimes econômicos, a insegurança resta aindamaior, pois, paulatinamente, ganha força o entendimento de que as atividades empresarial eindustrial são, em si, atividades de risco, devendo, portanto, os dirigentes evitarem os resultadosdanosos, sob pena de responderem por eles criminalmente.

Toda a lógica aplicada à lavagem de dinheiro está relacionada justamente a ideia de que existematividades arriscadas em si e, apesar de se tratar de atividades lícitas, caso sejam usadas emoperações de lavagem de dinheiro, poderão acarretar responsabilidade penal. Ou seja,independentemente, de os sujeitos envolvidos em tais atividades terem alguma ligação com ocrime, caso seu estabelecimento seja usado por lavadores, eles também responderão, como sehouvesse obtido alguma vantagem com a empreitada.

Ainda no art. 17 do Projeto, resta absolutamente injustificável o parágrafo único, uma vez que, nocaput, quando se fala em imputação do resultado, por óbvio, há equivalência à causação, termo,aliás, bastante questionável.

Por outro lado, as teorias que norteiam os crimes comissivos por omissão se baseiam na ideia deequivalência, ou seja, na equiparação de uma conduta omissiva a uma conduta ativa.

É importante lembrar que, em alguns ordenamentos, justamente pelo fato de a responsabilidadepenal por omissão constituir um verdadeiro flanco no princípio da legalidade, apesar daequivalência, a pena atribuída a quem causa o resultado por omissão é menor do que a atribuída aquem o causa por ação. Se o Brasil não adota, e não pretende adotar, sistema parecido, deve

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restringir a incidência desse tipo de responsabilidade, sob pena de instituir­se o arbítrio.

Artigo 2411

O art. 24 do projeto constitui completa inovação. E essa inovação poderá ensejar uma involução.Já está assentado na melhor doutrina que os atos preparatórios não são puníveis. A puniçãodepende, pelo menos, do início da execução.

Em uma primeira leitura, o art. 24 passa a impressão de constituir uma maior garantia, uma vezque conceitua o que seria o início da execução; entretanto, quando se lê o dispositivo maisatentamente, percebe­se que ele passa a admitir a punição dos atos preparatórios, quando diz quese considera início da execução a prática de atos imediatamente anteriores à realização do tipo.

Ora, os atos imediatamente anteriores à realização do tipo (ou à execução) são justamente os atospreparatórios!

É bem verdade que, no final, o novel artigo condiciona tal punição à exposição a perigo do bemjurídico protegido. No entanto, abre­se, desnecessariamente, uma porta muito larga à insegurançae ao arbítrio.

Em sede de doutoramento, defendemos tese intitulada Constituição, criminalização e direito penalmínimo; para tanto, foram estudadas obras que visavam estabelecer a relação entre o DireitoPenal e a Constituição Federal, bem como fixar alguns limites para o alargamento do Direito Penalque, à época, já se verificava.

Pois bem, todos os autores estudados, com o objetivo de traçar alguns parâmetros para o legisladorpenal, apontavam que, em um Estado Democrático de Direito, os atos preparatórios não podem ser

punidos.12 Em última instância, punir os atos preparatórios significa mesmo criminalizar opensamento e retirar qualquer lógica ao instituto da desistência voluntária.

Com efeito, ainda que tenha elaborado todo um plano para envenenar seu marido, ainda quetenha comprado o veneno e o despejado na sopa, no momento de servi­la, a mulher pode desistir etodo esse desenrolar se transforma em um irrelevante penal.

O art. 24 do projeto, caso aprovado como proposto, abalará, negativamente, os consensos que jáestão estabelecidos em relação ao crime consumado, crime tentado, desistência voluntário,arrependimento posterior e crime impossível.

Intrigante também o teor do parágrafo único, o qual estabelece que, nos crimes contra opatrimônio, a inversão da posse do bem não caracteriza, por si só, a consumação do delito.

Além de não haver nenhum dispositivo parecido na legislação vigente, esta novidade poderáensejar revisão mesmo de ações penais com condenações definitivas. Deve­se lembrar que, doscrimes contrários ao patrimônio, o que mais se alicerça na ideia de inversão da posse é justamentea apropriação indébita, pois, nos demais, fala­se em posse mansa e pacífica.

É fato que, para a caracterização do crime, além dos elementos objetivos, faz­se necessário estarpresente o elemento subjetivo. Dessa forma, doutrinariamente, não seria necessário criar este

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parágrafo.

Trata­se, portanto, de dispositivo que não traz vantagens e, a toda evidência, acarretará umaavalanche de ações de revisão criminal, para rediscutir condenações por apropriações indébitas.

Artigo 3313

O legislador pátrio nunca condicionou a punição do crime praticado por alguém embriagado àconsciência da possibilidade de praticar­se o crime, no momento do consumo da bebida.

O Código Penal atual, em seu art. 28, II, simplesmente aduz que a embriaguez culposa, ouvoluntária, não exclui a imputabilidade.

Apesar de o alcoolismo ser uma doença formalmente reconhecida pela Organização Mundial daSaúde, permitindo, portanto, que o juiz, em determinado caso concreto, até deixe de aplicar apena, encaminhando o sujeito a um tratamento compatível com o problema, não é adequado, à luzda política criminal, passar a afastar a imputabilidade, caso não se prove que, ao beber, o agentetinha consciência da possibilidade de praticar o fato.

A inovação pretendida no projeto poderá assegurar a impunidade de grande parte dos crimes querealmente preocupam a população, dentre os quais destacam­se os homicídios, os estuprosperpetrados no seio da família e a violência praticada contra a mulher.

Com efeito, grande parte dos homicídios tem como cenário o bar. Pessoas alcoolizadas, muita vez,por discussões corriqueiras, acabam matando até mesmo amigos.

O álcool também é frequente em cenas de abusos sexuais praticados contra os próprios filhos. E asagressões físicas às mulheres, em regra, tem o consumo de álcool como catalisador.

Nesse contexto, não parece adequado exigir, para o fim de reconhecer a imputabilidade do agente,que se prove que, ao ingerir a bebida, o autor considerasse previsível o fato. Ademais, a provadessa previsibilidade será praticamente impossível.

Resta previsível que um cidadão que bebe, durante uma confraternização, virá a matar um de seusamigos, algumas horas depois, por uma discordância acerca de um jogo de futebol? Claro que não.Ora, por não ser previsível, o homicídio não será punido?

Igualmente, será previsível que o pai, que se embriaga no caminho de casa, estuprará sua filhaadolescente? Óbvio que não. Pois bem, por não ser previsível, o estupro não será punido?

Caso se diagnostique uma doença, tem­se que o tratamento se mostra mais adequado que a pena.No entanto, não se revela adequado reconhecer, de maneira tão ampla, a inimputabilidade, emtese, de quem se embriaga voluntária, ou culposamente. Lembrando que esses termos (voluntárioe culposo) não guardam qualquer relação com a chamada embriaguez preordenada, pois estapressupõe a vontade de praticar o crime, já no momento do consumo da bebida.

Muito provavelmente, a comissão introduziu uma condição para punir o crime praticado sob oefeito de álcool, por reconhecer que, muitas vezes, tratar a doença do alcoolismo se revela mais

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eficaz e justo que a aplicação da pena. Durante quase três anos, presidi o Conselho Estadual deEntorpecentes, e sei bem como as drogas em geral, independentemente de serem lícitas ou ilícitas,podem aniquilar a vida das pessoas. No entanto, o intento buscado pela comissão talvez teria sidomelhor alcançado se houvesse procurado garantir que o sujeito que pratica um ato criminoso sob oefeito de drogas receba o tratamento necessário.

Da forma como redigido, o dispositivo em apreço garantirá a impunidade e não o tratamento para omal de que padece o autor. Se é injusto punir, também é injusto simplesmente deixar o ato semresposta, permitindo que a sociedade pague pela doença do agente.

Ninguém pode ser punido por ter apenas bebido; entretanto, uma excludente de imputabilidade tãoampla pode redundar em convite à prática de crimes. A sociedade já se ressente da impunidadeque graça. O Parlamento não terá como explicar que a punição de todo e qualquer crime praticadopor alguém alcoolizado dependerá da difícil prova de que, ao beber, o agente sabia que poderia vira praticar um crime.

Artigo 3814

O constante do art. 38, §1º, II, “b”, do projeto constitui inovação muito perigosa para todos osindivíduos.

Com efeito, essa única letrinha dá margem à responsabilização penal, a título de participação, poromissão, toda vez que alguém, podendo e devendo, deixa de evitar o crime cometido por outrapessoa, mas não o faz.

Ora, o art. 17 já trata, de forma bastante abrangente, das possibilidades de imputar­se a alguémum determinado resultado criminoso a título de omissão.

Pois bem, como se não bastasse tal dispositivo amplo, o §1º, II, “b” do artigo ora comentado prevêoutra situação em que a responsabilidade por omissão será admitida.

A tendência de punir aquele que não impede o crime de outrem já é uma realidade. Essa realidadeé estimulada pela falência do Estado, que se acomoda em exigir que o particular fiscalize e evite ocrime de outra pessoa, no lugar de se esforçar para prevenir e punir os crimes por parte doculpado.

Em um primeiro momento, pode parecer apropriada essa inversão de valores. Pode parecer queresponsabilizar o omitente implica maior preocupação com a segurança pública.

No entanto, deve­se ponderar ser bem mais cômodo para os órgãos repressivos apresentar umculpado, ou seja, dizer que alguém foi punido pelo mal feito, ainda que este alguém nada tenha aver com referido mal.

Se este dispositivo for aprovado, estar­se­á instituindo a República do “bode expiatório”. Daí, amãe que não evita o estupro da filha por parte do padrasto, no lugar de responder por omissão de

socorro, responde como se fora uma estupradora, mesmo que o agressor não seja punido.15

Igualmente, no interior de uma empresa, se o funcionário de um setor vier a saber de um crime

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econômico sendo perpetrado na sala ao lado, poderá, com base nesta única letrinha, ser punidocriminalmente.

Na mesma linha, o policial que, talvez temeroso que sua reação gere resultados mais deletérios,deixe de intervir em uma cena de roubo, poderá ser responsabilizado pelo crime por omissão, ou,pelo menos, ser investigado e processado sob tal imputação.

Diversamente do que parece à primeira vista, a tendência de imputar crimes de terceiros ainocentes, eventualmente covardes, que não delataram, não implica melhora à segurança pública.Muito ao contrário.

É bem mais fácil investigar e punir um inocente que não teve coragem de evitar o crime de outrapessoa, do que levantar provas para imputar o verdadeiro culpado. Por conseguinte, essedispositivo gera insegurança em todos os sentidos, para o indivíduo e para a sociedade. Isso semcontar a péssima e confusa redação do art. 38 inteiro.

A alínea “b” do inciso II do §1º do art. 38 institui o dever genérico de evitar o crime de outrem, namedida em que prevê como partícipe aquele que devia e podia evitar o crime praticado por outrapessoa, mas se omite.

A autora italiana Lúcia Rissicato analisa essa situação e mostra preocupação com a tendência de

expandir a participação por omissão no crime praticado por outra pessoa.16

Também o conhecido autor americano George Fletcher mostra­se receoso com um caso concretoem que o esposo foi punido pelo estupro da própria mulher, por não ter evitado que outro homem

a violasse.17

É importante deixar claro que, quando a pessoa se omite dolosamente, em unidade de desígnioscom o agente, já responderá, como atualmente responde, na qualidade de partícipe.

Assim, a jovem que combina com seu namorado deixar a porta da casa aberta para que ele entre emate seus pais já responde pelo homicídio. Da mesma maneira, se um homem ajusta com outronada fazer durante o estupro de sua própria filha, já responde como partícipe no crime sexual.

Na verdade, a manutenção da alínea “b”, em referência, apenas permitirá que inocentes sejamresponsabilizados.

Como bem ensinava Esther de Figueiredo Ferraz, se não houver unidade de desígnios, não podeexistir responsabilização por parte de quem se omite. Pena que verdade tão límpida como esta

fique esquecida na malfadada sociedade de risco.18

Se o art. 38 for aprovado tal qual consta do projeto, estar­se­á desviando o foco de quem faz omal, ou seja, de quem efetivamente comete o crime, para perseguir quem deixa de fazer o bem,evitando o crime.

Referido desvio não condiz com o Estado Democrático de Direito e acarreta situações muitoproblemáticas para o quotidiano dos cidadãos. Estará um pai obrigado a enfrentar o sequestradorde seu filho, sob pena de ele próprio responder pelo sequestro? Quem decidirá se ele podia, ounão, evitar o sequestro na situação concreta? E se ele nada fez, com medo de o sequestrador atirar

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em seu filho?

Não é justo, e nem desejável, que uma pessoa inocente, que não está afinada com o criminoso,possa responder criminalmente pelo delito perpetrado. Só o que esse dispositivo conseguirá seráproteger os malfeitores.

A preocupação com a tendência de recrudescer o tratamento dispensado à omissão, possibilitando,até mesmo, punir alguém pelo crime de outrem, está detalhada na tese de livre docência, depoisconvolada no livro Ingerência indevida: os crimes comissivos por omissão e o controle pela puniçãodo não fazer, de nossa autoria.

Em referido estudo, procuramos rechaçar a ideia romântica, que vem ganhando muitos adeptos, deque a solidariedade humana seria um bem jurídico penal digno o suficiente para ensejar oalargamento da punição, a título de comissão por omissão.

A solidariedade, segundo o entendimento que prevalece, é o bem jurídico tutelado pelo crime deomissão de socorro, o qual, sendo um crime omissivo próprio, não fere o princípio da legalidade, jáque está claramente descrito na norma.

Os crimes comissivos por omissão, ao contrário, não vem claramente descritos pelo legislador. Elessão resultado da conjunção dos tipos penais previstos na forma ativa, com o dispositivo que prevêquem são os garantidores, ou garantes.

Ora, se os crimes comissivos por omissão (crimes omissivos impróprios) já constituem umaverdadeira exceção ao princípio da legalidade, como pretender, sob o pretexto de tutelar asolidariedade humana, estender a todos o dever de evitar o crime de outrem, sob pena deresponder pelo resultado criminoso?

Por melhores que sejam a intenção, uma Democracia não tem como conviver com tamanhaingerência.

Responsabilizar inocentes pelos crimes de outras pessoas será reconhecer a incapacidade do Estadode punir quem realmente merece ser punido, significa assinar atestado de incompetência e abrirportas ao arbítrio.

O estudo dos diversos livros sagrados mostra que as religiões costumam cobrar mais os homens debem, aquelas ovelhas não desgarradas. Nas escrituras, sob as mais diversas interpretações,percebe­se que a bondade não feita, muitas vezes, constitui pecado maior que a maldadeperpetrada. Respeito que Deus exija a realização do bem, mais que reprove a feitura do mal. Mas,com todo respeito, não posso compactuar que o Estado assim proceda. O Estado, tal qualpreconizado por Stuart Mill, em seu insuperável On Liberty, somente pode exigir do indivíduo que

não faça o mal. O Direito Penal não serve para criar heróis ou mártires.19

Artigo 4120

O Direito Penal firma­se na pena privativa de liberdade, sendo certo que vários autores enxergamnessa pena verdadeiro elemento do crime.

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O Direito Penal também se alicerça em alguns princípios básicos, quais sejam a culpabilidade, apessoalidade, a individualização da pena, os quais estão diretamente relacionados àresponsabilização da pessoal física.

A responsabilidade penal da pessoa jurídica é, portanto, incongruente com os princípios quenorteiam o Direito Penal, ensejando inevitável e indesejável flexibilização nessa seara. Mas alémdessa incompatibilidade, tem­se que seus reflexos se revelam muito nocivos à sociedade.

Os partidários da responsabilidade penal da pessoa jurídica costumam sustentar seu apoio noestigma que tal responsabilização geraria para as instituições. O argumento seria mais ou menos oseguinte: pagar uma multa na esfera administrativa, ou no âmbito cível, tem um impacto. Naesfera penal, mesmo que o valor da multa seja idêntico, o peso moral é muito maior. Sentar nobanco dos réus em um fórum criminal e mesmo como investigado em uma Delegacia de Políciapossui implicações psicológicas e de imagem muito mais incisivas que sofrer apuração, ou ação, emqualquer outra seara.

Não se pode, efetivamente, negar que o Direito Penal implique maior estigma; entretanto, restabastante intrigante notar que os mesmos autores que vislumbram algo muito positivo emestigmatizar as empresas, quando tratam dos crimes de massa (os quais realmente assolam apopulação) costumam criticar o estigma que recai sobre homicidas, estupradores e sequestradores.Todos, por força da influência da Criminologia Crítica, apontados como vítimas da sociedade.

Independentemente de concordar­se, ou não, com essa falta de critérios, ou com a adoção decritérios tão díspares, é imperioso reconhecer os efeitos deletérios do estigma que se pretendealcançar mediante a adoção da responsabilidade penal das pessoas jurídicas.

Esse estigma terá influência direta sobre os empregados e sobre os clientes. Por óbvio, o estigma,ao atingir a imagem das empresas, comprometerá o consumo e, por consequência, poderá levar ademissões. E mesmo que esse quadro mais drástico não ocorra, fatalmente, os elevados valoresgastos com honorários de advogados especializados em direito penal empresarial serão transferidospara os consumidores.

