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Almanaque o Voo da Gralha Azul numero 8 set out nov 2011

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Almanaque Literário seleção, organização e layout por José Feldman (Maringa/PR)

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Revista Literária

―O Voo da Gralha

Azul‖

n0. 8 – Paraná, setembro/outubro/novembro 2011

Idealização, seleção e edição:

José Feldman

Contatos, sugestões, colaborações:

[email protected]

[email protected]

http://singrandohorizontes.blogspot.com Endereço para correspondencia:

Rua das Mangueiras, 296-A

Cep.87080-680

Maringá/PR

Que a humanidade possa aprender com a nossa Gralha-azul e entender que o equilíbrio e o respeito

ecológico entre fauna e flora é fundamental para a existência do Homem na face da Terra!!!

Prezado Leitor

Este almanaque não tem a pretensão e nunca poderá ser considerada como substituição aos livros, jornais, colunas, etc. que circulam virtualmente ou

não, mas sim como mola propulsora de incentivo ao cidadão para buscar novos conhecimentos, ou relembrar aqueles perdidos na névoa do passado.

Por que o Voo da Gralha Azul? A Gralha Azul, que assim como semeia o pinheiro, ela alça voo e semeia no coração de cada um que alcançar, o pinhão

da cultura, em todas as suas manifestações.

Ao leitor, novos conhecimentos.

Ao escritor ou aspirante a tal, sejam poetas, trovadores, romancistas, dramaturgos, compositores, etc., um caminho de conhecimento e inspiração.

Obrigado por me permitir dividir consigo estes breves momentos,

José Feldman

SUMÁRIO

ACADEMIAS

ACADEMIA CAMPINENSE DE LETRAS ......................................... 155

ADEMAR MACEDO

MENSAGENS POÉTICAS N. 399

Uma Trova Nacional ................................................................ 163

Uma Trova Potiguar ................................................................ 164

Uma Trova Premiada ............................................................... 164

Uma Trova de Ademar ............................................................. 164

...E Suas Trovas Ficaram ......................................................... 164

Estrofe do Dia .......................................................................... 164

Soneto do Dia .......................................................................... 164

BIOGRAFIAS

Abílio César Borges ................................................................... 29

Adalcinda Camarão .................................................................... 25

Adelto Gonçalves ....................................................................... 18

Anderson Braga Horta ............................................................. 142

Antonio Brás Constante ............................................................ 122

Antônio Cândido da Silva ........................................................... 67

Branquinho da Fonseca ............................................................. 45

Carlos Reverbel .......................................................................... 88

Cláudio Batista Feitosa ............................................................... 69

Emilia Pardo Barzón ............................................................... 137

Fernando Campanella .............................................................. 154

Glorinha Rattes ........................................................................ 134

Jardel Estevão Barbosa Silva ................................................... 150

Jussára C. Godinho .................................................................... 59

Lafcádio Hearn ―Koizumi Yakumo‖............................................ 86

Laurindo Rabelo ........................................................................ 48

Lya Luft ...................................................................................... 90

Natália Correia ........................................................................ 101

Nilton da Costa Teixeira ........................................................... 130

Nilton Manoel ............................................................................. 10

Raul de Leoni .......................................................................... 160

Valdeck Almeida de Jesus ......................................................... 96

Victor Giudice ......................................................................... 125

CINEMA

Obras de Shakespeare no Cinema ............................................. 120

CURIOSIDADES DE NOSSA LÍNGUA

VÍCIOS DE LINGUAGEM

Tautologia ................................................................................ 147

ENTREVISTA

IALMAR PIO SCHNEIDER

O Homem atrás do escritor, o Escritor atrás do homem ............. 55

ESTANTE DE LIVROS

ANTONIO BRÁS CONSTANTE

Hoje é seu Aniversário! "Prepare-se"....................................... 122

ÁTILA JOSÉ BORGES

Matando o Porco. Eu Contos ..................................................... 166

BRANQUINHO DA FONSECA

O Barão ..................................................................................... 43

CAROLINA RAMOS

Lançamento do Livro de Poesias ―Destino‖ ................................. 3

GUIMARÃES ROSA

7 Contos do Livro Primeiras Histórias

Sorôco, sua mãe, sua filha ........................................................ 74

A menina de lá .......................................................................... 75

Os irmãos Dagobé ...................................................................... 76

Pirlimpsiquice ........................................................................... 77

Fatalidade ................................................................................. 78

Substância................................................................................. 79

A partida do audaz navegante ................................................... 80

ISABEL FURINI (ORGANIZADORA)

Passageiros do Espelho (Antologia de Contos) .......................... 164

JOÃO UBALDO RIBEIRO

O Sorriso do Lagarto................................................................. 168

JOSÉ MARINS (ORGANIZADOR)

A brisa é você: Mini contos ....................................................... 101

LYA LUFT

A Asa Esquerda do Anjo ............................................................ 89

MARIO QUINTANA

80 anos de poesia ...................................................................... 72

FOLCLORE

O Amigo da Onça ...................................................................... 145

HAICAIS

NILTON MANOEL

Poesia Magica (haicais)................................................................ 5

MENSAGEM

ARISTÓTELES ONASSIS

Talvez ........................................................................................ 1

O ESCRITOR COM A PALAVRA

A. A. DE ASSIS

A Moça do Jipe .......................................................................... 27

ALBERTO PACO

Uma Estranha Mulher ............................................................... 162

ANTONIO BRÁS CONSTANTE

A Partida Do Homem Mais Veloz Do Mundo .............................. 118

Contos da Delegacia Brasil ........................................................ 121

Mamãe, a Professora Sumiu!..................................................... 110

Uma Feira de Doces para Alimentar o Pensamento .................... 81

ANTÔNIO CÂNDIDO DA SILVA

Bar do Zizi ................................................................................ 66

APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA

Celulares .................................................................................... 52

ARTHUR RIMBAUD

Aurora — XXII ....................................................................... 106

ARTUR DE AZEVEDO

A Ama-Seca ................................................................................ 12

A "Não-me-toques!‖ .................................................................. 32

CAROLINA RAMOS

Do Cotidiano ................................................................................ 2

CINTIAN MORAES

A diferença entre Viver Bem e Viver Melhor ............................... 93

DIEGO OLIVEIRA

Um Minuto ............................................................................... 102

EMILIA PARDO BAZÁN

Oito Nozes ................................................................................ 135

FERNANDO CAMPANELLA

Conversa de Compadres ............................................................ 150

HUMBERTO DE CAMPOS

A Rosa Azul ................................................................................. 4

O Filósofo ................................................................................... 40

INGLÊS DE SOUSA

A Quadrilha de Jacob Patacho .................................................... 59

JARDEL ESTEVÃO BARBOSA SILVA

O Perfume ................................................................................ 148

J.B.XAVIER

A Espera ..................................................................................... 11

JORGE LUIS BORGES

O Outro .................................................................................... 106

JUSSARA C. GODINHO

Meninos de rua .......................................................................... 51

LAFCÁDIO HEARN

A Promessa ................................................................................ 83

LUIS FERNANDO VERÍSSIMO

Metamorfose............................................................................. 123

MIGUEL FALABELLA

Saudade ..................................................................................... 97

NILTO MACIEL

Vou ser herói, Maria .................................................................. 31

OTTO MELANDER

A Mulher e o Cachorro ................................................................ 70

PETRUS ALPHONSUS

Humor do Século XII ................................................................ 144

SAMUEL CASTIEL JR.

Noturnas .................................................................................... 68

VICÊNCIA JAGUARIBE

Mas a vida...A vida não se passa a limpo .................................... 22

VICTOR GIUDICE

O Arquivo ................................................................................. 124

POESIAS

ADALCINDA CAMARÃO

Bom dia, Belém .......................................................................... 24

Espaço-tempo ............................................................................. 25

ANDERSON BRAGA HORTA

Salmo para Célia ..................................................................... 139

A tartaruga............................................................................... 140

Sísifo ........................................................................................ 141

Rio ........................................................................................... 141

(A)mar(o) ................................................................................. 141

Ciranda .................................................................................... 141

Ode à água ............................................................................... 142

ARTHUR RIMBAUD

O barco ébrio ........................................................................... 104

Vogais ...................................................................................... 105

Minha boêmia (Fantasia) .......................................................... 105

BRANQUINHO DA FONSECA

Naufrágio .................................................................................. 42

Arquipélago das sereias ............................................................ 42

Castanheiros, irmãos… .............................................................. 42

FERNANDO CAMPANELLA

Ao vento ................................................................................... 151

Ninféias .................................................................................... 152

Luz cadente .............................................................................. 152

Refabulando ............................................................................. 152

Capela dos ossos ....................................................................... 152

La Campanella .......................................................................... 152

A media luz .............................................................................. 153

Alquimia .................................................................................. 153

Olhos ........................................................................................ 153

Tua beleza................................................................................ 153

Consummatum ......................................................................... 153

Frutos da terra ......................................................................... 153

Pássaros ................................................................................... 154

GLORINHA RATTES

Desabafo ................................................................................... 133

Espelho .................................................................................... 133

Exemplo de vida ....................................................................... 133

O que fica ................................................................................. 134

Sublime amor ......................................................................... 134

JUSSARA C GODINHO

Amor, sentimento estranho ....................................................... 59

LAURINDO RABELO

―O que fazes, ó minh’alma?‖ .................................................... 46

Dois impossíveis ........................................................................ 47

LYA LUFT

Canção na plenitude .................................................................. 82

NATÁLIA CORREIA

―A defesa do poeta‖ ................................................................. 98

Fiz um conto para me embalar .................................................. 99

Auto retrato .............................................................................. 99

Queixa das almas jovens censuradas ......................................... 99

Ode à paz ................................................................................. 100

A alma ...................................................................................... 100

Falavam me de amor ................................................................ 100

NILTON DA COSTA TEIXEIRA

A fonte luminosa ...................................................................... 132

PADRE CELSO DE CARVALHO

A lenda dos caminhos .............................................................. 102

Soneto ..................................................................................... 103

Diamantina em serenata ........................................................... 103

RAUL DE LEONI ..............................................................................

A hora cinzenta ........................................................................ 158

Argila ....................................................................................... 158

Decadência ............................................................................... 158

Transubstanciação ................................................................... 158

Desconfiando ............................................................................ 159

― Almas desoladoramente frias…‖ ........................................... 159

Crepuscular .............................................................................. 159

Unidade .................................................................................... 159

Pudor ....................................................................................... 159

Prudência ................................................................................. 160

Aos que sonham ....................................................................... 160

SAMUEL CASTIEL JR.

Flor Tropical ............................................................................. 67

VALDECK ALMEIDA DE JESUS

A vida pulsa .............................................................................. 95

Coração de pedra ........................................................................ 95

Cicatrizes ................................................................................... 95

SOPA DE LETRAS

ADELTO GONÇALVES

Cinco séculos de poesia brasileira .............................................. 15

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL ............................................... 50

TROVAS

A. A. DE ASSIS

Tábua de Trovas ........................................................................ 35

BAÚ DE TROVAS

Nova Friburgo 1960 ................................................................. 111

ELIANA RUIZ JIMENEZ

Trova-Legenda (Participe!) ....................................................... 175

Trovas de 9 a 15 de outubro .................................................... 176

IALMAR PIO SCHNEIDER

Trovas ........................................................................................ 58

JUSSARA C. GODINHO

Trovas ....................................................................................... 52

NILTON DA COSTA TEIXEIRA

Trovas dispersas ...................................................................... 132

NILTON MANOEL (SP)

Trovas ....................................................................................... 10

TROVAS

Tema: Paciência ........................................................................ 19

TROVAS EM IMAGEM

A. A. de Assis (PR) ..................................... 12,18, 35, 89, 104, 110

Ademar Macedo (RN) ................................................................. 55

Alberto Paco (PR) ...................................................................... 95

Austregésilo de Miranda Alves (BA) ........................................... 41

Dáguima Verônica (MG) ............................................................. 66

Élbea Priscila de Souza e Silva (SP)........................................... 15

Francisco Pessoa Reis (CE) .............................................................

Hermoclydes S. Franco (RJ) ...................................................... 21

Nemésio Prata Crisóstomo (CE) .............................................. 9, 31

Wagner Marques Lopes (MG) ...................................... 5, 27, 50, 70

WALDIR NEVES

Trovas ...................................................................................... 177

XVII JOGOS FLORAIS DE CURITIBA

Regulamento ............................................................................ 174

Este Almanaque não pode ser comercializado em hipótese alguma.

Caso assim o desejar, deve-se contatar o/s autor/es para obter

autorização.

Respeite os Direitos do Autor.

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Mensagem ARISTÓTELES ONASSIS

TALVEZ Talvez eu venha a envelhecer rápido demais. Mas lutarei para que cada dia tenha valido a pena. Talvez eu sofra inúmeras desilusões no decorrer de minha vida. Mas farei que elas percam a importância diante dos gestos de amor que encontrei. Talvez eu não tenha forças para realizar todos os meus ideais. Mas jamais irei me considerar um derrotado. Talvez em algum instante eu sofra uma terrível queda. Mas não ficarei por muito tempo olhando para o chão. Talvez um dia o sol deixe de brilhar. Mas então irei me banhar na chuva. Talvez um dia eu sofra alguma injustiça. Mas jamais irei assumir o papel de vítima. Talvez eu tenha que enfrentar alguns inimigos. Mas terei humildade para aceitar as mãos que se estenderão em minha direção. Talvez numa dessas noites frias, eu derrame muitas lágrimas. Mas não terei vergonha por esse gesto. Talvez eu seja enganado inúmeras vezes. Mas não deixarei de acreditar que em algum lugar alguém merece a minha confiança. Talvez com o tempo eu perceba que cometi grandes erros. Mas não desistirei de continuar trilhando meu caminho. Talvez com o decorrer dos anos eu perca grandes amizades. Mas irei aprender que aqueles que realmente são meus verdadeiros amigos nunca estarão perdidos.

Talvez algumas pessoas queiram o meu mal. Mas irei continuar plantando a semente da fraternidade por onde passar. Talvez eu fique triste ao concluir que não consigo seguir o ritmo da música. Mas então, farei que a música siga o compasso dos meus passos. Talvez eu nunca consiga enxergar um arco-íris. Mas aprenderei a desenhar um, nem que seja dentro do meu coração. Talvez hoje eu me sinta fraco. Mas amanhã irei recomeçar, nem que seja de uma maneira diferente. Talvez eu não aprenda todas as lições necessárias. Mas terei a consciência que os verdadeiros ensinamentos já estão gravados em minha alma. Talvez eu me deprima por não ser capaz de saber a letra daquela música. Mas ficarei feliz com as outras capacidades que possuo. Talvez eu não tenha motivos para grandes comemorações. Mas não deixarei de me alegrar com as pequenas conquistas. Talvez a vontade de abandonar tudo torne-se a minha companheira. Mas ao invés de fugir, irei correr atrás do que almejo. Talvez eu não seja exatamente quem gostaria de ser. Mas passarei a admirar quem sou. Porque no final saberei que, mesmo com incontáveis dúvidas, eu sou capaz de construir uma vida melhor. E se ainda não me convenci disso, é porque como diz aquele ditado: “ainda não chegou o fim” Porque no final não haverá nenhum “talvez” e sim a certeza de que a minha vida valeu a pena e eu fiz o melhor que podia.

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Carolina Ramos

Do Cotidiano

Fim de tarde. Friozinho abelhudo penetrava por onde quer que lhe fosse permitido entrar, encolhendo ombros e aconchegando corpos. Pressa. Pressa de voltar para casa. De rever a esposa, os filhos, os entes queridos. Pressa de trocar os sapatos pela comodidade dos chinelos velhos, das meias de lã, ma maioria das vezes furadas no dedão. Pressa de sumir dentro do pijama quentinho. De saborear o jantar fumegante e depois esparramar-se na poltrona, frente à TV para cochilar e falar mal dela. Fim de tarde fria. Noite a insinuar-se, mais fria ainda. Sem esposa, nem filhos, sem aquela pressa que movia tantas pernas, Reginaldo caminhava sem motivação maior, arrastando os passos até a lanchonete mais próxima, menos cheia de gente descompromissada, como ele, e, portanto, menos tumultuada pelo vozerio das massas. Roído de fome, passou a perna por sobre a banqueta redonda, repousando os cotovelos no balcão de formica. Consultou os bolsos. Eles é que ditavam o pedido. Os apelos do estômago eram secundários. Fim de mês. Minguava, no fundo da algibeira, a carteira murcha. Não dava para muito. E, justamente naquele início frio de uma noite que prometia ser gélida, sentia uma fome de cão vadio! – Um hamburger com fritas. Ah… e um cafezinho pingado. – Bebida? Lembrou-se da carteira murcha. – Não…obrigado. Só o cafezinho. Aguardou, impaciente. Chegaram juntos: – o hamburger e o garoto de olhos tristes. Seis ou sete anos, no máximo.

Disfarçou, fingindo não vê-lo. Foi puxado pela manga. – Moço, me dá um dinheirinho? Tô cum fome. Era tudo que não queria ouvir! Engoliu a saliva que o reflexo, condicionado à chegada do hamburger, lhe fizera crescer na boca. – Hoje não, meu filho…Não tenho trocado. – Procurou ignorar a presença incômoda do menino, saboreando, com os olhos, a iguaria, cujo aroma lhe excitava as glândulas salivares. Apertou o hamburger com volúpia, fazendo o ―catchup‖ escorrer pelas bordas. Chegou a abrir a boca para a primeira mordida, não consumada. Ao seu lado, o garoto permanecia fascinado pelo petisco fumegante, entre fritas e folhas de alface. Reginaldo engoliu em seco. Tivesse dinheiro no bolso e tudo estaria resolvido. O remorso antecipou-se à consumação, importunando-o mais do que a própria fome. Pensou em divir o pitéu. Lambuzou-se todo! Os olhos do garoto continuavam, gulosos, namorando o hamburger. Capitulou. Pediu um saquinho de papel e encheu-o de batatas fritas. Embrulhou o hamburger num guardanapo e entregou-o, inteiro, à fome que se estampava na carinha esquálida. E achou que seria pouco! Alegria e surpresa coloriram a face ´pálida do menino que balbuciou qualquer coisa ininteligível e disparou porta afora, temeroso de possível arrependimento. Sobraram para Reginaldo, desapontamento e frustração total! Perdera o jantar! A fome continuava firme. E a fuga precipitada roubava-lhe, ainda, a modesta satisfação do espetáculo proporcionado pela sua renúncia. Queria ver

Almanaque Literário ―O Voo da Gralha Azul‖ – numero 8 – set/out/nov 2011

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morrer a fome do guri! Fome a ser morta por ele! Morte da qual não se arrependeria, jamais! Direito seu!

Contentou-se com o cafezinho morno e duas fritas sobradas no prato. E enfrentou novamente a noite, mais fria do que antes, ignorando os reclamos do estômago vazio.

Meio quarteirão adiante, uma surpresa. Sentado na calçada, encostado à parede, o mesmo garoto, olhos menos tristes, dividia com

a mãe, maltrapilha, e com mais duas crianças, sua finada refeição.

O sorriso do menino foi, sem dúvida, o que de mais gratificante recebera da vida!

A caminho da modesta vaga que ocupava, numa casa de cômodos, esqueceu-se da fome. Chegou mesmo a envergonhar-se dela!. Fonte: RAMOS, Carolina. Interlúdio: contos.SP: EditorAção, abril 1993.

Carolina Ramos

Lançamento do Livro de Poesias ―Destino‖, em 23 de Novembro

Almanaque Literário ―O Voo da Gralha Azul‖ – numero 8 – set/out/nov 2011

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Humberto de Campos

A Rosa Azul

comendador Luiz de Faria acabava de fechar os olhos à velha

marquesa de São Justino, adoçando-lhe o momento da morte com a noticia alvissareira e mentirosa da completa regeneração do seu neto, o estudante Guilherme de Araújo, quando o encontrei à porta da casa funerária, à espera do seu automóvel. Abalado, ainda, pela emoção daquele instante, em que tivera de lançar mão de uma falsidade para perfumar o último sopro de uma vida de virtudes e sofrimentos, o antigo par do reino português aceitou um lugar no meu ―taxi‖, e confessou-me, em viagem: - A mentira, meu amigo, é, às vezes, uma necessidade. Aquela de que me socorri há meia hora, para suavizar a morte de uma santa, de uma senhora cuja maior esperança consistia no futuro de um neto que se desgarrara do lar, era tão necessária como a do prior da Cartuxa para alegrar a agonia daquele célebre monge do Bussaco. Eu olhei, interrogativamente, o meu companheiro de viagem, e ele, percebendo a ignorância, indagou, com admiração: - Não conhece, então, a lenda da rosa azul? À minha afirmativa, que lhe pareceu estranha, o comendador apoiou as mãos robustas no castão de ouro da bengala, e contou: - No Mosteiro da Cartuxa, no Bussaco, em Portugal, vivia, em séculos que já se foram, um piedoso e santo monge, cuja vida se consumia, inteira, entre a oração e as rosas. Jardineiro da alma e das flores, passava ele as manhãs de joelhos, no silencio da nave, aos pés de um Cristo crucificado, e as tardes, no pequeno jardim da ordem, curvado diante das roseiras, que ele próprio plantava e regava.

O comendador interrompeu um momento a narrativa, recostou-se na almofada, e continuou: A sua paciência de jardineiro era absorvida, entretanto, por uma idéia, que era um sonho: encontrar a rosa azul das legendas do Oriente, de que tivera noticia, uma noite, ao ler os poemas latinos dos velhos monges medievais. Para isso, casava ele as sementes, os brotos, fundia os enxertos, combinando as terras, com que as cobria, e as águas, com que as regava, esperando, ansioso, o aparecimento, no topo da haste, do sonhado botão azul! Ao fim de setenta anos de experiências e sonhos, em que se lhe misturavam na imaginação as chagas vermelhas de Cristo e as manchas celestes da sua rosa encantada, surgiu, afinal, no coroamento de um galho de roseira, um botão azul, como o céu. Centenário e curvado, o velhinho não resistiu à emoção; adoeceu, e, conduzido à cela, ajoelhou-se diante do Crucificado, pedindo-lhe, entre soluços pungentes, que, como prêmio à santidade da sua vida, não lhe cerrasse os olhos sem que eles vissem, contentes, o desabrochar da sua rosa azul. Uma nova pausa, e o meu companheiro tornou: - Em volta do santo velhinho, no catre do mosteiro, todos choravam, compungidos. E foi, então, que, divulgada de boca em boca, foi a noticia ter a um convento das proximidades, onde jazia, orando e sonhando, uma linda infanta de Portugal. Moça e formosa, e, além de formosa e moça, – fidalga e portuguesa, compreendeu a pequenina freira, no jardim do seu sonho, o valor daquela ilusão, e correu à sua cela, consumindo toda uma noite a fazer, com os seus dedos de neve, uma viçosa flor de seda azul, que perfumou, ela própria, com essência de gerânio. E no dia seguinte, pela manhã, morria no seu catre, sorrindo entre lágrimas de alegria, por ter nas mãos

O

Almanaque Literário ―O Voo da Gralha Azul‖ – numero 8 – set/out/nov 2011

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tremulas, por um milagre do céu, a sua rosa azul! O ―taxi‖ parava no meio-fio da calçada, o comendador acrescentou, estendendo-me a mão agradecida:

- Feliz, meu amigo, aquele que morre, como esse monge e a marquesa, apertando nas mãos a rosa, mesmo mentirosa, de uma roseira de que cuidou toda a vida. Fonte: Domínio Público

Nilton Manoel

Poesia Magica (haicais)

1 Chove… Noite longa! Insone faço barquinhos e a aurora não chega. 2 No céu estrelado, a bola redonda, agita, o dia das bruxas. 3 É noite. Os barulhos são tantos… e um pernilongo, deixa-me acordado. 4 Muro antigo, os bichos, movimentam-se, com medo de uma lagartixa. 5 Famintos de espaço, cupins, mudam de lugar, nas tábuas da mesa, 6 Na cômoda antiga, um jornaleiro de louça! O guri se foi.

7 Música na rua! O caminhão passa e vejo meu fogão sem gás! 8 Menino de rua, - dorme e sonha à porta da igreja -, sem família e escola. 9 Dois corpos inertes. Sangue escorrendo no chão! Há droga no crime? 10 Na estreita calçada, o bípede e o quadrúpede, desfilam na corrente. 11 Calça desbotada, rasgada, cós baixo… é a moda! Quanta mulher linda! 12 Rua descalça: - o povo clama e reclama, e o prefeito? Viaja!

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13 No escuro da rua, alguém corre e agita a mão, ao táxi que passa. 14 Na grama verdinha a perereca faz cooper e assusta a madame. 15 No verão há menos fofoqueiros que, no inverno.; o sorvete acalma! 16 A ágil libélula, voa e sobrevoa, a fonte. da praça da escola. 17 Na praça, a menina, namora, entre belas flores. É um buquê de sonhos! 18 Em céu de bons ventos e a meninada feliz, solta pipa e canta. 19 A mosca chateia, o corpo suado do chapa, na usina de açúcar. 20 Deitados na grama da praça, um casal namora e, o Sol nem se foi. 21 Na fria manhã, o entregador de jornal, traz notícias de ontem. 22 Em banca de feira, o preço do feijão jalo, vende mais arroz. 23 Friagem na rua, sob a marquise, o homem só, põe jornais no tênis. 24 Na estreita calçada, portões, folhagem, floreiras… pedestres, na rua! 25 Na coleta, o lixo, nem pesa na mão sofrida, do rapaz cansado.

26 Um tiro no escuro. A estrela sai de cartaz e a platéia chora. 27 Boteco de esquina, o pai ausente, acredita que, a família, é chope. 28 Brisa leve. Velas aromáticas nos ares… Rituais diversos. 29 Na ausência da lua, namorados de esquina, se esquecem do mundo. 30 Na manhã de Sol, a libélula descansa, num varal de roupas. 31 Campo Santo, a brisa da madrugada, clareia, idéias macabras. 32 Delicia de vida! Quando há cravo e canela, o arroz é doce. 33 Cheia de cupins, morre aos poucos, a figueira, da praça sem nome. 34 Sopa quente… as letras do macarrão, revelam-me palavras e idéias. 35 A cigarra canta na palmeira sem parar e nem todos a ouve. 36 No xaxim do alpendre, a samambaia desfolha, folhinhas no chão. 37 Saudade: – mão única.; campas, estátuas, fantasmas. Desfecho da vida. 38 Na areia macia, a juventude faz festa, com as ondas do mar.

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39 Fogos de fim de ano e, o poeta, cheio de versos, sonha com bonança. 40 Venta e chove forte , vejo da vidraça, na rua, os ônibus lotados. 41 Real na pele, o rico chupa sorvete, e o pobre gelinho.= 42 Natal! Luzes… lojas… Sonhos… Novas esperanças! e o homem só, esmola! 43 Na falha da folha da goiabeira, o sol crava, lâminas de luz. 44 Máscaras, confetes, pelas ruas quanto samba! Carnaval é festa! 45 O homem com a pá, cava a cova e guarda os restos. Com o fim vive a vida. 46 No xaxim de areia, a robusta samambaia quer dengo sem dengue. 47 Cantigas, bandeiras, batatas, quentões, fogueiras… é junho na roça. 48 No fogão de lenha, o gosto do bom café, tem casa de campo. 49 Chapéus de lã, ventos de frente fria, caem folhas secas no chão. 50 A lua cheia e redonda, toma conta das estrelas.; e o poeta, versa. 51 Na folha branquinha, consoantes e vogais, ondeiam meus sonhos.

52 Céus azuis. Planícies! Cidades. Sonhos. Poder. Quadros sociais. 53 Sete de setembro. Independência ou morte. Sorte. Um bem-te-vi canta. 54 É carnaval. Festa do povo que sonha e sua em paz com alegria. 55 Os flocos dengosos do algodão caem no chão… Tapetes plumosos. 56 O poeta olha o céu, Sonha, sonha, sonha e sonha… Desperta e escreve! 57 A inveja lateja na alma abatida e sem calma. Espinhos daninhos. 58 Primavera, festa da natureza. A beleza está da alma da gente. 59 Na mata, o perfume, revela os mistérios lindos que a natureza tem. 60 Nos galhos secos, as aves pintam a tarde, e o canto é saudade. 61 Há uva na parreira e o néctar de cada cacho tornam-me um eterno. 62 Na rua o homem só não pesa na minha consciência. Virou postal. 63 Saudade é a avenida dos que vão antes de mim! E eu vou pra onde. 64 Na rua do empório, em dias de promoção, o povo faz fila .

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65 A velha senhora, entra no mercado, na farmácia… Não ri nem chora. 66 O sapo coaxa, no lago da fazenda, em noite estrelada. 67 Os campos se vão e as aves silvestres ficam, mais urbanizadas. 68 No verde minguado de aves e animais, os homens, plantam mais cinzas… 69 Escureceu e o campo revela as luzes singelas de mil pirilampos. 70 Luzes estelares de abril… sutil poesia em todos os lares. 71 Na lã do chapéu De leve flocos de neve Invernam meu céu. 72 Junho. A lua brilha. Na roça qualquer palhoça faz fogo e quadrilha. 73 Comédia medonha, o salário do operário, não paga o que sonha. 74 Tapete de flores, no chão a emoção de perfuma em cores. 75 Na clara manhã canta um galo e numa planta salta e salta a rã… 76 Na porta da firma, por salário, o operário, faz greve e se afirma. 77 Fim de tarde… o Sol movimenta-se e inventa as cores do arrebol.

78 Sentado no chão, o menino, sem destino, mastiga um filão. 79 Lua baça, esfria! É frente fria na gente e rua vazia. 80 Como a vida é bela! Fartura! Há arroz com mistura. Viva a mortadela. 81 Venta. É primavera.; perfume em todos os lares, lume de nova quimera. 82 No pé de abacate, o bem-te-vi canta bem… Um cachorro late. 83 Queimada de cana! Venta e a palha atormenta o fim de semana! 84 Tarde sossegada, na rede, eu mato a sede com limonada. 85 Em noite de vento tem sempre o vulto de alguém procurando alento. 86 A beira do rio verde e robusto o arbusto balança macio. 87 Rua longa, fria, muito pó… O homem vai só, sem lar, na agonia! 88 Pobre e sem afeto, nada de novo para o povo, sem terra e sem teto. 89 O mínimo vem! O salário do operário, faz sofrer? Amém! 90 Escura noite. O céu estrelado me vê calado com sonhos ao léu.

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91 No sótão, guardados dos antigos da família, dão vida aos cupins. 92 Na rua devassa, cenas constantes, obscenas, assustam quem passa. 93 Na quadra de esporte a bola rola, rola e enrola, o atleta sem sorte. 94 Férias escolares nas noites de lua, a rua, têm bolas nos ares. 95 Folhas no chão. Grilos. Sombras. Espantalhos mexem com a visão.; 96 Na gaiola, canta o canário e o hinário, é encanto e vida 97 O grão de feijão, descobre, na mesa do pobre, que é ouro-tesouro. 98 Seca, mansamente, cai a folha e o vento lento

faz formas no chão. 99 Magro o gato persa, no canto da sala, embala, muita conversa. 100 Sentadas no chão crianças batem mansas figuras com a mão. 101 Chove forte e o rio de baixa borda transborda. e a vida num fio. 102 Pula, corcoveia… no embalo pára o cavalo e o peão, na areia. 103 Flor branca e bela. visão de impacto o cacto de minha janela. 104 Rua molhada, a parada brusca de um fusca, traz confusão danada. 105 Balcão de perfumes. Rosa Maria, formosa, é meiguice e ciúmes. Fonte: Usina de Letras

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Nilton Manoel

Trovas

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Quem tem vida vive atento pêlos caminhos que enfrenta; brinda as farpas do momento

com chocolate e pimenta. 2

O chifre em terra rachada em bucolismo infernal,

é o adorno que traça a estrada da carência de água e sal.

3

Florestas? – Quero espigões! e a fauna toda enjaulada!

… e a moda de altos portões, esconde a noite estrelada.

4 Depois dos cinqüenta, creio,

tudo é lucro e coerência; homem que não faz rodeio, sabe o que vale a existência.

5

Homem é o que sabe ser companheiro, amigo e irmão; Quem preza o Bem, sabe ter

da vida toda a emoção. 6

Meu pai, exemplo perfeito de luta e vitalidade;

ao partir, por ser direito, deixou sincera saudade.

7

Quando o homem é Homem não chora, enfrenta as farpas da vida,

vence a fauna hostil com a flora tornando a estrada florida.

8

O amante da Filomena, se encontra o ex-marido dela,

treme tanto de dar pena…

e geme sem dor com ela! 9

Solteiro? – Querida! Ó vida de prazeres… sonhos tantos! Casados? ? Os nós da lida, cegam os reais encantos!?

10

No lirismo de meu povo sonho e tenho sempre fé que num dia de sol novo será plena a paz.. de pé!

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Enfim dono dos saberes da vida, em música e dança, concluo que, o fim dos seres

é o limite da esperança.

12 Corre-se tanto, mas tanto,

pelo pódio e sua glória que, o enfim é o fúnebre pranto, de um troféu ao fim da história!

13

Quando há morte programada pelos quadrantes da terra,

homens que não valem nada sentem paz plantando guerra.

14

Cavalgando sem rodeios por galáxias estreladas, o poeta, em seus anseios tece trovas requintadas.

Nilton Manoel

ilton Manoel Teixeira, capricorniano de 3 de janeiro, nasceu em Ribeirão

Preto-SP, onde vive. N

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Professor e contabilista. Começou nos anos sessenta publicando

seus textos no mimeógrafo à álcool e escrevendo para jornais. Com apoio de Luiz Otávio (fundador da União Brasileira de Trovadores) implantou os Jogos Florais em sua cidade e como presidente da secção ubeteana de Ribeirão Preto, realiza eventos locais e nacionais.

Na área da Literatura, esteve no Conselho Municipal de Cultura, por três gestões.

Tem editados:-Trovas da Juventude; Cantigas do meu terreiro; Caviar, gororoba e sal de frutas, Poesia Mágica (haicais) e folhetos de Cordel ao estilo tradicional.

Pertence a: Academia Anapolina de Filosofia, Ciências e Letras. Academia Brasileira de Trova. Academia de Letras de Uruguaiana, Academia de Letras Fronteira Sudoeste do Rio Grande do Sul. Academia Friburguense de Letras. Academia Goianiense de Letras. Academia Internacional de Ciências Humanísticas. Academia Internacional de Heráldica e Genealogia. Academia de Letras de Ribeirão Preto. Academia Petropolitana de Poesia. Academia Poços-caldense de Letras. Academia Ribeirãopretana de Poesia. Academia Santista de Letras. Academia Virtual Brasileira de Letras.

Casa do Poeta e do Escritor de Ribeirão Preto ( fundador e 1º presidente), Clube Internacional da Boa Leitura. Instituto Histórico e Geográfico de Uruguaiana. Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal. Ordem dos Velhos Jornalistas. The International Academy of Letters of England. União Brasileira de Escritores. Usina de Letras etc.

Tem o título de Magnífico Trovador pela Ordem Brasileira dos Poetas da Literatura de Cordel;

Mérito Cultural pelo Instituto Histórico e Geográfico de Uruguaiana, Medalha de Ouro, no I Aniversário do Clube dos Trovadores Capixabas, Honra ao Mérito pela Ordem Brasileira dos Poetas da Literatura de Cordel.

Mérito Cultural Pablo Neruda, em 2004 No http://www.movimentodasartes.com.br/ assina a coluna Trovador Fontes: Usina das Letras Portal CEN

J.B.Xavier

A Espera

Por sobre o banco onde eu estava sentado, pendiam galhos de chorões que iam até o chão, mas ainda assim, por entre essa maravilhosa prisão verde, eu podia ver os ônibus que chegavam, vindos de todos os Estados do país. Coloridos, eles se misturavam num caleidoscópio maravilhoso de cores e formas,num magnífico balé de titãs. Às seis horas da manhã lá estava eu, sentado num banco da pequena praça que havia em frente à área de desembarque do terminal rodoviário de uma das maiores cidades do país.

Muitos bons dias dei, muito acenei para os passageiros que ansiavam por liberdade, por fugir da clausura de horas e horas de viagens claustrofóbicas. Sorri um riso amarelo, e acenei claudicante para os sorrisos das crianças, filhos de migrantes que vinham tentar a sorte na cidade grande. Mas não tive tempo de ficar triste, porque os galhos verdes, gentilmente manipulados pela brisa da manhã, acariciaram meu rosto ternamente, alisaram meus cabelos e farfalharam alegres, certamente gratos pelo sol que surgia por trás dos edifícios,

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numa promessa de um cálido banho de vida. Reflexos vívidos e faiscantes lascas de luz transformavam as poças da chuva da noite anterior em bateias repletas de esfuziantes diamantes. Como garimpeiro cuidadoso, toquei uma dessas jóias que pendiam frágeis na ponta de uma delicada folhinha que balouçava suavemente à minha frente. Gentilmente ela aceitou meu convite e, assim, de repente, eu tinha uma obra de arte na ponta dos dedos. Olhei atônito aquele universo minúsculo, aquela esfera perfeita, na qual Deus faz demonstrações magistrais de engenharia celestial e pude ver seus espelhos refletindo o mundo ao meu redor, como a lembrar-me de minha própria pequenez diante da beleza universal. Frágil, e com a certeza de já ter vivido o suficiente para tocar-me a alma, a pequenina gotícula chegou ao fim de sua eternidade e desfez-se diante de

mim, restando apenas uma umidade em meus dedos, único sinal de que ela existira e ensinara-me algo sobre a seqüência eterna dos ciclos. Uma brisa mais ousada veio me dar seu bom dia e o galho estremeceu num frenesi de prazer, feliz pela visita bem vinda. Apenas por observar esse encontro maravilhoso, fui ungido com a bênção de ter sobre mim as lágrimas de felicidade do orvalho remanescente. Então um grande e multicolorido ônibus surgiu entre os demais, e, numa janela ocasional senti, antes de ver, teu sorriso maravilhoso e as doces promessas de amor que dele rescendiam. Olhei durante aquela pequena eternidade que durou tua chegada e lembrando de Louis Armstrong, pensei comigo mesmo: Que mundo maravilhoso! Fonte: http://www.jbxavier.com.br/visualizar.php?idt=4572

Artur de Azevedo A Ama-Seca

Romualdo, marido de D. Eufêmia, era um rapaz sério, lá isso era, e tão incapaz de cometer

a mais leve infidelidade conjugal como de roubar o sino de São Francisco de Paula; mas – vejam como o diabo as arma! Um dia D. Eufêmia foi chamada, O

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a toda a pressa, a Juiz de Fora, para ver o pai que estava gravemente enfermo, e como o Romualdo não podia naquela ocasião deixar a casa comercial de que era guarda-livros (estavam a dar balanço), resignou-se a ver partir a senhora acompanhada pelos três meninos, o Zeca, o Cazuza, o Bibi, e a ama-seca deste último, que era ainda de colo. Foi a primeira vez que o Romualdo se separou da família. Custou-lhe muito, coitado, e mais lhe custou quando, ao cabo de uma semana, D. Eufêmia lhe escreveu, dizendo que o velho estava livre de perigo, mas a convalescença seria longa, e o seu dever de filha era ficar junto dele um mês pelo menos. O Romualdo resignou-se. Que remédio!… Durante os primeiros tempos saía do escritório e metia-se em casa, mas no fim de alguns dias entendeu que devia dar alguns passeios pelos arrabaldes, hoje este, amanhã aquele. Era um meio, como outro qualquer, de iludir a saudade. Uma noite coube a vez ao Andaraí Grande. O Romualdo tomou o bonde do Leopoldo, e teve a fortuna ou a desgraça de se sentar ao lado da mulatinha mais dengosa e bonita que ainda tentou um marido, cuja mulher estivesse em Juiz de Fora. Nessa noite fatal a virtude do Romualdo deu em pantanas: tencionando ele ir até o fim da linha, como fazia todas as noites, apeou-se na Rua Mariz e Barros, ali pelas alturas da Travessa de São Salvador. A mulata havia se apeado algumas braças antes. E ele viu, à luz de um lampião, o vulto dela saltitante e esquivo, e apressou o passo para apanhá-la, o que conseguiu facilmente, porque, pelos modos, ela já contava com isso. - Boa noite!

- Boa noite. - Como se chama? - Antonieta. - Pode dar-me uma palavra? - Por que não falou no bonde? - Era impossível… estava tanta gente… e estes elétricos são tão iluminados. - Mas o sinhô bolinou que não foi graça! vamos, diga: que deseja? - Desejo saber onde mora. - Não tenho casa minha; tou empregada numa famia ali mais adiente, por siná que não stou satisfeita, e ando procurando outra arrumação. - Onde poderemos falar em particular? - Não sei. - Você sai amanhã à noite? - Amanhã não, porque saí hoje, e não quero abusá. - Então, depois de amanhã? - Pois sim. - Onde a espero? - Onde o sinhô quisé. - Na Praça Tiradentes, no ponto dos bondes. As oito horas. - Na porta do armazém do Derby? - Isso! - Tá dito! Inté depois d‘amanhã às oito hora. - Não falte!

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- Não farto não! No dia seguinte, o Romualdo contou a sua aventura a um companheiro de escritório que era useiro e vezeiro nessas cavalarias… baixas, e o camarada levou a condescendência ao ponto de confiar-lhe a chave de um ninho que tinha preparado adrede para os contrabandos do amor. Antonieta foi pontual; à hora marcada lá estava à porta do Derby, com ares de quem esperava o bonde. O Romualdo aproximou-se, fez um sinal, afastou-se e ela seguiu-o… Dez dias depois, estava ele arrependidíssimo da sua conquista fácil, e com remorsos de haver enganado D. Eufêmia, aquela santa! Procurava agora meios e modos de se ver livre da mulata, cuja prosódia era capaz de lançar água na fervura da mais violenta paixão. Vendo que não podia evitá-la, tomou o Romualdo a deliberação de fugir-lhe, e uma noite deixou-a à porta do ninho, esperando debalde por ele. Lembrou-se, mas era tarde, que havia prometido dar-lhe uni anel, justamente nessa noite. - Diabo! pensou ele, Antonieta vai supor que lhe fugi por causa do anel! Voltou, afinal, D. Eufêmia de Juiz de Fora. Veio no trem da manhã, inesperadamente, e já não encontrou o marido em casa. Estava furiosa, porque a ama-seca de Bibi deixara-se ficar na estação da Barra. Podia ser que não fosse de propósito. O mais certo, porém, era o ter sido desencaminhada por um sujeito que vinha no trem a namorá-la desde Paraíbuna. Quando D. Eufêmia contou isso ao marido, acrescentou indignada:

- Que homens sem-vergonha!… Não podem ver uma mulata!… O Romualdo perturbou-se, mas disfarçou, perguntando: - E agora? E preciso anunciar! Não podemos ficar sem ama-seca! - Já mandei o Zeca pôr um anúncio no Jornal do Brasil. No dia seguinte, o Romualdo saiu muito cedo; ao voltar para casa, a primeira coisa que perguntou à senhora foi: - Então? Já temos ama-seca?. . - Já; é uma mulatinha bem jeitosa, mas tem cara de sapeca. Chama-se Antonieta. - Hem? Antonieta? - Que tens, homem? - Nada; não tenho nada… E jeitosa?… Tem cara de sapeca?… Manda-a embora! Não serve! Nem quero vê-la!… - Ora essa! Por quê? Olha, ela aí vem. Antonieta chegou, efetivamente, com o Bibi ao colo; mas o Romualdo tinha fechado os olhos, dizendo consigo: - Que escândalo!… rebenta a bomba!… este diabo vai reclamar o anel!. Mas como nada ouvisse, o mísero abriu os olhos e – oh! milagre! – era outra Antonieta!. Ele pensou, os leitores também pensaram que fosse a mesma; não era. Decididamente, há um Deus para os maridos que enganam as suas mulheres. Fonte: Domínio Público

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Adelto Gonçalves

Cinco séculos de poesia brasileira

I

professores de Literatura Brasileira tanto do ensino médio

como do ensino universitário já não precisam se preocupar tanto para elaborar seus planos de ensino nem consultar uma grande quantidade de livros nem sempre disponíveis nas bibliotecas de escolas ou mesmo de universidades públicas ou privadas. Foi pensando nisso que a Companhia Editora Nacional e a Lazuli Editora decidiram editar uma série de cinco livros sobre a poesia brasileira desde a formação do País até o começo do século XX, entregando a tarefa a uma equipe de jovens críticos e professores já com experiência em sala de aula, todos ligados à Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O resultado é uma edição que merece toda a confiança do leitor e que permite ―pensar a história da poesia no Brasil e suas principais linhas de força, ao longo de cinco séculos‖, como assinala na apresentação do primeiro dos cinco volumes Paulo Franchetti, professor titular de Teoria Literária na Unicamp, responsável também pela apresentação dos demais livros.

O primeiro volume da série, Antologia da poesia barroca brasileira, traz poemas de Gregório de Matos (1636-1696), Bento Teixeira (c.1561-1600), Manuel Botelho de Oliveira (1636-1711) e Sebastião da Rocha Pita (1660-1738), selecionados por Emerson Tin, doutorando em Literatura Brasileira pela Unicamp, responsável também pelo prefácio, por notas explicativas e de natureza literária, contextual e lexical e por uma pequena notícia biográfica de cada autor que ajudam a tornar cada poema mais legível ao leitor pouco versado na produção barroca luso-brasileira. Não é preciso dizer que na produção poética do período a primazia é de Gregório de Matos, o que levou o organizador da antologia a selecionar 40 de seus poemas. Seu contemporâneo Botelho de Oliveira aparece com 20 poemas, enquanto Rocha Pita, consagrado autor da História da América portuguesa, tem resgatada a sua um tanto esquecida produção na Academia Brasílica dos Esquecidos. Quem, porém, abre a antologia é Bento Teixeira, conhecido especialmente pelo poema épico ―Prosopopéia‖, que tem como modelo ―Os Lusíadas‖, de Luís de Camões (1524?-1580).

Os

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II

om seleção e notas de Pablo Simpson, o segundo volume da série,

Antologia da poesia árcade brasileira, dedica os maiores espaços, como não poderia deixar de ser, a Cláudio Manuel da Costa (1729-1789) e Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), mas também contempla parte da produção de Santa Rita Durão (1822?-1784), Domingos Caldas Barbosa (1738-1800), Basílio da Gama (1741-1795), Alvarenga Peixoto (1744-1793) e Silva Alvarenga (1749-1814). Reúne o que de melhor produziu a poesia árcade e, de certo modo, ajuda-a a recuperar um lugar que nem sempre lhe foi reconhecido pela crítica, especialmente a da primeira metade do século XX, que viu com prevenção a estilização e o apego de seus poetas a cânones não só portugueses como italianos, esquecendo-se de que, à época, o Brasil não existia como nação organizada e, na verdade, éramos todos portugueses. Como assinala Paulo Franchetti na apresentação, o Arcadismo, embora não tenha recebido a fortuna crítica e a recepção entusiasmada com que o Barroco tem sido contemplado nos últimos anos, já pode ser visto de modo mais favorável. Além disso, o próprio movimento de constituição de agremiações intelectuais, as famosas academias, diz o professor, ―parece mais simpático, quando se considera que o uso dos pseudônimos e a valorização do talento como único requisito para admissão dos membros encenavam, na sociedade estratificada do século XVIII, o ideal de uma aristocracia de espírito e não de sangue‖. Para isso, muito contribuíram os recentes estudos de Jorge Ruedas de la Serna, Vania Pinheiro Chaves, Ivan Teixeira, Alcir Pécora, Melânia Silva de Aguiar, Sérgio Alcides, Ronald Polito, Joaci Pereira Furtado, José Ramos Tinhorão, Luís André Nepomuceno e, se permitem

a pouca modéstia, a biografia de Tomás Antônio Gonzaga que este articulista escreveu. III

á Antologia da poesia romântica brasileira, com seleção e notas de Pablo

Simpson, Pedro Marques e Cristiane Escolastico Siniscalchi, é um volume mais encorpado, em razão mesmo da necessidade de abranger maior número de autores. O período, a rigor, vai de 1836, quando o poeta Gonçalves de Magalhães (1811-1882) publicou um ensaio na revista Niterói, editada em Paris, lançando as idéias de um programa para a edificação de uma literatura genuinamente brasileira, sob a influência da natureza americana, até meados da segunda metade do século XIX. E configura a presença do Romantismo em terras brasileiras. Além do citado Gonçalves de Magalhães, o volume abrange autores díspares como Sousândrade (1832-1902), autor de ―O Guesa Errante―, poema redescoberto pelos concretistas Augusto e Haroldo de Campos (1929-2003) a partir da década de 60 do século passado, e Gonçalves Dias (1823-1864), autor da antológica ―Canção do exílio‖ e de alguns dos mais importantes poemas da lírica indianista brasileira. Reúne ainda Luís Gama (1830-1882), com suas sátiras aos comportamentos, tipos e situações de sua época, Bernardo Guimarães (1825-1884), com sua poesia erótica e, às vezes, até pornográfica, Álvares de Azevedo (1831-1952), com sua fina e sepulcral poesia, Laurindo Rabelo (1826-1864), com sua poesia satírica e fescenina, Casimiro de Abreu (1839-1860), com sua lírica de tons suaves, Castro Alves (1847-1871), com seus versos grandiloqüentes em favor dos escravos, Fagundes Varela (1841-1875), com seus poemas religiosos uns, amorosos outros, de inspiração regional ou sertaneja, Juvenal Galeno (1836-1931), com seus versos francamente populares, e

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Junqueira Freire (1832-1855), com seus poemas de monge atormentado. IV

om seleção e notas de Pedro Marques, Antologia da poesia

parnasiana brasileira apresenta poemas de 14 poetas, entre consagrados e outros menos conhecidos do grande público, mas não menos representativos do parnasianismo. Entre os consagrados, estão Olavo Bilac (1865-1918) e Machado de Assis (1839-1908), cuja produção como poeta acabou abafada pelo êxito de seus romances da última fase. Entre os menos afamados, estão Luís Delfino (1834-1910), B.Lopes (1859-1916) e Francisca Júlia (1870-1920), única mulher entre os poetas reunidos. Lembra Franchetti na apresentação que o parnasianismo, em seu grande momento, ocupou lugar proeminente em jornais, revistas, conferências públicas e saraus burgueses, atraindo grande público para a poesia, o que, aliás, nunca haveria de se repetir, guardadas as devidas proporções no tempo. É de ressaltar ainda que, desde os primeiros tempos do Brasil independente, a literatura esteve comprometida com as questões vitais da nação, tendo assumido a bandeira da causa abolicionista. Encerrada a questão da abolição da escravatura — embora a situação dos ex-escravos nunca tenha efetivamente preocupado o governo e as classes dirigentes –, e estabelecida a República, desapareceram os grandes temas épicos. Assim, a poesia refluiu a um exclusivo cultivo artístico, calcado em movimentos europeus posteriores ao Romantismo. Embora fique clara a influência do movimento francês, os parnasianos brasileiros procuraram um caminho próprio, o que explica o fato de terem caído no gosto da população ou pelo menos daquele público letrado que se interessava pelas coisas do espírito. Com certeza, tal foi a importância do lugar

que essa geração ocupou na sociedade de seu tempo que a ela se deve a criação da Academia Brasileira de Letras, como lembra Pedro Marques na sua introdução. Se muitas vezes os modernistas atacaram sem medidas o parnasianismo, isso se deu por conta da necessidade que tinham de oferecer alternativas para o que consideravam fórmulas gastas dos parnasianos. Mas nunca deixaram de reconhecer a importância histórica do movimento. V

om seleção e notas da professora Francine Ricieri, doutora em Teoria e

História Literária na área de Literatura Brasileira pela Unicamp, Antologia da poesia simbolista e decadente brasileira reúne nove poetas de um movimento que, ao não alcançar a repercussão do parnasianismo, agrupa nomes ainda pouco conhecidos do público. Diz a organizadora em aprofundado estudo introdutório à guisa de prefácio que esses poetas, como jamais pretenderam servir à causa nacional, ―foram usualmente representados como alienados, desenraizados, fúteis, irracionalistas, incompreensíveis, colonizados‖. Seja como for, como observa Franchetti na apresentação, a poesia simbolista reserva muitas surpresas ―e a leitura desta antologia por certo ajudará a reverter a idéia de desinteresse que se colou à produção simbolista‖. Para que esta frase não fique aqui assim um tanto solta, é de lembrar que Franchetti, autor de As aves que aqui gorjeiam — a poesia do Romantismo ao Simbolismo (Lisboa, Cotovia, 2005), navega por estas águas com mão de mestre, como diria Massaud Moisés. Missal e Broquéis, publicados no Rio de Janeiro em 1893, por Cruz e Sousa (1861-1898), teriam sido a primeira manifestação em livro no Brasil do Simbolismo ou Decadentismo. Por isso,

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além de peças de Cruz e Sousa, que abrem o volume, a organizadora recolheu poemas de Alphonsus de Guimaraens (1870-1921), B.Lopes (1859-1916), Eduardo Guimaraens (1892-1928), Maranhão Sobrinho (1879-1915), Pedro Kilkerry (1885-1917), Da Costa e Silva (1885-1950), Emiliano Perneta (1866-1921) e Alceu Wamosy (1895-1923). É de notar que B.Lopes aparece aqui também porque sua poesia tanto tem traços parnasianos como simbolistas. Desses, o mais visível nos dias de hoje é Da Costa e Silva, em razão do trabalho de resgate de sua poesia encetado por seu filho, o poeta Alberto da Costa e Silva, ex-presidente da Academia Brasileira de Letras, que tratou de republicar a produção do pai, embora Alphonsus de Guimaraens e Emiliano Perneta também sejam frequëntemente lembrados em estudos acadêmicos. Outro bem conhecido seria Augusto dos Anjos (1884-1914), cuja poesia apresenta recursos e temas relacionados à poesia simbolista, mas a organizadora preferiu deixá-lo de fora da antologia, argumentando que incluí-lo seria fornecer do poeta ―uma visão que não condiz com a linha peculiar e tão característica em que sua poesia se definiu‖. Até porque a produção de Augusto dos Anjos guarda igualmente traços parnasianos e até mesmo pré-modernistas.

Por isso, seria aceitável que alguns especialistas viessem a questionar a sua exclusão, mas a verdade é que o estudo introdutório de Francine Ricieri é tão bem embasado e didático e suas extensas notas de leitura tão esclarecedoras que essa se torna uma tarefa extremamente difícil e ingrata. _______________________ Antologia da Poesia Barroca Brasileira, 157 Págs., 2007 Antologia da Poesia Árcade Brasileira, 126 Págs., 2007 Antologia da Poesia Romântica Brasileira, 286 Págs., 2007 Antologia da Poesia Parnasiana Brasileira, 227 Págs., 2007 Antologia da Poesia Simbolista E Decadente Brasileira, 223 Págs., 2008 Apresentação De Paulo Franchetti. São Paulo: Companhia Editora Nacional/Lazuli Editora. Site: http://www.editoranacional.com.br/ E-mail: [email protected]

delto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do

Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: [email protected] Fonte: Literatura sem fronteiras

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Trovas Tema: Paciência

Ante as agruras da vida,

que nos chegam com freqüência, a conduta mais contida é seguir com paciência. HÉLIO PEDRO SOUZA

NATAL/RN

A Paciência é uma virtude que, junto à perseverança, de nós, afasta a inquietude, e traz de volta a esperança!

DELCY RODRIGUES CANALLES PORTO ALEGRE/ RS

Só com paciência se alcança

o que se espera da vida. Siga com mais esperança

a cada meta vencida! LEONILDA YVONNETI SPINA

LONDRINA/PR

Dá-me, Deus, com certa urgência, a graça que aqui rabisco:

dez por cento da paciência que puseste em São Francisco!

HUMBERTO RODRIGUES NETO PIRITUBA/SP

Motorista, paciência…

Calma lá, meu companheiro! Não se esqueça: competência

nem sempre é chegar primeiro! ANTONIO AUGUSTO DE ASSIS

MARINGÁ/PR

Não há nada que se negue ao homem manso e cortês:

a paciência consegue muito mais do que a altivez!

