Três Cartas de Henri Bergson Para Gilles Deleuze _ IntensidadeZ

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    27 octobre 2014 Filosofia

    Três cartas de Henri Bergson para Gilles Deleuze

    Por Henri Bergson | Trad.: Rodrigo Lucheta

    Uma primeira versão destas cartas foi lida em 2005, no Centro Georges Pompidou, naocasião de uma noite em homenagem a Gilles Deleuze. O que segue retoma o texto

    publicado na revista Critique, nº 732, de maio de 2008. Contando com sua sagacidade,deixamos ao leitor o cuidado de julgar o uso que delas pode se fazer.

    É sem maiores comentários particulares que apresentamos aqui o texto detrês cartas autógrafas, inéditas, enviadas por Henri Bergson ao jovem GillesDeleuze. Esses documentos, de uma densidade excepcional, constituem umaimportante contribuição à compreensão do método filosófico de Bergson, mas

    eles testemunham na mesma medida o papel que tiveram na gênese dopensamento deleuziano. Devemos aos responsáveis pela Fundação HenriBergson do Oxford Philosophical League a adorável autorização parareproduzi-los: somos-lhes vivamente agradecidos. Infelizmente não houve apossibilidade de reconstituição da integralidade das trocas decorrespondências; a datação exata resta, aliás, a reconstituir, e as referênciasaos primeiros manuscritos e obras publicadas de Gilles Deleuze sendo muitoraras para que possamos nos pronunciar sobre este assunto. Notemos enfimque a despeito da idade avançada de Bergson, a grafia destas cartas énotavelmente estável: as duas ou três passagens que não puderam serplenamente reconstituídas no terceiro documento não excedem meia linha. Aapresentação que oferecemos aqui é por isso bastante fiel aos originais.Aplicamos as convenções editoriais habituais: / indica uma mudança depágina do documento ; / itálico / indica uma palavra ou passagemriscada; < itálico >indica uma palavra ou passagem acrescentada; /…../ indicauma palavra ou passagem não reconstituída.

    Elie DURING

    ********************************************

    PRIMEIRA CARTA

    Villa Montmorency, Av. des Tilleuls, 18, Auteuil-Paris [sem data]

    Caro senhor,

    Não quis agradecer-lhe pelo amável envio de sua obra antes de ter encontrado tempopara lê-la. O estudo que o senhor oferece a honra de me consagrar é tão denso, e eume encontro tão sobrecarregado de ocupações, que precisei esperar até a semana

    https://www.facebook.com/rodrigo.lucheta.1http://intensidadez.unblog.fr/category/filosofia/

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    passada para tomar conhecimento dele – ainda que não tenha podido fazê-lo senão deuma maneira bastante superficial. Irei relê-lo; mas desde já cumpre lhe dizer o quantofiquei interessado por este retrato /fiel/ que o senhor faz de minha filosofia.

    No que concerne ao uso do conceito de intuição, o senhor me compreendeu muito bem.O senhor tem muita razão em lembrar já na primeira página: a intuição jamais foi para

    mim sinônimo de sentimento, de inspiração, menos ainda de instinto ou de simpatiaconfusa; ela na verdade é o contrário, e isso porque eu disse que ela introduzia nafilosofia o espírito de precisão.

    Para dizer a verdade, a intuição , à qual o senhor consagra o primeirocapítulo de seu estudo, não se depreende, aos meus olhos senão muito tempo depois,da duração : aquela deriva e não pode ser compreendida sem esta. É por isso que osenhor tem mais uma vez razão em apresentar a intuição como um método, ao invésde apresenta-la como uma teoria propriamente dita. A intuição de que falo é antes detudo intuição da duração, e a duração prescreve um método. Qualquer resumo dosmeus pontos de vista os deforma em seu conjunto e os expõe, por isso mesmo, a umasérie de objeções: se não os situarmos em primeiro lugar, e se não os fizermosretornar sem cessar a essa intuição especial que é o centro mesmo da doutrina – comtudo o que ela supõe de esforço e às vezes de violência para desfazer os vincoscontraídos por nossas maneiras habituais de pensar.

    A uma mulher que um dia me pediu para lhe expor minha filosofia em algumas palavras

    que ela pudesse compreender, achei por bem dar a seguinte resposta: “Senhora, eudisse que o tempo era real, e que ele não era espaço”. Ignoro se foi suficiente paraesclarecer minha interlocutora, mas tomo por muito salutar esse tipo de exercício decontração filosófica que obriga a por à nu e a determinar com uma fórmula simples esugestiva a intuição geradora de uma doutrina ou de um sistema de pensamento. Élamentável que ele não seja mais largamente praticado nas salas de aula.

