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Desafios da noite. Falta de mobilidade desperdiça o potencial noturno das cidades
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1NÚMERO 3 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA
e d i t o r i a l �
O adjetivo “solar” é usado figurativamente para descrever
vitalidade e criatividade. Uma personalidade solar indica iniciativa e
capacidade de empreendimento, enquanto o noturnal, notívago ou
simplemente noturno é em geral associado a triste e taciturno. O
senso comum, porém, não dá conta das sutilezas do coração
humano, que insiste em desmentir idéias definitivas. Se a noite rejei-
ta o brilho solar, nem por isso ela deixa de significar atividade, seja
profissional ou lúdica —quem sabe até sonhos, desejos e realizações.
Os ritmos da noite e do dia se misturam e se impulsionam, desafiando
a natureza e modificando o ciclo vital. A humanidade descobre novas
necessidades.
Em fevereiro de 2002, o Institut pour la Ville em Mouvement
reuniu em Paris os mais diversos profissionais para estudar como
as cidades se movimentam quando o sol se põe e propor soluções
originais para quem trabalha em horário noturno ou gosta de
desfrutar o que a noite oferece de melhor. Desde então várias
experiências e iniciativas vêm despontando em todo o mundo. Nova
Iorque é a eterna “cidade que não dorme”; Roma dá o exemplo com
sua “Notte Bianca”, na qual promove eventos noturnos nos mais
diversos bairros e distritos, abrindo também seus museus e lugares
históricos. E nós brasileiros, o que fazemos?
A MovimentoMovimentoMovimentoMovimentoMovimento se debruça nesta nova edição sobre um assunto
cada vez mais caro aos centros urbanos: a mobilidade e a acessi-
bilidade noturnas. Algumas cidades brasileiras já despertam para a
sua importância na vida das pessoas e da comunidade e começam
a se estruturar para criar mais facilidades de circulação e permitir
que as atividades noturnas façam parte de sua rotina, estimulando
as trocas, os encontros, a ocupação dos espaços urbanos. Enfim, a
própria cidadania.
Jurandir F . R. FernandesPresidente da ANTP
REVISTA MOVIMENTOMOVIMENTOMOVIMENTOMOVIMENTOMOVIMENTO,,,,,mobilidade & cidadaniamobilidade & cidadaniamobilidade & cidadaniamobilidade & cidadaniamobilidade & cidadania
ano II • número 3
Editora MultiletraAv. Ataulfo de Paiva, 341/302
Leblon • CEP 22.440-030Rio de Janeiçro • RJ
REDAÇÃO
Diretor de redaçãoSilvio Rabaça
EditorAziz Filho
Editora assistenteMaria Claudia Oliveira
RevisoraTereza da Rocha
EstagiáriaMaria de Freitas
MARKETING
Suzy Balloussier
COORDENADORA DO PROJETO
Cristina Badini
Secretária ExecutivaClaudia Montero
ARTE
Ampersand Comunicação Gráfica([email protected])
DesignersRaquel Teixeira
Claudia FleuryCarlos Henrique Viviane
Luiz Baltar
PUBLICIDADE
Claudia Montero([email protected])
GRÁFICA
KITMais Comércio & Serviços
TIRAGEM10.000 exemplares
ANTP
Associação Nacional de Transportes PúblicosAlameda Santos, 1000 • 7º andarCEP 01418-100 • São Paulo • SP
Tel.: (11) 3371-2299E-mail: [email protected]
Site: www.antp.org.br
PresidenteJurandir F. R. Fernandes
Vice-PresidentesCésar Cavalcanti de OliveiraCláudio de Senna Frederico
José Antônio Fernandes MartinsLuiz Carlos Frayze David
Otávio Vieira da Cunha FilhoRogerio Belda
SuperintendenteNazareno Stanislau Affonso
Coordenadora de ComunicaçãoCristina Badini
A revista Movimento, mobilidade & cidadania é umapublicação da Associação Nacional de TransportesPúblicos - ANTP, editada pela Editora Multiletra.Os artigos e matérias assinadas são de responsabi-lidade de seus autores. Todos os direitos reservados.
CASA DA MOBILIDADE CIDADÃ
2 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 2
i n t e r n e t 4Idas e vindas no OrkutUm ponto de encontro virtual com toda liberdade de expressão
p e d a l a n d o 6Expresso pedalEmpresas adotam a bicicleta em sistema de entregas expressas
c i d a d e s 10A revolução de Bogotá
Know how brasileiro é adotado na capital colombiana, que setornou modelo no transporte público
e n t r e v i s t a 14Enrique PeñalosaO ex-prefeito de Bogotá fala sobre a mudança de paradigmasna gestão da cidade
g a s t r o n o m i a 18Esquinas saborosasRuas brasileiras também podem ser excelente opção gastronômica
i d é i a 24Transporte público: acessível para quem?Cidades brasileiras não têm regras claras para facilitar a vida depessoas com mobilidade reduzida
c o m p o r t a m e n t o 40Faixa não é enfeite - Inovações facilitam prevenção de acidentes,mas ainda falta segurança para o pedestre
c o m b u s t í v e l 46GNV: um sonha ainda distantes - Substituição do diesel pelo gás naturalveicular nos ônibus brasileiros ainda tem obstáculos a serem vencidos
Crônica 50O ônibus do Bussunda
m ã o d u p l a 52Radares eletrônicos reduzem acidentes de trânsito?
e x p a n s ã o 54A rede cresce - expansão do metrô de São Paulo
a t l a s 58Berlim - Transporte público ajuda a integrar cidade,que completa 15 anos de reunificação
a r q u i v o 60O transporte no Recife antes das pontes e da poluição
r e s e n h a 62Livro: O mapa que mudou o mundo/Filme: Uma amizade semfronteiras
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ovimento
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IDA
DE
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Capa: Toni Escalante
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Imobilidadenoturna
Um problema de milhões: deficiência
no transporte público dificulta a vida
de quem quer e quem precisa sair à noite
e prejudica a economia das cidades30m
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✑
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4 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3
i n t e r n e t
Idas e vindasno Orkut
e você se co-
necta à inter-
net, muito pro-
vavelmente já
foi convidado para se cadastrar
na última coqueluche da re-
de. Criado pelo doutorando de
ciência da computação Orkut
Buyukkokten, ligado ao Goo-
gle, o Orkut é uma sala de
visitas virtual que tem como
objetivo aumentar o número
de amigos do usuário e per-
mitir o reencontro de gente
que não se vê há anos. Mais
do que isso, possibilita a troca
de idéias em suas diversas co-
munidades temáticas, como a
de transportes públicos. Há
muita gente discutindo seria-
mente a logística do setor, o
sistema de pedágios e outros
temas técnicos e acadêmicos,
mas os palpiteiros do Orkut se
dedicam mais a falar sobre as
P O R H E I T O R P I T O M B O
linhas de ônibus favoritas, pi-
char a malha ferroviária ou
cultuar o metrô.
Os ônibus são os que mais
inspiram a criação de comuni-
dades. Em uma delas, chamada
Ando de ônibus, e daí?, o porto-
alegrense Luiz Felipe diz que
pegar um T4 às sete da matina
é uma experiência “essencial”:
“Lá dentro acaba-se fazendo
parte de uma massa homogê-
nea. Você não sabe onde co-
meça o seu corpo e onde ter-
mina o da pessoa ao seu lado.
Nem precisa se segurar: nin-
guém consegue se mexer lá
dentro mesmo!”, exagera o
gaúcho. A carioca Sabrina Ca-
razza faz parte do grupo e de-
fine o uso do coletivo como
uma terapia. “Gosto de andar
de ônibus porque esqueço os
meus problemas e literalmente
relaxo, pois não há nada a fa-
zer.” Usuária fiel, Sabrina não
deixa de apontar problemas.
“O preço das passagens ainda
é muito salgado. As promessas
do bilhete único feitas na cam-
panha eleitoral foram boas,
mas pelo visto vamos conti-
nuar pagando caro”, reclama.
Na comunidade Eu ado-
ro ônibus, o também carioca
Wendel Nogueira demonstra
sua paixão num de seus posts.
Ele lembra que, desde os qua-
tro anos de idade, reparava nos
códigos das linhas, nas pin-
turas dos carros e nos mode-
los. Indo para a escola, sempre
escolhia os tipos nos quais
queria embarcar. É um aficio-
nado: “Lembro que me apai-
xonei pelo Thamco Águia
quando foi lançado, em 1987.
Ficava horas fazendo minha
mãe esperar no ponto para an-
dar nele. Quando vinha um
S
MA
RIO
B
AG
�
5NÚMERO 3 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA
Águia da Volvo, então, era o
auge!”
Outras pessoas nutrem
fascínio pelos eventos pito-
rescos que podem ocorrer na
condução. É o caso da curi-
tibana Leticia Diniewicz, cria-
dora da comunidade Ouvindo
conversas no ônibus, que sem-
pre adorou escutar o papo de
desconhecidos. Já ouviu diver-
sas histórias. As mais recor-
rentes, segundo ela, são as
dos velhinhos que, a cada
esquina, recordam como era
a cidade antigamente. “O
maior número de comentários
é sobre crianças que vomitam
no ônibus. Há também mui-
tas histórias de pessoas que
se apaixonaram por alguém
num coletivo.”
As figuras que freqüentam
os lotações também são víti-
mas de comentários veneno-
sos em comunidades como Eu
odeio baleiro de ônibus, na qual
seu impiedoso criador afirma
não agüentar mais ouvir ex-
pressões como “desculpe inco-
modar a sua viagem”, “não es-
tou traficando nem roubando”
ou “três canetas pelo preço de
uma”. Os personagens mais
citados são, naturalmente, os
condutores, atacados em vá-
rias comunidades chamadas
Eu odeio motoristas de ônibus.
O metrô também pode ser
objeto de adoração e ódio. Na
comunidade Metrô de São Paulo,
a malha paulista é tida por um
dos seus integrantes como
“uma das poucas aplicações de
impostos que dão certo”. Ela
registra episódios pitorescos,
como o relato de um passa-
geiro da Linha Azul (norte-
sul). “Uma vez eu estava den-
tro do metrô, olhando pela
janela, quando vi lá fora um
sujeito cabeludo usando ócu-
los escuros e vestindo uma
calça bizarra olhando para o
nada. O metrô partiu, seguiu
para a estação seguinte e,
quando parou, o cara estava lá
também, com a mesma calça
bizarra, o cabelo e os óculos,
na mesma posição! Com cer-
teza era um fantasma.”
Não faltam relatos ou co-
mentários insólitos, mas em
comunidades como Metrô Rio
(Eu quero um lugar) há muitas
reclamações sérias sobre a falta
de estrutura para dar vazão
aos milhares de passageiros.
Com bom ou mau humor, os
brasileiros desejam mesmo é
melhorar a qualidade de suas
idas e vindas pela cidade. ■
O que é? | O Orkut — www.orkut.com — é um site que funciona
como central de relacionamentos e geralmente conecta grupos de
amigos ou pessoas com interesse nas comunidades temáticas,
que podem ser abertas por qualquer um dos membros do Orkut.
Para ser membro, o interessado precisa de ser convidado.
Como criar uma comunidade? | Entrando no site, clique em
“comunities” e, bem no pé da página, em “create”. Preencha um
pequeno cadastro e, ao clicar novamente em “create”, terá criado
mais uma comunidade no Orkut.
6 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3
p e d a l a n d o�
Expresso pedal
s vantagens
para quem
adota a bici-
cleta como
meio de transporte no dia a dia
são bem conhecidas. É uma al-
ternativa eficiente ao trans-
porte motorizado, não polui,
faz bem à saúde e estimula a
integração social. A novidade
é que a magrela passou a ser
uma forma ambientalmente
sustentável de ganhar dinhei-
P O R M A R C O S M A C H A D O
ro, como mostram duas em-
presas que adotaram o veículo
para fazer entregas expressas
em São Paulo e no Rio de Ja-
neiro.
A primeira surgiu em São
Paulo em 1998, prometendo
entregas em até uma hora a
partir da coleta, mesmo se pre-
cisasse cruzar a cidade da Ave-
nida Paulista até Santo Amaro
no rush. A promessa ambiciosa
da Bike Courier, no início, não
foi levada a sério. “Não
acreditavam que pudéssemos
superar os motoboys”, lembra
o sócio Flávio Meireles. Aos
poucos, o conceito ganhou
espaço e credibilidade, em
grande parte graças a uma bem
sucedida manobra de mar-
keting: os ciclistas passaram
a subsidiar a rádio Eldorado
com informações sobre o
trânsito. O fortalecimento da
consciência ecológica no mer-
A
Cresce a procura por
empresas ecologicamente
corretas dos ‘bike boys’
6 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3
7NÚMERO 3 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA
cado corporativo atraiu clien-
tes como Votorantim, Ig, Bra-
silinvest e Forma Academia.
O preço também é um forte
apelo. As firmas que operam
com motociclistas, conta Flá-
vio, cobram por hora – no míni-
mo duas – para cada remessa.
Com a entrega em até uma ho-
ra, o custo cai pelo menos à
metade: R$ 9,00 é o preço ini-
cial do serviço na Bike Courier.
A empresa, que começou com
três ciclistas e poucos pedidos,
dispõe de 35 mensageiros para
atender a uma média de 50 cha-
madas na Grande São Paulo.
A Cicle surgiu em 2002 no
Rio com dez ciclistas e en-fren-
tou menos desconfiança do que
sua colega paulista por causa
da forte cultura ciclística da
cidade. O Rio tem a segunda
maior malha de ciclovias da
América Latina, com 140 qui-
lômetros (a maior é de Bogotá,
com o dobro). A empresa já
atende o centro, a zona Sul e a
Tijuca (zona Norte). O número
de funcionários dobrou e os
pedidos são de pelo menos cem
diários, chegando a 2 mil quan-
do há distribuição de convites
para grandes eventos. Os pre-
ços começam por R$ 5, para
entregas no mesmo bairro. Re-
centemente, foi instituída uma
parceria com a Oi. Em troca do
equipamento de comunicação,
os ciclistas estampam a marca
da empresa de telefonia celular
em suas camisas.
Inspiração naDinamarca
Depois de anos trabalhando na
Espanha como editora e
designer de moda, Denise
ansiava por um negócio
próprio com viés social. Seu
marido, o artista plástico
Peter Neusch, sugeriu a
criação da empresa nos moldes
das existentes na Dinamarca,
sua terra natal. “O negócio
nos permite interagir com as
pessoas e mostrar que é
possível viver melhor nas
cidades”, justifica. A Cicle
nasceu associada ao Instituto
Pedalando para salvar ou matarPedalando para salvar ou matarPedalando para salvar ou matarPedalando para salvar ou matarPedalando para salvar ou matar
O uso da bicicleta em atividades profissionais não se
restringe ao ramo de entregas ou ao policiamento,
outra finalidade comum, principalmente na Europa. Em
Londres, ainda em caráter experimental, há um serviço
de bicicletas-ambulâncias. Seis paramédicos em bikes
equipadas com luz de prioridade, sirenes, desfibrilador
cardíaco e máscara de oxigênio vão atuar na área central
em um quilômetro ao redor de Leicester Square,
Trafalgar Square, Soho e Covent Garden. Prestarão
atendimento rápido a pacientes em estado crítico, como
vítimas de ataque cardíaco que estão em vias conges-
tionadas ou ruas de pedestres. Outra equipe com cinco
paramédicos está a postos no aeroporto internacional
de Heathrow para emergências. É o segundo aeroporto
do mundo a contar com o atendimento. O primeiro foi o
de Vancouver, no Canadá.