Atualmente, as empresas já vivem em meio a um emaranhado de normas das mais diversasnaturezas, normas estas que, muitas vezes, são conflitantes e abrem margem para insegurança,ilicitude e, sobretudo, corrupção. Isso sem contar os prejuízos econômicos ao próprio país, que temsuas atividades inviabilizadas.

Se, conforme o Projeto nº 236/12, a responsabilidade penal da pessoa jurídica for adotada,comprometer­se­á o crescimento econômico do país.

As empresas já enfrentam, na própria seara penal, um movimento crescente de tipificações. Sãocrimes contra a ordem tributária, contra a ordem financeira, contra a ordem econômica, contra osconsumidores, contra as relações de trabalho, contra a propriedade imaterial, dentre tantos outros.

Ocorre que, por enquanto, pelo menos, ainda se exige que os órgãos de repressão se esforcem umpouco para tentar identificar os reais responsáveis pela conduta considerada criminosa. Com aaprovação do dispositivo em comento, esse esforço será absolutamente abandonado, uma vez quea responsabilidade da pessoa jurídica será praticamente objetiva e, pior, as ações penaiscontinuarão a serem movidas também em face dos dirigentes.

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Então, além dos inúmeros inquéritos e processos já existentes, haverá investigações e açõespenais em face das próprias empresas.

É muito importante destacar que o dispositivo de que ora se trata ganha uma amplitude poucopercebida para a maior parte dos analistas, pelo fato de contemplar a responsabilidade de diversosprofissionais por omissão.

Com efeito, o §3º do artigo ora impugnado, institui a responsabilidade do Diretor, doAdministrador, do Membro de Conselho e Órgão Técnico, do Auditor, do Gerente, do Preposto ouMandatário da Pessoa Jurídica, que, sabendo da conduta criminosa de outrem, deixa de impedir asua prática.

Esse dispositivo, quase imperceptível, consagra um dever de denunciar às avessas. De fato, se esteparágrafo entrar em vigor, trabalhar em uma empresa será situação de alto risco, uma vez que émuito vago falar em membro de conselho, membro de órgão técnico, preposto, ou mandatário.

Cumpre esclarecer que referido parágrafo não visa punir as pessoas que estejam envolvidas nocrime, mas aquelas que venham a tomar conhecimento e, independentemente de ser seu dever,não evitem sua prática.

Como já anteriormente ponderado, a responsabilidade penal por omissão, até por força do princípioda legalidade, há de ser uma exceção. Aqui, um único parágrafo, abre porta para, além de punir apessoa jurídica e os dirigentes realmente envolvidos na conduta supostamente criminosa, punir­setodo e qualquer funcionário que, vindo a saber da conduta, não a tenha evitado.

Além da falta de segurança que, por óbvio, prejudica os indivíduos e as empresas, essa previsão éa prova da falência do Estado, que por não conseguir apanhar quem faz (o verdadeiro criminoso)passa a responsabilizar quem não faz. É como se o membro do conselho consultivo, ou técnicotivesse que substituir o policial, o promotor e o juiz.

Deve­se ainda notar esse dispositivo não condiciona a responsabilização dessas inúmeras pessoas aum eventual dever de evitar o resultado, o que viola, inclusive, todos os princípios que norteiam aresponsabilidade penal por omissão, uma vez que só pode ser punido como garante, ou garantidor,quem tenha o dever de evitar o resultado. Esse terrível §3º fala apenas em poder evitar oresultado. Poder, em termos de tipificação penal, é menos que dever.

Pois bem, apontou­se que a responsabilidade penal da pessoa jurídica transgride os princípios doDireito Penal e prejudica trabalhadores e consumidores; mas há um fator talvez mais importante aconsiderar.

Por interesse, ou comodismo, será muito vantajoso aos agentes da repressão apurar os crimessupostamente praticados por empresas. As empresas têm endereços fixos e representantes certos.Os empresários, até pelo temor do estigma, findam ficando muito mais suscetíveis à corrupção.

Com isso, não se pretende generalizar qualquer crítica às instituições incumbidas da persecuçãocriminal, o que seria completamente injusto; entretanto, não se pode negar existir uma minoriabastante deletéria.

Mas os efeitos desse quadro não prejudicam apenas as empresas. Na verdade, os efeitos desse

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quadro são por demais lesivos à segurança pública, pois a facilidade de investigar as empresas farácom que os parcos recursos humanos e materiais existentes para fazer frente aos gravesproblemas de criminalidade, que preocupam a população, sejam desviados para situações dedescumprimento de normas que, facilmente e com eficácia, poderiam enfrentadas em outrasesferas.

Responsabilizar criminalmente as pessoas jurídicas criará uma falsa sensação de que algo estásendo feito, gerando, até por falta de recursos suficientes, diminuição na atenção dispensada aoscrimes que realmente importam.

O Brasil é um dos países em que mais se mata; os estupros também não param de crescer. Ora, seeste Estado não consegue prevenir a prática de crimes tão reprováveis e, pior, uma vez cometidos,não consegue punir seus autores, por qual razão entende que deve invadir competência alheia?

Ao lado de todos esses pontos, deve­se lembrar que delegados, juízes, promotores e procuradoresde formação mais liberal, ou seja, os que têm uma visão um pouco mais preocupada com asliberdades individuais começam a se aposentar. E, paulatinamente, jovens, educados por mestresque não se cansam de apontar o empresário como grande vilão (como criminoso por excelência)começam a tomar os seus lugares e, por conseguinte, já são comuns autoridades acreditarem,verdadeiramente, que os “crimes das empresas” são mais graves que homicídios, sequestros eestupros. Já tive o desprazer de ler manifestações ministeriais no sentido de que poluir um rioseria mais reprovável que matar uma pessoa. Raciocínio, há que se dizer, bastante condizente coma ideia de sociedade de risco.

Nesse contexto, revela­se ainda mais perigoso adotar­se a responsabilidade penal da pessoajurídica.

É ainda necessário chamar atenção para o fato de que, quando fala em responsabilizar a pessoajurídica por crimes contrários à administração pública, à ordem econômica, ao sistema financeiro eao meio ambiente, o dispositivo em apreço está fazendo menção a mais de uma centena de tipospenais.

Com efeito, o projeto contempla o Título XIII, referente aos Crimes contra a ordem econômico­financeira. Esse Título é dividido em Crimes contra a ordem tributária e a previdência social(Capítulo I); Crimes contra o sistema financeiro (Capítulo II); crime de lavagem de capitais(Capítulo III); Crimes contra a ordem econômica (Capítulo IV); Crimes falimentares (Capítulo V);Crimes de concorrência desleal (Capítulo VI); somando trinta e oito dispositivos.

Não se pode deixar de consignar que, em várias abordagens, os crimes contra o consumidor e àsrelações de consumo também são considerados crimes econômicos. Dessa forma, somando­se osartigos que integram esse título, mais os crimes contra o consumidor e o meio ambiente e oscrimes contra a administração pública, chega­se a um total de 150 dispositivos passíveis de seremaplicados às pessoas jurídicas.

Essa verificação é importante para que a sociedade esteja ciente da abrangência e dos perigosrepresentados por este art. 41 do projeto.

E um argumento de ordem política que não pode ser desprezado se refere ao fato de a AméricaLatina estar dominada por líderes esquerdistas que não se intimidam em desapropriar empresas

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que se revelam contrárias aos seus interesses. Vide o que ocorre na Venezuela, na Bolívia e noPeru. Felizmente, o Brasil não está no mesmo estágio. No entanto, o partido que governa o país hádez anos sempre se mostra simpático para com esses líderes.

Nesse cenário político latino­americano, preocupa, sobremaneira, a previsão de que aresponsabilidade penal da pessoa jurídica pode levar até mesmo à dissolução da entidade.

Quem atua na área penal sabe bem que criminosos não fundam empresas. Criminosos armamfachadas, que são utilizadas e descartadas quando não mais se revelam interessantes.

A possibilidade de dissolver pessoas jurídicas vem justamente para intimidar instituições sériasque, de alguma forma, incomodem quem tem o poder.

Por todos esses motivos, que se referem, não apenas aos interesses de industriais e empresáriosem geral, mas ao bem de toda a sociedade brasileira, todos os esforços devem ser intentados namais completa supressão da responsabilidade penal da pessoa jurídica desse projeto e de qualqueroutro.

Ao comparar os termos do projeto com a responsabilidade penal da pessoa jurídica, já vigente noordenamento pátrio, nota­se que o projeto deixa de exigir a responsabilidade conjunta de umapessoa física, o que favorece perseguições. Ademais, o projeto fala apenas em pessoas jurídicas dedireito privado, excluindo, estranhamente, as empresas de direito público (hoje passíveis deresponsabilização), as quais são as piores poluidoras.

Faz­se, ainda, preciso apontar que o art. 41 do projeto é inconstitucional. Isso porque o art. 173,§5º, da Constituição Federal fala em responsabilizar a pessoa jurídica com punições compatíveiscom sua natureza, quando os dirigentes praticarem atos que constituam crime contra a ordemeconômica e financeira. Como já dito, o Direito Penal não é compatível com a pessoa jurídica e otermo punição não se refere apenas à esfera penal, pode ser no âmbito administrativo.

Ademais, quando se compara o art. 173, §5º, da Constituição Federal com o art. 225, §3º, damesma Carta, que se refere ao meio ambiente, percebe­se uma flagrante diferença na redação,pois este último dispositivo fala em sanções penais. E, mesmo com relação a este artigo, menospolêmico que o anterior, há quem defenda que o constituinte pretendeu atribuir as sanções penaisàs pessoas físicas e as administrativas às jurídicas, até pela ordem em que utilizou tais expressões.

Com efeito, reza o §3º do art. 225 da CF: “as condutas e atividades consideradas lesivas ao meioambiente sujeitarão os infratores pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas,independentemente da obrigação de reparar os danos causados”.

A Constituição Federal não faz nenhuma alusão à responsabilidade penal de pessoa jurídicarelativamente à prática de crimes contra a administração pública por parte de seus dirigentes e

funcionário.21

Com todo respeito às opiniões contrárias, entendemos que esse art. 41 tem finalidade política enão de política criminal.

Além das considerações acima, deve­se consignar que já está assentado na legislação, na doutrinae na jurisprudência nacionais que as penas de prestação de serviços à comunidade e de perda de

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bens e valores são modalidades das penas restritivas de direito, sendo absolutamente redundante

a previsão constante dos incisos do art. 42.22

O atual art. 43 do Código Penal é claro no sentido de que as penas de perda de bens e valores,bem como as de prestação de serviço à comunidade são espécies do gênero restritivas de direito.Aliás, dentre essas espécies, há também as penas de prestação pecuniária, de interdiçãotemporária de direitos e a de limitação de fim de semana.

É bem verdade que a atual lei dos crimes ambientais erra ao tratar das penas restritivas. Noentanto, a lei de crimes ambientais (Lei nº 9.605/98) não é modelo para nenhum legislador, comoreconhece toda a doutrina. Não obstante, o projeto ora comentado conseguiu ser menos técnico emenos claro que referida lei.

Comparando­se o art. 43 do Projeto23 com o atual art. 22 da Lei nº 9.605/98, percebe­se,nitidamente, que a Comissão fez uma verdadeira transposição das penas previstas para os crimesambientais praticados por empresas para o projeto. A Comissão se limitou a retirar as referênciasfeitas ao meio ambiente.

Ocorre que esta transposição comodista não se sustenta, pois, caso seja mantido o caput do art.41, há uma amplitude muito grande, tanto para às ações e omissões que serão consideradascrimes de empresas, como para as próprias penas.

Quando se está diante de uma legislação específica de proteção ambiental e, nas penas, se lê que oestabelecimento está funcionando sem a devida autorização, automaticamente, se compreende queessa autorização se refere ao bem jurídico meio ambiente.

Tal objetividade exegética resta impossível quando as penas são previstas conjuntamente para asviolações a bens jurídicas das mais diversas naturezas (ordem econômica, ordem financeira,administração pública, meio ambiente, isso sem contar a amplitude da ordem econômica).

Por exemplo, sendo a empresa condenada por um crime contra a administração pública, econstatando o juiz que ela está funcionando sem uma licença da Secretaria Municipal do MeioAmbiente, poderá, nos termos do §2º do art. 43, interditá­la? Entendo que não, pois deverá haverrelação entre a violação e a sanção. No entanto, da forma como o projeto foi redigido, os cidadãosficarão à mercê do mais absoluto arbítrio.

Referido artigo foi redigido sem qualquer técnica. Prova isso o fato de falar em renovação deprazos de suspensão, como se fosse possível modificar­se a pena após a sentença. O projetoconfunde pena com medidas preventivas, absolutamente incabíveis em um Código Penal.

Percebe­se que o projeto traz o risco de haver penas aplicadas por comportamentos posteriores aosuposto crime, estabelecendo­se uma situação de policiamento e terror.

Na esfera penal, as penas têm que ser certas e devem estar relacionadas aos crimes praticados enão abertas e ligadas a infrações administrativas não vinculadas ao comportamento tomado comocriminoso.

As penas de suspensão e a interdição vitimam, de maneira ainda mais incisiva, empregados econsumidores e, por via indireta, a própria sociedade. Se as empresas não estiverem em

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conformidade com as normas regulamentares, de forma a ser inviável o seu funcionamento, caberáà autoridade administrativa tomar as medidas pertinentes, seguindo a legislação correspondente.

Assumindo o risco de parecer redundante, frisa­se que, a adoção da responsabilidade penal dapessoa jurídica, mormente em termos tão amplos, amedrontará apenas as empresas sérias, quelutam para se manterem em funcionamento, possibilitando o desenvolvimento do Brasil. Em Arevolta de Atlas, Ayn Rand mostra bem onde pode chegar o país que coloca as empresas no bancodos réus.

Artigo 7424

O art. 74 constitui flagrante desrespeito ao princípio da legalidade, uma vez que disfarçadamente,permite que a pena de multa seja aplicada, apesar de o tipo penal não prever tal penaexpressamente.

De fato, segundo esse dispositivo, que não encontra equivalente na legislação atual, “a multa seráaplicada em todos os crimes que tenham produzido ou possam produzir prejuízos materiais àvítima, independentemente de que cada tipo penal a preveja autonomamente”.

Ora, pelo teor do artigo, mesmo que, ao descrever os crimes e cominar as penas correspondentes,o legislador não tenha previsto pena de multa, o juiz, a depender dos resultados, poderá aplica­la.

A situação resta ainda mais séria quando se verifica que o projeto eleva a pena de multasignificativamente, pois, na legislação atual, o número máximo de dias­multa é de 360 (art. 49 doCP), enquanto no projeto, fala­se em 720 dias­multa (art. 67).

Além disso, o atual Código Penal diz que o valor do dia­multa será de no máximo cinco vezes ovalor do salário mínimo, prevendo o projeto o valor máximo de dez salários mínimos.

Mas o projeto vai além. Enquanto o Código Penal permite que a multa, sendo insuficiente, sejamultiplicada por três (art. 60, §1º), o projeto prevê que o montante final (já expressivo) sejamultiplicado por cinco, quando se tratar de pessoa física e por duzentos, quando se estiver diantede pessoa jurídica (art. 85, §1º).

Por mais que a punição pecuniária seja adequada a uma enorme gama de delitos, a modificação,sem sombra de dúvidas, pode levar a multas que implicam verdadeiro confisco, acarretando ainsolvência.

Em uma conta simples, nota­se que a multa da pessoa jurídica pode alcançar o montante de1.440.000 salários mínimos. Nesse contexto, admitir que o magistrado aplique a pena de multa,mesmo quando não cominada, resta muito inseguro.

Ainda acerca da pena de multa é importante chamar a atenção para o fato de o Projeto,diversamente do constante do atual Código Penal, não prever a pena de multa substitutiva.

De fato, o art. 44, §2º, do Código Penal, estatui que a pena privativa de liberdade igual ou inferiora um ano poderá ser substituída por uma restritiva de direito ou por multa, sendo certo que a penaprivativa de liberdade superior a um ano e não superior a quatro poderá ser substituída por duas

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restritivas de direito, ou por uma restritiva e uma multa.

Ora, o projeto, no art. 61, §2º, ao tratar da substituição da pena de prisão, não fala mais em penade multa, apenas em restritiva. Essa consideração pode parecer extemporânea.

Ocorre que, na medida em que a substituição por multa não é mais prevista, por óbvio, apossibilidade de condenar a pena de multa, mesmo quando não há previsão expressa, ensejaráviolação ao princípio da legalidade.

Houvesse a previsão, na Parte Geral, de substituição da pena de prisão por multa (como há nalegislação vigente), poder­se­ia interpretar o art. 74 como uma orientação ao juiz. Ou seja,havendo prejuízos, melhor substituir por multa. Mas, se a substituição não é prevista, é evidenteque o legislador está permitindo a aplicação de pena não cominada. E, como visto, não é qualquerpena, para pessoas físicas e, principalmente, para pessoas jurídicas.

Artigo 10525

O art. 105 do projeto de Código Penal trata do instituto da barganha, ou “plea bargain”, o qual anosso sentir, não pode, de forma alguma, ser adotado no Brasil. Digo isso, não por um supostoantiamericanismo, não obstante seja necessário reconhecer que o sistema jurídico americano émuito diferente do brasileiro. Sou categórica nesse sentido, em virtude de, além de tal institutoquebrar com o princípio constitucional do devido processo legal, a experiência havida com a Lei nº9.099/95 não foi positiva.