    Enfim, eu dizia – o tempo é real. Mas que tempo, que realidade? Toda a questão estáaí, o senhor percebeu muito bem. A duração de uma realidade que se faz, de umarealidade se fazendo, eis aí o que, de uma obra a outra, eu constantemente visei. Nãohá mistério algum, nenhuma faculdade oculta, e é por isso que eu tomei o cuidado deilustrar este ponto inspirando-me em experiências as mais ordinárias. Tome oesgrimista em plena ação, veja a direção volúvel de seus movimentos, o devir quecarrega seus gestos. Quando ele vê chegar a si a ponta [da espada] de seu adversário,ele bem sabe que foi o movimento da ponta que carregou a espada, a espada quepuxou com ela o braço, o braço que esticou o corpo, este alongando-se a si mesmo:não dividimos como seria preciso, e não se sabe executar um afundo senão quando se

    sente assim as coisas. Alocar em ordem inversa é reconstruir e, por consequência,filosofar; é percorrer à contrapelo o caminho aberto pela intuição imediata domovimento que se faz. Posso me vangloriar de ter praticado bastante a esgrima naminha juventude para saber o que há de artificial nesse gênero de recomposição

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    abstrata: entretanto é assim que raciocinamos mais frequentemente. O aprendiz naesgrima sem dúvida pensa assim os movimentos descontínuos da lição, ao passo queseu corpo se abandona à continuidade do assalto. Ele recorta mentalmente seu próprioimpulso em uma sucessão de atitudes e de posições. É-lhe permitido imaginar,trabalhando o encadeamento das figuras, que a flexão dos joelhos ou tal movimento deombro que, transmitindo-se passo a passo à mão, fará mover a espada em direção ao

    alvo. Na falta de flexibilidade, ele ganhará talvez em exatidão. É assim que é preciso seexercitar, mas não se deve esquecer de sentir. Contam que o barão de Jarnacpreparou-se para o duelo contratando os serviços de um mestre italiano de esgrima;mas o essencial do golpe ensinado consistia em localizar o momento propício. Aliás, apostura rigorosa da análise não seria tão eficaz se o hábito contraído no decurso deuma longa prática não conferisse à inteligência uma certeza próxima do instinto. Essesdois movimentos que caminham geralmente em sentido contrário estão muitopróximos da coincidência quando acontece de o esgrimista inventar, no fogo da ação,uma nova esquiva, uma nova maneira de tocar – e eu acredito que existe invençãotanto nos esportes quanto nas artes.

    /

    Fiquei particularmente sensibilizado com as passagens que o senhor consagra àEvolução Criadora. Assim como a matéria é uma repercussão do élan criador, ao invésde sua negação ativa, a inteligência é uma distensão da intuição, ao invés de umatendência oposta: isso quer dizer que há entre elas uma afinidade essencial. Neste

    ponto fui geralmente mal compreendido, e lhe sou grato por ter posto essas coisas aclaro. Fazem-me passar por um adversário da inteligência, um canto de anti-intelectualismo que coloca o instinto acima de tudo. É preciso nunca ter aberto meuslivros para se imaginar semelhante absurdo. É preciso sobretudo não ter compreendidoo que eu não deixei de dizer, à saber, que a intuição não é senão um regime particularno qual a inteligência se dobra, quando, retornando sobre si mesma, ela torna-se capazde se dilatar para alcançar a gênese real das coisas. Só mesmo Benda [Julien Benda,crítico, filósofo e escritor francês] para acreditar que aí a inteligência perde algumacoisa: para ele, os conceitos seriam como etiquetas das quais as formas seriamrecortadas de uma vez por todas e que só nos restaria colá-las nas coisas como empotes de geleia. Equivale a dizer que toda verdade já está virtualmente conhecida, queo modelo está aí colocado nos cartões administrativos da cidade, e que a filosofia é um

    jogo de puzzle onde se trata de reconstituir, com as peças que a sociedade nos fornece,o desenho que ela não quer nos mostrar. Essa imagem grotesca do conhecimentoalimenta com mais frequência do que se imagina a reivindicação de “critérios” segurospara a utilização dos conceitos.