Militares também usam bicicletas profissional-
mente. Embora o exército da Suíça tenha anunciado a
extinção de seu batalhão de ciclistas de montanha em
2003, a bicicleta continua tendo uso militar, mais
exatamente pelos paraquedistas dos Estados Unidos
na guerra do Iraque. Eles saltam do avião com um
modelo dobrável da Montague às costas, que pode ser
usado para deslocamentos entre os combates.
8 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3
p e d a l a n d o�
Grupo de Trabalho de
Bicicletas da ANTP
www.bikecourier.com.br
www.cicle.com.br
Página das empresas de
ciclistas mensageiros
www.adventureofbike.hpg.com.br
Página sobre ciclistas
mensageiros de São Paulo
www.bicicletada.org
Página oficial do movimento
Bicicletada – que promove a
discussão sobre o uso de
meios de transportes não
motorizados
www.uspsprocycling.com
Equipe de ciclismo profissional
do serviço postal dos EUA. –
O pentacampeão da volta da
França, Lance Armstrong, é
um de seus 25 integrantes.
www.londonambulance.nhs.uk
Site oficial do London
Ambulance Service
www.museuda-bicicleta.com.br
Museu em Joinville (SC),
conhecida como “cidade das
bicicletas”, que possui 16 mil
exemplares - inclusive três da
bicicleta de montanha do
exército suíço.
www.militarybikes.com
Site das bicicletas militares
da Montague
S A I B A M A I SS A I B A M A I SS A I B A M A I SS A I B A M A I SS A I B A M A I S
Ethos de Empresas e Respon-
sabilidade Social e fez uma
parceria com a Federação Ca-
rioca de Bicicross, que rendeu
emprego para dois atletas e
um projeto para implantar o
Dia Internacional Sem Carro
no Rio de Janeiro. A iniciativa
foi aprovada pela Prefeitura
este ano, mas ainda não saiu
do papel.
O maior problema das em-
presas pioneiras é o mesmo
que atormenta milhões de ci-
clistas no país: o desrespeito
no trânsito. “Os carros jogam
em cima, fazem o ciclista subir
a calçada e ainda xingam”,
conta Flávio. Apesar dos ris-
cos, a empresa paulista nunca
teve um acidente sério; a do
Rio teve um. “Fui atropelado
há um mês, mas só luxei o
braço”, conta Fábio Rosa de
Oliveira, um dos ciclistas-
mensageiros da Cicle. Roubos
aconteceram poucos, geral-
mente das bicicletas ou partes
delas.
Alguns clientes só des-
cobrem que o serviço foi feito
por bicicleta ao ver a roupa do
bikeboy. Os problemas decor-
rentes do pioneirismo do ser-
viço vão, pouco a pouco, desa-
guando em soluções criativas.
Há prédios que não permitem
o ingresso de bermuda, ves-
timenta mais apropriada para
o esforço. Por isso, uma calça
sempre está na mochila. Fábio
Rosa conta sobre um local em
que ocorre exatamente o
inverso. “Há um escritório de
arquitetura em que a maioria
é de funcionárias. Lá, a calça é
que foi proibida”, brinca,
orgulhoso. ■
A carioca Cicledobrou o númerode ciclistas desdesua fundação,em 2002, echega a receber2 mil pedidosde entregaspor mês
10 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3
c i d a d e s�
A capital da Colômbia está
localizada de forma privilegiada
no lado oriental da Cordilheira
dos Andes, a uma hora de vôo
dos oceanos Atlântico, Pacífico
e do Mar do Caribe. Não tem estações muito
definidas, oferecendo uma agradável temperatura
que oscila entre os 9° e os 22°, com períodos de
seca e de chuva que se alternam durante o ano.
Situada 2.640 m acima do nível do mar, Bogotá
tem 7 milhões de pessoas e conta com bela
arquitetura colonial, que convive com edificações
modernas e arrojadas. Com tantas qualidades, é
mais conhecida pela violência e a visão que
muitos têm dessa metrópole sul-americana é de
desordem, graças à ação do narcotráfico e a
mazelas como a falta de ordem no trânsito e o
transporte de péssima qualidade, com altos
índices de acidentes e mortes.
O mundo pode não ter prestado muita aten-
ção, mas as coisas andaram mudando na terra
de Gabriel García Marques e o velho estereótipo
da capital colombiana já não se encaixa nos dias
de hoje. No dia 6 de setembro do ano passado,
Bogotá fez jus ao prêmio Cidades pela Paz, con-
ferido pela Unesco em reconhecimento a projetos
Abem sucedidos e esforços de autoridades e
moradores, muitas vezes em contextos difíceis,
em prol da cultura e da harmonia urbana.
O que mudou
A violência em Bogotá vem diminuindo, os
números de mortos e feridos no trânsito tam-
bém caem, a cara da cidade mudou. A partir da
implantação do Projeto Trasmilênio, em 1999
houve uma mudança no próprio conceito de
cidade. Corajosamente, o então prefeito, Enri-
que Peñalosa, resolveu mostrar que o espaço
urbano ideal privilegia seus habitantes, não os
veículos. Deve ser democrático, com acesso ao
espaço público de forma igualitária para todos,
com muito verde, calçadas amplas e locais de
lazer nos bairros pobres.
Partindo dessa filosofia, foi adotado o sis-
tema pico & placa, que restringe o tráfego de
veículos particulares no centro por duas horas,
nos períodos mais movimentados da manhã e
da noite. Carros estacionados sobre as calçadas,
antigo costume dos motoristas de Bogotá e de
certas cidades de outro conhecido país tropical,
P O R: T Â N I A M A R A
Transmilenio:um projeto detransporte nocentro datransformaçãoque valeua Bogotá oprêmio Cidadespela Paz,da Unesco
A revolução deBogotáA revolução deBogotá
11NÚMERO 3 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA 11
passaram a ser rebocados. Um investimento na
casa dos US$ 300 milhões contemplou também
iluminação pública, construção de calçadas,
parques, bibliotecas e escolas em bairros pobres.
Inspirado no sistema de transporte de Cu-
ritiba e com participação de técnicos brasileiros,
foi criado um projeto utilizando o ônibus como
transporte de massa, uma solução questionável
em outros contextos mas economicamente pos-
sível para a realidade de Bogotá. Rodando em
faixas segregadas, veículos articulados, com pa-
radas em estações modernas equipadas com ca-
tracas eletrônicas, passaram a operar integra-
dos a um sistema alimentador, que parte dos
diversos bairros.
Por que transporte rodoviário?
Um dos conceitos que levou à escolha de um
transporte de massa sobre pneus foi a econo-
mia. A construção de um metrô seria uma solu-
ção muito cara e mais demorada. A idéia de
buscar caminhos específicos para resolver pro-
blemas próprios da cidade também pesou. Os
técnicos levaram em conta questões reais do
dia-a-dia de um país em desenvolvimento, como
a minguada renda per capita, os problemas liga-
dos à pobreza e os hábitos mais gregários da
população. Evitaram copiar modelos de países
desenvolvidos e cidades com perfis diferentes.
O diferencial do Transmilênio, hoje apon-
tado como exemplo positivo em todo o mundo,
é a concepção de que um sistema de transporte
é capaz de gerar toda uma estrutura urbana.
Houve a consciência, por parte de seus cria-
dores, de que uma política de transporte não é
mera ferramenta para resolver problemas de
congestionamentos de veículos, mas fator in-
dutor de qualidade de vida. Ela pode determinar
o tipo de cidade em que se pretende viver. Em
vez de mais vias e obras de engenharia para
privilegiar automóveis, criaram-se alternativas
para pedestres e ciclistas e procurou-se oferecer
um transporte público de qualidade para que
as pessoas pudessem deixar seus carros em
casa, deslocando-se, em trajetos rotineiros, no
transporte coletivo.
Uma cidade mais igualitária
As pistas de rodagem costumam ser cons-
truídas nos locais onde os preços dos terrenos
são mais acessíveis, justamente onde se concen-
tram as pessoas das camadas de menor renda
da população. Essas vias deterioram comple-
tamente a qualidade de vida das pessoas, expõe
todos a riscos de atropelamentos e à convi-
Bogotá: menores índices de violência e valorização urbana
Espaço público passa a privilegiar os habitantes, não os veículos
12 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3
c i d a d e s�
vência com mais ruído, fumaça, menos verde.
Quanto mais velocidade as pistas permitem,
maiores os prejuízos ao entorno, ressalta o
economista Peñalosa. Com o tempo, tornam-
se verdadeiras barreiras para os moradores. No
caso do Transmilênio, as áreas ocupadas pelas
comunidades mais pobres foi melhorada, com
a construção de locais de lazer para os mora-
dores. Em muitos casos, as ruas – utilizadas
pelo pequeno percentual que pode ter um carro
– permaneceram sem calçamento, mas foram
construídas calçadas para os pedestres. Um
parque de 45 quilômetros lineares surgiu onde
estava prevista a construção de uma rodovia.
Os moradores dessas comunidades passaram a
ter acesso a ônibus novos, alimentadores, que
os levam a estações onde podem tomar os ôni-
bus articulados. O preço da passagem custa
um pouco mais do que a tarifa anterior, mas dá
direito ao uso integrado.
As transformações de Bogotá não foram ape-
nas em relação à mobilidade humana. O Transmi-
lênio mexeu com a auto-estima e tornou a cidade
mais igualitária. Numa época em que se questiona
o alcance do acesso ao transporte em países como
o Brasil – em que as camadas mais baixas da
população se tornam cada vez mais imóveis por
não terem condições de pagar as tarifas – o cida-
dão de Bogotá ganha um transporte de qualidade,
sem agressões ao meio ambiente, e vias seguras e
cuidadas para pedestres e ciclistas. Talvez seja a
hora de muitas outras cidades do mundo busca-
rem soluções mais humanas para os seus proble-
mas, sejam eles de transporte ou não. ■
14 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3
� entrevista KATIA BORN
ENRIQUE PEÑALOSA
Bogotá chamou a atenção do mundo ao receber, recentemen-
te, o prêmio Cidades pela Paz, da Unesco. A conquista foi
resultado não de uma política de segurança pública, mas de
um trabalho maior, voltado para aspectos sócio-culturais e
econômicos, que começou com a fiscalização de venda de be-
bidas alcoólicas a menores e a
implantação de uma cultura ci-
dadã. Curiosamente, um proje-
to de transporte – o Transmi-
lênio – esteve no centro da mu-
dança. O ex-prefeito Enrique
Peñalosa, que implantou o pro-
jeto, falou a Movimento sobre
a forma como as medidas ele-
varam a qualidade de vida, con-
tribuindo para a harmonia
urbana.
e n t r e v i s t a
15JANEIRO/FEVEREIRO 2004 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA
Mudandoparadigmas
P O R A L E N C A R I Z I D O R O
O que é o Transmilênio?
É um sistema integrado de transporte de massa, com base em ônibus articulados.
Foi inspirado em Curitiba, aprimorado por engenheiros brasileiros e adaptado a
Bogotá. É muito mais barato que um sistema de metrô, leva hoje mais
passageiros por quilômetro do que 90% dos metrôs do mundo.
E o transporte alimentador, como funciona?
Existem ônibus comuns por toda a cidade, atuando como alimentadores. São
operados por empresários contratados, que recebem basicamente por quilômetro
percorrido.
Como era o transporte em Bogotá?
Absolutamente caótico, louco, com um número enorme de operadores travando
verdadeira guerra pelos passageiros. Havia muitas mortes no trânsito,
principalmente de pedestres e ciclistas. Circulavam ônibus com até 30 anos de
existência, outros chegavam a ter 4 milhões de quilômetros rodados.
Além da melhoria do trânsito e da redução de acidentes, em que o
projeto mudou a vida da cidade?
Pelo grande poder simbólico, provocou uma mudança cultural ao mostrar
claramente que o interesse geral vem antes do particular. Ao se dar prioridade
no uso da via ao transporte público, tornou a cidade mais democrática. No
espaço público, todos sentem-se iguais. O ônibus também passou a ser visto
como um transporte de qualidade, desvinculado da idéia de pobreza. E a população
economizou tempo e dinheiro, pois 45% dos passageiros usam o alimentador e,
depois, o Transmilênio, pagando apenas uma tarifa.
16 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3
� entrevista KATIA BORN
“provocou uma mudança cultural ao mostrar claramente que
o interesse geral vem antes do particular”
Como ocorreu essa mudança de paradigma com relação ao ônibus?
Para começar, mudamos a terminologia. Hoje o passageiro diz “vou tomar o
transmilênio”, que percebe como um produto distinto. As linhas passam também
por áreas nobres, reforçando a idéia de que é um transporte para todos, pobres
e ricos. A restrição aos automóveis no centro e a boa qualidade do transporte
também contribuíram.
O que torna o Transmilênio a contribuir para a paz social?
Cerca de 40% dos investimentos foram feitos em alterações do espaço público.
As áreas públicas tornaram-se seguras, agradáveis, com vias exclusivas para
pedestres, ciclovias, largas calçadas, bibliotecas, parques. Chegamos a eliminar
vias para desenvolver um parque linear, com 45 quilômetros de verde, em uma
área pobre para a qual estavam projetadas mais pistas de rodagem. Hoje os
moradores de Bogotá gostam muito mais da cidade, têm orgulho dela.
E os recursos para a implantação? De onde vieram?
Houve a implantação, por lei, de uma taxa sobre a gasolina, de 5%. Isso garantiu
cerca de 25% dos recursos. O Governo federal assumiu o restante, investindo
na infra-estrutura: vias, estações, garagens.
O projeto humanizou Bogotá?
Sim. Tanto que o governo federal está criando mais cinco projetos semelhantes:
em Barranquilha, Cartagena, Pereira, Cáli e Bucaramanga.
As políticas que privilegiam o automóvel, em países em desenvolvimento
como a Colômbia ou o Brasil, são socialmente justas?
São muito injustas, pois dirigem recursos que vieram também dos mais pobres,
através de tributos, para resolver engarrafamentos criados pelos mais ricos. A
qualidade de vida de uma área é diretamente proporcional ao tamanho do espaço
dedicado ao pedestre e inversamente proporcional à velocidade em que se movem
os carros. Infelizmente, as pistas de alta velocidade são feitas, via de regra,
exatamente nos locais mais pobres, onde os terrenos são mais baratos.
17JANEIRO/FEVEREIRO 2004 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA
A classe média costuma reagir negativamente a medidas restritivas
ao automóvel. Em Bogotá, o senhor provocou fortes reações com o
Transmilênio. Em que momento foi revertido esse impacto negativo?