RENATA PACCOLA FRISCHKORN SÃO PAULO/SP

É na sua deficiência,

que o cego, na escuridão, acende a luz da paciência

no altar do seu coração… ERCY MARIA MARQUES DE FARIA

BAURU/SP ―Quando a dor chega a seu lar

paciência é uma virtude que se deve cultivar

com amor em plenitude!‖ SÔNIA DITZEL MARTELO

PONTA GROSSA/PR

Quem pratica a paciência, como virtude na vida supera toda ciência

vence a mais perversa lida. WILTON DI CARLI GUARULHOS/SP

Paciência tem limite,

eu sempre pensei assim; embora não acredite,

nosso amor chegou ao fim. NEIVA FERNANDES

CAMPOS DOS GOYTACAZES/RJ

A virtude da paciência nos traz equilíbrio e paz ao evitar a imprudência de uma atitude fugaz. ALFREDO BARBIERI

TAUBATÉ/SP

Um desafio na vida é vencer tribulações

e a paciência nos convida a refrear emoções.

MARINA GOMES DE SOUZA VALENTE BRAGANÇA PAULISTA/SP

Quando a dor desta existência

torna-se um fardo pesado, a Deus peço a Paciência e na fé sigo amparado!

MARIA EMÍLIA LEITÃO MEDEIROS REDI PIRACICABA/SP

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Contra a grande violência e a total insegurança, é melhor ter paciência

e uma dose de esperança, ILZE SOARES

SÃO PAULO/SP

Paciência teve Jó que tantas dores sofreu,

perdeu tudo, ficou só mas, sua fé não morreu.

MIFORI MOGI DAS CRUZES/SP

Tenha a calma de um regato,

da criança a inocência; você verá que, de fato,

a tudo vence a paciência. ADAMO PASQUARELLI

SÃO JOSÉ DOS CAMPOS/SP

Neste mundo em que vivemos, de tanta pressa e aflição que paciência nós temos para ajudar um irmão?! DIAMANTINO FERREIRA

CAMPOS DOS GOYTACAZES/RJ

Loja de conveniência, farmácia e lanchonete ofereçam ―Paciência‖

em comprimido ou tablete. GISLENO FEITOSA

TERESINA/PI

Todas as dores do mundo, tem uma causa, uma essência. Mas, com fé e amor profundo,

Deus nos provê Paciência! DILMA RIBEIRO SUERO

ESTÁCIO/RJ

Paciência é um preceito de quem tem fé, confiança,

e acredita no conceito: ―Quem espera sempre alcança‖

DECIO RODRIGUES LOPES MOGI DAS CRUZES/SP

Tenha paciência, senhora,

na vida tem recomeço; quando um amor vai embora,

outro amor manda endereço. CLÊNIO BORGES

PORTO ALEGRE/RS

Diante de tanta violência, serena, medita e ora; espera com paciência

e vive no aqui e agora. ELISA SANTOS

PONTA GROSSA/PR

Se teu viver é exemplar, com paciência e união, tua vida há de brilhar, como uma bela lição!

ARLENE LIMA MARINGÁ/PR

A paciência na dor

é virtude de alma forte. Vislumbra tão grande Amor,

vai vencer até a morte. ELISA ALDERANI

RIBEIRÃO PRETO/SP

Paciência!… Paciência!… Oh meu Deus, me dá um pouco…

Pois se dela, há carência, fico agindo como um louco.

RAQUEL DELVAJE PIRACICABA/SP

Houve pedras no caminho… Em que eu tanto tropecei, com paciência e carinho,

na esperança confiei! CÉLIA APPARECIDA SILLI BARBOSA

RIBEIRÃO PRETO/SP

Paciência é uma virtude que se tem, mas que se gasta

quando se toma a atitude de, para alguém, dizer: – Basta!

ANTÓNIO JOSÉ BARRADAS BARROSO PORTUGAL

Tanta era a sua pobreza

com humildade e decência, que, faltando o pão na mesa,

lhe sobrava a paciência. OLÍVIA ALVAREZ MIGUEZ BARROSO

PORTUGAL

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Que Deus me dê paciência para sofrer esta dor

de ver que a inconsciência mata e diz que é por amor! GISELA ALVES SINFRÓNIO

OLHÃO/PORTUGAL

Em teus braços meu amor me sinto plena e feliz, tua paciência é calor,

dá a minha vida matiz. NORA LANZIERI

BUENOS AIRES/ARGENTINA

Os avanços da ciência, por vezes vão devagar,

preciso ter paciência para uma cura aguardar… ACIOLINDA SPRANGER

LAGOS/PORTUGAL

Se diz não ter paciência pra ler, da Bíblia, conselhos;

use da sua valência: Fale com Deus, de joelhos…

MARIA DA CONCEIÇÃO CUSTÓDIO SANCHES

GOIS/PORTUGAL

Com positiva paciência obra boa descortina,

te diz a minha consciência que sempre Deus ilumina.

JAMIL WILLIAM PISCOYA AYALA FERREÑAFE/PERU

Para todo o sofrimento É preciso Paciência

Um olhar com sentimento A quem vive na indigência.

MARIA JOSÉ FRAQUEZA FUZETA/OLHÃO/PORTUGAL

Se a paciência faltar

nas penas, que hão-de ser luz… Lembra Deus a carregar por nós, o peso da Cruz!

CLARISSE BARATA SANCHES GÓIS/PORTUGAL

Se na dor, por excelência, O amor é primordial…

Há o sofrer, com paciência, De quem sofre d‘algum mal!

FERNANDO REIS COSTA COIMBRA/PORTUGAL

Um homem sem paciência, nem na dor tira vantagem;

e vê na sua existência uma vida sem coragem! JORGE A. G. VICENTE

SUIÇA

No sofrimento e na dor rogo a Deus Sua clemência,

resarei com mais fervor, para me dar paciência…

ANTÓNIO BOAVIDA PINHEIRO LISBOA/PORTUGAL

Paciência é virtude que no mundo pouco abunda;

hoje em qualquer latitude está quase moribunda.

EUCLIDES CAVACO CANADÁ

Fonte: Projeto de Trovas Para Uma Vida Melhor (Resultados da 2a. Etapa)

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Vicência Jaguaribe Mas a vida...A vida não se

passa a limpo

A velha senhora entrou no compartimento que sempre lhe servira de biblioteca e de gabinete. Em um tempo em que a maioria das mulheres se dedicava às tarefas domésticas, aos cuidados com os filhos e com o marido, ela passava horas naquela sala lendo e escrevendo. Quando o noivo mandara construir a casa onde morariam depois de casados, ela só fizera uma exigência: um aposento onde pudesse guardar seus livros, onde pudesse isolar-se para ler e escrever. Nem ao menos perguntara quantos quartos ou quantos banheiros teria a casa, nem quisera saber o tamanho da cozinha. A casa tinha quintal, ficava do lado da sombra ou do sol? Disso ela não quisera saber. Não desperdiçaria seu tempo com coisas desse tipo. Puxou a cadeira do birô, sentou-se e aproximou o porta-retrato com uma fotografia do dia do casamento: ela e o noivo... não, ela e o marido. Quando tiraram aquela foto já eram marido e mulher, fora logo depois da cerimônia. Passou a mão sobre a imagem do marido e recordou como ele fora apaixonado por ela. Uma paixão que a rotina do casamento não conseguira esfriar. Diante do desinteresse dela pelos assuntos domésticos, das horas que roubava da convivência com ele e com os filhos para dedicar à leitura e à composição de seus textos, sua paciência era uma fonte inesgotável, que parecia renovar-se todos os dias. Sabia não ter sido uma boa mãe. Não se enquadrava nos parâmetros que determinavam se uma mulher era uma boa mãe. Nunca se entusiasmara com a maternidade e não escondera isso do noivo. Chegara mesmo a dizer, para

escândalo dos futuros sogros, que não pretendia ter filhos. Seus pais não se horrorizavam mais com suas opiniões e posições fora dos eixos, conforme diziam. Ela fora assim desde pequena. Fazia tudo diferente das irmãs. Não obedecia ao horário convencional de dormir nem de comer, nunca se adaptou às imposições da escola, não gostava do que as outras meninas de sua idade gostavam. Era um astro que determinava sua própria rotação, não lhe importando se as leis da Física mandavam ir para a direita ou para a esquerda. Diante do inexorável, os pais tiveram que capitular. Ele, o marido, nunca reclamara de seus desvios do eixo da rotina. Amara-a incondicionalmente até o fim da vida. Ela lhe davaa impressão de que estava sempre na expectativa de que algo acontecesse. A si mesmo ele dizia que a mulher vivia sempre de véspera; para ela nunca chegava o dia D. Sabia que escrevia muito, mas nunca conseguira que ela lhe mostrasse – a ele ou a outra pessoa – os textos que produzia. Quando entrava no gabinete e surpreendia-a escrevendo, pedia-lhe permissão para ler o produto da vez. A resposta era sempre a mesma: - Não, agora não. Ainda está no rascunho, quando passar a limpo, você o lerá. E ele não insistia. Respeitava-a e amava-a demais para forçá-la a fazer qualquer coisa que a deixasse contrariada ou constrangida. A velha senhora levantou-se e passou em revista as estantes com seus livros. Diante dos seus preferidos, parava.

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Retirava um ou outro, folheava-o rapidamente e recolocava-o no lugar. Aproximou-se da estante em que guardava os livros infantis – alguns de seu tempo de criança, outros comprados para os filhos. Era uma das poucas coisas que a incomodavam na vida. Falhara com as suas duas crianças, porque não conseguira passar-lhes seu amor pelos livros, sua devoção à literatura, seu gosto pela prática da escrita. Parece até que trabalhara no sentido contrário – fizera-os afastar-se dos livros. Era como se, agindo assim, eles se vingassem das horas que ela lhes roubava para dedicar à leitura e à escrita. A família inteira – a dela e a do marido – ironizava o seu comportamento. De vez em quando, em tom de chacota, perguntavam pelos livros que ela sempre dissera que, um dia, publicaria. Quando pediam que lhes mostrasse algo escrito por ela, qualquer coisa que fosse – um conto, um poema –, nem que estivesse inacabado, ela dava a mesma resposta: - Ainda está no rascunho. Quando passar a limpo, eu mostro. Aproximou-se do arquivo – grande e trancado a chave – onde todo mundo sabia que ela guardava as produções literárias que ninguém nunca lera. Tirou do bolso a chave e abriu-o. Dentro, inúmeras pastas, todas elas identificadas e datadas. Sabia que muitas pessoas duvidavam de que ela, algum dia, houvesse realmente escrito alguma coisa. Quem escreve, escreve para ser lido. Ela, não. Nunca tivera coragem de mostrar a alguém um texto seu. Quantas vezes o marido não tentara convencê-la a selecionar uns manuscritos para publicação. Ele financiaria. Mas ela tinha a mesma resposta: - Não. Ainda não está na hora. Ainda está no rascunho, ainda tenho que passar a limpo. Por que agia assim? Não sabia ao certo. Nos outros setores da vida era resolvida,

independente, não aceitava imposição de ninguém. Que mistério era esse que só existia quando se tratava de sua produção literária? Depois que o marido morrera, ela jurara a si mesma que faria o que ele tanto lhe pedira: daria a forma definitiva a alguns contos, a algum romance, isto é, os arrancaria da condição de rascunho, e os levaria a uma editora. Mas, quando pegava uma pasta e tentava fazer a versão final de um texto, por mais simples que fosse, fazia não a versão final, mas uma nova versão, cheia de emendas, cheia de palavras riscadas e substituídas. Produzia outro rascunho. E o tempo foi passando. E a cada dia ela se sentia mais angustiada, mais insatisfeita, mais incompleta. Enquanto era nova, achava que daria tempo. Um rascunho a mais, um a menos... teria muito tempo ainda. O que a levava a agir dessa maneira? perguntava-se com frequência. Agora, nos últimos anos, mais do que antes. Nunca exigira dela mesma – nem dos outros – que fizessem as coisas com perfeição. Não era nem um pouco perfeccionista. Não, pelo menos nas outras esferas de sua vida. Ao contrário, era até meio desleixada. Mas também nunca se entusiasmara realmente por nada, a não ser pelos seus livros e pelos seus escritos. Não amara o marido como ele merecia ter sido amado; não agira como uma boa mãe;não fora nem era uma mulher feliz; nunca se sentira plena, realizada. Sabia que sua realização dependia de sua capacidade de vencer o medo – o medo da opinião dos outros, das críticas especializadas e não especializadas, sobre o que produzia. Dependia da ousadia de desengavetar seus escritos e expô-los. Enquanto não tivesse a coragem suficiente de tirá-los da condição de rascunho, enquanto não lhes desse uma versão final, seria como se estivesse esperando também da vida uma versão definitiva. Será que, se conseguisse a façanha de sair da estação do rascunho, estaria realizada, chegaria à conclusão de que a

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vida valera a pena? Resgataria alguma coisa que se perdera no tempo? Tentou abrir a segunda gaveta do arquivo e alcançar uma pasta que ostentava, em letras grandes, o rótulo Minha vida em rascunho. Foi esforço demais.Ela sentiu uma pontada no peito e uma forte dor espalhando-se pelo braço esquerdo. Ainda conseguiu puxar a pesada pasta, mas desequilibrou-se e caiu. Não de uma vez, mas lentamente. Tentou evitar que os papéis guardados na pasta se espalhassem, mas não conseguiu. Já meio inconsciente, ela via um livro em cada folha que caía da pasta – eram livros de várias cores e tamanhos, que se acumulavam ao seu redor. E esboçou um sorriso quando o último livro se abriu diante de seus olhos, como se alguém o estivesse segurando para que o visse – e era ela a autora. Seu último pensamento traduziu algo que ela sempre soubera, mas nunca tivera coragem de admitir – seus escritos em rascunho eram a representação de sua vida incompleta. Tirar da forma de

rascunho aquilo a que dedicara toda a existência seria uma maneira de dar plenitude à vida. Seria transformar em realidade um sonho por meio do qual sua vida adquiriria sentido. Nesse momento, no entanto, um diabinho pulou no seu ombro e soprou no seu ouvido: Um texto pode ficar em forma de rascunho até alcançar sua forma definitiva. Com a vida é diferente. A vida não nos oferece uma chance de passá-la a limpo. A vida fica sempre no rascunho. Algumas horas depois, quando a empregada entrou no gabinete para fazer a arrumação diária, encontrou-a coberta por folhas de papel, cheias de emendas e de riscos, umas escritas a lápis, outras a caneta. Por baixo daqueles rascunhos, a empregada perscrutou o semblante da velha senhora – nem ela nem ninguém poderiam dizer se havia em seu rosto sinais de um sorriso ou de um esgar. Fonte: Texto enviado pela autora

Adalcinda Camarão Poesias

BOM DIA, BELÉM

Há muito que aqui no meu peito

Murmuram saudades azuis do teu céu Respingos de ausência me acordam

Luando telhados que a chuva cantou O que é que tens feito Que estás tão faceira

Mais jovem que os jovens irmãos que deixei

Mais sábia que toda a ciência da terra Mais terra, mais dona do amor que te

dei

Onde anda meu povo, meu rio, meu peixe

Meu sol, minha rêde, meu tamba-tajá A sesta o sossego da tarde descalça

O sono suado do amor que se dá E o orvalho invisível na flôr se

embrulhando Com medo das asas do galo cantando

Um novo dia vai anunciando Cantando e varando silêncios de lar

Me abraça apertado, que eu venho

chegando Sem sol e sem lua, sem rima e sem mar

Coberta de neve, lavada no pranto Dos ventos que engolem cidades no ar Procuro o meu barco de vela azulada Que foi de panada sumindo sem dó Procuro a lembrança da infância na

grama Dos campos tranquilos do meu Marajó

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Belém minha terra, minha casa, meu chão

Meu sol de janeiro a janeiro a suar Me beija, me abraça que quero matar A doída saudade que quer me acabar

Sem círio da virgem, sem cheiro cheiroso Sem a ―chuva das duas ‖ que não pode

faltar Cochilo saudades na noite abanando Teu leque de estrelas, Belém do Pará!

ESPAÇO-TEMPO

Quero-te mesmo, amor, na ausência ou

na presença, com rumores de sombra, alarde ou

desafios. ―Dormir num chão de luar à sombra de

roseiras ou sob os pirisais na baixada dos rios…

Assim te amo e te sei amando dia-a-dia,

acordada ou dormindo o germinal segredo.

E te abraço sem ter teu corpo ao meu, beijando

a saudade sem ser de quem se tem sem medo.

Amo-te mesmo, amor, no madrigal do

tempo, derrubando androceus e gineceus se

amando nas pálpebras do estio que o sono não

acorda.

No teu dorso eu descanso a caminhada enorme

que fiz pra te encontrar ― lábios ardendo em busca

da tua noite azul onde minh‘alma dorme.

Amo-te mesmo, amor. Se me vens ou te

vais. Sinto-te à flor da pele e à superfície da

água que dessedenta o bem que nos lava o

mal.

Amo-te e não sei quem és ― teu nome nem origem.

Só sei que és homem são e me sabes mulher.

Que beleza este amor sem pranto nem vertigem,

sem princípio nem fim, nem dimensão sequer!

Adalcinda Camarão (1914 – 2005)

dalcinda Magno Camarão Luxardo (Muaná, Ilha de Marajó, 18 de julho

de 1914 – Belém, Pará, 17 de janeiro de 2005) foi uma poetisa e compositora paraense. Estudou em Belém no colégio D. Pedro II e no Instituto de Educação e nessa cidade desenvolveu todo o seu trabalho cultural. É autora de vários livros de versos como: ―Baladas de Monte Alegre‖, ―Entre Espelho e Estrelas‖, ―Folhas‖, ―Vidências‖, escreveu para rádio, teatro e jornais e revistas da Amazônia desde os dez anos de idade. No ano de 1938, Cléo Bernardo e um grupo de colegas de faculdade de Direito, fundaram Terra Imatura, revista mensal de estudantes, cujo título foram buscar em um romance regionalista de Alfredo Ladislau. Terra Imatura ganhou importância nas letras paraenses, onde despontavam Adalcinda e sua irmã Celeste Camarão, Dulcinéia Paraense, Mirian Morais, Paulo Plínio Abreu, Ruy Barata e outros mais, na poesia, alguns formando a redação da revista. Em 1956, Adalcinda viajou para os EUA, com Bolsa de Estudo oferecida pelo Departamento de Estado, com o Departamento de Educação e recomendada pela Embaixada Americana no Brasil. Fez mestrado em Educação e lingüística (American Univerity e Catholic University, EUA, de 1956 a 1959). Recebida como membro efetiva e perpétua da Academia Paraense de Letras em janeiro de 1959, ocupou a

A

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cadeira nº 17 e teve como patrono Felipe Patroni. Casou-se com o cineasta Líbero Luxardo, também da Academia Paraense de Letras, com quem teve um filho. Fixou residência nos Estados Unidos, em Washington, sem esquecer a sua academia, mandando de quando em vez, seus belos poemas para a revista. A poetisa dos Anos Trinta, aquela que escrevia em Terra Imatura, muito jovem ainda, continuou florescendo e encantando a todos. Na Terra Imatura, número de março de 1939, encontramos o Poema ―Bujarronas do Guamá‖. Adalcinda, muito embora ausente, nunca pensou em abandonar ou deixar a sua Academia. Seus versos mais recentes, cada vez mais untados de amor, são mandados para divulgação. Na revista, volumes xxviii, de 1987, podem encontrar ―três poemas‖, um dedicado ao filho: ―Trinta de Abril‖. Voltando à Terra Imatura do saudoso Cléo Bernardo, lê-se muitas outras produções de Adalcinda, produzidas nos anos trinta, quando já era selecionada entre ―os poetas modernos da Amazônia‖, ao lado de Bruno, do Dalcídio, do Nunes Pereira, do Ruy Barata, todos pondo o maior vigor e vida à corrente modernista da poesia, desencadeada em 1922, em São Paulo e que alcançava as margens do Rio-Mar. No número 13, referente a dezembro de 1940, a revista agrupou vários poetas, transcrevendo, de cada um, magníficos versos da escola moderna. Adalcinda lá está. Aparece com ―Explicação Inútil‖. A revista Terra Imatura, naqueles anos distantes, teve grande papel no aprimoramento cultural dos jovens, ela e outras mais, como o Pará Ilustrado, de Edgar Proença, A Semana, do Ernestino Sousa Filho, Brasileis, de Silvio Meira, com a característica de serem mensais, a A Semana a única semanal. Hermógenes Barra, na Revista da Veterinária, também prestou relevante serviço as letras do Pará, não somente através da revista, como principalmente, pela

tipografia que possuía e que acolhia a todos. Publicou, durante muitos anos, todas as teses de concurso de cátedra ou docência, livros de Antônio Tavernard, Augusto Meira, Bruno de Menezes e tantos outros. Adalcinda Camarão, ou simplesmente Adalcinda, é desse tempo, uma das grandes animadoras da PRC-5, a rádio de Edgar Proença, Lorival Penálber e Eriberto Pio. ―A voz que fala e canta para a planície‖. Adalcinda sintetiza uma época, merecendo ser lembrada, ou relembrada, distante que está na terra de Tio Sam. Mas, Adalcinda não parou, sua pena e sua lira continuaram a emitir belos sons em terra distante, não esquecendo jamais o torrão natal, de que são prova os belos versos, mandados de Washington, D.C.,Divulgados pela A Província de 7 de março de 1989, extraído do livro Folhas: ―Voz‖. De 1956 a 58, trabalhou em conferência e entrevistas para a Voice of América, em Washington, D.C., onde permaneceu radicada. De 1957 a 60, ensinou Português para estrangeiros, na La Case Academy of Languages e Sanz School. Em 1960, abriu o Departamento de Português da Georgetown University (Institute of Languages and Linguístics), onde também ensinou Literatura do Brasil e de Portugal, de 1960 a 1965. Lecionou Português na American University em 1974 e 1975; na Graduate School of the Agriculture Department, de 1966 a 1977; na Casa Branca, para assistentes dos presidentes Nixon e Ford, em 1974 e 1975; na Arlington Adult Education, 1986, 1987 e 1988. Trabalhou na Embaixada do Brasil, em Washington, D.C., de 1961 a 1988. Em 2000, retornou para Belém, depois de 44 anos morando nos Estados Unidos

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e no dia 17 de janeiro de 2005, às 17h, morre por complicações em decorrência pela idade avançada. Aos 91 anos, Adalcinda faleceu em casa. É detentora de inúmeras medalhas condecorativas e diplomas. Dos EUA, colaborou com os jornais paraenses. A Província do Pará, O Estado do Pará e O Liberal. Obra Livros: Despetalei a Rosa. Poesia, 1941; Vidência. Poesia, 1943; Baladas de Monte Alegre. Poesia, 1949; Entre Espelhos e Estrelas. Poesia, 1953 (Premiado como o melhor livro do ano pelo Governo do Estado); Caminho do Vento. Poesia, 1968; Folhas. Poesia, 1979;

A Sombra das Cerejeiras. Poesia, 1989; e Antologia Poética. Poesia, Belém, CEJUP, 1995. Teatro Um Reflexo de Aço, 1955; e O Mar e a Praia, 1956) Folclore Lendas da Terra Verde, 1956 Educação Brasil Fala Português. Livro Escolar, 1964 e Comentários no Espaço e no Ar (At the Red Lights, em inglês, 1977). Fonte: Wikipedia http://cliente.argo.com.br/

A. A. de Assis A Moça do Jipe

Seu Nando vivia ali pacato e bom, baixinho, redondo, discreta calva, solteirão encalhado, atendendo a aldeia na vendinha de secos e molhados. Se deu que porém a moça passante brecou o jipe lhe passando um susto, não muito pelo de-repente do impacto, mas pela explosão da

imagem. Aquela coisa louca, aquele jeitão de rir. Seu Nando tremeu total. Queria a moça informação sobre a estrada que levava a uma praia próxima, onde haveria reunião de surfistas e de agitadas meninas que

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nem ela, a que parecendo vir das nuvens caíra na porta dele. – Tem de voltar até o trevo e repegar o rumo. – Será que acerto? – Se quiser vou junto. Posso mostrar o caminho. Preciso mesmo ir lá, volto de ônibus. Me dá carona? – Sobe aí, tiozão! Zuuuuuuuuuuuuummmmmmmm... Tremeu de novo Seu Nando. Agora sim de medo. Moça maluca, 140 por hora naquele jipe trotão. Só não pediu pra descer por encabulação. Olhando as pernas dela, se distraiu. De agradecimento, ela deu-lhe na chegada um beijo. Na boca. Seu Nando ensandeceu de vez. Retribuiu grudando a moça, que todavia gostou. Rolaram na areia, rolaram no mar, a noite chegou. Na aldeia, no dia seguinte, o bochicho. Sumiu Seu Nando. Os vizinhos estranharam aquela coisa de ele na véspera haver fechado a venda cedo. Uns, que o viram entrar no jipe da moça, se espantaram mais ainda. Agora já era meio-dia, e de Seu Nando nada. Seria acidente? Seria acaso aquela moça alguma parenta dele? Um galho dele? Seria?... Mandaram o aviso a um compadre que vivia em cidade próxima, único mais-íntimo que se sabia dele. Comunicaram às autoridades, botaram notícia no rádio, espalharam de boca em boca o misterioso evento. Ele tão bom homem, nunca perturbara ninguém, vendeiro prestativo. Chegaram a supor que a moça do jipe fosse extraterrestre.

Quase um mês mais tarde, já davam Seu Nando por inencontrável: afogado, engolido por tubarão, levado para um planeta distante... Até que noutro de-repente reapareceu ele, a barba crescida, a roupa em trapos, a cara de quem andara metido em muito complicada encrenca. – Depois eu conto o que aconteceu. Agora quero é tomar um banho, comer um bife enorme, dormir umas 24 horas. Avisem por aí que estou vivo. Geral curiosidade, só satisfeita no outro dia, com a presença de repórteres, fotógrafos, e os ouvidos atentos da aldeia inteira. Seu Nando tinha ido com a tal garota litoral acima, até a Bahia. Nem chegara a saber o nome dela, dizia apenas ―Coisinha‖, o resto era o fascínio. – Voltei de carona num caminhão, ajudando a carregar-descarregar em troca da comida. Desci no trevo e de lá vim caminhando. Os cartões de crédito que havia levado, duas semanas depois já acusavam ultrapassagem de limite. Foi a grana acabar e a moça sumir, sem ele imaginar para que destino nem se ela era gente mesmo, talvez fosse irreal. Sabia só que nas alegrias era mulher ao máximo. Sorte dele que o gerente do banco entendeu a história, refez-lhe o crédito. E o bom homem se reinstalou atrás do balcão, de onde oito meses passados ouviu outra freada. – Olhe aqui, tiozão! Trouxe pra você a sua obra. Ela desceu do jipe mostrando a barriga prenha. Voltara para ter o bebê onde ele começara a ser feito. Seu Nando acolheu-a, guloso dela, pouco se importava se a criança era

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sua ou não. Pagou as despesas do parto, do berço, das roupinhas. Porém cadê a ―Coisinha‖?... Ninguém sabe, ninguém viu. Do jeito que rechegou, de novo magicamente sumiu. Criou-se a criança engatinhando ali na venda, assistida pela bondade de

umas senhoras vizinhas. Ele um homem de tão generoso coração, baixinho, redondo, discreta calva, pela segunda vez abandonado no pique dos seus melhores sonhos. Se valeu? Ora se... Fonte: ASSIS, A. A. De. Vida, verso e prosa. Maringá/PR: EDUEM, 2010.

Abílio César Borges (1824 – 1891)

bílio César Borges, primeiro e único barão de Macaúbas, (Rio de Contas,

9 de setembro de 1824 — 17 de janeiro de 1891) foi um médico e educador brasileiro. Biografia e formação Era filho de Miguel Borges de Carvalho e de Mafalda Maria da Paixão. Nasceu no povoado de Macaúbas, então pertencente à pequena Vila de Rio de Contas, ao sul da Chapada Diamantina, exatamente quando esta completava cem anos de emancipada. Ali efetua os primeiros estudos e, em 1838 muda-se para a capital baiana (Salvador), a fim de completar sua formação. Em 1841, depois de haver interrompido os estudos por causa da saúde, entra para a Faculdade de Medicina da Bahia, transferindo-se em seguida para o Rio de Janeiro, onde diplomou-se em 1847 – tendo realizado o curso de forma brilhante. Voltando para a Bahia, dedica-se ao magistério por quatro anos. Em 1845, funda, junto a outros, o Instituto Literário da Bahia, uma espécie de prelúdio de Academia de Letras, onde são realizados saraus, discutidas idéias e reunia os mais

expressivos nomes da literatura baiana da época. Realizou diversas viagens à Europa, a fim de aperfeiçoar seus métodos pedagógicos, de forma a torná-los aplicáveis aos seus trabalhos. Era casado, desde 1848, com Francisca Antônia Wanderley, oriunda de importante família pernambucana, com quem teve vários filhos. O formador de gênios Em Salvador, ainda sem o baronato, Abílio César Borges fundou o Ginásio Bahiano, no ano de 1858. Ali, mais que um professor e diretor, aplicava as novidades pedagógicas que incorporava em seus estudos. Esta instituição, assim como o também famoso e contemporâneo ―Colégio Sebrão‖, foi responsável pelos fundamentos educacionais de futuras genialidades da Bahia, como Rui Barbosa, Aristides Spínola, Castro Alves, Plínio de Lima, Cezar Zama, dentre outros. Conservou-se à frente da instituição por quase quatorze anos. Viajou ao Velho Mundo com o próposito de melhorar os seus conhecimentos sobre os problemas pedagógicos.

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De volta da Europa, em 1871 muda-se para o Rio de Janeiro, fundando ali o Colégio Abílio. Onze anos depois, graças à fama alcançada por sua instituição, foi nomeado como representante do Brasil em congresso pedagógico internacional de Buenos Aires. Em Barbacena, Minas Gerais, em 1881 instalou uma filial do colégio do Rio de Janeiro, por onde passaram ilustres personalidades da vida pública mineira (o prédio, que ainda hoje preserva características da construção original, serviu de sede para o antigo Colégio Militar de Minas Gerais e hoje é a sede do comando da Escola Preparatória de Cadetes-do-Ar).

Suas idéias, na época, eram inovadoras na educação brasileira: abolia completamente qualquer espécie de castigo físico; realizava torneios literários; culto ao civismo, etc. Imaginou um método de aprendizagem de leitura que denominou de Leitura Universal, para facilitar o estudo das primeiras letras, abriu vários cursos públicos gratuitos de leitura, convencido de que assim prestava o melhor serviço ao país.

A fim de poder ministrar as lições aos seus alunos, sem ofender entretanto os rígidos costumes da época, chegou até a mandar publicar, na Bélgica, um volume especial, adaptado para ―menores‖, de Os Lusíadas.

Algumas obras publicadas Proposições sobre Ciências Médicas, (tese de doutoramento – 1847) Vinte anos de propaganda contra o emprego da palmatória e outros castigos aviltantes no ensino da mocidade Desenho linear ou Geometria prática popular Memória sobre a mineração da Província da Bahia (1858) Discursos sobre a educação Gramática Portuguesa Gramática Francesa Epítome de Geografia Livros e Leitura Vinte e dois anos em prol da elevaçãod dos estudos no Brasil

Os Lusíadas de Camões A Lei Nova do ensino infantil Conferência sobre o Aparelho Escolar Múltiplo e o Fracionamento Civista extremado e Grande do Império

Ainda na Bahia, por ocasião da Guerra do Paraguai, manifestava-se exaltadamente pela imprensa, conclamando ao povo à luta em defesa da soberania brasileira. Mas, não restringiu-se a isto: chegou mesmo a patrocinar, de suas próprias rendas, o batalhão dos ―Zuavos Baianos‖. Pioneiro do Abolicionismo, fundou a ―Sociedade Libertadora 7 de Setembro‖, que publicava o jornal ―Abolicionista‖. A 30 de julho de 1881, foi agraciado com o título de Barão de Macaúbas, depois elevado com a honra de Grande do Império, em 3 de junho de 1882. Além dessa honraria, foi comendador da Imperial Ordem da Rosa, da Ordem de Cristo e da de São Gregório,o Magno.

D. Pedro II demonstrava, através do reconhecimento dos méritos do Barão, sua preocupação com a educação no país, Imperador que valorizava o magistério e que declarava que, se não fosse o rei, queria ser ―mestre-escola‖…

O Barão de Macaúbas foi um homem à frente do seu tempo, que amava o seu país. Como educador, manteve-se sempre afeito às novidades quanto aos métodos de ensino, sem nunca perder o aprendizado próprio. Não tivesse deixado vestígios, bastaria o fato de ter sido o alicerce de Castro Alves e Rui Barbosa, dentre muitos outros.

Pertenceu à Academia Filomática, foi diretor geral do ensino na Bahia (1856), membro do Instituto Histórico e Geográfico da Bahia, além de muitas outras entidades lítero-científicas no Brasil e na Europa. Fontes: Wikipedia Brasil Escola

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Nilto Maciel Vou ser herói, Maria

Transtornado, o homem recusava abrir a porta do elevador. Se do lado de fora estivesse um tigre à sua espreita? Vários tigres? Um horror! E tremia todo. Não conseguia nem sequer se manter em pé. Melhor sentar-se. E esperar, esperar, esperar. Passaria toda a noite, e quantas noites fosse preciso passar, dentro do elevador. Não, morreria de inanição e tédio. E se o tigre, os tigres abrissem a porta? De manhã os vizinhos, sua mulher só encontrariam alguns ossos. Nunca saberiam como e por que sumira tão misteriosamente. A ossada poderia ser de outro. Talvez de um cachorro grande. Nunca de um homem, dele. Não havia canibais na cidade. Nenhuma notícia deles. Sossegou, buscou uma brecha na porta, olhos e ouvidos de caçador. Nenhum sinal de tigre. O bicho não chegara àquelas alturas. Com certeza continuava na rua. Abriu um pouquinho a porta. Puxou-a para si. Melhor não confiar em nada. Felino é bicho traiçoeiro. Empurrou de novo a porta. E, de um pulo, lançou-se

contra a porta do apartamento. Socorro, Maria, socorro! Do outro lado gritaram espere, espere. Até abrirem a porta o tigre o devoraria. Bateu com força as mãos na porta. Deu outro pulo e caiu no meio da sala. Bêbado, sem-vergonha, desgraçado. Fechassem a porta logo. O tigre podia entrar. Não, não havia bebido nada? E o que era aquilo então? Ficara maluco de vez? Maluco é a mãe. Mais um minuto, e nunca mais o teriam visto. Comido, co-mi-do por um tigre, Dona Maria. Ela se pôs a rir. Riso de deboche. Depois gargalhou. As crianças também riram. O pai delirava? Ergueu-se do chão, ainda aflito. Prestassem atenção, muita atenção. Havia um tigre na rua. Debaixo do prédio. A mulher riu de novo. Não risse. Se não acreditasse e quisesse virar comida de tigre, abrisse a porta e descesse. As crianças já não riam e correram para a mãe. Na televisão o locutor falava de crises, abacaxis e pepinos. Alta do trigo. O homem correu a apertar o botão do aparelho. Nada de barulho. O tigre poderia se irritar. De onde surgiu esse

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tigre, homem? Sei lá. Deve ter vindo da África. Não, pai, ele fugiu do circo. Deu na televisão. Mentira, gritou o outro filho. O tigre estava doente e teve alta. Então é mais perigoso ainda. Tigre ferido é uma fera. Maria deu um gritinho, as crianças se puseram a chorar. O homem criou coragem — foi trancar a porta já trancada. Arrastou os sofás para a porta.

Onde estava o revólver? Não tinham revólver nenhum. Só os de brinquedo. Então buscassem as facas, todas as facas. Se o tigre se atrevesse a entrar, ele o esfolaria. Vou ser herói, Maria. E apagou as luzes. Fonte: Nilto Maciel. Pescoço de girafa na poeira. Brasília: Secretaria de Cultura do DF, 1999.

Artur de Azevedo A "Não-me-toques!"

I

assavam-se os anos, e Antonieta ia ficando para tia, – não que lhe

faltassem candidatos, mas – infeliz moça! – naquela capital de província não havia um homem, um só, que ela considerasse digno de ser seu marido. Ao Comendador Costa começavam a inquietar seriamente as exigências da filha, que repelira, já, com desdenhosos muxoxos, uma boa dúzia de pretendentes cobiçados pelas principais donzelas da cidade. Nenhuma destas se casou com rapaz que não fosse primeiramente enjeitado pela altiva Antonieta. - Que diabo! dizia o comendador à sua mulher, D. Guilhermina, – estou vendo que será preciso encomendar-lhe um príncipe! - Ou então, acrescentava D. Guilhermina, esperar que algum estrangeiro ilustre, de passagem nesta cidade.. - Está você bem aviada! Em quarenta anos que aqui estou, só dois estrangeiros ilustres cá têm vindo: o Agassiz e o Herman.

Entretanto, eram os pais os culpados daquele orgulho indomável. Suficientemente ricos tinham dado à filha uma educação de fidalga, habituando-a desde pequenina a ver imediatamente satisfeitos os seus mais custosos e extravagantes caprichos. Bonita, rica, elegante, vestindo-se pelo último figurino, falando correntemente o francês e o inglês, tocando muito bem o piano, cantando que nem uma prima-dona, tinha Antonieta razões sobejas para se julgar um avis rara na sociedade em que vivia, e não encontrar em nenhuma classe homem que merecesse a honra insigne de acompanhá-la ao altar. Uma grande viagem à Europa, empreendida pelo comendador em companhia da esposa e da filha, completara a obra. Ter estado em Paris constituía, naquela boa terra, um título de superioridade. Ao cabo de algum tempo, ninguém mais se atrevia a erguer os olhos para a filha do Comendador Costa, contra a qual se estabeleceu pouco a pouco certa corrente de animadversão. Começaram todos a notar-lhe defeitos parecidos com os das uvas de La

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Fontaine, e, como a qualquer indivíduo, macho ou fêmea, que estivesse em tal ou qual evidência, era difícil escapar ali a uma alcunha, em breve Antonieta se tornou conhecida pela ―Não-me-toques‖. II

eria sido realmente amada? Não, mas apenas desejada, – tanto assim

que todos os seus namorados se esqueceram dela… Todos, menos o mais discreto, o mais humilde, o único talvez, que jamais se atrevera a revelar os seus sentimentos. Chamava-se José Fernandes, e era o primeiro empregado da casa do Comendador Costa, onde entrara aos dez anos de idade, no mesmo dia em que chegara de Portugal. Por esse tempo veio ao mundo Antonieta. Ele vira-a nascer, crescer, instruir-se, fazer-se altiva e bela. Quantas vezes a trouxera ao colo, quantas vezes a acalentara nos braços ou a embalara no berço! E, alguns anos depois, era ainda ele quem todas as manhãs a levava e todas as tardes ia buscá-la no colégio. Quando Antonieta chegou aos quinze anos e ele aos vinte e cinco, ―Seu José‖ (era assim que lhe chamavam) notou que a sua afeição por aquela menina se transformava, tomando um caráter estranho e indefinível; mas calou-se, e começou de então por diante a viver do seu sonho e do seu tormento Mais tarde, todas as vezes que aparecia um novo pretendente à mão da moça, ele assustava-se, tremia, tinha acessos de ciúmes, que lhe causavam febre, mas o pretendente era, como todos os outros, repelido, e ele exultava na solidão e no silêncio do seu platonismo. Materialmente, Seu José sacrificara-se pelo seu amor. Era ele, como se costuma dizer (não sei com que propriedade) o ―tombo‖ da casa comercial do

Comendador Costa; entretanto, depois de tantos anos de dedicação e amizade, a sua situação era ainda a de um simples empregado; o patrão, ingrato e egoísta, pagava-lhe em consideração e elogios o que lhe devia em fortuna. Mais de uma vez apareceram a Seu José ocasiões de trocar aquele emprego por uma situação mais vantajosa; ele, porém, não tinha ânimo de deixar a casa onde ao seu lado Antonieta nascera e crescera. III

m dia, tudo mudou de repente.

Sem dar ouvidos a Seu José, que lhe aconselhava o contrário, o Comendador Costa empenhou a sua casa numa grande especulação, cujos efeitos foram desastrosos, e, para não fechar a porta, viu-se obrigado a fazer uma concordata com os credores. Foi este o primeiro golpe atirado pelo destino contra a altivez da ―Não-me-toques‖. A casa ia de novo se levantando, e já estava quase livre dos seus compromissos de honra, quando o Comendador Costa, adoecendo gravemente, faleceu, deixando a família numa situação embaraçosa. Um verdadeiro deus ex machina apareceu então na figura de Seu José que, reunindo as suadas economias que ajuntara durante trinta anos, e associando-se a D. Guilhermina, fundou a firma Viúva Costa & Fernandes, e salvou de uma ruína iminente a casa do seu finado patrão. IV

estabelecimento prosperava a olhos vistos e era apontado como uma

prova eloqüente de quanto podem a inteligência, a boa fé e a força de vontade, quando o falecimento da viúva D. Guilhermina veio colocar a filha numa situação difícil…

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U

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Sozinha, sem pai nem mãe, nem amigos, aos trinta e dois anos de idade, sempre bela e arrogante em que pesasse a todos os seus dissabores, aonde iria a ―Não-me-toques‖? Antonieta foi a primeira a pensar que o seu casamento com José Fernandes era um ato que as circunstâncias impunham… Antes da sua orfandade, jamais semelhante coisa lhe passaria pela cabeça. Não que Seu José lhe repugnasse: bem sabia quanto esse homem era digno e honrado; estimava-o, porém, como a um tio, ou a um irmão mais velho, – e ela, que recusara a mão de tantos doutores, não podia afazer-se a idéia de se casar com ele. Entretanto, esse casamento era necessário, era fatal. Demais, a ―Não-me-toques‖ lembrava-se de que o pai, irritado contra os seus contínuos e impertinentes muxoxos, um dia lhe dissera: - Nã0 sei o que supões que tu és, ou o que nós somos! Culpa tive eu em dar-te a educação que te dei! Sabes qual é o marido que te convinha? Seu José! Seria um continuador da minha casa e da minha raça! Tratava-se por conseguinte, de homologar uma sentença paterna. A continuação da casa já estava confiada a Seu José: era preciso confiar-lhe também a continuação da raça. Assim, pois, uma noite ela chamou-o e, com muita gravidade, pesando as palavras, mas friamente, como se se tratasse de uma simples operação comercial, lhe deu a entender que desejava ser sua mulher, e ele, que secretamente alimentava a esperança desse desenlace, confessou-lhe trêmulo, e com os olhos inundados de pranto, que esse tinha sido o sonho de toda a sua vida.

V

asaram-se.

Nunca um marido amou tão apaixonadamente a sua esposa. Seu José levou à Antonieta um coração virgem de outra mulher que não fosse ela; fora das suas obrigações materiais, amá-la, adorá-la, idolatrá-la, tinha sempre sido e continuava a ser a única preocupação do seu espírito… Entretanto, não era feliz; sentia que ela o não amava, que se entregara a ele apenas para satisfazer a uma conveniência doméstica: era apática; sem querer, fazia-lhe sentir a cada instante a superioridade terrível das suas prendas. Ninguém melhor que ele, tendo sido, aliás, até então, o único homem que lhe tocara, se convenceu de quanto era bem aplicada aquela ridícula alcunha de ―Não-me-toques‖. O pobre diabo tinha agora saudades do tempo em que a amava em silêncio, sem que ninguém o soubesse, sem que ela própria o suspeitasse. VI

ntonieta aborrecia-se mortalmente naquele casarão onde nascera, e

onde ninguém a visitava, porque o seu caráter a incompatibilizara com toda a gente. O marido, avisado e solícito, bem o percebeu. Admitiu um bom sócio na sua casa comercial, que prosperava sempre, e levou Antonieta à Europa, atordoando-a com o bulício das primeiras capitais do Velho Mundo. De volta, ao cabo de um ano, construiu uma bela casa no bairro mais elegante da cidade, encheu-a de mobílias e adornos trazidos de Paris, e inaugurou-a com um baile para o qual convidou as famílias mais distintas.

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Começou então uma nova existência para Antonieta, que, não obstante aproximar-se da medonha casa dos quarenta, era sempre formosa, com o seu porte de rainha e o seu colo opulento, de uma brandura de cisne. As suas salas, profundamente iluminadas, abriam-se quase todas as noites para grandes e pequenas recepções: eram festas sobre festas. Agora já lhe não chamavam a ―Não-me-toques‖; ela tornara-se acessível, amável, insinuante, com um sorriso sempre novo e espontâneo para cada visita. Fizeram-lhe a corte, e ela, outrora impassível diante dos galanteios, escutava-os agora com prazer. Um galã, mais atrevido que os outros, aproveitou o momento psicológico e

conseguiu uma entrevista – Esse primeiro amante foi prontamente substituído. Seguiu-se outro, mais outro, seguiram-se muitos… VII

quando Seu José, desesperado, fez saltar os miolos com uma bala,

deixou esta frase escrita num pedaço de papel: ―Enquanto foi solteira, achava minha mulher que nenhum homem era digno de ser seu marido; depois de casada (por conveniência) achou que todos eles eram dignos de ser seus amantes. Mato-me.‖ (Correio da Manhã, 12 de outubro de 1902) Fonte: Domínio Público

A. A. de Assis Tábua de Trovas

1. Sorria, amigo, sorria!

Pois, neste tempo de tédio, qualquer sinal de alegria

é sempre um santo remédio!

2. Sorriso não paga imposto; esbanja, portanto, o teu.

Sorrindo com graça e gosto, acendes também o meu!

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3. Irmanemos nossas vidas em comunhão generosa, tal como vivem unidas as pétalas de uma rosa!

4. Sonho um mundo redimido,

que, movido a coração, lance flechas de Cupido, não petardos de canhão!

5. Eu tenho fé nas pessoas, em todas, sem exceção, que todas elas são boas,

quando lhes damos a mão! 06.

De quantas bênçãos se tecem as vidas fortes, sofridas,

que de si mesmas se esquecem para cuidar de outras vidas!

07. Criado por Deus, o rio

nasce limpo e, como nós, traz consigo o desafio de limpo chegar à foz.

08. Jardineiro, que me encantas,

que bonito é o teu labor! Tens o dom de com mãos santas

do esterco extrair a flor! 09.

Bem-te-vi que bem me vês, bem-visto sejas também, hoje e sempre e toda vez

que bem me vires… Amém! 10.

Eu sei por que o passarinho canta gostoso e se inflama: é que ele tem no seu ninho uma família que o ama!

11. Valente, o verde resiste

à foice, ao fogo, ao trator. – É a vida que, dedo em riste,

enfrenta o seu matador! 12.

Quem ama não mata a mata; quem ama planta, recria.

Quem ama protege e acata o verde, a vida, a alegria!

13. Dói muito ver um canário

cantando humilhado e triste

em troca do vil salário de um punhadinho de alpiste!

14. Treme o mundo e se consome ao som de um terrível brado: – o grito que sai com fome

da boca do injustiçado! 15

Jogado no mundo, ao léu, rezava o orfãozinho assim:

– Cuida bem, Papai do Céu, dos que não cuidam de mim!

16. Matam crianças na rua,

hoje ainda, que que é isto? – É que Herodes continua caçando o Menino-Cristo!

17. ―Bem-vinda à vida, criança!‖,

diz o parteiro sorrindo. E a frase é um hino à esperança,

no seu momento mais lindo! 18.

É mais que um beijo, é uma prece, aquele beijo miudinho

com que a mãe afaga e aquece os seus filhotes no ninho!

19. Ouvi um menino uma vez

mandar aos pais um recado: – Eu sou o amor de vocês

que se fez carne… Obrigado! 20.

Cuide bem do seu bebê; forme-o forte, sábio e puro.

Ele é a porção de você que vai viver no futuro!

21. Brincam na praça os pequenos:

castelos, canções, corrida… São seus primeiros acenos

aos grandes sonhos da vida! 22.

Nas costas, leva a criança seus livros numa sacola;

nos olhos, leva a esperança como colega de escola!

23. O agricultor que semeia o arroz, o milho, o feijão

trabalha com Deus à meia na Obra da Criação.

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24. O sol engravida a chuva, e a terra se faz seu ninho;

no ninho se faz a uva, e a uva desfaz-se em vinho!

25. O fruto é um santo produto

do mais generoso amor. Por isso é que antes de fruto quis Deus que ele fosse flor.

26. Numa harmonia perfeita,

completam-se o fruto e a flor: ele alimenta, ela enfeita; ele dá força, ela o amor!

27. Deus fez a Terra… e, ao fazê-la,

deu-lhe o toque comovente: fez o céu para envolvê-la num pacote de presente!

28. Belo sonho o que aproxima

estrelas e pirilampos… – Elas são eles lá em cima; eles são elas nos campos!

29. Mesmo soltas e espalhadas,

as pétalas são formosas; porém somente abraçadas é que elas se tornam rosas!

30. Ó Deus, que nos deste a flor,

e as crianças e as estrelas, dá-nos agora, Senhor, a graça de merecê-las!

31. De dia caleja a palma

o irmão que cultiva o chão. De noite alivia a alma

nas cordas de um violão! 32.

A vida jamais se encerra… e é bom sermos imortais. – Amar você só na Terra

seria pouco demais! 33.

– Quantas águas, canoeiro, o senhor já canoou?…

– Talvez menos, seresteiro, que as que o senhor já chorou!

34. As almas, se generosas,

percorrem árduos caminhos…

Só no céu elas e as rosas ficam livres dos espinhos!

35. É quando a ofensa mais dói

que o perdão tem mais encanto: – nele há a nobreza do herói

e a fortaleza do santo! 36.

Feliz o idoso que, esperto, se ampara nesta verdade:

quanto mais velho, mais perto das bênçãos da eternidade!

37. Trate o velho com respeito;

dê-lhe o amor que possa dar. Mas não lhe roube o direito

de a si mesmo governar! 38.

Todo idoso é um professor; curvo-me e beijo-lhe a mão.

No mínimo, ensina amor, hoje máxima lição!

39. Certeza só têm os rios

sobre aonde vão chegar… Por mais que sofram desvios, seu destino é sempre o mar!

40. Ismo, ismo, ismo, ismo…

e o medo está sempre em alta… – Experimentem lirismo,

que talvez seja o que falta! 41.

O lírio, a lira, o lirismo; o amor, a festa, a canção…

Que pena que o consumismo transforma tudo em cifrão!

42. Anoitece… Bela e nua,

a rosa põe-se a orvalhar-se… – Um raiozinho de lua virá com ela deitar-se!

43. Astronauta, não destrua meu direito de sonhar… Deite e role sobre a Lua, porém me deixe o luar!

44. Tem muito mais graça a vida

quando a gente tem com quem repartir bem repartida

a graça que a vida tem!

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45. De barro se faz o homem, e de luz principalmente.

O barro, os anos consomem; a luz eterniza a gente!

46. Na porta da eternidade, documento não tem vez. – O cartão de identidade

é o bem que em vida se fez! 47.

O livro mudou o enredo da história da humanidade:

– Antes dele, a treva e o medo; depois dele a liberdade.

48. Na biblioteca há mil sábios

a nosso inteiro dispor. – Sem sequer abrir os lábios,

cada livro é um professor! 49.

Vai, riozinho, sem pressa… lembra ao mar, sem raiva ou mágoa,

que ele é grande, mas começa num modesto olhinho d‘água!

50. Acaso fizeste a Lua? Acaso fizeste a rosa?

Então que ciência é a tua, tão solene e presunçosa…

51. Milhões e milhões de estrelas…

Que utilidade terão? – Só sei, meu irmão, que ao vê-las

sinto Deus no coração! 52.

Olhem a rosa os que ainda costumam dizer-se ateus.

– Ela é a resposta mais linda quanto à existência de Deus!

53. Quem tem amigos leais

tem muito o que agradecer: bons amigos valem mais

que o mais que se possa ter. 54.

Coragem de gente grande é aquela em que se distingue alguém assim como Gandhi, São Francisco, Luther King!

55. Ave-Maria, uma prece tão gostosa de rezar,

que às vezes mais me parece cantiguinha de ninar!

56. Ouço ainda, ao longe, o canto

de um velho carro de boi… – Lembrança de um tempo e tanto,

que há tanto tempo se foi! 57.

Vestem-se as águas de prata, saltam no espaço vazio.

Findo o show da catarata, sereno refaz-se o rio…

58. Olha lá o ipê florindo, ele sozinho, na praça… Florindo, lindo, se rindo

para a cidade que passa! 59.

Leves, ao longe, ora em bando, ora dispersas, esparsas,

parecem anjos brincando de lenços brancos – as garças!

60. Curvada ao peso da idade,

a vovó, serena e bela, distrai o tempo e a saudade entre o novelo e a novela…

61. Ah, meu rio, de repente, o que foi feito de nós?

Ficou tão longe a nascente… vemos tão próxima a foz!

62. Como é bom saber que o filho

vida afora alegre vai, dando forma, força e brilho

aos sonhos do velho pai! 63.

A bênção, queridos pais, que às vezes sois mães também.

Em nome de Deus cuidais dos filhos que d‘Ele vêm!

64. Quanto mais rápido passa o tempo a mim concedido,

mais grato eu sou pela graça de cada instante vivido!

65. Vem, vem, onda bela, vem

nossas lágrimas lavar… Leva-as todas, lava-as bem,

faz delas um novo mar!

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66. Em resposta à ofensa e à intriga,

ensina o amor: ―Faça o bem!‖ – O amor é sábio: não briga,

perdoa cem vezes cem! 67.

Num lugar pequenininho, fez o amor uma capela. Veio a fé e fez um ninho

de esperanças dentro dela! 68.

Se aos heróis e aos grandes sábios devemos tão bela herança,

muito mais a quem nos lábios traz o canto da esperança!

69. O grande tenor se cala ante o pássaro silvestre. – É o discípulo de gala

querendo escutar o mestre! 70.

Quantas bênçãos traz a chuva quando rega a plantação: benze o trigo, benze a uva, benze a vida em cada grão!

71. Importa pouco a mobília,

importa pouco a fachada… O amor que envolve a família

é só o que importa, e mais nada! 72.

Não ―Pai meu‖; ―Pai nosso‖ eu digo, e ao próximo estendo a mão.

Lembro assim que, mais que amigo, o próximo é amigo e irmão!

73. Morre o sábio… enorme bem

perde o mundo em tal momento. O que ele tinha, herda alguém; não no entanto o seu talento!

74. Palavras produzem fartas

e tão belas construções: com elas fez Paulo as Cartas,

fez os seus versos Camões! 75.

A palavra acalma e instiga; a palavra adoça e inflama.

– Com ela é que a gente briga; com ela é que a gente ama!

76. Há de chegar o momento

da correção dos papéis:

mais valor terá o talento do que as pedras dos anéis!

77. Trabalhas tanto, formiga,

enquanto, ó cigarra, cantas. No entanto, basta de intriga:

– são duas tarefas santas! 78.

Se alguém se torna importante, por certo alguém o ajudou.

Mesmo o Amazonas, gigante, de afluentes precisou!

79. Ninguém se julgue o primeiro

a fazer seja o que for. Bem antes do jardineiro, já havia no mundo a flor!

80. Hoje é simples ir à Lua,

fica ali… basta um voozinho… Proeza é cruzar a rua

para abraçar o vizinho! 81.

Cidadania é civismo, sobretudo é comunhão;

é ajuda mútua, é altruísmo, partilha justa do pão.

82. Grande mesmo é quem descobre

que ser grande é ser alguém que abre espaço para o pobre

tornar-se grande também. 83.

Que alegre alívio provoca, na alma e no coração,

o abraço que a gente troca numa troca de perdão!

84. Um vaga-lume, isolado, é só uma pobre luzinha;

no entanto, aos outros somado, clareia a roça inteirinha!

85. Deus não vem na grande nave;

Deus não vem no furacão. Deus vem qual brisa suave, e entra em nosso coração!

86. Terno, amigo e generoso, quis Deus se configurar

no abraço do pai saudoso no filho que volta ao lar!