    Mas o racionalismo expandido reclama instrumentos novos e, para começar, uma ideiadiferente do conceito. Platão, o senhor se lembra, compara o bom dialético ao hábilcozinheiro que trincha o animal sem lhe quebrar os ossos, seguindo as articulaçõesdesenhadas pela natureza. A imagem do esqueleto é ainda bastante rígida, mas como

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    tal está, para mim, o conceito de duração: uma ferramenta tão simples, tão cortantequanto o fio da faca. Entretanto, como cada coisa tem sua maneira singular de durar,dificilmente convém escrever a palavra duração no singular. Não há senão durações ecada duração é, nela mesma, múltipla. Por trás do conceito de duração, existe oproblema do múltiplo: não o múltiplo em geral, mas um múltiplo de um tipo particular,do qual a definição exige um esforço de criação especial. A representação de uma

    multiplicidade de penetração recíproca, totalmente diferente da multiplicidadenumérica, é o ponto de onde parti e para o qual constantemente retornei. Não há outromeio de traduzir uma duração heterogênea, qualitativa e realmente criadora. Não sei sea aproximação que o senhor sugere com as multiplicidades de Riemann [BernhardRiemann, matemático alemão] – com as quais de minha parte jamais sonhei – permiteprecisar essa intuição sem nos reconduzir à exterioridade reciproca das partes quecaracteriza, segundo minha tese, toda representação espacial.

    Falei da necessidade de pensar por meio de conceitos mais /fluidos/ flexíveis. Se apalavra “conceito” não pudesse mais convir, eu a abandonaria sem arrependimento. Écerto, em todo caso, que uma tal tarefa demanda ao espírito um grande esforço, aruptura de muitos quadrantes de pensamento, alguma coisa como um novo método.Pois o imediato está longe de ser o mais fácil de perceber e, sobretudo, de pensar. E,no entanto, ele também não é o inefável, que é uma vaidade e, mais frequentementeainda, uma facilidade.

    /

    Ora, a este respeito seu estudo sobressai-se àqueles que me consagraram até hoje.Reivindico em filosofia uma certa maneira dificultosa de pensar – como puderam seenganar? E seu comentário, na medida em que leva à sério a ideia de um método deprecisão em filosofia, desanimará mais de um leitor que acreditar encontrar nele belaspáginas sobre o sentimento do eu que dura; mas aqueles que esperam outra coisa dafilosofia encontrarão nele seu quinhão. Ou me engano muito, ou esse estudo faráépoca.

    Permita-me, entretanto, um /fraterno/ conselho de trabalho. Há uma grande vantagem,nas análises de conceitos, em partir de situações concretas e /bem/ simples, ao invésde autores ou mesmo de problemas filosóficos enquanto tais. Frequentemente observo:quanto mais um filósofo é dotado, mais ele tem a tendência, no início, de abandonar oconcreto. Ele deve impedir-se às vezes, em tempo de retornar às percepções ouintuições concretas onde seu pensamento poderá se simplificar e precisar. Nada é maisfácil do que raciocinar geometricamente sobre ideias abstratas; em cada filósofocochila um metafísico que se inclina a recompor o real com construções dialéticas. De

    minha parte, reivindico uma metafísica positiva, e eu não teria passado tanto tempoaprofundando os fatos da psicologia ou das ciências da vida, nem consagrado tantaenergia – Deus sabe se podem me recriminar! – para compreender a maneira pela qualos princípios da mecânica nova se aplicam às /junções/ articulações da experiência se

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    eu não estivesse convencido de que os grandes problemas da filosofia podem serrenovados e encontrar, ao mesmo tempo, um início de solução: contanto que se sigamos contornos sinuosos e móveis da realidade, abraçando-a, tanto quanto possível, emuma espécie de auscultação espiritual. Não perca o concreto, retorne a eleconstantemente. A intuição simples do gesto do esgrimista vale mais do que cemargumentos dialéticos.

    Estas notas talvez pareçam ao senhor imodestas. Eu não me autorizaria a tal franquezase seu estudo não me fizesse reconhecer com tamanha evidência as marcas deum talento filosófico /impressionante/ . Acrescentarei que em algumaspassagens suas palavras exprimem tão bem os fundamentos do meu pensamento queme parece que estou lendo ou relendo a mim mesmo. Mas esta espécie de ventriloquiase acompanha, de uma ponta a outra, de toda sorte de deslizamentos, dedescentramentos, e às vezes de rupturas que me fazem pensar que esse

    “bergsonismo” que dá título ao seu livro porta já toda uma filosofia própria, que eu sóposso lhe convidar a elaborar e prolongar em seu próprio nome. Isso seria, me parece,uma filosofia da diferença, ou antes da diferença pura. Se o senhor pudesse vir àAuteuil, seria um prazer conhecê-lo para falar mais detalhadamente sobre isso tudo.