Realmente, chegaram a pedir o meu impeachment. Mas quando os resultados
foram aparecendo as pessoas mudaram de opinião. Em março de 2001, eu tinha
85% de aceitação.
O que caracteriza uma boa política de transporte?
Em vez de tentar resolver, a curto prazo, problemas de
congestionamento, criando mais vias, devemos pensar: como
queremos viver? Não podemos falar de uma política de transporte
se não sabemos quais cidades queremos, pois os sistemas de
transporte criam modelos de cidade. A pergunta não é “que tipo de
transporte queremos” , mas “como queremos viver em nossas
cidades?”
E como podemos ter boas cidades?
Qualquer urbanista hoje tem dois desejos principais: prioridade
para o transporte público e cidades densas. Nós, de países como
Colômbia e Brasil, ainda podemos mudar nossas cidades, fugir dos
modelos norte-americanos, criando soluções de acordo com nossas
realidades.
Como está o Transmilênio hoje?
Temos 56 quilômetros em operação, com um grande terminal que
conta com espaçoso estacionamento e bicicletário. Estão em
construção outros 50 quilômetros, devendo começar a funcionar
em um ano. E virão outras etapas, até 2020, quando 85% das
moradias de Bogotá estarão a menos de 500 metros de uma estação
do Transmilênio. Esta é a meta.
“A qualidade de vida de uma área é diretamente proporcional
ao tamanho do espaço dedicado ao pedestre e inversamente
proporcional à velocidade em que se movem os carros”
18 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3
g a s t r o n o m i a�
comida do brasileiro está no
olho da rua. Mas muito bem
empregada, seja em Salvador,
onde o acarajé integra a paisa-
gem e o cardápio de todos os
santos, ou no prato principal dos campos
gaúchos – levado em forma de miniatura para
o Centro de Porto Alegre, onde os espetinhos
assados em carrinhos com infra-vermelhos
mantêm acesa, mesmo sem brasa, a tradição
gaúcha. O gosto de churrasquear, aliás, se
espalhou no braseiro de todo o país: em qual-
quer porta de botequim, praça, esquina mo-
vimentada, festa de candidato a vereador, lá está
o espeto com carnes variadas. De gato, não.
Dele só ficou o apelido do churrasquinho de
rua no Rio de Janeiro.
Nas ruas cariocas, aliás, onde são vendidas
comidas típicas de todo o Brasil, foi que in-
ventaram a iguaria do x-tudo, inspirada no
cheeseburger. Consiste em duas bandas de pão
redondo e tudo que couber entre elas: queijo,
A
P O R: M Ú C I O B E Z E R R A
Esquinas saborosas
As delícias da comida
de rua nas cidades
brasileiras
hamburger, alface, milho verde, azeitonas,
ervilhas, maionese, tomate, ketchup, mostarda,
queijo ralado, molhos diversos... Tudinho por
R$ 1 a R$ 1,50, com direito a um copo de refri-
gerante popular grátis para ajudar na condução
do gigante ao leito do estômago. Sem contar a
pipoca, o amendoim, o algodão-doce, o puxa-
puxa, a cocada, os churros, a papa de milho, o
queijo de coalho assado, o espeto de camarão,
o jamelão, o cajá, a carnaúba, a pitomba... ufa!
O sal de frutas.
Na Bahia, o Acarajé, uma comida-de-santo,
está disponível em qualquer esquina para os
reles mortais. E lá está de prova todos os dias,
no Largo do Farol da Barra, a legítima baiana
de tabuleiro Tânia Bárbara Mary, 39 anos. Tânia
“Nasci dentro do acarajé”, resume Tânia do Farol,artesã do tabuleiro. Ela potencializa a tradição dafamília baiana e merece o certificado “ISO novemil e hummm!!!”
LUC
IAN
O
MA
TO
S
20 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3
g a s t r o n o m i a�
do Farol, como é conhecida, não é apenas uma
cozinheira de quitutes, mas uma artesã do
tabuleiro, profissão que passa de mãe para filha
desde os tempos de sua avó. A filha de Tânia,
Ana Cássia, 21 anos, aprendeu ainda menina
as técnicas criadas por escravas para trans-
formar a massa à base de feijão numa delícia
que tem cheiro e gosto da Bahia. “Nasci dentro
do acarajé”, diz Tânia, com todo aquele sorriso
de baiana de tabuleiro, mas sem o mesmo peso
que essa típica figura das ruas de Salvador tinha
antigamente: ela mantém a forma praticando
capoeira e jiu-jitsu. Em dias de santos, que
são muitos, cumpre com seus trabalhos no
terreiro. E no dia-a-dia segue rigorosamente
as regras de higiene aprendidas num curso
patrocinado, no ano passado, pelo Sebrae, o
Sesi, o Senai e a Agência Nacional de Vigilância
Sanitária, idealizadora do projeto Acarajé 10.
O resultado não podia ser outro: Certificado?
ISO nove mil e hummm!!!
Tânia vende seus quitutes a R$ 2 (o sim-
ples), R$ 2,50 (com camarão) e R$ 3 (com
camarão, vatapá, caruru), das 17h30m à meia-
noite. Em dia mais movimentado, vai até uma
da manhã, ajudada pela filha Ana Cassia e o
filho Anderson, 18 anos. Eles parecem seus
irmãos mais novos, porque Tânia se casou
muito jovem, com 14 anos. Depois, separou-
se do marido. “O acarajé é a nossa vida. Minha
mãe também se casou nova, teve 15 filhos, qua-
tro morreram logo e 11 foram criados no ta-
buleiro”, diz, com orgulho.
Na panela cheia de Brasil, a iguaria que
ganhou gosto em todos os estados foi mesmo
o churrasquinho no espeto, até no lugar sa-
grado do churrasco tradicional, o Rio Grande
do Sul. Ainda bem, agradece Jorge Bueno Lucca,
33 anos, um eletricista que ficou desempregado
há dois anos e resolveu driblar o fantasma do
desemprego num carrinho de churrasco. Ca-
sado, três filhos, mulher diarista, Tio Lucca
comprou, depois de um ano na rua e com finan-
ciamento do Banco do Brasil, um carrinho de
três rodas dotado de queimador infra-vermelho
e toldo, especialmente projetado pela prefei-
tura. “Aprendi técnicas de higiene com o pessoal
do Senai, do Sebrae e do Senac. Fiquei muito
satisfeito com a substituição do carvão pelo
infra-vermelho, que evita a fumaça. Aumentei
o valor do churrasquinho de R$ 1 para R$ 1,25
e a clientela cresceu também. Vendo até 120
FER
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No coração da capital gaúdha, o ex-eletricista JorgeLucca vence o desemprego com um carrinho de churrascoe comemora a chegada do infra-vermelho: menosfumaça, mais fregueses
21NÚMERO 3 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA
por dia”, conta ele, que faz ponto na esquina
das ruas dos Andradas e Borges de Medeiros,
no coração da capital, vendendo para muitos
estudantes universitários e advogados.
O hábito do brasileiro de comer na rua tam-
bém acabou com o desemprego do carioca Car-
los André, 30 anos, casado, dois filhos. Depois
de perder o emprego de copeiro, há dois anos,
ele abriu negócio na esquina da Rua do Ouvidor
com a Avenida Rio Branco, bem no centrão.
Horário de trabalho? Depois que a Guarda
Municipal vai embora, ali por volta das 18h.
Carlos e sua mulher trabalham enquanto há
freguês. Vendem até cem churrasquinhos por
dia, a R$ 1 cada. A cerveja custa R$ 1,50. Em
volta da churrasqueira é montado uma espécie
de bar, com banquinhos. “Já temos freguesia
certa. O melhor dia é sexta-feira, quando isso
fica cheio e nós trabalhamos até de madrugada.
Depois, arrumamos tudo e guardamos num
depósito perto. Pago um aluguelzinho, mas
estou ganhando muito mais do que no tempo
em que era copeiro.”
Mais adiante, na altura da Rua São José, há
outras churrascarias de rua pós-Guarda Muni-
cipal. É ali que o casal de mineiros Débora e
Flávio Belo, pais de um menino de 7 anos e uma
menina de 4, instalam a sua superbarraca rebo-
cada diariamente da Penha, onde moram, para
vender até 600 espetinhos de churrasco, frango
ou salsichão a R$ 1,50. Flávio Mineiro também
trabalhava como copeiro há dois anos, quando,
CA
RLO
S
MA
GN
O
Driblando a Guarda Municipal, o carioca Carlos André montou até banquinhos em volta de seu braseiro: até cem churrasquinhos pordia na histórica Rua do Ouvidor
22 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3
g a s t r o n o m i a�
depois de demitido, arranjou emprego melhor
na chapa de um churrasqueira. “Demos a volta
por cima e nossa vida ficou bem melhor. Aqui
só vendemos carne de primeira e, por isso,
temos uma boa e fiel freguesia”, gaba-se Débora.
Um dos mais fiéis é o gerente administra-
tivo de uma empresa de informática, Cléber
Luiz Correia Lima, 37 anos, que pára na chur-
rascaria do Flávio depois do expediente, antes
de voltar para casa, em Maricá. Seu amigo
Édson Cardoso, gerente de banco, morador de
Maricá e vascaíno como Cléber, é figurinha fácil
por ali às sextas-feiras, enquanto espera o
ônibus para voltar para casa. Os dois amigos
elogiam a qualidade do churrasquinho e o bom
ambiente, que atraem a classe média.
A classe média foi tão contagiada pelo cheiro
do churrasco que, em Niterói, para atender à
demanda, Chico e Zacarias Ceará, donos do Bar
Garden’s, em Icaraí, mandaram construir uma
churrasqueira bem na beira de uma das portas,
para atender a clientes como o comerciante de
produtos de informática Flávio Dib. Lá, o
churrasquinho é vendido a R$ 1,75 e R$ 2,25
(com molho). “Comer na rua hoje é uma
tendência e, por aqui, isso já virou moda. No
caso do churrasquinho, vai muito bem para a
roda de cerveja com os amigos”, diz Flávio,
comprovando que a vida nas ruas não é feita só
de pressa, barulho e engarrafamentos, mas
guarda sabores e cheiros muito especiais para
aproximar as pessoas. ■
CA
RLO
S
MA
GN
O
Os vascaínos Cléber Lima e Édson Cardoso, moradores de Maricá, batem ponto na “churrascaria” de Flávio e Débora depois dotrabalho: “carne de primeira e freguesia fiel”, comemora Débora
23NÚMERO 3 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA
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OF-1722 M
24 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3
i d é i a
�
Se a vida do cidadão co-
mum que se desloca pelos
sistemas de transportes pú-
blicos no Brasil já é um mar-
tírio, como ficam os usuários
de cadeira de rodas, os cegos
ou as pessoas de muletas? Pois
é, elas não vão e nem vêm —
elas “ficam”. São anos e anos
de luta pelo direito do acesso
das pessoas com deficiência
aos transportes públicos, prin-
cipalmente os urbanos, mas
até agora o que vemos, de for-
ma geral, são ações isoladas em
algumas cidades que imple-
mentaram uns poucos ônibus
adaptados – a maioria “mal”
adaptada – ou veículos de
transporte exclusivo que não dão conta do
recado. O nível de preocupação e investimento
é zero. Outro dia ouvi de um técnico de uma
das maiores empresas de transporte público do
país que “os deficientes estão mesmo perdidos”.
Infelizmente, ele ainda tem razão. Após tantos
anos de reivindicações e com tanta tecnologia
disponível, por que ainda encontramos esse
quadro de exclusão? E nem entramos ainda no
mérito da dificuldade de idosos, gestantes,
obesos e todos os que têm sua mobilidade
reduzida.
Em primeiro lugar, nunca houve por parte
do Estado brasileiro, de fato, uma estratégia
de investir em políticas públicas com regras
claras e objetivas voltadas à implantação de
transportes coletivos eficientes e dignos. Fo-
ram décadas de estímulo à aquisição do veículo
particular, baseado no modelo norte-americano,
Edison Passafaro é secretário executivo da Comissão Permanente de
Acessibilidade da Prefeitura de São Paulo
�
i d é i a
�
Edison Passafaro
Transporte Público:Acessível paraquem?
25NÚMERO 3 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA
voltado à elite e à classe média.
Este comportamento definiu
equivocadamente a política de
transportes de todo um país e
o automóvel se transformou
no maior urbanista do século
20, além do sonho de consumo
dos brasileiros. As cidades e o
comportamento das pessoas
foram se moldando às suas
necessidades. Frente a essa
cultura nacional, o transporte
público passou a ser sinônimo
de transporte ruim, de uso
quase que exclusivo dos me-
nos favorecidos, impossibili-
tados de financiar seus sonhos.
O que restou para a esmaga-
dora maioria – incluindo as
pessoas com mobilidade re-
duzida – foi ser transportada
como gado pelos falidos siste-
mas de transporte públicos,
sucateados, caros e ineficien-
tes, com raras exceções.
Em segundo lugar, a socie-
dade sempre enxergou as pes-
soas com deficiência como
doentes, incapazes, dependen-
tes, improdutivas e confina-
das. Mesmo representando 25
milhões que contribuem com
impostos, consomem, votam e
contam com uma ampla legis-
lação de garantia de seus di-
reitos, inclusive ao transporte
público, essas pessoas não são
respeitadas como cidadãs e
muito menos incluídas priorita-
riamente nas políticas públicas.
Somado o conceito de que transporte pú-
blico é necessariamente ruim ao preconceito
de que acessibilidade é só para pessoas com
deficiência e que estas só freqüentam hospitais
ou instituições especiais, o resultado é que,
quando se pensa em elaborar um plano, as pro-
postas são sempre de disponibilizar ônibus mal
adaptados ou veículos exclusivos que irão,
quando muito, levar uns poucos pobres coi-
tados a seus locais de tratamento. Custam caro
– para a felicidade das empresas concessioná-
rias – e a conta é subsidiada, como caridade
política. Assim os idealizadores se sentem livres
de investir na melhoria do transporte como um
todo e orgulhosos de sua própria “bondade”.
Tendem a achar que fizeram o máximo e que as
pessoas com deficiência não têm do que recla-
mar. Vivem felizes para sempre, sem querer
enxergar que, para quem precisa sobreviver
no mundo dos mortais, a vida continua uma
guerra.
O que restou para a
esmagadora maioria – incluindo
as pessoas com mobilidade
reduzida – foi ser transportada
como gado pelos falidos
sistemas de transporte públicos
26 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3
i d é i a
�
A realidade do transporte
acessível é uma questão de
tempo. Cabe aos gestores
públicos decidirem por caminhar
em sua direção por livre e
espontânea vontade ou por livre
e espontânea “pressão”
Depois de 25 anos combatendo essas
posturas demagogas, politiqueiras e clientelis-
tas, percebo que uma semente de lucidez co-
meça a germinar na mente de alguns profissio-
nais da gestão pública. Talvez porque passaram
a perceber que a população está ficando idosa,
que as pessoas estão cada vez mais obesas e
que a política do carro só aumenta o número
de acidentes com seqüelas irreversíveis. Podem
ter percebido que resgatar o respeito não é mais
questão de consciência, mas de sobrevivência.