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87. Deus não põe ponto final

na biografia da gente. – Quer nossa alma, imortal, junto à d‘Ele, eternamente!

88. A vida no mundo é um treino, a etapa em que o Treinador

nos prepara para o reino definitivo do amor!

90. Quando criança eu queria

ser piloto de avião… Fiz-me poeta, e hoje em dia

meus vôos bem mais alto vão! 90.

Olhe os poetas e as aves… Veja que, embora não plantem,

Deus lhes retira os entraves e apenas pede-lhes: – Cantem!

91. Tão bela, tão generosa, símbolo eterno da paz, pede desculpas a rosa

pelos espinhos que traz! 92.

Se lhe derem mais apoio; se ele vir que o bem faz bem,

tenha certeza: há de o joio tornar-se trigo também!

93. Com que suave ternura

tece a canária o seu ninho! – Mãe é assim, dengosa e pura…

a nossa e a do passarinho. 94.

Hoje eu sei qual a razão

de a planta gerar a flor: É a sua retribuição

a quantos lhe dão amor! 95.

O verbo se faz beleza: faz-se estrela e chuva e flor;

faz chamar-se Natureza, e nela se faz expor!

96. Quem preza a vida divide-a,

como o cedro acolhedor que adota por filha a orquídea,

e dá-lhe suporte e amor! 97.

Benditas sejam as vidas que, alegres, serenas, santas,

vivem a vida envolvidas em levar vida a outras tantas!

98. Todos vós que estais cansados, vinde a mim – diz o Senhor.

Vinde e vede, irmãos amados, como é grande o meu amor!

99. Vem vindo um tempo sem bombas,

sem tanques e sem canhões. Falcões darão vez às pombas,

e os fuzis aos violões! 100.

Dirá Deus: ―Faça-se a paz, e todos dêem-se as mãos!‖ E então, meu filho, verás

que lindo é um mundo de irmãos!

Fonte: ASSIS, Antonio Augusto de. Tábua de trovas. Maringá – 2004.

Humberto de Campos

(O Filósofo)

ducado no Colégio Caraça, o coronel Venâncio Figueira, fazendeiro em

Uberaba, havia se contaminado, pouco a pouco, de filosofia e de latim, de modo a preocupar-se, mais do que o necessário, com os graves problemas da vida. Manuseador quotidiano de certos autores profanos, ele se punha, às vezes,

a pensar, no alpendre da sua casa de fazenda: - Sim, senhor! Esses filósofos têm razão! Este mundo é tão desigual, tão cheio de injustiças, de irregularidades clamorosas, que qualquer mortal, encarregado de fazê-lo, o teria feito melhor!

E

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E acentuava, melancólico: - Este mundo está muito mal feito!… À noite, porém, reunida a família na sala de jantar, o velho fazendeiro arreganhava os óculos no nariz, tomava a ―Bíblia‖, chegava para mais perto o lampião de querosene, e punha-se a ler, pausado, o ―Livro de Jó‖. E começava, de novo, a meditar, diante destas palavras do capitulo 38: ―4. Onde estavas tu, quando eu fundava a terra? Faze-mo saber, se tens inteligência. ―25 – Quem abriu para a inundação um leito, e um caminho para os relâmpagos e trovões? ―41 – Quem prepara aos corvos o seu alimento, quando os seus filhotes implumes gritam a Deus, e andam vagueando por não terem de comer?‖ Certo dia, dominado pelas idéias reacionárias bebidas em autores modernos, passeava o coronel pelo pátio da fazenda, quando, ao ver as andorinhas que voejavam por cima do gado, voltou novamente a raciocinar:

- É isso mesmo, não há duvida! O mundo é muito mal arranjado. Aqui está, por exemplo; este boi. Porque, tendo ele chifres, patas, orelhas, e sendo tão forte, há de viver sempre na terra, a arrastar-se pelo solo, quando aquela andorinha, que não tem nada disso, se locomove, rápida, ligeira, dominando os ares? Nesse momento, porém, uma andorinha que lhe passava por cima, deixou escapar alguma cousa que lhe fazia sobrecarga, e que foi cair, certeira, na cabeça descoberta do coronel. Este levou a mão instintivamente à calva, e, olhando os dedos brancos daquela indignidade, caiu de joelhos, clamando, arrependido: - Perdoai-me, Senhor, perdoai-me! O mundo está muito bem organizado! O que nele há, o que nele vive, o que nele existe, foi feito com perfeição, com acerto, com sabedoria! E levantando-se, limpando a mão: - Imagine-se que fosse um boi…. Fonte: Domínio Público

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Branquinho da Fonseca Caravelas da Poesia

NAUFRÁGIO

A rua cheia de luar

Lembrava uma noiva morta Deitada no chão, à porta

De quem a não soube amar.

Já não passava ninguém… Era um mundo abandonado…

E à janela, eu, tão Além, Subia ressuscitado…

Vi-me o corpo morto, em cruz,

Debruçado lá no Fundo… E a alma como uma luz

Dispersa em volta do mundo…

Mas, à tona do mar morto, Um resto de caravela

Subia… E chegava ao porto Com a aragem da janela.

ARQUIPÉLAGO DAS SEREIAS

Ó nau Catrineta

Em que andei no mar Por caminhos de ir, Nunca de voltar!

Veio a tempestade Perder-se do mundo, Fez-se o céu infindo,

Fez-se o mar sem fundo! Ai como era grande O mundo e a vida

Se a nau, tendo estrela, Vogava perdida! E que lindas eram Lá em Portugal Aquelas meninas No seu laranjal!

E o cavalo branco Também lá o via

Que tão belo e alado Nenhum outro havia! Mundo que não era, Terras nunca vistas!

Tive eu de perder-me Pra que tu existas. Ó nau Catrineta Perdida no mar,

Não te percas ainda, Vem-me cá buscar!

CASTANHEIROS, IRMÃOS…

Ó castanheiros de folhas de ouro,

Carregados de ouriços que são ninhos Onde as castanhas dormem como noivos!

Troncos abertos,

Casas abertas,

Ao vosso abrigo Dormem os pobres,

Pegam no sono, Passam as noites Quando cai neve!

Peitos vazios, Escancarados,

Sem nada dentro, Nem coração!

Dais lume, calor E dais sustento para a mesa,

E dais o mais que eu não sei!…

Ó castanheiros de folhas de ouro, Apenas sou vosso irmão Em que a terra vos criou

E criou-me a mim também; Em que vós ergueis os braços

Suplicantes para os céus E eu também levanto os meus…

Ah! Castanheiros, mas eu Grito e vós ficais calados!

Seremos, por isto só, Irmãos? Seremos? Não sei: Vós tendes roupas de rei, Eu tenho roupas de Job;

Vós só gritais quando o vento Vos abre a boca e fustiga:

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Então ergueis um clamor… — Não calo nunca no peito A dor do meu sofrimento E nunca chego a dize-la,

Nem há ninguém que me diga.

Ó castanheiros de folha de ouro,

Não, Eu não sou vosso irmão!…

Fontes: Mundo Cultural Jornal de Poesia

Branquinho da Fonseca (O Barão)

António José Branquinho da Fonseca (1905-1974) é um dos fundadores da revista Presença, em 1927, o que deu origem à segunda geração modernista em Portugal, juntamente com Miguel Torga e José Régio. Ao movimento advindo daí chamou-se Presencismo, cujo interesse é dirigido à chamada análise interior ou psicológica das personagens. Além da prosa por que é conhecido, Branquinho da Fonseca fez também poesia; sua novela O Barão foi lançada em 1942. O Barão é uma novela inquietante, cuja base é uma grande metáfora: o encontro de duas criaturas, dois tempos e duas maneiras de estar no mundo. Estruturalmente, não há divisões em episódios ou capítulos: é contada em primeira pessoa e o tempo, nela, transfunde-se numa tentativa de juntar o passado ( o Barão) e o presente ( o inspetor de alunos). O Dicionário de Literatura de Jacinto do Prado Coelho observa que O Barão é a obra-prima de Branquinho da Fonseca e que, antes de tudo, é também ―uma das mais notáveis espécimes da novelística portuguesa de todos os tempos.‖. Não deixa de ter razão o comentário: O Barão é uma das alegorias mais

magníficas da novela portuguesa do século XX. Um inspetor de escolas sem nome e que não gosta de viagens, mas que é obrigado a fazê-lo é a personagem-narradora. Não se pode dizer que ele seja também a personagem-protagonista pelos motivos que explicaremos adiante. O inspetor representa o mundo contemporâneo e vivenciará um outro, antigo, através de uma estratégia simples: o encontro com uma criatura que vive, ainda, num tempo passado, cujos valores certamente já se perderam: o Barão, personagem também sem nome, mas rica, intensa e de força pessoal poderosa e transformadora. História: O inspetor sem nome, nosso narrador em primeira pessoa, é chamado à Serra do Barroso para proceder uma sindicância na escola da pequena vila. Lá, encontra-se com uma professora e fica penalizado com sua aparência e o seu suposto sentir, observando seus modos e tentando entender-lhe o que vai na alma, julgando-a em contraste com o mundo exterior que habita, naquele lugar de ninguém, distante da ―civilização‖. Mas suas preocupações parecem, no entanto, ser desmentidas quando

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observa-a integrada àquilo tudo, tomando seu ―café-ruim‖ como se coubesse perfeitamente naquele universo estático, sem cor. Ainda na hospedaria onde ambos se encontram, a professora apresenta-o ao Barão: Era uma figura que intimidava. Ainda novo, com pouco mais de quarenta anos, tinha um aspecto brutal, os gestos lentos como se tudo parasse à sua volta durante o tempo que fosse preciso. O ar de dono de tudo. Mas, observando-o detidamente, bebendo-lhe as palavras, os gestos inquietos ou brutais, o inspetor de escolas descobre nele, o Barão, um encantamento, uma simpatia que não fosse, talvez, observado ou compartilhado pelos demais habitantes da pequena vila. Saem da hospedaria e se dirigem ao castelo do Barão. No caminho, este lhe conta , excitado, a história de seu cavalo Melro, doutorado em Direito pela Universidade de Coimbra, numa clara alusão à burrice estar no mundo, morar em qualquer canto e que a estupidez de alguns é, muitas vezes, transformada em ―doutoramento‖. Mesmo que esse alguém seja metaforicamente um cavalo. Observe que o cavalo tem nome de pássaro… Anoitece e chegam ao castelo, um solar medieval, rústico e denso, atmosfera de um tempo perdido. Os cães os recebem; estão em festa porque seu dono chegou e, surpreso, o narrador percebe que o Barão é delicado e carinhoso com cada um deles. O Barão começa a contar histórias sem parar. E bebe também sem parar enquanto conta. Ocorre que o Inspetor não bebia a não ser durante as refeições e, morto de fome, sentia-se incomodado com aquilo tudo, sem ao menos poder prestar atenção às histórias que o barão

contava. Por sua vez, o Barão também não se importava em ser ouvido ou não, o que dava à ―conversa‖ um tom grandioso de solidão e desacerto com o mundo. Impaciência por parte do inspetor; desacerto por parte do Barão… Até que, já passadas as 10 horas, o Inspetor acaba vencendo a sua timidez e diz ao Barão que tem fome. O Barão interrompe aos gritos a narrativa e chama sua criada, Idalina, a fim de que ela sirva ao hóspede um belo galo assado com batatas louras. O Inspetor observa que ela o faz com ―ares de dona da casa‖. Comem na mesa enorme, como tudo lá era e, saciada a fome, o Inspetor passa a ver na conversa daquele homem um motivo de prazer intenso: há naquele homem uma mistura de todas as circunstância: o passado e o presente, a ferocidade e a brandura de caráter, a sofisticação dos modos e a rudeza. Ao se referir a Ela, sua amada, a Bela Adormecida, o Barão deixa ver sua emoção mais funda e chora. No entanto, é interessante que ele considera as mulheres todas umas animalescas. Apenas Ela é digna de todo amor. Só a bela Adormecida ( veja aqui a conotação do tempo: a que adormecida espera pelo ser amado, alienado dos acontecimentos e do mundo que a cerca). A conversa entre ambos chega ao máximo da emoção. Neste instante, o Barão pede que Idalina chame a Tuna, ou seja, um bando de 50 homens ou mais, todos de rosto semi-escondido, de tamancos, que retiram de seus capotes os instrumentos mais inesperados: violinos, bandolins, gaitas, grandes tambores, violões. A música é tão intensa que contagia Idalina, o hóspede e o Barão; eles passam, então, a dançar em ritmo desenfreado, acercando-se de um grande êxtase. O Barão toma, como se

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num ritual sem explicação, um banho de vinho branco, a fim de purificar-se e poder visitar sua amada Bela Adormecida. O Inspetor, embriagado, vaga pelo castelo. Sozinho, perde-se pelos corredores. Encontra , entre o sonho e a fantasia, Idalina e a convida para ir ao quarto com ele. Mas acorda aos berros do Barão que o salva de um pequeno incêndio ocasionado pelo cigarro que o Inspetor fumava quando adormecera sem querer. Depois que lhe salva a vida, o Barão escuta os detalhes da vida amorosa do Inspetor que havia, durante o jantar, confessado que jamais amara nenhuma mulher ou tivera um grande amor. Saem ambos do castelo e o Inspetor ajuda o barão a colher rosas brancas que este quer levar à Bela Adormecida ( Ela). O Barão começou a procurar, agora, uma rosa. Eu fui também cortando rosas e ensangüentando as mãos nos espinhos, sem intenção nenhuma, pois não tinha ninguém a quem oferecer aquelas flores. Comecei uma longa divagação sobre as mulheres e o amor, uma espécie de monólogo trágico e delirante. Ele continuava a procurar, silencioso e indiferente às minhas explicações. De súbito, interrompeu-me como quem continua um pensamento: - Já quis fugir com Ela… Mas agora já não quero… ( Fez uma pausa e continuou, com a voz mais triste): Tem medo… tem medo de mim… No meio da madrugada, longe do castelo, perdem-se um do outro, o que faz o Inspetor sentir raiva do Barão que, de certo modo, o abandonara. Dorme e , quando amanhece, aluga um burro para voltar ao castelo. Ao chegar, fica sabendo que o Barão tinha recebido um tiro no ombro e que batera a cabeça com tanta força que se imaginava uma fratura. Mas pode contar-lhe, ainda que

monossilabicamente, que deixara uma rosa na janela da Bela Adormecida, seu único e grande amor. A narrativa se encerra quando o Inspetor anuncia que voltará a visitar o Barão e que vem ajuda-lo a depositar a rosa na janela de sua amada. Sim, Barão! Hei de voltar um dia. E haveremos de tornar a perdermo-nos pelos caminhos sombrios do nosso sonho e da nossa loucura: e mais uma vez haveremos de cantar às estrelas e de dar a vida para ires depor outro botão de rosa lá na alta janela da tua Bela Adormecida! De qualquer modo, você concluiu que esta ―viagem‖ do Inspetor, sempre avesso a elas, diz respeito à sua própria viagem, o desmascaramento de um ser que se faz de duro, mas que, ao encontrar o Barão, reconhece que dentro de si moram criaturas outras tão distintas dele mesmo. Ambas as personagens se completam, embora pertençam a mundos e épocas completamente distintas, de certo modo formam um único ser onde passado e presente moram. Em tempo: A bela Adormecida e o Barão não podiam estar juntos por motivos de rixas familiares. Fonte: Artigo da profa Esther PS Rosado .

Branquinho da Fonseca (1905 – 1974) Antes seja afastado do que já alcancei que o seja

daquilo para que vou. A posse é um declínio. Antes um pássaro a voar que dois na mão. Dois

pássaros na mão são o que já não falta. Um pássaro a voar: é ir com os olhos a voar com ele;

ir sobre os montes, sobre os rios, sobre os mares; dar a volta ao mundo e continuar; é ter um motivo de viver — é não ter chegado ainda.

(As Viagens – Branquinho da Fonseca) Filho de D. Clotilde Branquinho e do escritor Tomás da Fonseca, Antônio José

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Branquinho da Fonseca nasceu em Mortágua, Portugal, no dia 4 de maio de 1905. Depois de cursar os primeiros anos do Liceu em Lisboa, parte para Coimbra, onde termina os seus estudos secundários. Em seguida matricula-se na Faculdade de Direito. Ainda como estudante participa da fundação da revista ―Triplico‖ (1924 – 1925), que teve 9 números publicados. Em 1926 passa a exercer a função de Conservador no Museu Biblioteca Conde de Castro Guimarães – Cascais. Ainda nesse ano faz sua estréia literária com a obra ―Poemas‖. No ano seguinte, mais precisamente no dia 10 de março, quando ainda era estudante de Direito, funda, juntamente com Adolfo Casais Monteiro, José Régio e João Gaspar Simões, a revista Presença, que é considerada o marco inicial da segunda fase do modernismo português. A revista Presença foi dirigida por Branquinho da Fonseca até o ano 1930. Quando a revista estava no seu 27º número, Branquinho da Fonseca, por considerar haver imposição de limites à liberdade criativa, abandona a direção, que fica a cargo de Adolfo Casais Monteiro. Ainda Nesse ano Branquinho da Fonseca Licencia-se em Direito e, junto com Miguel Torga, funda a revista

Sinal, que teve apenas um número publicado. Falece em Lisboa no dia 16 de maio de 1974. A enciclopédia Barsa define Branquinho da Fonseca como ―um dos fundadores e principais colaboradores da revista Presença, porta-voz do modernismo no país‖. Os primeiros textos de Branquinho da Fonseca foram assinados com o pseudônimo António Madeira. Abaixo temos algumas de suas obras mais importantes: Poesia Poemas – 1926; Mar Coalhado – 1932; Teatro Posição de Guerra – 1928; Teatro I – 1939. Contos Zonas – 1931; Caminhos Magnéticos – 1938; Bandeira Preta – 1956. Romances Porta de Minerva – 1947; Mar Santo – 1952. Fonte: Mundo Cultural

Laurindo Rabelo

Poesias Escolhidas

O que fazes, ó minh‘alma? Coração, por que te agitas? Coração, por que palpitas? Por que palpitas em vão?

Se aquele que tanto adoras Te despreza, como ingrato,

Coração sê mais sensato, Busca outro coração! Corre o ribeiro suave

Pela terra brandamente, Se o plano condescendente

Dele se deixa regar; Mas, se encontra algum tropeço

Que o leve curso lhe prive, Busca logo outro declive, Vai correr noutro lugar.

Segue o exemplo das águas,

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Coração, por que te agitas? Coração, por que palpitas? Por que palpitas em vão?

Se aquele que tanto adoras Te despreza, como ingrato, Coração, sê mais sensato,

Busca outro coração!

Nasce a planta, a planta cresce, Vai contente vegetando, Só por onde vai achando Terra própria a seu viver;

Mas, se acaso a terra estéril As raízes lhe é veneno. Ela vai noutro terreno

As raízes esconder.

Segue o exemplo da planta, Coração, por que te agitas? Coração, por que palpitas? Por que palpitas em vão?

Se aquele que tanto adoras Te despreza, como ingrato, Coração, sê mais sensato,

Busca outro coração!

Saiba a ingrata que punir Também sei tamanho agravo:

Se me trata como escravo, Mostrarei que sou senhor;

Como as águas, como a planta, Fugirei dessa homicida;

Quero dar a um‘alma fida Minha vida e meu amor.

DOIS IMPOSSÍVEIS

Jamais! Quando a razão e o sentimento

Disputam-se o domínio da vontade, Se uma nobre altivez nos alimenta

Não perde de todo a liberdade.

A luta é forte: o coração sucumbe Quase nas ânsias do lutar terrível; A paixão o devora quase inteiro, Devorá-lo de todo é impossível!

Jamais! a chama crepitante lastra, Em curso impetuoso se propaga,

Lancem-lhe embora prantos sobre prantos,

É inútil, que o fogo não se apaga.

Mas chega um ponto em que lhe acena

o ímpeto Em que não queima já, mas martiriza, Em que tristeza branda e não loucura

À razão se sujeita e harmoniza.

É nesse ponto de indizível tempo Onde, por misterioso encantamento, O sentir à razão vencer não pode,

Nem a razão vencer ao sentimento.

No fundo de noss‘alma um espetáculo Se levanta de triste majestade,

Se de um lado a razão seu facho acende Do outro os lírios seus planta a saudade.

Melancólica paz domina o sítio, Só da razão o facho bruxuleia

Quando por entre os lírios da saudade Do zelo semimorto a serpe ondeia!

Dois limites então na atividade

Conhece o ser pensante, o ser sensível: Um impossível – a razão escreve,

Escreve o sentimento outro impossível!

Amei-te! os meus extremos compensaste Com tanta ingratidão, tanta dureza,

Que assim como adorar-te foi loucura, Mais extremos te dar fora baixeza.

Minh‘alma nos seus brios ofendida

De pronto a seus extremos pôs remate, Que, mesmo apaixonada, uma alma

nobre, Desespera-se, morre, não se abate.

Pode queixar-se inteira felicidade De teu olhar de fogo inextinguível, Acabar minha crença, meu futuro, Aviltar-me! jamais! É impossível!

Mas a razão que salva da baixeza O coração depois de idolatrar-te, Me anima a abandonar-te, a não

querer-te, Mas a esquecer-te, não: sempre hei de

amar-te!

Porém amar-te desse amor latente, Raio de luz celeste e sempre puro

Que tem no seu passado o seu presente,

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E tem no seu presente o seu futuro.

Tão livre, tão despido de interesse, Que para nunca abandonar seu posto, Para nunca esquecer-te, nem precisa

Beber, te vendo, vida no teu rosto.

Que, desprezando altivo quantas graças No teu semblante, no teu porte via Adora respeitoso aquela imagem

Que delas copiou na fantasia. (Obras completas, 1946.)

Laurindo Rabelo (8 julho 1826 – 28 setembro 1864) Laurindo José da Silva Rabelo (Rio de Janeiro, 8 de julho de 1826 — Rio de Janeiro, 28 de setembro de 1864), foi um médico, professor e poeta romântico brasileiro, patrono na Academia Brasileira de Letras. Nasceu Laurindo Rabelo de família pobre, afro-descendente, filho do miliciano Ricardo José da Silva Rabelo e de Luísa Maria da Conceição. Cresceu nas maiores privações, das quais só veio a se libertar nos últimos anos de sua vida. Pretendendo seguir a carreira eclesiástica, cursou as aulas do Seminário São José e recebeu as ordens, mas abandonou o seminário por intrigas de colegas. Fez estudos na Escola Militar, outra vez tentando em vão fazer carreira. Ingressou no curso de Medicina no Rio, concluindo-o na Bahia, em 1856, vindo porém defender tese na cidade natal. Em 1857, ingressou como oficial-médico no Corpo de Saúde do Exército, servindo no Rio Grande do Sul, até 1863. Neste ano voltou ao Rio, como professor de história, geografia e português no curso preparatório à Escola Militar. Em 1860 tinha se casado com Adelaide Luísa Cordeiro. De volta ao Rio, leciona no curso preparatório para a Escola Militar as disciplinas de História, Geografia e Português.

Apreciava a vida boêmia, gozando de grande talento satírico e capacidade de improviso, fazendo repentes e composições de modinhas – o que lhe granjeou grande popularidade e a alcunha de ―Poeta Lagartixa‖ – dada sua constituição física, ―magro e desengonçado‖, como informa Manuel Bandeira . Como poeta satírico, era justamente temido e respeitado; teve amigos e, também, inimigos acérrimos, por causa dessa feição do seu talento, chegando a ser perseguido. Como repentista e improvisador, era popular e bem recebido em todos os salões. Fechavam os olhos à sua indumentária desleixada, só para ouvir o poeta e ver as cintilações daquele espírito. Em muitas das suas composições vibra também a nota de melancolia. Rabelo teve morte prematura, de problemas cardíacos, com apenas trinta e oito anos de vida. Composições Fez Rabelo famosa, à época, parceria com João Luís de Almeida Cunha – conhecido por Cunha dos Passarinhos, compondo com este diversos lundus e modinhas, como ―A Despedida‖ e ―Foi em Manhã de Estio‖ Literatura Integrou a chamada segunda fase do romantismo brasileiro. Publicou em vida apenas um livro, intitulado ―Trovas‖, que foi reeditado postumamente, com acréscimo de outros trabalhos inéditos, e intitulado ―Poesias‖. Excertos O trechos a seguir ilustram o estilo e o trabalho do poeta (domínio público): ―Deus pede estrita conta de meu tempo, É forçoso do tempo já dar conta; Mas, como dar sem tempo tanta conta, Eu que gastei sem conta tanto tempo?‖

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(estrofe de ―O Tempo‖) ―Quando eu morrer, não chorem minha morte, Entreguem meu corpo à sepultura; Pobre, sem pompas, sejam-lhe a mortalha Os andrajos que deu-me a desventura.‖ (estrofe de ―O Último Canto do Cisne‖) ―No cume daquela serra Eu plantei uma roseira. Quanto mais as rosas brotam, Tanto mais o cume cheira. À tarde, quando o sol posto, E o cume o vento adeja, Vem travessa borboleta E as rosas do cume beija. No tempo das invernadas, Que as plantas do cume lavam, Quanto mais molhadas eram, Tanto mais no cume davam. Mas se as aguas vêm correntes, E o sujo do cume limpam, Os botões do cume abrem, As rosas do cume grimpam. Tenho, pois, certeza agora Que no tempo de tal rega, Arbusto por mais cheiroso Plantado no cume pega. Ah! Porém o sol brilhante Logo seca a catadupa; O calor que a terra abrasa As águas do cume chupa.‖ (―As Rosas do Cume‖) Crítica e análises É considerado por José Marques da Cruz como um dos 4 poetas maiores da segunda geração do Romantismo no Brasil, ao lado Álvares de Azevedo, Junqueira Freire e Casimiro de Abreu. Marques da Cruz assinala: ―Autor das ―Meditações‖ , poesias sentimentais onde chora a perda de pessoas queridas, e de versos satíricos de grande merecimento,

que lhe valeram muitas inimizades.‖ (in: História da Literatura, Melhoramentos, São Paulo, 8ª. ed.) Manuel Bandeira (in: ―Apresentação da Poesia Brasileira‖, Ediouro), regista que sua ―alegria exterior escondia porém uma funda mágoa das dificuldades e desdéns que encontrava na vida, e essa tristeza se reflete em acentos comoventes no poema ―Adeus ao mundo‖.‖ José Veríssimo (em ―A Literatura Brasileira‖, ed. PDF, http://www.dominiopublico.gov.br/ , Brasília), consigna que a primeira fase do romantismo ―pode dizer-se findo pelos anos seguintes a 1850, quando surge uma nova geração de poetas que dão ao nosso romantismo outra direcção, com inspiração despreocupada de patriotismo ou sequer de nacionalismo, porém por isso mesmo talvez mais pessoal, de um sentimentalismo mais de raiz, e menos religioso ou moralizante, admirador de Byron e de Musset e dos poetas satânicos, como em Franca lhe chamaram, do segundo romantismo europeu. Desses poetas, quatro ao menos, Laurindo Rabelo (1826-1864); Álvares de Azevedo (1831-1852); Junqueira Freire (1832-1855); Casimiro de Abreu (1837-1860), todos publicados de 1853 a 1860, são verdadeiramente notáveis por dons de sensibilidade e de expressão que sem ter o acabado artístico dos futuros parnasianos, lhes traduzia com esquisita felicidade os sentimentos.‖ Mais adiante, o mesmo autor consigna que ―Os mais populares poemas brasileiros, alguns quase adoptados pelo nosso povo como sua poesia, na qual parece rever-se, são destes poetas incluindo (…) Dois Impossíveis, A Minha Resolução, Saudade Branca, de Laurindo Rabelo;‖. Por sua obra satírica recebeu, ainda, o epíteto de ―Bocage Brasileiro‖. Fontes: Wikipedia Academia Brasileira de Letras

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Fundação Biblioteca

Nacional

Biblioteca do Mosteiro de São Bento, fundada em 1581, em

Salvador, Bahia, é a biblioteca mais antiga do Brasil. A Biblioteca Nacional, contudo, é a primeira oficial e pública. Foi trazida de Lisboa para o Brasil pela Corte portuguesa, a pedido de D. João, em 1808, e instalada em uma das salas do Hospital do Convento da Ordem Terceira do Carmo, contendo sessenta mil peças (livros, manuscritos, mapas, medalhas e estampas). A época, chamava-se Real Biblioteca.

Em 1810, foi transferida para sua sede atual, no Rio de Janeiro, e recebeu o nome de Biblioteca, hoje, Fundação Biblioteca Nacional (FBN). Tornou-se propriedade do Estado em 1825.

Atualmente, a FBN é considerada a 8ª. Biblioteca do mundo. Guarda a mais rica coleção bibliográfica da América Latina e conta com mais de nove milhões de itens catalogados, realizando, com êxito, a sua missão de captar e preservar o acervo da memória nacional, disposto em: obras gerais, referência, iconografia, música, periódicos, obras raras, manuscritos e cartografia.

Os chamados Tesouros da Biblioteca Nacional constituem um acervo em formato digital, do qual fazem parte a Carta de abertura dos portos, a Bíblia da Mogúncia, o Livro das horas e a primeira gramática em língua portuguesa, entre outras peças (iconografia, manuscritos, música e obras raras).

A FBN presta importantes serviços aos usuários, não só atendendo in bloco, como também on-line ou por via telefônica e portal. Visite o Site Oficial da FBN. Há, também, o serviço do Escritório de Direitos Autorais (EDA), que funciona desde 1898 (e-mail: [email protected]).

Além do laboratório da restauração e conservação, a FBN possui o maior laboratório de digitalização da América Latina, para que o leitor tenha acesso à biblioteca virtual.

Atendimento a Distância

A Divisão de Informação Documental (DINF) oferece aos usuários que residem fora do município do Rio de Janeiro e do Grande Rio serviços de informação, tais como:

A

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- pesquisa e compilação de registros bibliográficos no acervo da BN; - reprodução do acervo; - obtenção de cópias de textos de periódicos, através do Programa COMUT;

Presta também, por correio eletrônico ou telefone, atendimento local para demandas de pronta-resposta (informações sobre o acervo, informações bibliográficas, etc.)

Para solicitar este serviço preencha o Formulário de Solicitação de Pesquisa em http://www.bn.br/portal/index.jsp?nu_pagina=78

Base de Bibliografias Especiais A DINF organizou, a partir de solicitações de usuários, uma base de dados, não

exaustiva, que reflete as pesquisas realizadas. São referências compiladas nos catálogos da Biblioteca Nacional, que, em sua maioria, podem ser complementadas com o acesso aos Catálogos on line. Essa base, embora não esteja totalmente revisada, está disponível para consulta. http://catalogos.bn.br/ . Fundação Biblioteca Nacional Divisão de Informação Documental Av. Rio Branco 219, 2o. andar – Rio de Janeiro, RJ – 20040-008 tel: (0xx21) 2220-1330 tel/fax: (0xx21) 2220-1326 e-mail: [email protected] Fontes: Biblioteca Nacional Quiosque Azul

Jussara C. Godinho Meninos de rua

O dia era frio, muito frio, chuvoso, nublado e escuro, a sensação era de que o vento cortava, sangrando a pele. Poucas pessoas arriscavam sair às ruas. O mês de junho, no extremo sul do país, maltrata alguns cidadãos. Envolvida em mantas de tricô, os famosos cachecóis, luvas e botas de couro legítimo, a Madame pára seu carro importado no sinal vermelho. Surge à sua frente um menino adolescente, quase moço, muito magro, corpo quase nu, coberto com tinta prateada, mexendo seus malabares. Mal podia acreditar que alguém pudesse suportar aquele frio em pêlo. Misérias do mundo! A Madame tira da bolsa, etiquetada com marca internacional, algumas moedas — que sobraram, talvez, do cabeleireiro, da massagem, da manicure? — para pagar o show.

Na quadra seguinte, outro sinal vermelho, fechado, gritando Pare, Olhe, Atenção! Outro menino, agora criança, vendendo balas, no carro se encosta. Nas costas o peso de ser diferente, carente, tão pequeninho, lutando sozinho, vendendo bala, cheirando cola, sem escola, pedindo esmola. Mas quem dá bola para um vendedorzinho de bala que só precisa de colo, de carinho, de uma boa escola, de um prato de feijão e de um pouquinho de atenção? Enquanto a Madame seguia seu caminho sem olhar para trás, o menino seguia sua espera, espera, espera… Fonte: Projeto Releituras

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Jussara C. Godinho Trovas

Sou gaúcha de verdade Verdadeira Rio-grandense

Eu prezo minha cidade Digo mais: sou Caxiense

Vou te oferecer amigo

Um bom churrasco no espeto E com orgulho te digo:

Faço Trova e até Soneto

Um bom churrasco no espeto Para amigo saborear

Muita Trova e até Soneto Só vendo pra acreditar!

Só vendo pra acreditar gente boa de montão Vim aqui te convidar

Pra tomar um chimarrão!

Vem tomar um chimarrão Amigos e companheiros Um forte aperto de mão Sentimentos verdadeiros

Uma rosa tão pequena

Com perfume de jasmim Cada pétala serena

Traz seu cheiro para mim.

Arranjei um namorado Que era lindo, milionário.

O safado era casado, Um tremendo salafrário.

Está sempre de pileque Cambaleando pela rua Quero te dizer moleque

Troca o gole por charrua.

Vinho e uva de montão Morro abaixo, morro acima Não estranhe, amigo, não

É a festa da vindima (Menção Honrosa no I jogos Florais de Caxias do Sul, tema Vindima – 2008)

Esta escola é tão querida

Sempre muito organizada, Que alegria nesta vida Ensinar a meninada!

O coração da mulher

É recheado de intuição E sabe sempre o que quer,

Pois ela é pura emoção. Fontes: Jú Virginiana Para Ler e Pensar

Aparecido Raimundo de

Souza Celulares

NO ÔNIBUS LOTADO, O CELULAR do passageiro, sentado ao lado da porta da saída, entoa a 9ª Sinfonia de Beethoven.

No terceiro toque o sujeito decide. -Alô?Alô?Alô?...

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Diante da mudez do aparelho, o cidadão espia, meio desconcertado, para um lado e outro, a fim de averiguar se alguém olha para ele. Ninguém parece preocupado, embora todas as atenções estejam discretamente voltadas para sua pessoa. Nova chamada. Dessa vez, espera uns segundos. Atende, ansioso. -Alô?Alô?Droga!Alôooa?... Nada. Uma moça trajando conjunto verde - parece um abacate amarrado pelo meio - viaja logo atrás. O telefone dela, com o ―Vamos fugir‖ também resolve se fazer presente. Ao atender, seu rosto se ilumina num sorriso mágico. - Tô chegando, amor... Há uma pequena pausa. - Você já está no ponto? Devo pintar aí dentro de uns cinco ou seis minutos... Novo intervalo. - Te amo. Beijos. Um terceiro celular começa a encher com a Pantera Cor de Rosa. A colegial com o rosto abarrotado de espinhas emite uns gritinhos estridentes antes de iniciar a conversação. - Rodriguinho, seu sem vergonha. Isso lá é hora de ligar? A 9ª Sinfonia de Beethoven volta à baila e se mistura com a voz da adolescente. -Alô?Alô?Alô? Desta vez a ligação se completa. O passageiro ao lado da porta da saída consegue, finalmente, manter o diálogo com seu interlocutor. - Legal, cara. Parabéns!

Gesticula e fala alto o suficiente para irritar um defunto. Sem um pingo de decência, age como se perto dele não houvesse uma leva de pessoas que merecesse, ao menos, respeito e educação. -Até que enfim. Então você está indo pra Portugal? Faça uma boa viagem, meu amigo. O Pedro te manda um abraço. A Luíza um beijo, o Carlos um puxão de orelhas... ―Vamos fugir‖ volta a disparar no telefone da moça de verde. Ela prontamente atende: -Amor, tenha um pouco de paciência. Que loucura! O quê? Fala mais alto... De repente, a coisa toma proporções descomunais. A colegial pisa em ovos de tão indignada e irritada. - Vá pro inferno, Rodriguinho. Não me racha a cara! O sujeito no banco ao lado da porta parece um lunático. - Seu avião sai a que horas? As 19?De onde? Eu...O quê? Lado esquerdo do coletivo, um casal assiste a tudo com os olhos arregalados. A certa altura, o rapaz comenta, num cochicho: - É mole ou quer mais? -As pessoas – observa a moça igualmente aos murmúrios - perderam o senso do ridículo. A sensatez foi pro brejo. Ninguém respeita mais a individualidade. -Virou febre esse negócio. Todo mundo agora tem celular. Li, ontem, no jornal, que estão à venda, no mercado, aparelhos celulares de última geração para cachorros. Risos.

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- Fala sério? Qual o quê! Isso é piada! - Não é não. Agora, além de hospitais, hotéis e restaurantes, os cachorros poderão contar com mais essa vantagem. Celular para cães e gatos. - Se for verdade o que está me dizendo, minha nossa. Será o cúmulo do absurdo. A que ponto chegamos. Olhe só para essa gente. Parece um bando de alucinados. Ninguém se entende. Um homenzarrão puxa a campainha. Pessoas se levantam. Outras tantas tomam posição para apear. - Vá se danar, Ro... - Olhe, se lá em Portugal não tiver mulher que sirva, volta e leva uma brasileira. As mais bonitas do mundo estão aqui, meu chapa... - Rodriguinho, eu pensava, até agora, que você fosse do conceito. Me enganei redondamente. Vá pro inferno, ta ligado? A moça de verde pula do banco ao ver o rapaz que a espera, na calçada defronte à porta de acesso de uma loja de departamentos. Passa a mão no telefone e disca um número da memória.

- Ei, amor, olha euzinha aqui. Cheguei. Já me enxergou? Estou te vendo. Me dê adeusinho!

Nessa hora, então...

-A mãe te manda umabraço. Vá com Deus. Chegando em Lisboa, ligue... Entendeu? Ligue, ligue, ligue, surdo!...

No mesmo clima.

-Rodriguinho, ô, sem noção, o bagulho por aqui tá tenso. Meu namorado não vai gostar. Com certeza levará um ―lero‖ contigo, e, depois, com certeza, te comerá na porrada, meu...

A moça de verde, afoita:

- Com licença, meu senhor... Com licença... -Calma, senhorita. Vou ficar aqui também. Deixe ao menos o motorista parar e liberar a traseira. -... De Lisboa? Que droga!! -... Ro, Ro, cuidado com a tribo, malandro. Quer saber? Estou injuriada. Vá se danar de verde e amarelo... -...Amor, amor, estou descendo... Sobra o casal acomodado no lado esquerdo, rindo da galera a mais não poder. – Odeio celular – pondera a jovem, depois que todos saem - parece que esses trocinhos controlam nossa vida. Aliás, dominam, vivem no nosso pé. Jogaram, definitivamente, para o ralo a nossa intimidade. - Estou com você – completa o rapaz –O negocio é bom, mas, em certas horas, se torna deselegante, cai no vulgar. Tira a privacidade. Imagine, daqui a algum tempo, como lhe falei, ainda há pouco, a gente cruzando na rua, com essas madames, metidas à besta, atendendo ao telefone. ―É pra você, Fifizinha!‖. E o animal, posudo: ―– Agora não posso, estou ocupada, lendo Os Melhores Contos de Cães e Gatos do meu amigo Flavio Moreira da Costa. Peça para me ligar mais tarde‖. A jovem se abre num sorriso contagiante. Pensa em responder alguma coisa. Entretanto, seu celular estronda Tchaikovsky. - Desculpe. Meu marido... Pede licença, baixa a cabeça. Sem tirar o aparelho do ouvido se acomoda num banco lá na frente, ao lado do cobrador. Fonte: Aparecido Raimundo de Souza. A Outra Perna do Saci. São Paulo: Ed. Sucesso, 2009.

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Ialmar Pio Schneider

O Homem atrás do escritor, o Escritor atrás do homem

Dando continuidade à série O Homem atrás do escritor, o escritor atrás do homem, o entrevistado é o poeta e trovador gaúcho, o Menestrel dos Pampas, Ialmar Pio Schneider, grande colaborador do blog Singrando Horizontes. O HOMEM IALMAR PIO SCHNEIDER: AUTOBIOGRAFIA JF: Conte um pouco de sua trajetória de vida, onde nasceu, onde cresceu, o que estudou, sua trajetória literária. Nasci no município de Sertão/RS em 26-08-1942. Filho de Henrique Schneider Filho e dona Amábile Tressino Schneider, ambos falecidos. Cursei o primário em minha terra natal na Escola Pio XII das Irmãs Franciscanas onde diplomei-me inclusive em datilografia com 13 anos de idade. Ingressei no Ginásio Cristo Rei dos Irmãos Maristas em Getúlio Vargas/RS que

conclui após 4 anos, em 1959, período em que iniciei a compor poesias. Daí transferi-me para Passo Fundo/RS onde ingressei no Colégio N. Sra. da Conceição dos Irmãos Maristas cursando então simultaneamente o Curso Científico e a Escola Técnica de Contabilidade por um ano e meio, continuando a escrever poesias inclusive gauchescas, algumas das quais foram publicadas no Jornal do Dia, de Porto Alegre, até que um concurso público para o Banco do Brasil S.A. me levou a Cruz Alta/RS, onde assumi em 1961, poucos dias antes de completar 19 anos de idade. Posteriormente integrei o corpo de funcionários da agência de Soledade/RS, que estava em Instalação, o que ocorreu em 1962. Completei o curso em Técnico de Contabilidade em 1962, permanecendo por 5 anos na cidade, onde exerci o cargo de Fiscal da Carteira Agrícola do Banco até ser transferido para a Metr. Tiradentes do Rio onde não cheguei a tomar posse, tendo feito uma

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permuta tríplice com outros dois colegas, vindo a assumir em Canoas/RS, em 1967, para logo após um ano se transferir para São Leopoldo/RS em nova permuta com outro colega, onde tencionava tirar o Curso de Direito da Unissinos, o que não se concretizou. Casei-me em 1968 com Helena Dias Hilário, de Soledade/RS e transferi-me para a Agência Centro do Banco do Brasil S.A de Porto Alegre, em 1969. Residindo em Canoas, nasceu minha filha Ana Cristina Hilário Schneider. Permaneceu por 3 ou 4 anos compondo poesias diversas inclusive a maior parte de seus poemas gauchescos ainda inéditos bem como muitos sonetos então com 30 anos de idade. Resolvi novamente transferir-me de cidade a fim de ficar mais próximo dos meus parentes e os de minha esposa e pleiteei uma permuta, que consegui para a cidade de Passo Fundo, tendo lá permanecido por cerca de 3 anos, ocasião na qual requeri e fui transferido para a agência do Banco em Palmas/ PR, onde residiam minha mãe e irmãos, de cuja remoção desisti pelo motivo de minha esposa ser professora estadual e não ter conseguido aproveitamento naquela cidade. Com dificuldade em adquirir casa de moradia retornei a Canoas voltando a residir e a trabalhar no Banco até que em uma concorrência nacional para fiscal da Carteira Agrícola do Banco fui nomeado para a cidade de Antônio Prado/RS, onde permaneci por 2 anos e meio aproximadamente. Em 1980, regressei a Canoas onde adquiri um apartamento em que resido até hoje, na rua que leva o nome do grande pintor Pedro Weingartner tendo feito vestibular para a Faculdade de Direito do Instituto Ritter dos Reis, classificado em segundo lugar de que também participou o ilustre jogador de futebol do Internacional Paulo Roberto Falcão, que logo depois transferiu-se para a Itália. Trabalhando no Banco do Brasil- agência de Canoas e estudando, só consegui formar-me em Direito nas

Faculdades Integradas do Instituto Ritter dos Reis em 1990, após 10 anos de curso superior. Enfim, antes tarde do que nunca. Transferi-me para o CESEC do Banco do Brasil Sete de Setembro em Porto Alegre, onde trabalhei até 1991, tendo completado 30 anos e alguns dias de serviço no Banco quando me aposentei por tempo de serviço. Por enquanto, resido na cidade de Porto Alegre/RS, no Bairro Tristeza, com uma vista maravilhosa para o Rio Guaíba, em uma janela do qual até um joão-de-barro já fez um ninho há uns dois anos. Como diz o inigualável poeta gauchescoo saudoso Jayme Caetano Braun: ―Eu até fiquei contente/ Dizem que dás muita sorte !‖em seu poema ―João Barreiro‖. Atualmente minha filha é casada, ambos advogados, com escritório. Durante os meses de verão, dezembro até fevereiro, permaneço em Capão da Canoa/ RS, cidade praiana, onde produzo diversas poesias: poemas, sonetos e trovas. Nos últimos dois anos desloquei-me com a família por uns dez dias em final de temporada para a praia de Canasvieiras, precisamente Cachoeira do Bom Jesus, em Florianópolis/SC. Eis em rápidas pinceladas a sucinta biografia rotineira de um poeta menor. JF: Ialmar, se é poeta menor, então eu nem existo, precisaria um ultra microscópio para me encontrar (risos). Recebeu estímulo na casa da sua infância? Total estímulo e incentivo inclusive éramos 6 filhos, 4 irmãos e 2 irmãs e nossos pais só tinham como meta o nosso estudo. JF: Quais livros foram marcantes antes de começar a escrever. Muitos livros de poesias: Fagundes Varela, Casemiro de Abreu, romances de

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Paulo Setúbal, os grandes romances do Cristianismo, trovas de Adelmar Tavares e diversos outros. Mas o romancista que mais me agradou foi Lima Barreto, antes Dostoiewski, Érico Veríssimo, Dyonélio Machado, Cronin, uma infinidade de autores, enfim. Desculpe se não cito todos, nem um por cento talvez. JF: Teve a influência de alguém para começar a escrever? Foi naturalmente através das leituras escolares. JF: Tem Home Page própria (não são consideradas outras que simplesmente tenham trabalhos seus)? Tenho diversos blogs que podem ser encontrados procurando por IALMAR PIO SCHNEIDER no Google, como http://ialmar.pio.schneider.zip.net/ ; http://ialmarpioschneider.blogspot.com/ ; http://ial123.blog.terra.com.br/ JF: Você encontra muitas dificuldades em viver de literatura em um país que está bem longe de ser um apreciador de livros? Nunca pensei nisto. No Brasil acho que só meia dúzia o consegue. SEUS TEXTOS E PREMIOS JF: Como começou a tomar gosto pela escrita? Para conhecer e aprender, pois acho que todo o livro é de auto-ajuda. JF: Você possui livros? Se sim em que você se inspirou em seus livros? Fiz a estréia editorial na obra TROVADORES DO RIO GRANDE DO SUL, org. por Nelson Fachinelli, em 1982. Publiquei a obra poética SONETOS E CÂNTICOS DISPERSOS, em 1987. Figuro em outras coletâneas. A última obra, POESIAS ESPARSAS DIVERSAS, de 2000.

JF: Como definiria seu estilo literário? Eclético para poesia e crônicas também. JF: Que acha de seus textos: O que representam para si? E para os leitores? Acho que são a expressão do meu pensamento. A maioria dos leitores dizem gostar. JF: Qual a sua opinião a respeito da Internet? Tem contribuído para a difusão do seu trabalho? Tem contribuído muito e eu considero o mais valioso meio de publicação atual, ainda mais para quem não tem a grande mídia ao seu dispor. JF: Tem prêmios literários? Alguns. JF: Participa de Concursos Literários? Qual sua visão sobre eles? Acha que eles tem ―marmelada‖? Participo às vezes. Tenho visto trovas sem nenhum fundamento serem premiadas. CRIAÇÃO LITERÁRIA JF: Você precisa ter uma situação psicologicamente muito definida ou já chegou num ponto em que é só fazer um ―clic‖ e a musa pinta de lá de dentro? Para se inspirar literariamenteprecisa de algum ambiente especial ? Surge de repente, não sei de onde nem quando. JF: Você acredita que para ser poeta ou trovador basta somente exercitar a escrita ou vocação é essencial? Tudo é essencial, principalmente muita leitura. JF: No processo de formação do escritor é preciso que ele leia porcaria?

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É preciso distinguir. O ESCRITOR E A LITERATURA JF: Mas existe uma constelação de escritores que nos é desconhecida. Para nós chega apenas o que a mídia divulga. Na sua opinião que livro ou livros da literatura da língua portuguesa deveriam ser leitura obrigatória? Os clássicos: Machado de Assis, Lima Barreto, Euclides da Cunha, Rui Barbosa. Paulo Setúbal, Érico Veríssimo, Dyonélio Machado, Lya Luft e outros. Os bons escritores. A lista é infindável. Poesias de Vinicius de Moraes, Guilherme de Almeida e os clássicos também Castro Alves, Fagundes Varela, Alvares de Azevedo, Olavo Bilac, tantos e tantos. JF: Qual o papel do escritor na sociedade? Ensinar e divertir também. JF: Há lugar para a poesia em nossos tempos? Há sim. Aqui no sul principalmente a poesia gauchesca, os sonetos românticos. Basta declamar uma poesia atraente todos gostam. A PESSOA POR TRÁS DO ESCRITOR Um bancário aposentado, um advogado não militante e um diletante em literatura. JF: O que o choca hoje em dia? A violência e a falta de saúde pública. JF: O que lê hoje?

Romances e poesias. Estou curtindo um ócio criativo. Nada de muito profundo.

JF: Você possui algum projeto que pretende ainda desenvolver?

Continuar escrevendo nos blogs e talvez preparar um livro de poemas e poesias gauchescas.

JF: De que forma você vê a cultura popular nos tempos atuais de globalização?

Vai andando aos trancos e barrancos, mas com o andar da carroça as abóboras se ajeitam na caixa.

CONSELHOS PARA OS ESCRITORES

JF: Que conselho daria a uma pessoa que começasse agora a escrever ? Ler bastante e escrever mesmo errando. JF: O que é preciso para ser um bom poeta ou/e trovador? Muita leitura e perspicácia. JF: Finalmente, se Deus parasse na tua frente e lhe concedesse três desejos quais seriam? Boa saúde, meios para continuar vivendo e a felicidade da Humanidade inteira.

TROVAS DE IALMAR

Cada paixão que me invade surge do amor que não tive;

e representa a saudade de quem neste mundo vive.

Eu não sou navegador,

mas enfrento o mar da vida, por causa do nosso amor que não teve despedida.

Foste a morena brejeira

que surgiu em meu amor como o botão da roseira

que agora não dá mais flor.

Não foram horas perdidas as que passei junto a ti;

são lembranças bem vividas que nunca mais esqueci...

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Perambulando sozinho pelas ruas da cidade,

procuro achar o caminho que leva à felicidade.

Fonte: Entrevista realizada virtualmente (por e-mail) por José Feldman (PR) com o poeta e trovador Ialmar Pio Schneider (RS).

Jussara C Godinho Amor, Sentimento estranho

Que sentimento é esse Que derrete coração Emociona sem aparente razão E faz tremer de emoção? Que sentimento é esse Que tudo dá, nada pede e não impede Que o outro lhe tome inteira De qualquer maneira sem nenhuma barreira? Que sentimento é esse Que envaidece, entristece Às vezes, até emburrece E nos desestrutura inteira? Que sentimento é esse Que abala E ao mesmo tempo acalma? Que sentimento é esse Que grita e nunca se cala E quando sussurra, desperta a alma? Que sentimento é esse Que nele se resvala E ainda se bate palma?

Que sentimento é esse Que prende, mas satisfaz Que amordaça e não se desfaz? Que sentimento é esse Que se entrega e faz tremer Que emociona e endoidece E nos faz viver? (Poema integrante da Antologia ―Poeta, mostra a tua cara‖ – Volume 5 – XVI CONGRESSO BRASILEIRO DE POESIA – BENTO GONÇALVES – RS)

Jussára C. Godinho (Ju Virginiana), 1957, já participou em mais de trinta antologias poéticas e agendas literárias, sits, e blogs. É membro do IBT de Caxias do Sul (RS) associada à AGES – Associação Gaúcha de Escritores e Cônsul do Movimento Poetas del Mundo de Caxias do Sul (RS). Não tem livros editados. Fontes: Jú Virginiana Projeto Releituras

Inglês de Sousa A Quadrilha de Jacob

Patacho

Eram sete horas, a noite estava escura, e o céu ameaçava chuva.