São muitos os exemplos de acordos (transações) firmados com pessoas que não tinham qualquerligação com a conduta supostamente criminosa. A título de exemplo, cito transação feita porpretenso crime contra o consumidor, com uma pobre caixa de supermercado. Como a consumidoraanotou apenas o nome da caixa, ela foi intimada e praticamente forçada a aceitar a transação.

A utilização do termo forçada não é exagero. São frequentes as alegações de juízes e promotores,e, infelizmente, até de defensores, no sentido de que é melhor aceitar a pena antecipada, do quecorrer o risco do processo. Há, ainda, vários casos de acordos feitos relativamente a crimes

prescritos, dentre tantos outros abusos.26

Ocorre que, pelo menos, quando se fala em transação penal, não existe o reconhecimento deculpa, ou seja, o sujeito que transaciona não perde a primariedade, muito embora perca o direitode, no interregno de cinco anos, lançar mão da transação novamente. Ademais, a transação penalsó tem cabimento nas infrações de menor potencial ofensivo. Já, quando se fala em barganha, oacordo envolve o reconhecimento de culpa relativamente a crimes bastante graves, sendo certoque o estrago de compelir alguém a aceitar negociar com o Estado pode ser bem maior. Em estudofeito relativamente a casos concretos, ocorridos no sistema americano, constatou­se que, não rarasvezes, as acusações são infladas, a fim de forçar o imputado a aceitar o acordo, mesmo que seja

inocente.27

No entanto, a comissão foi além, pois instituiu uma clara afronta às expectativas da sociedade.Com efeito, o art. 105, em seu §1º, II, estabelece que, havendo o acordo, a pena será aplicada nomínimo legal, mesmo que haja circunstâncias agravantes, ou causas de aumento. Além disso, o

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§4º prevê a possibilidade de a pena ainda ser diminuída de até um terço.

O pior é constatar que o §3º veda que o cumprimento da pena se inicie no regime fechado.

Ora, quando se lembra que haverá pena sem processo e que inocentes poder ser forçados atransacionar, todas essas benesses parecem justas; entretanto, esses dispositivos se aplicarão atodos os crimes do Código Penal; por conseguinte, homicídios qualificados de autoria inconteste,havendo acordo, nunca ensejarão prisão em regime fechado. Os piores crimes, por vedaçãoexpressa de lei, diante de acordo, não poderão ser punidos proporcional e adequadamente.

Percebe­se, claramente, que a sociedade está sendo enganada com este projeto. Os analistas sóperceberam a injustiça para mais (inocentes sendo punidos sem processo), o que já é grave. Masninguém denuncia a injustiça para menos (culpados de crimes muito reprováveis e graves), namais absoluta impunidade, dado que a pena mínima será a aplicada sempre, haverá, ainda,incidência de causa de diminuição e, como se não bastasse, o sistema fechado de cumprimento depena restará praticamente extinto.

Nota­se que no bojo de um único dispositivo, o projeto traz alterações bastante significativas. Emcerta medida, confirma a tese de que o propósito dessa reforma é acirrar o tratamento dispensadoaos cidadãos cumpridores da lei e abrandar o impacto do Direito Penal naqueles que praticam achamada criminalidade de massa, consequência direta da aplicação dos princípios inerentes àCriminologia Crítica.

Artigo 12228

No que concerne à eutanásia, preocupa, sobremaneira, a amplitude do dispositivo que visaregulamentá­la.

Primeiramente, cabe notar que o projeto diz que o juiz deixará de aplicar a pena e não que poderánão aplicá­la, no caso de um paciente, em estado terminal, vir a ser morto por parente ou poralguém com estreitos laços de afeição.

Ao conferir ao magistrado tal possibilidade, a comissão desconsidera que, muitas vezes, osparentes próximos têm interesse econômico na morte do doente. Quando não tem interesseeconômico, esse parente, sabendo da autorização legal, poderá transformar o seu própriosofrimento com o cuidado do doente, em razão para justificar a antecipação de sua morte.

A mente humana é ardilosa. A doença vitima toda a família. Em regra, quando o doente terminalfalece, resta nas pessoas mais próximas um misto de tristeza e alívio, seja pelo fato de osofrimento do doente ter cessado, seja pelo fato de o sofrimento do próprio familiar ter recebidoum ponto final.

Esse sentimento é natural, é humano, não há, aqui, qualquer crítica. Por experiência própria, e

também com base nas lições de Nilo Batista,29 consigno que as pessoas não gostam de ficarpróximas da morte. E a doença é a face mais anunciadora da morte. Estar ao lado de um parenteem estado terminal faz lembrar, todo momento, que estamos todos rumando para o fim.

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Ora, conhecendo essa natureza humana, não parece adequado que, a priori, o legislador confiratamanha liberdade. Note­se que o argumento ora desposado não possui nenhum fundamentoreligioso; pauta­se, exclusivamente, na natureza humana, que, não obstante não seja má, podeser prática e egoística.

Mas o dispositivo se revela especialmente perigoso ao, além de falar em doença terminal,mencionar doença grave, gerando margem à dúvidas, seja com relação à causação da morte poração (caput), seja no que concerne à omissão (§2º).

De fato, no que concerne à ortotanásia, contemplada no §2º, é muito problemático o fato de oprojeto falar em doença grave irreversível e não em doença terminal.

Uma análise rápida faz crer ser a mesma coisa. No entanto, diferentemente do que ocorre com asdoenças terminais, muitas doenças graves irreversíveis não levam à morte, como o Alzheimer, asescleroses, as paralisias, alguns tipos de derrame. São muitas as pessoas jovens acometidas porAVCs bastante graves, que não falecem, mas podem, por longos períodos, precisar do uso derespiradores, além de alimentação por meios artificiais.

A bioética já assentou que a distanásia é inaceitável. Ou seja, o médico não pode fazer do pacienteum instrumento, tentando a todo custo mantê­lo vivo, submetendo­o a sofrimentos que chegampróximo à tortura.

Não obstante, é perigoso aprovar um dispositivo segundo o qual poder­se­á, por exemplo, retiraros alimentos de pessoas que estejam completamente paralisadas, sem qualquer chance dereversão do quadro.

Recentemente, Eliana Zagui, que vive em uma cama de hospital, há 36 anos, vítima de paralisiainfantil, lançou o livro Pulmão de aço: uma vida no maior hospital do Brasil. Trata­se de umexemplo de superação. Nenhuma vida vale mais que a da autora. Aliás, a ninguém cabe fazer essaavaliação. Deve­se tomar o cuidado de não levar para a lei penal a deletéria ideia de que somentemerece proteção a vida considerada útil.

Artigo 12630

Além de, por força do disposto no art. 128, alargar as hipóteses de auto­aborto lícito, o projetodiminui pela metade a pena de quem pratica o aborto na gestante, com o seu consentimento.Enquanto o Código Penal atual comina pena de reclusão de um a quatro anos, o dispositivo emapreço, cuja modificação ora se requer, prevê pena de seis meses a dois anos.

De maneira completamente desproporcional, o mesmo projeto comina pena de dois a quatro anos aquem destrói um ninho. Idêntica pena é prevista para quem impede um animal de se reproduzir. Aanálise sistemática do projeto mostra que o ser humano recebe menor proteção que qualqueroutro animal. Seria como se o ovo de codorna valesse mais que um feto humano.

Sabe­se que há muitos defensores de uma igualdade entre as espécies. Em vários momentos desuas Confissões, Santo Agostinho “condena” o extermínio até mesmo de insetos. Cumpre respeitaresse posicionamento; entretanto, não parece razoável estabelecer uma inversão, ou seja, não só o

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ser humano não valeria mais que os animais, mas representa menos.

A desvalorização do ser humano perpassa todo o projeto de novo Código Penal. O abandono de umincapaz recebe a mesma pena do abandono de um animal. A omissão de socorro a uma criançarecebe pena de um a seis meses, enquanto a omissão de socorro a um cão tem pena de um aquatro anos. Lesão corporal grave e molestamento de cetáceos têm penas equivalentes e assim pordiante.

Independentemente de tanta afronta ao princípio da proporcionalidade, deve­se apontar que oprojeto de que ora se trata alarga, significativamente, as hipóteses em que a gestante poderáconsentir no aborto, sem que, por óbvio, haja qualquer consequência penal para ela e para quempratica a interrupção da gravidez nessas circunstâncias.

Ora, se já há uma gama imensa de hipóteses de aborto legal, por qual razão diminuir a pena dasintervenções feitas fora dessas situações?

Um dos argumentos para aumentar as hipóteses de aborto legal é justamente o de que, mediantetal expediente, se busca tutelar melhor a saúde da mulher. Pois bem, se esse intuito fosse real, porcerto, a pena de quem realiza o procedimento fora dos casos permitidos deveria ser bem maiselevada que a proposta.

Para que fique claro, considerando as inúmeras hipóteses em que o aborto não é consideradocriminoso pelo projeto, conclui­se que, por exemplo, se alguém praticar o aborto em uma gestante,no sexto mês de gestação, aniquilando a vida de um bebê quase pronto, estará sujeito à pena deuma infração de menor potencial ofensivo. Devendo­se lembrar que procedimentos dessa naturezaimplicam elevado risco à saúde e à vida da gestante. Por todos os aspectos pelos quais se examineesta diminuição de pena, conclui­se que não resta razoável.

Artigo 12831

Na forma como proposto, o art. 128 do projeto implica verdadeira legalização do aborto no país.Essa legalização, além de afrontar o bem jurídico vida, não condiz com a expectativa da maiorparte da população. Não é justo que ocorra uma legalização, sem o devido amadurecimento dotema. Pior, não é admissível proceder à legalização do aborto, sem que as pessoas estejamconscientes de tal medida. O meio encontrado para tal propósito não se revela transparente.

A esse respeito, cumpre ponderar que, diversamente do costumeiramente alardeado, o aborto nãoconstitui um direito fundamental da mulher, pois ninguém pode ter direito fundamental a retirar avida de outra pessoa.

Também não é verdade que os cuidados com a saúde da mulher justificam a legalização, pois hámedidas menos drásticas, que poderiam ser adotadas. Dentre essas medidas, citam­se: maiorinvestimento em educação para prevenção à gravidez, Aids e doenças sexualmente transmissíveis,possibilidade de esterilização sem o consentimento do cônjuge e a adoção do instituto do partoanônimo.

Na verdade, dado que a legalização do aborto já se transformou em uma bandeira, perdem­se

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muitas oportunidades de efetivamente preservar a saúde física e mental das mulheres. Oordenamento pátrio já é bastante complacente com relação ao aborto, não parece razoável quealargue ainda mais as hipóteses em que o crime não se verifica.

Como apontado em estudo anterior, 32 melhor para a mulher é ser orientada, é contar commétodos eficazes e seguros de prevenção à gravidez e às doenças sexualmente transmissíveis, e,em caso de gravidez indesejada, contar com um programa que lhe permita o parto anônimo e oencaminhamento do bebê para a adoção.

Muito preocupa a amplitude do dispositivo proposto, pois, fatalmente, no lugar de se esclarecer àmulher que ela tem a possibilidade de abortar, ativistas transformarão essa possibilidade emverdadeiro dever.

O ordenamento brasileiro já admite o aborto em caso de risco à vida da gestante e em caso degravidez oriunda de violência sexual. Essas hipóteses devem ser mantidas, apesar de implicaremafronta ao direito à vida, pois o Direito Penal é subsidiário e fragmentário e o Estado não podeexigir do indivíduo tamanho sacrifício.

Haja vista a decisão do Supremo Tribunal Federal, que reconhece ser impossível exigir da gestantedo anencéfalo manter a gravidez até seu término, parece mesmo adequado que o legisladorcontemple expressamente a hipótese, apesar de entendermos tratar­se de uma situação deinexigibilidade de conduta diversa e não de falta do bem jurídico vida.

Por outro lado, prever ser lícito o aborto praticado quando a gestante não tem condiçõespsicológicas para a maternidade já se revela um exagero, pois quaisquer motivos podem justificartal impossibilidade.

Uma mulher pode não ter condições por ser muito jovem, outra por ser muito velha, outra por nãoquerer ficar gorda, outra para não prejudicar a carreira. Com isso, coloca­se a vida humana emsegundo plano.

Importante destacar que essa constatação nada tem de religiosa. Impossível deixar de reconhecerque os seres humanos, pelo menos por enquanto, nascem a partir de uma gestação, ainda que afecundação tenha sido feita artificialmente.

Não se pode flexibilizar tanto a vida humana, mormente quando se protege até mesmo o ninho deum passarinho.

Ademais, para aqueles que acreditam que o feto não tem vida, deve­se lembrar que o nascituro játem até expectativa quanto ao patrimônio de seus genitores, que dirá quanto a sua própria vida,que é o direito mais básico de todos.

Artigo 14033

A honra é um bem jurídico tutelado constitucionalmente e, por isso, não se pode alegarinconstitucionalidade em tutelá­la penalmente. Ademais, o ordenamento pátrio sempre protegeu ahonra, na esfera cível e na criminal.

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No entanto, não se pode deixar de reconhecer que, quando comparada aos bens jurídicos vida,integridade física e dignidade sexual, a honra fica em um segundo plano.

Também não se pode descurar que, muita vez, pessoas desonestas se escondem atrás de umcenário de reputação ilibada e suposta elevada honorabilidade.

Assim, apesar de se manter a tutela penal à honra, em todas as suas modalidades, ou seja,punindo­se a calúnia, a injúria e a difamação, não parece razoável a elevação de penacontemplada no projeto para todos os crimes em referência.

De fato, a elevação de pena foi bastante significativa, revelando­se mesmo preocupante,principalmente quando se verificam as causas de aumento de pena e as punições que seriam, aofim e ao cabo, aplicadas aos jornalistas, em virtude da combinação com o art. 140, II, do projeto deque ora se trata.

Por uma suposta calúnia, o jornalista estará sujeito a até seis anos de prisão, por uma pretensa

difamação, a até quatro anos de prisão e por uma suposta injúria, a até dois anos de prisão.34

Poder­se­ia pretender argumentar que se o jornalista for inocente não haverá pena, pois asentença assim reconhecerá; entretanto, não há como negar o constrangimento que tão graveameaça representa, mormente para uma pessoa que vive da palavra. Sequer no período ditatorialas penas cominadas a jornalistas desse modo elevadas.

Com punições tão significativas, corre­se, ainda, o risco de inibir reportagens que denunciem aprática de crimes por parte de pessoas poderosas, colaborando­se para manter o país no estágioem encontra, onde se pune mais quem fala do que quem faz.

Por mais importante que seja o bem jurídico honra, entende­se que, para preservar valores muitocaros ao Estado Democrático de Direito, não se revela proporcional, nem aconselhável, elevar aspenas atualmente previstas.

No caso da difamação, o aumento de pena proposto pelo projeto se revela ainda mais injustificado,pois o fato ofensivo à reputação de outrem pode até ser verdadeiro e, ainda assim, o crime secaracterizará.

Deve­se, finalmente, ponderar que, ao julgar a Arguição de Descumprimento de PreceitoFundamental de número 130, o Supremo Tribunal Federal lhe deu provimento, para declarar que aLei nº 5.250/67 (Lei de Imprensa) não fora recepcionada pela Constituição Federal de 1988. NoAcórdão, brilhantemente redigido pelo Ministro Relator Carlos Ayres Brito, restou claro o objetivode reforçar a liberdade de Imprensa como verdadeiro pilar da Democracia.

Depois desse julgamento, já resta incoerente, a nosso sentir, admitir a punição de jornalistas comfulcro no Código Penal, como, aliás, vem ocorrendo. Não há respaldo para punir os jornalistasainda mais severamente, como pretende o projeto ora comentado.

A quem, afinal, interessa intimidar a Imprensa?

Artigo 14535

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A bioética é informada por vários princípios, o da beneficência, o da não maleficência, o daautonomia individual, que ganha força todos os dias. Segundo o princípio da autonomia individual,o paciente deve deixar de ser visto como alguém subordinado ao médico, quem, da altura de seuconhecimento, sempre decidiu o que seria melhor para a vida do outro.

A valorização da autonomia individual está diretamente relacionada às discussões que circundam aeutanásia, a ortotanásia, a distanásia, as diretivas de fim de vida, ou testamento vital, atransfusão de sangue para Testemunhas de Jeová, dentre outras questões complexas e polêmicas.

No campo exclusivamente ético, é indubitável que a autonomia é um valor a ser tutelado,contemplando a mesma importância que os princípios da beneficência e da não maleficência.

O fortalecimento da autonomia individual passa pelo direito que todos têm de definir o quecompreendem como dignidade humana.

Como costumo ponderar em aula, um paciente vitimado pelo câncer pode entender que suadignidade está diretamente relacionada ao acesso a todas as técnicas curativas, ainda queextremamente invasivas. Ao mesmo tempo, outro paciente, acometido pelo mesmo mal, podeentender que sua dignidade reside na possibilidade de ficar em casa, junto às pessoas queridas,livre do ambiente hospitalar, ainda que isso lhe custe alguns meses de vida. Assim, é muitoimportante, essencial, que o médico ouça e respeite seu paciente.

Ocorre que, por mais que a autonomia individual seja um valor, não parece razoável que se abusque tutelar por meio do Direito Penal, sob pena de incorrer em injustiça para com profissionais,que são treinados para salvar vidas.

Nota­se, claramente, que com uma boa intenção, o projeto sai de um extremo (em que a vontadedo médico sufoca a do paciente) e vai para outro extremo (onde o médico passa a ser punidocriminalmente por cumprir seu papel).