O que importa é que resistências estão sendo
vencidas.
De uns anos para cá, passamos pelo menos
a repensar a prioridade do ser humano em re-
lação ao automóvel na reurbanização das ci-
dades. Tentamos incluir na pauta o conceito
de mobilidade urbana a fim de reordenar o
espaço público, otimizando
seus elementos em função de
todos. Desconsiderar a diver-
sidade no planejamento de
edificações, vias, equipamen-
tos, mobiliários urbanos e veí-
culos públicos se torna inacei-
tável. Começamos a intro-
duzir o conceito do Desenho
Universal como ferramenta
básica na construção de po-
líticas públicas de acessibi-
lidade às pessoas com mobili-
dade reduzida (deficientes,
gestantes, obesos, idosos, aci-
dentados temporários etc) e
percebemos a adesão de urba-
nistas ao conceito da “mobili-
dade urbana acessível”.
Para o transporte urbano
em São Paulo, apresentamos
propostas de “sistemas de
transporte acessíveis”, contra-
pondo-as à visão calcificada e
desgastada de “ônibus adap-
tado”. Este novo olhar visa
harmonizar e integrar todas as
ações que garantam acessibili-
dade total ao sistema. Isso sig-
nifica rebaixamento de guias,
comunicação tátil, visual e so-
nora, rampas e equipamentos
eletromecânicos e auxiliares
instalados nos terminais de
embarque e desembarque, nos
pontos de parada, nas cal-
çadas, travessias e mobiliários
urbanos ao longo dos corre-
dores estruturais de trans-
porte, bem como a implemen-
28 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3
i d é i a
�
tação prioritária de veículos
que garantam embarque em
nível (sem degraus) a todos,
inclusive aos com mobilidade
reduzida, nas linhas estru-
turais. Além disso, a adoção
de veículos de pequeno porte
acessíveis, tipo van, dotados
de rádio comunicador e GPS,
operados para circular regio-
nalmente e coletar os usuários
com mobilidade reduzida em
seus locais de origem, trans-
portando-os dentro das re-
giões ou alimentando as linhas
estruturais, certamente ser-
virão para diminuir o drama
dessas pessoas. Elas estão
impedidas de se locomover
pelas calçadas, em função da
péssima conservação, da
topografia ou de ambas. Outra
possibilidade seriam os con-
vênios com cooperativas de
táxis com veículos acessíveis
para o trabalho regional porta
a porta. Provavelmente o custo
operacional seria menor. Pena
que as propostas não foram
postas totalmente em fun-
cionamento. Acho que faltou
empenho e um pouco de co-
ragem, por parte da secretaria
responsável, para assimilar
possíveis críticas dos acomo-
dados com o sistema cliente-
lista. Mas acredito que avan-
çamos e estabelecemos uma
estrutura lógica que poderá
ser ampliada ou reduzida, de
acordo com a demanda, sem comprometer o
sistema. Hoje outros municípios articulam sis-
temas semelhantes, sinal de que estamos no
caminho certo.
Em 2004, participamos em Brasília de várias
reuniões promovidas pela Secretaria de
Transporte e Mobilidade Urbana do Ministé-
rio das Cidades com setores representati-
vos das pessoas com deficiência, órgãos e
administrações públicas, fabricantes de
veículos e empresas de transportes, entre ou-
tros, visando o consenso para a elaboração de
um plano nacional de acessibilidade nos trans-
portes públicos. No fim do ano, por ocasião
do seminário de transporte acessível do Minis-
tério das Cidades, conhecemos experiências e
propostas regionais. Pela primeira vez, acho
que estamos próximos de depositar esperan-
ças em uma linha de ações exeqüíveis. Na
mesma semana, o presidente Luís Inácio Lula
da Silva assinou o decreto regulamentador
das leis federais 10.048 e 10.098, de 2000, que
estabelecem regras nacionais para a acessi-
bilidade às edificações, vias públicas, comu-
nicação e transportes. O Ministério Público
ganha uma importantíssima arma na fiscali-
zação junto aos governos federal, estaduais e
municipais.
A realidade do transporte acessível é uma
questão de tempo. Cabe aos gestores públicos
decidirem por caminhar em sua direção por livre
e espontânea vontade ou por livre e espontânea
“pressão”. Para os homens de boa vontade, é a
grande oportunidade de construir uma política
coerente, sólida e democrática para que, num
futuro bem próximo, tenhamos um modelo de
transporte público sustentável, eficiente, com
qualidade e acessível a todos os brasileiros,
independentemente de suas características
físicas ou econômicas. ■
30 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3
c a p a
P O R E D M U N D O B A R R E I R O S
ImobilidadImobilidade30 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3
c a p a
31NÚMERO 3 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA
Garçons apressando-se em bai-
xar as portas para tentar pegar
o último trem, boêmios pe-
dindo mais saideiras à espera
do primeiro metrô, pessoas
sonolentas tremendo de frio na madrugada em
um abrigo de ônibus são cenas comuns às
metrópoles. Circular à noite para quem não tem
carro é sempre difícil. Não há trens, os co-
letivos circulam com intervalos maiores e os
táxis, bem mais caros, são a única opção —
quando existem. Mesmo nas cidades com
sistemas eficientes os usuários reclamam do
tempo de espera após determinada hora. “É
inevitável. Como trens e ônibus não podem
ficar rodando vazios a noite inteira, o número
de viagens acaba reduzido”, explica Ronaldo
Balassiano, 49 anos, professor de Engenharia
dos Transportes da Coppe, da UFRJ. O problema
passa despercebido pela grande parte da
Um problema de milhões:
deficiência do transporte
público à noite prejudica
os moradores e a
economia das cidades
e noturnae noturna 31NÚMERO 3 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA
32 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3
c a p a
população que à noite descansa em casa, mas
muita gente trabalha nesses horários ingratos,
vai às ruas em busca de diversão, visitar parentes
e amigos, ou se desespera em casos de emer-
gência sem ter como chegar ao pronto-socorro.
Isso sem falar na violência, que quando escurece
ganha contornos de síndrome do pânico. A cir-
culação vira privilégio exclusivo de quem possui
automóvel e a imobilidade noturna acaba agra-
vando a exclusão social. A solução do trans-
porte solidário, a carona com os amigos, acaba
sendo a única alternativa, evidentemente res-
trita a setores da classe média.
O desperdício do potencial da economia
urbana e a paralisia da vida das pessoas à noite
não têm produzido, como era de se esperar na
era do conhecimento, muitos estudos espe-
cíficos sobre o tema. Poucos projetos miram o
transporte coletivo noturno como prioridade.
Brasília é um exemplo típico da insustenta-
bilidade de um modelo que precisa ser repen-
sado. Concebida na modernidade dos anos
1950, nossa capital, hoje na casa dos 2 mi-
lhões de habitantes, sempre valorizou o auto-
móvel, complicando a vida de quem não tem
carro. O metrô fecha às 20h e depois das 22h a
freqüência dos ônibus cai muito. Dentro do
Plano Piloto a situação é menos sentida por
quem tem poder aquisitivo e se agarra ao volan-
te, mas a rotina no entorno é difícil. “As cidades
dormitórios têm bom transporte só para levar
as pessoas ao trabalho. Para circular dentro de-
las, só com as vans”, diz o engenheiro florestal
Silvio de Sá, 35 anos, morador da capital.
Quanto maior e mais pobre a cidade, pior a
situação. E quanto mais longe do centro mora
o cidadão, mais grave ainda. “Em alguns lugares,
após determinado horário, há apenas táxis. Em
cidades pequenas com motorização grande, ao
nível de 50 carros para 100 habitantes, o
problema é menor, mas no Brasil o índice está
entre 25 e 30 automóveis por 100 habitantes.
Quem não tem automóvel continua dançando
na história”, diz Balassiano. Os bairros afastados
das regiões metropolitanas são particularmente
prejudicados pela redução e interrupção de
linhas menores ou complementares.
As tentativas de solucionar o problema ge-
ralmente passam pela alteração do itinerário
de algumas linhas. Recife, com mais de 1,5 mi-
lhão de habitantes, recorreu à idéia dos bacu-
raus, ônibus noturnos apelidados em home-
nagem a um pássaro da caatinga que canta à
noite. “Mas o tempo das viagens acaba aumen-
tando e o intervalo entre elas fica maior, às
vezes de até duas horas. E ainda há grande risco
de assalto”, lamenta Inácio França, 39 anos,
diretor de vídeo no Recife.
A volência, quando escurece, ganha contornos de
síndrome do pânico. A circulação vira privilégio exclusivo
de quem possui automóvel e a imobilidade noturna acaba
agravando a exclusão social
33NÚMERO 3 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA
No metrô de São Paulo, a circulação dos trens éinterrompida entre meia-noite e 5h, quando só restamos ônibus para quem não pode pagar os caríssimostáxis paulistanos. “Eles passam, mas com intervalosde mais de uma hora. Eu mesmo dormi várias vezesem pontos de ônibus”, conta Francisco Mastrochirico,38 anos, gerente comercial
No metrô de São Paulo, a circulação dos
trens é interrompida entre meia-noite e 5h,
quando só restam os ônibus para quem não
pode pagar os caríssimos táxis paulistanos.
“Eles passam, mas com intervalos de mais de
uma hora. Eu mesmo dormi várias vezes em
pontos de ônibus”, conta Francisco Mastro-
chirico, 38 anos, gerente comercial. A força do
turismo e a beleza de seus monumentos e
praias iluminados não mudam a situação no
Rio de Janeiro. A menor quantidade de ônibus
e a interrupção dos serviços de trem e metrô,
aliadas à crônica sensação de insegurança,
impõem limites aos hábitos cariocas. “Hoje
trabalho apenas de dia. Antes, quando ia até a
madrugada, tinha de esperar mais de uma hora
pelo ônibus”, conta Afrânio Luiz Gomes, 32
anos, garçom de um restaurante em
Copacabana, na zona sul.
A realidade é comum a várias capitais da
América Latina. Com grandes populações mui-
to pobres e índices altos de violência, a noite
latina é, definitivamente, um desafio. Na Cidade
do México, com quase 20 milhões de habitan-
tes, as dificuldades são proporcionais ao gigan-
tismo. “O metrô funciona relativamente bem,
mas não chega a todos os bairros nem circula
à noite. Os ônibus são pequenos, desconfortá-
veis e raramente rodam depois das 23h, assim
mesmo sem muita segurança”, reclama o editor
César Gutierrez, 35 anos. “Nos anos 90 fui a
um show do Guns & Roses, a dez quilômetros
do centro. Terminou quando o metrô já estava
34 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3
c a p a
fechado e, como só havia táxis, cobrando US$
40 por uma viagem que deveria custar US$ 4,
voltamos a pé”, lembra, com um toque de
nostalgia.
No centro e nos bairros de maior poder
aquisitivo, o problema é menor. Em Buenos
Aires, com 12 milhões de moradores, há trens
e algumas linhas de ônibus à noite ligando o
centro à periferia, mas nada circulando entre
os bairros afastados. Essa deficiência aumenta
a desigualdade social na Argentina. “Moro em
um lugar onde o transporte é bom. Mas para
quem está afastado dessa região, em alguns
horários, só de táxi, que hoje poucos podem
pagar”, lamenta Deborah Lapidus, 27 anos,
professora de literatura.
A noite dos moradores e dos turistas que
gastam milhões de dólares nas capitais euro-
péias é mais fácil. Projetos criativos, ainda que
imperfeitos, tornam possível circular à noite,
principalmente nos centros e em bairros movi-
mentados. Amsterdã, com apenas 800 mil habi-
tantes, é uma das mais cosmopolitas capitais
européias. É também um exemplo de raciona-
lização dos transportes públicos, com ciclovias
e transportes integrados. À noite há 12 linhas
especiais de ônibus com tarifas diferenciadas
ligando o centro aos bairros. “Elas chegam a
todas as partes. Nunca tive problemas”,
garante Rob Tuin, 39 anos, editor de uma
revista holandesa. Essas linhas saem em
horários calculados para que os passageiros
O problema passa despercebido pela grande parte da
população que à noite descansa em casa, mas muita
gente trabalha nesses horários ingratos, vai às ruas em
busca de diversão
35NÚMERO 3 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA
possam fazer conexões entre elas e com os trens
noturnos. Todos os ônibus têm câmeras de
vídeo para reforçar a segurança.
Na capital espanhola, a solução encontrada
é similar. Madri tem 26 linhas noturnas dife-
rentes das que operam durante o dia para aten-
der a quase 4 milhões de pessoas. Seus trajetos
integram a maior parte da cidade à noite. “Os
ricos andam de táxi, mas não é necessário. De
1h30m às 6h, as linhas sempre nos deixam
perto de casa. Nunca fiquei sem conseguir
chegar a algum lugar”, elogia o biólogo Gus-
tavo Tomás Gutiérrez, 26 anos. Berlim, capital
alemã com 4 milhões de habitantes, segue o
mesmo caminho (leia seção Atlas, p. 58). Hoje
conta com linhas especiais noturnas que
cobrem os horários nos quais o metrô não
circula. Elas funcionam mesmo nos fins de
semana, quando os trens urbanos rodam 24
horas. O resultado disso é uma vida noturna
efervescente, com bares abertos de madrugada
e muita gente nas ruas. Desnecessário dizer o
que isso significa para a economia da cidade.
“As pessoas usam muito os ônibus na madru-
gada, mesmo porque os táxis são caros demais.
E quando estou sem paciência para esperar vou
de bicicleta mesmo”, diz a DJ e baterista
brasileira, Marie Leão, 35 anos, radicada na
Alemanha. Para quem gosta de pedalar, Marie
escolheu a cidade certa para passar suas últimas
férias no Brasil: o Rio de Janeiro, com a maior
rede de ciclovias do país interligando pratica-
mente todos os bairros da zona sul. A falta de
segurança, no entanto, inibe o uso da bike nas
noites cariocas.
Com mais de 10 milhões de habitantes, Pa-
ris se esforça na busca por soluções inéditas.
O serviço de metrô, responsável por quase 50%
do transporte urbano, com 1,3 bilhão de passa-
geiros em 2002, é interrompido entre 1h e 5h,
quando só os Noctambus, linhas especiais, cir-
culam de hora em hora. “Eles são cheios demais
e os parisienses não estão familiarizados com o
itinerário”, diz Antonia Martineau, divulgadora,
40 anos. Quem mora na Paris “intramuros” ainda
consegue voltar a pé para casa, mas o subúrbio
sofre com a falta de ligação com o centro exu-
A DJ e baterista brasileira, Marie Leão, 35 anos, usaa bicicleta quando está “sem paciência para esperar oônibus” em Berlim, onde mora. No Rio de Janeiro,onde passou as férias, a violência desperdiça opotencial da maior rede de ciclovias do país
36 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3
c a p a
Europa busca soluções
Nos países mais desenvolvidos, a questão da
mobilidade noturna já está em um estágio bem
mais avançado que no Terceiro Mundo.