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Terminara a ceia, composta de cebola cozida e pirarucu assado, o velho Salvaterra dera graças a Deus pelos favores recebidos; a sora Maria dos Prazeres tomava pontos em umas velhas meias de algodão muito remendadas; a Anica enfiava umas contas destinadas a formar um par de braceletes, e os dois rapazes, espreguiçando-se, conversavam em voz baixa sobre a última caçada. Alumiava as paredes negras da sala uma candeia de azeite, reinava um ar tépido de tranqüilidade e sossego, convidativo do sono. Só se ouviam o murmúrio brando do Tapajós e o ciciar do vento nas folhas das pacoveiras. De repente, a Anica inclinou a linda cabeça, e pôs-se a escutar um ruído surdo que se aproximava lentamente. - Ouvem? – perguntou. O pai e os irmãos escutaram também por alguns instantes, mas logo concordaram, com a segurança dos habitantes de lugares ermos: - É uma canoa que sobe o rio. - Quem há de ser? - A estas horas, – opinou a sora Maria dos Prazeres, – não pode ser gente de bem. - E por que não, mulher? – repreendeu o marido, – isto é alguém que segue para Irituia. - Mas quem viaja a estas horas? – insistiu a timorata mulher. - Vem pedir-nos agasalho, redargüiu. – A chuva não tarda, e esses cristãos hão de querer abrigar-se. A sora Maria continuou a mostrar-se apreensiva. Muito se falava então nas façanhas de Jacob Patacho, nos assassinatos que a miúdo cometia; casos estupendos se contavam de um horror indizível: incêndios de casas depois de pregadas as portas e janelas para que

não escapassem à morte os moradores. Enchia as narrativas populares a personalidade do terrível Saraiva, o tenente da quadrilha cujo nome não se pronunciava sem fazer arrepiar as carnes aos pacíficos habitantes do Amazonas. Félix Salvaterra tinha fama de rico e era português, duas qualidades perigosas em tempo de cabanagem. O sítio era muito isolado e grande a audácia dos bandidos. E a mulher tinha lágrimas na voz lembrando estes fatos ao marido. Mas o ruído do bater dos remos n‘água cessou, denotando que a canoa abicara ao porto do sítio. Ergueu-se Salvaterra, mas a mulher agarrou-o com ambas as mãos: - Onde vais, ó Felix? Os rapazes lançaram vistas cheias de confiança às suas espingardas, penduradas na parede e carregadas com bom chumbo, segundo o hábito de precaução naqueles tempos infelizes; e seguiram o movimento, do pai. A Anica, silenciosa, olhava alternativamente para o pai e para os irmãos. Ouviram-se passos pesados no terreiro, e o cão ladrou fortemente. Salvaterra desprendeu-se dos braços da mulher e abriu a porta. A escuridão da noite não deixava ver coisa alguma, mas uma voz rústica saiu das trevas. - Boa-noite, meu branco. Quem está aí? – indagou o português. – Se é de paz, entre com Deus. Então dois caboclos apareceram no círculo de luz projetado fora da porta pela candeia de azeite. Trajavam calças e camisa de riscado e traziam na cabeça grande chapéu de palha. O seu aspecto nada oferecia de peculiar e distinto dos habitantes dos sítios do Tapajós. Tranqüilo, o português afastou-se para dar entrada nos noturnos visitantes. Ofereceu-lhes da sua modesta ceia,

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perguntou-lhes donde vinham e para onde iam. Vinham de Santarém, e iam a Irituia, à casa do tenente Prestes levar uma carga de fazendas e molhados por conta do negociante Joaquim Pinto; tinham largado do sítio de Avintes às quatro horas da tarde, contando amanhecer em Irituia, mas o tempo se transtornara à boca da noite, e eles, receando a escuridão e a pouca prática que tinham daquela parte do rio, haviam deliberado parar no sítio de Salvaterra, e pedir-lhe agasalho por uma noite. Se a chuva não desse, ou passasse com saída da lua para a meia-noite, continuariam a sua viagem. Os dois homens falavam serenamente, arrastando as palavras no compasso preguiçoso do caboclo que parece não ter pressa de acabar de dizer. O seu aspecto nada oferecia de extraordinário. Um, alto e magro, tinha a aparência doentia; o outro reforçado, baixo, e de cara bexigosa, não era simpático à dona da casa, mas afora o olhar de lascívia torpe que dirigia a Anica, quando julgava que o não viam, parecia a criatura mais inofensiva deste mundo. Depois que a sora Maria mostrou ter perdido os seus receios, e que a Anica serviu aos caboclos os restos da ceia frugal daquela honrada família, Salvaterra disse que eram horas de dormir. O dia seguinte era de trabalho e convinha levantar cedo para ir em busca da pequena e mais da malhada, duas vacas que lhe haviam desaparecido naquele dia. Então um dos tapuios, o alto, a quem o companheiro chamava cerimoniosamente – seu João – levantou-se e declarou que iria dormir na canoa, a qual posto que muito carregada, dava acomodação a uma pessoa, pois era uma galeota grande. Salvaterra e os filhos tentaram dissuadi-lo do projeto, fazendo ver que a noite estava má e que a chuva não tardava, mas o tapuio, apoiado pelo companheiro, insistiu. Nada, que as

fazendas não eram dele e seu Pinto era um branco muito rusguento, e sabia lá Deus o que podia acontecer; os tempos não andavam bons, havia muito tapuio ladrão aí por esse, acrescentava como um riso alvar, e de mais ele embirrava com esta história de dormir dentro de uma gaiola. Quanto à chuva pouco se importava, queria segurança e agasalho para as fazendas: ele tinha o couro duro e um excelente japá na tolda da galeota. No fundo quadrava perfeitamente à sora Maria a resolução do seu João, não só porque pensava que mais vale um hóspede do que dois, como também por lhe ser difícil acomodar os dois viajantes na sua modesta casinha. Assim não duvidou aplaudir a lembrança, dizendo ao marido: - Deixa lá, homem, cada um sabe de si e Deus de todos. O caboclo abriu a porta e saiu acompanhado pelo cão de guarda, cuja cabeça amimava, convidando-o para lhe fazer companhia, por via das dúvidas. A noite continuava escura como breu. Lufadas de um vento quente, prenúncio de tempestade, açoutavam nuvens negras que corriam para o sul como fantasmas em disparada. As árvores da beirada soluçavam, vergadas pelo vento, e grossas gotas de águas começavam a cair sobre o chão ressequido, de onde subia um cheiro ativo de barro molhado. - Agasalhe-se bem, patrício, – gritou o português ao caboclo que saía. E, fechando a porta com a tranca de pau, veio ter com a família. Logo depois desejavam boa-noite uns aos outros; o hóspede que deu o nome de Manuel, afundou-se numa rede, que lhe armaram na sala, e ainda não havia meia hora que saíra seu João, já a sora Maria, o marido e os filhos dormiam o sono reparador das fadigas do dia,

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acalentado pela calma de uma consciência honesta. A Anica depois de rezar à Virgem das Dores, sua padroeira, não pudera fechar os olhos. Impressionara-a muito o desaparecimento da pequena e da malhada, que acreditava filho de um roubo, e sem querer associava na sua mente a esse fato as histórias terríveis que lhe lembrara a mãe pouco antes, sobre os crimes diariamente praticados pela quadrilha de Jacob Patacho. Eram donzelas raptadas para saciar as paixões dos tapuios; pais de família assassinados barbaramente; crianças atiradas ao rio com uma pedra ao pescoço, herdades incendiadas, um quatro interminável de atrocidades inauditas que lhe dançava diante dos olhos, e parecia reproduzido nas sombras fugitivas projetadas nas paredes de barro escuro do seu quartinho pela luz vacilante da candeia de azeite de mamona. E por uma singularidade, que a rapariga não sabia explicar, em todos aqueles dramas de sangue e de fogo havia uma figura saliente, o chefe, o matador, o incendiário, demônio vivo que tripudiava sobre os cadáveres quentes das vítimas, no meio das chamas dos incêndios, e, produto de um cérebro enfermo, agitado pela vigília, as feições desse monstro eram as do pacífico tapuio que ela ouvia roncar placidamente no fundo da rede na sala vizinha. Mas por maiores esforços que a moça fizesse para apagar da sua imaginação a figura baixa e bexigosa do hóspede, rindo nervosamente da sua loucura, mal fechava os olhos, lá lhe apareciam as cenas de desolação e de morte, no meio das quais progrediam os olhos ardentes, o nariz chato e a boca desdentada do tapuio, cuja figura, entretanto, desenrolava-se inteira na sua mente espavorida, absorvendo-lhe a atenção e resumindo a tragédia feroz que o cérebro imaginava. Pouco a pouco, procurando provar a si mesma que o hóspede nada tinha de

comum com o personagem que sonhara, e que a sua aparência era toda pacífica, de um pobre tapuio honrado e inofensivo, examinando-lhe mentalmente uma a uma as feições, foi-lhe chegando a convicção de que não fora aquela noite a primeira vez que o vira, convicção que se arraigava no seu espírito, à medida que se lhe esclarecia a memória. Sim, era aquele mesmo; não era a primeira vez que via aquele nariz roído de bexigas, aquela boca imunda e servil, a cor azinhavrada, a estatura baixa e vigorosa, sobretudo aquele olhar indigno, desaforado, torpe que a incomodara tanto na sala, queimando-lhe os seios. Já uma vez fora insultada por aquele olhar. Onde? Como? Não podia lembrar-se, mas com certeza não era a primeira vez que o sentia. Invocava as suas reminiscências. No Funchal não podia ser; no sítio também não fora; seria no Pará quando chegara com a mãe, ainda menina, e acomodaram-se em uma casinha da rua das Mercês? Não; era mais recente, muito mais recente. Bem; parecia recordar-se agora. Fora em Santarém, havia coisa de dois anos ou três, quando ali estivera com o pai para assistir a uma festa popular, o sahiré. Hospedara-se então na casa do negociante Joaquim Pinto, patrício e protetor de seu pai, e foi ali, em uma noite de festa, quando se achava em companhia de outras raparigas sentada à porta da rua, a ver passar a gente que voltava de igreja, que se sentiu atormentada por aquele olhar lascivo e tenaz, a ponto de retirar-se para a cozinha trêmula e chorosa. Sim, nenhuma dúvida mais podia haver, o homem era um agregado de Joaquim Pinto, um camarada antigo da casa, por sinal que, segundo lhe disseram as mucamas da mulher do Pinto, era de Cametá e se chamava Manuel Saraiva. Neste ponto de suas reminiscências, a Anica foi assaltada por uma idéia medonha que lhe fez correr um frio glacial pela espinha dorsal, ressecou-lhe a garganta, e inundou-lhe de suor a fronte. Saraiva! Mas era este o nome do

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famigerado tenente de Jacob Patacho, cuja reputação de malvadez chegara aos recônditos sertões do Amazonas, e cuja atroz e brutal lascívia excedia em horror aos cruéis tormentos que o chefe da quadrilha inflingia às suas vítimas. Seria aquele tapuio de cara bexigosa e ar pacífico o mesmo salteador da baía do Sol e das águas dos Amazonas, o bárbaro violador de virgens indefesas, o bandido, cujo nome mal se pronunciava nos serões das famílias pobres e honradas, tal o medo que incutia? Seria aquele homem de maneiras sossegadas e corteses, de falar arrastado e humilde o herói dos estupros e dos incêndios, a fera em cujo coração de bronze jamais pudera germinar o sentimento da piedade? A idéia da identidade do tapuio que dormia na sala vizinha com o tenente de Jacob Patacho, gelou-a de terror. Perdeu os movimentos e ficou por algum tempo fria, com a cabeça inclinada para trás, a boca entreaberta e os olhos arregalados, fixos na porta da sala; mas de repente o clarão de um pensamento salvador iluminou-lhe o cérebro; convinha não perder tempo, avisar o pai e os irmãos, dar o grito de alarma; eram todos homens possantes e decididos, tinham boas espingardas; os bandidos eram dois apenas, seriam prevenidos, presos antes de poderem oferecer séria resistência. Em todo o caso, fossem ou não fossem assassinos e ladrões, mais valia estarem os de casa avisados, passarem uma noite em claro do que correrem o risco de serem assassinados a dormir. Saltou da cama, enfiou as saias e correu para a porta, mas a reflexão fê-la estacar cheia de desânimo. Como prevenir o pai, sem correr a eventualidade de acordar o tapuio? A sala em que este se aboletara interpunha-se entre o seu quarto e o de seus pais; para chegar ao dormitório dos velhos era forçoso passar por baixo da rede do caboclo, que não podia deixar de acordar, principalmente ao ruído dos gonzos enferrujados da porta que, por exceção e natural recato da moça, se fechara aquela noite. E se acordasse seria

ela talvez a primeira vítima, sem que o sacrifício pudesse aproveitar à sua família. Um silvo agudo, imitante do canto do urutaí, arrancou-a a estas reflexões, e pondo os ouvidos à escuta, pareceu-lhe que o tapuio da sala vizinha cessara de ressonar. Não havia tempo a perder, se queria salvar os seus. Lembrou-se então de saltar pela janela, rodear a casa e ir bater à janela do quarto do pai. Já ia realizar esse plano quando cogitou de estar o outro tapuio, o seu João, perto da casa para responder ao sinal do companheiro, e entreabriu com toda precaução a janela, espreitando pelo vão. A noite estava belíssima. O vento forte afugentara as nuvens para o sul, e a lua subia lentamente no firmamento, prateando as águas do rio e as clareiras da floresta. A chuva cessara inteiramente, e do chão molhado subia uma evaporação de umidade, que, misturada ao cheiro ativo das laranjeiras em flor, dava aos sentidos uma sensação de odorosa frescura. A princípio a rapariga, deslumbrada pelo luar, nada viu, mas afirmando a vista percebeu umas sombras que se esgueiravam por entre as árvores do porto, e logo depois distinguiu vultos de tapuios cobertos de grandes chapéus de palha, e armados de terçados, que se dirigiam para a casa. Eram quinze ou vinte, mas à rapariga de susto pareceu uma centena, porque de cada tronco de árvore a sua imaginação fazia um homem. Não havia que duvidar. Era a quadrilha de Jacob Patacho que assaltava o sítio. Todo o desespero da situação em que se achava apresentou-se claramente à inteligência da rapariga. Saltar pela janela e fugir, além de impossível, porque a claridade da lua a denunciaria

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aos bandidos, seria abandonar seus pais e irmãos, cuja existência preciosa seria cortada pelo punhal dos sicários de Patacho durante o sono, e sem que pudessem defender-se ao menos. Ir acordá-los seria entregar-se às mãos do feroz Saraiva, e sucumbir aos seus golpes antes de realizar o intento salvador. Que fazer? A donzela ficou algum tempo indecisa, gelada de terror, com o olhar fixo nas árvores do porto, abrigo dos bandidos, mas de súbito, tomando uma resolução heróica, resumindo todas as forças em um supremo esforço, fechou rapidamente a janela e gritou com todo o vigor dos seus pulmões juvenis: - Aqui d‘el-rei! Os de Jacob Patacho! A sua voz nervosa repercutiu como um brado de suprema angústia pela modesta casinha, e o eco foi perder-se dolorosamente, ao longe, na outra margem do rio, dominando o ruído da corrente e os murmúrios noturnos da floresta. Súbito rumor fez-se na casa até então silenciosa, rumor de espanto e de sobressalto em que se denunciava a voz rouca e mal segura de pessoas arrancadas violentamente a um sono pacífico; a rapariga voltou-se para o lado da porta da sala, mas sentiu-se presa por braços de ferro, ao passo que um asqueroso beijo, mordedura de réptil antes do que humana carícia, tapou-lhe a boca. O tapuio bexigoso, Saraiva, sem que a moça o pudesse explicar, entrara sorrateiramente no quarto, e se aproximara dela sem ser pressentido. A indignação do pudor ofendido e a repugnância indizível que se apoderou da moça ao sentir o contato dos lábios e do corpo do bandido, determinaram uma resistência que o seu físico delicado parecia não poder admitir. Uma luta incrível se travou entre aquela branca e rosada criatura seminua e o tapuio que a enlaçava com os braços cor de cobre, dobrando-lhe o talhe flexível sob a ameaça de novo contato de sua boca desdentada e negra, e procurando atirá-la ao chão. Mas a rapariga segurara-se

ao pescoço do homem com as mãos crispadas pelo esforço espantoso do pudor e do asco, e o tapuio, que julgara fácil a vitória, e tinha as mãos ocupadas em apertar-lhe a cintura em um círculo de ferro, sentiu faltar-lhe o ar, opresso pelos desejos brutais que tanto o afogavam quanto a pressão dos dedos nervosos e afilados da vítima. Mas se a sensualidade feroz do Saraiva, unida à audácia que lhe inspirara a consciência de terror causado por sua presença lhe fazia esquecer a prudência que tanto o distinguia antes do ataque, o brado de alarma solto pela rapariga dera aos quadrilheiros de Patacho um momento de indecisão. Ignorando o que se passava na casa, e as circunstâncias em que se achava o tenente comandante da expedição, cederam a um movimento de reserva, da índole do caboclo, e voltaram a esconder-se por detrás dos troncos de árvores que ensombravam a ribanceira. A moça ia cair exausta de forças, mas teve ainda ânimo para gritar com suprema energia: - Acudam, acudam, que me matam! Bruscamente o Saraiva largou a mão da Anica, e atirou-se para a janela, naturalmente para abri-la, e chamar os companheiros, percebendo que era tempo de agir com resolução, mas a moça advertindo-se do intento, atravessou-se no caminho, com inaudita coragem, opondo-lhe com o corpo um obstáculo que de fácil remoção seria para o tapuio, se nesse momento, abrindo-se de par em par, a porta da sala não desse entrada a Félix Salvaterra, seguido por dois filhos, todos armados de espingardas. Antes que o tenente de Jacob Patacho tivesse podido defender-se, caía banhado em sangue com uma valente pancada no crânio que lhe deu o velho com a coronha da arma. O português e os filhos mal despertos do sono, com as roupas em desalinho, não se deixaram tomar do susto e da surpresa,

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expressa em dolorosos gemidos pela sora Maria dos Prazeres, que abraçada à filha, cobria-a de lágrimas quentes. Pai e filhos compreenderam perfeitamente a gravidade da situação em que se achavam; o silêncio e ausência do cão de guarda, sem dúvida morto à traição, e a audácia do tapuio bexigoso, mais ainda do que o primeiro grito da filha, do qual apenas haviam ouvido ao despertar o nome do terrível pirata paraense, os convenceram de que não haviam vencido o último inimigo, e enquanto um dos moços apontava a espingarda ao peito do tapuio que banhado em sangue tinha gravados na moça os olhos ardentes de volúpia, Salvaterra e o outro filho voltaram à sala, com o fim de guardar a porta de entrada. Esta porta tinha sido aberta, achava-se apenas cerrada apesar de havê-la trancado o dono da casa quando despediu o caboclo alto. Foram os dois homens para pôr-lhe novamente a tranca, mas já era tarde. Seu João, o companheiro de Saraiva mais afoito do que os outros tapuios, chegara à casa, e percebendo que o seu chefe corria grande perigo, assobiou de um modo peculiar, e em seguida, voltando-se para os homens que se destacavam das árvores do porto, como visões de febre, emitiu na voz cultural do caboclo o brado que depois se tornou o grito de guerra da cabanagem: - Mata marinheiro! Mata! Mata! Os bandidos correram e penetraram na casa. Travou-se então uma luta horrível entre aqueles tapuios armados de terçados e de grandes cacetes quinados de massaranduba, e os três portugueses que heroicamente defendiam o seu lar, valendo-se das espingardas de caça, que, depois de descarregados, serviram-lhes de formidáveis maças. O Saraiva recebeu um tiro à queima-roupa, o primeiro tiro, pois que o rapaz que o ameaçava, sentindo entrarem na sala os tapuios, procurara livrar-se logo

do pior deles, ainda que por terra e ferido: mas não foi longo o combate; enquanto mãe e filha, agarradas uma à outra, se lamentavam desesperada e ruidosamente, o pai e os filhos caíam banhados em sangue, e nos seus brancos cadáveres a quadrilha de Jacob Patacho vingava a morte de seu feroz tenente, mutilando-os de um modo selvagem. Quando passei com meu tio Antônio em junho de 1932 pelo sítio de Félix Salveterra, o lúgubre aspecto da habitação abandonada, sob cuja cumeeira um bando de urubus secava as asas ao sol, chamou-me a atenção; uma curiosidade doentia fez-me saltar em terra e entrei na casa. Ainda estavam bem recentes os vestígios da luta. A tranqüila morada do bom português tinha um ar sinistro. Aberta, despida de todos os modestos trastes que a ornavam outrora, denotava que fora vítima do saque unido ao instinto selvagem da destruição. Sobre o chão úmido da sala principal, os restos de cinco ou seis cadáveres, quase totalmente devorados pelos urubus, enchiam a atmosfera de emanações deletérias. Era medonho de ver-se. Só muito tempo depois conheci os pormenores desta horrível tragédia, tão comum, aliás, naqueles tempos da desgraça. A sora Maria dos Prazeres e a Anica haviam sido levadas pelos bandidos, depois do saque de sua casa. A Anica tocara em partilha a Jacob Patacho, e ainda o ano passado, a velha Ana, lavadeira de Santarém, contava, estremecendo de horror, os cruéis tormentos que sofrera em sua atribulada existência. ====================== Vocabulário Sora – senhora Alumiava – iluminava Ciciar – sibilar, sussurrar Pacoveira – bananeira Cabanagem – violência, selvageria Galeota – canoa provida de toldo onde se fazem comércio itinerante

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Japá – esteira tecida de folhas de palmeira, que serve como toldo em pequenas embarcações, para cobrir barracas, alpendres etc. ou para fechar portas e janelas Herdades – fazendas; quintas Azinhavrada – coberto de azinhavre, camada esverdeada que se forma em objetos de cobre ou latão devido à umidade. Mucama – no Brasil e na África portuguesa, escrava ou criada negra, ger. jovem, que vivia mais próxima dos senhores, ajudava nos serviços

caseiros e acompanhava sua senhora em passeios; ama de leite dos filhos dos seus senhores. Aboletara – acomodara-se, instalara-se Cumeeira – parte mais elevada de um telhado. Deletéria – insalubre, nociva Fonte: SOUZA, Inglês de. Contos Amazônicos. São Paulo: Martin Claret, 2006.

Antônio Cândido da

Silva Bar do Zizi

A última telha importada de Marselha virou pó na dureza do cimento. Resta somente o espaço, o pó e o tempo levando tudo para o esquecimento. E a tristeza nos arquivos da memória guarda mais um registro de saudade misturada com indignação e o sentimento de impotência diante de que tem nas mãos a força do poder. Levanta do silêncio Guapindaia, Doutor Tanajura, Mario Monteiro e Bohemundo Álvares Afonso. Protesta Professor Carlos Mendonça, Doutor Celso Pinheiro e Rui Brasil Cantanhede que o prédio finalmente concluiu.

Venham ver o que fizeram do mercado e da luta de vocês que foi em vão. Ninguém se levantou pra defender o pedaço de nossa história que teimava em não cair. Segismundo se calou, nem Zé Catraka botou ―Lenha na Fogueira‖ e se apagou. Zizi, nosso velho Zizi, tombou cansado depois de tanto tempo resistir. A última telha de Marselha virou pó. Guarde a sua lembrança com carinho pois o passado perdeu a realeza. Só nos resta mandar nossa saudade convocar Ernesto Melo pra cantar nossa tristeza. Do livro inédito: ―Passarela de Emoções‖

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Antônio Cândido da Silva (5 Novembro 1941) Nasceu no dia 5 de novembro de 1941, na cidade Amazonense de Humaitá. Filho de Artur Elpídio da Silva e Raimunda Cândida da Silva. Foi para Porto Velho em 10 de maio de 1945. Iniciou seus estudos no Colégio Dom Bosco e passou pela Escola Normal Carmela Dutra. Em 1980 concluiu o 2º Grau no Colégio Dom Bosco. Como o próprio autor auto-biografa-se, alguém escreveu: ―Antônio Cândido nasceu num seringal meio perdido lá para as bandas do ―Igarapé dos Botos‖ no Município de Humaitá – AM, mudando-se para Porto Velho ainda criança, onde fixou residência e permanece até hoje. Sua primeira experiência artística foi no teatro, com apenas 10 anos de idade. Logo em seguida mergulhou pela poesia e dela nunca emergiu. Tornou-se a própria. Considerado o poeta de Porto Velho, tanto nas suas colaborações literárias publicadas no jornal Alto Madeira, como no seu livro ―Marcas do Tempo‖, Antônio Cândido canta Porto Velho com seus bairros, ruas, travessas, vielas e outros logradouros.

Antônio Cândido criou a bandeira e o brasão do município de Porto Velho; a bandeira e hino do município de Costa Marques e os hinos dos municípios de Jarú e Cerejeiras. Recebeu homenagens da Câmara Municipal com o Título – Amigo de Porto Velho, e a comenda José do Patrocínio, alusiva aos 100 anos da Abolição da Escravatura. Intelectual com rara capacidade de percepção, bem antes de a Ecologia ―entrar na moda‖, o poeta, nas rodas de amigos, já defendia o meio ambiente‖. Sua grande paixão pela cidade de Porto Velho é demonstrada no poema que tem seu nome, além da história da legendária Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, toda contada em poesia, no livro ―Madeira-Mamoré – O Vagão dos Esquecidos‖. É membro efetivo da Academia de Letras de Rondônia. Além de inúmeros trabalhos publicados nos jornais literários, escreveu os livros ―Marcas do Tempo‖ e ―Madeira-Mamoré – O Vagão dos Esquecidos‖ (1ª Edição, 1998; 2ª Edição, 2000). Fonte: Academia de Letras de Rondônia

Samuel Castiel Jr. Flor Tropical

Noturnas

FLOR TROPICAL Flor tropical, soberba e encantadora Que cresce e floresce em terrenos hostis Como guardiã desafiadora Do belo nativo e essências sutis!…

Como brisa que soprou todas as vidas Nascestes bela, livre e agreste, Repartindo-te em pétalas coloridas Invejam-te o crisântemo e o cipreste… Não queiras nunca te tornar rainha

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Pois sempre foste à preferida minha! Fascinam-me teu porte, tua cor… Quero- te sempre assim bela e formosa

Como um livro escrito em verso e prosa Como a mulher que me ensinou o amor!

NOTURNAS

Altas horas, madrugada em curso! Noite cálida de um verão tórrido e abrasador, aqui, abaixo dos trópicos! Só, da sacada de meu apartamento, espreito o silêncio desta madrugada, quebrado vez por outra pelo ronco e os faróis de um carro que passa….A brisa úmida que começa soprar levanta folhas secas e papéis que dormiam atirados ao solo. Um cachorro vem de longe, sem latir, sozinho, e desaparece no final da rua. A cidade inteira parece adormecida! Milhares de lâmpadas piscam em todas as direções. O céu estrelado completa essa harmonia silente! São nessas horas mortas que a insônia me leva a refletir sobre a origem e objetivos da vida, sobre o destino e a trajetória dos seres humanos. Nada mais patético! Logo mais, ao amanhecer, todos estarão em mais um dia de rotina, fazendo sempre as mesmas coisas, desafiando e sendo desafiados a novas conquistas, numa competitividade cada vez mais acirrada, sem fim. Logo, alguns vão morrer, vão se matar ou serem mortos, tendo conquistado ou não seus objetivos, acumulados de conquistas, vitórias e derrotas. E daí surge mais uma elocubração: e no pós-morte tudo se acaba, vira pó, ou entramos em uma outra dimensão, outro mundo melhor (ou pior)?. Em outras palavras: vai dar Allan Kardec ou Sir Charles Darwin! Infelizmente esta questão não é tão simplória assim, não se pode ―pagar-pra-ver‖ como no pôquer. Não podemos blefar! Em nenhuma das teorias tanto no espiritismo como na seleção natural, jamais poderemos saber quem foi o vencedor. Até porque não vão restar

nem vencidos nem vencedores. Para este mundo todos estaremos mortos!… No início da rua surge o vulto de um homem, que vem a passos lentos, com se estivesse cansado. Aproxima-se cada vez mais, então, pára e bate a porta do Colégio Dom Bosco. São batidas insistentes, fortes, quase incomodativas. Sob a luz do poste poderia ver o seu rosto, não fosse o boné que usava. Sua roupa bastante amarrotada, como se viesse de sua rotina de trabalho que terminara àquela hora. As batidas à porta daquele estabelecimento não tiveram nenhuma resposta, e seus ecos ficaram reverberando nos meus ouvidos. O homem então, solitário, parte desaparecendo no final da rua, na escuridão! Fico então a pensar que aquele homem sou eu, em busca de tantas respostas que jamais obterei. As portas não se abriram e mesmo que tivessem se aberto, não teria eu as respostas para meus enigmas e fantasmas. Fecho então a minha sacada e volto para tentar conciliar o sono perdido, com a mesma angústia que aflige todo ser humano que se debruça sobre a vida e a morte! Apago a luz!

Samuel Castiel Jr. Médico Radiologista Membro das Academias de Letras e Medicina de Rondônia Fonte: Academia de Letras de Rondônia

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Cláudio Batista Feitosa (12 Agosto 1933)

Cláudio Batista Feitosa é amazonense, nascido na cidade de Porto Velho no dia 12 de agosto de 1933. Ainda muito jovem, participou ativamente dos movimentos culturais promovidos pelo Colégio Dom Bosco em Porto Velho, onde fez o Primeiro Grau em 1949, concluindo o Segundo Grau em Fortaleza/CE onde residiu por alguns anos, seguindo dali para São Paulo, retornando em 1956 para Porto Velho à partir de quando exerceu diversas atividades nos setores público e privado, tendo participado de inúmeras atividades comunitárias com destaque para o Movimento Brasileiro de Alfabetização – MOBRAL como presidente da Comissão Municipal de Porto Velho, no período de agosto de 1971 até abril de 1976, época em que o Movimento conseguiu alfabetizar de mais dez mil pessoas. É de sua autoria a Canção da Brigada Príncipe da Beira (17ªBrigada de Infantaria de Selva) com sede em Porto Velho (1982), homologada pela Portaria nº63 de 14/09/1982 da Chefia/E.M.E. ; o Hino do Município de Porto Velho (1983), homologado pela Câmara Municipal de Porto Velho; as Canções da Base Aérea de Porto Velho (1986) e da Polícia Militar do Estado de Rondônia (1994), assim como o Brasão do Grande Oriente Estadual de Rondônia -GOER. O dia 12 de agosto de 1994 marcou sua participação definitiva no campo literário (prosa) com a publicação de um pequeno ensaio do que considerava ―anedotário‖ de Porto Velho sob o título de ―O Bloco da Cobra‖ e o ―O Bote da Boiuna, Primeiro e Último‖, incluídos na Antologia Da Prosa E Do Verso Rondoniense (pgs.19 a 30) lançada naquela data pela FUNCER- Fundação

Cultural do Estado de Rondônia, após compilar os melhores textos de um Concurso Literário que promoveu em 1993. Na Antologia Da Prosa E Do Verso Rondoniense -Vol.II – FUNCER/Set-94, Cláudio está também presente (pgs.13 a 24) com o conto intitulado ― O Enterro do Balbino‖. Registre-se também sua co-autoria do livro Porto Velho Em Prosa E Verso lançado pela Secretaria Municipal de Cultura, Esporte e Turismo-SEMCE da Prefeitura do Município de Porto Velho, em 25/11/1998; co-autoria do livro Escritos De Rondônia lançado pela Secretaria de Estado de Esportes, Cultura e Lazer – SECEL – Ano 2000 – (pg. 170); co-autoria do livro Gente De Rondônia-Personagens Da Nossa História – (coletânea) lançado pela SECEL e Instituto Histórico e Geográfico de Rondônia – Ano 2001 (pg. 88). É de sua autoria o livro Gente Da Gente lançado, no dia 7 de agosto de 2005. Cláudio Batista Feitosa é Membro da Academia Maçônica De Letras Do Estado De Rondônia – AML, ocupando a cadeira Nº 12 e também Membro da Academia De Letras De Rondônia (ACLER), tendo sido eleito para a cadeira nº 26 em 14/10/2003 e solenemente empossado no dia 01 de dezembro de 2003. Sua atividade principal, atualmente, é a prestação de serviços como Leiloeiro Público Oficial (Matrícula nº 002/92-JUCER), com jurisdição no território do Estado de Rondônia. Cláudio Batista Feitosa é casado com a guajaramirense Sílvia Carvajal Feitosa, havendo nascido, do enlace, os seguintes

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filhos: Ricardo (Eng.Eletricista), Sérgio (Geólogo), Sílvio (Arquiteto) e Cláudia (Médica). É, também, avô de Diego, Daniel, Eduardo, Amanda, Julius, Hector e Katharina. O Acadêmico Cláudio Batista Feitosa foi eleito, no dia 04 de janeiro de 2008, compondo a nova Diretoria da

Academia -biênio 2008/2009 – para o cargo de Diretor Financeiro. É, portanto, o Acadêmico responsável pelas finanças da Academia. Fonte: Academia de Letras de Rondônia

Otto Melander A Mulher e o Cachorro

O alemão Melander (1571 – 1640) sabia latim tão bem quanto seus colegas italianos e franceses. Protestante, quando podia alfinetava frades e freiras. Ele inclui-se no grupo de humanistas do Renascença, Escrevendo num gênero típico da época, que constituía em coletâneas ao mesmo tempo instrutivas e recreativas, misturando anedotas e fatos curiosos. O conto em questão faz porte de Joco-Seria (Coisas Jocosas e Sérias) e inclui-se dentro da tradição boccaciana.

Costumava certo fidalgo da Vestefália convidar para o almoço domingueiro o seu presbítero, homem moço, conversador e faceto, conduzido havia pouco ao leme da Igreja.

Um dia teve de viajar para o estrangeiro. Estando já a meia milha de seu castelo, disse ao escudeiro, de repente: - Lembro-me agora de uma coisa de que faço muita questão que minha esposa seja advertida; para ela também é muito importante. Volta, pois, imediatamente, e adverte-a em meu nome, de modo grave e solene, que não dê ao presbítero, em minha ausência, nem almoço nem jantar; não o deixe entrar em casa durante todo o tempo em que eu não estiver lá; e, principalmente, não ponha os pés em casa dele, e se abstenha de qualquer conversa com ele.

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O escudeiro prometeu a seu amo cumprir a ordem, e regressou ao castelo. Mas, apenas se afastara um pouco, pôs-se a meditar e a resmungar: – ―Decerto o meu amo assustou-se com a idéia de que esse nosso presbítero novato, cheio de seiva como é natural em um moço, rapaz forte, formoso e lúbrico, se pusesse a assaltar o pudor da senhora. Deve ser por isso que lhe proibiu toda espécie de familiaridade com ele. Mas eu, por Hércules, conheço os costumes dessas mulherezinhas. Elas praticam de preferência justamente as coisas de que têm ordem de se abster. Portanto, para que em nossa ausência ela não tenha ligações com o tal acólito, nada lhe direi, absolutamente, sobre a ordem do meu amo, mas inventarei algum outro recado por ele dado a mim.‖ Mal entrara o escudeiro no castelo, já à senhora acudia, e, com lágrimas nos olhos, perguntou-lhe: - Que significa a tua volta tão apressada? Será que os negócios de meu marido não andam bem? - Andam, sim, muito bem – respondeu o criado, – Meu senhor mandou-me voltar para, em seu nome, advertir-vos de uma coisa. Quer e manda o meu nobre senhor que em sua ausência não vos ponhais a brincar com aquele nosso grande molosso, acostumado a rédeas, nem o monteis. Teme que aquele cachorro irritável e sempre disposto a morder venha a morder-vos, por acaso. - Não entendo muito bem esta proibição – respondeu a mulher. – Por Hércules, nunca tive a idéia de acariciar o molosso, ainda menos de montá-lo. Digo mais: não há ninguém no mundo que me haja visto brincar com ele. Por tudo isso, esta recomendação era inteiramente supérflua. Mas o escudeiro, antes de se ir, insistiu: - Compreendestes, então, minha senhora, o recado de vosso marido? Ponde, pois, todo o empenho em lhe obedecer. - Volta a meu marido – respondeu a mulher -, transmite-lhe os meus votos de felicidade, e

dize-lhe que fique tranqüilo, não se preocupe comigo, pois farei todo o possível para lhe provar, pelo meu procedimento, quanto lhe estou submissa neste ponto, como em outro qualquer. Mal o escudeiro tinha virado as costas, eis que a mulher começa a matutar: – ―Não posso imaginar por que razão meu marido me proíbe de acariciar o molosso ou montar nele. Deve haver aí algum motivo oculto. Não me lembro, por Castor, de o ter o feito ou mesmo tentado. Bem, de qualquer maneira está certo: morra eu se tocar o cão com um dedo sequer!‖ Depois de tais reflexões, vai buscar alguns pedaços de pão e joga-os ao cachorro. Verificando que este os devora avidamente e vem lisonjeá-la depois, traz mais pão e repasta o animal até saciá-lo. Acaba acariciando-o, sem dúvida para experimentar se é tão irritável como pretende o marido. Vendo que o animal suporta bem o tratamento, exclama: - Vejam só como é tratável o nosso molosso! Nisto, senta-se no cão, apertando-lhe um tanto as costas com as nádegas. O cachorro se enfurece, arreganha os dentes e crava-os no braço da mulher. Ensangüentada, agoniada pela dor, ela vê-se forçada a chamar um médico para tratar-lhe da ferida. Passam-se os dias. Retorna o fidalgo, e encontra a esposa de cama, com ar abatido, muito pálida. - Que desgraça te aconteceu, minha luz? – pergunta-lhe, alarmado. - Tudo isto é por tua causa – respondeu ela. – Se não me houvesses recomendado, pelo escudeiro, que não brincasse com o molosso, nunca me haveria atrevido a tocá-lo. O fidalgo, surpreendido, procura justificar-se por todos os meios e jura por Júpiter não ter mandado dizer pelo escudeiro nada de semelhante; depois, chama-o: - Então, patife, eu mandei dizer a minha mulher que não acariciasse o molosso?

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- Nada disso – responde o criado. – Mandastes-me proibi-la de introduzir o presbítero em vossa casa enquanto estivésseis ausente. Eu, porém, inventei outro recado, por saber do costume que têm as mulheres de fazer precisamente o que se lhes proíbe. Se de fato eu lhe tivesse vedado todo e qualquer contato com o padrezinho, sem nenhuma dúvida ela o haveria introduzido em casa, e agora, em vez de terdes uma esposa honesta, teríeis o vosso lar transformado em hediondo prostíbulo. Foi isso que eu quis evitar, convencido de que a mulher procura sempre o que se lhe proíbe; e podeis ver a prova

manifesta disso no fato de ela ter acariciado o cachorro e tê-lo montado, embora eu lho houvesse vedado com a maior insistência. O fidalgo não deixou de aprovar a atitude do prudente criado, a quem daí em diante teve em melhor conceito, e encerrou o incidente com as palavras: - Prefiro ver minha mulher mordida pelo cachorro a sabê-la desonrada pelo acólito. Fonte: COSTA, Flávio Moreira da (organizador). Os 100 Melhores Contos de Humor da Literatura Universal. 5.ed. RJ: Ediouro, 2001.

Mario Quintana 80 anos de poesia

A coletânea 80 anos de poesia, é uma antologia publicada pela Editora Globo para homenagear os 80 anos de vida de Mário Quintana. Com organização de Tânia Franco Carvalhal, a obra contém poemas que mostram as várias facetas do poeta. Apresentados em ordem cronológica, eles atestam a procura de diferentes maneiras de dizer e indicam como o poeta vai optando por uma expressão próxima do coloquialismo, vizinha da prosa. Isto permite ao leitor uma visão geral do percurso poético de Quintana, mestre em estabelecer uma comunicação imediata e efetiva com quem o lê: ao dizer o humano em suas múltiplas facetas, ele fala a todos nós. São poesias pertencentes ao Segundo Tempo Modernista (1930-1945), onde aparecem temas constantes de suas obras como a infância (que é tratada com certo lirismo), os meninos, as ruas de Porto Alegre e a velhice. Suas poesias, aparentemente simples, trazem a complexidade de quem viveu intensamente o sentimento de mundo. A vasta percepção possibilita uma engenharia sólida no que toca à compreensão da natureza humana. Convicto com relação à sua capacidade criadora, manteve-se distante dos modismos

literários, cultuando forte independência com relação a qualquer tipo de classificação que viesse a rotulá-lo, ou à sua obra. Esse individualismo creditou-lhe um orgulho persistente, haja visto a sua autenticidade, instigando-lhe a dividir grandes lições de vida com o leitor que vier a prestigiá-lo.

Fere de leve a frase… E esquece… Nada Convém que se repita…

Só em linguagem amorosa agrada A mesma coisa cem mil vezes dita.

O interessante com relação à obra de Quintana é a sua natureza múltipla. Apesar da postura crítica e da ironia refinada, há uma ternura explícita coexistindo, assim como uma envolvente honestidade conceitual. Ainda que Mário Quintana inicie muitos de seus versos com uma fina ironia, a densidade de suas questões não permite ocultar que fazer poesia é refugiar-se do incômodo existencial e filosófico que sua extrema sensibilidade insiste em sacudir.

Da primeira vez em que me assassinaram Perdi um jeito de sorrir que eu tinha… Depois, de cada vez que me mataram, Foram levando qualquer coisa minha…

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A postura encontrada diante da compreensão da morte, da religião ou da existência divina não deixa dúvidas quanto ao recurso da poesia como uma tentativa de apaziguamento com a ausência de respostas de um ser humano intenso,comprometido e intrigado com a grandeza da vida. Apesar disso, ele luta bravamente para não se considerar diminuído por ela.

Quintanares

Meu Quintana, os teus cantares Não são, Quintana, cantares: São, Quintana, quintanares.

Quinta-essência de cantares…

Insólitos, singulares… Cantares? Não! Quintanares!

Quer livres, quer regulares,

Abrem sempre os teus cantares Como flor de quintanares.

São cantigas sem esgares.

Onde as lágrimas são mares De amor, os teus quintanares.

São feitos esses cantares

De um tudo-nada: ao falares, Luzem estrelas luares.

São para dizer em bares

Como em mansões seculares Quintana, os teus quintanares.

Sim, em bares, onde os pares Se beijam sem que repares Que são casais exemplares.

E quer no pudor dos lares.

Quer no horror dos lupanares. Cheiram sempre os teus cantares

Ao ar dos melhores ares,

Pois são simples, invulgares. Quintana, os teus quintanares.

Por isso peço não pares,

Quintana, nos teus cantares… Perdão! digo quintanares

(BANDEIRA, Manuel)

Das utopias

Se as coisas são inatingíveis… ora!

Não é motivo para não querê-las… Que tristes os caminhos, se não fora

A mágica presença das estrelas!

Canção da janela aberta

Passa nuvem, passa estrela, Passa a lua na janela…

Sem mais cuidados na terra, Preguei meus olhos no Céu.

E o meu quarto, pela noite Imensa e triste, navega…

Deito-me ao fundo do barco,

Sob os silêncios do Céu.

Adeus, Cidade Maldita, Que lá se vai o teu Poeta.

Adeus para sempre, Amigos…

Vou sepultar-me no Céu! — Fonte: Todas as poesias selecionadas de Mário Quintana e Manuel Bandeira – In: Coletânea 80 anos de Poesia. Organizada por Tânia Carvalhal. Editora Globo, 1986 Portal de Estudos Passeiweb

Coração que bate-bate...

Antes deixes de bater! Só num relógio é que as horas

Vão passando sem sofrer. Mário Quintana (RS)

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Guimarães Rosa 7 Contos do Livro Primeiras

Histórias

Composto por 21 contos, analisaremos os 7 a seguir: SORÔCO, SUA MÃE, SUA FILHA Conto narrado em terceira pessoa, mas com a participação ambígua do narrador como personagem. Isto se dá pelo fato do narrador ser um observador dos fatos, mas também fazer parte do povo: ―A gente se esfriou (…)‖ ―A gente estava levando agora o Sorôco (…)‖ Ou seja, ―a gente ―, no conto, pode ser a gente, o povo da estação, como também o marcador oral ―a gente‖ enquanto nós. O conto tem uma temática triste, trabalha com o sentido circular de passar a angústia do personagem Sorôco com sua solidão e desespero ao ter que deixar ir para longe as únicas pessoas que tem no mundo, ficando mais solitário ainda. Tudo gira em torno da separação, da perda, da ausência e da distância.

A grande temática do conto é a solidariedade. Há a compaixão do povo para com Sorôco e sua dor. O povo se solidariza com Sorôco. A irracionalidade entoada na cantiga da mãe e da filha loucas realiza o elo de ligação entre as dores de todos os homens. É uma cantiga compreendida só por aqueles que possuem sentimento, a razão de ser do humano. Esta cantiga metaforiza a união entre os homens por meio da solidariedade. É possível imaginar o sofrimento de Soroco, o vazio dolorido sentido e a profunda solidão na alma. A solidão só não é absoluta, porque existe a solidariedade do povo acalentando seu coração. Pode-se observar também as sugestões sonoras oferecidas pelo nome do personagem: Sorôco – só louco; Sorôco – socorro, como compreensão do forte sentido do contexto do texto. Por outro lado, é interessante perceber a gradação do título, sugerindo a união da família como

vagões que se engatam no trem da existência e se desengatam no destino. Cada vagão carrega sua própria solidão e dor, mas forma o trem da solidão e da dor coletivas, na metáfora de uma cantiga. Sorôco é comparado a Jó, personagem da Bíblia, por causa de seu sofrimento. Passado e futuro, ele, no meio. Ele, a terceira margem. A eternidade. E as proporções gigantescas dele lembram as personagens grotescas que são castigadas, eliminadas em outros contos. O padecimento a que foi submetido ao cuidar das duas, no entanto, redimiu-o.

ENREDO

O conto inicia com a descrição de um vagão diferente, gradeado, que seria levado pelo ―trem do sertão‖. A população sabia que ele levaria ―duas mulheres, para longe, para sempre‖: a mãe e a filha de Sorôco. ―A mãe de Sorôco era de idade, com para mais de uns setenta. A filha, ele só tinha aquela. Sorôco era viúvo.‖ Homem simples e rude, vivia com sua mãe e sua filha:

A mãe de Sorôco era de idade, com para mais de uns setenta. A filha, ele só tinha aquela. Sorôco era viúvo. Afora essas, não se conhecia dele o parente nenhum.

Mãe e filha eram loucas. Sorôco tentou ficar com as duas ao seu lado, mas não foi possível. Tomou a decisão mais difícil de sua existência: interná-las. O governo mandaria o trem para levá-las para Barbacena, longe. ―Para o pobre, os lugares são mais longe.‖ Sorôco deveria encaminhá-las à estação, pois ―o trem do sertão passava às 12h45m.‖ Sorôco seguiu para a estação acompanhando as duas, uma de cada lado, ―parecia entrada em igreja, num casório.‖ O povo esperava, protegendo-se do sol. ―As pessoas não queriam poder ficar se entristecendo, conversavam (…) Sempre chegava mais povo – o movimento.‖ Alguém avisa que Sorôco aponta da Rua de Baixo, onde mora. Ele vestia a sua melhor

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roupa para a despedida, que a população acompanhava com pesar – ―Todos diziam a ele seus respeitos, de dó.‖ Diziam palavras que tentavam consolá-lo e ele muito humilde respondia: – ―Deus vos pague essa despesa...‖ Todos compreendiam a atitude de Sorôco, pois não havia outro jeito.Porém todos pensavam que a partida delas seria bom para ele, visto não haver cura para a doença e também pelo fato de elas terem piorado nos últimos 2 anos, a ponto de Sorôco pedir ajuda médica para elas. Em frente ao trem, a filha de Sorôco começa a cantar uma cantiga que ninguém entende. A mãe de Sorôco começa a cantar também a cantiga entoada pela moça, antes de serem alojadas dentro do trem. Principia o embarque das duas. E o canto ecoa longe. Sorôco não espera o trem desaparecer de vez, nem olha, fica de chapéu na mão calado. ―De repente, todos gostavam demais de Sorôco.‖ O trem partiu e ―Sorôco não esperou tudo se sumir. Nem olhou. Só ficou de chapéu na mão, mais de barba quadrada, surdo – o que nele mais espantava.‖ Todos os presentes ficaram condoídos com o sofrimento do homem. Entretanto, Sorôco pára e ―num rompido – ele começou a cantar. Alteado, forte, mas sozinho para si – e era a cantiga, mesma, de desatino, que as duas tanto tinham cantado. Cantava continuando.‖ E eis que ―todos, de uma vez, de dó de Sorôco, principiaram também a acompanhar aquele canto sem razão. E com vozes tão altas! (…) A gente estava levando agora o Sorôco para a casa dele, de verdade. A gente, com ele, ia até aonde que ia aquela cantiga.‖ A MENINA DE LÁ A menina de lá , conto de Guimarães Rosa, da obra Primeiras estórias, é narrado em terceira pessoa. Em um momento do texto, o narrador também passa a ser personagem (―Conversávamos, agora‖), em outros, funciona como um narrador testemunha dos fatos, ora mais próximo, ora distanciado. Sabe de todos os acontecimentos por presenciá-los e por ouvir falar deles, porém, não diz a revelação que Nininha fez para Tiantônia,

quando apareceu o arco-íris. Isso só acontecerá depois da morte da menina. Semanticamente é possível perceber que a menina não pertence ao cá (terra), mas sim ao lá (céu), pela presença de palavras ligadas ao universo do mundo do lá: lua, estrelinhas, céu, alturas, aves, mortos, saudade, milagre, a mãe não tirava o terço da mão, e a menina mora no ―Temor-de-Deus‖ e principalmente a palavra arco-íris, dentre outras. Arco-íris é a palavra-chave, pois remete ao imaginário coletivo de fazer um pedido ao arco-íris quando este aparece no céu. Pela metonímia ―caixão colorido‖, Nininha pede a morte e metaforicamente, o que ela deseja, acontece. Há, nesse momento, o clímax do conto, pois é o confronto entre os dois mundos: o cá (mundo terreno), de Tiantônia, em que a morte é vista como ruim, repreendendo a menina versus o lá, que para Ninhinha é a alegria , a libertação de um mundo que não é o seu, esperando cumprir o seu destino e realizar o seu desejo de ser ―a menina de lá‖. Desta forma, fecha-se o círculo do universo premonitório traçado pelo conto, calcado no destino fatídico de uma menina que não pertence ao mundo de cá, entretanto possui a magia de um outro mundo encantado: o mundo da criação artística. É uma menina ―com seus nem quatro anos‖, franzina, filha de um pai sitiante e de uma mulher que não tirava o terço das mãos para nada, mesmo quando dava bronca nos empregados.. Vivia em Temor-de-Deus, por trás da Serra do Mim. Seu nome era Maria, ou apenas Nininha. Era muito quieta, ficava sempre sentada em um canto (e ninguém entendia muito bem o que ela dizia). Nininha (seu nome, o sufixo diminutivo triplicado, reforça sua fragilidade), louca (provavelmente tem hidrocefalia), é sensitiva, dotada de contatos místicos, poderes paranormais: seus desejos, por mais estranhos que fossem sempre se realizavam. A menina começa a falar mais, e coisas estranhas começam a acontecer. Um dia, em meio à seca, ela diz que gostaria de ver um sapo em sua casa – momentos depois um sapo entra pulando pela porta; outro dia ela

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comenta que gostaria de comer ―pamonhinha de goiaba‖ – nem meia hora depois chega uma senhora trazendo o doce. Quando sua mãe fica doente, pedem que a faça melhorar, mas a menina simplesmente diz que não pode. No entanto, abraça-a e, coincidência ou não, a cura chega.―O que ela queria, que falava, súbito acontecia.‖ A menina era marcada por inventar histórias absurdas e por se calar subitamente em diversos momentos: ―Não se importava com os acontecimentos. Tranqüila, mas viçosa em saúde. Ninguém tinha real poder sobre ela, não se sabiam suas preferências. Como puni-la? E, bater-lhe, não ousassem; nem havia motivo. (…) E Nininha gostava de mim.‖ Seus poderes começam a dar uma mostra de maior intensidade quando a menina cura a doença de sua mãe e também quando ela atende o pedido de seu pai e faz chover. ―Pai e Mãe cochichavam, contentes: que, quando ela crescesse e tomasse juízo, ia poder ajudar muito a eles, conforme à Providência decerto prazia que fosse.‖ Pouco tempo depois deseja ver o arco-íris. A chuva chega e, junto, o arco. A visão dele no céu proporciona uma alegria que ela nunca tinha expressado em sua vida. Mas, fica quieta quando recebe uma bronca de Tiantônia, que xinga e repreende a menina, que, a partir daí, volta a ficar quieta. Nininha adoece e morre pouco tempo depois. Tiântonia explica, então, a razão para ter xingado a menina naquele dia em que ela fizera chover: ―Nininha tinha falado despropositado desatino, por isso ela ralhara. O que fora: que queria um caixãozinho cor-de-rosa, com enfeites verdes brilhantes.‖ Os pais discutem se deveriam ou não encomendar o caixão como a filha havia solicitado. Como explicar para o pessoal do arraial que quem tinha pedido o caixão assim tinha sido Nininha? No meio de uma discussão sobre isso, seus pais percebem que não seria preciso explicar nada para ninguém, pois Nininha queria daquele jeito (e daquele jeito seria). Mas a mãe percebe que ―não era preciso encomendar, nem explicar, pois havia de sair bem assim, do jeito, cor-de-rosa com verdes funebrilhos, porque era, tinha de ser! – pelo

milagre, o de sua filhinha em glória, Santa Nininha.‖ Nota: O que de fato aconteceu: o arco-íris era o aviso de Deus de que Nininha voltaria ao seio d‘Ele. E isso já vinha sendo anunciado nas entrelinhas desde o início do conto: o dedinho dela quase alcançava o céu, quando se falava de parentes mortos, ela dizia que ia visitá-los, sem mencionar o próprio título do texto, entre outros elementos. Esses aspectos místicos acabam transforma-a em mais uma milagreira, como tantas crianças que povoam o imaginário popular. OS IRMÃOS DAGOBÉ Análise da obra Os irmãos Dagobé, conto de Primeiras estórias, obra de Guimarães Rosa, tem narração em primeira pessoa (alguém do arraial, presente no velório e no enterro, que registra suas impressões sobre os irmãos Dagobé e possíveis acontecimentos futuros). Não há marcação de tempo e espaço (velório e o enterro) e traz a violência como tema. Seus personagens são: Damastor (morto), Derval (caçula), Dismundo, Doricão e Liojorge. Em sua linguagem o autor usa aliterações (repetição da letra D nos nomes dos irmãos Dagobé); frases incompletas: ―Aquilo era quando as onças.‖ e aglutinação de palavras: ―perguntidade‖. Este conto confirma a idéia popular de que Deus escreve certo por linhas tortas. Damastor Dagobé, bandido extremamente feroz, foi surpreendentemente assassinado por um sujeito aparentemente fraco, Liojorge, pressionado por legítima defesa. É em meio ao velório que o narrador se coloca, para captar mais vivamente a reação das pessoas presentes, todos com inúmeras conjecturas sobre como será a vingança dos irmãos Dagobé. O mais surpreendente é que chega o recado de Liojorge, querendo deixar claro que havia matado com respeito e que queria estar na presença dos irmãos, para mostrar sua boa vontade. Se isso já deixou todos sobressaltados,

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muito mais quando se fica sabendo que o bom moço queria ajudar a carregar o caixão de Damastor. Parecia que o medo havia feito do rapaz um maluco. Surpreendentemente os irmãos Dagobé concordam, mas impõem uma condição: só depois do caixão ser fechado. Os presentes imaginam algum plano malévolo e traiçoeiro dos bandidos. No entanto, a narrativa apresenta frustração após frustração. Liojorge chega e não é assassinado. Conduz o caixão. No caminho, tropeça e quase derruba o féretro. Para os espectadores é um prenúncio de desgraça. E comentam que os irmãos Dagobé estão na realidade realizando o pior dos planos: usar o homem como carregador e no cemitério dar cabo dele. No entanto, este é outro conto a lidar com anticlímax. Enterrado Damastor, seus irmãos agradecem a atenção dos acompanhantes, mostram compreensão em relação a Liojorge e reconhecem que o falecido, em vida, era mesmo muito ruim. Comunicam que estão de mudança para a cidade, o que indica evolução. O conto é uma alusão irônica: ―Viviam em estreita desunião…‖ É a imaginação popular versus o real: Liojorge vai sofrer a vingança dos três irmãos mais novos. Todos acreditam nisso. Vitória da justiça: matara em legítima defesa. Damastor que era mau e perverso. Merecia morrer. ―Damastor, o grande pior.‖ Alegria dos três irmãos remanescentes, einfim livres do grande pior. Enredo O conto inicia com durante o velório de ―Damastor Dagobé, o mais velho dos quatro irmãos, absolutamente facínoras. (…) Todos preferiam ficar perto do defunto, todos temiam mais ou menos os três vivos. Demos, os Dagobés, gente que não prestava.‖ Damastor era tido como o ―grande pior, o cabeça, ferrabrás e mestre, que botara na obrigação da ruim fama os mais moços – ‗os meninos‘, segundo seu rude dizer.‖ Os outros irmãos eram Derval, Doricão e Dismundo. Damastor fora morto em legítima defesa por Liojorge, homem pacato e honesto, que fora ameaçado pelo Dagobé. Após o fato, tudo

indicava, e todos acreditavam, que os irmãos vivos buscariam imediatamente a vingança. Entretanto, eles iniciam os preparativos para o enterro do irmão. O narrador acentua este sentimento: ―Sangue por sangue; mas, por uma noite, umas horas, enquanto honravam o falecido, podiam suspender as armas, no falso fiar. Depois do cemitério, sim, pegavam o Liojorge, com ele terminavam.‖ Durante o velório, os irmãos confabulavam em voz baixa. Neste momento chega a informação de que Liojorge gostaria de ir até o velório para provar que seu ato não fora desleal. O narrador expõe a surpresa da notícia: ―Viesse: pular da frigideira para as brasas. E em fato até de arrepios – o quanto se sabia – que, presente o matador, torna a botar sangue o matado.‖ Os irmãos não se opõem a esta idéia. Após o velório, Liojorge chega e se propõe a carregar o caixão. O narrador nos estimula a idéia de que os irmãos acabariam por se vingar: ―E, agora, já se sabia: baixado o caixão na cova, à queima-bucha o matavam.‖ Damastor é enterrado. Entretanto, Doricão fala a Liojorge: ―Moço, o senhor vá, se recolha. Sucede que o meu saudoso irmão é que era um diabo de danado...‖ Ele ainda agradece a presença de todos antes de dizer o que a família faria: ―A gente, vamos‘embora, morar em cidade grande...‖ PIRLIMPSIQUICE Conto narrado em primeira pessoa, apresentando um narrador protagonista. O período a que o autor nos remete é o tempo prazeroso da infância, repleto de aventuras e de experiências inéditas, como a da arte de representar. O nome desse conto parece uma união de duas idéias, Pirlimpimpim, o pó de faz de conta do Sítio do Picapau Amarelo e psique, que tanto pode significar ―alma‖, ―espírito‖, ―mente‖. É a história de onze ou doze crianças que estão ensaiando uma peça, Os Filhos do Dr. Famoso, para ser encenada diante da escola. É notável como crianças, símbolo da liberdade, agem no rigor dos ensaios constantes. Chama a atenção também como os adultos têm uma linguagem tão empolada,

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próxima do vazio. O pior é que um grupo de crianças, liderado pelo Gamboa, ficou de fora de todo esse processo e começa a espalhar que tem conhecimento da obra que os meninos ensaiam tão em segredo. Então, como disfarce, os atores criam uma terceira história. Tudo perfeitamente programado, mas em cima da hora o Ataualpa, quem iria abrir a peça, tem um parente que está para morrer e, por isso, precisa ir embora. Quem assume o seu lugar é o narrador, que sabia todas as falas de cor, pois era o ponto. No entanto, na estréia é que perceberam que a peça devia ser aberta por um poema conhecido só pelo Ataualpa. O narrador fica parado, sem saber o que fazer. A gafe é paga com vaias monstruosas. A situação é salva por Zé Boné, garoto limítrofe que teve sua participação limitada a um papel sem fala. Inesperadamente começa a encenar a própria peça do Gamboa, no que é seguido pelos demais garotos, como se estivessem num transe, que se transfere para a platéia, paralisando-a. Esse transe coletivo pode ser entendido como o poder da Arte. Em Pirlimpsiquice, a invencionice infantil é lembrada com saudades pelo narrador levantando um tênue limite entre o real e a imaginação. No conto, o narrador-personagem, já adulto, narra um episódio transcorrido em sua infância, quando estudava interno em um colégio: Um grupo de alunos é convocado para encenar uma peça teatral [Os filhos do doutor Famoso]. Entusiasmados, os meninos ouvem o resumo do drama, lido pelo Dr. Perdigão ―lente de corografia e história-pátria‖. O narrador é escalado para ser apenas o ponto. Passam a ensaiar todo o final de tarde, depois do jantar, enquanto os outros cumprem horas obrigatórias de estudo e prometem badernas e vaias durante a apresentação e sovas depois. No dia da apresentação, Ataualpa, o menino que representaria o papel mais importante – o Dr. Famoso – tem de viajar às pressas, pois seu pai está à morte. O ponto, por conhecer todas as falas das personagens, é escalado para substituí-lo.