    Receba, caro senhor, a segurança de meus devotados sentimentos.

    H. BERGSON

    Esquecia-me de lhe agradece pelos textos seletos que o senhor teve a amabilidade de juntar em seu envio. Entreguei-me há pouco, no caso de Lucrécio, a um exercíciosemelhante; mas eu estava longe de me imaginar um dia sendo posto assim “emtrechos”. Esta pequena “Memória e vida” é ainda mais /útil/ necessária, pois elacontém certos textos aos quais o senhor se refere em seu trabalho, mas sem citá-lossempre – com risco, às vezes, de confundir os leitores menos familiarizados com minhaobra.

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    SEGUNDA CARTA

    Paris, Boulevard Beauséjour, 47. XVIe. [falta a data]

    Caro amigo,

    Meu colega Jean Wahl [Jean André Wahl, filósofo e professor francês, foi aluno deBergson] teve a amabilidade, na primavera, de me trazer sua tese “A diferença e arepetição” [sic]. Não sei como me perdoar por tê-la guardado por tão longo tempo semlhe escrever uma resposta. Entretanto a percorri imediatamente e comum /extremo/ vivo interesse. Depois me sobrevieram diversos problemas de saúde.

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    Seu manuscrito ficou na minha mesa, “guardado” – quer dizer, tornou-se-meimpossível reencontrá-lo. Por diversas vezes o procurei. Ei-lo aqui reaparecido.

    Percorrendo-o novamente, não pude senão repetir o que lhe dizia de sua primeiraversão, na ocasião da nossa correspondência no mês de dezembro. O senhor realizou aí um trabalho considerável e as ideias que desenvolve testemunham uma amplitude de

    visão que alguns poderiam perceber como ousadia. Espero somente que os colegas que julgarão seu trabalho tenham a honestidade de reconhecer, por trás do tom inabitual desua tese e da abundância de leituras que ela mobiliza, sua preocupação com a precisão,que eu considero como a primeira virtude do filósofo.

    É preciso reconhecer que o senhor não lhes facilita a tarefa. Lendo-o, retorna-me àmemória o que o senhor me confiava acerca de suas impressões quando da descobertado primeiro capítulo de Matéria e Memória. Na ocasião o senhor me explicava, não semmalícia, que esse texto, aos seus olhos, era um dos mais materialistas que já foramescritos em filosofia. O senhor acrescenta que criando conceitos que respondem aproblemas novos, uma filosofia confere às coisas um novo recorte e, por isso mesmo,projeta no mundo uma luz estranha e quase irreal. O senhor evocava a esse respeitouma paisagem de “ficção científica”. Minhas ocupações me deixam, infelizmente, muitopoucos momentos de lazer para que eu me familiarize com essa literatura, mas creioque compreendo o que o senhor quis dizer, e devo confessar ao senhor que certaspassagens da sua tese inspiram-me um sentimento totalmente comparável.

    /Fiquei interessado, encantado – e às vezes mesmo convencido – pelo projeto que osenhor formula de encontrar a diferença pura até nos conceitos por eles mesmos, coma condição de retomá-los como nós ou como singularidades no sentido de Ideias-Problemas. Essa ideia de um uso intensivo dos conceitos vai bem além do que euimaginava ao falar de “conceitos flexíveis” e como que cortados “sob medida”. Emsuma, o senhor encontra no campo da ideia a ontologia das multiplicidades intensivasdas quais eu vejo o tipo puro na experiência da duração vivida: o senhor reclama umaontologia para os conceitos mesmos, na medida em que se possa pegá-los, por seuturno, na duração, no movimento de sua gênese ou de sua diferenciação. As passagenssobre o cálculo diferencial me interessaram particularmente, o senhor bem podeimaginar: sempre considerei esse método, ou pelo menos sua ideia geradora, comouma verdadeira sondagem feita na duração pura, com a condição evidentemente deque não se contente em ver aí a organização lógica de um sistema de atos, mas antes(sob a forma de que ela se revestia na origem, em Newton) uma espécie demodelagem intelectual do movimento real. Em compensação, as passagens

    consagradas à repetição, e notadamente aquelas onde intervém o eterno retorno,causaram-me algumas preocupações. O senhor conhece as reservas que me inspiramos escritos de Friedrich Nietzsche. Aliás, é uma questão de método, e mesmo de estiloou de temperamento, mais ainda que de conteúdo: jamais compreendi seguramente.