Algumas cidades e comunidades européias
fazem estudos e apresentam soluções
inovadoras para facilitar a mobilidade noturna.
“Como muitas vezes a administração pública
não se interessa pelo assunto, é fundamental
a participação de ONGs, institutos indepen-
dentes, universidades e associações
comunitárias, que podem começar a envolver
os governos”, conta Tomás Moreira, 40 anos,
coordenador executivo do Institut Pour La Ville
en Mouvement no Brasil, um organismo
dedicado a estimular o debate e a apresentar
soluções para a mobilidade e o transporte.
Fundado há cinco anos, o Ville en Mou-
vement é um dos institutos mais respeitados
do mundo no estudo de mobilidade e trans-
portes. “Se a administração pública muitas
vezes não se interessa, as ONGs, institutos
independentes e as comunidades têm de tomar
as iniciativas e apresentar idéias”, diz Tomás
Moreira. O instituto foi responsável, junto com
a prefeitura de Roma, pela realização do
primeiro Fórum Internacional de Mobilidade
Noturna nas Cidades, realizado na capital da
Itália no ano passado, que reuniu represen-
tantes de cidades européias, operadoras de
transportes, arquitetos, urbanistas,
pesquisadores, estudantes e representantes
de associações que debateram diversas
soluções para o problema.
berante. “Os ônibus que ligam as estações de
trem aos bairros residenciais param às 23h.
Depois, só de táxi para chegar ao banlieu”, diz o
quadrinista Jano, 47 anos, morador de Arcueil,
subúrbio dos mais próximos do centro, onde a
segurança também é um problema. “O metrô à
noite parece assustador, mas é seguro. Já nos
trens de subúrbios há muitos marginais e ne-
nhuma segurança”, reclama o desenhista, que
em seu álbum Paname, sobre a cidade-luz, dedica
algumas obras ao tema.
A atuação e as pesquisas do Institut pour la
Ville en Mouvement (ver quadro) geraram inicia-
tivas originais e eficazes que começam a fun-
cionar em Paris. “Temos serviços de veículos
para buscar jovens em festas de madrugada,
que apanham pessoas em casa com um pequeno
custo adicional. São serviços de demanda
antecipada, nos quais o usuário pode fazer sua
reserva com algumas horas de antecedência”,
explica Tomás Moreira, representante do
instituto no Brasil.
O transporte sob demanda antecipada pode
ser uma boa solução por aqui. “Com o rastrea-
mento de veículos, comunicação com os moto-
ristas e softwares para registrar a demanda, é
possível prestar um serviço eficiente e diferen-
ciado. A possibilidade de reservas pode atrair
para o transporte público pessoas que só usam
o automóvel”, diz Balassiano, que vê aí uma
possível saída para nossas metrópoles, nas quais
segurança e mobilidade são temas indisso-
ciáveis. “É necessário ter boa iluminação, fisca-
lização nos pontos e no acesso aos pontos”, diz
Moreira. O cuidado com os pontos e estações
é mesmo fundamental. “O maior risco em São
Paulo não é o de ser assaltado dentro dos ôni-
bus, mas enquanto os passageiros esperam”, diz
Francisco Masdtrochirico. Na maior cidade bra-
sileira, a simples troca de lâmpadas nas áreas
37NÚMERO 3 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA
I wanna wake up in the City that Doesn’t SleepEm New York, New York, clássico mundial,
Frank Sinatra dizia querer acordar na cidade
que não dorme. E é verdade. Nova York, com
um dos mais eficientes sistemas de trans-
porte no mundo, funciona 24 horas. A mais
importante metrópole do planeta não pára.
“Isso permite que o indivíduo vá a qualquer
lugar quando quiser. E fique na rua até a hora
em que tiver vontade”, diz Steve Williams, 35
anos, motorista da transportadora UPS em
Nova York.
O metrô não é o único, mas o mais eficien-
te dos meios de circulação urbana noturna
em Nova York. “Os ônibus demoram mais
para passar”, explica o agente literário Brett
Kristofferson, 33 anos. O sistema novaior-
quino é utilizado por 4,3 milhões de passa-
geiros por dia, mais de 1 bilhão por ano, e
sofreu melhorias que o deixaram muito se-
guro. Além disso, é integrado a outros sis-
temas de trem, que levam a bairros e cida-
des da periferia, como Jersey City, Newark e
Hoboken. Todos funcionam 24 horas. Isso
permite que muita gente não apenas se
divirta, mas trabalhe à noite. “Vários serviços
funcionam 24h, sete dias por semana. A cidade
não pára, tem sempre gente trabalhando para
atender às necessidades de outras pessoas”,
diz Maya, 23 anos, produtora musical. “Meta-
de dos novaiorquinos é insone e a outra meta-
de trabalha à noite”, brinca Kristofferson.
Um humor desses para falar de trans-
portes públicos é inequívoco bom sinal. “Somos
a cidade que nunca dorme porque contamos
com bom transporte a noite inteira”, confirma
Steve Williams. E, com mais opções, menos
gente tira o carro da garagem, fazendo o
trânsito fluir. Os táxis também se tornam boa
opção. “Não é caro para nossos padrões e, à
noite, são muito rápidos, sem os engarrafa-
mentos”, diz Kristofferson. O metrô é comple-
mentado pelos ônibus, que transportam
anualmente 700 milhões de pessoas por rotas
não servidas pelos trens. Sua eficiência, porém,
na visão dos novaiorquinos, não é a mesma.
“Eles demoram demais. À noite, a única opção
real são os trens”, diz Maya.
Quem tiver a oportunidade de conferir,
em férias ou a trabalho, vai ver a diferença
que um sistema de transporte noturno eficien-
te faz em uma metrópole. É algo tão demo-
crático e marcante que transforma para
melhor a personalidade da cidade. Nova York
consagrou-se como a capital da vida noturna,
com teatros, clubes, boates, restaurantes e
bares abertos até tarde. Uma vida excitante
imortalizada na voz de um dos maiores
cantores de todos os tempos, fascinado, ele
também, com o burburinho na Big Apple
quando as lâmpadas de néon se acendem.
38 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3
c a p a
O serviço de metrô em Paris, responsável por quase 50%
do transporte urbano, com 1,3 bilhão de passageiros
em 2002, é interrompido entre 1h e 5h, quando só os
Noctambus, linhas especiais, circulam de hora em hora
de transporte público já melhorou a
sensação de segurança.
As soluções começam a aparecer, mas não
são simples como parecem. Todos sonham com
metrô 24 horas, mas poucos se lembram que
é necessário parar a linha para manutenção.
“Operar 24 horas é muito difícil”, descarta
Balassiano. Para ele, qualquer solução para o
transporte urbano no Brasil, num primeiro
momento, pressupõe a adoção de subsídios.
“Com poucos passageiros, o sistema precisa
de bilhetes mais caros para dar lucro ou de
subsídios governamentais. Isso geraria o
aumento do número de passageiros. Com
demanda maior, numa segunda etapa, esses
subsídios podem cair”, projeta. Assim, haveria
mais gente trabalhando, circulando e se
divertindo nas ruas, aumentando a circulação
de dinheiro e a geração de empregos — no
horizonte, a redução dos terríveis efeitos da
desigualdade social. A luz no fim do túnel
pode ser de um ônibus ou trem se apro-
ximando para pegar um passageiro perdido na
madrugada. ■
40 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 2
c o m p o r t a m e n t o�
P O R: T E R E S A B U C H E R
Nas ruas do planeta, garantir a travessia segura do pedestre é um desafio
40 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 2
c o m p o r t a m e n t o�
Faixa não é enfeite nas ruasFaixa não é enfeite nas ruas
41NÚMERO 3 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA
m 1968, quando os Beatles
ilustraram a capa do álbum
Abbey Road com os quatro
ídolos cruzando uma faixa de
pedestre, as metrópoles já
tinham seus motivos para se preocupar com o
assunto. É verdade que os carros não eram tão
velozes e a fúria do trânsito não matava tanto.
Mas o mundo mudou e os administradores das
cidades hoje se desdobram em busca de idéias
para humanizar as esquinas. Para se ter uma
idéia da tragédia que o singelo ato de atravessar
a rua pode causar, no Brasil os atropelamentos
vitimam sete pessoas por hora. No mundo todo
aumenta a cotação da criatividade no trata-
mento da velha faixa de pedestre: cruzamentos
de zebras, de pelicanos, linhas de zigue-zague
ou simplesmente faixas à moda antiga.
Palco do eterno conflito entre motoristas e
pedestres, o trânsito é a expressão, no sistema
viário, da disputa pelos espaços públicos,
acirrada pela falta de ordem e equilíbrio. A es-
cassez de policiamento, sinalização e cons-
ciência agrava o problema nos países com es-
trutura educacional deficitária e cidadania em
fase de amadurecimento. Nas cidades brasi-
leiras, basta sair às ruas para flagrar duas es-
E
tres no confronto diário com os motores, o
comediante japonês Kenji Kawakami radicalizou
e lançou uma faixa de pedestre portátil. É um
rolo carregado debaixo do braço pelas ruas para
ser aberto onde não houver travessia certa e
segura. Exageros à parte, o avanço da consciên-
cia garante aos moradores das cidades européias
e norte-americanas uma tranqüilidade bem
maior do que no Terceiro Mundo.
Nos Estados Unidos e Canadá, a preferência
é sempre do pedestre onde há faixas sem
semáforos. Na Inglaterra, Austrália, Alemanha,
França, Holanda e Suécia, também há duas ma-
neiras de se atravessar a rua. A primeira é con-
trolada pelos sinais. Nos cruzamentos onde
não há semáforos, basta pôr os pés na faixa e
os carros são obrigados a parar. Em algumas
cidades, a simples localização do pedestre ainda
41NÚMERO 3 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA
pécies arredias às regras que a
civilização já deveria ter tornado
universais: motoristas que não
param nas faixas e pedestres que
resistem em usá-las adequada-
mente.
Na busca por idéias para
reforçar a segurança dos pedes-
Os quatro beatles cruzam faixa de pedestre na capado histórico álbum Abbey Road
O japonês Kenji Kawakami radicaliza elança a faixa portátil
CA
RLO
S
MA
GN
O
42 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 2
c o m p o r t a m e n t o�
na calçada, diante da faixa, é
suficiente para interromper o
trânsito.
Acostumados à selvageria
dos nossos cruzamentos, bra-
sileiros que vão morar no ex-
terior têm a tendência de es-
tranhar tanta civilidade e cos-
tumam ficar literalmente com
o pé atrás, apegados ao ditado
de que o seguro morreu de ve-
lho. “As faixas aqui são res-
peitadas, a penalidade é grave
e dá até cadeia, mas não posso
garantir se alguém vai ou não
ser atingido por um carro ao
atravessar”, diz Clívia Cara-
cciolo, jornalista brasileira da
rádio Nederland, na pacata
cidade holandesa de Hilver-
sum. Em Hamburgo, na Ale-
manha, o gaúcho Gerson
Flebbe conheceu o outro lado
da moeda que regula as
relações no trânsito dentro do
princípio universal de que
direitos pressupõem deveres.
Certa vez ele esperava o sinal
fechar para os carros na
esquina. Estava “louco de pres-
sa” e teria atravessado antes se
não houvesse dois policiais
próximos. “Assim que o sinal
fechou para os carros, eu atra-
vessei antes de abrir o verde
para mim. Quase fui multado
em 60 euros”, conta Gerson.
“O trânsito aqui é bem or-
ganizado e em muitos sinais há
câmaras instaladas.”
“Aqui na Suíça a preferência
é do pedestre. Quando uma
pessoa atravessa a rua, os carros
são obrigados a parar, mas é
claro que é preciso ter bom
senso porque às vezes estão
muito em cima e fica difícil”,
pondera a brasileira Cláudia
Vittet, gerente de pessoal do
Museu do Rath, em Genebra.
“Não precisa ninguém ficar
tomando conta, mas perto
das escolas, na entrada e na
saída, ficam umas mulheres
pagas pela prefeitura”, conta
Cláudia.
No Cairo, com seus quase
16 milhões de habitantes, é
difícil encontrar semáforo.
Em alguns locais a polícia
egípcia ajuda as pessoas a
atravessarem, mas sem a in-
tervenção da força policial o
confronto entre máquina e
homem é iminente e os mo-
toristas enterram a mão na
buzina a cada investida do pe-
destre, quando não ameaçam
passar por cima. Em Nova
Deli, Índia, os pedestres sem
Mulheres seguram os veículosna entrada e saída das escolasde Genebra
Cena comum em Nova York: Nas cidades americanas e canadenses, a preferência é sempre dopedestre onde há faixas sem semáforos
DIV
ULG
AÇ
ÃO
43NÚMERO 3 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA
pelo fato de nossa capital ser
jovem, planejada e construída
quando o País já tinha noção
nítida dos prejuízos provo-
cados pelos engarrafamentos.
Uma ampla campanha de
conscientização e o combate
aos excessos dos veículos in-
dividuais, iniciados no go-
verno Cristóvam Buarque,
criaram um comportamento
invejável. “Faixa de pedestre
é o nosso acarajé”, brincou o
jornalista e escritor Rogério
Menezes em uma crônica no
Correio Braziliense, referin-
do-se ao orgulho dos brasi-
lienses pela fama de cidade
civilizada.
Segundo o chefe da Divisão
de Processamento de Dados do
Detran da Paraíba, João Eduar-
do Moraes de Melo, Brasília é
o modelo nacional de obediên-
cia ao direito do uso da faixa.
condições físicas para correr
na travessia são aconselhados
pela polícia a carregar bengalas
fluorescentes para atrair a
atenção dos motoristas.
As faixas no Brasil quase
sempre ficam perto de esqui-
nas, muitas delas com semá-
foros, mas os especialistas
chamam a atenção para seu
mau estado de conservação.
Faltam pintura, iluminação,
tachinhas luminosas, sinais
adequados, policiais e guar-
das. O jeito é apelar para amea-
ças mais explícitas, como as
câmeras fotográficas nos cru-
zamentos, providência cara
mas necessária para econo-
mizar vidas.
Em vigor desde 1998, o
Código Brasileiro de Trânsito
traz um capítulo inteiro para
pedestres e condutores de veí-
culos não-motorizados. Negar
preferência aos que atravessam
na faixa pode custar R$ 172,99,
valor irrisório para grande
parte dos apressadinhos no
volante. Não tirar o pé do ace-
lerador em frente a escolas,
hospitais, estações de embar-
que e desembarque e locais de
intensa movimentação de pes-
soas pode resultar no recolhi-
mento da carteira e na reten-
ção do veículo, além de multas.