Quando já está frente ao público, o menino se dá conta de que deveria iniciar com a declamação de um poema que falava na ―Virgem Padroeira e na Pátria!‖, mas este era conhecido somente por Ataualpa. Diante da hesitação e do silêncio do menino em cena, o público ri. Este, por fim, diz trêmulo: ―-Viva a Virgem e viva a Pátria‖. Porém a confusão não para aí. Mandam abaixar as cortinas do palco, mas elas não descem. Entram as crianças para a próxima cena, mas ―apalermados‖ não proferem palavra. Como conseqüência: ―- A vaia, que ninguém imaginava. O que era um mar – patuléia, todos em mios, zurros, urros, assobios: pateada. A gente, nada‖. No meio da confusão, Zé Boné, um que ―regulava de papalvo [indivíduo simplório, pateta] começa a representar; só que não a história prevista, mas uma outra, inventada por um colega – Gamboa – com quem os atores tinham rixas. A partir daí, os meninos passam a improvisar e conquistam o respeito da platéia que os aplaude. A história vai se tornando tão envolvente que eles não percebem que têm de concluí-la: ―Entendi. Cada um de nós se esquecera de seu mesmo, e estávamos transvivendo, sobrecrentes disto: que era o verdadeiro viver? E era bom demais, bonito – milmaravilhoso – a gente voava, num amor, nas palavras: no que se ouvia dos outros e no nosso próprio falar. E como terminar?‖ O narrador é o único a perceber que a ilusão havia tomado o lugar da realidade e que isso teria de ter um fim. Então resolve dar uma cambalhota, para cair, de propósito. Perde os sentido e a peça é interrompida. FATALIDADE Conto narrado em primeira pessoa (testemunha), cujos personagens são: Meu Amigo, delegado filósofo, que já foi de tudo na vida, e Zé Centeralfe, caboclo perseguido por um valentão que lhe quer roubar a esposa. Os recursos de linguagem utilizados são barbarismos e elipses (―adonde‖ barbarismo popular).

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O conto contrapõe o poder da autoridade ao poder do homem comum, submetido às leis e tematiza, em última instância, a violência arbitrária existente no sertão. Esta, por sua vez, justifica o título, pois assume um caráter de fatalidade. Portanto, a fatalidade (a morte) é o tema do conto, sem associação com o cômico, mas com o místico. Trata-se da história de Zé Centeralfe, que vive acochado, pois sua esposa desonrosamente está sendo cortejada por um facínora, Herculinão. O casal, para evitar problemas, mudou-se do Pai-do-Padre para Amparo. Mas o bandido segue-os. Mudam-se então para a cidade, onde deveria haver lei, ordem, segurança, mas continuam sendo seguidos. É por isso que o pobre homem vai pedir ajuda ao delegado, chamado pelo narrador de Meu Amigo, figura que cita intensamente os filósofos gregos. A intenção é obter o apoio da justiça dos homens. No entanto, Zé Centeralfe é induzido a outro tipo de moral. Aparentemente, é a justiça pelas próprias mãos, pois o delegado convence Centeralfe, apenas com o olhar, a pegar as armas. Assim que saem, encontram Herculinão, que é assassinado com um tiro no peito (coração) e outro na cabeça (mente). Em Fatalidade, aprende-se a viver, não debaixo da lei do determinismo de um destino alheio e estranho aos reclamos do coração, mas sob a graça da liberdade de transformar a inexorabilidade de uma sentença fatal na maleabilidade de uma disposição vital capaz de não desperdiçar a ocasião oportuna de reespiritar-se. SUBSTÂNCIA Este conto, Substância, tem como personagem principal Sionésio, homem simples, trabalhador e calado. O vocabulário reduzido limita-lhe a expressão, não a sensibilidade. O narrador, em terceira pessoa, onisciente, fala por ele, transformando seus sentimentos em linguagem. O título desse texto, um verdadeiro conto de fadas, estaria relacionado a três fatos. Substância pode significar ―o essencial‖. Seria um conselho para que nos atenhamos apenas ao que é importante. É a lição aprendida por

Sionésio. A palavra pode também estar ligada à idéia de alguns textos místicos medievais, que diziam que os anjos eram todos iguais – assim como o moço muito branco, de Um Moço Muito Branco, que é indefinido por ser feito de uma substância divina. Pode ainda estar ligada ao polvilho, material extremamente branco que Maria Exita, empregada de Sionésio, manipula. Este conto apresenta uma bela metáfora sobre a pureza de sentimento decorrente da retidão e do sofrimento. Há trabalho incessante, e o cotidiano de uma menina dedicada a bater o polvilho, num movimento incansável, é descrito nos planos objetivo e subjetivo. No enredo, vemos a descrição do trabalho, da lida e da luta pela sobrevivência, e temos um valioso retrato dos costumes de uma comunidade que tem como uma das formas de subsistência o fabrico e o depuramento do polvilho, bem como as condições precárias e primitivas em que este trabalho é realizado. Em Substância os contrários aparecem harmonizados ao final do conto. Os personagens transcenderam assim o nível imediato de uma realidade, superando a cisão dos opostos. Para falar deste outro estágio em que eles se encontram Guimarães Rosa lança mão de estruturas lingüísticas carregadas de paradoxos: ―acontecia o não-fato‖, ―em-si-juntos‖, ―avançavam, parados‖. Deve-se também observar no conto a notação fonética dos nomes: Maria Exita (Mariasita), Sionésio (senhor Onésio) e Nhatiaga (senhora Tiaga). Essa é uma das marcas de Guimarães Rosa. Enredo É a história de amor entre Maria Exita e Sionésio. Maria Exita havia chegado à fazenda de Sionésio, trazida por ele por pena: a mãe havia abandonado a casa, seus dois irmãos eram criminosos e seu pai, leproso, também havia partido. Ela era ainda menina, feia e desengonçada. Na fazenda, aceitaram-na porque a velha Nhatiaga, peneirinha de polvilho, compadecera-se dela. À Maria Exita deram porém ingrato serviço, de todos o pior: o de quebrar, à mão, o polvilho, nas lajes.

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A fazenda mantinha-se do plantio da mandioca e da produção de farinha e polvilho. Sionésio herdou-a. Prazer era ver, aberto, sob o fim do sol, o mandiocal de verdes mãos. Amava o que era seu – o que seus fortes olhos aprisionavam. Não havia reparado nela enquanto, quieta e imperturbável, crescia, transformando-se numa linda moça – ela, flor. Sionésio vai-se apaixonando por Maria Exita. Todo esse tempo. Sua beleza, donde vinha? Sua própria, tão firme pessoa? A imensidão do olhar – doçuras. Se um sorriso, artes como de um descer de anjos. Sionésio nem entendia. Somente era bom, a saber feliz, apesar dos ásperos. Surpreendentemente, tornara-se aos seus olhos, deslumbrante, dona de uma beleza radiante digna das musas de Petrarca e Camões. Essa luminosidade é reforçada pela matéria com a qual lida, o polvilho, e para a qual é a única que está acostumada, mesmo sob o forte sol do sertão, que torna essa substância dotada de um brilho cegante. Essa familiaridade a torna divina. No entanto, Sionésio tem medo. Ele preocupa-se com o fato de que alguém pudesse afastar sua quente presença para longe dele. A mãe de Maria Exita era leviana, tendo abandonado o lar. O pai estava num lazareto (lugar para leprosos). Seus irmãos eram bandidos, um preso e outro foragido. O fazendeiro tem, portanto, teme que em sua amada exista a marca de algumas dessas malignidades. Sionésio sente que a paixão é maior que o preconceito, vence todos esses receios e pede-a em casamento. Atingir a realização, a felicidade plena exige a coragem de suplantar obstáculos. Caminha para a eternidade, para a luz, para o ―não tempo‖ e o ―não fato‖. A PARTIDA DO AUDAZ NAVEGANTE Conto narrado em terceira pessoa, onde há duas histórias justapostas: a que nos conta o narrador, envolvendo as crianças; e a que Brejeirinha inventa sobre o ―Audaz Navegante‖. O conto desenvolve, portanto,

duas narrativas absolutamente simétricas e correspondentes, a do narrador onisciente e a de Brejeirinha sobre as mesmas personagens e ações, Zito, a namorada, a separação e o reencontro. A intenção é privilegiar a linguagem e o universo infantil, seus jogos e brincadeiras. Guimarães Rosa olha o mundo neste conto através de Brejeirinha, personagem central. Neste conto os barbarismos são explorados poeticamente. Logo no início do conto, quando o narrador procura situar o leitor dentro do ―espaço‖, é apresentada a personagem ―Mamãe‖. Pelo tratamento, pode-se compreender que o narrador se inclui como personagem da cena, sem manter um distanciamento de quem narra fatos experimentados por outros. Zito é o elemento ―de fora‖; portanto aquele que rompe a harmonia. Metáfora do desejo, Zito é símbolo do pai ausente e desdobra-se na figura do ―audaz navegante‖. Pode-se, então, compreender que a narrativa de Brejeirinha como uma construção que, a um só tempo, denuncia a falta (do pai) e tenta, pela linguagem, pela fantasia, reverter a perda em conquista, uma situação na qual a passividade (sofrer a perda) transforma-se em poder: impor a saída (do navegante). Enredo Os acontecimentos giram em torno de quatro crianças: três meninas – Pele, Ciganinha e Brejeirinha, irmãs – e um menino – Zito. É de manhã e a mãe das meninas está às voltas com as lides da casa. Nurka, a cachorrinha, dorme. As crianças ainda estão em casa, porque, lá fora, chove. O narrador nos informa a respeito das crianças: Pele, meiga e prestativa; Ciganinha, linda, o retrato da mãe; Zito, imaginativo, ―sonhava ir-se embora, teatral‖; Brejeirinha, a menor e mais arteira. Brejeirinha, como se pressentisse os sonhos de Zito, diz -Zito, você podia ser o pirata, inglório marujo, num navio intacto, para longe, longe no mar, navegante que o nunca-mais, de

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todos? Empolgada, a menina começa a contar sua história: narra a partida de um ―Audaz Navegante‖ que deixa a todos que ama para descobrir os lugares, que nós não vamos nunca descobrir. A história termina com todos chorando por causa da partida do ―Aldaz‖. A história é interrompida por Pele: -Você é uma analfabetinha ―aldaz‖, referindo a pronúncia inadequada da menina. Ciganinha não gostou da história: Por que você inventou essa história de tolice, boba, boba? Brejeirinha responde: – Porque depois pode ficar bonito, ué! Mas o tempo melhorou, a mãe ia visitar uma doente e as crianças pediram para ir riacho. Mamãe deixava, elas não eram mais meninas de agarra-a-saia. Zito devia acompanhá-las, pois já era um ‗meiozinho‘ – homem, leal de responsabilidades. As crianças dirigem-se alegres para o riacho: Zito dando o braço a Ciganinha, por vezes, muito, as mãos se encontravam. Pele se crescia, elegante. E ágil ia Brejeirinha com seu casaquinho coleóptero. Ela andava pés-para-dentro, feito periquitinho, impávido. Já no riacho e em meio a brincadeiras, Brejeirinha pede a atenção de Zito e Ciganinha. Queria continuar sua história. Dessa vez, o ―Aldaz‖ é pego de surpresa pelo mar, que leva seu navio.

Mas a menina perde o fio da história, e Pele, impaciente, aponta um estrume seco de vaca, dizendo eha o seu aldaz navegante, ali. É aquele… Em cima do estrume ressequido – chamado por Brejeirinha de ―bovino‖, crescera um cogumelo. A menina enfeita o ―bovino‖ com florezinhas. Todos riem e batem palmas: -Pronto. É o Aldaz Navegante… Depois disso, Brejeirinha ainda continua a história. Conta que o ―Aldaz‖ sozinho e temeroso deu um pulo onipotente…Agarrou, de longe a moça, em seus braços…Então, pronto [...] Agora, acabou-se, mesmo: eu escrevi – ―Fim‖. A chuva recomeçava e cercava o ―bovino‖. O ―Aldaz‖ logo partiria, levado pelas águas. As crianças decidem mandar recados por ele: -Zito põe um moeda. Ciganinha, um grampo. Pele, um chicle. Brejeirinha – um cuspinho, é o seu estilo. E a estória? Haverá, ainda tempo para recontar a verdadeira estória? Brejeirinha ainda inventa outro final. Dessa vez, o Aldaz e sua amada partem juntos, desde o início. A chuva aumentava e Brejeirinha, assustada, tranqüiliza-se quando vê a mãe, ―fada, inesperada, surgia, ali de contraflor‖. Juntos observam a partida do ―bovino‖: Olha! Lá se vai o ―Aldaz Navegante‖. Fonte: Portal de Estudos Passeiweb

Antonio Brás Constante Uma Feira de Doces

para Alimentar o Pensamento

Todos os anos acontecem em diversas partes do mundo as chamadas feiras do livro. Essas feiras mais parecem feiras de quitutes de vários sabores, que atendem a todos os gostos dos leitores. São iguarias que alimentam o espírito e a mente, sem engordar.

As obras podem ser devoradas a qualquer momento e em qualquer lugar, em dias frios ou noites quentes e vice-versa. Os livros já vêm embalados em belas capas. Para consumi-los, basta adquirir um exemplar e sair provando seu recheio literário, sem se preocupar em sujar os dedos. Suas deliciosas páginas podem passar de mil folhas, fazendo alguns se perguntarem:

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―será que dou conta de ler tudo isso?‖. São dúvidas que desaparecem, quando a magia da leitura acontece. Cada livro é um doce diferente que guarda um gostinho cheio de novidades a espera de olhares ávidos pelos mistérios e encantos de suas páginas. Podemos degustar sem pressa, pois o livro não derrete, ao contrário, incendeia nossa imaginação à medida que vamos experimentando o sabor e o saber de suas histórias. A leitura transpassa os nossos olhos, invadindo nossas mentes e alterando nossas percepções sobre o mundo e sobre nós mesmos. Dispõe de características que lhe tornam um tipo de alimento não perecível, desde que se tomem alguns cuidados no seu manuseio e guarda. Cada volume possui um tempero diferente, proveniente de todos os recantos deste gigantesco globo azul. O bom de um livro é que um único exemplar pode saciar a fome literária de várias pessoas, sendo uma fonte de alimento praticamente inesgotável.

As feiras do livro conseguem demonstrar que existem opções para a televisão e o videogame, bastando para isso que as pessoas tirem um pouquinho de seu tempo para sorver o néctar extasiante da leitura, exercitando e excitando suas mentes a cada parágrafo, pois o livro é uma academia de bolso. Tudo acontece na velocidade de um olhar. Ao tocar em um volume com seus olhos, a pessoa imediatamente deixa de estar onde estava, passando a viver em outro mundo, em outra dimensão, pois a feira do livro é um portal de passagem para múltiplos universos. Lá você alcança o livro e o livro alcança sua alma. Mas do que um amigo imaginário trata-se de um

amigo que invade nosso imaginário, com quem passamos a nos relacionar e conviver. Por isso é importante que seja incutido desde cedo nas crianças o gosto pela leitura, para que depois elas não passem a encarar o livro como quem encara um pedaço de brócolis ou uma salada de beterraba e diga: ―eu não gosto disso, eu não vou ler isso‖ (a propósito, eu gosto de brócolis e adoro beterraba). A feira do livro é um lugar onde muitas vezes autores e leitores se encontram, ligados por um mesmo elo que é a obra literária ali exposta, fazendo com que suas vidas passem a ficar eternamente ligadas pelos livros que compartilham. Estas feiras são ótimos lugares para alguém se perder e ao mesmo tempo se encontrar, se perdendo em mil histórias e se encontrando no hábito saudável da leitura.

Espero que este texto tenha conseguido abrir seu apetite literário, pois quero encerrar deixando um convite para os leitores prestigiarem as feiras que vão surgindo como jardins floridos de livros pelas cidades e escolas, entre elas a minha jovem e bela cidade de Canoas no Rio Grande do Sul, que está lançando sua 25º feira do livro de 20 de junho a 04 de julho de 2009, a cidade também comemora os 70 anos de sua história, com inúmeras atrações que deixarão muitas recordações. Mas as feiras não param por aí, depois haverá eventos do livro em Porto Alegre, Jaraguá do Sul (julho), em Arroio dos Ratos (outubro) entre outras tantas cidades. Participe de quantas feiras você puder, afinal a sede de leitura não enfastia, e ainda é 100% sadia.

Fonte: Texto enviado pelo autor.

Lya Luft Canção na plenitude

Não tenho mais os olhos de menina nem corpo adolescente, e a pele translúcida há muito se manchou. Há rugas onde havia sedas, sou uma estrutura agrandada pelos anos e o peso dos fardos

bons ou ruins. (Carreguei muitos com gosto e alguns com rebeldia.) O que te posso dar é mais que tudo

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o que perdi: dou-te os meus ganhos. A maturidade que consegue rir quando em outros tempos choraria, busca te agradar quando antigamente quereria apenas ser amada. Posso dar-te muito mais do que beleza e juventude agora: esses dourados anos me ensinaram a amar melhor, com mais paciência e não menos ardor, a entender-te

se precisas, a aguardar-te quando vais, a dar-te regaço de amante e colo de amiga, e sobretudo força — que vem do aprendizado. Isso posso te dar: um mar antigo e confiável cujas marés — mesmo se fogem — retornam, cujas correntes ocultas não levam destroços mas o sonho interminável das sereias. Fonte: LUFT, Lya. Secreta Mirada. SP: Editora Mandarim, 1997.

Lafcádio Hearn A Promessa

Não temo a morte – disse a esposa agonizante. – Só tenho uma preocupação neste momento: Quisera saber quem ocupará meu lugar nesta casa. Minha querida – replicou o marido aflito – ninguém ocupará jamais teu lugar na minha casa. Nunca, nunca tornarei a casar-me. Ao dizer isto, dizia-o com o coração, porque amava a mulher que estava a ponto de perder. - Jura pela fé do samurai? – perguntou ela, com um sorriso apagado. - Pela fé do samurai – respondeu ele, acariciando-lhe o rosto consumido e pálido. - Então, amado meu, – continuou ela – sepultar-me-ás perto daquelas ameixeiras que plantamos a um canto do jardim. Havia muito que queria pedir-te isso, mas pensei que, se voltasses a casar-te, não gostarias de ter meu sepulcro tão perto. Agora que prometeste que nenhuma mulher ocupará o meu lugar, não é mais necessário que eu titubeie em formular meu desejo… tenho tanta vontade de ser sepultada no meu jardim! Imagino que ali ainda ouvirei, às vezes, tua voz e que verei as flores na primavera. - Far-se-á como desejas, – respondeu o marido – mas não fales agora disso; não é tão grave

assim o teu mal para que tenhamos perdido a esperança. - Eu a perdi; – replicou ela – morrerei amanhã… Mas, enterrar-me-ás no jardim? - Sim; – disse ele – à sombra das ameixeiras que plantamos, e terás um belo sepulcro. - Dar-me-ás uma campainha? - Uma campainha? - Sim, quero que, no ataúde, ponhas uma campainha, como essas que levam os peregrinos budistas. Prometes? - Terás a campainha… e tudo quanto mais desejares. - Nada mais desejo… amado meu, sempre foste muito bom para mim. Agora posso morrer feliz. Fechou os olhos e expirou com a mesma facilidade com que as crianças cansadas adormecem. Mesmo morta, continuava bela, e havia um sorriso em seu rosto. Enterraram-na no jardim, à sombra das árvores que amara, e colocaram uma campainha dentro do seu esquife. Sobre a sepultura erigiu-se um formoso monumento, ornado com o escudo da família e ostentando o seguinte Kaymio: Grande Irmã Maior,

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Sombra Luminosa da Câmara da Flor de Ameixeira, moras na Casa do Grande Mar da Compaixão. Todavia antes que transcorresse um ano da morte de sua esposa, os parentes e amigos do samurai começaram a instá-lo que contraísse novo matrimônio. - Ainda és jovem, – diziam-lhe – és filho único e não tens descendentes. Um samurai tem o dever de tomar esposa. Se morres sem filhos, quem fará as oferendas? Quem recordará os antepassados? Com muitos argumentos dessa índole, persuadiram-no, por fim, a casar-se novamente. A nova esposa tinha apenas dezessete anos; e o samurai a amou ternamente, apesar do mudo protesto da tumba no jardim. II Nos seis primeiros dias que se seguiram ao casamento, nada turvou a felicidade da jovem esposa. No sétimo, o samurai recebeu ordem de cumprir certos deveres, que requeriam sua presença, à noite, no castelo. Na primeira noite em que se viu obrigado a deixar só a esposa, ela sentiu-se amedrontada, sem poder explicar por quê. Deitou-se, mas não pôde dormir. Havia uma estranha opressão no ambiente, um peso indefinível na atmosfera, como o que precede uma tormenta. À hora do Boi, ouviu ela, no silêncio noturno, uma campainha… uma campainha de peregrino budista, e perguntou quem seria o peregrino que atravessava as possessões do samurai a tal hora. Depois de uma pausa, a campainha soou de novo, mas muito mais próxima; mas por que se aproximava pelo fundo, onde não havia caminho algum?… De repente os cachorros começaram a gemer e a latir e modo estranho e horrível e um temor, como o que se experimenta em certos pesadelos, apossou-se da jovem… Era indubitável que a campainha soava no jardim… Tratou de levantar-se para chamar um criado, mas compreendeu que não podia mover-se nem falar… E o som da campainha se ouvia cada vez mais próximo, mais próximo… E como ladravam os cachorros!… De repente, com a ligeireza com que desliza uma

sombra, entrou no aposento uma mulher – ainda que todas as portas estivessem fechadas e todas as cortinas descidas – uma mulher envolta em um sudário, trazendo uma campainha de peregrino. Não tinha olhos… porque, desde havia muito, estava morta; seus cabelos soltos caíam-lhe em cascata sobre o rosto e ela olhava sem olhos através do emaranhado dos cabelos e falava sem língua: - Nesta casa, não; nesta casa não ficarás! Aqui ainda sou eu a dona. Vai-te! A ninguém dirás o motivo de tua partida. Se o disseres a ele, far-te-ei em pedaços. Assim dizendo, o fantasma desapareceu. A jovem esposa desmaiou de terror e, até ao amanhecer, permaneceu inconsciente. À alegre luz do dia, duvidou da realidade do que havia visto e ouvido. Ainda que a recordação da advertência pesasse tanto em seu coração que não se atreveu a falar a seu esposo, nem a pessoa alguma sobre a visão da noite, esteve a ponto de convencer-se de que havia sido vítima de um pesadelo que a fizera doente. Na noite seguinte, no entanto, suas dúvidas se dissiparam. Uma vez mais, à Hora do Boi, os cachorros começaram a uivar e gemer; uma vez mais ouviu-se o som da campainha aproximando-se lentamente pelo jardim; uma vez mais, a jovem tentou, em vão, levantar-se e chamar por socorro; uma vez mais a morta entrou no aposento e disse, com voz sibilante: - Vai-te. A ninguém dirás por que deves ir-te. Sim, se o disseres a ele, mesmo que num sussurro, far-te-ei em pedaços. Desta vez a aparição aproximou-se do leito e inclinou-se sobre a moça, resmungando e fazendo caretas… Na manhã seguinte, quando o samurai regressou do castelo, sua jovem esposa se prostrou diante dele, implorante: - Suplico-te – disse – que perdoes minha ingratidão e minha grande descortesia ao falar-te deste modo, mas quero voltar para casa; quero ir-me imediatamente.

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- Não és feliz aqui? – perguntou ele sinceramente surpreso. – Alguém se atreveu a ser pouco cortês contigo durante minha ausência? - Não se trata disso – respondeu ela, soluçando. – Todos têm sido bons comigo… Mas não posso continuar a ser tua esposa. Devo ir-me. - Minha querida – exclamou ele – é tremendamente doloroso saber que encontraste nesta casa motivo para ser infeliz. Mas não posso sequer imaginar por que queres ir-te… a menos que alguém tenha sido muito descortês contigo… Naturalmente, não queres dizer que desejas o divórcio? Ela respondeu temerosa, chorando: - Se não me concedes o divórcio, morrerei. O samurai permaneceu um instante em silêncio, tratando em vão de adivinhar o motivo daquela assombrosa declaração. Por fim, sem revelar qualquer emoção, respondeu: - Devolver-te à tua casa, sem que hajas cometido falta alguma, seria um ato vergonhoso. Se me revelares o motivo do teu desejo – qualquer motivo que me permita explicar as coisas honradamente – dar-te-ei o divórcio. Mas se não me ofereceres motivo, um motivo razoável – não to darei, porque a honra de nossa casa deve manter-se invulnerável a qualquer censura. Então, ela se sentiu obrigada a falar, e lhe contou tudo, acrescentando no auge do terror:

- Agora que contei tudo, ela me matará! Me matará!

Embora homem valente e pouco propenso a acreditar em fantasmas, o samurai sentiu-se, no primeiro instante, consideravelmente alarmado. Porém, logo veio-lhe ao espírito uma explicação fácil e natural para o caso.

- Minha querida – disse – estás muito nervosa e temo que alguém tenha estado a contar-te histórias tolas. Não posso conceder-te o divórcio apenas porque tiveste um pesadelo. Mas lamento muito que tenhas sofrido tanto durante a minha ausência. Esta noite também deverei ir ao castelo, mas não te deixarei só.

Mandarei dois de meus soldados montarem guarda aos teus aposentos, assim poderás dormir em paz. São bons homens, e saberão cuidar de ti. E falou-lhe com tanta segurança, com tanto carinho, que ela quase sentiu vergonha de seus temores e resolveu continuar na casa. III Os dois soldados encarregados eram homens robustos, valentes e simples, experimentados guardiães de mulheres e crianças. Contaram à jovem histórias agradáveis para mantê-la alegre. Ela conversou com eles durante muito tempo, festejando-lhes as tiradas isentas de malícia, e quase esqueceu seus temores. Quando por fim se recolheu para dormir, postaram-se eles a um canto do aposento, atrás de um biombo, e começaram a jogar uma partida de go(1), falando em voz baixa, para não despertar a jovem, que dormia como uma criança. Porém, uma vez mais, à Hora do Boi, despertou ela com um gemido de terror… A campainha! Já estava próxima e se aproximava cada vez mais. Ergueu-se; deu um grito, mas no quarto não se ouvia nada… só um silêncio de morte, um silêncio que crescia, um silêncio que se avolumava. Correu para os soldados; estavam sentados diante do tabuleiro, imóveis, olhando-se com os olhos fixos. Gritou-lhes, sacudiu-os: estavam como que gelados…

Depois, contaram os guardas que haviam ouvido a campainha e o grito da jovem, e que havia mesmo sentido quando ela os sacudira para despertá-los; todavia, não haviam podido mover-se nem falar. A partir desse momento, deixaram de ouvir e de ver: um sono negro havia-se apoderado deles.

Ao amanhecer, quando na câmara nupcial, o samurai viu, à difusa luz de uma candeia, o cadáver decapitado de sua jovem esposa, que jazia num charco de sangue. Os dois guerreiros dormiam ainda, acocorados, diante da partida inconclusa. Ao ouvirem o grito de seu amo, acordaram num átimo e ficaram a olhar estupidificados aqueles horror que jazia a seus pés.

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A cabeça desaparecera e a espantosa ferida mostrava que não havia sido cortada, e sim arrancada. Um caminho de sangue ia desde a câmara até um canto da galeria exterior, onde as cortinas pareciam haver sido rasgadas. Os três homens seguiram o rastro; embrenharam-se pelo jardim, atravessaram grupos de ciprestes e caminhos aquosos, contornaram um tanque bordejado de lírios, passaram sob densas ramagens de cedros e bambus. E de repente, em um recanto, repararam com uma figura de pesadelo, que guinchava como um morcego: a figura de uma mulher, sepultada havia muito, de pé, diante de sua tumba; numa das mãos trazia uma campainha e, na outra, a cabeça ensangüentada. Por um instante, permaneceram os três aturdidos. Depois, um dos soldados desembainhou a espada, pronunciando uma oração budista, e assentou um golpe na aparição, que se desfez instantaneamente num desarticulado montão de panos de sudário, cabelos e ossos, ao mesmo tempo em que, dessa ruína, se desprendia a campainha, rodando e tilintando. Mas a descarnada mão esquerda, mesmo depois de cortada, continuava a se retorcer, os dedos segurando ainda a cabeça ensangüentada, rasgando-a, lacerando-a como as pinças de um caranguejo amarelo, tenazmente cravado a uma fruta caída… (Essa é uma história perversa – disse eu ao amigo que ma havia contado. – A vingança da morta, no caso de cumprir-se, deveria recair sobre o homem.

- Isso é o que crêem os homens – respondeu-me. – Mas não é o que sente uma mulher. E tinha razão.) ================ Nota: (1) Go, Weiqi ou Baduk se trata de um jogo estratégico de soma zero e de informação perfeita para tabuleiro , em que duas pessoas posicionam pedras de cores opostas. Sua origem vem da antiga China, entre 2000 aC e 200 aC. O jogo é popular no leste da Ásia. O desenvolvimento do jogo pela internet aumentou muito a sua popularidade no resto do mundo. É reconhecido como um jogo que envolve grande capacidade estratégica, tendo grande número de praticantes na Coréia, na China, no Japão, nos EUA e na Europa. Em outros lugares, como Brasil, é praticado basicamente pelos da diáspora asiática e curiosos.

Lafcádio Hearn “Koizumi Yakumo”

(27 Junho 1850 – 26 Setembro 1904) Patrick Lafcádio Hearn (27 de junho de 1850 – 26 de setembro de 1904), também conhecido como Koizumi Yakumo, nome que adotou após adquirir cidadania japonesa, foi um jornalista e escritor conhecido por seus livros a respeito do Japão. Ele é especialmente conhecido pelos japoneses devido às suas coleções de contos de fadas, um dos quais foi transformado em filme por Masaki Kobayashi (Kwaidan (1965)). Viveu muito tempo no Japão e conquistou, com sua obra, grande renome internacional. ––––––––––– Hearn nasceu na Grécia, na ilha de Leocádio, uma das ilhas jônicas (Em grego a ilha se chama Lefkas – de onde se origina seu nome). Filho do major cirurgião Charles Hearn, nascido em King‘s County na Irlanda e de Rosa Antonia Kassimati nascida em Leocádio. Seu pai estava servindo na ilha durante a ocupação inglesa das ilhas jônicas. Aos seis anos de idade Lafcádio Hearn mudou-se para a Irlanda. O gosto pelas artes e pela Boemia estava no sangue de Hearn. O irmão de seu pai, Richard, foi um membro renomado do grupo de artistas Barbizon, embora não tenha feito fama como pintor devido à sua falta de energia. O jovem Hearn teve uma educação casual, mas estudou por um curto período (1865) no Ushaw Roman Catholic College em Durham. A fé religiosa na qual ele foi criado, foi logo perdida e, aos 19, ele foi enviado para viver nos Estados Unidos da América, se instalando na cidade de Cincinnati, Ohio. Lá ele desenvolveu uma amizade que durou toda a sua vida com o impressor inglês Henry Watkin. Com a ajuda de Watkin, iniciou uma carreira no baixo escalão do jornalismo. Devido ao seu talento como escritor, subiu rapidamente e se tornou repórter no Cincinnati Daily Enquirer, onde permaneceu de 1872 a 1875. Com liberdade criativa em um dos maiores jornais em circulação na cidade, ele desenvolveu uma reputação pelos sensíveis, sombrios e fascinantes relatos sobre os desfavorecidos de Cincinnati. Ele continuou a se ocupar do jornalismo, leituras e observações da sociedade

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local, enquanto suas idiosincrasias românticas e por vezes mórbidas se desenvolviam. Ainda em Cincinnati, casou-se com Mattie, uma mulher negra, o que na época era uma prática ilegal. Quando o escândalo foi descoberto e tornado público, ele foi demitido do Enquirer e foi trabalhar no jornal rival, o Cincinnati Commercial, mas a poluição da cidade irritava seus olhos sensíveis e ele se mudou para New Orleans, Luisiana em 1877 De 1877 a 1888 permaneceu em New Orleans escrevendo para o Times Democrat. Seus escritos nessa cidade se concentravam na história creole da cidade, sua culinária peculiar, a marginalidade e o Vodu. Seus artigos para publicações como a Harper‘s Weekly e Scribner‘s Magazine ajudaram a moldar a imagem de New Orleans como um colorido reduto da decadência e do hedonismo. Seu livro mais conhecido sobre a Luisiana é Gombo Zhebes (1885). O Times Democrat enviou Hearn para as Índias Ocidentais como correspondente em 1889. Ele passou dois anos nas ilhas e lá produziu Two Years in the French West Indies (Dois Anos nas Índias Ocidentais Francesas) e Youma, The Story of a West-Indian Slave (Youma, a História de um Escravo das Índias Ocidentais), ambos em 1890. Em 1891 foi ao Japão comissionado como correspondente em um jornal, mas o contrato foi logo rompido. Foi no Japão, no entanto, que encontrou seu lar definitivo e sua maior fonte de inspiração. Durante a década de 1890, ele se tornou professor de literatura inglesa na Universidade Imperial de Tóquio e logo se viu totalmente enfeitiçado pelo Japão. Casou-se com uma japonesa, filha de um samurai, se naturalizou japonês sob o nome de Koizumi Yakumo e adotou o budismo. Sua saúde tornou-se frágil nos últimos anos de sua vida, forçando-o a

parar de dar aulas na Universidade. Morreu em 26 de setembro de 1904 vítima de um ataque cardíaco. No fim do século XIX o Japão era ainda desconhecido e exótico para o mundo ocidental. Com a introdução da estética japonesa, particularmente na Exposição Universal de 1900, em Paris, o Ocidente adquiriu um apetite insaciável pelo Japão e Hearn se tornou mundialmente conhecido pela profundidade, originalidade e sinceridade dos seus contos. Em seus últimos anos, alguns críticos, como George Orwell, acusaram Hearn de transferir seu nacionalismo e fazer o Japão parecer mais exótico, mas, como o homem que ofereceu ao Ocidente alguns de seus primeiros lampejos do Japão pré-industrial e do Período Meiji, seu trabalho ainda é valioso até hoje. Livros sobre temas japoneses Glimpses of Unfamiliar Japan (1894) Out of the East: Reveries and Studies in New Japan (1895) Kokoro: Hints and Echoes of Japanese Inner Life (1896) Gleanings in Buddha-Fields: Studies of Hand and Soul in the Far East (1897) Exotics and Retrospectives (1898) Japanese Fairy Tales – Contos de fadas japoneses (1898) e seqüências In Ghostly Japan (1899) Shadowings (1900) A Japanese Miscellany (1901) Kottō: Being Japanese Curios, with Sundry Cobwebs (1902) Kwaidan: Stories and Studies of Strange Things (1903) Japan: An Attempt at Interpretation (1904; publicado logo após sua morte) The Romance of the Milky Way and other studies and stories (1905; publicado postumamente) Fonte: Wikipedia http://victorian.fortunecity.com/postmodern/135/hearn.htm

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Carlos Reverbel 21 Julho 1912 – 27 Junho 1997

Carlos de Macedo Reverbel (Quaraí, 21 de julho de 1912 — Porto Alegre, 27 de junho de 1997) foi um jornalista, cronista e historiador brasileiro. Reverbel nasceu em 1912, em Quaraí. Criou-se numa vida de fazendeiro, em família de largas posses e bastante ilustrada, coincidência que era relativamente comum até certo tempo atrás. Veio a Porto Alegre, para estudar, em 1927, e seguiu estudando no antigo Anchieta até 1933, quando abandonou os estudos formais sem formar-se e sem habilitar-se, portanto, para qualquer curso superior, para desgosto de sua família. Resolveu ingressar no jornalismo, vocação rara em sua geração e classe; para começo de carreira, preferiu trabalhar num jornal de cidade acanhada, a Florianópolis de 1934. Depois disso retornou ao Rio Grande do Sul, onde fez carreira de sucesso no Correio do Povo. Militou na Livraria do Globo, como secretário burocrata e como jornalista, nas duas revistas da época, a popular Revista do Globo e a super-intelectualizada Província de São Pedro. Na altura de 45, intensificou a convivência (que jamais terminaria) com a obra de Simões Lopes Neto. Primeiro, numa extensa reportagem com a viúva, que ainda vivia; depois com a redescoberta dos textos que viriam a compor o livro Casos de Romualdo; tempos adiante, com a biografia que agora se reproduz. Em suas memórias, fez questão de apor título alusivo ao escritor pelotense: aquela ―arca de Blau‖, que é o tesouro das memórias de Reverbel, evocava o personagem-narrador dos Contos gauchescos. Em 47, vendeu quase tudo que tinha para viver por dois anos em Paris, já casado. Na volta, viria a ser um dos mais importantes, senão o mais importante, dos jornalistas culturais de século 20 no estado, ao protagonizar uma seção de literatura e cultura no Correio, a partir de 1954. Não apenas editou, escreveu, resenhou e fez reportagens ali; também inventou pautas, propôs textos para escritores daqui e de fora, promoveu

enquetes, fez andar a fila da vida cultural letrada. Viveu até 1997. Sua presença faz uma falta enorme: para além da figura gentil e acolhedora que era, tratava-se de um daqueles sujeitos que tinha, já de moço, a perspectiva da história e o gosto das reminiscências, motivo por que soube desde cedo aproveitar idéias que os jornalistas nem sempre percebem como importantes. Exemplo: em 1948, se lançou a Santana do Livramento entrevistar uma senhora de 93 anos que tinha conhecido, adolescente, naquela cidade, ninguém menos que José Hernández, o autor do Martin Fierro, clássico escrito em parte ali mesmo, na fronteira brasileiro-uruguaia. Seu faro histórico o fazia igualmente detectar valores no presente. É o caso de uma extensa reportagem que faz, no calor da hora de 48, sobre os jovens gravuristas de Bagé, terra que, segundo o bem humorado mas nunca nihilista Reverbel (o nihilismo é uma das flores fáceis do jornalismo cultural, garantindo sucesso junto aos impressionáveis e aos tolos de todos os tempos mas improdutivo a longo prazo — o prazo mental com que Reverbel e os bons trabalham), seria uma das mais improváveis para a eclosão de movimento artístico de tipo moderno. Na crônica propriamente dita, é um dos bambas da língua portuguesa, sem favor algum. Com estilo agradável na linha de Rubem Braga (ou, no campo da memória, de Pedro Nava), brincando com o tema e consigo mesmo, manejando a alta cultura letrada e com a vivência profunda da cidade — especialmente a cidade de Porto Alegre, que ele retratou em detalhes e minúcias a que os amantes do tema devemos agradecer penhorados —, ele soube comentar o miúdo recente, como a estranha mania do ―chispa‖, nos anos 70 do Parcão, tanto quanto o graúdo das questões profundas, em particular as mudanças na paisagem da cidade, tudo sempre tomado de um ângulo capaz de

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mostrar o ridículo que se esconde na solenidade. Maragato de família, antigetulista nos anos 30, espantado com o sucesso do Tradicionalismo mas capaz de elogiar a importância das pesquisas de Paixão Cortes; apreciador de intelectuais lusófilos como Gilberto Freyre ou Moysés Vellinho, amigo de Erico Verissimo e admirador de Darcy Azambuja; incorformado com o barulho em Porto Alegre e envolvido sempre com a divulgação das leituras antigas da terra, que ele cultivava com requintes de colecionador de livros e o paladar refinado dos grandes leitores — Reverbel é daquelas figuras que engrandeciam o interlocutor, ao vivo, e fazem o bem do leitor, por escrito.

Foi escolhido como o patrono da Feira do Livro de Porto Alegre de 1993. Obra literária Barco de papel (crônicas), 1978; Saudações aftosas (crônicas), 1980; Um capitão da Guarda Nacional (biografia de Simões Lopes Neto), 1981; Diário de Cecília de Assis Brasil, 1984; Pedras Altas – A vida no campo segundo Assis Brasil, 1984; Maragatos e Pica-paus, 1985; O gaúcho, 1986; Arca de Blau (memórias), 1993. Fontes: Luís Augusto Fischer. In Cafezinho na Net Wikipedia

Lya Luft A Asa Esquerda do Anjo

A escritora Lia Luft escreveu o romance A Asa Esquerda do Anjo nos anos 70, baseada no cotidiano dos descendentes de alemães de Santa Cruz do Sul. Segundo romance, Lya Luft, mostra que a vida patética da personagem Gisela se desenvolve entre frustrações que se acumulam a ponto de a encaminharem para a autodestruição. O orgulho, a hipocrisia, o ressentimento são componentes fatais do universo familiar e social em que dia a dia se

constrói o sofrimento de Gisela. Sem reticências e com destemor, Lya Luft desce às dobras mais recônditas da opressão, ou seja, do aniquilamento do ser humano. E é a própria condição humana que passa a ser objeto de relfexão, uma reflexão que traz à tona, de forma vigorosa e implacável, as fraquezas e os anseios, os desalentos e os impulsos mais obscuros, presentes inapelavelmente na vida de todas as pessoas.

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Sem reticências e com destemor, Lya Luft desce às dobras mais recônditas da opressão, ou seja, do aniquilamento do ser humano. E é a própria condição humana que passa a ser objeto de reflexão, uma reflexão que traz à tona, de forma vigorosa e implacável, as fraquezas e os anseios, os desalentos e os impulsos mais obscuros, presentes inapelavelmente na vida de todas as pessoas. A personagem Gisela é criada em uma rígida família alemã, e sofre por se sentir exilada em um mundo comandado por sua avó, a temida e autoritária matriarca Frau Wolf. Dividida entre a obrigação de seguir as duras normas da educação alemã e a vontade de ser como as outras crianças, admirando a mãe, uma ―intrusa‖ que tenta se integrar na família ―germânica‖, a menina cresce ambivalente, censurada pelo olhar crítico da avó e sentindo-se à sombra da prima, a preferida e perfeita Anemarie. Gisela sofre por ser a imagem da exclusão e pelo autoritarismo da matriarca da família e depois de adulta refaz sua trajetória em busca de sua identidade. Em A Asa Esquerda do Anjo, Gisela conta a história de sua família, seus segredos – escondidos metaforicamente em uma portinha no porão; as mortes dolorosas e o anjo que guarda o mausoléu dos Wolf, os anseios e a culpa que a impedem de viver uma relação amorosa; a busca incessante pela aprovação em um lugar onde elas jamais seria igual aos outros. O romance aborda, principalmente, a luta contínua entre o princípio da vida e da morte, entre Eros e Tanatos. A criação das personagens esta ligada à sua visão de mundo, não aceita mais a perpetuação do poder masculino, embora aponte para a decadência do patriarcado. A contestação aos valores patriarcais se revela, em Lya Luft, de forma cortante, mostrando o drama da mulher, educada dentro de rígidos padrões moralistas. As protagonistas continuam presas à família, presas às regras do jogo social. A situação social da personagem tem importância à medida que representa condicionamentos impostos por práticas sociais. As personagens femininas são flagradas num determinado momento de sua trajetória: o momento em que o mundo, carecendo de

sentido, se esvazia sob a ótica feminina. Lya Luft constrói em suas obras um mundo decadente que se desagrega e se desmancha, compondo um universo feminino marcado pela loucura, pela doença e pela morte; o jogo e o grotesco, o trágico e o grotesco se articulam para desvelar as regras, desvendando os absurdos de uma sociedade repressora e injusta, em que a mulher é o ―lado esquerdo‖, que fica sempre à margem da sociedade. Na obra romanesca de Luft a narrativa é sempre feita por uma mulher que relata sua problemática, partindo de um universo fragmentado, procurando sua verdadeira identidade.

Lya Luft (15 Setembro 1938) ―Não existe isso de homem escrever com vigor e mulher escrever com fragilidade. (…) É um erro pensar assim. Eu sou uma mulher. Faço tudo de mulher, como mulher. Mas não sou uma mulher que necessita de ajuda de um homem. Não necessito de proteção de homem nenhum. Essas mulheres frageizinhas, que fazem esse gênero, querem mesmo é explorar seus maridos. Isso entra também na questão literária. Não existe isso de homens com escrita vigorosa, enquanto as mulheres se perdem na doçura. (…) Eu quero escrever com o vigor de uma mulher. Não me interessa escrever como homem.‖ Lya Luft nasceu no dia 15 de setembro de 1938, em Santa Cruz do Sul, Rio Grande do Sul. Por se tratar de cidade de colonização alemã, as crianças, em quase sua totalidade, falavam alemão, e os livros utilizados nas escolas vinham da Alemanha. Com onze anos, Lya decorava poemas de Goethe e Schiller. Posteriormente, estudou em Porto Alegre (RS), onde se formou em pedagogia e letras anglo-germânicas. Iniciou sua vida literária nos anos 60, como tradutora de literaturas em alemão e inglês. Lya Luft já traduziu para o português mais de cem livros. Entre outros, destacam-se traduções de Virginia Wolf, Reiner Maria Rilke, Hermann Hesse, Doris Lessing, Günter Grass, Botho Strauss e Thomas Mann. Ela diz que traduzir é sua verdadeira profissão. E que faz tradução para ganhar dinheiro. Mas também porque gosta. Um trabalho que exige respeito. Seu desejo é aproximar o escritor estrangeiro do

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leitor brasileiro. Confessa que não pode ser inteiramente fiel, porque pode-se correr o risco de ninguém entender nada. Mas não faz um carnaval em cima do texto alheio, não inventa, não cria frases que não existem. Conheceu Celso Pedro Luft, seu primeiro marido, quando tinha 21 anos. Ele tinha quarenta. Era irmão marista. Foi numa prova de vestibular. Achou-se ridícula quando pensou: esse é o homem da minha vida! O irmão marista tirou a batina para casar com ela em 1963. Nessa paixão, começou a escrever poesia. Os primeiros poemas foram reunidos no livro ―Canções de Limiar‖ (1964). Tiveram três filhos: Suzana, em 1965; André, em 1966; e Eduardo, em 1969. Em 1972 lança mais um livro de poemas, ―Flauta Doce‖. Em 1976, escreveu alguns contos e mandou para Pedro Paulo Sena Madureira, que era editor da Nova Fronteira. Pedro Paulo respondeu dizendo que os contos eram todos ―publicáveis‖. Pedro Paulo, no entanto, aconselhou Lya a escrever um romance, dizendo que ela era romancista. Dois anos depois ela escreveu ―As Parceiras‖. Em 1978 lança seu primeiro livro de contos, ―Matéria do Cotidiano‖. A ficção entrou em sua vida dois anos depois de um acidente automobilístico quase fatal em 1979. Como teve uma visão mais próxima da morte, diz a autora que começou a fazer tudo que evitava. Primeiro foram crônicas, com o lançamento de ―As Parceiras‖, em 1980, e ―A Asa Esquerda do Anjo‖, em 1981. Textos amenos. Uma espécie de fingimento de que na vida tudo é bom. A morte é encarada como uma coisa normal. Mas gostaria que todos os seus amigos fossem eternos. Mesmo assim, acha a morte uma coisa mágica. Em apenas oito anos Lya Luft sofreu duas perdas grandes demais. Dos 25 aos 47 anos foi casada com Celso Pedro Luft. Separou-se dele em 1985 e foi viver com o psicanalista e escritor

Hélio Pellegrino, que morreu três anos depois. Em 1992 voltou a casar-se com o primeiro marido, de quem ficou viúva em 1995. A escritora é conhecida por sua luta contra os estereótipos sociais. ―Essas coisas que obrigam as pessoas a ser atletas. Hoje é quase uma imposição: a ordem é fazer sexo sem parar, o tempo todo. A ordem é não fumar, não beber. É essa loucura o dia inteiro na cabeça. Quem não for resistente acaba enlouquecendo. E a vida fica para trás. Hoje as pessoas estão sofrendo muito. Um sofrimento absolutamente desnecessário. Especialmente as mulheres que fazem plástica logo que vêem uma ruga no rosto. Plásticas de inteira inutilidade―. Lya Luft deixa claro que nada tem contra as cirurgias plásticas, mas contra o rumo disso tudo. A autora diz ser uma constatação precária dizer que ela escreve sobre mulheres. Mulheres não são seus personagens exclusivos. ―Escrevo sobre o que me assombra‖, observa. E nisso está a infância. O importante é o compromisso com a dignidade. Toda a sua obra poderia ser resumida — como afirma — num livro de indagações. Em 1982 publica ―Reunião de Família‖, e em 1984 outros dois livros: ―O Quarto Fechado‖ e ―Mulher no Palco‖. ―O Quarto Fechado‖ foi lançado nos E.U.A. sob o título ―The Island of the Dead‖. Quem é Lya Luft? Uma mulher gaúcha, brasileira, que faz cada vez mais, aos sessenta e um anos, o que desde os três ou quatro desejava fazer: jogar com as palavras e com personagens, criar, inventar, cismar, tramar, sondar o insondável. ―Tento entender a vida, o mundo e o mistério e para isso escrevo. Não conseguirei jamais entender, mas tentar me dá uma enorme alegria. Além disso, sou uma mulher simples, em busca cada vez mais de mais simplicidade. Amo a vida, os amigos, os filhos, a arte, minha casa, o amanhecer. Sou uma amadora da vida. O que você nunca vai esquecer? Escutar o vento e a chuva nas árvores do imenso jardim que cercava a casa de meu pai, na minha infância‖.

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Puro maravilhamento. O que lhe causa repugnância? Preconceito, hipocrisia. Vale a pena escrever? ―Não escrevo porque ―valha a pena‖, mas porque me faz feliz, simplesmente‖. O que falta à literatura brasileira? ―Nada, não falta nada. Ela é o que é, simplesmente, cheia de graça, desgraça, florescente, múltipla, lutando com a crise econômica que atinge também as editoras, mas, como não se escreve para ficar rico, tudo bem‖. E Deus? ―Deus eu imagino como força de vida: luminosa, positiva, imperscrutável‖. E o Brasil? Brasil cujo jeito é parecer não ter jeito. ―Não quero jamais ter de morar longe dele. Aqui tudo é possível. E tanto está ainda por fazer‖. O que fazer para reverter esse quadro de miséria? ―Que os responsáveis por isso criem vergonha na cara‖. Quem não merece respeito algum de ninguém? ―Todos merecem algum respeito, no mínimo compaixão‖. Você costuma rezar? ―Não tenho nenhuma religião instituída, mas tenho uma profunda visão ―religiosa‖, sagrada, da natureza, das pessoas, do outro‖. Qual é seu momento ideal para escrever? ―O momento em que meu livro quer ser escrito. Mas normalmente produzo mais de manhã bem cedo. Gosto de ver o dia nascer, aqui na minha mesa de trabalho e do meu computador―. Se confessa uma mulher tímida, embora não pareça.

Em 1987 lança ―Exílio‖; em 1989 o livro de poemas ―O Lado Fatal‖ e, em 1996, o premiado ―O Rio do Meio‖ (ensaios), considerado a melhor obra de ficção do ano. Lya Luft afirma que hoje prefere ficar quieta consigo mesma. Já casou demais. Já enviuvou demais. Não se imagina mais vivendo ao lado de ninguém. Mas não quer desprezar os encantamentos que surgem por seu caminho. Lya afirma ter sido um privilégio ter conhecido e vivido com dois homens que muito lhe ensinaram. Sua visão do masculino é muito positiva. Foram três homens, na verdade, que a influenciaram e percorreram sua vida, erguendo seu rosto, seu percurso, abrindo seus rumos: seu pai, Arthur Germano Fett, que considerava um homem culto, amigo e também solitário; seu cúmplice, Celso Pedro Luft, de quem herdou o sobrenome; e Hélio Pellegrino. Três homens inesquecíveis. Que sempre vão permanecer nas palavras, nos pensamentos, nos acenos possíveis. Não faz tarde de autógrafos, sente-se desconfortável com isso. Não gosta de discutir teorias literárias, especialmente quando se referem à sua obra. Nunca pensou em tradição literária ou, especialmente, em tradição literária gaúcha. Não quer fazer literatura regional. Não quer ser representante de descendentes. Não quer pertencer a grupo nenhum. Quer mesmo é ser livre. Quer ficar quieta no seu canto. No livro ―Secreta Mirada‖, lançado em 1997, ela se deixou com ela mesma e discorreu sobre temas que nunca fala em discussões literárias, em entrevistas, depoimentos. ―Sou dos escritores que não sabem dizer coisas inteligentes sobre seus personagens, suas técnicas ou seus recursos. Naturalmente, tudo que faço hoje é fruto de minha experiência de ontem: na vida, na maneira de me vestir e me portar, no meu trabalho e na minha arte. Não escrevo muito sobre a morte: na verdade ela é que escreve sobre nós – desde que nascemos vai elaborando o roteiro de nossa vida. O medo de perder o que se ama faz com que avaliemos melhor muitas coisas.

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Assim como a doença nos leva a apreciar o que antes achávamos banal e desimportante, diante de uma dor pessoal compreendemos o valor de afetos e interesses que até então pareciam apenas naturais: nós os merecíamos, só isso. Eram parte de nós. O amor nos tira o sono, nos tira do sério, tira o tapete debaixo dos nossos pés, faz com que nos defrontemos com medos e fraquezas aparentemente superados, mas também com insuspeitada audácia e generosidade. E como habitualmente tem um fim – que é dor – complica a vida. Por outro lado, é um maravilhoso ladrão da nossa arrogância. Quem nos quiser amar agora terá de vir com calma, terá de vir com jeito. Somos um território mais difícil de invadir, porque levantamos muros, inseguros de nossas forças disfarçamos a fragilidade com altas torres e ares imponentes. A maturidade me permite olhar com menos ilusões, aceitar com menos sofrimento, entender com mais tranqüilidade, querer com mais doçura. Às vezes é preciso recolher-se―. Em 1999 a escritora lança o livro ―O Ponto Cego‖.

―A vida é maravilhosa, mesmo quando dolorida. Eu gostaria que na correria da época atual a gente pudesse se permitir, criar, uma pequena ilha de contemplação, de autocontemplação, de onde se pudesse ver melhor todas as coisas: com mais generosidade, mais otimismo, mais respeito, mais silêncio, mais prazer. Mais senso da própria dignidade, não importando idade, dinheiro, cor, posição, crença. Não importando nada‖. Bibliografia: - Canções de Limiar, 1964 - Flauta Doce, 1972 - Matéria do Cotidiano, 1978 - As Parceiras, 1980 - A Asa Esquerda do Anjo, 1981 - Reunião de Família, 1982 - O Quarto Fechado, 1984 - Mulher no Palco, 1984 - Exílio, 1987 - O Lado Fatal, 1989 - O Rio do Meio, 1996 - Secreta Mirada, 1997 - O Ponto Cego, 1999 - Histórias do Tempo, 2000 - Mar de dentro, 2000 (Todos os livros foram publicados pelas Edições Siciliano e Mandarim, São Paulo – SP) - Perdas e ganhos, 2003 – Editora Record Fontes: Arnaldo Nogueira Jr. In Projeto Releituras Portal de Estudos Passeiweb

Cintian Moraes A diferença entre Viver Bem e

Viver Melhor

Hoje dei um descanso a minha mente

agitada e aos meus dedos cansados de digitar no teclado do computador, por um momento respirei e passei a me interessar pelo que via nas ruas.