Sob o aspecto social, tutelar a autonomia individual, por meio do Direito Penal, coloca em risco aprópria saúde pública, pois o médico ficará com medo de ser criminalmente responsabilizado porfazer aquilo que se espera que ele faça.

Com efeito, por força do previsto no art. 146 do Código Penal atual, o médico que salva a vida deum paciente, sem o seu consentimento, não pode ser acusado da prática de constrangimentoilegal.

No entanto, se o PL nº 236/12 for aprovado, essa situação se modificará significativamente. Issoporque o art. 145, em seu §3º, I, dispõe que somente se afasta o crime de constrangimento ilegal,se o paciente for incapaz, ou não puder manifestar seu consentimento.

Em outras palavras, caso o médico trate, ou opere, uma pessoa maior de idade, contrariamente asua vontade, mesmo que venha a salvar sua vida, poderá ser processado criminalmente porconstrangimento ilegal.

Quando se pensa em cirurgias eletivas, o novel dispositivo não representa tantos problemas;entretanto, grande parte das intervenções se dá em situação de emergência. Muitas vezes, omédico tem minutos para decidir o que fazer, sendo certo que a perda de minutos, em Medicina,

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pode ser fatal.

Como ficará o médico do pronto socorro, já tão desprotegido juridicamente, diante dessa alteração?

Antes de modificar a lei penal, possibilitando punir o médico por fazer aquilo que ele foi treinadopara fazer, seria melhor refletir sobre as consequências dessa iniciativa.

O médico do Pronto Socorro, muitas vezes carente de recursos suficientes para atender a todos,não tem o tempo que o promotor e o juiz possuem para analisar um determinado caso.

Aliás, os diversos protestos que eclodiram em junho de 2013, também por parte dos profissionaisde saúde, mostram bem que a saúde pública não está o conto de fadas que o governo costumaalardear. Pior, as iniciativas desastrosas que se tentou implementar nessa seara (importação demédicos, elevação arbitrária do tempo de formação com trabalho obrigatório no Sistema Único deSaúde, autorização para clinicar sem prova de equivalência, etc.) deixam às claras todas asmazelas que contaminam o setor.

Nesse contexto, por mais que se preze a autonomia individual e por mais que se a tome como umvalor a ser crescentemente observado, não nos parece prudente querer tutelá­la por meio doDireito Penal. Melhor fazê­lo no âmbito ético, ou mesmo mediante outras esferas do Direito, nadaimpedindo que o Código traga uma excludente de ilicitude para aqueles casos em que o médicosimplesmente atendeu a vontade do paciente.

Indubitavelmente, é saudável pretender tutelar a autonomia individual, mas o melhor caminho nãoé lançar mão da tutela penal.

Ademais, não há sentido em excluir o crime de quem impede o suicídio, e punir o médico que,ainda que contra a vontade do paciente, lhe salva a vida.

Para traduzir em um exemplo concreto, toma­se o caso de um paciente maior, Testemunha deJeová, que deseje ser tratado sem receber sangue. Por força da l iberdade rel igiosaconstitucionalmente assegurada, caso o médico cumpra a vontade do paciente, por óbvio, nãopoderá sofrer qualquer sanção penal, seja a título de omissão de socorro, ou mesmo de homicídiopor omissão. O fato de esse não fazer não ser crime não significa que o fazer precise ser. Ou seja,caso o médico, observando as normas éticas e mesmo o juramento feito quando de sua formatura,venha a transfundir sangue ao paciente não poderá responder criminalmente por isso.

Como procuramos evidenciar em sede em Ingerência indevida, nem todas as situações complexasda vida precisam ser dirimidas no Direito Penal, fosse assim, não seria ele subsidiário efragmentário.

Sabe­se que há ordenamentos, como o português, por exemplo, em que existe essa figura dotratamento médico arbitrário. Não obstante, cremos tratar­se de inovação negativa tanto paraindivíduos, como para a sociedade.

Artigos 147 e 14836

Primeiramente, cabe apontar que os novos crimes capitulados nos artigos 147 e 148 do projeto, de

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certa forma, se sobrepõem. Trata­se de dispositivos criados para tipificar o chamado “bullying”, emuma iniciativa marcada por um simbolismo penal inadequado a um Estado Democrático de Direito.

Quando a inovação foi anunciada na Imprensa pela própria comissão que elaborou o projeto, falou­se em “bullying” e também em “stalking”, figuras, até então, pouco conhecidas pela sociedade.Mesmo o “bullying”, com tal denominação, estava começando a ser discutido nos meios decomunicação, muito embora a situação fática sempre tenha estado presente, sobretudo entre

crianças e adolescentes.37

Com efeito, recentemente, ganhou importância um fenômeno que sempre ocorreu nas escolas,onde crianças são objeto de “gozações” e perseguições, pelos mais diversos motivos: por seremgordas, por serem magras, por terem orelhas grandes, por usarem óculos, por serem muitointeligentes, por terem mais dificuldades, dentre tantas outras razões.

Essas perseguições fazem parte do processo de amadurecimento, mas, caso sejam muitofrequentes, podem causar sim prejuízo à criança, ou adolescente, vítima.

Por isso, é muito importante que tal fenômeno seja identificado, estudado, enfrentado e coibido. Noentanto, no lugar de desenvolver políticas preventivas e educacionais, muito mais adequadas parao problema, o Estado logo decide criminalizar o “bullying”, retirando dos pais e da escola o poder­dever de mediar conflitos e buscar soluções.

Além da infantilização do indivíduo, tal criminalização implica o risco de antecipar a entrada denossos adolescentes no sistema prisional (ainda que sejam nas unidades destinadas aadolescentes), criando­se estigma dificilmente passível de ser contornado.

A esse respeito, deve­se destacar que o projeto cria um crime, já pensando na equiparação que

caracteriza o ato infracional.38 Em outras palavras, é um crime elaborado para se aplicar aadolescentes.

Professoras acomodadas, no lugar de procurarem solucionar os problemas em sala de aula,chamarão a polícia, gerando um estado de verdadeiro terror. Pais e educadores abrirão mão de seupapel, tão caro à sociedade.

Nota­se que, atualmente, mesmo na ausência de dispositivos como os ora comentados, não sãopoucos os casos de professoras que, diante de situações de indisciplina, lavram boletim deocorrência. Em uma situação concreta, uma professora, após discussão com um adolescente,dirigiu­se à delegacia porque o rapaz teria dito que ela seria louca. Ora, havendo o crime e, porconseguinte, o ato infracional, resta evidente que esse tipo de caso vai se multiplicar.

Pelo lado da família, nota­se, crescentemente, nas mais diversas classes sociais, uma verdadeiraterceirização da criação. Muitos pais não acompanham suas crianças sequer ao pediatra. A maiorparte das atividades de crianças e adolescentes é seguida por babás e motoristas. Com os noveisdispositivos, o Estado, por meio da polícia, vai assumir o vácuo deixado pelos pais.

Se um jovem desrespeita seu colega na escola, cumpre à escola, em conjunto com a família, olharpara o problema e, talvez com a ajuda de um profissional de saúde, tentar solucioná­lo.Criminalizar o “bullying” significa ajudar pais e educadores que já não querem mais cumprir o seupapel a desculparem sua própria falta.

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Não se pode esquecer que, caso um adolescente mate, violente, ou fira gravemente, uma criança,ou outro adolescente, por óbvio, tais condutas já constituem ato infracional, pela equiparação comos crimes de homicídio, estupro e lesão corporal; por conseguinte, a tipificação de que ora se tratarevela­se absolutamente desnecessária.

A incriminação do “bullying” traz prejuízos e não acarreta nenhum benefício, portanto, seguindo­seas lições de São Tomás de Aquino, segundo quem somente se justifica alterar a lei, quando osbônus são muito superiores aos ônus, é melhor não institui­la.

O Direito Penal não precisa dar resposta a todos os problemas sociais. Aliás, em uma verdadeiraDemocracia, o Direito Penal é a última arma do Estado.

Além dessas considerações de política criminal, aponta­se que os tipos em apreço são muito amplose parte das condutas elencadas já estão previstas como crime, como, por exemplo, a ameaça àintegridade física e a restrição à capacidade de locomoção. Dessa forma, a manutenção dosdispositivos ensejará instransponíveis conflitos de normas, que podem, contrariamente aopretendido, levar à impunidade dos atos que realmente são afetos à esfera penal.

Artigo 18939

De todos os problemas do Projeto nº 236/12, sem sombra de dúvidas, o presente dispositivorevela­se o maior. Nada justifica que a exploração da prostituição somente seja crime, quando avítima tenha menos de 12 anos.

Por óbvio, qualquer país que se pretenda minimamente sério deve considerar crime o ato de atrair,submeter induzir ou explorar a prostituição de crianças e adolescentes, ou seja, de menores de 18anos.

O projeto em apreço já é bastante tolerante para com a prostituição, uma vez que descriminaliza orufianismo. A medida já é controversa quando se está diante de pessoas adultas, no entanto, nãohá qualquer justificativa para descriminalizar o rufianismo relativamente a menores de idade.

Sabe­se que um dos maiores problemas sociais, no Brasil, é justamente a exploração sexual decrianças e adolescentes. Muitos estrangeiros já vêm para este país, objetivando “usufruir” dasfacilidades sexuais aqui encontradas.

Pelo menos, atualmente, a conduta desses consumidores e dos exploradores, é crime. Ou seja, osórgãos de repressão, ainda que parcamente, têm a lei para referendar sua atuação.

Se o projeto for aprovado em sua forma original, nossos adolescentes serão prostituídos, com orespaldo da lei.

Ao participar do programa “Entre Aspas”, o relator do anteprojeto declarou que os doze anosconstantes do caput do art. 189 teriam sido um erro; entretanto, ninguém tomou o cuidado decorrigir esse erro. E essa correção se revela imperiosa, se não se pretender transformar o Brasilem um prostíbulo mirim oficial.

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Recentemente, estive em Brasília e tive a honra de ser recebida pelo Senador Pedro Taques, quese comprometeu a alterar o dispositivo, já que é o relator do projeto. Seu relatório ainda não foipublicado, pelo justo e pela lógica, aguardamos que, realmente, esse dispositivo seja alterado paraconstar, no caput, 18 anos.

Com efeito, não se pode confundir o limite dos 12 anos, que serve para que a violência sejapresumida em uma relação sexual em que não há valores econômicos envolvidos, com a questãoda prostituição.

A adolescente prostituída está em situação de dupla vulnerabilidade: a da idade e a da carênciaeconômica, sendo frequentes, ainda, os casos de desestrutura familiar.

Permitir a exploração sexual de adolescentes constitui crime contra a humanidade.

Esther de Figueiredo Ferraz, uma das maiores penalistas que o país já teve, manifestou­seradicalmente contra a ideia de legalizar a exploração sexual, inclusive, de pessoas adultas.Segundo a doutrinadora, não se pode conviver com um Estado proxeneta. A afirmação da juristatem razão de ser, pois a maior parte dos defensores da legalização da exploração da prostituição sefirma no fato de que seriam recolhidos tributos.

Ora, se a legalização da prostituição de pessoas adultas já é questionável, que dirá a deadolescentes.

A esse respeito, importante aduzir que os motivos que obrigam à modificação do art. 189 doprojeto não guardam qualquer relação com moralismos. Na verdade, a alteração de tão repugnantedispositivo, para aumentar os 12 anos indicados no caput para 18 anos, está em total consonânciacom a Constituição Federal e com o Estatuto da Criança e do Adolescente, diplomas quereconhecem o estado especial de desenvolvimento desses seres, que merecem a mais completaproteção e respeito.

Em 06.08.2013, participei do Primeiro Fórum Mundial de Segurança Humana, promovido pela ONUe pela OAB/SP.

Na oportunidade, pude debater com o palestrante Edmundo Oliveira, que falou sobre o crime detráfico de pessoas. Concordei com o palestrante, no sentido de que o tráfico de pessoas deve serprevenido e combatido; entretanto, ponderei que, de forma muito hipócrita, o Estado brasileiroassina vários tratados internacionais com esse fim e se preocupa com as pessoas traficadas, masnão cuida daquelas que são prostituídas e vendidas, em plena luz do dia, em todas as esquinas donosso país. Pior, por muito pouco, o Poder Executivo, por meio do Ministério da Saúde, não lançouum programa, para ser divulgado para o mundo todo, às vésperas da Copa do Mundo, cujo moteera: “Sou feliz por ser prostituta”.

Por óbvio, não se quer que as prostitutas sejam infelizes. As pessoas são e devem ser livres parafazer o que quiserem de suas próprias vidas e de seus próprios corpos. No entanto, dada à famaque as brasileiras possuem no exterior, uma campanha como essa seria um verdadeiro desserviço.

Mas essa condescendência com a instrumentalização e coisificação de pessoas não fica restrita aoPoder Executivo, também o Judiciário a referenda. Veja­se a decisão do Superior Tribunal deJustiça (depois revista), que absolvera um indivíduo que pagou por programas sexuais com

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meninas de 11 e 12 anos. A absolvição havia se fundado na falácia de que as vítimas teriam

consentido nas relações sexuais.40

Infelizmente, essa é a mentalidade que vigora no país, a de dizer que uma criança, ao se submetera um explorador e a um estuprador, muitas vezes, por um sanduiche, ou uma bonequinha, temliberdade para consentir.

Artigo 39141

O dispositivo de que ora se trata foi, e ainda é, um dos mais criticados do projeto. Este artigoevidencia a desproporcionalidade e, de certa forma, a falta de racionalidade que orientou ostrabalhos da comissão, sobretudo no que diz respeito aos crimes ambientais.

A legislação atual, qual seja, a Lei nº 9.605/98, em seu art. 32, tipifica o crime de maus­tratos aanimais, com pena de três meses a um ano. Tal intervalo de punição haveria de ser mantido, paraque não se incorra em flagrante desproporcionalidade. É bem verdade, que a legislação atual já éum tanto quanto desproporcional; entretanto, o projeto consegue piorar o quadrosignificativamente.

Com efeito, o Código Penal atual, em seu art. 136, pune os maus­tratos às pessoas com a pena dedois meses a um ano de detenção, sendo certo que se os maus­tratos acarretarem lesão grave àvítima, a pena se eleva para o interregno de um a quatro anos.

Se tomarmos por base o próprio projeto, perceberemos que, apesar de a pena dos maus­tratos àspessoas ter sido elevada, relativamente à legislação em vigor, não difere muito da prevista nodispositivo ora comentado.

De fato, o art. 134 do projeto comina a pena de um a cinco anos de prisão para a pessoa quepratica maus tratos contra uma criança, como pode punir com interregno tão próximo quem age deforma parecida com um animal?

Ademais, deve­se recordar que existe, no sistema jurídico brasileiro, uma cultura da pena mínima,de forma que, fatalmente, diante de dois casos concretos, um envolvendo uma criança e umenvolvendo um animal, sendo os agentes primários e sem antecedentes, há grandes chances de apunição vir a ser a mesma, o que resta injustificável, sob todos os aspectos.

De modo algum, mediante essa crítica, se objetiva referendar qualquer comportamentodesrespeitoso para com a vida, ou a integridade física, dos animais. No entanto, até com o intuitode prestigiar e preservar a vida dos seres humanos, é preciso sim estabelecer diferenças, sob penade, indiretamente, estar­se rebaixando seres humanos ao patamar de cães, justificando abusos,torturas e toda ordem de inversões.

Muitos humanistas, religiosos, vegetarianos, ambientalistas têm defendido um maior respeito aosanimais. E esses movimentos são positivos. O que não se pode admitir é o rebaixamento do serhumano, pois se corre o risco de gerar uma sociedade ainda mais insensível à desgraça alheia. Osnúmeros de homicídio no país já mostram bem como a vida humana, aqui, nada vale.

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Por esse mesmo fundamento, com todo respeito, não se pode justificar a existência de figurajurídica que criminaliza a realização de pesquisas com animais.

Por óbvio, essas pesquisas devem ser eticamente controladas e regradas, mas não existenecessidade de recorrer à esfera penal para efetivar tal proteção.

A esse respeito é muito importante destacar que, no Brasil, não há normas penais referentes aosabusos perpetrados nas pesquisas com seres humanos. E assim é, pelo temor de, ao criminalizarcondutas em tal seara, findar­se por engessar a própria ciência, prejudicando, por conseguinte, asaúde pública.

Ora, se não se criminalizam os abusos referentes às pesquisas feitas com pessoas, para não

prejudicar a Ciência,42 não há por onde defender a incriminação das experiências científicas comcobaias.

Aliás, já são muitos os cientistas brasileiros que se veem acuados com sucessivas audiênciaspreliminares e obrigados a transacionarem em situações inquestionavelmente abusivas.

Poder­se­ia aduzir que o projeto, em seu art. 516 criminaliza as pesquisas com seres humanos;entretanto, tal dispositivo se aplica apenas à situação de guerra e, frise­se, apenas relativamenteàs pessoas consideradas protegidas, por regra, não nacionais.

Artigo 39343

Este foi um dos primeiros dispositivos que chamou a atenção para a falta de qualidade de todo oprojeto. Com efeito, antes mesmo de a íntegra do resultado do trabalho da comissão ter sidodisponibilizada ao público, o que, aliás, ocorreu apenas quando da entrega oficial do texto aoSenado, membros da comissão deram entrevistas aos órgãos de comunicação, anunciando agrande novidade: criminalizaram o ato de abandonar animais.