As capitais costumam sin-
tetizar a história e a cultura
dos países. Para os moradores
de Brasília, felizmente esse
conceito não se aplica, não só
Ele lembra como o uso exem-
plar das faixas reduziu os atro-
pelamentos e parabeniza a ca-
pital pelos sete anos de Educa-
ção de Trânsito. Em 1997 havia
300 faixas no Distrito Federal
e hoje chegam a 3.300. Já o en-
genheiro Paulo Guerra, mestre
em Transporte pela UnB, acha
que a mudança começou a de-
sandar quando as multas foram
reduzidas. O temor de que a
chamada “indústria das mul-
tas” pareça impopular a uma
parcela do eleitorado costuma
levar os governantes à flexibi-
lidade, como se a perda de vidas
decorrente de uma fiscalização
frouxa não justificasse a rigi-
dez.
O Brasil prevê a aplicação
de multas também para os
pedestres. O Contran (Con-
selho Nacional de Trânsito) se
inspirou em experiências bem
Flagrante no centro do Rio de Janeiro: “Estou atrasado”, “não deu tempo de frear” e “o sinalfechou muito rápido” são as principais desculpas
CA
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44 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 2
c o m p o r t a m e n t o�
sucedidas em países como a
Suíça e o Japão para criar nor-
mas que vão de simples multas
(25 Ufirs) à prestação de ser-
DIV
ULG
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ÃO
viços comunitários e à fre-
qüência compulsória em cur-
sos de educação para o trân-
sito. A OMS (Organização
Mundial da Saúde) costuma se
pronunciar sobre o assunto
lembrando sempre que a res-
ponsabilidade pela convivência
harmônica e saudável no
trânsito é de cada ser humano.
Prevenir acidentes requer
ações tão simples como efi-
cazes: basta que todos se com-
portem com respeito mútuo e
obediência às leis. A preo-
cupação com a estética na pin-
tura das faixas em muitas
cidades é louvável por mani-
festar uma preocupação com a
boa aparência dos espaços
públicos, mas a faixa, decidi-
damente, não é enfeite. ■
O ministro das Cidades, Olívio Dutra, durante a campanha “Eu queroa faixa da vida”, coordenada pela ANTP
46 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3
c o m b u s t í v e l�
idades com ar menos poluído,
transporte mais barato e até
melhora nas contas externas
do país são resultados espe-
rados da substituição do diesel
pelo gás natural veicular (GNV) como com-
bustível para os cerca de 100 mil ônibus que
rodam nas cidades brasileiras. A expectativa de
tantos benefícios, contudo, não tem sido
suficiente para ultrapassar os obstáculos no
caminho do projeto. A primeira barreira é o
preço. Empresários do setor são favoráveis à
mudança pela vantagem ambiental e possi-
bilidade de redução da tarifa, mas reivindicam
da Petrobras e dos governantes a responsa-
bilidade pelos pesados investimentos que o uso
do gás natural exige, como a mudança da frota
com aquisição de ônibus 30% mais caros.
Defendem também a garantia de compe-
titividade do GNV em relação ao diesel por não
menos do que três décadas.
“Programa de gás para vingar deve ser pelo
menos de 30 anos: dez para trocar a frota, dez
para recuperar o investimento e mais dez para
consolidar o programa. A gente quer garantia
clara de uma política de preço especial e van-
tajosa em relação ao diesel”, reivindica Marcos
Bicalho dos Santos, diretor-superintendente da
CP O R: N I C E D E P A U L A
GNV, um sonhoainda distante
Projeto de substituição do
diesel pelo gás natural
veicular na frota de ônibus
urbanos esbarra em entraves
operacionais e financeiros
c o m b u s t í v e l�
47NÚMERO 3 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA
pressão mundial em favor de medidas ambien-
tais — a troca reduz em cerca de 60 % a emissão
de gases tóxicos — há ainda ganhos importan-
tes nas contas externas. Segundo a NTU, o
uso do gás natural dispensaria a importação
de 55 milhões de barris de petróleo por ano,
volume necessário à produção do diesel usado
pelos ônibus urbanos, reduzindo as importa-
ções em US$ 2 bilhões anuais. De quebra, aju-
daria a escoar parte do gás que o país é contra-
tualmente obrigado a pagar à Bolívia, mesmo
sem consumo, e aumentaria a viabilidade eco-
nômica das reservas de gás descobertas nas Ba-
cias de Santos, Campos e Espírito Santo.
A conversão da frota está entre as medidas
previstas no relatório final que o grupo de estu-
dos para barateamento de transportes públicos
– montado pela Casa Civil e hoje sob coorde-
nação do Ministério das Cidades – está prepa-
rando. Também deve ser assinado um convênio
entre a Petrobras e os ministérios das Cidades
e de Minas e Energia para estabelecer uma polí-
tica nacional para o uso do gás em transporte
de passageiros. “É o primeiro passo de um
processo que só avança se for empurrado pelo
governo federal. As perspectivas são boas:
temos gás sobrando, vantagens ambientais,
tecnologia experimentada e nossa indústria já
Associação Nacional de Transporte de Passa-
geiros (NTU). Segundo Bicalho, o combustível
representava 10% do custo operacional do setor
e passou para 25% nos últimos três anos devi-
do à disparada do preço do diesel no mercado
internacional. Ele calcula que a fixação da tarifa
do gás natural em 50% do preço do diesel
possibilitaria uma redução imediata de 12,5%
no valor pago pelo passageiro.
A pressão dos empresários não é sem mo-
tivo. Experiências anteriores em São Paulo e
Natal acabaram frustradas. A capital do Rio
Grande do Norte abrigou o projeto pioneiro do
país, chegando a ter 15% dos ônibus movidos a
GNV. O programa foi para o espaço no início
dos anos 90, sufocado por problemas de todos
os lados. “No início, a a Petrobras e a Mercedes
Benz, fabricante dos ônibus, bancavam tudo.
Com o tempo a manutenção da Mercedes foi
tirada, a Petrobras começou a cobrar pelo gás,
primeiro 70%, depois 80% do preço do diesel, e
houve problemas por causa do cilindro de gás,
responsável por uma tonelada a mais de peso”,
conta Eldo Laranjeiras, presidente da Federação
das Empresas de Transportes de Passageiros do
Nordeste (Fetranor).
O governo federal tem razões de sobra para
se empenhar na mudança. Não bastasse uma
48 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3
c o m b u s t í v e l�
exporta motores a gás. O presidente Lula, em
reunião com a Frente Nacional de Prefeitos,
se disse interessado na mudança. Mas não se
troca uma frota do dia para noite. É um pro-
cesso de longo prazo, que não ocorre sem
vontade política do governo federal e o
comprometimento dos municípios”, diz Luiz
Carlos Bertodo, diretor de Cidadania e Inclusão
Social do Ministério das Cidades e coordenador
do grupo de estudos.
A Petrobras estimula a troca do combustível.
Ildo Sauer, diretor de Gás e Energia da empresa,
considera que problemas em programas passa-
dos, como o de Natal, fazem parte de “outra
história”, porque hoje a qualidade do gás é
muito melhor e os novos ônibus têm desem-
penho, manutenção e tecnologia mais avança-
dos. “Já existe uma proposta de incentivo da
Petrobras, com ourtoga de contratos especiais
para as distribuidoras garantindo que o gás não
ultrapassará 55% do preço do diesel durante
dez anos”, explica.
O prazo fica longe dos 30 anos reivindicados
pelos empresários. “Um ônibus dura no má-
ximo cinco anos, estamos garantindo o preço
por dez. Já dá para ver se é bom e se quer manter.
Não há ônibus que dure 30 anos”, rebate Sauer.
Para o executivo, o maior obstáculo ao progra-
ma é a dificuldade de financiamento para a re-
novação da frota. É isso, diz, que está blo-
queando um projeto da Petrobras em parceria
com a USP para colocar 500 ônibus a gás nas
ruas de São Paulo. A empresa tem um projeto
piloto no Rio com um ônibus a gás da viação
Rubanil, na linha 350 Irajá-Passeio, e roda cerca
de 300 quilômetros por dia.
Maior consumidor de GNV do país, o Rio
conta com cerca de 290 mil veículos a gás,
incluindo praticamente toda a frota de táxis.
Nos últimos cinco anos, o número de postos
de abastecimento pulou de 19 para 300. “Há
um ganho ambiental, valorização do combus-
tível produzido no Rio e projeto social de re-
dução do custo. Aceleramos o licenciamento
ambiental e fixamos o ICMS em 12%, contra
30% da gasolina”, explica o secretário estadual
de Energia, Indústria Naval e Petróleo, Wagner
Victer. Quem já usa o GNV aprova o desem-
penho e a economia. “É um excelente negócio
e permite uma boa economia. Só espero que o
aumento do consumo não faça o preço subir”,
torce o taxista Luiz Augusto Marinho, 37 anos
de idade e oito na praça do Rio.
Para o Movimento Nacional pelo Direito ao
Transporte, o gás é uma alternativa para a
redução de tarifa e a inclusão social via trans-
portes. O MDT também se preocupa em esti-
mular estados e municípios a usarem energia
renovável, seguindo os critérios do Protocolo
de Kioto, para se beneficiarem com a venda de
crédito carbono e aplicar esses recursos em
infra-estrutura de transportes. O engenheiro
Antônio Mauricio Ferreira Neto, ex-diretor de
Regulação do Ministério das Cidades e con-
A empresatem um projetopiloto no Riocom um ônibusa gás da viaçãoRubanil, nalinha 350Irajá-Passeio,e roda cercade 300quilômetrospor dia.
48 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3
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49NÚMERO 3 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA
Clima de confortoExperiência e tecnologiamovimentando pessoas.
Completa linha dear condicionado.Para vans, ambulâncias,
cabines e veículos especiais,
ônibus rodoviário, urbano
e microônibus.
Webasto Climatização do Brasil S.A. - Av. Rio Branco, 4688 - Bairro São Cristovão - CEP: 95060-650Caxias do Sul - RS - Brasil - Fone: + 55 (54) 2101.5700 - Fax: + 55 (54) 2101.5747 - [email protected]
CC 350
sultor da ANTP, vê na substituição do diesel
por GNV um problema complexo de mudança
na matriz energética do país, que passa necessa-
riamente pelos municípios. “O mercado não
se viabiliza se o projeto não estiver no plano
diretor dos municípios, que devem ser indu-
zidos a isso, mas não obrigados, porque senão
deixam de concorrer ao crédito carbono previsto
no Protocolo de Kioto”, diz. Outro impasse é a
cadeia de reaproveitamento dos ônibus no Bra-
sil. Depois de rodarem nas capitais, eles vão
sendo vendidos para cidades pequenas do in-
terior até encerrarem a vida útil transportando
bóias-frias. O uso do gás interrompe essa tra-
jetória pela dificuldade de abastecimento de
GNV fora dos grandes centros.
“Essa é uma das grandes questões do trans-
porte urbano. O empresário de ônibus é um
revendedor de veículo, processo que começa
depois de cerca de três anos de uso. Se tentarem
fazer um programa que impeça a utilização da
frota num canto que não tem gás, pode esque-
cer. Ninguém vai comprar um ônibus 25% mais
caro e que não pode ser revendido”, diz o
engenheiro. Segundo ele, só há chance de o
programa dar certo se a conversão para o gás
puder ser revertida. O argumento da revenda
não é bem recebido pelas autoridades públicas,
como o ex-presidente do Fórum Nacional dos
Secretários de Transportes, Gilmar Tatto. Por
ser uma concessão, segundo ele, o transporte
público não deveria ser pensado em termos de
revenda de ônibus, “mas de qualidade dos ser-
viços prestados à população”. ■
50 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3
c r ô n i c a�
O Bussunda tinha vinte anos menos cos ficariam na deles. Nada mais natural, por-
tanto, do que sair da faculdade, ir até o Palácio
Guanabara e pedir um ônibus para ir a um con-
gresso de universitários — oba, farra! – no Ceará
– oba, praia!
Para nossa consternação e incredulidade,
deram o ônibus. Não um de estrada, infeliz-
mente não tinham como consegui-lo, mas um
de rua, desses que se pega nas calçadas. O es-
panto e o medo nos confundiam, apesar de nos
assegurarem de que seriam os novíssimos Volvo
Padron, recém-lançados, grandes, amplos, con-
fortáveis e modernosos.
Partimos a bordo de nossa espaçonave en-
vidraçada rumo ao desconhecido. Desconhecido
mesmo, porque os motoristas também não eram
e aquele hábito adolescente de
andar desleixado e desarru-
mado. Era esse o sujeito que
nos liderava em uma audiên-
cia no Palácio Guanabara. Pa-
ra pedir um ônibus ao Bri-
zola.
Assim falando pode pare-
cer estranho, mas depois de
dez anos de ditadura e mais
outros tantos de nem tão du-
ra assim, a gente tinha de
usufruir toda a liberdade en-
quanto durasse – ninguém
sabia quanto tempo os mili-
c r ô n i c a�
P O R L U I Z H E N R I Q U E S N E T O
O ônibus do Bussunda
OS
VA
LDO
P
AV
AN
ELLI
51NÚMERO 3 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA
de estrada, nunca tinham saído do Rio de
Janeiro e não faziam a menor idéia de on-
de ficava o Ceará. Enquanto houvesse placas
indicando o caminho, eles se virariam. A estrada
parecia ser uma entediante e imensa reta até
Fortaleza e ainda assim eles conseguiram se
perder várias vezes. A mais bizarra foi em Vi-
tória, quando o condutor parou aquele veículo
empanturrado de pessoas – cantando, tocando
violão e embebedando-se – junto a um bêbado
comendo um cachorro-quente às quatro da
manhã e perguntou, naturalmente: “ei, amigo,
qual o caminho para Fortaleza?”
Talvez se perder várias vezes e levar três dias
e meio para alcançar o Ceará não fosse tão duro
assim se tivéssemos banheiro, poltronas-leito,
suspensão especial, ar-condicionado ou pelo
menos cortinas. Se bem que com elas não
acordaríamos com os primeiros sinais da aurora
para descobrir que o sertão do Nordeste, em
julho, é gelado de manhãzinha. Evidentemen-
te não tínhamos agasalhos. Sorte que o frio
não durava muito e o sol causticante logo trans-
formava tudo em um forno. Parecia ser im-
possível dormir ali dentro. Exceto para o mo-
torista ao volante.
Sendo dois os pilotos, para o rodízio, um
branco e um negro, e chamando-se Manhães o
branco, logo o negro foi apelidado de Noites.
Os dois se revezavam entre nossa cachaça e o
volante naquela estrada com uma sinuosidade
de top model. Assim como eles faziam o seu
rodízio, nós fazíamos o nosso, para conversar
com eles e mantê-los acordados.
Seria injusto atribuir a Noites e Manhães
todo o atraso da jornada. Lembrem-se que não
havia banheiro e é um longo caminho até For-
taleza. A facção que bebia demais puxava o coro
“Rá, rá, rá, parada pra mijar” e os mais contidos
respondiam “rá, rá, rá, só no Ceará”, até que
uma moça apertada, com expressão compu-
ngida, decidia a parada.