O que vi foram meninos brincando de pés descalços na rua de asfalto, morrendo de rir e exaustos por correrem atrás da bola.

Naquele momento, eu transferi para mim a felicidade que eles sentiam. A felicidade deles me alegrava completamente.

Parei e também ouvi os pássaros que faziam festa na árvore da casa do vizinho da frente. Olhei um carro que passava, passou tão rápido que quase atropelou os meninos que distraídos jogavam bola. Alguns minutos depois, eis que surge um caminhão na esquina que dizia pelo auto falante…

- Hei, você que está aí dentro de casa, venha conhecer o artesanato nordestino, vendemos tapetes artesanais, redes, colchas,

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esculturas feitas em barro, jogos de cozinha, tudo para a sua casa.

Impossível não rir, no caminhão que passava, todos os artesanatos estavam pendurado nas portas, até os que estavam dentro do baú do pequeno caminhão dava para ver. As portas estavam abertas, tinham tantas coisas lá dentro que era difícil saber o que exatamente estavam carregando. A cena me impressionou, fiquei observando aquilo que era tão diferente. Senti inveja da criatividade que tiveram. A mercadoria cobria todo o caminhãozinho que ficou lindo, me senti no nordeste. O sotaque arrastado no auto falante me fez rir e senti muita felicidade.

Depois de admirar o caminhão, os meninos olharam para mim, com ar de estranhisse e voltaram a jogar, certamente eles também nunca tinham visto coisa parecida. Alguns vizinhos curiosos também saíram na rua para ver o tal do caminhão. Era bizarro e pitoresco.

Olhei para o lado de cima da rua e vi duas vizinhas conversando, de certo estavam botando a fofoca em dia, esse encontro sempre acontecia no mínimo uma vez por semana.

Em um outro dia… Precisei ir até a casa de uma amiga em

um condomínio fechado em um bairro distante do meu.

Ao chegar, me identifiquei na portaria, o porteiro ficou atrapalhado, não olhou para mim enquanto eu dizia o meu nome, olhou para o carro que estava chegando no portão principal do condomínio. Só depois de abrir o portão é que ele foi olhar para o meu rosto. Então, repeti o meu nome e disse que a minha amiga estava me aguardando.

Ele me fez esperar uns 10 minutos e depois eu entrei.

Eu andava a pé, ainda bem, porque pude ver com todos os detalhes as belíssimas casas do condomínio. Me senti muito bem lá, era confortável, mas não era como na rua de casa. Depois de andar e observar, o isolamento me incomodou, não vi nenhum vizinho, crianças fazendo barulho – para atrapalhar os vizinhos, é claro – vi somente imagens paradas. Se não fossem os ventos, seriam estáticas.

Me senti sozinha, como se fizesse parte de uma bela imagem pregada em um quadro na parede da sala. Havia vida no lugar, belíssimos jardins, moldados pelas mãos humanas, bem diferente do jardim da minha

casa, cheia de matos entre as cebolinhas para o tempero da minha mãe, hortelã para meu chá da noite, e de onde colho acerolas e morangos.

Quando cheguei, minha amiga me esperava com a porta semiaberta. Ela me convidou para entrar, o silêncio era predominante na casa, ela estava sozinha com a empregada. Me senti novamente na bela imagem pregada em um quadro na parede da sala e me perguntei:

- Para que tanto isolamento? O barulho faz mal? Os vizinhos do condomínio nem ao menos se cumprimentavam quando se viam, os jovens e a garotada tinham o seu canto reservado nos fundos do condomínio, um campo, uma quadra e uma piscina, onde não vi ninguém.

Sai de lá sem sentir felicidade e fui embora recordando do meu tempo de criança, onde o meu mundo era perfeito e ria todos os dias. Lembro de quando eu me juntava com as meninas da rua de casa para brincar de fazer perfumes com as pétalas de rosa que nasciam no meu jardim. Às vezes pegávamos caramujos e brincávamos de experiências. Quando sentia cheiro de bolo, logo sabia que a minha vizinha mais tarde apareceria no muro de casa chamando a minha mãe para lhe entregar o pedaço de bolo que acabava de sair do forno. Os meus vizinhos nem batiam palma no portão, entravam e chamavam da garagem. Não tinha vergonha nenhuma de comer na casa de algum vizinho e depois voltar de barriga cheia para a casa. Quando minha mãe precisava sair, fazia um trato com alguma vizinha para cuidar de mim e dos meus irmãos e ia tranquila resolver os problemas no centro da cidade. Depois falava: – quando precisar pode deixar os seus meninos aqui que eu cuido também.

Que tempos diferentes que parecem nem fazer parte de uma só vida. Não faz tanto tempo assim, apenas 20 anos e nem consigo imaginar o que será daqui mais 20. As coisas mudam tão depressa que a minha felicidade caminha, se acostuma e se adapta com essa nova vida que às vezes me perco nela.

Não entendo se é porque estou vivenciando isso, mas o que sei, é que a minha geração está passando por sérias mudanças de tecnologias que nos cutucam por todos os lados e sei que essas mudanças ainda serão grandiosas e bastante significativas para

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pessoas divididas entre viver bem e viver melhor.

Fonte: Cenário Cultural

Valdeck Almeida de Jesus Poesias

A VIDA PULSA Moro no mesmo lugar Há mais de dez anos E todos os dias vejo Ouço, Sinto, Respiro Todas as manhã Os mesmos movimentos. Não há mais árvores Não há mais sombras Tampouco água corrente. Só o canto mavioso Das aves diurnas Ecoa de alegria Pelo nascer do dia. Comemoram a chegada Do sol que vivifica No entanto, eu não via Nem mesmo percebia Que a vida mágica e frágil Em se mostrar insistia. Com o passar do tempo Do alto da soberbia Através de um olhar

A vida passando eu via Sem que nada daquilo Me fizesse ter alegria… CORAÇÃO DE PEDRA Vivi traições e mentiras, Alegrias e tristezas. Com você, surge no horizonte O amor que me tira da torpeza. Sensação boa, gratificante, Vivifica o corpo e a alma, Desperta o humano, Revive o poeta. Os versos retornam, A sensibilidade aflora, Quando a paixão me devora. O amor faz rir ao triste, Dá sorriso a quem chora E quebra o coração de pedra. CICATRIZES A vida é uma sucessão

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Sucessão de cicatrizes Cicatrizes do amor Cicatrizes da alegria Cicatrizes da dor Cicatrizes da euforia. Não quero viver Sem cicatrizes Alegres os tristes Quase felizes Meus dias terão Várias cicatrizes

Valdeck Almeida De Jesus (1966)

Funcionário público federal, nasceu a 15 de fevereiro de 1966 em Jequié/BA, onde viveu até aos seis anos de idade, quando foi residir na Fazenda Turmalina (região de Itagibá/BA), onde continuou a estudar em escola pública até os 12 anos de idade. Aluno exemplar retornou a Jequié/Ba para se matricular na 5ª série do primeiro grau, em escola pública. Ingressou nas Faculdades de Enfermagem e de Letras, da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia em 1990; na Faculdade de Turismo, na Faculdade São Salvador, não concluindo os cursos. Reside em Salvador, desde fevereiro de 1993. Atualmente faz o curso de Jornalismo na Faculdade Social da Bahia. Prêmios Literários: – Menção Honrosa em 1989 no 1° Concurso Nacional de Poesia, promovido pelo Instituto Internacional da Poesia, de Porto Alegre/RS – Menção Honrosa no Concurso Literário Oswald de Andrade, promovido pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, em 1990, na cidade de Jequié/BA – Classificação no concurso literário Bahia de Todas as Letras, promovido pela Universidade Estadual de Santa Cruz, em Ilhéus/Ba, no ano de 2007, com o conto ―Eu e o Word‖, com nota 7 (sete) – Classificação no concurso literário realizado pelo Sindicato dos Trabalhadores no Poder Judiciário Federal da Bahia, com a crônica ―Alice‖, no ano de 2007, em Salvador/BA – Destaque no XII Concurso de Poesias, Contos e Crônicas realizado em 2007 pela ALPAS XXI,

em Cruz Alta/RS com o texto ―Minha paixão por livros‖. Livros publicados ―Heartache Poems. A Brazilian Gay Man Coming Out from the Closet‖, iUniverse, New York, USA, 2004; poesias ―Feitiço Contra o Feiticeiro‖, Scortecci, São Paulo, 2005; Livro de poesias. ―Memorial do Inferno. A Saga da Família Almeida no Jardim do Éden‖, Scortecci, São Paulo, 2005; ―Memorial do Inferno. A Saga da Família Almeida no Jardim do Éden‖, Giz, São Paulo, 2007; Editor da ―1ª Antologia Poética Valdeck Almeida de Jesus‖, Casa do Novo Autor, São Paulo, 2006; ―Jamais Esquecerei do Brother Jean Wyllys‖, Casa do Novo Autor, São Paulo, 2005; ―Poemas Que Falam‖, Casa no Novo Autor, São Paulo, 2007. ―Valdeck é Prosa, Vanise é Poesia‖, Câmara Brasileira do Jovem Escritor, Rio de Janeiro, 2007. Editor da ―2ª Antologia Poética Valdeck Almeida de Jesus‖, Casa do Novo Autor, São Paulo, 2007; ―30 Anos de Poesia‖, Câmara Brasileira do Jovem Escritor, Rio de Janeiro, 2008; Editor da ―3ª Antologia Poética Valdeck Almeida de Jesus‖, Giz Editorial, São Paulo, 2008. ―Memories from Brazilian Hell: The Saga of Almeida Family in the Garden of Éden‖, iUniverse, Nova York (USA), 2008. Trabalhos Realizados e Entidades que Pertence Expositor, como escritor independente, na Bienal do Livro da Bahia, em 2005, 2007 e 2009.

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Expositor no III Corredor Literário da Paulista, de 09 a 14 de outubro de 2007, em São Paulo/SP Participação no V Fórum Social Mundial, em Porto Alegre/RS, de 26 a 31 de janeiro de 2005; Participação, como organizador da Mostra de Arte e Cultura, no II Congresso Estadual do Sindjufe-BA, de 01 a 03.06.2007, no Hotel Sol Bahia Atlântico, em Salvador/BA Tem poemas publicados nos jornais de grande circulação da capital e do interior do estado da Bahia, além de jornais de Brasília/DF; Colaborador, desde 1985, do jornal A PROSA, de Brasília/DF. Colaborador da revista cultural Art‘Poesia, de Salvador, editada por Carlos Alberto Barreto, que publica poemas de autores do mundo inteiro. Palestra na ONG Vento em Popa, no bairro Jardim Gaivotas, em São Paulo, em 2007, com o tema ―Motivação através da leitura‖. Colunista dos sites www.zonamix.com.br, www.radarmix.com e www.portalvilas.com.br, desde março de 2006. Membro da Federação Canadense de Poetas desde 2004.

Membro da Associação Artes e Letras (França) desde 2005. Membro da União Brasileira de Escritores – UBE, desde março de 2006. Colaborador do Café Literário de Camaçari/BA, evento realizado pela coordenação do PROLER – vários anos. Participação na Feira do Livro Internacional de Paraty (FLIP), 2008. Lançamento de três livros na Bienal Internacional de São Paulo, 2008. Membro Correspondente da Academia de Letras de Jequié. Participante da ―Mostra Poética: Cores das Letras no Brasil‖, realizado como atividade paralela do 4° Encontro Açoriano da Lusofonia,, promovido pela Sociedade dos Poetas Advogados de Santa Catarina – SPA/SC, de 31 de março a 04 de abril de 2009, na Biblioteca da Escola Secundária de Lagoa, Açores, Portugal. Palestra e oficina de poesias na Biblioteca Comunitária do Calabar, bairro remanescente de quilombo, em Salvador/BA Membro da Real Academia de Letras, Ordem da Confraria dos Poetas. Fontes: http://www.galinhapulando.com/

Miguel Falabella Saudade

“Em alguma outra vida, devemos ter feito algo de muito grave,

para sentirmos tanta saudade…”

Trancar o dedo numa porta dói. Bater com o queixo no chão dói. Torcer o tornozelo dói. Um tapa, um soco, um pontapé, doem. Dói bater a cabeça na quina da mesa, dói morder a língua, dói cólica, cárie e pedra no rim.

Mas o que mais dói é a saudade. Saudade de um irmão que mora longe. Saudade de uma cachoeira da infância. Saudade do gosto de uma fruta que não se encontra mais. Saudade do pai que morreu, do amigo imaginário que nunca existiu. Saudade de uma cidade.

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Saudade da gente mesmo, que o tempo não perdoa. Doem essas saudades todas. Mas a saudade mais dolorida é a saudade de quem se ama. Saudade da pele, do cheiro, dos beijos. Saudade da presença, e até da ausência consentida. Você podia ficar na sala e ela no quarto, sem se verem, mas sabiam se lá. Você podia ir para o dentista e ela para a faculdade, mas sabiam se onde. Você podia ficar o dia sem vê la, ela o dia sem vê lo, mas sabiam se amanhã. Contudo, quando o amor de um acaba, ou torna se menor, o outro sobra uma saudade que ninguém sabe como deter. Saudade é basicamente não saber. Não saber mais se ela continua fungando num ambiente mais frio. Não saber se ele continua sem fazer a barba por causa daquela alergia. Não saber se ela ainda usa aquela saia. Não saber se ele foi na consulta com o dermatologista como prometeu. Não saber se ela tem comido bem por causa daquela mania de estar sempre ocupada, se ele tem assistido às aulas de inglês, se aprendeu a entrar na Internet e encontrar a

página do Diário Oficial, se ela aprendeu a estacionar entre dois carros, se ele continua preferindo Skol, se ela continua preferindo suco, se ele continua sorrindo com aqueles olhinhos apertados, se ele continua cantando tão bem, se ela continua adorando o Mac Donald‘s, se ele continua amando, se ela continua a chorar até nas comédias. Saudade é não saber mesmo! Não saber o que fazer com os dias que ficaram mais compridos, não saber como encontrar tarefas que lhe cessem o pensamento, não saber como frear as páginas diante de uma música, não saber como vencer a dor de um silêncio que nada preenche. Saudade é não querer saber se ela está com outro, e ao mesmo tempo querer. É não saber se ele está feliz, e ao mesmo tempo perguntar a todos os amigos por isso… É não querer saber se ele está mais magro, se ela está mais bela. Saudade é nunca mais saber de quem se ama, e ainda assim doer. Saudade é isso que senti enquanto estive escrevendo e o que você, provavelmente, está sentindo agora depois que acabou de ler. Fonte: Estudio Raposa

Natália Correia Caravela de Poesias

“A DEFESA DO POETA” Senhores jurados sou um poeta um multipétalo uivo um defeito e ando com uma camisa de vento ao contrário do esqueleto. Sou um vestíbulo do impossível um lápis de armazenado espanto e por fim com a paciência dos versos espero viver dentro de mim. Sou em código o azul de todos (curtido couro de cicatrizes) uma avaria cantante

na maquineta dos felizes. Senhores banqueiros sois a cidade o vosso enfarte serei não há cidade sem o parque do sono que vos roubei. Senhores professores que pusestes a prêmio minha rara edição de raptar-me em crianças que salvo do incêndio da vossa lição. Senhores tiranos que do baralho de em pó volverdes sois os reis sou um poeta jogo-me aos dados

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ganho as paisagens que não vereis. Senhores heróis até aos dentes puro exercício de ninguém minha cobardia é esperar-vos umas estrofes mais além. Senhores três quatro cinco e sete que medo vos pôs por ordem? que pavor fechou o leque da vossa diferença enquanto homem? Senhores juízes que não molhais a pena na tinta da natureza não apedrejeis meu pássaro sem que ele cante minha defesa. Sou um instantâneo das coisas apanhadas em delito de perdão a raiz quadrada da flor que espalmais em apertos de mão. Sou uma impudência a mesa posta de um verso onde o possa escrever Ó subalimentados do sonho! a poesia é para comer. FIZ UM CONTO PARA ME EMBALAR Fiz com as fadas uma aliança. A deste conto nunca contar. Mas como ainda sou criança Quero a mim própria embalar. Estavam na praia três donzelas Como três laranjas num pomar. Nenhuma sabia para qual delas Cantava o príncipe do mar. Rosas fatais, as três donzelas A mão de espuma as desfolhou. Nenhum soube para qual delas O príncipe do mar cantou. AUTO RETRATO Espáduas brancas palpitantes: Asas no exílio dum corpo. Os braços calhas cintilantes Para o comboio da alma. E os olhos emigrantes no navio da pálpebra encalhado em renúncia ou cobardia. Por vozes fêmea. Por vezes monja. Conforme a noite. Conforme o dia.

Molusco. Esponja Embebida num filtro de magia. Aranha de ouro Presa na teia dos seus ardis. (1955)

QUEIXA DAS ALMAS JOVENS CENSURADAS

Dão nos um lírio e um canivete e uma alma para ir à escola mais um letreiro que promete raízes, hastes e corola Dão nos um mapa imaginário que tem a forma de uma cidade mais um relógio e um calendário onde não vem a nossa idade Dão nos a honra de manequim para dar corda à nossa ausência. Dão nos um prêmio de ser assim sem pecado e sem inocência Dão nos um barco e um chapéu para tirarmos o retrato Dão nos bilhetes para o céu levado à cena num teatro Penteiam nos os crânios ermos com as cabeleiras dos avós para jamais nos parecermos conosco quando estamos sós Dão nos um bolo que é a história da nossa historia sem enredo e não nos soa na memória outra palavra que o medo Temos fantasmas tão educados que adormecemos no seu ombro somos vazios despovoados de personagens de assombro Dão nos a capa do evangelho e um pacote de tabaco dão nos um pente e um espelho pra pentearmos um macaco Dão nos um cravo preso à cabeça e uma cabeça presa à cintura para que o corpo não pareça a forma da alma que o procura

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Dão nos um esquife feito de ferro com embutidos de diamante para organizar já o enterro do nosso corpo mais adiante Dão nos um nome e um jornal um avião e um violino mas não nos dão o animal que espeta os cornos no destino Dão nos marujos de papelão com carimbo no passaporte por isso a nossa dimensão não é a vida, nem é a morte. ODE À PAZ Pela verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza, Pelas aves que voam no olhar de uma criança, Pela limpeza do vento, pelos actos de pureza, Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança, pela branda melodia do rumor dos regatos, Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia, Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego, dos pastos, Pela exatidão das rosas, pela Sabedoria, Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes, Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos, Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes, Pelos aromas maduros de suaves outonos, Pela futura manhã dos grandes transparentes, Pelas entranhas maternas e fecundas da terra, Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra, Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna, Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz, Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira, Com o teu esconjuro da bomba e do algoz, Abre as portas da História, deixa passar a Vida! –––––––––––––––––––––––––- (durante o debate da Lei contra o alcoolismo) Num país de beberrões Em que reina o velho Baco Se nos tiram os canjirões Ficamos feitos num caco. E querem os deputados Com um ar de beatério

Que fiquemos desmamados Quais anjos num baptistério. Se o verde e o tinto são As cores da nossa bandeira, Ai, lá se vai a nação Se acabar a bebedeira. De abstemia não se faça A lex neste plenário Que o direito à vinhaça Esse é consuetudinário. A ALMA Votada ao fogo obediente ao perigo feroz do amor ser muito e o tempo pouco, Chegas ébrio de sonho, ó estranho amigo E eu não sei se por mim és anjo ou louco Num beijo infindo queres morrer comigo. Nesse extremo és sagrado e eu não te toco Esquivo me. o teu sonho mais instigo. Fujo te: a tua chama mais provoco. A incêndio do teu sangue me condenas E com ciumentas ervas te envenenas Dizendo às nuvens que só tu me viste. Bebendo o vinho de amantes mortos queres Que eu seja a mais prateada das mulheres. E de ser tão amada eu fico triste. FALAVAM ME DE AMOR Quando um ramo de doze badaladas se espalhava nos móveis e tu vinhas solstício de mel pelas escadas de um sentimento com nozes e com pinhas, menino eras de lenha e crepitavas porque do fogo o nome antigo tinhas e em sua eternidade colocavas o que a infância pedia às andorinhas. Depois nas folhas secas te envolvias de trezentos e muitos lerdos dias e eras um sol na sombra flagelado. O fel que por nós bebes te liberta e no manso natal que te conserta só tu ficaste a ti acostumado.

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Natália Correia (1923 – 1993)

Natália de Oliveira Correia nasceu na ilha de São Miguel – Açores, em 1923. Veio ainda criança estudar para Lisboa, iniciando muito cedo a sua atividade literária. Importante figura da cultura portuguesa da segunda metade do século XX, notabilizou se como poetisa, ensaísta, romancista, passando pelo teatro e investigação literária, Natália foi também uma figura destacada da luta contra o fascismo. Vários livros seus foram apreendidos pela censura, tendo sido condenada a três anos de prisão com pena suspensa, por abuso de liberdade de imprensa. Foi também deputada depois do 25 de Abril e também nesse papel foi uma figura marcante e inesquecível. Colaborou com frequência em diversas publicações portuguesas e estrangeiras. Faleceu em Lisboa em 1993. A sua obra está traduzida em várias línguas. Obras poéticas: ―Rio de Nuvens‖ (1947), ―Poemas‖ (1955), ―Dimensão Encontrada‖ (1957),

―Passaporte‖ (1958), ―Comunicação‖ (1959), ―Cântico do País Imerso‖ (1961), ―O Vinho e a Lira‖ (1966), ―Mátria‖ (1968), ―As Maçãs de Orestes‖ (1970), ―Mosca Iluminada‖ (1972), ―O Anjo do Ocidente à Entrada do Ferro‖ (1973), ―Poemas a Rebate‖ (1975), ―Epístola aos Iamitas‖ (1976), ―O Dilúvio e a Pomba‖ (1979), ―Sonetos Românticos‖ (1990), ―O Armistício‖ (1985), ―O Sol das Noites e o Luar nos Dias‖ (1993), ―Memória da Sombra‖ (1994). Ficção: ―Anoiteceu no Bairro‖ (1946), ―A Madona‖ (1968), ―A Ilha de Circe‖ (1983). Teatro: ―O Progresso de Édipo‖ (1957), ―O Homúnculo‖ (1965), ―O Encoberto‖ (1969), ―Erros meus, má fortuna, amor ardente‖ (1981), ―A Pécora‖ (1983). Ensaio: ―Poesia de arte e realismo poético‖ (1958), ―Uma estátua para Herodes‖ (1974). Fonte: Estúdio Raposa

José Marins (org.)

A Brisa é Você Minicontos

Trata-se de uma antologia de minicontos composta por 200 mininarrativas escritas por 10 autores, editada pela Araucária Cultural. Esta coletânea teve um longo processo de elaboração, desde o feitio de cada conto ao projeto final. Organizada por José Marins e publicada pela editora Araucária Cultural

O título do livro é em homenagem a Dalton Trevisan. Aguardamos a presença de todos! * A brisa é você – parte da frase da ministória 52, do livro ―Ah, é?‖, p.42, de Dalton Trevisan. Os autores: Alvaro Posselt Consolação Buzelin

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Daniel Zanella Diego Oliveira Eumar Sicuro Geraldo Magela Cardoso José Marins (também organizador e editor) Luís Ronconi Regina Bostulim Rodrigo Araújo

O miniconto é um gênero que surgiu na literatura latino-americana e se firmou no Brasil com Dalton Trevisan, Marina Colasanti, Marcelino Freire, João Gilberto Noll entre outros. Os dez autores de A BRISA É VOCÊ querem mostrar que aprenderam com seus mestres, e apresentam textos que vão do humor ao drama urbano, guardando sempre um efeito seja o da surpresa ou do impacto. ―Dez autores, 200 minicontos, dez estilos diferentes de narrar 200 histórias. A leitura deste livro é um passeio por uma nova paisagem literária, onde realismo e fantasia se encontram nos vislumbres do miniconto‖, afirma José Marins, organizador da coletânea. Marcelo Spalding, um dos maiores estudiosos do gênero no país, autor de dissertação de mestrado sobre minicontos, é o apresentador de ―A BRISA É VOCÊ‖, e diz: ―… construindo narrativas com personagens, conflitos, enredos

capazes de fisgar o leitor e transformar brisa em ventania‖. E prossegue, registrando um toque de cada autor: ―Abacaxi Dourado‖, de Consolação Buzelin, e ―Cãozinho cego‖, de Regina Bostulim, são exemplares neste sentido: brisas que movem moinhos. E há várias formas de se fazer mover esse moinho, o humor de Alvaro Posselt em ―Vestida‖, e de Eumar Sicuro em ―Admiração‖, o coloquial de Luís Ronconi em ―Barrado no baile‖, a epístola de Rodrigo Araújo em ―Apelo‖, o lirismo de José Marins em ―Pipa‖. Trevisan, o grande mestre, em ―Uma coisa‖, de Daniel Zanella,a intertextualidade com ―Kafka‖, de Geraldo Magela, e com a Bíblia, em ―Não roubarás‖, de Diego Oliveira‖.

UM MINUTO por Diego Oliveira Um minuto é o que separa, dezessete andares do chão de concreto. Chama-se ―Liberdade‖. Agora pense, viva, respire devagar. Pronto? Pule. Fontes: A Ilha Simultaneidades Alvaro Posselt

Padre Celso de Carvalho Poesias

A LENDA DOS CAMINHOS

No sertão muitas estradas

Foram e são mal medidas, Umas de léguas mirradas,

Outras de léguas compridas.

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Para explicar-me este fato Na volta de uma fazenda

Um homem simples do mato Contou-me um dia esta lenda.

A medição dos caminhos Por estes matos rasgados

Foi sempre entregue aos carinhos De pares enamorados.

Iria o casal andando, andando sem trégua

para abraçar-se só quando tivesse andando uma légua.

Havia casais velhinhos,

Havia-os jovens em flor, Sofrem, por isso, os caminhos,

Das diferenças do amor.

Casais de velhos, suspensos, Em recordar o passado,

Deixavam trechos imensos Sem o sinal combinado.

Os jovens, não iam avante,

vendo que a légua aprazada estava muito distante,

marcavam outras na estrada.

Isto explica medidas de estradas tão desiguais: às vezes léguas compridas,

às vezes curtas demais..

SONETO (*)

Beth, não tenho luneta como você imagina

que corajosa se meta pela morada divina.

Vejo a lua, borboleta,

no céu-jardim, ou campina,

vejo mais longe um planeta, uma estrela pequenina…

Mas ver a Nossa Senhora,

ver o céu onde Deus mora, ou ver os anjos de Deus…

Ver isso, Beth, somente um coração inocente

e olhos puros com os seus.

(*) Para Maria Elisabeth Becaccini, de Curvelo.

DIAMANTINA EM SERENATA

Quando a noite alinda lua Torna as pedras cor de prata

Diamantina sai à rua Transformada em serenata

Seresteiros indomados Dedilhando violões

Levam música aos ouvidos E saudade aos corações.

A seresta apaixonada

Corre as ruas do Macau Capistrana Cavalhada

São Francisco, Burgalhau Essas ruas serpeantes

É tão fácil entendê-las Descem doidas por diamantes

Sobem ávidas de estrelas.

O Itambé mesmo de longe Ouve os sons quase em surdina Ergue as mãos azuis de monge

E abençoe Diamantina Se de um sonho nada resta Só saudade, só, mais nada, Como é linda uma seresta,

Numa noite enluarada. Fontes: http://www.descubraminas.com.br/ http://www.ismardiasdematos.com.br/celso.htm

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Arthur Rimbaud Poesias

O BARCO ÉBRIO

Como descesse ao léu nos Rios impassíveis, Não me sentia mais atado aos sirgadores; Tomaram-nos por alvo os Índios irascíveis,

Depois de atá-los nus em postes multicores.

Estava indiferente às minhas equipagens, Fossem trigo flamengo ou algodão inglês. Quando morreu com a gente a grita dos

selvagens, Pelos Rios segui, liberto desta vez.

No iroso marulhar dessa maré revolta, Eu, que mais lerdo fui que o cérebro de

infantes, Corria agora! e nem Penínsulas à solta Sofreram convulsões que fossem mais

triunfantes.

A borrasca abençoou minhas manhãs marítimas.

Como uma rolha andei das vagas nos lençóis Que dizem transportar eternamente as

vítimas, Dez noites sem lembrar o olho mau dos faróis!

Mais doce que ao menino os frutos não

maduros, A água verde estranhou-se em meu madeiro,

e então De azuis manchas de vinho e vômitos escuros Lavou-me, dispersando a fateixa e o timão.

Eis que a partir daí eu me banhei no Poema

Do Mar que, latescente e infuso de astros, traga

O verde-azul, por onde, aparição extrema E lívida, um cadáver pensativo vaga;

Onde, tingindo em cheio a colcha azulecida,

Sob as rutilações do dia em estertor, Maior que a inspiração, mais forte que a

bebida, Fermenta esse amargoso enrubescer do amor.

Sei de céus a estourar de relâmpagos, trombas,

Ressacas e marés; eu sei do entardecer, Da Aurora a crepitar como um bando de

pombas, E vi alguma vez o que o homem pensou ver!

Eu vi o sol baixar, sujo de horrores místicos,

Para se iluminar de coagulações cianas, E como um velho ator de dramas inartísticos

As ondas a rolar quais trêmulas persianas!

Sonhei com a noite verde em neves infinitas, Beijo a subir do mar aos olhos com langores,

Toda a circulação das seivas inauditas E a explosão auriazul dos fósforos cantores!

Segui, meses a fio, iguais a vacarias

Histéricas, a vaga a avançar os rochedos, Sem cogitar que os pés piedosos das Marias Pudessem forcejar a fauce aos Mares tredos!

Bati, ficai sabendo, em Flóridas perdidas Ante os olhos em flor de feras disfarçadas De homens! Eu vi abrir-se o arco-íris como

bridas

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Refreando, no horizonte, às gláucicas manadas!

E vi o fermentar de enormes charcos, ansas Onde apodrece, nos juncais, em Leviatã!

E catadupas dágua em meio das bonanças; Longes cataratando em golfos de titãs!

Geleiras, sóis de prata, os bráseos céus!

Abrolhos Onde encalhes fatais fervilham de esqueletos;

Serpentes colossais devoradas de piolhos A tombar dos cipós com seus perfumes pretos!

Bem quisera mostrar às crianças as douradas

Da onda azul, peixes de ouro, esses peixes cantantes.

A espuma em flor berçou-me à saída de enseadas

E inefável o vento alçou-me por instantes.

Mártir que se cansou das zonas perigosas, Aos soluços do mar em balouços parelhos,

Vi-o erguer para mim negra flor de ventosas E ali fiquei qual fosse uma mulher de joelhos…

Quase ilha, a sacudir das bordas as arruaças,

E o excremento a tombar dos pássaros burlões, Vogava a ver passar, entre as cordagens lassas,

Afogados dormindo a descer aos recuões!…

Ora eu, barco perdido entre as comas das ansas,

Jogado por tufões no éter de aves ausente, Sem ter um Monitor ou veleiro das Hansas Que pescasse a carcaça, ébria de água, à

corrente;

Livre, a fumar, surgindo entre as brumas violetas,

Eu que rasguei os rúbeos céus qual muro hostil Que ostentasse, iguaria invulgar aos bons

poetas, Os líquenes do sol e as excreções do anil;

Que ia, de lúnulas elétricas manchado,

Prancha doida, a arrastar hipocampos servis, Quando o verão baixava a golpes de cajado

O céu ultramarino em árdegos funis.

Que tremia, de ouvir, a distâncias incríveis, O cio dos Behemots e os Maelstroms suspeitos,

Eterno tecelão de azuis inamovíveis, Da Europa eu desejava os velhos parapeitos!

Vislumbrei siderais arquipélagos! ilhas De delirantes céus se abrindo ao vogador: Nessas noites sem fundo é que dormes e

brilhas, Ó Milhão de aves de ouro, ó futuro Vigor? –

Certo, chorei demais! As albas são cruciantes.

Amargo é todo sol e atroz é todo luar! Agre amor embebeu-me em torpores

ebriantes: Que minha quilha estale! e que eu jaza no

mar!

Se há na Europa uma água a que eu aspire, é a mansa,

Fria e escura poça, ao crepúsculo em desmaio, A que um menino chega e tristemente lança Um barco frágil como a borboleta em maio.

Não posso mais, banhado em teu langor, ó

vagas, A esteira perseguir dos barcos de algodões,

Nem fender a altivez das flâmulas pressagas, Nem vogar sob a vista horrível dos pontões.

VOGAIS

A negro, E branco, I rubro, U verde, O azul:

vogais. Explico um dia vossas origens latentes: A, negro corpete é um pelo em moscas

luzentes Que zumbem ao redor de fedores brutais,

Golfo de sombra; E, albor de vapores e tendas,

Lanças de alto gelo, alvos reis, tremor de umbelas;

I, lacre, sangue em cuspe e rir de lábios belos Dentro da cólera ou do torpor penitente;

U, ciclos, vibração divina em verde mar,

Paz de animais no pasto, paz desse enrugar Alquímico na fronte de quem muito leu;

O, supremo Clarim de estranhos sons diversos,

Silêncio atravessado em Anjos e Universos; - O Ômega, raio roxo entre esses olhos Seus!

MINHA BOÊMIA

(Fantasia)

Eu andava com punhos em bolsos rasgados; Também meu paletó tornava-se ideal;

Andava sob o céu, Musa! e a ti leal;

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Oh! lá lá! amores lindos eu tenho sonhado!

Minhas únicas calças com um grande furo. — Pequeno Polegar sonhador, em meu curso De rimas. Meu albergue era lá na Grande-

Ursa. — As estrelas no céu num frufru de doçura.

E as ouvia sentado à margem destas rotas, Setembro em belas noites ao sentir as gotas

De orvalho em minha fronte, como um vinho são;

Onde, rimando em meio as sombras

fantásticas, Tal como as liras, eu arrancava os elásticos

Dos sapatos feridos, pé no coração! AURORA — XXII (de: As iluminações) Abracei a aurora do verão. Nada ainda se movia à frente dos palácios. A água estava morta. Os acampamentos de sombra não abandonavam o caminho do

bosque. Andei, despertando os sopros vivos e tépidos, e as pedrarias olharam, e as asas se levantaram sem ruído. O primeiro objetivo foi, na vereda já cheia de lívidos e recentes lampejos, uma flor que me disse seu nome. Eu ri diante da fulva queda d‘água que se desgrenhava através dos abetos: no cimo prateado, reconheci a deusa. Então, eu levantava os véus, um a um. Na alameda, agitando os braços. Pela planície, onde mostrei-a para o gato. Na grande cidade, ela fugia entre as cúpulas e campanários, e, correndo como um mendigo sobre as plataformas de mármore, eu a perseguia. No alto do caminho, perto de um bosque de loureiros. envolvi-a com seus véus amontoados e senti um pouco seu corpo imenso. A aurora e a criança tombaram no bosque. No despertar, era meio-dia. Fonte: RIMBAUD, Arthur. Poesia completa. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995.

Jorge Luis Borges O Outro

O fato ocorreu no mês de fevereiro de 1969, ao norte de Boston, em Cambridge. Não o escrevi imediatamente, porque meu primeiro propósito foi esquecê-lo para não perder a razão. Agora, em 1972, penso que, se o escrevo, os outros o lerão como um conto e, com os anos, o será talvez para mim. Sei que foi quase atroz enquanto durou e mais ainda durante as noites desveladas que o seguiram. Isto não significa que seu relato possa comover a um terceiro. Seriam dez da manhã. Eu estava recostado em um banco, defronte ao rio Charles. A uns quinhentos metros à minha direita havia um alto edifício cujo nome nunca soube. A água cinzenta carregava grandes pedaços de gelo. Inevitavelmente, o rio fez com que eu pensasse no tempo. A milenar imagem de Heráclito. Eu havia dormido bem; minha aula da tarde

anterior havia conseguido, creio, interessar aos alunos. Não havia ninguém à vista. Senti, de repente, a impressão (que, segundo os psicólogos, corresponde aos estados de fadiga) de já ter vivido aquele momento. Na outra ponta de meu banco, alguém se havia sentado. Teria preferido estar só, mas não quis levantar em seguida, para não me mostrar descortês. O outro se havia posto a assobiar. Foi então que ocorreu a primeira das muitas inquietações dessa manhã. O que assobiava, o que tentava assobiar (nunca fui muito entoado), era o estilo crioulo de La Tapera de Elias Regules. O estilo me reconduziu a um pátio lá desaparecido e à memória de Álvaro Mellián Lafinur, morto há muitos anos. Logo vieram as palavras. Eram as da décima do princípio. A voz não era a de Álvaro, mas queria parecer-se com a de Álvaro. Reconheci-a com horror.

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Aproximei-me e disse-lhe: - O senhor é oriental ou argentino? - Argentino, mas desde o ano de 1914 vivo em Genebra – foi a resposta. Houve um silêncio longo. Perguntei-lhe: - No número dezessete da Malagnou, em frente à igreja russa? Respondeu-me que sim. - Neste caso – disse-lhe resolutamente – o senhor se chama Jorge Luis Borges. Eu também sou Jorge Luis Borges. Estamos em 1969, na cidade de Cambridge. - Não – respondeu-me com a minha própria voz um pouco distante. Ao fim de um tempo insistiu: - Eu estou aqui em Genebra, em um banco, a alguns passos do Ródano. 0 estranho é que nos parecemos, mas o senhor é muito mais velho, com a cabeça grisalha. Respondi: - Posso te provar que não minto. Vou te dizer coisas que um desconhecido não pode saber. Lá em casa há uma cuia de prata com um pé de serpentes, que nosso bisavô trouxe do Peru. Há também uma bacia de prata que pendia do arção. No armário do teu quarto, há duas filas de livros. Os três volumes das Mil e Uma Noites de Lane, com gravações em aço e notas em corpo menor entre os capítulos, o dicionário latino de Quicherat, a Germania de Tácito em latim e na versão de Gordon, um Dom Quixote da casa Garnier, as Tábuas de Sangue de Rivera Indarte, o Sartor Resartus de Carlyle, uma biografia de Amiel e, escondido atrás dos demais, um livro em brochura sobre os costumes sexuais dos povos balcânicos. Não esqueci tampouco um entardecer em um primeiro andar da praça Dubourg. - Dufour – corrigiu. - Está bem. Dufour. Te basta, tudo isto?

- Não – respondeu. -Essas provas não provam nada. Se eu estou sonhando, é natural que eu saiba o que sei. Seu catálogo prolixo é totalmente vão. A objeção era justa. Respondi: - Se esta manhã e este encontro são sonhos, cada um de nós dois tem que pensar que o sonhador é ele. Talvez deixemos de sonhar, talvez não. Nossa evidente obrigação, enquanto isto, é aceitar o sonho, como aceitamos o universo e termos sido engendrados e olharmos com os olhos e respirarmos. - E se o sonho durasse? – disse com ansiedade. Para tranqüilizá-lo e me tranqüilizar, fingi uma serenidade que certamente eu não sentia. Disse-lhe: - Meu sonho já durou setenta anos. Afinal de contas, ao rememorar, não há pessoa que não se encontre consigo mesma. É o que nos está, acontecendo agora, só que somos dois. Não queres saber alguma coisa de meu passado, que é o futuro que te espera? Assentiu sem uma palavra. Prossegui, um pouco perdido: - A mão está saudável e bem, em sua casa de Charcas y Maipú, em Buenos Aires, mas o pai morreu há uns trinta anos. Morreu do coração. Uma hemiplegia o liquidou; a mão esquerda posta sobre a mão direita era como a mão de uma criança posta sobre a mão de um gigante. Morreu com impaciência de morrer, mas sem uma queixa. Nossa avó havia morrido na mesma casa. Alguns dias antes do fim chamou-nos a todos e disse-nos: ‗‖Sou uma mulher muito velha que está morrendo muito devagar. Que ninguém se perturbe por uma coisa tão comum e corrente‖. Norah, tua irmã, se casou e tem dois filhos. A propósito, em casa como estão? - Bem. O pai sempre com seus gracejos contra a fé. Ontem à noite disse que Jesus era como os gaúchos que não querem se comprometer e que, por isto, pregava através de parábolas. Vacilou e disse:

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- E o senhor? - Não sei o número de livros que escreverás, mas sei que são demasiados. Escreverás poesias que te darão uma satisfação não partilhada e contos de índole fantástica. Darás aulas como teu pai e como tantos outros de nosso sangue. Agradou-me que nada perguntasse sobre o fracasso ou êxito dos livros. Mudei de tom e prossegui: - No que se refere à História… Houve outra guerra, quase entre os mesmos antagonistas. A França não tardou a capitular; a Inglaterra e a América travaram contra um ditador alemão, que se chamava Hitler, a cíclica batalha de Waterloo. Buenos Aires, ao redor de mil novecentos e quarenta e seis, engendrou outro Rosas, bastante parecido com nosso parente. Em cinqüenta e cinco, a província de Córdoba nos salvou, como antes Entre Rios. Agora, as coisas andam mal. A Rússia está se apoderando do planeta; a América, travada pela superstição da democracia, não se resolve a ser um império. Cada dia que passa nosso país está mais provinciano, Mais provinciano e mais presunçoso, como se fechasse os olhos. Não me surpreenderia se o ensino do latim fosse substituído pelo do guarani. Notei que mal me prestava atenção. O medo elementar do impossível, e no entanto certo, o aterrorizava. Eu, que não fui pai, senti por esse pobre moço, mais íntimo que um filho da minha carne, uma onda de amor. Vi que apertava entre as mãos um livro. Perguntei-lhe o que era. - Os possessos ou, segundo creio, Os Demônios, de Feodor Dostoiewski – me replicou não sem vaidade. - Já o esqueci. Que tal é? Nem bem o disse, senti que a pergunta era uma blasfêmia. - O mestre russo – sentenciou – penetrou mais que ninguém nos labirintos da alma eslava. Essa tentativa retórica me pareceu uma prova de que se havia acalmado.

Perguntei-lhe que outros volumes do mestre havia percorrido. Enumerou dois ou três, entre eles O Sósia. Perguntei-lhe se, ao lê-los, distinguia bem as personagens, como no caso de Joseph Conrad, e se pensava prosseguir o exame da obra completa. - A verdade é que não – respondeu-me com uma certa surpresa. Perguntei-lhe o que estava escrevendo e disse que preparava um livro de versos que se chamaria Os hinos vermelhos. Também havia pensado em Os ritmos vermelhos. - Por que não? – disse-lhe. – Podes alegar bons antecedentes. O verso azul de Rubén Darío e a canção gris de Verlaine. Sem me fazer caso, esclareceu que seu livro contaria a fraternidade entre todos os homens. O poeta de nosso tempo não pode voltar as costas à sua época. Fiquei pensando e perguntei-lhe se verdadeiramente se sentia irmão de todos. Por exemplo, de todos os empresários de pompas fúnebres, de todos os carteiros, de todos os escafandristas, de todos os que vivem nas casas de números pares, de todos os afônicos, etc. Disse-me que seu livro se referia à grande massa dos oprimidos e dos párias. - Tua massa de oprimidos e párias – respondi – não é mais que uma abstração. Só os indivíduos existem, se é que existe alguém. O homem de ontem não é o homem de hoje, sentenciou algum grego. Nós dois, neste banco de Genebra ou Cambridge, somos talvez a prova. Salvo nas severas páginas da História, os fatos memoráveis prescindem de frases memoráveis. Um homem a ponto de morrer quer se lembrar de uma gravura entrevista na infância; os soldados que estão por entrar na batalha falam do barro ou do sargento. Nossa situação era única e, francamente, não estávamos preparados. Falamos, fatalmente, de literatura; temo não haver dito outras coisas que as que costumo dizer aos jornalistas. Meu alter ego acreditava na invenção ou descobrimento de metáforas novas; eu, nas

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que correspondem a afinidades íntimas e notórias e que nossa imaginação já aceitou. A velhice dos homens e o acaso, os sonhos e a vida, o correr do tempo e da água. Expus-lhe esta opinião que haveria de expor em um livro anos depois. Quase não me escutava. De repente, disse: - Se o senhor foi eu, como explicar que tenha esquecido seu encontro com um senhor de idade que, em 1918, lhe disse que ele também era Borges? Não havia pensado nessa dificuldade. Respondi, sem convicção: - Talvez o fato tenha sido tão estranho que eu tenha tratado de esquecê-lo. Aventurou uma tímida pergunta: - Como anda sua memória? Compreendi que, para um moço que não havia feito vinte anos, um homem de mais de setenta era quase um morto. Respondi: - Costuma parecer-se com o esquecimento, mas ainda encontra o que lhe pedem. Estou estudando anglo-saxão e não sou o último da classe. Nossa conversação já havia durado demais para ser a de um sonho. Uma súbita idéia me ocorreu. - Eu posso te provar imediatamente – disse-lhe – que não estás sonhando comigo. Ouve bem este verso, que nunca leste, que eu me lembre. Lentamente entoei o famoso verso: L‘hydre – univers tordant son corps ecaillé d‘astres. Senti seu quase temeroso estupor. Repetiu-o em voz baixa saboreando cada resplandescente palavra. - É verdade – balbuciou – Eu não poderei nunca escrever um verso como este.

Antes, ele havia repetido com fervor, agora recordo, aquela breve peça em que Walt Whitman rememora uma noite compartilhada diante do mar em que foi realmente feliz. - Se Whitman a cantou – observei – é porque a desejava e não aconteceu. O poema ganha se não adivinhamos que é a manifestação de um anelo. Não a história de um fato. Ficou a me olhar. - O senhor não o conhece – exclamou. – Whitman é incapaz de mentir. Meio século não passa em vão. Sob nossa conversação de pessoas de leitura miscelânea e de gostos diversos, compreendi que não podíamos nos entender. Éramos demasiado diferentes e demasiado parecidos. Não podíamos nos enganar, o que torna o diálogo difícil. Cada um de nós dois era o arremedo caricaturesco do outro. A situação era anormal demais para durar muito mais tempo. Aconselhar ou discutir era inútil, porque seu inevitável destino era ser o que sou. De repente, lembrei uma fantasia de Coleridge. Alguém sonha que atravessa o paraíso e lhe dão como prova uma flor. Ao despertar, ali esta a flor. Ocorreu-me artifício semelhante. - Ouve – disse-lhe -, tens algum dinheiro? - Sim me replicou. – Tenho uns vinte francos. Esta noite convidei Simón Jichlinski ao Crocodile. - Diz a Simón que exercerá a medicina em Carouge e que fará muito bem… agora, me dá uma de tua moedas. Tirou três escudos de poeta e umas peças menores. Sem compreender, me ofereceu um dos primeiros. Eu lhe estendi uma dessas imprudentes notas americanas que têm valor muito diferente e o mesmo tamanho. Examinou-a com avidez. - Não pode ser – gritou. – Leva a data de mil novecentos e sessenta e quatro.

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(Meses depois, alguém me disse que as notas de banco não levam data.) - Tudo isto é um milagre – conseguiu dizer – e o milagroso dá medo. Os que foram testemunhas da ressurreição de Lázaro terão ficado horrorizados. Não mudamos nada, pensei. Sempre as referências livrescas. Fez a nota em pedaços e guardou a moeda. Eu resolvi lançá-la ao rio. O arco do escudo de praia perdendo-se no rio de prata teria conferido à minha história uma imagem vivida, mas a sorte não quis assim. Respondi que o sobrenatural, se ocorre duas vezes, deixa de ser aterrador. Propus a ele que nos víssemos no dia seguinte, nesse mesmo banco que está em dois tempos e dois lugares. Assentiu logo e me disse, sem olhar o relógio, que já era tarde. Os dois mentíamos e cada qual sabia que seu interlocutor estava mentindo. Disse-lhe que viriam me buscar.

- Buscá-lo? – interrogou. - Sim. Quando alcançares a minha idade, terás perdido a visão quase por completo. Verás a cor amarela, sombras e luzes. Não te preocupes. A cegueira gradual não é uma coisa trágica. É como um lento entardecer de verão. Despedimo-nos sem nos termos tocado. No dia seguinte, não fui. O outro tampouco terá ido. Meditei muito sobe esse encontro, que não contei a ninguém. Creio ter descoberto a chave. O encontro foi real, mas o outro conversou comigo em um sonho e foi assim que pude me esquecer. Eu conversei com ele na vigília e a lembrança ainda me atormenta. O outro me sonhou, mas não me sonhou rigorosamente. Sonhou, agora o entendo, a impossível data no dólar. Fonte: BORGES, Jorge Luis. O Livro de Areia. Porto Alegre: Editora Globo, 1978.

Antonio Brás Constante Mamãe, a Professora Sumiu!

Quantas pessoas já não pensaram em como seria bom conciliar o prazer de continuar na cama quentinha com o dever de estudar. Pois essas pessoas provavelmente terão suas preces atendidas, visto que é cada vez mais forte o movimento em prol do estudo à distância.

Uma nova forma de aprendizado que promete trazer vantagens (mas também desvantagens), algumas delas descritas neste texto.

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Podemos imaginar que mudarão as desculpas para matar a aula: ―não estava sem guarda-chuva‖, ―estava sem conexão‖. O aluno não poderá mais dar uma maçã para professora, mas poderá enviar uma mensagem para seu avaliador, cheia de anjinhos, florzinhas e até fotos de maçã. Também não terá mais graça arremessar bolinhas de papel (atirar em quem?). Os trotes escolares serão resumidos a algum tipo de vírus baixado no computador do calouro. Você não terá mais o endereço residencial de seus colegas, terá apenas o eletrônico, e eles serão reconhecidos pelo IP que usam. Todos os alunos terão carinhas de ―smales‖ e não haverá mais problemas de distância na educação (poderá dizer para sua mãe que seu coleginha é japonês, e ele será mesmo, inclusive vivendo no Japão), porém, toda esta tecnologia tornará mais distantes as relações no mundo real (este lugar quase obsoleto, onde ainda vivemos). Os ruídos de comunicação darão lugar aos erros de comunicação. Ao invés de não entender seu professor, você não entenderá o software educacional instalado em seu computador, achando que ele não gosta de você, e criando comunidades no orkut do tipo: ―Eu odeio meu computador‖. As discussões acaloradas de outrora, onde todos falavam e ninguém escutava, serão substituídas por discussões acaloradas em chats onde todos escrevem, mas ninguém lê.

As diferenças entre as classes sociais (ricos e pobres) não serão mais evidenciadas pelas roupas de grife (você poderá assistir às aulas pelado, que ninguém notará), e carros importados, mas poderão ser observadas pela potência de processamento e armazenamento das máquinas, e a velocidade da banda larga de cada um. Para que este tipo de ensino possa contemplar também públicos de renda mais baixa, haverá planos sociais de inclusão disponibilizados em lan houses. Seu histórico escolar passará a ser chamado de log, registrando todos os seus erros em uma memória tão boa quanto à de qualquer esposa. A televisão que era, em muitos casos, utilizada como forma de entretenimento e aprendizado de inúmeras crianças quando não estavam estudando, terá no computador um reforço desta técnica, criando indivíduos literalmente através de caixas pseudo-educativas. Enfim, a figura ultrapassada do professor fatalmente será substituída por uma programação de ensino e avaliação à distância, produzida por uma equipe técnica e pedagógica, que encapsulará tudo de forma fria e competente, parametrizando resultados e potencializando rendimentos, visando tornar seu público-alvo uma perfeita máquina biológica de aprendizado, mais eficiente e mais… Humana? Fontes: Recanto das Letras

Baú de Trovas Nova Friburgo 1960

I Jogos Florais de Nova Friburgo, no ano de 1960 TEMA NACIONAL/INTERNACIONAL = AMOR VENCEDORES: 1º lugar Não me chames de senhor que não sou tão velho assim, e a teu lado, meu amor,

não sou senhor. . . nem de mim! RODRIGUES CRESPO (Belo Horizonte) 2º lugar Eu amo a vida, querida, com todo o mal que ela tem! Só pelo bem – que há na vida, de se poder querer bem. ANIS MURAD (Rio de Janeiro)

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3º lugar Eu sigo na minha rota, vencido, cheio de dor. Causaram minha derrota minhas vitórias no amor. COLBERT RANGEL COELHO (Rio de Janeiro) 4º lugar Duvidas que numa trova eu encerre o nosso amor? Na hóstia tu tens a prova: Não cabe Nosso Senhor? JESY BARBOSA (Campos) 5º lugar Tua visão permanece no meu olhar. Não fugiu. O lago nunca se esquece da estrela que refletiu. RAUL SERRANO (Rio de Janeiro) 6º lugar És rico… Mas que tristeza! Tens vazio o coração… Não ter amor é pobreza mais triste que não ter pão. JESY BARBOSA (Campos) 7º lugar Se toda gente soubesse como custa querer bem, quanta gente gostaria de não gostar de ninguém. OCTAVIO BABO FILHO (Rio de Janeiro) 8º lugar Não te prendas mais à dor nem lembres quem te esqueceu pois quem quer morrer de amor vive do amor que morreu. WALTER WAENY JUNIOR (Santos) 9º lugar Toda a beleza da vida, todo o encanto dela, vem de a gente saber, querida, que é toda a vida de alguém. LEMA RIBEIRO FERREIRA (Belo Horizonte) 10º lugar Busquei no amor, não me iludo, a desventura que quis. Nesta vida, amar é tudo, é mais do que ser feliz! CLÉA MARINA CUNHA DE MENESES

MENÇÕES HONROSAS 11º Em seus olhos procurei o amor que tanto queria. Não fui feliz. Encontrei o que a outro pertencia … VERA MILWARD DE CARVALHO (Caxambu) 12º Fizemos, na vida ingrata, do nosso amor um tesouro: os filhos nos deram prata! Os netos nos deram ouro! JOSÉ MARIA MACHADO DE ARAÚJO (Português) (Rio de Janeiro) 13º Amor! Não podem dizer os versos mais inspirados o que dizem a tremer nossos dedos enlaçados … ANA ROLÃO PRETO M. ABANO (Benguela – Angola – África) 14º Esta profunda tristeza que fica, quando te vais, não é amor, com certeza: com certeza, é muito mais. ANTÔNIO NILO BORGES (Rio de Janeiro) 15º Dá meus olhos, morto, Amada, ao cego da nossa rua . Se o morto não vê mais nada, veja o cego a graça tua … CICERO COSTA (Rio de Janeiro) 16º Vou chegando ao fim da estrada e agora não mais me iludo; sem amor a vida é nada, com amor a vida é tudo. ALVARO DINIZ (Osório Dutra) (Rio de Janeiro) 17º Mal do amor ninguém me fale. Seu cativo eu fui, é certo. Libertei-me… De que vale liberdade num deserto? ORLANDO BRITO (S. Paulo)

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18º ―Tudo envelhece na vida‖ doutrinava o professor. Replica a aluna sabida: ―Exceção feita no amor.. . AMÉLIA TOMAS (Cantagalo) 19º É teu amor ouro puro, por isso sou rica assim, e as outras todas, te juro, morrem de inveja de mim. ODÉLIA BELEM BONESCHI (Niterói) 20º Sei que não foge à verdade, você também pode crer; em amor, felicidade é dar mais que receber. NICE NASCIMENTO (Rio de janeiro) A seguir, das 2.500 recebidas, mais 80 trovas selecionadas por Luiz Otávio e J.G. de Araújo Jorge, não por ordem de classificação, que compuseram as 100 finalistas: 21 Do amor, a definição varia conforme a idade. Diz o moço: é sedução. Dirá o velho: é saudade. IRACI DO NASCIMENTO SILVA (Rio de Janeiro) 22 Amor é simples afeto, mas de poder tão profundo que torna as almas unidas nos desertos deste mundo. HÉLIO GARCIA DE MATTOS (Rio de Janeiro) 23 Não há meio de esquecer este amor que anda comigo: se acordada, penso em ti, dormindo, sonho contigo. ALICE DE PAULA MORAES (S. Paulo) 24 Dentre os destinos diversos, eu prefiro o do cantor que através de lindos versos conta o mal que causa o amor. S. SUANNES (S. Paulo)

25 Bem sei que amor é tormento, mas a Deus peço um favor: ir morrendo, em fogo lento, na doce chama do amor. LÚCIA LOBO FADIGAS (Rio de Janeiro) 26 Se amor se paga com amor, como diz ditado antigo, meu benzinho, por favor, acerte as contas comigo. JORGE MURAD (Rio de Janeiro) 27 O amor todo o mundo canta: uns falam mal, outros bem. Da mulher faz uma santa, faz um demônio também. AMÉLIA TOMAS (Cantagalo) 28 Amor é gozo e tormento, mas pelo bem que me fez, de novo sofrer eu tento, desejo amar outra vez. ALIPIO PORTES (Niterói) 29 A verdade está contida nas fracas linhas da sorte: - Com amor, a morte é vida; sem amor, a vida é morte. JANUÁRIO DA SILVA FERNANDES (Rio de Janeiro) 30 Amor é sorriso e pranto, sofrimento, inspiração. . . alegria, desencanto, luz em meio à escuridão … MARIA DE LOURDES LORETTI MOTTA (Rio de Janeiro) 31 O amor chega sem aviso, sem mesmo a gente esperar. Vem nas asas de um sorriso ou na flecha de um olhar. MENANDRO THOMAZ WHATELY (Rio de Janeiro) 32 Vivem um drama completo de desespero e de dor,

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os que têm sede de afeto, os que têm fome de amor. ALVARO PARIA (Rio de Janeiro) 33 Um dia abri a janela: achei mais bonito o dia e a vida radiosa e bela… Era o amor… eu não sabia… ZAIRA DE AZEVEDO CONRADO LEITE (Rio de Janeiro) 34 Passarinho que me encantas, não cantarias assim se tivesses penas tantas como as de amor sobre mim. ODETTE TOLEDO (Rio de Janeiro) 35 Há nos destinos humanos diferenças capitais. Se muito sofre quem ama quem não ama sofre mais. OSORIO DUTRA (Rio de Janeiro) 36 Quem não souber com certeza do seu amor a extensão, consulte o grau de tristeza que causa a separação. ADÁLIA LIMA TORRES (Rio de Janeiro) 37 Amor, veneno em mistura, de conseqüência imediata: medindo a dose, ele cura, mas não medindo, ele mata! ALFREDO DE CASTRO (Pouso Alegre) 38 Dizem que o amor traz tristeza. A mim, só traz alegria. Quem ama sente a beleza que há em tudo que Deus cria. NIEDDY BEZERRIL FREDERICK (Rio de Janeiro) 39 Seria a vida um inferno e a humanidade um horror, se ao mundo, em seu giro eterno, faltasse o impulso do amor! AZEVEDO ROLIM (Niterói)

40 Não peço o céu numa prece, nem temo o inferno, querida, pois quem te amou já conhece inferno e céu nesta vida. ORLANDO BRITO (S. Paulo) 41 Amei alguém – que desdita! Morri de tanto sofrer. Ó Deus do amor, me permita Reviver, amar, morrer… GUARACY LOURENÇO COSTA (Rio de Janeiro) 42 Andei na vida tão cego por amores, que não sei quantas saudades carrego, quantas saudades deixei. CÉLIO BASTOS (Campo Belo – MG) 43 Em amor eu sou cigana, não divido com ninguém … E sendo, dele, tirana, sou dele escrava também … AIDA RODRIGUES FRANGO (Petrópolis) 44 Que importa a mágoa, o ciúme e essa angústia que te invade? Morre a flor, fica o perfume, morre o amor, fica a saudade. RAUL SERRANO (Rio de Janeiro) 45 Para a fome do desejo, neste amor que me consome, há teu beijo; mas teu beijo não mata, incrementa a fome. BITTENCOURT DE SÁ (Rio de Janeiro) 46 Sofro e choro resignado, tu nem ouves minha dor! Quanto amor desperdiçado por tanta falta de amor! … JUNQUILHO LOURIVAL (Niterói) 47 Maior que o amor mais fecundo poder na terra não há: retire-se o amor ao mundo e o mundo estacionará.