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    O capítulo sobre a “imagem do pensamento” me parece neste sentido mais bemsucedido: mas eu não estou provavelmente melhor situado para julgar, já que osenhor, sem nomear-me, retoma aí o essencial do que já expôs em seu estudo sobre o

    “bergsonismo” a propósito da minha crítica dos falsos problemas. Toda a questão dafilosofia é, com efeito, bem colocar os problemas e, no mesmo movimento, destituir osfalsos problemas que impedem de pensar. Aliás, é aí que se distingue, no meu modo de

    ver, uma filosofia de amador de uma filosofia digna deste nome. Chamo de amadoraquele

    /

    que escolhe entre soluções acabadas, como se escolhe um partido político onde se vaifiliar. E chamo filósofo aquele que cria a solução, então necessariamente única, para oproblema renovado que ele colocou e que, por esse motivo, faz um esforço pararesolvê-lo. Tolerando o problema tal como ele é colocado pela linguagem e pela opiniãocomum, nos condenamos de antemão a receber uma solução pronta ou, colocandomelhor as coisas, a simplesmente escolher entre as duas ou três soluções, únicaspossíveis, que são coeternas a essa posição do problema. Equivale a querer atribuir aofilósofo o papel e a atitude do aluno que procura a solução dizendo-se que uma olhadaindiscreta no caderno do professor lhe mostraria a resposta, anotada ao lado doenunciado. Mas a verdade é que se trata, em filosofia e alhures, de achar o problema e,em consequência, de colocá-lo, mais ainda que de resolvê-lo.

    Observe, a este respeito, que eu bem me guardei de intitular Matéria e Espírito o livroonde empreendo criticar a ideia do paralelismo psico-físico. Toda a dificuldade eradelimitar com precisão a distância entre o pensamento e as condições físicas onde essepensamento se exerce, e de fazê-lo no campo mesmo do materialismo. Em vez departir de uma oposição de princípio entre dois termos exteriores um ao outro, a matéria

    “em si”, considerada em suas formas rudimentares, e o espírito “em si”, identificadocom suas faculdades superiores, eu quis colocar-me no lugar onde esses dois conceitosse tocam, em sua fronteira comum, para estudar a forma e a natureza do contato (aexperiência em geral poderia, aliás, definir-se como o lugar onde os conceitos se tocame às vezes se interpenetram).

    Assim, escapei da posição ordinária do problema e das oposições que ela suscita:realismo e idealismo, materialismo e espiritualismo. Escolhendo falar da memória emsua relação com o fato cerebral, e mais especialmente da memória das palavras (e porisso de um fato bem determinado e localizado), busquei encurtar o problema da relaçãodo corpo com o espírito dentro dos limites mais estreitos possíveis. Elevei-me de início,de complicação em complicação, até o ponto onde a atividade da matéria roça a do

    espírito. Então, de simplificação em simplificação, /

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    fiz descer o espírito, tão perto quanto pude, da matéria. Examinando o problema damemória das palavras e de seu envoltório sonoro, parecia-me que eu quase tocava ofenômeno cerebral no qual prolonga-se a vibração sonora. E entretanto havia aí umadistância, e esta distância conduzia-me a pensar que o espírito se insinua, ou melhor,insere-se na matéria se aproximando dela por gradações sucessivas. “Espírito” e

    “matéria” são, aliás, palavras muito largas para designar a articulação fina desses

    planos da experiência. O sim e o não são estéreis em filosofia. O que é interessante é o “em que medida?”. Sob este novo ponto de vista, o velho problema do corpo e da almapoderia ser posto como novo: a filosofia exige que se corte sob medida; e eu não possosenão subscrever a ideia que o senhor desenvolve de uma arte dos problemas, maisexata e mais difícil que o jogo dialético das questões e das respostas.