Também não havia bagageiro. O ônibus era
um imenso pau-de-arara, com pessoas deita-
das no chão entre trouxas e mais trouxas de
roupas. Alguns fizeram questão de levar para o
Ceará objetos muito úteis como um saxofo-
ne. Ficávamos ali, deitados sobre e sob aquelas
bagagens todas e invejando profundamente o
Torreão, que numa parada teve a brilhante idéia
de comprar uma rede. Pendurou-a no corrimão
junto ao teto e conseguiu o leito mais confor-
tável, perene e imune à movimentação nos ban-
cos e corredores. Além da rede, ele se lembrou
de levar a namorada, o que era mais um motivo
de inveja.
Chegamos ao destino após quase quatro
dias. Oba, farra! Oba, praia! Oba, mais farra!
Oba, mais praia! Epa, Volvo Padron de novo!
Hora de voltar.
Por sorte, estávamos exaustos demais, uma
semana de Ceará e festa, para nos irritarmos
com a viagem, mesmo com o toque de sadismo
de Noites e Manhães. Quando calculávamos
cinco horas para chegar em casa, eles pegaram
uma estrada errada. Após horas e horas de via-
gem, na próxima parada, quando achamos que
já estávamos quase na Avenida Brasil, desco-
brimos que faltavam oito horas para o Rio.
Como não há bem que sempre dure nem
mal que nunca acabe, finalmente chegamos ao
campus, em pleno dia de aula. Saltamos, aque-
les que podiam andar ajudando aos outros,
alguns beijando o solo, incrédulos, outros
observando a universidade e os universitá-
rios com o olhar vazio, cheios de histórias e
cicatrizes (ora, bolas, o coração partido não
conta?). Não trocaria aquela viagem por nada.
Foi uma aventura do começo ao fim, coeren-
te com sua época. Começávamos, nós e o país,
a descobrir a liberdade. E para desfrutar da
liberdade de ir e vir, na cabeça de garotada
que só anda em bando, nada melhor do que
um Volvo. ■
52 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3
m ã o d u p l a�
PREVENIR É O MELHOR REMÉDIO • O cres-
cimento exagerado das cidades, sem
planejamento, somado às necessidades do
homem moderno, exige um número cada vez
maior de deslocamentos. Eles precisam ser
rápidos. No Brasil, o transporte individual
historicamente simbolizou essa rapidez com o
automóvel. Ele sempre foi incentivado pelos
governos, com redução de impostos ou
investimentos em rodovias. O poder da
propaganda também contribuiu para seduzir o
consumidor de todas as classes, dando aos
veículos um valor agregado para além de seu
significado e das necessidades da população.
Como conseqüência dessa política, crescem
não
sim JOÃO GONÇALO EUGÊNIO
Arquiteto e urbanista, é ex-assessor executivo daPresidência da Empresa Municipal de Desenvolvimen-to de Campinas - EMDEC
ACIDENTES NO TRÂNSITO:
Com mais de 13 anos de militância na área e
tendo me especializado no novo Código de
Trânsito Brasileiro (CTB), tenho de ser taxativo
a esse respeito: fiscalização eletrônica não acaba
com a mortalidade no trânsito.
A fiscalização eletrônica, com o advento do
novo CTB, que conferiu competência aos
municípios para fiscalizar o trânsito, tornou-
se um dos alicerces da chamada “indústria da
multa”, beneficiando apenas prefeituras e
empresas particulares, responsáveis por sua
instalação e operacionalização.
Não é mais do que uma modalidade de
arrecadação, sem nenhum custo para a
municipalidade, pois o percentual cobrado pelas
JAIR LEAL
Advogado tributarista e presidente da Aprovesp –Associação dos Proprietários de VeículosAutomotores no Estado de São Paulo, fundada emjulho de 1991
a frota nas ruas e os riscos de acidentes muitas
vezes resultantes da imprudência e do excesso
de velocidade. É claro que existem muitos outras
causas: vias mal projetadas ou mal conservadas,
falta de sinalização, uso do álcool; mas é inegável
a contribuição da velocidade e do avanço sobre
o sinal vermelho para o número de mortos.
Cabe a municípios e estados investir em
políticas permanentes de vigilância e fiscaliza-
ção para coibir tais infrações. E a adoção dos
radares tem se mostrado eficiente na ampliação
da segurança no trânsito. Quando o motorista
sabe da existência desses equipamentos em
determinado ponto, fica mais atento, não excede
a velocidade, e, conseqüentemente, os aciden-
tes diminuem.
A adoção dos radares, no entanto, não é
tão simples. Em que pesem a aprovação pública
e sua incontestável eficiência na redução dos
53 NÚMERO 3 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA
< >empresas particulares contratadas - e detentoras
do sistema - acaba saindo do bolso dos
proprietários de veículos.
Quando ainda se discutia o anteprojeto do
CTB, em 1994, foi apresentada uma emenda
criando um juizado especial de trânsito, opção
que, à época, foi considerada muito cara pelo
relator da proposta. Afinal, um juizado especial
de trânsito certamente acabaria com a receita
das multas.
Radares eletrônicos reduzemacidentes de trânsito?
acidentes, a política de fiscalização eletrônica
é alvo rotineiro da crítica de infratores contu-
mazes. Sabe-se lá por que motivação, ganha
espaço na mídia. Não é sem razão que os mu-
nicípios precisam adotar total transparência,
embasada em laudos técnicos para escolha da
via, a confiabilidade dos equipamentos e ampla
sinalização, derrubando qualquer argumen-
tação contrária.
Em Campinas, os resultados da fiscalização
eletrônica, aliada às políticas de educação de
trânsito, são significativos na redução dos
acidentes e mortes. Antes dos radares, a cidade
chegou a registrar 181 vítimas fatais/ano no
trânsito. Hoje, mesmo com o crescimento da
frota, o índice é 51,39% inferior ao de dez anos
atrás. Em 2003, foram 88 mortes. É essa política
em defesa da vida que fragiliza o discurso da
“indústria da multa”. Afinal, 80% dos carros
registrados na cidade não receberam sequer
uma multa e 13% foram penalizados com uma
única notificação ano passado.
O grupo de infratores é cada vez menor. Uma
parcela pequena que produz a “barbárie”, apos-
tando numa cultura na qual o carro é instru-
mento de poder e guerra, põe em risco a popu-
lação e ainda exige sair impune. Não há dúvida
que a prevenção é o melhor remédio contra os
acidentes. A visão sobre os radares deve partir
do ângulo da prevenção – e ser encarada como
punição só a partir da decisão do motorista em
exceder os limites.
No Brasil, onde o trânsito promove resul-
tados de uma guerrilha urbana, com mais de
trinta mil mortos/ano, as autoridades devem
imprimir esforços em defesa da vida. Não
podem abrir mão desses equipamentos, que
tantas vidas salvam cotidianamente.
O antídoto poderia ser outro, mas este
não parece interessante. Considerando que
92% dos acidentes fatais se devem a atro-
pelamentos, além de buscar uma maior cons-
cientização dos motoristas, seria necessária
uma política pública, com base em pena al-
ternativa, fazendo com que o infrator tenha
de pagar, possivelmente até com trabalhos
civis na área de trânsito, já que o objetivo
seria educá-lo.
54 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3
e x p a n s ã o�
P O R: I N E S G A R Ç O N I E I V A N F E R N A N D E S
A rede cresceA expansão do metrô
em São Paulo: mais
mobilidade, integração e
inclusão social
México, por exemplo, são 191 quilômetros. Por
isso, a Companhia do Metropolitano de São
Paulo quer mais.
O sonho é antigo. Novas linhas e estações
são eternas promessas de campanha. Talvez por
isso, para que funcionem sempre como armas
do jogo eleitoral, é que demoram a se tornar
realidade. Mesmo que tudo corra nos trilhos,
o atual plano de expansão só deve se tornar
realidade em 2008. Desta vez, a promessa –
mais uma delas – é fazer, até lá, a entrega de
uma nova linha, a ampliação de outra e a aber-
tura de mais sete estações. Resultado: mais
15,7 quilômetros, ou um aumento de 27% da
malha. Antes disso, em 2006, serão inaugu-
radas duas estações da Linha Verde (que
interliga os nobres bairros da região da Avenida
Paulista). E quando tudo estiver pronto, outro
A LinhaAmarela estáplanejadadesde os anos80 e o início desua construçãofoi prometidopara 1994.Só agora,dez anosdepois, estásaindo daspranchetas
uando foi inaugurado, em
1974, o metrô paulistano ligava
apenas bairros da zona sul.
Depois partiu rumo ao centro
e só na década de 80 é que se
democratizou como meio de transporte, che-
gando às zonas norte, leste e oeste. Seus 57,6
quilômetros de trilhos se transformaram em
referência de “tudo de bom” no transporte de
massas, venerado pelos usuários, mas conti-
nuam insuficientes para os 11 milhões de ha-
bitantes de São Paulo. O sistema tem capa-
cidade para transportar 2,5 milhões de passa-
geiros diariamente, mas, para se ter uma idéia,
os 8 milhões de moradores da grande Paris
dispõem de 567 quilômetros. Até capitais de
países com situação semelhante à brasileira
possuem redes mais extensas. Na Cidade do
Q
55NÚMERO 3 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA 55NÚMERO 3 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA
Na Chácara Klabin, bairro de classe média na rota do metrô, amoradora Teresina Conte não está nem aí para as britadeiras: “Ah, vaimelhorar muito.”
PA
ULO
G
IAN
DA
LIA
sonho dos passageiros poderá se tornar reali-
dade: a baldeação, ainda escassa, entre as
próprias linhas do metrô e destas com os trens.
Alguns bairros viraram verdadeiros cantei-
ros e, a julgar pelo andamento das obras, tudo
indica que as linhas serão de fato entregues
no prazo. Os usuários, que têm no metrô um
símbolo de excelência no tratamento, já se an-
tecipam nas comemorações. Na Chácara Klabin,
bairro de classe média da zona sul que entrará
na rota do metrô, a vizinhança nem liga para o
barulho das britadeiras até as oito da noite.
Nem mesmo o pequeno espaço que sobrou para
os pedestres parece incomodar. “Para passar pela
rua atrapalha um pouco, mas tudo bem. Eu uso
o metrô todo dia, poderei descer em frente ao
meu estágio”, anima-se a estudante Graziele
Dias, de 21 anos. Já a aposentada Teresina Conte,
de 58 anos, há 29 moradora da região, quer
menos carros nas ruas: “Ah, vai melhorar muito.
O trânsito vai diminuir”, espera.
O professor Robinson Henriques Alves, 36
anos, vizinho da futura estação Klabin,
também espera. E jura esquecer o transtorno
e a poeira de hoje. “Com a estação na porta,
vou usar muito mais o metrô. O transporte
no bairro vai melhorar.” Em São Paulo, é
natural que a melhora do trânsito seja, para
muitos, a principal expectativa em relação ao
poder público. Expectativa capaz de se manter
intacta por anos a fio.
A Linha Amarela está planejada desde os
anos 80 e o início de sua construção foi pro-
metido para 1994. Só agora, dez anos depois,
está saindo das pranchetas, como se não fosse
de fundamental importância para a cidade: será
a primeira a permitir conexão com outras três
linhas de metrô e uma de trem. O ato de
“baldear” – pular de uma linha para outra, do
56 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3
e x p a n s ã o�
metrô para o trem e vice-versa – faz qualquer
paulistano feliz da vida. Tal alegria só será
possível graças aos empréstimos do Banco
Mundial e do JBIC (Japan Bank Internacional
Corporation). São R$ 500 milhões do Estado e
US$ 418 milhões dos órgãos internacionais
para as obras. As 12 estações da Linha Amarela
vão beneficiar 900 mil, um aumento de quase
um terço nos números atuais.
InclusãoAlém de melhorar a vida de passageiros e
motoristas e dar um alívio à cidade, o metrô
integra classes sociais. A Linha Amarela, além
da inauguração prometida para 2008, prevê
mais sete estações – sem data prevista para a
O professor Robinson Henriques Alves com os filhos, vizinhos de uma estação em construção:“Vou usar muito mais o metrô. O transporte no bairro vai melhorar.”
PA
ULO
G
IAN
DA
LIA
inauguração – que farão ligações entre bairros
pobres como a Vila Sônia e áreas de alto padrão
como Higienópolis, onde residem celebridades
como o ex-presidente Fernando Henrique
Cardoso. Uma região de nome parecido mas
condição social inversa também está nos planos
do metrô: Heliópolis, uma das favelas mais
populosas, vai ganhar a estação Sacomã. As
obras desta fase, no entanto, ainda dependem
de parcerias com a iniciativa privada. A idéia é
repassar os direitos de operação da linha por
até 30 anos.
Outra parceria que promete festa será
firmada entre os governos estadual e municipal.
Quem garante é Sergio Salvadori, diretor de En-
genharia e Construções da Companhia do Me-
tropolitano. “Um acerto com a Prefeitura pode
fazer a estação Faria Lima nascer já em 2008.
No passado, foi na parceria entre os dois gover-
nos que a Linha Verde foi ampliada em duas
estações, alcançou outros bairros e facilitou a
vida de milhares de paulistanos”, explica.
Idéias não faltam às cabeças que planejam
o metrô. Algumas parecem irrealizáveis. Quem
imagina, por exemplo, o metrô chegando à
cidade vizinha de Taboão da Serra? É difícil,
principalmente porque a malha ainda não al-
cançou sequer os bairros paulistanos necessá-
rios, mas está lá, nos planos dos técnicos. Outro
passo, este mais perto de virar realidade, será
ampliar em 2,2 quilômetros a Linha 2, até Ta-
manduateí e Vila Prudente, regiões pobres, dis-
tantes do centro e de grande densidade demo-
gráfica. “A Vila Prudente é um pólo importan-
tíssimo pela população que poderá ser aten-
dida”, diz Salvadori. Não há data para essa etapa
começar. Se não demorar muito, a cidade da
garoa ficará eternamente grata. ■
58 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3
� a t l a s
m 2005, a Alemanha come-
mora 15 anos de reunificação.
Por quase cinco décadas, de-
pois da Segunda Guerra, o país
foi dividido em dois. Berlim, a
atual capital, foi cortada ao meio por uma parede
que impedia a circulação. Hoje, sem o Muro,
E
P O R E D M U N D O B A R R E I R O S
Uma cidade reunidaBerlim
seus 3,5 milhões de moradores se movimentam
livremente entre as duas ex-metades, bene-
ficiados por um dos sistemas de transporte mais
eficientes do mundo. As antigas redes inde-
pendentes, cheias de particularidades, foram
interligadas em um processo que culminará na
Copa do Mundo do ano que vem, com a inau-
MES
SE-B
ERLIN
guração da nova estação cen-
tral berlinense.
Nas ruas largas não se
vêem engarrafamentos. Os
automóveis são minoria na
cidade com a maior área verde
por habitante da Europa.