A criação do crime, em si, não gera tanta perplexidade. No entanto, quando se verifica que a penacominada (um a quatro anos) é o dobro da pena prevista para quem abandona um recém­nascido(art. 134 do atual Código Penal), faz­se necessário prestar mais atenção aos objetivos da comissão.

A esse respeito, é muito importante destacar que, o Requerimento que instituiu a comissão falavajustamente na necessidade de resgatar a proporcionalidade do ordenamento jurídico­penalbrasileiro.

Ora, não há maior exemplo de desproporcionalidade que o presente dispositivo. Talvez o únicocaso mais grave seja o de omissão de socorro aos animais, que será abordado oportunamente.

Mesmo se se comparar as penas do presente dispositivo com aquelas estabelecidas pelo próprioprojeto, resta a punição cominada insustentável.

De fato, o projeto de que ora se trata, em seu art. 131, comina a mesma pena de um a quatroanos, a quem “abandonar pessoa que está sob seu cuidado, guarda, vigilância ou autoridade, e, porqualquer motivo, incapaz de defender­se dos riscos resultantes do abandono”.

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A lei ambiental vigente já é bastante abrangente; além disso, há várias cidades em que constituiinfração administrativa o abandono de animais domésticos. Por ser o Direito Penal subsidiário,melhor seria deixar mesmo essa questão à esfera não penal, Não obstante, caso prevaleça oentendimento de que existe dignidade penal, jamais se poderia conviver com tamanha diminuiçãodo ser humano.

Mais uma vez, cumpre questionar por qual razão esse grupo de juristas buscou, por meio dediversos institutos, diminuir a dignidade do ser humano.

Por melhores que sejam as intenções, ao longo prazo, essa filosofia de igualar pessoas a animaisnão terá resultamos positivos. Como já dito, ao invés de valorizarem­se os animais, justificar­se­ãoabusos contra os seres humanos, que valerão tanto quanto um frango. E frangos são mortos todosos dias, para serem levados a nossos pratos. Se um homem vale tanto quanto um frango, que malhá em submetê­lo, por exemplo, à tortura, dado que haja uma utilidade social para tanto?

Artigo 39444

Este art. 394, sem sombra de dúvidas, é outro grande exemplo da falta de técnica deste projeto.Uma vez mais, reitero que o projeto deveria ter sua tramitação interrompida, pelas inúmerasimpropriedades técnicas. De toda forma, caso esta interrupção total não ocorra, tem­se que estedispositivo haveria de ser suprimido.

Primeiramente, cabe destacar que esta figura não existe na legislação atual e jamais alguémreclamou a criação de norma parecida; embora dada à desvalorização crescente dos sereshumanos, venha sendo mais comum as pessoas se sensibilizarem com os animais do que comoutros indivíduos em situação de risco, ou carência.

De toda forma, no que tange a este dispositivo, a desproporcionalidade do projeto resta gritante.Nota­se que para a omissão de socorro aos animais, prevê­se pena de um a quatro anos de prisão,enquanto o art. 132 do próprio projeto comina a pena de um a seis meses de prisão, ou multa,para quem deixar de prestar assistência à criança, por exemplo.

Para que se entenda o que isso significa, preciso repetir um exemplo que venho dando nas maisdiversas oportunidades: imagine que ocorra um atropelamento e uma menina e seu gatinhofiquem feridos no meio da rua. Imagine que um transeunte só tenha condições de salvar uma dasvítimas. Se ele escolher com base na razão e no sentimento, por óbvio, salvará a criança. Noentanto, se abrir o Código Penal, que teremos se este projeto for aprovado, essa pessoa escolherásalvar o gatinho, pois a pena mínima para quem omite socorro a um animal é doze vezes maior doque a de quem omite socorro a uma criança.

Não seria preciso dizer mais nada para mostrar a irracionalidade do dispositivo. No entanto, deve­se ainda lembrar que, no país, não há uma rede pública veterinária. Há pouco tempo, foi noticiadaa inauguração do primeiro hospital público veterinário, o qual já está com sua capacidadeesgotada.

Ora, pode o Direito Penal obrigar as pessoas a socorrerem animais, inclusive pagando as despesascom tal socorro? Obviamente não. Esta norma tem efeitos deletérios e só se presta para diminuir,

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ainda mais, o valor do ser humano.

Artigo 39945

A infração de molestar cetáceos sempre foi ridicularizada pela doutrina. Punida com multa, aprevisão ingressou no ordenamento brasileiro em 1999, por meio do Decreto Presidencial nº 3.179(art. 22), posteriormente revogado. Segundo consta, a criação do dispositivo ocorreu, após jovens,munidos de um pedaço de pau, terem “cutucado” uma baleia encalhada.

Por óbvio, ninguém seria simpático ao molestamento de um animal gratuitamente. No entanto, acriação dessa figura jurídica ficou eternizada como um sinal da incapacidade do legislador, que crialeis para dar respostas a eventos que comovem o público, ainda que juridicamente não sesustentem. Os gracejos também circundaram o fato de ter sido utilizado o verbo molestar, o qualsempre remete à ideia de abuso sexual.

Pois bem, apesar de todas as objeções que sempre circundaram a pitoresca figura do “molestarcetáceos”, eis que a comissão, não satisfeita em tutelar os animais de forma mais efetiva que osseres humanos, decidiu ressuscitar o dispositivo, agora com natureza de crime, cominando pena deaté cinco anos de prisão.

O tipo penal em apreço é absolutamente desnecessário, pois a Lei nº 9.605/98 e o projeto oracomentado já contemplam o crime de maus tratos a animais. Não seria cetáceo um animal?

Ademais, as penas previstas, também aqui, são completamente desproporcionais. O sujeito quemolestar um golfinho estará sujeito a uma pena mínima quatro vezes maior que a pena daqueleque fere uma pessoa. Isso sem contar o fato de a pena máxima deste crime ser cinco vezes a penamáxima do crime de lesão corporal (art. 129 do próprio projeto).

Mas a irracionalidade não para aí. O crime de lesão corporal grave em terceiro grau (a pior detodas) prevê pena de três a sete anos de prisão. Já a pena para quem causa lesão grave a umgolfinho pode chegar a sete anos e meio. Mais um exemplo de que a comissão considera os animaismais importantes do que as pessoas. Não há argumento que sustente este dispositivo noordenamento.

Notas conclusivas

Haveria muitos outros pontos a serem abordados, como, por exemplo, o estranho fato de o projeto,em seu art. 239, criminalizar o terrorismo, excepcionando os movimentos sociais, sem definirexatamente o que, afinal, os caracterizaria.

Obviamente, não se quer que a livre manifestação do pensamento seja criminalizada. Jamais. Noentanto, impossível continuar convivendo com a República dos amigos, na qual os atos perpetradospelos aliados são protesto e os praticados por opositores constituem crime.

Em uma verdadeira Democracia, busca­se, ao máximo, liberar a palavra e definir os atos passíveisde punição, independentemente de quem sejam seus autores. O Direito Penal deve se ater ao fato

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e não ao autor.

Necessário notar também que o PL nº 236/12, ao final, revoga expressamente vários diplomaslegislativos, o que, a princípio, é até coerente com a pretensão de adotar a codificação.

No entanto, em alguns pontos, penso que a comissão procedeu à revogação, sem colocardispositivos equivalentes no lugar. Para ilustrar, cita­se a situação dos transplantes.

Com efeito, o projeto revoga a Lei nº 9.434/97, que trata de maneira bastante ampla dostransplantes, criminalizando diversas condutas.

Até tenho algumas objeções a referido diploma legal, sobretudo no que diz respeito àproporcionalidade; entretanto, há figuras de que não podemos prescindir, como a que diz respeitoao tráfico de órgãos.

É bem verdade que, em seu art. 469, §2º, o projeto tipifica o tráfico (internacional e interno) depessoas para fins de remoção de órgão, tecido, ou partes do corpo.

Ocorre que, no que concerne aos transplantes, na maior parte das vezes, não é a pessoa que étraficada, mas sim o órgão.

Na forma em que redigido o projeto, a compra e venda de órgãos, mesmo que retirados de pessoasvivas, restará atípica.

Insisto que a praticidade e o utilitarismo nem sempre constituem o melhor caminho. Não é porqueórgãos são efetivamente vendidos, que nossa sociedade deve regularizar tamanha violência, paracom os que vendem e para com os que aguardam nas filas.

O argumento de que é melhor legalizar, regulamentar e tributar — normalmente utilizado parasustentar a legalização do tráfico de drogas, da exploração da prostituição, do aborto e da comprae venda de órgãos — também valeria para o homicídio. Afinal, no Brasil, sempre se matou, mata­se muito e, provavelmente, continuar­se­á matando. Definitivamente, nessa seara, não sou umaprática.

Desde a época em que era estudante, tenho presenciado professores reclamarem dos erros dolegislador. Presentemente, muitas aulas cingem­se às críticas ao texto da lei, à falta detaxatividade, de proporcionalidade e assim por diante.

Pois bem, correndo o risco de ser deselegante, preferi tentar proceder a essas críticas antes.Procurei colaborar com o processo legislativo. Em certa medida, esta breve intervenção é umatentativa em tal sentido.

Finalizo pedindo desculpas se, eventualmente, nesse afã, exagerei no tom e também por ter, nestebreve artigo, feito menção a textos próprios. O intuito único foi o de evitar repetir ideias efundamentos melhor explicados em outros momentos, buscando, portanto, tornar a leitura menoscustosa.

Mais que qualquer outro desafio, penso que os criadores e, sobretudo, os aplicadores do DireitoPenal precisam começar a acreditar que as leis penais realmente valem para todos. E que ohomem, independentemente de suas peculiaridades, deve estar no centro desse mais forte braço

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de proteção estatal.

Resumen: Este es un texto crítico al Proyecto de Ley nº 236/12, cuyo objetivo es recopilar toda laley penal en el nuevo Código Penal. En el momento de finalizar este texto, el Proyecto de Ley seencuentra pendiente en el Congreso, a la espera del informe del Senador Pedro Taques. Aunque elproyecto de traer varios puntos que merecen ser comentadas y criticadas severamente, se decidióseleccionar los que, para el autor, sería el peor de los casos.

Palabras­clave: Proyecto del Nuevo Código Penal. Desproporcionalidad. Sociedad del riesgo. Lainterferencia debida.

Abstract: The objective is to criticize the Project of Law n. 236/12. This project unifies CriminalLaw Legislation. At the time this paper was finished, the Project is at the Congress, waiting for theSenator Pedro Taques’s Report. Despite there are several points to be criticized, the author chosethe worst ones, according to her opinion.

Key words: Project of the New Criminal Code. Disproportionality. Risk Society. Interference due.

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1 PASCHOAL. Ingerência indevida: os crimes comissivos por omissão e o controle pela punição donão fazer.

2 GONÇALVES; PASCHOAL. Novo Código Penal: uma necessidade?.

3 PASCHOAL. Terrorista é criminoso: criminoso não é coitado: também não é herói. RevistaLiberdades.

4 O a r t i g o f o i p u b l i c a d o e m 1 0 j u n . 2 0 1 2 . D i s p o n í v e l e m :

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<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/47835­direito­penal­politicamente­correto.shtml>.Acesso em: 15 abr. 2014.

5 Por duas vezes, fui ao Senado Federal, uma por conta própria, outra a convite. Participei deaudiência pública promovida pela bancada evangélica; participei de audiências com parlamentaresdos mais diversos partidos, em sua maioria da bancada católica; fui procurada por muitos gruposreligiosos, alguns dos quais cheguei a receber em meu escritório, além de empresários, industriais,educadores, estudantes, psicólogos e, sobretudo, jornalistas. Estive em programas de televisão (NaMoral, Entre Aspas, Justiça e Democracia, Código de Honra), de rádio (CBN e Cultura), escrevitextos para jornais e sites especializados, bem como para parlamentares que abriram portas paraque eu apontasse os temas que mais me incomodavam e incomodam. Cheguei a enviar a essesmesmos parlamentares propostas de emendas ao PL nº 236/12. As observações ora lançadas, decerta forma, constituem uma compilação de todo esse rico processo, durante o qual, com a graçade Deus, entendo que mais aprendi do que ensinei.

6 MENESES. Notas a lápis sôbre a evolução emocional e mental do homem. Estudos de Sociologia.

7 ARENDT. Origens do totalitarismo: anti­semitismo, imperialismo, totalitarismo.

8 DÍEZ RIPOLLÉS. A racionalidade das leis penais: teoria e prática.

9 AQUINO. Escritos políticos de Santo Tomás de Aquino, p. 116­117.

10 “Art. 17. Imputa­se o resultado ao omitente que devia e podia agir para evitá­lo. O dever deagir incumbe a quem: a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; b) de outraforma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; c) com seu comportamento anterior,criou o risco da ocorrência do resultado. Parágrafo único. A omissão deve equivaler­se à causação”.

11 “Art. 24. Há o início da execução quando o autor realiza uma das condutas constitutivas do tipoou, segundo seu plano delitivo, pratica atos imediatamente anteriores à realização do tipo, queexponham a perigo o bem jurídico protegido. Parágrafo único. Nos crimes contra o patrimônio, ainversão da posse do bem não caracteriza, por si só, a consumação do delito”.

12 Várias obras foram editadas, desde então, e salvo sob uma perspectiva do Direito Penal doInimigo, não nos parece que a impossibilidade de punirem­se os atos preparatórios tenha sidorevista (v. Constituição, criminalização e direito penal mínimo).

13 “Art. 33. Não há exclusão da imputabilidade penal se o agente praticar o fato: I ­ sob emoção oua paixão; ou II ­ em estado de embriaguez ou estado análogo, voluntário ou culposo, se nomomento do consumo era previsível o fato”.

14 “Art. 38. Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, namedida de sua culpabilidade. §1º Concorrem para o crime: I ­ os autores ou coautores, assimconsiderados aqueles que: a) executam o fato realizando os elementos do tipo; b) mandam,promovem, organizam, dirigem o crime ou praticam outra conduta indispensável para a realizaçãodos elementos do tipo; c) dominam a vontade de pessoa que age sem dolo, atipicamente, de formajustificada ou não culpável e a utilizam como instrumento para a execução do crime; ou d) aqueles

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que dominam o fato utilizando aparatos organizados de poder. II ­ partícipes, assim considerados:a) aqueles que não figurando como autores, contribuem, de qualquer outro modo, para o crime; oub) aqueles que deviam e podiam agir para evitar o crime cometido por outrem, mas se omitem;[...]”.

15 PASCHOAL. Mães estupradoras. In: REALE JÚNIOR; PASCHOAL (Coord.). Mulher e direito penal,p. 229­249.

16 La partecipazione mediante omissione a reato comissivo: genesi e soluzione di un equivoco.Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale, p. 1274.

17 Rethinking Criminal Law, p. 622, 633, 634.

18 A co­delinquência no direito penal brasileiro, p. 137­143.

19 Sobre a liberdade. Tradução de Alberto da Rocha Barros.

20 “Art. 41. As pessoas jurídicas de direito privado serão responsabilizadas penalmente pelos atospraticados contra a administração pública, a ordem econômica, o sistema financeiro e o meioambiente, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal oucontratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou beneficio da sua entidade. §1º Aresponsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, coautoras oupartícipes do mesmo fato, nem é dependente da responsabilização destas. §2º A dissolução dapessoa jurídica ou a sua absolvição não exclui a responsabilidade da pessoa física. §3º Quem, dequalquer forma, concorre para a prática dos crimes referidos neste artigo, incide nas penas a estescominadas, na medida da sua culpabilidade, bem como o diretor, o administrador, o membro deconselho e de órgão técnico, o auditor, o gerente, o preposto ou mandatário de pessoa jurídica,que, sabendo da conduta criminosa de outrem, deixar de impedir a sua prática, quando podia agirpara evitá­la”.

21 Ademais, acaba de ser publicada a Lei nº 12.846/13, que trata justamente da responsabilidadecivil e administrativa de empresas, pela prática de atos contra a administração pública, prevendo,inclusive, a responsabilidade objetiva. Não tem qualquer sentido instituir responsabilidade penal,antes de essa nova legislação ser, pelo menos, experimentada por algum período.

22 “Art. 42. Os crimes praticados pelas pessoas jurídicas são aqueles previstos nos tipos penais,aplicando­se a elas as penas neles previstas, inclusive para fins de transação penal, suspensãocondicional do processo e cálculo da prescrição. A pena de prisão será substituída pelas seguintes,cumulativa ou alternativamente: I ­ multa; II ­ restritivas de direitos; III ­ prestação de serviços àcomunidade; IV ­ perda de bens e valores. Parágrafo único. A pessoa jurídica constituída ouutilizada, preponderantemente, com o fim de permitir, facilitar ou ocultar a prática de crime terádecretada sua liquidação forçada, seu patrimônio será considerado instrumento do crime e como talperdido em favor do Fundo Penitenciário”.