    Mas é preciso que nos falemos mais sobre tudo isso, e também sobre outras análisesnotáveis que encontrei em seu livro sem poder evocá-las aqui. Estou prestes a ir – ouantes a ser levado – até Dax para fazer um tratamento. Levo seu manuscrito comigo.Para o momento limito-me a enviar-lhe meus cumprimentos, e junto a eles aexpressão de meus amistosos sentimentos.

    H. BERGSON

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    TERCEIRA CARTA

    Saint-Cergue, Suiça [falta a data]

    Meu caro Deleuze,

    Sua adorável e interessante carta me deu o maior prazer. Eu gostaria de lhe responderlongamente, mas os movimentos da escrita se tornaram para mim muito dolorosos –salvo em certos momentos, em que escrevo como outrora; mas esses momentos sãoraros e eu nunca sei quando eles virão.

    Vou me limitar a lhe falar da alegria que me causou o anúncio desse projeto de um livroescrito à quatro mãos com o senhor Gattari [sic]. Não sei como procedem: esta é umadas proezas às quais me sinto totalmente incapaz, dado o que já me custa fazerconcordarem entre si minhas próprias ideias para expô-las em um texto.

    Mas depois do que o senhor disse, entendo que a redação desse livro se parecerá comuma espécie de patchwork , procedendo por conexões de pensamentos. Isso me traz àmemória uma discussão que tive uma vez com o falecido William James. Ele descreviao trabalho conceitual como uma espécie de “ mapmaking ”, quer dizer, de cartografia. Écerto que para ele, como para mim, os conceitos são simples instrumentos de ação, oude ferramentas. Mas ao invés de ver aí uma objeção, ele via na filosofia um incremento

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    de potência. Aliás, é neste ponto que nossos estilos divergem, apesar de concordarmosnum certo número de recusas: James foi muito mais longe do que eu no sentido deuma refutação intelectualista do intelectualismo. Seu pragmatismo o conduziu a umaforma de “construcionismo” – se o senhor me autoriza esse termo bárbaro – que mefaz frequentemente pensar em sua própria maneira de escrever.

    O senhor reivindica, como eu, um empirismo verdadeiro, um empirismo superior –lembrando que o empirismo sempre foi, em seus melhores momentos, uma “loucacriação de conceitos” /…../ . Mas o senhor procura do lado da variação ou daproliferação das conexões o que eu procuro do lado da simplificação de nossosconceitos ordinários – ou de sua fluidificação.

    /

    Eu gostaria de discutir mais longamente as reflexões que o senhor desenvolve em suacarta, mas temo faltar-me a força e me deterei, por isso, em apenas algumasobservações. A imagem do “rizoma” me parece perfeitamente propícia a fazer sentir otipo de multiplicidade heterogênea e qualitativa que convém à textura de uma realidadeem devir. Temo apenas que aqueles dentre seus leitores que não tenham mais do quevagas noções de botânica poderão imaginar aí coisas extravagantes, e que aqueles, aocontrário, que são versados nessa matéria, encontrem ocasião para objeções sem fim,ou para reprovar sabe-se lá que vitalismo vegetal que seria aí totalmente estranho aosseus olhos. Mas o senhor saberá, estou certo disso, contornar essas dificuldades /……/ .

    Por que não dedicar uma introdução, ou mesmo um estudo separado acerca dessaquestão? Será necessário somente pensar em encontrar-lhe um títulomenos /singular/ barroco que aquele de Rizoma: seu editor, sendo tão benevolente aseu respeito, provavelmente teria dificuldade com esse título.

    O senhor me permitirá agora, caro amigo, colocá-lo a par de uma inquietude maisgeral. Para isto, não me autorizo senão por minha própria experiência, e pelas reaçõeshostis que puderam suscitar algumas de minhas obras. O que não foi dito sobre aintuição ou sobre o élan vital? Acredito que as pessoas não se dão ao trabalho de ler ese contentam com resumos que elas encontram na imprensa ou em livros ruins.Recentemente tive ocasião de conversar com Borel [Félix Édouard Justin Émile Borel,matemático e político francês], que acreditava que devia me dar uma dupla lição dematemática e de filosofia: é uma ilusão bastante difundida, que consiste em acreditarque pode-se abordar a obra de um filósofo contemporâneo e refutá-la sem se preparar,cortando os problemas que ela coloca, ou afastando-os como futilidades, sem levar emconta os vinte e cinco séculos de meditação, de inquietude e de esforço que estãocomo que condensados na forma atual desses problemas e até mesmo nos termos de

    que se serve o pensador para enunciá-los. Com mais forte razão: quando um filósofopretende reconstruir ou transformar o problema que recobre um conceito, é inútilbuscar querelas de palavras. Acredito que é muito difícil dizer, numa simples inspeção,se uma noção é ou não é inteligível. A inteligibilidade de uma ideia não pode ser medida