Executivos pedalam para o
trabalho de terno e as mães
levam seus bebês em
carrinhos- reboque. Quem não
vai de bicicleta pode usar os
super eficientes bondes elé-
tricos. Nas principais paradas,
letreiros luminosos avisam
Com transporte 24 horas no fim de semana, os berlinensescirculam à vontade
59NÚMERO 3 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA
FICHA TÉCNICA
• Área de berlim: 892 km2• População: 3,39 milhões• Metrô
Número de linhas: 9Extensão total: 144,2 kmEstações: 170Distância média entre estações: 0,79 kmVelocidade média: 30,9 km/h
• Bondes
Número de linhas: 27Extensão total: 187,7 kmParadas: 377Distância média entre as paradas: 0,491 kmVelocidade média: 19,4 km/h
• Ônibus
Número de linhas: 161Extensão total: 1.271 kmParadas: 2.730Distância média entre as paradas: 0,52 kmVelocidade média: 19,56 km/h
com precisão germânica os minutos para o
próximo carro. Integrados aos trens e ônibus,
os Strassbahn são tão presentes na paisagem
urbana como a altíssima torre de TV que coroa
Alexanderplatz, glória dos tempos de domínio
soviético.
Nas noites de sexta e sábado, as ruas ficam
cheias como se fosse dia. Com transporte 24
horas no fim de semana, os berlinenses circu-
lam à vontade. O resultado é uma das noites
mais agitadas do planeta. O lazer é socializado
e, sem precisar dirigir para lugar algum, todos
podem saborear a famosa cerveja alemã.
A antiga divisão ainda é percebida nas duas
estações centrais, a de Zoologischer Garten,
na parte ocidental, e a de Alexanderplatz, na
oriental. A arquitetura é bem distinta, mais
moderna no “Ocidente”, mas o tempo vem redu-
zindo as diferenças. A Lehrter Hauptbanhoff,
com sua estrutura futurista de aço, será inau-
gurada no centro da capital este ano, inte-
grando todo o sistema. Hoje só os trens param
em suas plataformas, em fase de acabamento.
Em 2006 será conectada às nove linhas de
metrô e outras nove de trem, interligadas por
ônibus e bondes elétricos.
A empresa BVG, Berliner Verkehrsbetriebe,
controla todo o sistema que serve a Berlim e a
Potsdam, na periferia. Divide a região metro-
politana em três áreas e, para garantir o acesso a
todos os cantos, integra até táxis e bicicletas. É
permitido levar as bikes dentro dos trens pagando
uma passagem extra, assim como alugá-las da
própria BVG. Os táxis, em certos pontos, têm
tarifas reduzidas para cobrir percursos curtos não
servidos por ônibus ou bondes.
O preço de uma passagem, à primeira vista,
parece caro. Para circular entre as duas áreas
centrais, são 2 euros (pouco mais de R$ 7),
com direito a qualquer tipo de transporte por
duas horas. Para trajetos curtos, de até três
estações de metrô ou trem ou seis de ônibus
ou bonde, E$ 1,20, pouco mais de R$ 4. Há
reduções para estudantes e idosos e bilhetes
diários, semanais e mensais, os mais vantajo-
sos: E$ 56 para as duas áreas centrais, ou R$ 6
por dia — menos do que boa parte dos mora-
dores das periferias brasileiras gasta para tra-
balhar. E com a vantagem de livre acesso aos
fins de semana. Mesmo com o bom fluxo do
trânsito e as excelentes estradas alemãs, faltam
motivos para tirar o carro da garagem. ■
60 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3
a r q u i v o
Ofato de ter nascido às margens
dos rios Capibaribe e Beberibe
exerceu profunda influência
no desenvolvimento da cidade
e seus subúrbios. Antes da
construção das pontes que li-
gam os vários pontos da capital
pernambucana, os recifenses
dependiam totalmente do
transporte fluvial. Já no século
XVI, quando o Recife não pas-
sava de um ancoradouro da
vila de Olinda, a população
dependia dos rios para escoar
a cana-de-açúcar – parte dos
engenhos ficava às margens do
Capibaribe – e sobretudo para
se abastecer de água. O trans-
porte fluvial reinava absoluto
em meio às violentas e suces-
sivas enchentes, que inunda-
vam estradas e abalavam as
estruturas das pontes de ma-
O transporte
no Recife antes
das pontes e
da poluição
deira, deixando a cidade e arra-
baldes acessíveis apenas por
barcos. Mesmo quando passa-
va o período das enchentes, a
população dava preferência aos
barcos, temerosa da manu-
tenção precária das pontes.
Não é à toa que o Recife ficou
conhecido como a Veneza
Brasileira.
“Foi no século XIX, entre
os anos de 1835 e 1860, que
esse tipo de transporte sofreu
grandes mudanças na opera-
ção e organização”, relata a
historiadora Magna Milfont,
que estudou o tema para dis-
sertação de mestrado em ur-
banismo pela Universidade
Federal de Pernambuco. Se-
gundo a pesquisa, uma enor-
me variedade de embarcações
deslizava pelas águas que
60 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3
Aspectodo porto dorecife segundouma gravurade Hagedorn.Litografia deA. Guesdon
rodeavam a cidade, transpor-
tando pessoas, objetos e mer-
cadorias pelos mais diversos
percursos. As mais comuns
eram as jangadas, canoas e
barcaças, todas classificadas, à
época, como transporte flu-
vial, mesmo trafegando tam-
bém pelo mar.
As pequenas canoas, em
muitos modelos e tamanhos,
eram as preferidas pelos passa-
geiros, por conseguirem trans-
por trechos de difícil acesso e
ancorar em bancos de areia e
mangues. As barcaças, que va-
riavam de 7,5 a 21 metros, na-
vegavam em pequenas pro-
fundidades, aproveitando en-
chentes das marés, e dispu-
tavam passageiros com as ca-
noas. As jangadas menores,
denominadas ximbelos, botes,
A VenezapernambucanaA Venezapernambucana
a r q u i v o
61NÚMERO 3 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA
catraias ou burrinhas, tinham
só uma vela, quando muito. Já
as maiores, com mais velas,
chegavam a ter 20 paus, bas-
tante usadas na descarga de
navios. Barcos estrangeiros
operavam lado a lado com os
nativos e dominavam a nave-
gação na grande cabotagem,
especialmente a partir de 1839,
quando surgiram os barcos a
vapor. Alguns eram verdadeiras
lojas flutuantes, onde se ven-
diam até pequenos barcos.
Escravos e negros libertos
atuavam como manobreiros
na maioria das embarcações,
mas também se viam mestiços
e brancos no serviço, muito
lucrativo. Jangadeiros, canoei-
ros e barcaceiros se organiza-
vam em associações hierarqui-
zadas. As mais rígidas eram
as dos canoeiros, que se divi-
diam em títulos como gover-
nador do porto das canoas (admi-
nistrador do porto), coronel
dos canoeiros (administrador
das rendas do transporte flu-
vial), major dos canoeiros (ca-
pataz do porto) e capitão dos
canoeiros (chefe das embar-
cações). Tais organizações
previam severas punições para
quem fugisse às normas.
Diversos percursos impor-
tantes foram firmados nos rios
e no mar. As regiões mais iso-
ladas, como Monteiro e Apipu-
cos, eram procuradas para
abastecimento de água, cons-
tantemente transportada das
bicas dos outeiros de Olinda,
de onde saíam nos lombos dos
burros até chegar ao trajeto
fluvial. O capim também de-
pendia desse tipo de transpor-
te para chegar às fazendas dis-
tantes e alimentar os animais.
As embarcações ainda eram
muito usadas no transporte do
açúcar e na pesca. Inúmeros
ancoradouros, portos fluviais
e marítimos, praias e ribeiras
próximos aos centros urbanos
de Pernambuco eram palco de
intenso comércio de merca-
dorias e movimentação de pas-
sageiros. Nos trechos mais
movimentados havia a cobran-
ça de pedágio.
A deficiência de serviços
urbanos valorizava o transpor-
te fluvial. A partir da década
de 1840, toda a região da cha-
mada Várzea do Capibaribe foi
objeto de loteamento porque
as pessoas buscavam mais hi-
giene, maior facilidade de des-
locamento e melhor acesso ao
abastecimento de água. Ca-
sarões e chácaras localizados
às margens dos rios eram
usados para veraneio.
De 1835 a 1842, missões
hidrográficas francesas inicia-
ram mudanças na operação e
organização do transporte
fluvial na cabotagem, com en-
genheiros estrangeiros com-
batendo o uso das embarca-
ções nativas na pequena cabo-
tagem. Ao fim da década de
1860, os pequenos barcos co-
meçaram a se restringir aos
rios, rompendo a estrutura do
transporte fluvial. Com as
pontes, Recife passou a ter no
transporte rodoviário, como
qualquer metrópole, um de
seus maiores problemas, com
trânsito intenso e poluição. ■
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“Parte da paisagem da Madagdalena”, do álbum de Luís Schlapiz, 1863
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62 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3
r e s e n h a�
FICHA TÉCNICA f i l m e
SSão raras as
adaptações
para o cinema
tão fiéis como
Uma amizade
sem fronteiras. Mas o diretor
francês François Dupeyron
confiou no pendor cinemato-
gráfico do romance Seu Ibrahim
e as flores do Corão, o segundo
da Trilogia do Invisível, do
também francês Eric-Emma-
nuel Schmitt, e alterou pouca
coisa do livro – reproduz até
muitos diálogos contidos na
obra literária. Fez bem em não
tentar imprimir sua marca
numa história já muito bem
narrada por Schmitt.
O livro conta os meandros
da amizade entre Moisés
(Pierre Boulanger), um me-
nino judeu, e seu Ibrahim
(Omar Sharif), turco dono de
uma delicatessen num bairro
judeu na Paris dos anos 60.
UMA AMIZADE
SEM FRONTEIRAS
Direção:
François Dupeyron.
Com:
Omar Sharif e
Pierre Boulanger
França/2003
96 minutos
Viagem atravésdos sentidos
Negligenciado pelos pais – foi
abandonado pela mãe e é tra-
tado como um fardo pelo tris-
tonho pai – Momô (como o ve-
lho turco o chama, “menos im-
ponente do que Moisés”) des-
cobre, entre as prateleiras da
deli, um homem generoso e
sábio.
O filme acompanha duas
viagens: primeiro, a travessia
de Momô rumo ao mundo dos
adultos, rito que inclui a perda
da virgindade com prostitutas
da vizinhança, a descoberta de
técnicas de sedução (a impor-
tância do sorriso é a mais inte-
ressante delas), feita com a
ajuda de seu Ibrahim, e outras
passagens contadas com muita
delicadeza por Dupeyron e
Schmitt. Depois há uma via-
gem física mesmo, quando seu
Ibrahim e Momô vão, de carro,
de Paris até a Turquia natal do
velho. É cativante a maneira
como Uma amizade sem fron-
teiras descreve os diferentes
lugares por onde passam e
brinca com os sentidos: seu
Ibrahim veda os olhos de Mo-
mô para que ele sinta o cheiro
do ambiente e assim descubra
onde estão.
Na viagem eles passam por
vários países, como a rica Suí-
ça e a paupérrima Albânia, até
que atingem seu destino. Uma
amizade sem fronteiras é uma
delicada ode à tolerância, flui
com enorme facilidade, no que
a ótima química entre o es-
treante Pierre Boulanger e o
veterano Omar Sharif muito
contribui.
EROS RAMOS DE ALMEIDA
DIV
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63JANEIRO/FEVEREIRO 2005 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA
50 anos garantindo a mobilidadeda população fluminense
50 anos garantindo a mobilidadeda população fluminense
A Fetranspor está completando 50 anos. Meio século de atuação no transportecoletivo por ônibus no Estado do Rio de Janeiro. Hoje, reúne 10 sindicatos, aosquais se associam 227 empresas, que atendem 135 milhões de passageiros/mês.Isso significa garantir o direito de ir e vir de 80% da população do Estado.
Sem dúvida, temos muito orgulho de assumir tanta responsabilidade, conseguindogerar 95 mil empregos diretos, o que significa ter cerca de 1 milhão de pessoasdependendo do funcionamento de nossas empresas e sindicatos.
Sobreviver é uma tarefa difícil, e atingir meio século é para os fortes e vitoriosos.Mas não é prova que se ganhe de forma solitária, e, por termos consciência disso,queremos compartilhar, com todas as organizações que consideramos parceiras,a grande alegria que nos proporciona a comemoração deste cinqüentenário.
Melhor transporte,melhor qualidade de vida
64 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3
r e s e n h a�
Em O mapa
que mudou o
mundo (Ed.
Record), o
jornalista inglês Simon Win-
chester consegue tirar leite de
pedra. A expressão é quase
literal, pois a pedra em questão
é pedra mesmo: as formações
rochosas do subsolo britânico.
Do tema em princípio tão ári-
do, o autor extraiu a história
profundamente humana do
também inglês William Smith,
autor do primeiro mapa geo-
lógico do mundo em 1815,
fundando uma ciência (a geo-
logia) na qual se apóiam pes-
quisas que vão da exploração
de minas até o traçado de uma
linha de metrô – não por acaso,
o metrô de Londres foi o pri-
meiro do mundo, inaugurado
na segunda metade do século
XIX.
Se o metrô é um dos prin-
cipais reflexos das pesquisas
de Smith na vida contem-
porânea, outro sistema de
transporte esteve na origem de
seu trabalho. Foi escavando a
A humanidadena pedra
E
l i v r oFICHA TÉCNICA
terra para desenhar o traçado
de canais, muito populares na
Revolução Industrial para o
escoamento de carvão para
os centros consumidores, que
Smith pôde observar o com-
portamento das camadas do
solo. Numa época em que o
senso comum policiado pela
religião acreditava que a terra
tinha sido criada por Deus em
seis dias, ele estabeleceu as
diferentes idades de cada fatia
do solo pela correlação com os
fósseis nela encontrados.
A genialidade do homem
que criou sozinho o mapa geo-
lógico de um país inteiro,
depois de 20 anos de pesquisa,
não é o único fator da tra-
jetória de Smith ressaltado no
livro de Winchester. Sem se
derramar em excesso, o autor
destaca os dramas e desgostos
vividos pelo personagem, en-
tre eles o plágio, a passagem
pela prisão, dificuldades finan-
ceiras e o preconceito de ou-
tros acadêmicos por sua ori-
gem pobre e sua falta de refi-
namento.
Winchester é especialista
em dar humanidade a temas
aparentemente pouco seduto-
res, como a feitura do Dicio-
nário Oxford, sobre a qual
escreveu em O professor e o
demente. Em suas obras, não
costuma esconder seu orgulho
britânico, mas isso não chega
a depor contra O mapa que mu-
dou o mundo, ao contrário do
uso um tanto indiscriminado
de termos como “oólito”, “ar-
gilito” e “marga”, que exigem
um tanto de paciência e con-
sultas ao glossário anexo. O
livro inclui ainda uma lista de
leituras indicadas e um índice
onomástico, além da capa,
que, quando desdobrada,
revela uma réplica do mapa de
Smith
LEONARDO LICHOTE
O MAPA QUE
MUDOU O
MUNDO
Simon
Winchester
Tradução
de Suyan
Marcondes
Orsbon
416 páginas
R$ 64,90
Editora Record