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AZEVEDO ROLIM (Niterói) 48 O amor que às vezes nos mata outras vezes vivifica, é a loucura mais sensata que o mundo inteiro pratica. LEOPOLDINA DIAS SARAIVA (Rio de Janeiro) 49 Se acaso eu fosse rainha, dava a você meu reinado; e se fosse uma andorinha, - o meu ninho no telhado - COLOMBINA (S. Paulo) 50 Não penses que estou pensando que em mim pensas com fervor: bem sei onde, como e quando tens pensamentos de amor… JOSÉ AUGUSTO DA SILVA (Rio de Janeiro) 51 No sobe-e-desce da vida, o amor, na vida da gente, é o bastão para a subida e o freio para a vertente. LÉDA DIAS DE CARVALHO (Rio de Janeiro) 52 Duas simples palavrinhas Podem formar um conceito: ―‗Eu‖ e ―tu‖, mesmo sozinhas, exprimem ―amor perfeito‖. ANTÔNIO JOSÉ AYRES (Rio de Janeiro) 53 Sobre o Amor já se tem dito muita coisa de valor; mas bem poucos, acredito, sabem mesmo o que é o Amor! A. ISAIAS RAMIRES (Rio de Janeiro) 54 Quem ama nunca está certo de amar com tranqüilidade. Tem ciúmes, se está perto; se está longe… tem saudade! AFONSO SOLANO DE OLIVEIRA (Niterói) 55 Amor me prende e maltrata, me faz sofrer noite dia, mas sem ele que me mata

mais infeliz eu seria. AGMAR MURGEL DUTRA (Rio de Janeiro) 56 Sofri… Fui cego. . . Fui louco, amando como te amei. Dei-te amor, fizeste pouco de todo o amor que te dei! … ANTONIO J. COURI (Juiz de Fora) 57 Meu amor, minha alegria, perguntas o que é sofrer! Sofrer é passar um dia inteirinho sem te ver. ANTÔNIO RIBEIRO (São Gonçalo) 58 Quando os olhares se encontram, trazendo à face o rubor, se o coração bate forte, que sorte! Nasceu o amor! ANTÔNIO SÈVEN-AVLIS PERES DOS SANTOS (Nova Friburgo) 59 O amor pra ser mais gostoso não pode ser tão pamonha: tem de ser escandaloso, cego e surdo e sem-vergonha. A. A. DE ASSIS (S. Fidélis) 60 A crer em feitiço chego, pois desde, ó flor, que te vi, nunca mais tive sossego, só vivo pensando em ti! ARIPIO FORTES (Niterói) 61 Pedi a Deus que me desse um grande amor nesta vida; Ele ouviu a minha prece. Apareceste, querida! ARMANDO PERCIVAL (Rio de Janeiro) 62 Levando a felicidade de meus passados amores, Ievo o esquife da saudade todo enfeitado de flores. BITTENCOURT DE SÁ (Rio de Janeiro) 63 É mudo, tristonho e frio

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um coração sem amor, é como o ninho vazio, igual à jarra sem flor. CARLOS ALBERTO DA COSTA GUEDES (Niterói) 64 Bons tempos, quando eu sorria dos que choravam de amor, sem prever que ele seria o meu futuro senhor. CLÉO CARVALHO GOMES (Rio de Janeiro) 65 Se nunca eu te conhecesse, como eu iria supor que o meu destino fosse esse de fazer versos de amor? CLODOALDO D‘ALINCOURT (Rio de Janeiro) 66 Não me digas que não amas, que jamais amaste alguém! Amor é tal qual a Morte… É mal de todos, também! CONCEIÇÃO DE OLIVEIRA (S. Luís – Maranhão) 67 Felizes os trovadores, romancistas de quadrinhas, que fazem de seus Amores romances de quatro linhas. DURVAL MENDONÇA (Rio de Janeiro) 68 Viver sem amor, bobagem, é como missa sem vinho, capelinha sem imagem e mato sem passarinho. EDIGAR DE ALENCAR (Rio de Janeiro) 69 Vós tendes na mão, Senhora, a chave da minha sorte: vosso amor é minha vida e vosso desprezo, a morte. ESDRAS ACIOLI (Rio de Janeiro) 70 Amor – sentir que nasceu de oculto poder eterno, possuindo algo de céu com pedacinhos de inferno…

GERALDO PIMENTA DE MORAIS (Pouso Alegre) 71 Vive-se pobre, algemado à vida, em pleno declive, vive-se ao léu, maltratado, mas sem amor ninguém vive! GILBERTO DE SOUZA LIMA (Rio de Janeiro) 72 Se o mal do amor, algum dia, não mais prendesse ninguém, muita dor se apagaria… mas quanto riso também! HÉLIO N. MARTINS (Rio de Janeiro) 73 Meu amor eu te asseguro que estou tão bem a teu lado que lamento que o Futuro mude o Presente em Passado. HERMÊ LUZ (Rio de Janeiro) 74 Coração que tanto bates por alguém que muito queres: não te canses, não te mates, nem te fies nas mulheres! HUGO DE ALVARENGA PEIXOTO (Rio de Janeiro) 75 Amor se dá, não se vende, não se compra, não se empresta… Quem o compra, se arrepende e, quem o vende, não presta. IRACI DO NASCIMENTO E SILVA (Rio de Janeiro) 76 O amor (que a todos nivela) nos tornou tão desiguais: fez-se fútil, tagarela, e a mim – fez triste demais! IVAN VON WREDENN DIAS (Rio de Janeiro) 77 O céu te deu a beleza, o sol te deu o fulgor, o mundo te deu riqueza, eu, porém, te dei amor! J. GOMES VIANNA (Rio de Janeiro)

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78 O beijo que tu me deste teve tão grande sabor, que pude sentir nos lábios o gosto de teu amor! JADIR VILELA DE SOUZA (Divinópolis – MG) 79 Amor – é doce de coco, nunca a ninguém satisfaz … Quem prova, gosta e acha pouco, pede outra vez … e quer mais. JAMIL EL-JAICX (Nova Friburgo) 80 Amor, palavra encantada que nasce de um gesto mudo, é o tudo que é quase nada … é o nada que é quase tudo … JOÃO FELICIO DOS SANTOS (Rio de Janeiro) 81 Canção da vida, beleza, saudade, mistério e dor, sendo alegria ou tristeza quem vive sem ter amor? JOSÉ HENRIQUE GIRÃO (Rio de Janeiro) 82 Um dia – Deus sabe quando terminará minha dor, a dor de viver chorando por amor do meu amor! JOÃO MATTOSO (Juiz de Fora) 83 As flechas do amor perfeito Cupido nos apontou: - a minha atingiu-me o peito; a tua se desviou… JOÃO VICENTE DA COSTA (Rio de Janeiro) 84 Sem ti, não vivo tristonho, nem minha sorte maldigo… Pelo milagre do sonho eu passo as noites contigo. JOSÉ LOURENÇO (Barra Mansa – RJ.) 85 Achar amor não nos custa, como perder, também não. Amor é qual flor de estufa, conservá-lo, eis a questão!

MARIA HELENA ALVES PORTILHO (Rio de Janeiro) 86 Grande contraste, de fato, há na história de nós dois: o amor – passou como um jato… Saudade – em carro de bois. . . MARIA DE LOURDES LORETTI MOTTA (Rio de Janeiro) 87 Amor que trazes tristeza, Amor que fazes cantar. Se és toda a minha riqueza, por que vivo a mendigar? MARIA ISABEL MIRANDA (Rio de Janeiro) 88 Amor – eu não te sabia espreitando os passos meus. Descuidei-me um certo dia … Acordei nos braços teus! MARIA SAMPAIO PRUDENTE DE MORAIS (Rio de Janeiro) 89 Nos cabelos de meu bem é sempre noite fechada. Há no seu rosto, porém, uma eterna madrugada. MENANDRO WHATELY (Rio de Janeiro) 90 Amor é luz de candeia, é festa de encantamento. Parece um sino de aldeia num dia de casamento. MERCÊS MARIA MOREIRA (Belo Horizonte) 91 Amor no peito entranhado extirpar não queiras não. Pois o amor traz, se arrancado, pedaços do coração. MILVIO MARCIO PIACESI (Rio de Janeiro) 92 De dois modos pode a gente, quando ama, ser mais feliz: - guardando aquilo que sente, - medindo aquilo que diz… OCTAVIO ISMAELINO (Rio de Janeiro)

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93 Palavra bem pequenina, de mistério tão profundo, o amor é a força que anima tudo que existe no mundo. OSWALDO FRANCISCO COSTA (Niterói) 94 Amor é paz e clemência, sol na Terra-Prometida, a bênção da Providência e a razão de nossa vida. PAULA FARIA (Rio de Janeiro) 95 Tento esquecer teu amor. Mas, confesso, tento em vão: - Querer é desejo meu, poder é do coração! PEDRO MANHÃES (Campos) 96 Meu amor é tão profundo que você mesma nem crê; é tanto, meu bem, que o mundo, para mim, é só você. REGINALDO SILVA (Rio de Janeiro)

97 Nosso amor foi certo dia tão sincero, tão profundo, que toda gente dizia não ser coisa deste mundo. REMY PRATES PINHEIRO (Rio de Janeiro) 98 As trovinhas que te envio, pobre presente de um triste, são pedaços arrancados do coração que partiste… SEBASTIÃO PAULO DO VALLE (Vitória) 99 Dizem que o amor cega a gente, não creio neste gracejo, pois comigo é diferente: mesmo sonhando te vejo. VICENTE GUIMARÃES (Rio de Janeiro) 100 Quando desperto contente e às coisas serias não ligo, adivinha toda gente que é porque sonhei contigo. LEOPOLDINA DIAS SARAIVA (Rio de Janeiro) Fonte: Blog Vendaval das Letras

Antonio Brás Constante

A Partida Do Homem Mais Veloz Do Mundo

Ele era considerado o melhor maratonista do mundo. Possuía diversos títulos, medalhas e troféus. Nunca havia perdido uma única corrida. Era tão veloz que não havia adversários que pudessem acompanha-lo. Foi ficando arrogante. Não encontrava desafios dignos de sua pessoa. Dentre os prêmios conquistados, ganhou uma viagem para uma cidadezinha do interior. A cidade era localizada em um país distante, com hospedagem em um hotel de luxo, utilizado para conferencias internacionais. Como estava cansado e entediado, resolveu aceitar a viagem.

Ao chegar ao vilarejo da cidade onde se localizava o hotel, ficou sabendo que aquele lugar era rodeado por crenças e superstições. Um lugar místico. ―Um monte de bobagens‖ ele pensou, pois não acreditava em nada. Após se registrar no hotel, foi direto para seu quarto. Jogou-se na cama, percebendo que havia deitado em cima de alguma coisa. Era um panfleto sobre uma corrida que iria acontecer na cidade. Um sorriso cruel preencheu seus lábios, ao imaginar a humilhação que poderia causar aqueles caipiras se resolvesse participar da corrida e deixar todos os demais competidores a

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quilômetros de distância. Pensou que seria divertido aquilo e resolveu se inscrever. O evento era patrocinado pelo Hotel. Todos os competidores receberam um abrigo com capuz para corrida, com o número do corredor na frente e o nome do hotel escrito nas costas. A corrida seria por dentro de uma trilha que cruzava a floresta. Não haveria risco de se perderem, pois era uma única trilha, bastante regular e ampla o suficiente para comportar os corredores. Dada a largada ele foi passando com facilidade por todos os outros atletas, até conseguir ficar a uma boa distância deles, sumindo por entre as árvores. A floresta era fechada. Um ar suave penetrava por suas narinas enquanto ia vencendo os quilômetros do trajeto. Foi então que percebeu alguém correndo na sua frente. Ele de inicio não acreditou. Achara que já havia passado por todos os demais competidores. Aquele corredor devia ter entrado na competição em alguma parte do caminho, achando que assim poderia levar vantagem sobre os outros. Isto até seria possível se ele não fosse um dos competidores. Passaria pelo trapaceiro e no final da corrida avisaria os organizadores sobre o caso. O homem a sua frente era muito veloz. Por mais que aumentasse seu ritmo não conseguia alcança-lo. Aquele corredor era incrível. Nunca tinha visto alguém correr tão rápido, conseguindo se manter à frente dele por tanto tempo. O corredor misterioso só poderia estar drogado para se manter correndo tão rápido. Mas sua determinação era mais forte. Foi forçando suas passadas, e aos poucos se aproximando do outro corredor. O coração se acelerando com o esforço. O suor escorrendo pelo seu rosto. Começou a escutar passos atrás de si. Seria outro corredor? Sim, e era alguém que ia se aproximando dele aos poucos. Que loucura. Se não bastasse ter encontrado um corredor tão rápido quanto ele, agora aparecia outro tentando ultrapassa-lo. A floresta passou a ficar ainda mais escura e assustadora. Um calafrio percorreu todo seu

corpo, sinalizando o medo de encontrar alguém melhor do que ele. De perder sua fama de invencível. De ser derrotado por meros camponeses de um lugarejo perdido no mapa. Não poderia aceitar aquela humilhação. Ele venceria aquela competição a qualquer custo. Já estava a poucos metros do homem a sua frente. Infelizmente sentia a aproximação do outro nas suas costas ensopadas de suor. O ar parecia estar faltando em seus pulmões. O excesso de esforço trazendo cãibras nas suas pernas. Dores nas costelas. O suor aflorando como uma vertente que escorria por todo seu corpo. A cada passada a distância diminuía, e os três mais próximos ficavam. A visão passou a ficar embaçada. O coração parecia querer explodir em seu peito. Não podia parar. Tinha que vencer. Já estava tão perto que quase podia ver o rosto do outro corredor. Intensificou ainda mais seu ritmo. Mas, por incrível que pareça quando ele fazia isto os outros dois faziam o mesmo. Quase como se lessem seus pensamentos. A luta do homem contra seus limites estava sendo travada a cada momento. Nunca em todas as suas outras disputas havia corrido tão rápido. Parecia voar pelo caminho. A distância do primeiro corredor era agora tão pequena que podia toca-lo com o braço se assim desejasse e foi o que tentou fazer. Ao longe se podia vislumbrar o final do percurso e os sons distantes das pessoas que gritavam em torcida. Esticou o braço e pousou a mão no competidor que seguia em primeiro lugar. Já se encontrava praticamente ao seu lado. Foi neste momento que também sentiu algo em seu ombro. Por reflexo se virou. Mas ainda pôde ver de relance o rosto do homem na sua frente, para enfim enxergar o homem atrás de si que também se virava e ao lado dele havia outros. Seus olhos se arregalaram de horror ao ver sua própria face nos rostos daqueles homens, como se estivesse em uma sala de espelhos. O coração falhou. O ar abandonou de vez seus pulmões. Suas passadas, porém continuaram.

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A floresta se abriu. Tudo girava ao seu redor. Sentiu a faixa da linha de chegada rasgar em contato com seu peito. Caiu no chão. Aos poucos foi perdendo a consciência. Já quase desmaiado, escutou passos de pessoas correndo ao seu encontro. Sua vista escureceu. A respiração parou.

Ele morreu, mas entrou para a história, por ter batido seu próprio recorde, um recorde praticamente impossível de se vencer. Ganhou de si mesmo, consagrando-se o homem mais veloz do mundo. O preço da vitória, porém, foi alto, já que para ganhar de si mesmo, teve que perder a vida… Fonte: Recanto das Letras

Obras de Shakespeare no

Cinema

Seus textos literários são verdadeiras obras de arte e permaneceram vivas até hoje, onde são retratadas freqüentemente pelo teatro, televisão, literatura e cinema. As principais obras do bardo inglês foram transpostas para o cinema – segundo o ―Guinness Book‖ é o autor com maior número de adaptações para a tela (para o cinema e tv são 736 adaptações) -, principalmente ―Hamlet‖ e ―Romeu e Julieta‖.

Até o cinema brasileiro já se inspirou nele, justamente com a tragédia ―Romeu e Julieta―, que serviu de paródia na chanchada ―Um Candango na Belacap―, de Roberto Farias, 1961; na comédia ―O Casamento de Romeu e Julieta―, de Bruno Barreto, 2005, com Luana Piovani e Marco Ricca; e no drama ―A Herança―, 1970, de Ozualdo Candeias.

Baseados na tragédia ―Romeu e Julieta‖: ―Amor Sublime Amor―, de Robert Wise, 1961, com Richard Beymer e Natalie Wood; ―Romeu e Julieta―, de George Cukor, 1936, com Norma Shearer e Leslie Howard; ―Romeu e Julieta―, de Renato Castellani, 1954 com Laurence Harvey; ―Romanoff e Julieta―, de Peter Ustinov, 1961, com Sandra Dee e John Gavin; ―Romeu e Julieta―, de Franco Zeffirelli, 1968, com Olivia Hussey e Leonard Whiting; ―Romeo + Juliet―, de Baz Luhrmann, 1996, com Leonardo di Caprio e Claire Danes.

Baseados na tragédia ―Hamlet‖: ―Hamlet―, de Laurence Olivier, 1948, com Laurence Olivier;

―Homem Mau Dorme Bem―, de Akira Kurosawa, 1960; ―Hamlet―, de Grigori Kozintsev, 1964, com Innokenti Smoktunovski; ―Hamlet―, de Bill Colleran e John Gielgud, 1964, com Richard Burton; ―Hamlet―, de Tony Richardson, 1969; ―Hamlet―, de Franco Zeffirelli, 1990, com Mel Gibson e Glenn Close; ―Rosencrantz e Guilderstern Estão Mortos‖, de Tom Stoppard, 1990, com Gary Oldman e Richard Dreyfuss; ―Hamlet―, de Kenneth Branagh, 1996, com Kenneth Branagh e Kate Winslet; ―Hamlet―, de Michael Almereyda, 2000, com Ethan Hawke e Julia Stiles; ―O Banquete―, de Feng Xiaogang, 2006.

Baseados na comédia ―A Megera Domada‖: ―A Megera Domada―, de 1929, com Mary Pickford e Douglas Fairbanks; ―A Megera Domada―, de Franco Zeffirelli, 1967, com Elizabeth Taylor e Richard Burton; ―Dá-me um Beijo―, de George Sidney, 1953, com Howard Keel e Kathryn Grayson; ―Dez Coisas Que Eu Odeio em Você―, de Gil Junger, 1999, com Julia Stiles; ―A Megera Domada―, de David Richards, 2005.

Baseado na comédia ―A Tempestade‖: ―Céu Amarelo―, de William A. Wellman, 195 com Gregory Peck; ―Planeta Proibido―, de Fred M. Wilcox, de 1956, com Walter Pidgeon e Anne Francis; ―A Tempestade―, de Derek Jarman, 1979,

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―A Tempestade―, de Paul Mazursky, 1982, com Gena Rowlands e John Cassavetes; ―A Última Tempestade―, de Peter Greenaway, 1991, com John Gielgud.

Baseados na tragédia ―Otelo, o Mouro de Veneza‖: ―Othello―, 1952, de Orson Welles, 1952, com Orson Welles; ―Otelo―, de Sergei Yutkevich, 1955, com Sergei Bondarchuk; ―Othello―, de Oliver Parker, 1995, com Laurence Fishburne; ―Jogo de Intrigas―, de Tim Blake Nelson, 2001, com Josh Artnett e Julia Stiles.

Baseados na comédia ―Sonho de uma Noite de Verão‖: ―Sonho de uma Noite de Verão―, de William Dieterle e Max Reinhardt, 1935, com James Cagney e Olivia de Havilland; ―Sonho de uma Noite de Verão―, de Woody Allen, 1982, com Woody Allen e Mia Farrow; ―Sonho de uma Noite de Verão―, de Michael Hoffman, 1999, com Kevin Kline e Michelle Pfeiffer.

Baseados na tragédia ―Macbeth‖: ―Macbeth―, de Orson Welles, 1948, com Orson Welles; ―Trono Manchado de Sangue―, de Akira Kurosawa, 1957; ―Macbeth―, de Roman Polanski, 1971, com Jon Finch ―Homens de Respeito―, de William Reilly, 1991, com John Turturro. Baseado na tragédia ―Rei Lear‖: ―Rei Lear―, de Petrer Brook, 1971, com Paul Scoffield; ―Rei Lear―, de Grigori Kozintsev, 1971; ―Ran―, de Akira Kurosawa, 1958;

―Terras Perdidas―, de Jocelyn Moorhouse, 1997, com Michelle Pfeiffer, Jessica Lange e Colin Firth. Baseados na tragédia ―Júlio César‖: ―Júlio César―, de David Bradley, 1950, com Charlton Heston; ―Júlio César―, de Joseph L. Mankiewicz, 1953, com Marlon Brando; ―Júlio César―, de Stuart Burge, 1970, com John Gielgud.

Baseados na comédia ―O Mercador de Veneza‖: ―O Mercador de Veneza―, de John Sichel, 1973, com Laurence Olivier; ―O Mercador de Veneza―, de Michael Radford, 2004, com Jeremy Irons e Al Pacino.

Baseados na comédia ―Como Gostais‖: ―Como Gostais―, 1936, de Paul Czinner, 1936, com Laurence Olivier; ―Como Quiser―, de Kenneth Branagh, 2006, com Kevin Kline.

Baseado na comédia ―Muito Barulho Por Nada‖: ―Muito Barulho Por Nada―, de Kenneth Branagh, 1993, com Emma Thompson e Keanu Reeves. Baseado na tragédia ―Antônio e Cleópatra‖: ―À Sombra das Pirâmides―, de Charlton Heston, 1972, com Charlton Heston. Baseado na comédia ―Noite de Reis‖: ―Ela É o Cara―, de Andy Fickman, 2006, com Amanda Bynes.

Shakespeare ainda foi personagem em ―Shakespeare Apaixonado―, de John Madden, 1982, interpretado por Joseph Fiennes. Fonte: Blog Demais

Antonio Brás Constante Contos da Delegacia Brasil

- Alô? Aqui é da Delegacia Brasil, policial Farrapos falando.

- Socorro! Ladrões estão tentando arrombar a minha casa.

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- Nossa que horror. Acabei de atender outro cidadão que tinha o mesmo problema da senhora. Que mundo violento… - Olha, preciso de uma viatura aqui e agora! - Infelizmente não posso lhe ajudar. É que a única viatura que temos está estragada. E mesmo que funcionasse, faz tempo que o tanque dela está vazio. Mas o pior é que como não temos garagem aqui, a viatura tem que ficar na rua. A senhora acredita que outro dia roubaram as rodas dela? Hoje em dia não respeitam nem a policia… - O senhor tem que me ajudar! Mande os policiais de táxi então. Eu pago. - Mandaria, se houvesse outros policiais, mas com os cortes públicos na área de segurança, eu sou o único policial de plantão aqui hoje aqui. E se abandonar meu posto, quem vai atender as ocorrências? - Mas, o que eu faço então? - A senhora já tentou acender a luz e fazer barulho? Muitos meliantes fogem quando percebem que tem pessoas em casa. Ou tente negociar com eles, quem sabe se a senhora der alguma colaboração, eles não desistem do assalto?

- O senhor é um louco?! Vou negociar com eles sim. E dizer para irem até aí, assaltar o senhor e levarem a sua arma, Que pelo visto não serve para nada mesmo. - A única arma que eu tinha, doei para a campanha do desarmamento, pois estava enferrujada e sem munição. Com esta atitude espero estar fazendo a minha parte para um mundo menos violento. Se lhe serve de consolo, alguns meliantes já vieram aqui e levaram tudo que tinha na delegacia. Só sobrou um banquinho que trouxe de casa, e este telefone velho, que de tão velho foi deixado para trás. - Ao menos então anote a ocorrência, para que eu possa acionar o seguro depois. - Como lhe disse antes, aqui não tem nada além do banquinho e do telefone. Não tenho caneta, minha senhora. E o único papel que eu tinha, tive que utilizar em uma emergência estomacal, lá no banheiro. - Meu Deus! Eles entraram! Alô? Alô? Policial? - [Esta é uma gravação, o telefone para o qual ligou, acaba de ser cortado por falta de pagamento. ‗CLICK‘] Fonte: Recanto das Letras

Antonio Brás Constante

Hoje é seu Aniversário! "Prepare-se"

Livro de Crônicas, que pretende ser um genérico ao do escritor Luis Fernando Veríssimo (também é fã do Veríssimo), ou seja, autor diferente, mas com o mesmo princípio ativo: O HUMOR. Os textos são temperados com generosas pitadas humorísticas, para jovens dos oito aos oitenta anos e também de outras faixas etárias. Textos leves e similares a uma ave-maria (pois eles também são cheios de graça), que poderão ser saboreados até a última letra.

Caso queira conhecer um pouco mais sobre seu trabalho como escritor basta acessar o site: http://recantodasletras.uol.com.br/autores/abrasc Os exemplares do livro poderão ser adquiridos no site da editora AGE: http://www.editoraage.com.br/ .

Antonio Brás Constante Antonio Brás Constante é natural de Porto Alegre. Residente em Canoas RS. Bacharel em computação, bancário e cronista de coração,

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escreve com naturalidade, descontraída e espontaneamente, sobre suas idéias, seus pontos- de- vista, sobre o panorama que se descortina diferente a cada instante, a nossa

frente: a vida. Membro da ACE (Associação Canoense de Escritores). Fonte: O autor.

Luis Fernando Veríssimo Metamorfose

Quando Gregório Souza acordou certa manhã de uma noite mal dormida cheia de sonhos perturbadores, olhou seus pés que emergiam da outra extremidade da coberta curta e viu que tinha se transformado em Franz Kafka. Na verdade, levou algum tempo para descobrir quem era. Começou certificando-se que aqueles pés, decididamente, não eram os dele. Examinou-os com interesse e deduziu que eram pés da Europa Central, possivelmente checos. Mas só quando sua mãe entrou no quarto e ele respondeu ao seu ―bom-dia!‖ em checo, espantando-se tanto quanto a ela, deu-se conta de quem era. Não sabia explicar como acontecera aquilo. Não só ele era Kafka como toda a situação era puro Kafka. Sua mãe gritando, perguntando quem ele era e o que estava fazendo na cama do seu filho – pelo menos ele imaginava que era isto que ela dizia, pois não conseguia entendê-la – e ele, apalpando-se, ao mesmo tempo assustado e maravilhado, eu Franz Kafka! Levantou-se da cama e foi se olhar no espelho, enquanto sua mãe corria do quarto para chamar seu pai, que chamou a polícia, que veio e cercou o prédio errado, causando uma enorme confusão no trânsito e ferimentos a bala em três pessoas, e viu que era mesmo Franz Kafka, com as olheiras e tudo. Foi preso. Tentou inutilmente se comunicar com os policiais mas nenhum falava checo ou alemão. Tentaram levá-lo para a delegacia no carro da polícia, mas nada se mexia no trânsito engarrafado e um camelô meteu a cabeça para dentro do carro e ofereceu ―Saquinho de limão, doutor? Limpador de pára-brisa? Assistência legal?‖, que Kafka aceitou, tanto que quando os policiais decidiram bater nele

ali mesmo e jogá-lo na calçada foi seu advogado que o levou a um hospital, onde ele esperou uma hora na fila de um guichê só para dizer se era conveniado ou se era pelo SUS. Em seguida, foram à repartição competente para regularizar sua situação como estrangeiro no país e quando Kafka indicou, com gestos, que não tinha dinheiro para pagar seus serviços, já que a carteira de Gregório Souza estava vazia, o advogado sorriu, levantou a palma da mão e disse ―Xacomigo‖. Com a situação de Kafka regularizada por meio de uma propina e um documento de identidade provisório para seu cliente comprado de outro camelô, o advogado daria entrada com um pedido de pensão da Previdência Social, pois o fato de ter-se transformado em checo da noite para o dia o abalara psiquicamente, e os dois ganhariam uma fortuna, ainda mais que o advogado tinha um cúmplice na previdência que acrescentava zeros às guias de pagamento, quanto zeros se quisesse. A todas estas Kafka tomava notas, maravilhado. Em casa, Kafka conseguiu acalmar os pais de Gregório e, com paciência, recorrendo a algumas palavras em inglês que sabia, explicou o que tinha acontecido. Para sua sorte – e para a sua surpresa, pois antes de morrer dera ordens para que toda sua obra fosse queimada – havia um livro de Kafka numa prateleira do quarto de Gregório, com sua fotografia na capa, e os pais acabaram compreendendo que aquilo tudo era um tipo de acontecimento literário, talvez uma parábola, e que Gregório não corria perigo,

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salvo o de perder seu emprego na companhia de seguros. Adotaram o filho substituto. E com sua situação doméstica resolvida, o português que aprendeu ouvindo as novelas e lendo as traduções dos seus próprios livros e o dinheiro que o advogado conseguiu da Previdência – R$ 500 milhões – Kafka se sentiu em condições

de recomeçar a carreira literária interrompida com sua morte. Comprou um computador e preparou-se para escrever o seu primeiro livro brasileiro, apenas duvidando que estivesse à altura da tarefa. Fontes: COSTA, Flávio Moreira da (organizador). Os 100 Melhores Contos de Humor da Literatura Universal. 5.ed. RJ: Ediouro, 2001.

Victor Giudice

O Arquivo

Já no seu livro de estréia, O Necrológio (1971), o carioca

Victor Giudice nos revelava esta pequena obra-prima que é O Arquivo, na qual o imaginário do autor consegue fundir tão bem o fantástico com o humor, como um bom discípulo

de Kafka, Dino Buzzati ou Cortázar. Giudice escreveu outros livros de contos, além do romance Bolero. Foi crítico

de música clássica do Jornal do Brasil. Morreu antes de consolidar sua obra.

================= No fim de um ano de trabalho, João obteve uma redução de quinze por cento em seus vencimentos. João era moço. Aquele era seu primeiro emprego. Não se mostrou orgulhoso, embora tenha sido um dos poucos contemplados. Afinal, esforçara-se. Não tivera uma só falta ou atraso. Limitou-se a sorrir, a agradecer ao chefe. No dia seguinte, mudou-se para um quarto mais distante do centro da cidade. Com o salário reduzido, podia pagar um aluguel menor. Passou a tomar duas conduções para chegar ao trabalho. No entanto, estava satisfeito. Acordava mais cedo, e isto parecia aumentar-lhe a disposição. Dois anos mais tarde, veio outra recompensa. O chefe chamou-o e lhe comunicou o segundo corte salarial.

Desta vez, a empresa atravessava um período excelente. A redução foi um pouco maior: dezessete por cento. Novos sorrisos, novos agradecimentos, nova mudança. Agora, João acordava às cinco da manhã. Esperava três conduções. Em compensação, comia menos. Ficou mais esbelto. Sua pele tornou-se menos rosada. O contentamento aumentou. Prosseguiu a luta. Porém, nos quatro anos seguintes, nada de extraordinário aconteceu. João preocupava-se. Perdia o sono, envenenado em intrigas de colegas invejosos. Odiava-os. Torturava-se com a incompreensão do chefe. Mas não desistia. Passou a trabalhar mais duas horas diárias. Uma tarde, quase ao fim do expediente, foi chamado ao escritório principal. Respirou descompassado. - Seu João. Nossa firma tem uma grande dívida com o senhor. João baixou a cabeça em sinal de modéstia. - Sabemos de todos os seus esforços. É nosso desejo dar-lhe uma prova substancial de nosso reconhecimento.

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O coração parava. - Além de uma redução de dezesseis por cento em seu ordenado, resolvemos, na reunião de ontem, rebaixá-lo de posto. A revelação deslumbrou-o. Todos sorriam. - De hoje em diante, o senhor passará a auxiliar de contabilidade, com menos cinco dias de férias. Contente? Radiante, João gaguejou alguma coisa ininteligível, cumprimentou a diretoria, voltou ao trabalho. Nesta noite, João não pensou em nada. Dormiu pacífico, no silêncio do subúrbio. Mais uma vez, mudou-se. Finalmente, deixara de jantar. O almoço reduzira-se a um sanduíche. Emagrecia, sentia-se mais leve, mais ágil. Não havia necessidade de muita roupa. Eliminara certas despesas inúteis, lavadeira, pensão. Chegava em casa às onze da noite, levantava-se às três da madrugada. Esfarelava-se num trem e dois ônibus para garantir meia hora de antecedência. A vida foi passando, com novos prêmios. Aos sessenta anos, o ordenado equivalia a dois por cento do inicial. O organismo acomodara-se à fome. Uma vez ou outra, saboreava alguma raiz das estradas. Dormia apenas quinze minutos. Não tinha mais problemas de moradia ou vestimenta. Vivia nos campos, entre árvores refrescantes, cobria-se com os farrapos de um lençol adquirido há muito tempo. O corpo era um monte de rugas sorridentes. Todos os dias, um caminhão anônimo transportava-o ao trabalho. Quando completou quarenta anos de serviço, foi convocado pela chefia: - Seu João. O senhor acaba de ter seu salário eliminado. Não haverá mais férias. E sua

função, a partir de amanhã, será a de limpador de nossos sanitários. O crânio seco comprimiu-se. Do olho amarelado, escorreu um líquido tênue. A boca tremeu, mas nada disse. Sentia-se cansado. Enfim, atingira todos os objetivos. Tentou sorrir: - Agradeço tudo que fizeram em meu benefício. Mas desejo requerer minha aposentadoria. O chefe não compreendeu: - Mas seu João, logo agora que o senhor está desassalariado? Por quê? Dentro de alguns meses terá de pagar a taxa inicial para permanecer em nosso quadro. Desprezar tudo isto? Quarenta anos de convívio? O senhor ainda está forte. Que acha? A emoção impediu qualquer resposta. João afastou-se. O lábio murcho se estendeu. A pele enrijeceu, ficou lisa. A estatura regrediu. A cabeça se fundiu ao corpo. As formas desumanizaram-se, planas, compactas. Nos lados, havia duas arestas. Tornou-se cinzento. João transformou-se num arquivo de metal.

Victor Giudice (1934 – 1997)

Victor Marino del Giudice nasceu em Niterói, no dia 14 de fevereiro de 1934. Seus pais eram artesãos: Marino Francisco del Giudice, de origem italiana, fabricava chapéus enquanto ainda se usavam chapéus; Dona Mariannalia del Giudice, católica, era exímia bordadeira, com suas mãos ―barrocas‖ de ―fada branquíssima‖, como o filho a descreveria (ou fantasiaria) no conto Minha mãe. A maneira como se referia aos pais pela ausência, presente também no conto A única vez, este sobre o pai, só faz enfatizar a importância da tia Elza, professora de piano com quem o pequeno Victor convivia mais intensamente e a quem chamava de ―mãe‖. Quando Victor tinha cinco anos, a família mudou-se para o bairro de São Cristóvão, no Rio, que se tornaria seu ―país‖ ficcional e referência de origem para sempre. ―Quando se nasce e se cresce em São Cristóvão, logo se

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aprende que em São Cristóvão todas as coisas são de São Cristóvão‖, diria o personagem semi-autobiográfico do seu conto A glória no São Cristóvão. Victor foi um menino popular, que magnetizava os colegas de rua com suas histórias. Começou, portanto, a se desenvolver na infância uma das facetas mais sedutoras de sua personalidade carismática. Com as astúcias de um legítimo entertainer, que mistura lembrança e invenção de maneira indistinguível, ele enredou pela vida afora todos os que cruzaram seu caminho. Aos cinco anos de idade, ele já aprendia a amar a grande música. O pai o levava ao Teatro Municipal do Rio para ver em ação o célebre maestro Arturo Toscanini. Com a tia Elza iniciou os estudos de piano e canto, que mais tarde aprofundaria com professores renomados. Aos nove anos, frequentava recitais de piano e óperas. Aos 11, leu alguns volumes da censurada Coleção Verde, de romances eróticos, e uma descoberta revolucionou o seu futuro: escrever era um prazer. Foi quando Victor produziu o primeiro dos seus contos, Os três suspiros de Helena. O gosto pelas letras nunca mais o abandonou. Seguiram-se leituras de Rider Haggard, Conan Doyle, Poe, Camões, Sartre, Machado de Assis. Balzac – cuja obra foi devorada nas incursões de adolescente às estantes da biblioteca do vizinho e futuro sogro, Dr. Azevedo Lima, patriarca de uma família numerosa – tornou-se uma paixão eterna. Aliás, começou ali o namoro com Leda, a filha caçula e hoje professora de literatura, com quem se casaria e teria os filhos Maurício, matemático, e Renata, jornalista. Victor formou-se em Letras pela UERJ em 1975, depois de cursar parcialmente Ciências Estatísticas nos anos 1950 e Direito nos anos 1960. Sua segunda mulher, Eneida Santos, foi uma colaboradora devotada e a primeira leitora de todos os seus rascunhos a partir de 1984. O Édipo Rei, de Sófocles, lido aos 12 anos, revelou-lhe o fascínio das histórias de mistério. Com os seriados do Cinema Fluminense, compreendeu o valor do suspense e da imprevisibilidade, atributos que iriam impregnar toda a sua obra literária. Os perigos de Nyoka, O Fantasma, Flash Gordon, Capitão Marvel, Império submarino – as chamadas ―fitas em série‖ – figuram entre os primeiros

objetos de cinefilia de Victor. Filmes dos franceses Henri-Georges Clouzot e André Cayatte também alinham-se entre suas influências inaugurais. Por volta dos 13 anos, as visitas freqüentes aos estúdios da Cinédia lhe renderam uma ponta no filme Pinguinho de gente, de Gilda de Abreu. Bem mais tarde, tornou-se aluno da famosa atriz Dulcina, com quem aprendeu os mistérios da interpretação. No entanto, Victor sempre foi um ator nato, além de imitador impagável. Suas performances-relâmpago ou a compenetrada declamação dos poemas do português Antonio Nobre eram um deleite para quem tinha a sorte de estar por perto. A cinefilia infantil se perpetuaria na vida adulta, com um afeto especial pelo cinema clássico europeu: Visconti, Fellini, os primeiros filmes de Monicelli, os de Totò, Carné, Clouzot, as comédias inglesas dos anos 40 e 50 e a nobreza de Laurence Olivier à frente de adaptações shakespearianas como Ricardo III. Já o cinema americano era capaz de lhe despertar sentimentos conflitantes. Ao mesmo tempo em que admirava a eficiência e verossimilhança de suas narrativas, abominava seus chavões e a superficialidade na abordagem dos temas. Os filmes de Orson Welles e grandes musicais como O mágico de Oz, Cantando na chuva e Um americano em Paris estavam acima de qualquer restrição. Quanto ao cinema nacional, irritava-se com freqüência diante dos sinais de amadorismo que o infestavam até o final da década de 70. Apesar de não ter concretizado nenhum projeto nessa área – o final dos 60 e começo dos 70 registram uma obscura experiência de curta-metragem e alguns audiovisuais didáticos – , Victor gostava de rascunhar eletrizantes prólogos de filmes imaginários, capazes de deixar eventuais leitores com água na boca. O desenho e a fotografia também o atraíram desde muito cedo. A começar pelos ladrilhos da casa, que ele, subversivamente, estimulava os companheiros de infância a decorar com seus próprios traços. Comprava filmes baratos em bobinas e punha-se a fotografar a Quinta da Boa Vista, o Campo de São Cristóvão e principalmente os amigos, naquilo que foi o início de um duradouro culto aos portraits. O

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amor pela fotografia seria uma constante na vida de Victor. Ele teve fotos publicadas na revista O Cruzeiro (1969) e no semanário Crítica (1974). Durante vários anos, um dos cômodos de sua casa funcionou como laboratório de revelação fotográfica. Aos 16 anos, Victor perdeu o pai. A família morava então em Macaé (RJ), mas logo voltaria a São Cristóvão. Empregou-se aos 21 anos como artefinalista numa pequena agência de publicidade. Pintou anúncios em cortinas de teatro e, já nos anos 60, formado em Estatística, trabalhou como desenhista de gráficos para órgãos públicos. Mais tarde, ao consagrar-se como escritor, não se furtou ao prazer de criar as capas de seus livros Necrológio, Salvador janta no Lamas e O museu Darbot e outros mistérios, além de uma revista de comércio exterior editada pelo Banco do Brasil. Durante toda a vida, Victor cultivaria na intimidade os retratos e caricaturas de pessoas conhecidas, feitos em bico de pena, o esboço gráfico de personagens, e teve mesmo uma fase de pinturas em aquarela. Funcionário do Banco do Brasil por mais de 20 anos, Victor se comprazia em transformar os jargões e absurdos reais da burocracia em ficção de sabor kafkiano. O Arquivo, seu terceiro conto, tornou-se um clássico no Brasil e foi publicado em oito países, mostrando um homem que ―progride‖ na empresa à medida que seu salário vai sendo reduzido e ele próprio vai se convertendo num objeto. No ambiente austero do Banco do Brasil, Victor fazia o terror da hierarquia e as delícias dos colegas, com sua irresistível tendência a satirizar o cotidiano, jogar pelos ares as formalidades e se lixar para os imperativos de um mito da época: uma boa carreira no BB. Os formulários burocráticos lhe serviam para fazer intervenções poéticas e a rotina do trabalho lhe inspirava situações de comédia. O homem e o escritor se confundiam na relação visceral mantida com a cidade do Rio de Janeiro. O tradicional restaurante Lamas, onde se passa a ação do conto Salvador janta no Lamas, era apenas um dos muitos templos gastronômicos cariocas que Victor freqüentava com regularidade e fervor quase religiosos. Ele podia se deliciar tanto com queijos finos e doces sofisticados, quanto com os salgadinhos

mal encarados de uma lanchonete de esquina. Domesticamente, sua faceta de chef materializava-se em papas portuguesas, estrogonofes, haddocks ao leite, uma receita própria de ―Peixe à Salvador‖, bolos de chocolate, quindões e manjares marmorizados. Em Victor Giudice conviviam um intelectual de gosto refinado e um homem simples e popular. Ele mantinha longas relações amistosas não só com artistas e escritores, mas também com guardadores de carro, lanterneiros, porteiros de prédios etc. Na sua teia de laços e afetos, crianças e adultos tampouco recebiam tratamento diferenciado. Este homem em permanente trânsito social manifestava-se também na relação com a geografia da cidade. Seu coração estava, sem dúvida, na Zona Norte, mas os túneis eram caminho diário rumo a livrarias, lojas de discos e vídeos, restaurantes, casas de amigos etc. Comutar entre as diversas zonas geográficas, culturais e econômicas da cidade era parte do estilo de vida de Victor Giudice, um homem cujo espírito desconhecia fronteiras de qualquer natureza. A faceta místico-esotérica foi outro traço marcante da personalidade de Victor. Ele aprendeu leitura de mãos na juventude e dizia-se um apaixonado pelo ocultismo. Nos anos 80, estudaria profundamente o tarô e colecionaria dezenas de baralhos, de várias modalidades e procedências. Chegou a ―botar‖ cartas informalmente, e criou o protótipo de uma certa Mandala Divinatória, jogo de números e peças geométricas que conformaria toda a vida do consulente. Existem fortes razões para se suspeitar de que o esoterismo um tanto jocoso era, no fundo, mais uma ferramenta de elaboração ficcional de que Victor lançava mão nas incansáveis peripécias de sua imaginação. Depois de aposentar-se em 1986, Victor retomaria a carreira de professor de teoria e criação literária, interrompida na década anterior. Os anos 90 estiveram entre os mais produtivos de sua carreira: além de dar aulas, lançou dois livros, escreveu grande parte de outros dois – o romance Do catálogo de flores e um volume de teoria da significação intitulado O que significa isto? -, inspirou admiração e respeito como crítico de música

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erudita do Jornal do Brasil, ministrou cursos livres sobre ópera e música sinfônica, oficinas literárias e conferências em diversas partes do país, e ainda prestava consultoria à programação de óperas em vídeo do Centro Cultural Banco do Brasil. Em agosto de 1996, já acometido pelos primeiros sintomas do que seria mais tarde diagnosticado como um tipo raro de tumor cerebral, ele realizou o sonho de comparecer ao Festival de Bayreuth, na Alemanha, para cultuar in loco o ídolo Richard Wagner. Victor, cuja vida fora um incessante diálogo com a cultura internacional, tinha medo de avião. Por isso fez poucas viagens ao exterior: esteve em Buenos Aires, Bogotá, fez três passagens rápidas por Nova York e empreendeu esta derradeira fuga a Bayreuth, com breve escala em Paris, primeiro e último vislumbre de uma Europa mitificada. Um mês depois, Victor iniciaria seu longo e lento duelo com a morte. Ela sairia vencedora na madrugada de 22 de novembro de 1997. Mas não na clínica da Zona Sul, onde ele havia passado os últimos meses, e sim na Tijuca, bairro onde moravam seus dois filhos, ali bem perto de São Cristóvão. Ou seja, dentro do perímetro mágico da sua lavoura criativa. Carreira Literária A personalidade de Victor Giudice pode ser rastreada através dos vestígios autobiográficos deixados em sua obra literária. Ele foi a própria materialização, declarada ou subentendida, de personagens como o ser mutante do conto O homem geográfico, a filha mesmerizada pelos mistérios familiares de Minha mãe, o solitário apaixonado por Haydn em A criação: efemérides, o avô que declamava trancado na sala de banho em Os banheiros ou o narrador do inacabado Do catálogo de flores. Sua primeira oportunidade de publicação surgiu em 1969, quando o escritor José Louzeiro, que à época editava o Jornal do escritor, publicou O banquete, também o primeiro de seus minicontos, formato que ele iria sofisticar progressivamente nos anos vindouros. Por pouco Louzeiro não teria salvo outras centenas de páginas datilografadas,

que Giudice havia deitado fora alguns dias antes, por julgá-las imprestáveis. O segundo conto publicado, In perpetuum, é protagonizado por um funcionário de banco que passa 30 anos procurando uma diferença de 10 centavos. Nascia ali uma das principais vertentes da criação literária de Giudice, alimentada por suas experiências como funcionário do Banco do Brasil por mais de 20 anos (ver A Vida). Esta é a matéria-prima também de O Arquivo, um dos contos brasileiros mais conhecidos internacionalmente, editado em oito países. O Arquivo abre o primeiro volume de contos de Victor Giudice, Necrológio (1972), começando já na capa do livro. Victor não queria perder tempo nesse fulminante início de carreira como escritor. O livro ganhou uma recepção entusiástica por parte da crítica. Experimental e ousado, submetia o texto a uma feroz segmentação, usava o espaço da página com invenções concretistas e propunha um texto polifônico, onde se podia ―ouvir‖ uma instigante simultaneidade de ―vozes‖. O conto Carta a Estocolmo viria a ser publicado na prestigiosa revista Antaeus (inverno 1983, Nova York), ao lado de um texto de Gabrielle D‘Annunzio, e considerado um dos dez melhores relatos de ficção científica aparecidos naquele ano nos EUA. A afirmação em três livros Apesar do sucesso da estréia, Giudice levaria sete cabalísticos anos para trazer a público o seu segundo livro, Os banheiros, de 1979. O Brasil vivia então o apogeu do contismo. Caio Fernando Abreu saudou, numa resenha da revista Veja, a consagração de Giudice ―definitivamente, como um dos nomes mais expressivos da ficção brasileira contemporânea‖. Esse livro deixava clara a paixão de Giudice pelo conto policial, o seu fascínio pelos mecanismos do gênero. Esta matriz estaria subjacente a grande parte de sua obra. No início da carreira, ele havia publicado contos no Mistério Magazine de Ellery Queen. Foi também organizador da Coleção Enigma, de livros policiais, da Editora José Olympio. A Narrativa do número um, incluída em Os banheiros, era, na verdade, um trailer do romance Bolero, que Giudice traria à luz em 1985. Um palhaço que consegue produzir

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esferas de prata somente com a força da imaginação assume ares de metáfora para a força do pensamento contra a ordem opressiva e a dominação. O Brasil começava a sair da ditadura e Giudice nos dava um romance caudaloso (veja trecho), lidando sem panfletarismo com o Brasil do pesadelo militar, das desigualdades profundas e das falsas mudanças. Para o crítico Valentim Facioli, o leitor tinha ―diante de si um bizarro logogrifo literário, sério, circense, dramático, histrião; da mais intensa atualidade e permanência enquanto a história for a pré-história do Grande Circo burguês‖. Em 1989, Giudice retornou ao terreno dos contos com Salvador janta no Lamas, distinguido com o prêmio anual da Associação Paulista de Críticos de Arte na categoria de ficção. Os contos desse volume apresentam um estilo extremamente visual, nos limites do argumento de cinema. O homem geográfico poderia figurar numa antologia do corte (no sentido cinematográfico do termo); Bolívar nada mais é que um pequeno filme policial em que, significativamente, o cinema é repetidamente citado. As palavras, ali, tinham a generosidade e o desespero de se darem a ver, de se deixarem sentir.Salvador consolidava, ainda, dois traços de estilo que o escritor importava de sua própria vida: as referências recorrentes ao plano concreto da cidade (antecipando, de certa maneira, Paul Auster em relação a Nova York) e, já a partir do desenho da capa – o tarô na mesa de bar -, a atração pelo esoterismo (ver Vida). Maturidade premiada Estava pavimentado o caminho para aquela que muitos consideram a obra-prima de Victor Giudice: O museu Darbot e outros mistérios (1ª e 2ª edição). Temos aí nove contos primorosos, que revelam um escritor no pleno domínio de seu ofício. Para eles parecem convergir todos os rumos da ficção giudiciana: a fantasia familiar (A única vez, A história que meu pai não contou), as obsessões do culto à arte (A criação: efemérides, O museu Darbot), o mistério introjetado no cotidiano (Cavalos), a narrativa policial (Jurisprudência), a metáfora política (O hotel), a sátira de uma nobreza imaginária (A festa de Natal da Condessa Gamiani) e o miniconto (Relatividade em nome de Borges). O livro mereceu a maior distinção literária do

país, o Prêmio Jabuti de 1995, conferido pela Câmara Brasileira do Livro. Se Bolero havia sido gestado ao longo de sete anos e tivera vários fragmentos publicados previamente, o segundo romance de Giudice seria escrito num só jato, em não mais que 52 dias. A trama de O sétimo punhal, de 1995, era assim apresentada pela poeta Susana Vargas na orelha do livro: ―Uma mulher às voltas com seis crimes (ou seriam quatro?) e um casamento de muitos anos. Um criminoso a bordo de um Monza cinza e a cinzenta história de um estranho namoro‖. Em O sétimo punhal,, o escritor atinge a maturidade no uso dos ingredientes da história policial, gênero relativamente raro no Brasil, do qual ele se firmou como um dos melhores cultores. Giudice deixou inacabado o seu terceiro romance, Do catálogo de flores, que colocava um escritor brasileiro septuagenário no centro de uma trama misteriosa na Londres do ano 2018. O escritor tinha sido o único amigo de um certo Pedro Maravella, poeta brasileiro desconhecido que escrevia, no século anterior, uma série de poemas denominada Catálogo de flores. Descobre-se, então, uma estranha relação entre os sonetos de Maravella e as pesquisas científicas desenvolvidas por uma fundação britânica. ―A história mostra de que modo uma fraude pode indicar o caminho da verdade‖, definia o autor numa sinopse. Poesia, teatro, crítica Os sonetos de Maravella nada mais são que um eco do próprio Victor Giudice poeta. Entre um livro e outro, Giudice mantinha uma produção marginal de sonetos, a maioria desconhecidos do público leitor e mesmo de seus amigos mais íntimos. Nas décadas de 80 e 90, ele participou com amigos de uma espécie de arcádia, em que toda a correspondência se dava em sonetos de versos decassílabos. Seu pseudônimo não escondia eficientemente o autor: Judicis Marinus. A uma série de fundo social ele deu o sonoro título de Sonetos do operário e do patrão. Giudice produziu também para teatro, refletindo outra de suas grandes paixões. Em 1991, o Centro Cultural Banco do Brasil montou seu monólogo Ária de serviço, com direção de Marco Antonio Braz e a atriz Bete Mendes no papel da dona de casa infeliz que prepara o espírito para receber o marido ao final de um

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dia de trabalho. Teve seu conto Bolívar encenado por Domingos Oliveira na Biblioteca Nacional dentro do evento Teatro do texto, em 1991, e fez uma adaptação do Don Juan, de Molière, para alunos da Uni-Rio. Exercitou-se, ainda, como compositor de trilhas musicais para teatro (ver A Música). Giudice deixou inédito o texto da peça O baile das sete máscaras, mais uma investida demolidora no universo burguês a que ele próprio pertencia à sua maneira peculiar. O crítico e ensaísta literário surgiu na década de 1970 em jornais do Rio de Janeiro. Carlos Drummond de Andrade costumava mandar-lhe bilhetes agradecendo suas resenhas. Escritores como Machado de Assis, Arthur Schnitzler e o dramaturgo Nelson Rodrigues foram objeto de iluminados ensaios. Mas esta foi uma carreira bissexta, caracterizada basicamente pelo seu prazer de ler e pela independência de suas opiniões. Esta última qualidade rendeu-lhe, pelo menos uma vez,

uma represália. Em julho de 1988, ele publicou em O Globo uma resenha irônica com relação ao sucesso de um best seller da mesma editora que à época examinava seus originais da coletânea de contos O último coração da noite. No dia seguinte, a editora devolveu-lhe os textos com uma carta seca de indeferimento. O livro acabaria saindo no ano seguinte, pela José Olympio Editora, com o título de Salvador janta no Lamas . Para um escritor que tematizava as hipocrisias e disfunções da sociedade contemporânea, episódios como esse não representavam maior percalço. Pelo contrário, traziam novas idéias que ele rapidamente levava ao papel. Em Victor Giudice, a vida e o ofício bebiam da mesma fonte. Fontes: http://www.victorgiudice.com/ COSTA, Flávio Moreira da (organizador). Os 100 Melhores Contos de Humor da Literatura Universal. 5.ed. RJ: Ediouro, 2001.