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    senão pela riqueza que ela sugere, pela extensão, pela fecundidade e pela segurança desua aplicação, pelo número crescente de articulações que ela nos permite colocar à nu,por assim dizer, no real e, enfim, pela sua energia interior. Assim funciona o conceito deintuição, nele mesmo. De minha parte, considero que em filosofia o tempo consagradoà refutação é geralmente tempo perdido. Mas como nossa época parece querersubmeter imediatamente toda reflexão ao imperativo da discussão, temo que o senhor

    não escape ao gênero de dificuldades que eu mesmo tive ocasião de encontrar, e quese veja mais de uma vez conduzido a tomar de seu tempo e de sua energia para darresposta a um crítico severo e injusto. /……/

    Também me parece que o livro que o senhor projeta escrever deveria de algumamaneira antecipar-se às objeções que não deixarão de lhe fazer, e o que talvez sejapior, às deformações que seus próprios defensores necessariamente farão ao seupensamento. Os primeiros objetarão, pois isso é tudo o que sabem fazer: eles lhe dirãoque não há multiplicidade sem unidade, que a ideia mesma de uma multiplicidade puraé por consequência destituída de sentido, etc. Os segundos se apressarão

    /

    em transformar suas analises em fórmulas prontas: eles irão clamar em toda parte avitória do múltiplo, o desfazimento do Um ou da transcendência. Mas não é suficientegritar “Viva o múltiplo!”; o múltiplo: é preciso fazê-lo. E para começar, o que importaverdadeiramente à filosofia é saber qual unidade, qual multiplicidade nos permite

    abraçar o esforço da intuição, ela mesma renovada por cada novo problema.Não tenho dúvida de sua capacidade de fazer seus leitores entenderem isso, como osenhor fez antes, e tão claramente, no estudo que teve a amabilidade de dedicar àminha obra. Aliás, o senhor talvez sentirá um dia a necessidade de explicar-se maislongamente sobre o que lhe parece ser a natureza do trabalho filosófico. /Entreguei-me/ Arrisquei-me nesse exercício em O Pensamento e o Movente. Mas querendodescrever a filosofia como a atividade mais concreta possível, corre-se o risco deproduzir a impressão exatamente inversa. É por isso que esse livro nunca me satisfezcompletamente. E se fosse necessário escolher, hoje, entre todas as minhas obras,aquela que mais se aproxima de um discurso do método, eu não hesitaria em dizer queé O Riso. A desmontagem dos falsos problemas, à qual o senhor mesmo consagroubelos desenvolvimentos, me parece, com efeito, uma forma de cômica filosofia. Não seise a ideia que o senhor se faz da besteira está de acordo com esse sentimento, masme parece que os combates filosóficos se parecem frequentemente com uma curiosapantomima de conceitos, uma espécie burlesca de pensamento.

    /Esperando seu tratado do método filosófico, tive grande prazer em saber que o senhorplaneja escrever um livro sobre o cinema e, mais ainda, que cogita me associar a ele,

  • 8/18/2019 Três Cartas de Henri Bergson Para Gilles Deleuze _ IntensidadeZ

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    19/03/2016 Três car tas de Henr i Bergson para Gi ll es Deleuze | IntensidadeZ

    ainda que indiretamente, e aí retomando a teoria das imagens propostas há pouco emMatéria e Memória. O senhor sabe que meu estado de saúde me impede há muitotempo todo deslocamento e que eu não tive suficientes ocasiões para acompanhar osdesdobramentos dessa diversão que chamávamos outrora de “cinematógrafa”. Se pudefalar dela em alguns de meus livros, isso foi apenas até o ponto de vista dofuncionamento da máquina – não sendo eles ainda mais que uma analogia para

    descrever o mecanismo da inteligência que pretende restituir a realidade movente àpartir de vistas imóveis dirigidas a ela, projetando toda mudança sobre não sei qualrepresentação do devir em geral /……/ . Espero que o senhor encontre o quanto antes otempo para escrever esse livro cujo assunto me encanta e me intriga ao mesmotempo.

    Creia, caro Deleuze, na expressão de meus fraternos sentimentos.

    H. BERGSON