23 “Art. 43. As penas restr i t ivas de dire i tos da pessoa jur íd ica são, cumulat iva oualternativamente: I ­ suspensão parcial ou total de atividades; II ­ interdição temporária deestabelecimento, obra ou atividade; III ­ a proibição de contratar com instituições financeiras

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oficiais e participar de licitação ou celebrar qualquer outro contrato com a Administração PúblicaFederal, Estadual, Municipal e do Distrito Federal, bem como entidades da administração indireta;IV ­ proibição de obter subsídios, subvenções ou doações do Poder Público, pelo prazo de um acinco anos, bem como o cancelamento, no todo ou em parte, dos já concedidos; V ­ proibição a queseja concedido parcelamento de tributos, pelo prazo de um a cinco anos. §1º A suspensão deatividades será aplicada pelo período máximo de um ano, que pode ser renovado se persistirem asrazões que o motivaram, quando a pessoa jurídica não estiver obedecendo às disposições legais ouregulamentares, relativas à proteção do bem jurídico violado. §2º A interdição será aplicadaquando o estabelecimento, obra ou atividade estiver funcionando sem a devida autorização, ou emdesacordo com a concedida, ou com violação de disposição legal ou regulamentar. §3º A proibiçãode contratar com o Poder Público e dele obter subsídios, subvenções ou doações será aplicada peloprazo de dois a cinco anos, se a pena do crime não exceder cinco anos; e de dois a dez anos, seexceder”.

24 “Art. 74. A multa será aplicada em todos os crimes que tenham produzido ou possam produzirprejuízos materiais à vít ima, independentemente de que cada t ipo penal a prevejaautonomamente”.

25 “Art. 105. Recebida definitivamente a denúncia ou a queixa, o advogado ou defensor público, deum lado, e o órgão do Ministério Público ou querelante responsável pela causa, de outro, noexercício da autonomia das suas vontades, poderão celebrar acordo para a aplicação imediata daspenas, antes da audiência de instrução e julgamento. §1º São requisitos do acordo de que trata ocaput deste artigo: I ­ a confissão, total ou parcial, em relação aos fatos imputados na peçaacusatória; II ­ o requerimento de que a pena de prisão seja aplicada no mínimo previsto nacominação legal, independentemente da eventual incidência de circunstâncias agravantes oucausas de aumento da pena, e sem prejuízo do disposto nos §§2º a 4º deste artigo; III ­ aexpressa manifestação das partes no sentido de dispensar a produção das provas por elasindicadas. §2º Aplicar­se­á, quando couber, a substituição da pena de prisão, nos termos dodisposto no art. 61 deste Código. §3º Fica vedado o regime inicial fechado. §4º Medianterequerimento das partes, a pena prevista no §1º poderá ser diminuída em até um terço do mínimoprevisto na cominação legal”.

26 REALE JÚNIOR. Simplificação processual e desprezo ao direito penal. Ciências Penais – Revistada Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais.

27 PASCHOAL. Breves apontamentos relativos ao instituto do plea bargaining no direito norte­americano. Revista FMU Direito.

28 “Art. 122. Matar, por piedade ou compaixão, paciente em estado terminal, imputável e maior, aseu pedido, para abreviar­lhe sofrimento físico insuportável em razão de doença grave: Pena –prisão, de dois a quatro anos. §1º O juiz deixará de aplicar a pena avaliando as circunstâncias docaso, bem como a relação de parentesco ou estreitos laços de afeição do agente com a vítima.Exclusão de ilicitude. §2º Não há crime quando o agente deixa de fazer uso de meios artificiaispara manter a vida do paciente em caso de doença grave irreversível, e desde que essacircunstância esteja previamente atestada por dois médicos e haja consentimento do paciente, ou,na sua impossibilidade, de ascendente, descendente, cônjuge, companheiro ou irmão”.

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29 Maus tratos, omissão imprópria e princípio da confiança em atividades médico­cirúrgica: o casoda Clínica Santa Genoveva. Revista Brasileira de Ciências Criminais.

30 “Art. 126. Provocar aborto com o consentimento da gestante. Pena – prisão, de seis meses adois anos”.

31 “Art. 128. Não há crime de aborto: I ­ se houver risco à vida ou à saúde da gestante; II ­ se agravidez resulta de violência da dignidade sexual, ou do emprego não consentido de técnica dereprodução assistida; III ­ se comprovada a anencefalia ou quando o feto padecer de graves eincuráveis anomalias que inviabilizem a vida extrauterina, em ambos os casos atestado por doismédicos; ou IV ­ se por vontade da gestante, até a décima segunda semana da gestação, quando omédico ou psicólogo constatar que a mulher não apresenta condições psicológicas de arcar com amaternidade. Parágrafo único. Nos casos dos incisos II e III e da segunda parte do inciso I desteartigo, o aborto deve ser precedido de consentimento da gestante, ou, quando menor, incapaz ouimpossibilitada de consentir, de seu representante legal, do cônjuge ou de seu companheiro”.

32 Em obra organizada por Miguel Reale Júnior, com fulcro em casos concretos, analisamos oscrimes de aborto, infanticídio, bem como auxílio, induzimento e instigação ao suicídio. Cf. REALEJÚNIOR (Coord.). Direito penal: jurisprudência em debate: crimes contra a pessoa.

33 “Art. 140. As penas cominadas neste Capítulo são aplicadas até o dobro se qualquer dos crimesé cometido: I ­ na presença de várias pessoas; por meio jornalístico, inclusive o eletrônico oudigital, ou qualquer outro meio de comunicação que facilite a divulgação da calúnia, da difamaçãoou da injúria; III ­ por servidor público, ou quem exerça cargo, emprego ou função pública,inclusive em entidade paraestatal, prestadora de serviço contratada ou conveniada, que revele oufacilite a revelação de fato que, em razão da atividade, deva permanecer em segredo, ou que violesigilo legal ou juridicamente assegurado; IV ­ contra servidor público, em razão das suas funções;ou V ­ mediante paga ou promessa de recompensa”.

34 Os crimes de calúnia, difamação e injúria estão previstos, respectivamente, nos artigos 136,137 e 138 do PL nº 236/12.

35 “Art. 145. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haverreduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, oua fazer o que ela não manda. Pena – prisão, de um a quatro anos. Aumento de pena. §1º A pena éaumentada de um terço até dois terços, quando, para a execução do crime, se reúnem mais de trêspessoas, ou há emprego de armas. §2º Além das penas cominadas, aplicam­se as correspondentesà violência. §3º Não se compreendem na disposição deste artigo: I ­ a intervenção médica oucirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada poriminente perigo de vida, exceto se, maior de idade e capaz, o paciente puder manifestar suavontade de não se submeter ao tratamento; ou II ­ a coação exercida para impedir suicídio”.

36 “Art. 147. Perseguir alguém, de forma reiterada ou continuada, ameaçando­lhe a integridadefísica ou psicológica, restringindo­lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindoou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade. Pena – prisão, de dois a seis anos.Parágrafo único. Somente se procede mediante representação. Art. 148. Intimidar, constranger,ameaçar, assediar sexualmente, ofender, castigar, agredir, segregar a criança ou o adolescente, de

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forma intencional e reiterada, direta ou indiretamente, por qualquer meio, valendo­se de pretensasituação de superioridade e causando sofrimento físico, psicológico ou dano patrimonial. Pena –prisão, de um a quatro anos. Parágrafo único. Somente se procede mediante representação”.

37 Eu tenho 39 anos, comecei a estudar aos três anos de idade e me recordo de passagens degrande humilhação as quais comecei a ser submetida já nesta tenra idade. Como era muito gorda,as crianças não brincavam comigo. Quando me chamavam, ou era para fazer o papel de padre, emalgum casamento fictício, ou era para fazer o papel de mulher grávida, na brincadeira de hospital.Sei que um artigo que se pretende científico não constitui a via adequada para a autora resolverseus traumas. No entanto, julgo importante deixar claro que de “bullying” eu entendo e, aindaassim, penso que não seja matéria do Direito Penal. Em meu caso, aliás, posso até dizer que ashumilhações tiveram certa utilidade. Primeiro, eu sempre me esforcei para emagrecer e manter opeso. Em segundo lugar, por saber que não poderia depender da beleza, que nunca tive, eu meconscientizei da necessidade de estudar muito. Não quero com isso fazer apologia do “bullying”, sóquero chamar atenção para o perigo de nos deixarmos levar por modismos, abrindo, ainda mais, aporta para o Estado invadir as nossas vidas.

38 ECA: “Art. 103. Considera­se Ato Infracional a conduta descrita como crime ou contravençãopenal”.

39 “Art. 189. Submeter, induzir ou atrair à prostituição ou outra forma de exploração sexualalguém menor de doze anos ou que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessáriodiscernimento para decidir. Pena – prisão, de quatro a dez anos. §1º Incorre nas mesmas penas: I­ quem pratica ato sexual com pessoa menor de dezoito e maior de doze anos, submetido,induzido, atraído ou exercente da prostituição; II ­ o proprietário, o gerente ou o responsável pelolocal em que ocorram as condutas referidas no caput deste artigo ou no inciso anterior. §2º Nahipótese do inciso II do §1º deste artigo, constitui efeito obrigatório da condenação a cassação dalicença de localização e de funcionamento do estabelecimento”.

40 PASCHOAL. O consumo de prostituição infantil já é crime no Brasil. Boletim IBCCrim.

41 “Art. 391. Praticar ato de abuso ou maus­tratos a animais domésticos, domesticados ousilvestres, nativos ou exóticos. Pena – prisão, de um a quatro anos. §1º Incorre nas mesmas penasquem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos oucientíficos, quando existirem recursos alternativos. §2º A pena é aumentada de um sexto a umterço se ocorre lesão grave permanente ou mutilação do animal. §3º A pena é aumentada demetade se ocorre morte do animal”.

42 PASCHOAL. Experiências com seres humanos: estamos carentes de tutela penal?. CiênciasPenais – Revista da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais.

43 “Art. 393. Abandonar, em qualquer espaço público ou privado, animal doméstico, domesticado,silvestre ou em rota migratória, do qual se detém a propriedade, posse ou guarda, ou que está sobcuidado, vigilância ou autoridade. Pena – prisão, de um a quatro anos”.

44 “Art. 394. Deixar de prestar assistência ou socorro, quando possível fazê­lo, sem risco pessoal, aqualquer animal que esteja em grave e iminente perigo, ou não pedir, nesses casos, o socorro da

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autoridade pública. Pena – prisão, de um a quatro anos. Parágrafo único. A pena é aumentada deum terço a um sexto se o crime é cometido por servidor público com atribuição em matériaambiental”.

45 “Art. 399. Pescar ou de qualquer forma molestar cetáceos em águas territoriais brasileiras. Pena– prisão, de dois a cinco anos. §1º A pena é aumentada de metade, se: I ­ em razão domolestamento o animal sofre lesão grave, permanente ou mutilação; II ­ o delito for cometido emperíodo de reprodução, gestação ou amamentação; III ­ o delito for cometido contra filhote. §2º Apena é aumentada do dobro, se ocorre morte do animal”.

Como citar este conteúdo na versão digital:

Conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este textocientífico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma:

PASCHOAL, Janaina Conceição. Reflexões acerca do Projeto de Código Penal: PL nº 236/12. RevistaFórum de Ciências Criminais – RFCC, Belo Horizonte, ano 1, n. 1, jan./jun. 2014.Disponível em: <http://www.bidforum.com.br/bid/PDI0006.aspx?pdiCntd=115350>. Acesso em:27 maio 2014.

Como citar este conteúdo na versão impressa:

Conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este textocientífico publicado em periódico impresso deve ser citado da seguinte forma:

PASCHOAL, Janaina Conceição. Reflexões acerca do Projeto de Código Penal: PL nº 236/12. RevistaFórum de Ciências Criminais – RFCC, Belo Horizonte, ano 1, n. 1, p. 29­68, jan./jun. 2014.

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Fundamentos da construção do processo civilizatório – O Direito e o AmorSilvio César Arouck Gemaque

Resumo: O presente artigo tem como objetivo apresentar e discutir as principais características doDireito e do Amor e respectiva relação com o processo civilizatório. Procurar­se­á provar que, narealidade, são dois instrumentos fundamentais para a construção e manutenção da sociedade talcomo conhecemos.

Palavras­chave: Direito. Amor. Processo civilizatório.

Sumário: Introdução – 1 O Amor – 2 O Direito – 3 Características do homem – 4 Criação epreservação da civilização – 5 A i lusão comunista – 6 Seleção natural e seleção social –Conclusões – Referências

Introdução

Quero tratar desses dois assuntos que, para mim, são fundamentais para entender como acivilização mantém­se ilesa, apesar de todos os tipos de vicissitudes, guerras, conflitos sociais etc.

Por hipótese, parto da premissa de que sem Amor e o Direito toda a civilização que vemos hoje nãoexistiria ou, se existente, não se manteria. Isso porque, conforme se observa, o instinto deagressividade é algo ínsito ao homem e, em larga medida, destruiria a tudo. Com efeito, existemno homem duas formas antagônicas: uma voltada à construção e manutenção; outra, à destruição.

Assim, é preciso analisar, com cuidado e alguma precisão, ainda que se esteja em solo inseguro,quais são os instrumentos que podem garantir a criação e sobrevivência da civilização humana.

É isso, em suma, que se pretende expor. Ao longo do texto, optou­se por uma análise topológica einterpretativa de alguns dos mais importantes pensadores selecionados e, por força danecessidade, de emprestar­se mais clareza às ideias, bem como tendo em vista tratar­se de umcampo novo de análise, pela citação extensiva, na medida do possível, de seus pensamentos.

1 O Amor

Definamos, portanto, cada um dos dois termos. Em primeiro lugar, é muito difícil definir o Amor.Não conheço uma definição precisa. No entanto, há todo um campo semântico que pode dar boaspistas do que seja. Tenho, portanto, que se trata de uma relação ou certo tipo de responsabilidadeque temos em relação a coisas ou pessoas, às quais emprestamos atenção especial. Segundo odicionário Aurélio, “afeição viva por alguém ou por alguma coisa”. Pode­se falar em amor platônico,aquele ideal e que não corresponde a uma realização concreta no plano da vida, mas sim nomundo das ideias; em amor romântico, que surge com os movimentos literários modernos quesobrepõem o subjetivismo à objetividade da vida e em amor líquido, tão em voga nos temposatuais, segundo Zygmunt Bauman.

Esse entregar­se significa, segundo Freud:

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Nunca estamos mais desprotegidos ante o sofrimento do que quando amamos, nunca maisdesamparadamente infelizes do que quando perdemos o objeto amado ou seu amor. Mas com issonão encerramos o tema da técnica de vida baseada no valor de felicidade do amor; haverá muito

mais a dizer sobre isso.1

É esse estado de superior sentimentalidade que permite ao homem ver o outro, por outro ângulo,que constrói alianças e que cria a vontade de manter, não de destruir, o que é uma finalidadeprópria do processo civilizatório.

Destarte, civilização pode ser definida como:

[...] a inteira soma das realizações e instituições que afastam a nossa vida daquela de nossosantepassados animais, e que servem para dois fins: a proteção do homem contra a natureza e a

regulamentação dos vínculos dos homens entre si.2

Menciona ainda Freud, como produtos culturais fundamentais, da civil ização, valorespreponderantes, como a beleza, a limpeza e a ordem. Há todo um campo de análise aos doisprimeiros valores, muito importantes, mas diante dos quais não nos deteremos aqui, em razão defugir ao objeto do presente ensaio. No entanto, o valor “ordem” é muito importante.

Tem­se por ordem:

[...] uma espécie de compulsão de repetição que, uma vez estabelecida, resolve quando, onde e

como algo deve ser feito, de modo a evitar oscilações e hesitações em cada caso idêntico.3

A ordem é, portanto, e assim já vamos adentrando na análise propriamente do Direito,fundamental. Essa busca por evitar as oscilações e hesitações em fenômenos, como a produzirresultados mais eficientes, pode ser tida como automatismo na realização do Direito, tal qual jáassinalava Pontes de Miranda, em interessante passagem em que bem ilustra o ganho doconhecimento produzido pela consciência, mas que a suplanta, eis que influenciado também pelainconsciência:

[...] os grupos sociais, as sociedades, aprendem a corrigir os defeitos de adaptação do homem àvida social. É o automatismo na realização do Direito. Não se prescinde da consciência; é ela quese ausenta, para que mais eficazmente se efetue o trabalho interior do organismo social. Noutroscasos nunca houve apelo a ela; e noutros ainda continua presente, sem intervir, mas pronta aoprimeiro chamado. Quando se aprende uma língua, é enorme, no começo, o esforço de consciência,para compor as frases, concordar as palavras, escolher os termos; depois, falamos sem nospreocupar com o que vamos dizer. Assim também ocorre na função social do fenômeno jurídicoquando proveniente de elaboração consciente: depois de se empregar o ato consciente a, uma,duas, três, cem vezes, para o efeito “a”, subtrai­se a consciência ao ato “a”, consegue­se o mesmoresultado e economiza­se o custo fisiológico do elemento consciência, isto é, a atividade do que há

de mais perfeito e mais elevado no processo da evolução — a atividade da matéria cinzenta.4

O inconsciente tem, assim, importante papel no desenvolvimento psíquico e humano. Há aindaquem, como Carl Jung, que propugne por um espírito inconsciente coletivo, a governar sobranceiroa tudo:

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Se bem que tenhamos como homens nossa vida pessoal, nem por isso deixamos de ser, em largamedida, os representantes, as vítimas e os promotores de um espírito coletivo, cuja duração podeser calculada em séculos. Podemos pensar durante toda a vida que seguimos nossas própriasideias, sem descobrir que fomos os comparsas essenciais no palco do teatro universal. Pois há fatos

que ignoramos e que entretanto influenciam poderosamente nossa vida por serem inconscientes.5

2 O Direito

O Direito pode ser definido como um sistema de normas, oriundas do Estado ou por ele admitido,que regula a vida do homem em sociedade. A lei, espécie normativa, está inserida no gênero“Direito”. Assim, o sistema jurídico brasileiro, predominantemente baseado na lei, filia­se a umatradição, chamada do direito continental, diferente do direito da common law, fundamentalmenteligado à produção consuetudinária, basicamente. Apesar das diferenças, ambos os sistemas são, aseus modos, sistemas de Direito.

É o Direito que sustenta o convívio social, eis que estabelece limites e parâmetros dentro dos quaiso homem se situa.

Detendo­me sobre o Direito, pode­se dizer, segundo Pontes de Miranda, que é uma construçãosocial essencial a qualquer agrupamento social que surja, modificando­se também, conforme asmodificações sociais que se apresentem. Sua natureza é, portanto, plástica, mas essencialmentevinculada à realidade social, não se tratando, pois, de uma construção abstrata e dissociadadaquela:

Na história e na comparação contemporânea dos tipos antropológicos, não há diminuição, nemaumento no que constitui o homem; é ao ambiente, no mais amplo sentido da palavra, que sedevem as variações e diferenças; nenhuma delas torna mais humano ou menos humano oespécime observado. Quanto ao Direito, acontece o mesmo: desde os tempos mais remotos aosmais próximos de nós, nas tribos de menor valor na evolução humana e nos povos mais civilizadosdo mundo moderno, o Direito, mais subordinado ou mais livre dos outros elementos da vida social(religião, moral, economia etc.), patenteia­se igual a si mesmo. Não o é nos processos (não sepodem reputar por idênticos o princípio regulador das uniões nas hordas primitivas e o domatrimônio nas sociedades dos novos tempos); mas não há negar que o seja na finalidade e na

natureza específica do fenômeno: a ordem social.6

Novamente, segundo Freud, um dos traços fundamentais do processo civilizatório é o elementocultural, que se apresenta como uma primeira tentativa de regulamentar as relações sociais, sobpena de essas relações estarem sujeitas à arbitrariedade daquele fisicamente mais forte e

determinadas conforme seus interesses e instintos.7

Para maior precisão:

A vida humana em comum se torna possível apenas quando há uma maioria que é mais forte quequalquer indivíduo e se conserva diante de qualquer indivíduo. Então o poder dessa comunidade seestabelece como “Direito”, em oposição ao poder do indivíduo, condenado como “força bruta”. Talsubstituição do poder do indivíduo pelo da comunidade é o passo cultural decisivo. Sua essênciaestá em que os membros da comunidade se limitam quanto às possibilidades de gratificação, aopasso que o individuo não conhecia tal limite. Portanto, a exigência cultural seguinte é a da justiça,

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isto é, a garantia de que a ordem legal que uma vez se colocou não será violada em prol de um

indivíduo. Não é julgado, aqui, o valor ético desse direito.8

Em uma só passagem, portanto, pode­se vislumbrar o estabelecimento do Direito, como resultadode um primeiro processo civilizatório que teve a cultura como sua principal característica ou efeito.Em seguida, vem o Direito e, por fim, em terceiro plano, vem o conceito de Justiça, por si só, masavançado do que os demais, mas nem por isso dissociado de toda essa evolução, que neledesemboca.

Talvez o fato de o Direito caracterizar­se, com lembra Miguel Reale, por uma bilateralidadeatributiva, em que, diferentemente da esfera individual, leva à conclusão de que é fundamentalpara o estabelecimento de uma ordem social:

[...] a conduta jurídica, ao contrário, não pertence exclusivamente ao indivíduo como sujeitouniversal, pois somente é jurídica porque e na medida em que se proporciona a outrem. Aexigibilidade do credor só tem significado em confronto com a posição do devedor. Em uma relaçãojurídica contratual, por exemplo, existem sempre um sujeito que chamamos ativo, e outro sujeitoque denominamos passivo [...] a relação jurídica é algo que supera as pessoas de um e de outrosujeito e se coloca acima deles, unindo­os em um laço de exigibilidade ou de pretensões. Ondequer que haja fenômeno jurídico, encontramos sempre um “nexo transubjetivo”, estabelecendo um

âmbito de ações possíveis “entre” ou “para” dois ou mais sujeitos.9

Pontes de Miranda alude, com precisão, à dificuldade que é inata ao homem de unir­se emsociedade, pois, a rigor, prevalece o sentido do individualismo e, apenas com muito esforço edificuldades, prepondera o cunho social:

Ainda não se caracterizou o homem “membro da sociedade”, que está a pôr as ciências a seuserviço — ainda é demasiadamente o cidadão, o chefe de família, o membro da classe, para quereconheça a vantagem de remediar geralmente os males sociais, por ser ele, econômica, religiosa,moral, artística, política, científica e juridicamente, unidade correspondente à reunião concreta doshomens. Reserva fortuna para os filhos, porem não se junta aos outros homens para assegurar, nofuturo, o benefício real de tal riqueza, contra a qual se enliçam circunstâncias derivadas de defeitoseconômicos, morais, religiosos, artísticos, científicos, políticos e jurídicos, capazes de por si sós

inutilizar e tornar contraproducente, como é regra, todo o esforço do individualismo.10

Para o convívio em sociedade deve haver o sacrifício dos institutos do homem como indivíduo:

[...] o resultado final deve ser um direito para o qual todos — ao menos todos os capazes de viverem comunidade — contribuem com sacrifício de seus instintos, e que não permite — de novo com a

mesma exceção — que ninguém se torne vítima da força bruta.11

3 Características do homem

Fixadas as noções básicas em relação aos termos “Amor” e “Direito”, sem a pretensãoevidentemente de esgotar a análise semântica dos mesmos, é importante tratar rapidamente dealgumas características básicas do ser humano, principalmente aquelas que nos diferenciam dosoutros animais que coabitam o planeta.

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Sempre tive nítida a ideia de que cada ser humano, em razão de suas particularidades, oriundas daracionalidade ínsita — seria interessante falar um pouco sobre o quê entendo por racionalidade ecomo essa surgiu no homem — pode apresentar, diante de uma sugestão ou ação exterior, umareação diferente para cada tipo de ação e pode também apresentar reações diferentes, múltiplas ouaté nenhuma reação diante de uma determinada ação.

É como se fôssemos, cada um de nós, um projeto ou um vir­a­ser a cada momento, algo que seestá “por construir”. Sabemos o que esperar de um tigre, de uma cobra ou de uma aranhavenenosa, por exemplo. Em sã consciência não levaremos nenhum desses animais para nos fazercompanhia na hora do repouso. Mas, contudo, podemos contar com a companhia de nossos animaisdomésticos e sabemos exatamente como irão se comportar, num grau bastante acentuado deprevisibilidade, que quase atinge os cem por cento. No entanto, não podemos dizer o mesmo dosseres humanos. Quantas vezes não nos surpreendemos com a reação ruim de um parente ouamigo, que sempre nos agradou com uma acolhedora receptividade, mas, em determinadomomento, pode variar, comportando­se como alguém desconhecido.

Nesses momentos, parece que ficamos com a impressão de que não conhecemos as pessoas. Masnão é bem isso. Na realidade, conhecer as pessoas significa saber que elas são assim mesmo, istoé, mutáveis, instáveis, sempre “se construindo”. Na realidade, o ser humano constrói­seindividualmente, a partir de sua dimensão psicológica e, portanto, subjetiva, mas tambémsocialmente. Impossível separar essas duas realidades.

Lembra Platão:

[...] o que queremos saber é o seguinte: que existe em cada um de nós uma espécie de desejosterrível, selvagem e sem leis, mesmo nos poucos de entre nós que parecem ser comedidos. É nos

sonhos que o facto se torna evidente. Vê lá tu se estou a dizer bem, e se concorda.12

Platão representou essa ideia do homem com múltiplos comportamentos como um animal commuitas cabeças e atuando entre dois extremos: o prazer e a dor.

Freud, quando construiu sua teoria psicanalítica, bem cunhou os princípios do prazer e darealidade, balizas em que o homem está inserido, palco de nossas escolhas e de nossas vidas.Somos, em suma, seres voltados para a realização de nossos desejos, mas diuturnamente, temosque nos deparar com as mais variadas dificuldades, dores e barreiras à realização desses desejos:“a atividade humana é o empenho visando as duas metas confluentes, utilidade e obtenção de

prazer”.13

Mas como ficaria a humanidade se prevalecesse apenas o princípio do prazer. Seria o paraíso?Claro que não. Seria simplesmente a extinção da espécie, pois tenderíamos a transformarexponencialmente nossos desejos até a eliminação dos demais (concorrentes) e de tudo o que noscerca. Em suma, vida e morte caminham juntas com o homem, seja “in extremis”, seja no dia­a­dia.

Na vida moderna, apenas nos mitos a sociedade vive como se estivesse vivendo em temposimemoriais. Com efeitos, o mitos resgatam a memória coletiva que f icou esquecidaconscientemente ao longo dos tempos. São importantes para a compreensão de nosso modo de sere nos dão pistas importantes de como evoluímos. Mito, segundo Joseph Campbell:

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[...] é a revelação de uma plenitude de silêncio no interior e em torno de todo átomo deexistência; é algo que dirige a mente e o coração, por meio de figurações cuja forma vem do planoprofundo, para aquele mistério último que preenche e cerca todas as existências. Mesmo no maiscômico e aparentemente frívolo de seus momentos, a mitologia dirige a mente para esse

imanifesto, que se acha precisamente além do olho.14

Talvez fosse interessante lembrar o mito do “eterno retorno” ou do “giro universal” presente emculturas ancestrais e na filosofia de Nietzsche. Campbell trata bem do tema presente na antigamitologia dos jainistas:

O mais recente profeta e salvador dessa seita indiana tão remota foi Mahavira, contemporâneo deBuda (século VI a. C.). Seus pais já eram seguidores de um salvador­profeta jainista mais antigo,Parschvanatha, que é representado com serpentes que lhe saem dos ombros, e que teria florescidoentre 872 a 772 a.C. Séculos antes de Parshavanatha, viveu e morreu o salvador jainistaNeminatha, a quem foi atribuída a condição de primo da adorada encarnação hindu, Krishna. E,antes dele, houve exatamente vinte e um outros, todos remontando a Rischabhanatha, cujaexistência ocorreu numa época anterior ao mundo, na qual os homens e mulheres nasciam sempreaos pares, tinham três quilômetros de altura e viviam por incontáveis anos. Rishabbanatha instruiuos povos nas setenta e duas ciências (escrita, aritmética, leitura de presságios, etc.), nas sessentae quatro tarefas das mulheres (culinária, costura, etc.) e nas cem artes (cerâmica, tecelagem,pintura, trabalhos com metal, barbearia, etc.) Além disso, introduziu a política entre eles eestabeleceu um reino. Antes desse momento, essas inovações teriam sido supérfluas, já que ospovos do período precedente — que tinham seis quilômetros de altura e cento e vinte e oitocostelas, e gozavam de uma vida de dois períodos de incontáveis anos — tinham todas asnecessidades supridas por dez “árvores realizadoras de desejo” (kalpa vriksha), de frutos suaves,folhas em forma de panelas e potes, folhas que cantavam suavemente e produziam luz à noite,folhas que deleitavam a vista e o olfato, alimento perfeito à visão e ao gosto, folhas capazes deservir de jóias e uma casca que se transformava em belas vestimentas. Uma das árvores seassemelhava a uma palácio de vários andares onde se podia viver; outra gerava uma suaveradiância, semelhante à de muitas lâmpadas. A terra era doce como açúcar; o oceano, deliciosocomo vinho. E, mais uma vez, antes dessa era feliz, houve uma era ainda mais feliz —precisamente duas vezes mais feliz — quando os homens e mulheres tinham doze quilômetros dealtura e eram dotados de duzentas e cinqüenta e seis costelas. Quando esse povo superlativomorreu, passou diretamente para o mundo dos deuses, sem jamais ter ouvido falar de religião,

uma vez que sua virtude natural era tão perfeita quanto sua beleza.15

Essa bela passagem mitológica nos fala bem desse primitivo estado de unidade e integralidade, doqual perdemos o mais remoto resquício de consciência, diante de nossa dualidade. Fala também deum maná constante de realização de nossos desejos, mas que se degrada aos poucos até cada povoser substituído por outro; é disso que fala o mito nas demais passagens do texto, até sua extinçãoe renascimento em ciclos constantes de um eterno retorno.

Novamente Freud:

[...] por que é tão difícil para os homens serem felizes, a perspectiva de aprender algo novotambém não parece grande. Já demos a resposta, ao indicar as três fontes de onde vem o nossosofrer: a prepotência da natureza, a fragilidade de nosso corpo e a insuficiência das normas que

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regulam os vínculos humanos na família, no Estado e na sociedade.16

Somos, portanto, limitados, apesar de nos acharmos superiores aos demais animais. Essas durasrealidades nos perseguem: a natureza, nosso próprio corpo frágil e débil e a fragilidade das normasque regulam a sociedade.

Como não pretendo prosseguir nessas ideias tão interessantes, por falta de espaço à vista doobjeto do presente ensaio, gostaria apenas, portanto, de reafirmar que se trata de um fundamentoda humanidade, ou seja, o de o homem ser limitado, apesar de cobiçoso (eros, ou ερος).

4 Criação e preservação da civilização

Mas, como diante de todo esse quadro, ainda estamos vivos e podemos, bem ou mal, usufruir comrelativa civilidade, pelo menos em muitos países, do mundo que nos cerca, com todas suas belezase possibilidades de realização de nossos desejos?

Conseguimos isso porque somos vinculados a esses dois princípios básicos de civilização, que indicodesde o início, o Amor e o Direito. Não fossem essas duas forças controladoras, estaríamos fadadosa mais obscura barbárie.

Neste sentido, vejo que o Direito é a maior conquista da humanidade, desde a filosofia e toda aarte da cultura grega. Como se sabe, foi os gregos o primeiro povo que colocou o homem no centrodo mundo. Até então as civilizações viviam segundo diferentes tipos de concepções teocêntricas,algumas das quais, como a egípcia, ainda que magnífica, incapaz de aprimoramento humano,simplesmente porque não se importava com o homem. Depois dos gregos, com a difusão da culturahelênica após Alexandre “o grande” e o amálgama da cultura grega urbi et orbes, que foi a impérioRomano, tivemos diferentes formas de desenvolvimento humano, principalmente nos planospolíticos e culturais, que significaram profundas mudanças da sociedade da época e significativasinfluências nas sociedades que se seguiram, principalmente na atual sociedade ocidental,fundamentalmente baseada no modelo greco­romano. Desde então, com a derrubada do ImpérioRomano, viveu­se um hiato de conquistas importantes, sob o ponto de vista cultural e político, atéque, após o advento da Revolução Francesa, todo o embrião deixado pelos romanos, em matéria dedireito, que muito havia evoluído naquela época, expandiu­se para todo o mundo civilizado daépoca. Nesse momento histórico, passa o direito a encontrar uma importância sem precedentes nomundo e os dois séculos mais importantes em matéria de evolução econômica e tecnológica atéagora, que foram os séculos XIX e XX, momentos em que o direito se estruturou e expandiu­secomo forma de regulamentar a vida dos homens em sociedade.

Esse processo de crescente influência do Direito nas sociedades contemporâneas é um fenômenoque ainda está em plena formação; use­se como exemplo a crescente importância dada aos direitoshumanos universais e a institucionalização da repressão aos crimes contra a humanidade. Deve­seessa evolução à fadiga com o ocorrido durante a II Guerra Mundial e à catástrofe praticada contraos judeus, que resultou na criação de Tribunais Internacionais Penais e na Declaração Universaldos Direitos do Homem, blocos institucionais esses que estão em expansão. Foram, na realidade,respostas imediatas a isso.

Como vimos, deixados à própria sorte, o homem estaria fadado a destruir tudo o que o cerca,

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simplesmente porque não encontraria limites à sua sanha. Se não o faz é porque imperativosmorais ligados ao amor ao próximo ou sob qual configuração for esse amor, impedem que assimaja. Se não o faz é também porque encontra no Direito um importante empecilho a seus planos,um inibidor, que estabelece o respeito às proporções do “dar a cada um o que é seu”, do qual jános falava Aristóteles ou à diké/Δ?κη grega, ou justiça para nós. Observe­se, neste sentido, o quêainda há de ser feito em matéria de direitos humanos universais ou em matéria de direitos dosanimais, que devem, conforme suas condições específicas, ter os mesmos Direitos que qualquerhomem tem.

5 A ilusão comunista

Alguns podem dizer que a ideologia comunista oferece respostas a isso, pois estabelece umaigualdade entre todos. Seria, portanto, um exemplo de diké.

Refletindo sobre isso, posso dizer que, de fato, a ideia é sedutora. Entretanto, diante doartificialismo inerente a tentar impor ao homem um comportamento que não lhe é natural, ficadifícil sustentar qualquer tipo de comunismo. Com efeito, é natural ao homem a competição ou,como se viu, a de procurar, a todo custo, atingir seus desejos. Como então conciliar isso com aproposta de uma sociedade absolutamente igualitária, em que nada seja construído ou adquiridosenão para benefício da comunidade? É claro que tal teoria parte de pressupostos que nãocondizem com a natureza humana. Em que momento histórico se pode provar que as sociedadesprimitivas eram harmônicas e viviam todos em perfeita integração como no paraíso bíblico? Não ébem isso que nos parece, fundamentalmente quando nos distanciamos de nossos primitivos irmãosirracionais ao desenvolvermos o pensamento, a linguagem e a fala, toques fundamentais que nosdiferenciam dos outros animais.

Freud, preciso em suas palavras, desmistifica a ideologia isso:

[...] os comunistas acreditam haver encontrado o caminho para a redenção do mal. O ser humanoé inequivocamente bom, bem­disposto para com o próximo, mas a instituição da propriedadeprivada lhe corrompeu a natureza. A posse de bens privados dá poder a um indivíduo, e com isso atentação de maltratar o próximo; o despossuído deve se rebelar contra o opressor, seu inimigo. Sea propriedade privada for abolida, todos os bens forem tornados comuns e todos os homenspuderem desfrutá­los, desaparecerão a malevolência e inimizade entre os homens. Como todas asnecessidades estarão satisfeitas, ninguém terá motivo para enxergar no outro um inimigo; e todosse encarregarão espontaneamente do trabalho necessário. Não é de minha alçada a críticaeconômica do sistema comunista, não tenho como investigar se a abolição da propriedade privadaé pertinente e vantajosa. Mas posso ver que o seu pressuposto psicológico é insustentável.Suprimindo a propriedade privada, subtraímos ao gosto humano pela agressão um dos seusinstrumentos, sem dúvida poderoso, e certamente não o mais poderoso. Mas nada mudamos noque toca às diferenças de poder e de influência que agressividade usa ou abusa para os seus

propósitos, e tampouco na sua natureza [...].17

Certa vez, visitei as ruínas incas em Machu Picchu, no Peru, e posso dizer que as mesmascausaram forte impressão em mim por motivos diversos. Um deles é exatamente este ao qual merefiro agora, ou seja, a forma de organização social. Quando estava no meio daquelas construções

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magníficas no alto de montanhas gigantescas, com toda a gama de símbolos que se descortinamaos curiosos visitantes, lembrei­me de Platão, principalmente de seus diálogos inseridos no livro ARepública, por mim já citado acima, e que me pareciam sempre obscuros e artificiais quanto àconstrução de uma sociedade ideal, em que só haveria propriedade coletiva, a supressão da famíliacomo unidade fundamental da sociedade e da poesia por não dar exemplos nobres e elevados aoscidadãos. Sempre achei tais partes do belo livro A República um tanto anacrônicas. Surpreendi­me,contudo, ao constatar que era exatamente assim que os Incas viviam, ou seja, era tudo coletivoem sua sociedade e sem vestígios de literatura. Talvez oral apenas. E, a partir daí, e é claro comum profundo sentimento de integração com a natureza, construíram uma sociedade avançadíssimapara a época, onde não havia roubos, assassinatos, adultérios e os governantes trabalhavam pelobem comum. Tão diferente de nossa realidade atual, não?

Onde falhamos? Em que podemos aprender com eles?

Primeiro: nosso tipo de sociedade baseia­se em modelos que vêm lá dos egípcios, gregos e indo­europeus, em que o culto ao luxo, por exemplo, ao lucro, e aos conflitos entre os povospredominavam. Pode­se dizer que tais características estão inscritas em nosso DNA social, se assimfor possível cunhar o termo dessa forma e nesse campo semântico. Apesar do exagero metafórico,reflete bem o que quero afirmar quanto à raiz de nossos problemas.

Segundo: nosso individualismo — sem o qual não podemos viver — é também a causa de nossosproblemas sociais. No fundo, Karl Marx tinha razão, pois, em última análise, o comunismo criarealmente uma sociedade ideal. Pena que utópica, pois longe de nossos paradigmas históricos.Talvez o aprimoramento de parte do modo de vida da sociedade inca já nos servisse.

A sociedade comunista é utópica porque, como vimos, parte de premissa errada e infere que aagressividade humana surge com a propriedade, quando, na realidade, é a ele muito anterior:

Ela (a agressividade) não criada pela propriedade, reinou quase sem limites no tempo pré­histórico, quando aquela ainda era escassa, já se manifesta na infância, quando a propriedade malabandonou sua primária forma anal, constitui o sedimento de toda relação terna e amorosa entreas pessoas, talvez com a exceção única daquela entre mãe e o filho homem. Se eliminarmos odireito pessoal aos bens materiais, subsiste o privilégio no âmbito das relações sexuais, que setorna fonte do mais vivo desgosto e da mais violenta inimizade entre seres que de outro modo seacham em pé de igualdade. Suprimindo também este, mediante a completa liberação da vidasexual, ou seja, abolindo a família, célula germinal da civilização, fica impossível prever que novoscaminhos a evolução cultural pode encetar, mas uma coisa é lícito esperar: que esse indestrutível

traço da natureza humana também a acompanhe por onde vá.18

Não podemos viver sem o individualismo que nos é tão caro, mas se a intenção é alcançar oprogresso socialmente digno e integrado com a natureza, o indivíduo tem que ceder ao coletivo emalguma medida. A escolha dessa medida, contudo, é que é o problema e a grande causa deconflitos nas democracias modernas. No entanto, as democracias modernas não partem de umponto de vista político equivocado, muito pelo contrário, estão corretas ao não nivelarem todos demaneira artificial como propugnam as ideologias comunistas.

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6 Seleção natural e seleção social

Novamente vou fazer um paralelismo com os animais porque não podemos nos distanciar deles etodos nossos equívocos, como seres individualmente considerados ou como sociedade, decorrem denos afastarmos disso: não existe dualidade entre animal e espiritualidade. Com efeito, não se tratade dualidade, mas sim de complementaridade. Temos que buscar modos de uniformização social,tal qual no mundo animal, estruturando­se­nos para que funcionemos da maneira mais parecidapossível com o modo de vida deles, no sentido de que esse modo de vida tem como parâmetro eobjetivo o equilíbrio como um todo e a conservação das espécies. Enquanto o mundo não eradominado pelo homem, não havia problemas de equilíbrio das cadeias alimentares, raças extintasou em perigo de extinção, nem perigo ao meio ambiente.

O homem é um ser social, por excelência, e disso não podemos fugir, pois nos singulariza. Nossascaracterísticas animais são nitidamente socializáveis, e estas também estão relacionadas em umaspecto psíquico. Para alguns, inclusive, passamos a falar para nos comunicar com os outros, aindaque, para muitos linguistas, a linguagem tenha surgido apenas para estruturar nossospensamentos, sendo a comunicação apenas um subproduto disso. Somos, em outras palavras epara maior clareza, um todo em que a racionalidade e a linguagem nos distinguem, mas, apesardisso, não somos diferentes essencialmente das outras espécies. Como dizia Fernando Pessoa, nãoseria a racionalidade que nos é tão ínsita apenas uma evolução ainda não bem explicada daemoção e do instinto?

Penso que o Direito e o Amor são ferramentas essenciais nessa busca de equilíbrio entre oshomens e destes com os demais seres vivos e com o mundo em geral, pois todos têm direito a umavida digna neste planeta. Apenas o Direito e o Amor podem funcionar como instrumentos deharmonização entre os homens e destes para com outras formas de vida na Terra. As religiões jádemonstraram não servir muito a esse fim, muito ao contrário podem acirrar os conflitos.Funcionam, destarte, como formas recônditas de contemplar e entender os mistérios do mundo.

Se observarmos atentamente, vamos ver realmente que a engrenagem através da qual aconvivência em sociedade dos homens funciona relaciona­se ao Amor e ao Direito. O primeiro jánasceu conosco, pelo menos, em potência: o Amor. O segundo, conquistado a duras penas pelacivilização e ainda ausente em algumas searas: o Direito. Apesar de ainda haver muito a construir(direitos humanos, direitos das minorias, direitos dos animais, etc.), muito já foi construído esignificativamente impediu retrocessos e assegurou avanços.

Observemos, agora, com mais nitidez algumas características importantes do Direito e do Amor.

Ambos funcionam principalmente porque são inerentes ao homem, social e individualmenteconsiderado. Em outras palavras, decorrem do homem e de nosso costume de vida. São atávicos anós. Não são artificiais. Não são alegorias. Somos assim, porque amamos e nos organizamos emsociedade, segundo regras jurídicas.

Os influxos que recebemos dessas, pode­se dizer assim, dimensões são de toda ordem, ressaltandoque, segundo Pontes de Miranda, existem sete dimensões sociais, que são fundamentais, eis quealicerces de toda nossa vida social:

As principais dimensões do espaço social são as que correspondem aos principais processos sociais

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de adaptação (a Religião, a Moral, a Arte, a Economia, a Política, o Direito e a Ciência). O espaçosocial é de 7 + x dimensões. Cada grupo social tem o seu tamanho conforme as 7 + x medidas dos

processos sociais de adaptação.19

O convívio social estabelecido desta forma, pelo Amor e o Direito, é a situação de razoávelequilíbrio em que nos encontramos. A alternativa seria o caos. Essas são ferramentas que tornamnossa animalidade instintiva e social mais próxima do que deve ser, mais próxima dos demaisseres vivos que habitam a Terra.

Segundo a teoria da evolução das espécies de Darwin, somos hoje o que somos, porque é o homemo ser mais forte e mais adaptável a viver neste planeta. É a teoria da seleção das espécies. E, semdúvida, a linguagem — estruturante do pensamento — é conquista importante em todo esseprocesso. Somos superiores na capacidade de sobrevivência social porque nos diferenciamos dasdemais espécies:

Julgo que estas diferentes ponderações nos conduzem a uma dedução inevitável; assim que novasespécies se formam no transcorrer dos tempos devido à ação da seleção natural, outras espécies setornam cada vez mais raras e acabam por extinguir­se. As que mais sofrem são, naturalmente, asque se encontram diretamente em concorrência com as espécies que se modificam e seaperfeiçoam. Ora, nós vimos no capítulo que trata da luta pela sobrevivência, que são as formasmais próximas — as variedades da mesma espécie, do mesmo gênero ou de gêneros próximos —que em razão da sua estrutura, constituição e costumes semelhantes, lutam de ordinário maisarduamente entre si, com efeito, cada variedade ou cada espécie nova, enquanto se forma, develutar comumente com mais ardor com os seus parentes mais próximos e acabar por derrotá­los.Podemos observar um mesmo ritmo de extermínio nas criações domésticas, em razão da seleçãoefetuada pelo homem. Poderíamos citar numerosos exemplos curiosos para comprovar com querapidez novas raças de gado, carneiros e outros animais, ou novas variedades de flores tomam o

lugar de raças mais antigas e menos aperfeiçoadas.20

Essa noção da importância desses dois fatores no processo civilizatório é esclarecedora, pois somosos únicos seres com poder efetivo de extinguir a vida neste planeta e só isso já é assustador.

Portanto, o Direito e o Amor são instrumentos inerentes o homem em sociedade e que viabilizam amanutenção desse locus, que é a Terra, onde ocorre a batalha da seleção natural, em que ohomem já venceu, por enquanto.

No entanto, não resolvem a seleção social, por assim dizer em paralelismo, em que a seleçãotambém dar­se­á pelo mais forte e adaptado, todavia, esses instrumentos são balizas segurasdentro das quais ocorre a batalha, e que sustentam a sobrevivência de todo o resto.

Neste sentido, bem mais desenvolvido é este sistema do que aquele que imperava em temposantigos, como se noticia que ocorria no antigo Egito, em que prevaleciam os oráculos para asolução dos mais diferentes conflitos:

O oráculo desenvolveu­se durante no Novo Reinado como um canal de comunicação entre deuses eas pessoas comuns, e provou ser particularmente popular como meio de resolver questõescriminais do dia­a­dia, eis que superava a polícia, que evidentemente trabalhava sem os benefíciosda onisciência. Consultar o oráculo provava ser uma rápida, simples e barata alternativa às Cortes

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formais. Assim que a estátua do Deus passava, em procissão, pelas ruas em seu barco cerimonial,era possível para qualquer um aproximar­se e perguntar com simples questões tipo “sim ou não”,como “Hathor matou meu pato?” ou “Isis roubou minhas roupas?”. O deus deveria considerar asprovas e então responder, movendo os remos da embarcação para frente ou para trás — umsistema legal que para os olhos modernos parece ser ao menos um meio aberto a toda sorte deabusos, mas, que, entretanto, satisfazia o desejo a um julgamento imediato dos antigos egípcios.Outras variações desse tema existiam; era, por exemplo, possível escrever diferentes opções empedaços de pedra separados, deixá­los embaixo dos deuses, e ver se o Deus movia­se em direção auma determinada solução, enquanto em casos mais complicados uma lista de suspeitos poderia serlida em voz alta e o Deus poderia causar que seus assistentes o movessem assim que o nome do

culpado fosse pronunciado.21 (tradução livre)

Conclusões

Ao fim desse estudo sobre tema que nos parece tão complexo, mas ao mesmo tempo tãoinstigante, talvez tenhamos conseguido apontar características importantes e relações quepossibilitam identificar o Amor e o Direito como instrumentos fundamentais para a sociedade.

Talvez o quê de mais importante se possa concluir é o fato segundo o qual, por esses vetores, épossível que o homem se aproxime de uma harmonia natural já perdida, eis que, racional, superouem muito os demais animais, mas também se distanciou da natureza.

Tanto o Amor e o Direito não são fins em si mesmo, mas instrumentos de equilíbrio social, poistendem a anular o instinto de agressão do homem, instinto esse que, diferentemente dos demaisanimais, não encontra limites apenas no propósito imediato de sobrevivência; ao contrário, sedeixado sem freios, pode levar à própria extinção da vida na Terra como a conhecemos.

Resumen: Este trabajo tiene como objetivo presentar y discutir las principales características de laLey y el Amor y su relación con el proceso de civilización. La investigación va a demostrar que, enrealidad, son dos herramientas fundamentales para la construcción y el mantenimiento de lasociedad tal como la conocemos.

Palabras­clave: Derecho. Amor. Proceso civilizador.

Abstract: This paper aims to present and discuss the main characteristics of the Law and Love andtheir relationship with the civilizing process. Search will prove that, in fact, are two fundamentaltools for the construction and maintenance of society as we know it.

Key words: Law. Love. Civilizing process.

Referências

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Revista Fórum de Ciências Criminais ‐ RFCCBelo Horizonte, ano 1, n. 1, jan. / jun. 2014

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1 FREUD. O mal­estar na civilização. In: FREUD. O mal­estar na civilização, novas conferênciasintrodutórias à psicanalise e outros textos (1930­1936), p. 39.

2 FREUD. O mal­estar na civilização. In: FREUD. O mal­estar na civilização, novas conferênciasintrodutórias à psicanalise e outros textos (1930­1936), p. 49.

3 FREUD. O mal­estar na civilização. In: FREUD. O mal­estar na civilização, novas conferênciasintrodutórias à psicanalise e outros textos (1930­1936), p. 54.

4 PONTES DE MIRANDA. Sistema de ciência positiva do direito, v. 1, p. 166.

5 JUNG. Memórias, sonhos, reflexões, p. 88.

6 PONTES DE MIRANDA. Sistema de ciência positiva do direito, v. 1, p. 119.

7 FREUD. O mal­estar na civilização. In: FREUD. O mal­estar na civilização, novas conferênciasintrodutórias à psicanalise e outros textos (1930­1936), p. 56.

8 FREUD. O mal­estar na civilização. In: FREUD. O mal­estar na civilização, novas conferênciasintrodutórias à psicanalise e outros textos (1930­1936), p. 57.

9 REALE. Filosofia do direito, p. 686.

10 PONTES DE MIRANDA. Sistema de ciência positiva do direito, v. 1, p. 155.

11 FREUD. O mal­estar na civilização. In: FREUD. O mal­estar na civilização, novas conferênciasintrodutórias à psicanalise e outros textos (1930­1936), p. 57.

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12 PLATÃO. A República, p. 411.

13 FREUD. O mal­estar na civilização. In: FREUD. O mal­estar na civilização, novas conferênciasintrodutórias à psicanalise e outros textos (1930­1936), p. 56.

14 Cf. CAMPBELL. O herói de mil faces.

15 CAMPBELL. O herói de mil faces, p. 258­259.

16 FREUD. O mal­estar na civilização. In: FREUD. O mal­estar na civilização, novas conferênciasintrodutórias à psicanalise e outros textos (1930­1936), p. 43.

17 FREUD. O mal­estar na civilização. In: FREUD. O mal­estar na civilização, novas conferênciasintrodutórias à psicanalise e outros textos (1930­1936), p. 80.

18 FREUD. O mal­estar na civilização. In: FREUD. O mal­estar na civilização, novas conferênciasintrodutórias à psicanalise e outros textos (1930­1936), p. 80.

19 PONTES DE MIRANDA. Sistema de ciência positiva do direito, v. 1, p. 197.

20 DARWIN. A origem das espécies, p. 87.

21 TYLDESLEY. Hatchepsut: the Female Pharaoh, p. 108.

Como citar este conteúdo na versão digital:

Conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este textocientífico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma:

GEMAQUE, Silvio César Arouck. Fundamentos da construção do processo civilizatório: o Direito e oAmor. Revista Fórum de Ciências Criminais – RFCC, Belo Horizonte, ano 1, n. 1, jan./jun. 2014.Disponível em: <http://www.bidforum.com.br/bid/PDI0006.aspx?pdiCntd=115349>. Acesso em:27 maio 2014.

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Conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este textocientífico publicado em periódico impresso deve ser citado da seguinte forma:

GEMAQUE, Silvio César Arouck. Fundamentos da construção do processo civilizatório: o Direito e oAmor. Revista Fórum de Ciências Criminais – RFCC, Belo Horizonte, ano 1, n. 1, p. 13­28, jan./jun.2014.

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