Nilton da Costa Teixeira

O Poeta de Ribeirão Preto

Nilton da Costa Teixeira, nasceu na cidade de Monte Alto, interior de São Paulo, em 03 de maio de 1920, filho dos portugueses Manoel dos Santos Teixeira e Conceição da Costa Teixeira. Veio com a família para Ribeirão Preto, prosseguindo os estudos no Grupo Escolar Guimarães Júnior, onde concluiu em 1930/31. Trabalhou desde a infância, tendo sido prático de farmácia, depois ser provador de café e, na mesma firma, passou a exercer funções na contabilidade, enquanto prosseguia seus estudos no ginásio do Estado, hoje Otoniel Mota. Na Escola da Biblioteca dos Pobres foi cursar o ―guarda livros‖, mais tarde na Escola de Comércio São Sebastião, Contabilidade e científico no colégio Progresso. Dedicou-se à contabilidade e ao comércio. Aposentou-se por tempo de serviço em 1.976. A contabilidade exerceu-a até os últimos dias de sua vida. Era associado do Conselho Regional de Contabilidade e graças ao vasto

conhecimento contábil, assessorava colegas nas constantes mutações do setor.. Faleceu a 5 de novembro de 1983; casado com d. Ophélia de Andrade Teixeira. Carreira Literária Teve participações esportivas e literárias. Na literatura, 45 anos de atividades. Em 1936, co-fundara o Grêmio Literário Humberto de Campos. Na imprensa, Nilton sempre editou crônicas, contos, poemas, trovas, sonetos, divulgando parte de sua produção literária, nos jornais de Ribeirão Preto, oferecendo subsídios para que professores e alunos trabalhassem, nas escolas, seus projetos de poesia. Em torno da Fonte Luminosa, da praça XV de novembro, por vários anos, estiveram expostas as trovas dos Jogos Florais de Ribeirão Preto, em placas

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pintadas, com as trovas vencedores. Nilton sempre tinha alguma premiada. Como professor, na Escola dos Pobres, estimulava o alunado à vida literária e o que continuou fazendo no correr dos anos. Sua esposa também lecionava na entidade. Prefaciou diversos livros. Gostava de escrever sobre a cidade. No correr dos anos, durante campanhas eleitorais, à pedido de candidatos compunha ―marchinhas‖ de campanha eleitoral e, num só pleito, viu candidatos eleitos com o apoio suas mensagens poético-eleitorais. Era comum, ao passar por cartórios de paz, ser solicitado a fazer trovas de homenagem a casamento ou nascimento. O poeta gostava do que fazia e fazia com inspiração. No ano de 1966, foi um dos vencedores dos I Jogos Florais de Ribeirão Preto, numa promoção do Clube dos Antônios com o patrocínio do jornal O Diário, tendo duas de suas trovas premiadas. O tema da promoção era Santos Dumont. A respeito, no dia 6 de novembro de 1967, o dr. Antonio Rocha Lourenço, presidente do Clube, se manifestou: Ao ofertar-lhe o prêmio que sua inteligência conquistou, não deseja o Clube dos Antônios, deixar embora em poucas palavras, de dizer o quanto agradece a sua destacada participação. Foi premiado em diversos concursos de trovas e sonetos. Era considerado uma usina poética e conseguia produzir centenas de trovas de um mesmo assunto ou tema. Em 1970, a pedido do dr. Antônio Duarte Nogueira, então prefeito, editou Versos à Ribeirão Preto. O historiador Prisco da Cruz Prates, destacava-o em seus textos como o príncipe regional da trova ribeirãopretana. O trabalho literário de Nilton merecia elogios nos mais diferentes recantos do país. Em 19 de junho de 1977, trovadores de diversas cidades e estados, estiveram reunidos na casa do poeta. Ocasião festiva e literária, onde cada um demonstrava a sua versatilidade. O escritor e acadêmico santista Walter Waeny ao partir deixou em manuscrito a mensagem:

― Esta alegria maior, Sempre guardá-la prometo:

visitei, hoje, o melhor, poeta de Ribeirão Preto‖.

O trovador José Valeriano Rodrigues, mineiro de diversas academias, assim escreveu:

―Senti-me de tal maneira à vontade neste lar,

como na casa mineira para a qual eu vou voltar‖.

Deixou vários inéditos, mas na imprensa diária divulgada boa parte daquilo que produzia. Suas constantes premiações literárias, perpetuam seus textos em livros de resultados de concursos. A biblioteca municipal e a Casa da Cultura têm as edições dos livros de jogos florais de Ribeirão Preto. Vem sendo organizada uma antologia com os textos dos escritores da família Teixeira. O poeta Lauro da Costa Teixeira (irmão, freqüentava a Casa do Poeta Lampião de Gás), Nilton Manoel e Ivan Augusto (filhos) e alguns sobrinhos do poeta com prêmios e vida literária. Nilton fez parte de várias comissões de Jogos Florais de Ribeirão Preto. Nilton, co-fundador e vice-presidente da seção municipal da União Brasileira de Trovadores, instalada por Luiz Otávio (príncipe dos trovadores). Co-fundador da União dos Escritores de Ribeirão Preto e membro correspondente de academias pelo Brasil. Hoje é patrono de cadeiras acadêmicas. No decorrer dos anos conquistou prêmios, nos Jogos Florais da Bahia, pela Academia Castro Alves de Letras, Academia Valenciana de Letras, Grupo Alec de Corumbá, Academia Pedralva de Letras e Artes, Sesc Três Rios- RJ, União Brasileira de Escritores, Revista Brasília, centenária Sociedade Legião Brasileira Civismo e Cultura, em Ribeirão Preto, monografia sobre Padre Euclides, Casa da Cultura de Ribeirão Preto, Clube da Velha Guarda, Jogos Florais de Ribeirão Preto, Santos, Rio de Janeiro,etc. Na antologia Poetas de Ribeirão Preto, terra da poesia, editada por Nilton Manoel, em 1979, figura com um agrupamento de textos sob o título ―Encanto dos meus dias‖ onde são encontrados sonetos, poemas e trovas,

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concebidos em verdadeiros estados de graça. Foi haicaísta. A FONTE LUMINOSA Da fonte luminosa, emergem espargidos, contínuos jatos de água em cores variantes, que , em suaves vai-vens, tão sempre repetidos em mesclas divinais de encantos e corantes. Seus azuis celestiais, nos jatos expelidos, parodiam, no céu, os azuis contagiantes, enquanto pela relva, os grilos escondidos teimam a musicar esses vai-vens constantes Sempre a água sobe e desce e sofre mutações, imita nossa vida onde há tão falsos pomos colhidos cegamente em muitas ocasiões… A fonte é um painel de passageiras cores, a vida é um painel de mentirosos cromos, dois cromos celestiais, cromos enganadores. Com a difusão de informativos, jornais, revistas, colunas de poesia em jornais O Diário, Diário de Notícias, Diário da Manhã, A Cidade e em Folha do Subúrbio (do Eduardo Cavalcanti da Silva, Camaçari – BA), a coluna de Trovas da Gazeta Esportiva, assinada pela jornalista Maria Thereza Cavalheiro, Almanaques como o Santo Antonio, da Editora Vozes, a folhinha do Sagrado Coração de Jesus, álbuns e revistas acadêmicas, os poemas de Nilton da Costa Teixeira popularizam-se cada vez mais, principalmente, em volantes, editados para distribuição gratuita a alunos de nossas escolas. O movimento literário de Ribeirão Preto, tomou vulto com as edições diárias do poeta, considerado o marco de nacionalização da literatura ribeirãopretana.

TROVAS DISPERSAS

A vida triste fantasia, que abriga tanta ilusão, é o caminhar dia a dia,

para um funéreo caixão. *

Nossa vida é uma viagem de turismo e avaliação,

em que o peso da bagagem é feito no coração.

* Tenho a casa pobrezinha

Um prato e uma colher, E a esperança toda minha De arranjar uma mulher.

* Durante suas andanças, Jesus Cristo foi fecundo, recolocando esperanças,

entre as descrenças do mundo. *

Quem passar por Ribeirão, fatalmente,ira deixar, pedaços do coração,

que um dia virá buscar. ( 1.956 – I Centenário de Ribeirão Preto)

* Ribeirão – tu sobranceiro, és do interior, no presente,

o município, primeiro, porque caminhas à frente…

Nos Jogos Florais de Ribeirão Preto,

oficializados pelo executivo, por ser o evento que consagrou a cidade no mundo

internacional da literatura, realizados em modalidades: estudantil, municipal,

internacional, Nilton conseguiu diversas e boas trovas vencedoras, entre elas:

Neste abraço em que te aperto, Com a beatitude de um monge,

Sinto meu amor tão perto… Minha esperança tão longe!

Para salvar aparências,

Nós pela vida, mentindo, Entre silêncios e ausências, Sofremos sempre sorrindo.

O Judas de hoje, moderno,

Maneiroso, demagogo, Não teme os clarões do inferno,

Porque dança sofre o fogo.

Despreocupado com a morte Para quem tão pouco resta,

Mesmo os rigores da sorte São verdes sonhos de festa!

Comentários sobre o poeta: ―… vemos o perfil de um homem, que foi inspirado cultor do sonho e requintado burilador do verso. Sei que foi, em sua terra natal, por várias gerações, um dos seus valores

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mais dignificantes, que, se o presente tanto o admirou, a posteridade saberá respeita-lo‖. ― Um poeta adormeceu, e, porque tanto sonhou, se algo, aqui, se escureceu, todo o céu se iluminou‖.

Helvécio Barros- Bauru-SP. ―Com profundo pesar recebemos a infausta notícia do falecimento do poeta Nilton da Costa Teixeira, que enluta as letras de Ribeirão Preto e entristece seus irmãos trovadores de todo o Brasil‖.. Carolina Ramos, presidente da União Brasileira

de Trovadores –seção de Santos-SP

― Trovador e poeta que todos aprendemos a estimar e admirar‖.

Jornalista Paulina Martha Frank, Campinas,SP.

―O Brasil inteiro precisa ler o que ele escreve, para render homenagem a um talento e a uma versatilidade assim tão grandes‖.

Walter Waeny, trovador da Academia Santista de Letras

Fontes: - Nilton Manoel. – Corauci Neto

Glorinha Rattes Poesias

DESABAFO Sou uma pessoa querida pelos recantos da vida deste mundo encantador. E por mais que dissimule ou drible, há sempre os recalques da vida querendo tornar-me sofredor. Qual fantasmas de carrascos seguem perto os meus rastros, impingindo-me a dor. Sempre insistem em abrir ferida no peito da minha vida e se jogam com furor. Mas esses fantasmas sem sucesso, que empurro ao retrocesso, no vasto mar do vingador, não conseguem o seu intento, não me prendem ao sofrimento – na vida sou vencedor. Sou guerreiro forte, previdente, transformo-me em Noé, embarco na Arca da Vida e espero baixar a maré. ESPELHO No afã de contemplar minha imagem, do espelho curiosa me aproximei.

E ao invés de retratar-me, vi miragens dos anos que passaram e não notei. Vi minha infância: eu feliz, despreocupada, brincando de roda, cabra-cega e de pegar. Corria alegre dando boas gargalhadas e minha mãe me pedindo para parar. E o espelho retratando minha vida, a juventude nele então projetou: eu era bela, tão alegre, tão querida que, em minha face uma lágrima rolou. Enxuguei-a com um lenço todo branco em homenagem à pureza daquele tempo que, por um beijo, um abraço, levava um tranco dos pais que diziam: - Ele só quer passatempo! E o espelho minha vida revelava: momentos de alegrias e tristezas, mas, a verdade do agora não mostrava e é esta imagem que eu mostro pra vocês. EXEMPLO DE VIDA Sentindo-me cansada, triste, desanimada, sentei-me à beira da estrada e fiquei a pensar na vida… Entregue aos meus pensamentos, senti com o sopro do vento

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que estava semi-protegida pela sombra de uma árvore ressequida que antes fora frondosa, florida. E atentamente a observá-la, vi um viçoso broto surgindo que me impulsionou a imitá-la; retomei minhas forças, fiquei sorrindo… Sorrindo e meditando… Se, em uma árvore aparentemente ressequida, ressurge a esperança da vida, por que julgar-me debilitada, frágil, perdida? E analisando o exemplo daquela árvore, arvorei-me de esperança… e acreditei na vida! O QUE FICA Oh! Bendito que semeias e em poesia me enleias para eu criar e produzir… E nos meus versos singelos, decantar tudo que é belo e do meu jeito colorir… Sinto que o mundo é encantador… Mas não posso assim senti-lo que não plantarei uma flor. Quando partir deste mundo rastros deixarei marcados… Vida se esvai num segundo, fica o que está comprovado; filhos, árvores e livros, são mandamentos que cumpri; registrei-os nos arquivos dos tempos em que já vivi. Sei! Tudo passa na vida… Passa época, para o tempo, fica a lembrança contida no livro do assentamento. SUBLIME AMOR (à minha filha, em 18/06/1987) Estás junto a mim, caminhas ao meu lado, dominas o meu ser! Não te locomoves do leito, mas trago teu coração no peito, sentindo-o fortemente pulsar.

Tua imagem, minha companheira que me envolve a vida inteira, desde que entraste no meu mundo! E quando aqui, não mais eu estiver e se porventura, permaneceres, tornar-me-ei uma estrela, sempre ansiosa por vê-la, meu brilho a ti refletir. E os sons desordenados por ti balbuciados, chegar-me-ão com clareza e não terei mais incerteza de estar te entendendo ou não! E quando junto de mim estiveres, gozando as maravilhas do infinito, não serei mais esta mãe, mulher que estremece ao som de dilacerante grito. - Não… Não serei mais uma pecadora qualquer lá, com você ao meu lado querida! Serei a mais bela estrela cintilante, brilhando no universo de qualquer vida.

Glorinha Rattes Glorinha Rattes, nome literário adotado por MARIA DA GLORIA AVIEIRA DE REZENDE RATTES que, em 1997 foi eleita Rainha dos Trovadores na Convenção de trovadores realizada em Conceição da Barra – ES. Membro titular da Cadeira n.13, da Academia Brasileira de Poesia Casa de Raul de Leoni. Classificada em diversos concursos, tanto em Petrópolis-RJ, como em várias outras cidades do Brasil. Em 1988 foi classificada com seleto grupo de 10 poetas, sem ordem de classificação, para receber o prêmio de Melhor Poeta do Estado do Rio de Janeiro. É madrinha da Academia Poética da Escola Municipal Vila Felipe – Petrópolis-Rj, pertence ao Clube de Poesia do Petropolitano FC, ao Arte de Poetar, do SESC-Petrópolis-RJ. Tem publicado os livros: Raio de Luz – poemas e trovas; No Jardim dos Trovadores: UBT-Trovas e Recanto e Minhas Lembranças, crônicas. ––––––––––––––––- Fonte: Academia Brasileira de Poesia da Casa de Raul de Leoni

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Emilia Pardo Bazán

Oito Nozes

Todas as noites depois do jantar o senhor das Baceleiras recebia em sua desconjuntada mesa da sala seus fiéis parceiros de jogo; o médico, Dr. Juan da Mata; o padre, Padre Serafim; e o mestre-escola, Sr. Dionísio. Chegavam os três ao mesmo tempo e saudavam-no com idênticas palavras, viravam o mesmo cálice de vinho que D. Ramón das Baceleiras lhes oferecia. E limpavam a boca com as costas da mão, à falta de guardanapos. Em seguida, Padre Serafim, que era serviçal e hábil, acendia as velas, não sem antes arrumar o pavio com a espevitadeira prateada, e até às dez e meia disputavam, eles quatro, o ganho de alguns centavos. A essa hora os jogadores apanhavam sala de entrada os tamancos, se a noite era chuvosa ou havia lodo nos caminhos esburacados, e dirigia-se cada qual pacificamente para seu canto. Duravam cinco anos estes encontros para o mais inofensivo dos passatempos, e já eram o único prazer do velho e bolorento senhor da aldeia, que passava a metade da vida pregado em sua poltrona pela gota e pelo reumatismo. Aquelas horinhas de jogo e de bate-papo davam algum interesse ao dia, que deslizava lento, interminável, prolongado pela solidão, pela quietude dominante e pelo tédio da velhice sem família, sem obrigações e sem ter o que fazer. Os três homens que vinham jogar com D. Ramón não eram nem sábios nem eloqüentes no dedo de prosa, e nem sequer estavam a par do que ia pelo mundo; mas mesmo assim traziam notícias, boatos, opiniões, brincadeiras, manias e humorismo deste ou daquele; o Dr. Juan da Mata, por sua profissão, recolhia aqui e ali a crônica do lugar, o mexerico das pessoas de roupa simples e das de jaquetas de rico – que o têm, e muito picante; o Padre Serafim se encarregava da política maior, porque lia o ―Correio espanhol‖ e estava a par dos pensamentos do Czar da Rússia e do imperador da Áustria; e quanto ao Sr. Dionísio, ele discordava enfaticamente do divino e do humano, e pelas malditas eleições conhecia de cor e salteado a política local. O senhor das Baceleiras tomava parte na

conversa, tão à vontade que seus pareceres eram ouvidos com respeito pelos três companheiros, habituados a nele ver o senhor – um ser superior, pois que nada fazia e vivia de rendas. O senhor de Baceleiras era dono de muitas terras na aldeia e arredores. Se é verdade que se nasce proprietário, e que o instinto de conservação e defesa do adquirido é tão forte quanto a morte, desde os primitivos alvores do mundo, este instinto em ninguém se revelou mais vigoroso, nem arraigou-se com mais profundas raízes do que em D. Ramón. Amava com exagero e defendia com raiva a sua propriedade, como se tivesse uma prole considerável a quem transmiti-la e não estivesse, pelo inexorável decreto dos anos, prestes a deixar tudo o que tinha para a alegria de uns sobrinhos que viviam em Mondoñedo e não tinham visto o tio nem uma só vez na vida. Apesar de que o momento em que se abandona a fazenda com a vida se aproximava, D. Ramón, sempre que a gota e a maldita perna permitiam, saía para examinar suas fazendas mais próximas, ver como o milho espigava, como a grama havia agradecido à rega, se os pinheiros medravam e se a nogueira estava mais carregada do que no ano anterior. O dono tinha posto seus olhos e coração nesta nogueira. Árvore como aquela não se encontrava num raio de quilômetros. Crescia o formoso exemplar à beira do caminho, em frente à taipa da casa dos Baceleiras e nas imediações de uma quinta semeada de batatas pertencente ao Dr. Juan da Mata, o médico. Por que, sendo a quinta do médico, o limite e a árvore eram de D. Ramón? Que o verifique quem conseguir desenrolar o inextricável emaranhado da subdividida propriedade rural galega. Ora, o caso foi que uma certa manhã, uma manhãzinha radiante de outubro em que tudo no campo era paz e sossego, o senhor das Baceleiras, arrastando a perna mas cheio de

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ânimo, parou diante da nogueira e deslumbrou-se ao vê-la tão carregada de frutos. Em certos galhos ao sol do meio-dia, viam-se mais nozes do que folhas, e sobre a erva que amaciava o limite de D. Ramón, algumas nozes já caídas, gordas e luzentes. Tentado esteve a apanhá-las, mas não o fez, por causa da perna. ―Alberto me trará essas nozes mais tarde‖, pensou; e chegando em casa ordenou ao criado, satisfeito: - Hoje no jantar, sobremesa de nozes frescas. E como no jantar as nozes não apareceram, ele interpelou Alberto. Alberto respondeu que foi apanhar as nozes caídas, mas não encontrou nenhuma no chão. - Mas como se eu mesmo vi as nozes, e elas eram pelo menos uma dúzia! desabafou, desanimado, o senhor de Baceleiras. - Pois então as crianças devem ter apanhado… – respondeu Alberto, com a satisfação velhaca dos camponeses quando acontecem coisas que contrariam seus amos. À hora do voltarete, o primeiro a chegar foi D. Juan da Mata. Ao entrar tirou um embrulho do bolso de sua velha jaqueta. - Nozes frescas – murmurou ele com um sorriso triunfal, oferecendo a dádiva ao senhor, que ficou gelado. - Nozes frescas! – murmurou. – E colheu-as de qual nogueira? - Da nossa – reagiu o médico com a maior fleuma, colocando-as num prato, pois elas já vinham limpas e descascadas. - Da nossa? Nossa qual, pode me dizer? - Essa é boa! O Sr. D. Ramón não a conhece! Da grande, aquela do caminho… a que me faz sombra à plantação de batatas… e até que chega a prejudicá-las. - Mas Dr. Juan, essa nogueira…. é tão sua quanto do Papa. Essa nogueira não é de outra pessoa que não esta aqui que está falando consigo.

Caiu das nuvens o Dr. Juan da Mata ao escutar aquelas frases e o tom em que elas eram ditas. Era um velhinho seco como bacalhau, ágil e conservado por milagre, a despeito dos seus muitos anos, grande andarilho, carinhoso e sensível, embora gasto e contido à sua maneira; e o tom inesperado de D. Ramón sugeriu-lhe esta resposta ferina: - Quer dizer que eu roubei as nozes que nem eram minhas? Então não é meu o que cai na minha propriedade, em cima das minhas batatas? Quer dizer que eu sou um ladrão? Existe um ditado árabe muito sábio, evangelho do laconismo, que reza assim: ―Antes de falar, a língua dá quatro voltas na boca.‖ D. Ramón, para azar seu, esqueceu-se do provérbio naquela hora, se é que o conhecia, coisa que não posso afirmar; e dando rédeas à impaciência e à irritação, respondeu com o ar mais agressivo do mundo: - O senhor pode me dizer como se chama alguém que se apodera do alheio sem o consentimento do dono? As nozes não eram suas; portanto, tire sua própria conclusão. - Dr. Juan da Mata recalcitrou e, levantando-se num ímpeto e jogando as nozes, não na cara, mas na barriga e nas pernas de D. Ramón, gritou fora de si: - Pois fique com essa porcaria das suas oito nozes… Que raios me partam se eu voltar alguma vez a pôr os pés onde me tratam de ladrão, seu… alma danada! Fique com Judas e que só venham aqui seus escravos, que eu sou uma pessoa tão decente quanto o senhor! Ao sair como um foguete, o médico se encontrou na escada de pedra com o Sr. Dionísio, o mestre-escola, a quem contou o que acabara de acontecer, gaguejando de raiva. O mestre-escola entrou no refeitório com cara muito comprida, guardando um silêncio diplomático, a princípio. Mas D. Ramón deu logo vazão ao seu mau humor, contando-lhe o caso, e qual não foi a sua surpresa ao constatar que o Sr. Dionísio, com argumentações pedantes e desatinadas, e com argúcias e circunlóquios, vinha a dar toda a razão ao médico.

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- Em meu humilde e meio eclipsado ponto de vista, desde logo – dizia o Sr. Dionísio, apertando os lábios – tenho de me inclinar a reconhecer que, se a terra ou a propriedade onde as nozes foram apresadas ou colhidas pertenciam por justa causa ao Dr. Juan da Mata, pois ele era respectiva e colegamente dono dos frutos. Ao notar D. Ramón que também o mestre-escola o contradizia, fico mais bravo e novas palavras imprudentes emitiu ele: - Como? Então o Dr. Juan estava lá no seu direito? Pois vamos ver como sustenta ele este argumento perante os tribunais, caramba, vamos ver! Para mim, aqueles que defendem um ladrão de sua casta são. Sr. Dionísio enrubesceu. Toda a dignidade profissional subiu-lhe com o ao rosto e, com a língua emperrada de pura indignação, conseguiu balbuciar-. - Mais… devagar… mais… devagar… Modere-se, meu senhor… Eu me retiro desta casa! O padre, que cruzava a porta quando o mestre-escola ia saindo, encontrou o fidalgo chispando e rugindo como cratera de vulcão em plena ebulição. Que logo no dia seguinte iria interpor uma acusação judicial, e o médico que se virasse, pois que iria dar com os costados na cadeia! Frente ao arrebatamento do fidalgo, o Padre Serafim, excelente homem, um santo varão em toda a extensão da palavra, mas desses que, como se diz, vivem no mundo da lua, caiu na tolice de pespegar ao furibundo D. Ramón uns textos ascéticos e morais que tinham tanto a ver com as nozes como com as estrelas no céu; e os nervos já esticados do senhor – que era do tipo colérico, defeito de quase todos que sofrem de gota por terem o sangue muito ácido – simplesmente não suportaram o sermão do pároco. Desatinado e cego, D. Ramón tomou de seu cajado semimuleta e levantou-o contra o pregador, que, espavorido, saiu escada abaixo como um foguete, oferecendo aquele transe a Deus em resgate de suas culpas… E assim acabou e se dissolveu, como sal na água, a tradicional partida de voltarete de D. Ramón das Baceleiras. Mas não acaba aqui a história das oito nozes, que mais não eram as

que, despojadas da casaca verde e partidas para maior facilidade de comê-las, em má hora presenteou o médico. Irritado mais ainda pelo aborrecimento de ter passado a noite inteira sozinho, e desejoso de vingança, D. Ramón entrou no dia seguinte com a acusação judicial contra o Dr. Juan da Mata, por motivo de roubo dos frutos. O médico suportou com brio a iniciativa; advogados e procuradores foram consultados; não houve acordo no julgamento e a cúria de Brigâncio apoderou-se do assunto e fez o fidalgo gastar um despropósito de dinheiro durante os anos que durou a pendenga: milhares de pesetas suficientes para carregar de nozes um par de navios. E como o despeito e o pesar do fastio e da solidão produzissem em D. Ramón um ataque de gota mais forte dos que lhe eram comuns, e tivesse ele de chamar o Dr. Juan da Mata para lhe atender, este se negou, alegando que poderiam imputar-lhe a morte do seu adversário e inimigo. Com a falta do socorro oportuno, o fidalgo piorou e terminou entregando a alma muitíssimo a contragosto. O ano de sua morte foi de grande alegria para os meninos herdeiros da aldeia que comeram toda a colheita da venerável nogueira. -------------- Ela escreveu todos os gêneros, num total de quase cinqüenta

títulos, mas ficou conhecida como contista: durante anos, escrevia uma média de um conto por semana, textos que

eram disputados por periódicos do Espanha e da América Hispânica. De origem aristocrata, chegou a catedrática de

Literatura Comparada da Universidade de Madri, mas, por ser mulher, não conseguiu ingressar na Academia

Espanhola. Junto com Sexta-feira Santa e Neto de Cid, este Oito Nozes é considerado um dos seus melhores contos, com

situações cotidianas e personagens comuns de uma aldeia ao Norte da Espanha.

Emilia Pardo Barzón (1851 – 1921)

Tradução por José Feldman do Michigan State University Emilia Pardo Bazán, condessa de Pardo Bazán, (Corunha, 16 de setembro de 1851 — Madrid, 12 de maio de 1921) foi uma escritora e nobre espanhola. Conjugou realismo e naturalismo na sua literatura. Mulher de grande peso intelectual, tocou muitos gêneros literários desde a novela

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até ao ensaio, passando pelos livros de viagens. Foi das primeiras espanholas a mostrar-se ativa no campo dos direitos da mulher. O seu cosmopolitismo assentou sobre uma intensa vinculação à sua cidade natal. Emilia Pardo Bazán nasceu em 16 de setembro de 1851 na Coruña , uma das cidades principais de Galicia, España. Seu pai, Don José Pardo Bazán, era uma figura política. Estimulava a leitura e os estudos em sua filha Emilia. Sua mãe, Amalia de la Rúa lhe ensinou a ler e mais tarde lhe ajudaria a livrar-se de muitas tarefas domésticas para que Emília pudesse dedicar mais tempo a leitura e à escrita. Pouco depois do nascimento de Emília, a família havia se mudado para uma casa em um bairro aristocrático e tranquilo na Calle de las Tabernas. Possuiam outras duas residencias, uma perto de Sangenjo, um povoado de pescadores e a outra na zona rural de La Coruña, o Pazo de Meirás, que foi residencia boa parte do verão do ditador Franco. A biblioteca de seu pai lhe proporcionava o acesso a uma grande variedade de leituras. Na casa de Sangenjo encontrou Don Quixote e a Bíblia. Na casa de La Coruña leu a conquista de México de Solís e Homens ilustres de Plutarco. Os livros sobre a revolução francesa lhe fascinavam e seus preferidos eram Don Quixote, a Bíblia e A Ilíada. Aos nove anos, Emilia começa a demonstrar interesse pela escrita. Ela mesmo recorda, ―Minha primeira lembrança literária remonta a uma data histórica assinalada e já distante: o término da Guerra da África, acontecimento que rendeu o início de minha inspiração… e vendo que não me faziam caso algum, nem tinha com quem desafogar o meu entusiasmo, me refugiei em minha casa e garatujei meus primeiros versos.‖ Na adolescência escreveu mais versos e os publicou no Almanaque de Soto Freire. Quando a família ia a Madrid durante os invernos, Emília frequentava um colégio francês protegido pela Casa Real, onde foi introduzida a obra literária de La Fontaine e Racine. Aos doze anos, a família decide ir a La Coruña durante os invernos y alí Emilia estuda com professores particulares. Sai do ritual da educação feminina ao negar-se a tocar piano

e aprender música. Dedica todo o tempo possível a sua verdadeira paixão, a leitura. Em 1868, ano da revolução que acabaría com o reinado de Isabel II, se casa aos 17 anos com José Quiroga. Viveram em Santiago entre o inverno de 68 e 69; Emilia ajudava seu marido con seus estudos de direito. Quando o pai foi nomeado Deputado de Cortes, toda a familia se muda para Madrid, inclusive seu marido. Em Madrid assistem a concertos e a festas populares e Emilia chega a conhecer a cidade e o ambiente madrileno. Após a investida de Amadeo de Saboya e a guerra carlista, José Pardo Bazán se desiludiu com a política e toda família foi para a França. Viajaram por Europa-Inglaterra, Italia, Alemanha… donde Emilia aprende inglês e alemão. Ademais, descobre a literatura francesa que deixar um grande impacto nela. Seu inicio no mundo literário começa em 1876 ao ganhar o primeiro prêmio pelo Estudo crítico de Feijoo. Neste mesmo ano dá a luz o seu primeiro filho, a quem lhe dedica um livro de poemas., com seu próprio nome, Jaime, que resultaria ser seu único livro de poesia. Escreveu sua primeira novela, Pascual López, no ano que nasceu seu segundo filho, Blanca. Uma doença hepática em 1880 obrigou a escritora a ´passar algum tempo em Vicky. Durante este período descobre o naturalismo de Zola, conhece pessoalmente Victor Hugo e começa a interessar-se nesta nova tendência literária. O periódico madrilenho, ―La época‖ publica ―Uma viagem de Noivos‖, que era um relato novelesco de suas próprias memórias da viagem à Vicky. Sua última filha, Carmen, nasce em 1881. Naturalismo No periódico madrilenho mencionado acima publica alguns artigos que haveriam de integrar-se no livro A Questão Palpitante, no qual explica o movimento literário do naturalismo. Seu propósito era o seguinte: ―Meu objetivo era dizer algo, em forma clara e amena, sobre o realismo e ol naturalismo, coisas que se falava muito, mas com rapidez e sem que nada houvesse tratado o propósito do

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assunto….Sempre me surpreenderá o extraordinario dinamismo daquele libreto tratando ao correr da pena, no que o único previsto é a impremeditacão e espontaneidade, que procurei dedicar-lhe em todo sabor didático.‖ A publicação de A Questão Palpitante criou um grande escândalo e seu marido, horrorizado pela situação exigiu que Emília parasse de escrever e que se retrata-se publicamente sobre seus escritos. Em consequência destes problemas matrimoniais, decide separar-se de seu marido dois anos mais tarde, em 1884. Neste ano publicou A Jovem Ama, que trata sobre crises matrimoniais. Sua terceira novela, La Tribuna, publicada em 1882 é considerada como sua primeira obra naturalista. Nesta obra, Emília estuda o ambiente e os tipos de cigarreiras na fábrica de tabacos em La Coruña. Benito Pérez Galdós também obteve informação documentada sobre a mendicância madrilenha para sua obra Misericordia. Estes dois escritores tiveram uma relação amorosa que durou mais de vinte anos. Em 1886 conheceu Zola e nessa viagem à França descobre a moderna novela russa. Essas leituras lhe impulsionam a apresentar no

Ateneu de Madrid um trabalho sobre a revolução e a novela na Rússia, em 1887. Continua escrevendo continuamente e nos anos ‘86 e ‘87 produz os Os Paços de Ulloa e A Mãe Natureza.. Em 1890 morre seu pai e aproveita a herança para criar uma revista escrita somente por ela, El Nuevo Teatro Crítico, nome que recorda a obra de Feijoo, Teatro crítico universal. Assiste a congressos como o Congresso Pedagógico onde denuncia a desigualdade educativa entre o homem e a mulher. Ainda que consciente da discriminação sexual dentro dos círculos intelectuais, propõe a Concepción Arenal (escritora feminista), à Academia Real de Letras, mas é rechaçada. A Academia tampouco aceitaria a Gertrudis Gómez de la Avellaneda nem ela. Contudo, em 1906 chegou a ser a primeira mulher a presidir a Seção de Literatura do Ateneu de Madrid e a primeira em ocupar uma cadeira de literatura na Universidad Central de Madrid, ainda que só teve um estudante na aula. Morreu em 12 de maio de 1921, em Madrid. Fontes: Michigan State University COSTA, Flávio Moreira da (organizador). Os 100 Melhores Contos de Humor da Literatura Universal. 5.ed. RJ: Ediouro, 2001.

Anderson Braga Horta Antologia Pessoal

SALMO PARA CÉLIA Olho-te — lúcida no cristal do dia, suave entre as sedas da noite. Olho-te na azáfama quotidiana, entre os mil afazeres do lar que estruturas. E tu és o dínamo que move os motores do mundo, a cornucópia que nem sempre se vê por trás das dádivas.

Olho-te sentada, imersa no cosmo de tuas costuras. O que cirzes é mais do que meias, o que pregas e repregas é mais do que botões, o que surge pronto ou refeito de tuas mãos mágicas, milagrosas, é mais do que peças de roupa. São vidas que saem de tuas mãos e se libertam e estão, e estarão sempre presas a ti.

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Tantos anos de caminhada solidária! Tantas cicatrizes! Luminosas cicatrizes dos frutos gerados de teu amor, amadurados ao calor do teu seio. Olho-te sempre. Os pés às vezes tropeçam, as mãos às vezes tateiam, as palavras falham. Mas o amor a tudo provê e tudo remedeia, e assim nada está realmente perdido, mesmo quando as torres da incompreensão lançam sua sombra no vale. O dia que nasce de tuas mãos é suave e acolhedor como a noite. A noite que escorre de teus dedos tem mais luzes que o meio-dia. Vejo-te inclinada sobre os infinitos mistérios do teu minúsculo reino. Que não tem termo, afinal, porque bebe-lhe as praias o pélago do espírito. Os óculos atentos carregam as insônias fecundas. No tremor das mãos vibram os raios generosos das bênçãos. A cor dos cabelos começa a cansar-se, mas a alma não esmaece. Cada ruga cristaliza mil cuidados de amor, e em cada uma cintila o amor inteiro, como o sol que se reparte e não se apouca. Inclino-me à tua fonte, à estrela em que te disfarças, à galáxia em que toda resplandeces. E beijo com ternura os teus cabelos brancos. A TARTARUGA Eu venho donde vem o infinito da Vida, do crespo e ardente oceano em toda parte ondeando, da explosão inefável do que chamais abismo, e é tudo, e é nada, no pulso intemporal de quanto existe e de quanto é oculto. Vivo porque o Mistério impõe que eu viva, e na vaga da Vida —sonho que vou sonhando e que me sonha— eu beijo a mão do Arcano e o lábio do Sigilo,

e reflito no olhar, como um memento, o olhar do que é, não sendo. Os olhos tenho abertos para a impressão do nimbo e do relâmpago, da água turva e do ar claro, do céu-mar que se abre e se desdobra à avidez do meu nado, de meu nada. Mas não vêem o tempo além do agora, o segundo futuro, próximo como o que se foi há um átimo, e no entanto remoto como a encoberta eternidade. Vi o homem de gatinhas, na semente animal ainda indiferenciado. Ouvi seus balbucios. Fiz minha mão a mão que fez o arado, que faiscou na pedra um firmamento fugaz de estrelas árdegas. Tomei-lhe da mão trêmula a ensaiar-se divina no primeiro rabisco do primeiro alfabeto, na prisca partitura da vindoura vertigem de encontrar-se maior que a imensa origem. Das figuras rupestres das cavernas subi ao zigurate dos sumérios. Cunhei sonhos avoengos nos ladrilhos. Andei Índias e Chinas do Oriente e do Ocidente. Topei do Egito o sacro escaravelho. De tudo em toda parte uma imagem ficou-me gravada na retina que não vedes. Sei do amor e do ódio, sei do hino e do vômito, sei da paz e da guerra, sei do mar e da terra, sei do céu e do éter, sei da carne e do espírito. Muito eu tenho vivido, tanto amado e sofrido e pecado e ascendido. Respeitai-me, se não por vós, grumetes que o Mar aleita ainda, pela Vida que em mim se fez tempo e caminha para fazer-se eternidade. Que novas cores beberei? Que músicas

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fluirão no meu dorso? Que suaves, que pétreos tatos guardarei no olfato, no paladar, na pele, na retina? Eu continuo. Adiante! Para onde, afinal? Que universo, que abismo espera por meus pés na curva do infinito? Eu vou para onde ireis: para Além, para o Enigma. Eu vou para onde vai o infinito da Vida. SÍSIFO Rompe a manhã, senil, semeada de escombros. Perde-se o meio-dia entre nimbos. Escura pende a tarde, sabendo a cinza e sepultura. O poeta carrega a noite sobre os ombros. RIO Alguma coisa se desata em mim, de mim, quando, na música, disperso o pensamento, o acústico universo me transporta, num périplo sem fim. De outro modo, tão outro, e entanto afim deste fluir, um mesmo e tão diverso banimento do ser move o meu verso, e me comove, em êxtase malsim. Um êxtase que aos astros me delata, se na barca de uns lábios de escarlata, no ondear de uns seios langues, no alfenim do longo enleio, embalo-me de sonho. E quando os olhos nos teus olhos ponho sinto que um rio se desata em mim. (A)MAR(O) Em março o mar soletra sol e ar e luar. E o pescador espera, a cismar, que das espumargênteas vagalínguas a ondear saia a palavra peixe. E põe-se a piscicar, de anzol, tarrafa, rede, arpão, — o mar. Tempera-se a salina escuma na carícia doce do ar.

Chispam gaivotas-hifens a mergulhar, relâmpagos de união entre ar e mar. E o pescador espera. O mar tostou-lhe a cara, pôs-lhe vagas no olhar e na pele. Sua alma tem um fundo de sal. Mas deu-lhe o mar um vago íntimo marulhar que em março, abril, desmaios de amor lhe dá. E essa amável magia é que o faz esperar, de janeiro a dezembro, no seu destino claro: amar o mar amaro. CIRANDA A minha Mãe Perdeu-se um dia uma pena da asa do tempo sem fim, veio vogando e, serena, pousou bem dentro de mim. Trouxe um vôo perfumado de amburanas de um jardim seguramente encantado, que o encantei dentro de mim. Caiu no centro de nada do sem-tempo donde vim e cantou-me em voz calada cantigas de então e assim. Doces violões de brumas, claros pianos de alfenim. E à brisa, em coro de plumas, palavras-vida de mim — quermesse, roda, cantiga, bisorro, corgo, capim — palavras-coisas de antiga aurora perdida em mim — moça, romã, romaria, chilreios de passarim — palavras-lumes que um dia luziram manhãs em mim — sanfonas, neblina, aurora, galopes de cavalim —

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palavras cantando agora no antigamente de mim. E eu era um barco e era o brando mar sem tempo do sem-fim, era a ciranda girando desse outro eu que havia em mim. Mas veio o vento do mundo, um vento adulto e ruim, fez um remoinho profundo, levou-me a pena por fim. Ai, pena, por que voaste do meu coração assim e sem pena me deixaste perdido num eu sem mim? ODE À ÁGUA Quisera ser a Água. não ter o prejuízo da forma, pra poder compreender todas as formas. cor nem cheiro, para impregnar-me de todas as cores da Terra e de todos os perfumes das matas e dos campos. § A Água fotografa na retina móvel lava na alma compassiva as grandezas e misérias da Terra. A Água quando se turva é num segredo de útero para o gesto dos peixes e das algas. quando se salga é a grande lágrima do Mundo — o Mar. § Sangue nas veias do Planeta, a Água nos rios flui. Vai sem pergunta, sem plano e sem mealheiro. Existe, e é útil: cumpre o seu destino. Sabe que a espera o Mar. Também sabemos que nos espera um Mar. Mas a Água sabe mais que nós: o de que esquivamos nosso olhar: que toda ela é o Mar. E sobretudo sabe que há de ir e de voltar até a consumação dos ciclos. Nem se lamenta. Sabe, não há o que lamentar. §

No Mar!… Ah música de espumas! No Mar!… Ah vinhos de marulhos! Ah conchas de silêncio! Ah solidão do todo! No Mar!… E o Grande Coração bombeia as águas para as artérias do ar. § A Água quando se eleva não sabe de orgulho, nem de mesquinha altura. Sabe a fortuna dos ventos, a fecundidade das trevas. E cumpre a Lei. Rosa de nuvens dá-se. § Água: Vida que ao Sol nos move e me comove.

Anderson Braga Horta (1934)

O Autor por Ele Mesmo Nasci na cidade mineira de Carangola, em 17 de novembro de 1934. Meu pai, o advogado Anderson de Araújo Horta, e minha mãe, Maria Braga Horta, eram professores e poetas. Assim, criado num ambiente de respeito à cultura e amor aos livros, posso dizer que recebi em casa mesmo os primeiros estímulos literários. A família morou, sucessivamente, em Carangola, Manhumirim, Belo Horizonte, novamente em Manhumirim, depois em Resplendor, Mutum, outra vez em Carangola. Já então acrescida dos manos Arlyson, Augusto Flávio e Maria da Glória. Em 1942 fomos para Goiás, passando três anos na antiga e dois na nova capital do Estado. Em Goiás Velho nasceu o caçula, Goiano. De volta a Minas, novo périplo em redor de Manhumirim, onde residiam meus avós

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maternos: Aimorés, Mantena, Lajinha, cidades que eu visitava nas férias, pois, tendo começado o ginásio em Goiânia, fiz, nesse período (de 1947 a 1953, para ser exato), as três últimas séries em Manhumirim e o clássico em Leopoldina. Já me encontrava no Rio de Janeiro, cursando Direito, quando para lá se mudou a família, em 1956. Transferi-me para Brasília em julho de 1960, como redator da Câmara dos Deputados, a cujo serviço fora admitido em 1957 como datilógrafo. Os irmãos foram também atraídos pelo Planalto Central, a que finalmente aportaram os pais, em 15 de novembro de 1964. Exerci ainda o jornalismo e o magistério, tanto no Rio quanto em Brasília. Meu primeiro trabalho, contudo, foi como securitário, na Velha Capital, a não ser pelos meses em que lecionei no Seminário de Leopoldina, cidade em que prestei, após o curso clássico, o serviço militar (tiro-de-guerra). Já radicado em Brasília, casei-me no Rio, em 1962, com a capixaba (de Cachoeiro de Itapemirim) Célia Santos. No ano seguinte nasceram os gêmeos, brasilienses, Anderson e Marília. Meus pais aqui faleceram, mamãe em 1980, papai cinco anos depois. As primeiras impressões literárias que retenho datam da cidade de Goiás: uma página de Humberto de Campos em que o autor, na primeira pessoa, confessava um furto de menino —o que me deixou consternado—; e o ―Pequenino Morto‖, de Vicente de Carvalho, cujos melodiosos hendecassílabos encheram minha alma infantil de tristeza. Em Goiânia me tornei leitor voraz de histórias em quadrinhos e de todos os livros que havia em casa — Gato Preto em Campo de Neve e Clarissa, Ecce Homo e Assim Falava Zaratustra, Meu Destino É Pecar (isso mesmo, o livro proibido de Nélson Rodrigues) e o mais em que pude pôr a mão e os olhos. A impossibilidade de compreender tudo não era obstáculo ao entusiasmo do jovem devorador de letras. Por essa época, apesar da força atrativa dos quadrinhos, que me guiou a mão numa série

de rabiscos, até mesmo numa historieta de texto e desenhos típicos, o autor mais amado foi, sem dúvida, Monteiro Lobato, por sua obra infanto-juvenil, que reputo ainda hoje incomparável. Mas quem me levou a escrever poesia, conforme tenho repetido em páginas de depoimento literário, foi mesmo Castro Alves. As primeiras tentativas, frustradas, resultantes em prosa ritmada, datam de Manhumirim, ao tempo em que freqüentava o Colégio Pio XI. As primeiras realizações, de Leopoldina, em 1950. A outra grande influência de então foi Bilac. E, depois, tantos poetas que nem convém enumerar! Dos clássicos aos românticos, dos parnasianos aos simbolistas, desses aos modernos, que me ensinaram a quebrar o verso, sem descartar a tradição. Penso que o poeta não pode deixar de se assenhorear das técnicas do verso, embora a técnica, obviamente, não seja tudo. Que ao escritor compete extrair do potencial de sua língua toda a cintilação que possa, dignificando-a sempre. Que escrever é atividade intelectual, sim, mas não se esgota no âmbito do intelecto; que o poeta há de comover-se e comover, sim, mas não se há de entregar, ingenuamente, à emoção desassistida da inteligência, porque a emoção, por si só, não é ainda arte, não é ainda poesia. Que a esse amálgama de pensamento, emoção, sentimento que é o poema não se deve tolher o voltar-se para a sorte do homem no espaço e no tempo, seja do ponto de vista filosófico, seja do social; pois à poesia, arte da palavra, interessa necessariamente tudo o que de humano se possa representar nela. E que, portanto, a arte do poeta há de ser mais complexa, mais completa, mais abrangente e mais profunda do que tendem a fazê-la os jogos —algumas vezes brilhantes— a que pretendem reduzi-la correntes revolucionárias. Isso posto, confessadas, via de conseqüência, as minhas próprias limitações, passo, com a possível humildade, ao balanço de quatro décadas de produção poética —omitida, quase totalmente, a inicial—, balanço em que, de algum modo, se traduz a seleção de poemas que ofereço ao leitor.

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Brasília, 31 de maio de 1999

Fonte: Academia Brasileira de Poesia da Casa de Raul de Leoni

Petrus Alphonsus Humor do Século XII

Petrus Alphonsus é um erudito judeu (nascido em 1062) que – após abraçar a fé cristã (em 1106) -, para ajudar a formação do clero (e, certamente, também como repertório de exemplos para a pregação), compôs a Disciplina Clericalis, uma obra voltada para a educação moral. Em seu Prólogo, o autor declara que optou por recolher provérbios e fábulas (em boa parte provenientes da tradição oriental árabe), por pretender tornar os ensinamentos amenos, divertidos e mais acessíveis à memória. Por isso, ―compus este livrinho, tomando-o… em parte, dos exemplos morais dos árabes, com fábulas, versos e comparações com animais e aves―. Assim, Alphonsus, apresenta também algumas anedotas como os casos do servo Maimundus nigrus, o sagaz preto Maimundo (o nome Maimundo, de nítida ressonância semítica, acentua, em latim, o preconceito, por sugerir immundus), guloso, falador e preguiçoso que nunca se dá mal, uma espécie de Macunaíma ou Pedro Malazartes da época. As Piadas do Preto Maimundo O senhor de Maimundo ordenou-lhe, certa noite, que fosse fechar a porta. Maimundo – que, oprimido pela preguiça, nem podia se levantar – respondeu que a porta já estava fechada. Ao alvorecer, disse-lhe o senhor: ―Maimundo, vai abrir a porta―. Maimundo: ―Como eu sabia que o senhor havia de querê-la aberta hoje, nem cheguei a fechá-la ontem―.

O senhor, percebendo que, por preguiça, não a tinha fechado, disse-lhe: ―Levanta-te e faz o que tens de fazer, pois é dia e o sol já está a pino―. Maimundo: ―Se o sol já está a pino, então dá-me de comer―. Senhor: ―Servo mau, nem amanheceu e já queres comer?‖ Maimundo: ―Bom, se não amanheceu, então deixa-me continuar dormindo―. *** Em outra noite, disse o senhor a seu servo: ―Maimundo, levanta e vai ver se está chovendo!‖. Maimundo, porém, chamou o cachorro que estava deitado fora da porta e, quando ele chegou, apalpou-lhe as patas. Vendo que estavam secas, disse: ―Não, senhor, não está chovendo!‖. *** Noutra ocasião, também de noite, o senhor perguntou a Maimundo se tinham lume na casa. O servo chamou o gato e apalpou-o para ver se estava quente ou não. Como o gato estivesse frio, respondeu: ―Não, senhor, não temos fogo!‖ *** Contam que o senhor voltava do mercado, todo contente pelo bom lucro que tinha auferido. E veio Maimundo a seu encontro. O senhor, ao vê-lo, temeu que viesse dar más notícias, como era de costume, e advertiu-o:

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―Olha lá, Maimundo, não me venhas com más notícias!‖ ―Não contarei más notícias, senhor, mas nossa cadelinha Bispella morreu‖. ―Como foi que ela morreu?‖. ―Nossa mula, assustada, quebrou o cabresto e, ao fugir, esmagou-a sob suas patas‖. ―E o que aconteceu com a mula?‖ ―Caiu no poço e morreu‖. ―E como foi que ela se assustou?‖. ―É que teu filho caiu do terraço e morreu. Com a queda, a mula assustou-se‖. ―E sua mãe, como está?‖. ―Morreu de dor pela perda do filho‖. ―E quem está tomando conta da casa?‖. ―Ninguém, porque virou cinzas: a casa e tudo o que nela havia‖. ―Como começou o incêndio?‖ ―Na mesma noite em que a senhora morreu, a criada, no velório pela senhora defunta, esqueceu uma vela acesa na câmara e começou o incêndio, que se espalhou pela casa toda‖.

―E onde está a criada?‖. ―Ela quis apagar o fogo, mas caiu-lhe uma viga na cabeça e ela morreu‖. ―E tu, como conseguiste escapar, sendo tão preguiçoso?‖ ―Quando vi a moça morta, fugi‖ *** A Piada do Pastor e do Mercador Um pastor sonhou que tinha mil ovelhas. Um mercador quis comprá-las para revendê-las com lucro e queria pagar duas moedas de ouro por cabeça. Mas o pastor queria duas moedas de ouro e uma de prata por cabeça. Enquanto discutiam o preço, o sonho foi-se desvanecendo. E o vendedor, dando-se conta de que tudo não passava de um sonho, mantendo os olhos ainda fechados, gritou: ―Uma moeda de ouro por cabeça e você as leva todas…‖. –––––––––––– Nota: Do Disciplina Clericalis, foi apresentado a tradução de algumas piadas dos capítulos 28 e 31: Exemplum de Maimundo Servo e Exemplum de Opilione et Mangone (do cap. XXXI). Para a tradução, valeu-se do original latino, apresentado por Angel González Palencia, Madrid-Granada, CSIC, 1948. ––––––––––- Fontes: – LAUAND, L. J. (org.) Oriente & Ocidente VII- Idade Média: Cultura Popular, São Paulo, DLO-FFLCHUSP / Edix, 1995

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Folclore Brasileiro

O Amigo da Onça

A literatura popular brasileira também tem seu riso próprio, suas boas histórias e seus personagens marcantes. É o caso do Amigo da Onça, que virou a marca registrada do

desenhista de humor Péricles Maranhão na revista Cruzeiro dos anos de 1950. E acabou consagrando-se como uma expressão de uso corrente na nossa língua. Uma das melhores

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versões desta literatura de origem oral foi registrada por Lindolfo Gomes em 1931, em Contos Populares Brasileiros. A Onça, que é bicho valente – mas nem sempre atilado, como se pensa -, estava quietinha no seu canto quando lhe apareceu o compadre Lobo e lhe foi dizendo: - Saiba de uma coisa, comadre Onça: você – com perdão da palavra – não é, como supõe, o bicho mais valente e destemido que existe no mundo, nem também o Leão, com toda a sua prosa de rei dos animais. - Como assim! – gritou a Onça, enfurecida. – Então, como é isso, grande pedaço de idiota? Haverá bicho mais valente e poderoso do que eu? O Lobo, adoçando a voz, respondeu: - Ó comadre, me perdoe. Estou arrependido de dizer tal coisa… Mas a minha intenção foi preveni-la contra um ―bicho‖ terrível que apareceu nesta paragem. Uma pessoa prevenida vale por duas. - Sim, não deixa você de ter alguma razão – acudiu a Onça mais acomodada. Mas sempre quero saber o nome desse bicho. Como se chama? - Esse bicho, compadre, chama-se ―homem‖, conforme me disse o amigo papagaio. Nunca vi em minha vida animal de mais perigosa valentia. Ele sim, e ninguém mais, é o que me parece ser mesmo o verdadeiro rei dos animais. Basta dizer que, de longe, o vi matar, com dois espirros, nada menos do que um leão e uma hiena. Ih! Compadre, com o estrondo dos espirros parecia que tudo ia pelos ares. Deus nos livre! - Oh! Compadre, não me diga! - É como lhe conto. E o que mais admira é ser o ―bicho-homem‖ de pequeno porte. Parece até fraco, e é muito mal servido de unhas e dentes. Deve ser um ―bicho‖ misterioso e encantado. - Pois bem, compadre, estou curiosa, e desejo que, sem demora, me conduza ao lugar onde se encontra tão estranho animal.

- Ah, compadre, peça-me tudo, menos isso. Pelos estragos que, de longe, vi o homem fazer, com seus malditos espirros, nunca me atreveria a tal aventura… - Pois queira ou não queira, tem de mostrar-me o ―bicho‖, ou então, agora mesmo perderá a vida. - lá por isso não seja – disse o Lobo amedrontado. – Iremos. Mas havemos de tomar todas as precauções. Eu – com a sua licença – posso correr mais do que a comadre. Assim, levaremos uma embira daquelas que não arrebentam nunca. Amarro uma das pontas no pescoço da comadre e a outra em minha cintura. Em caso de perigo, se for preciso fugir, a comadre e eu corremos… - Fugir! Veja lá o que diz! Você já viu, ―seu‖ podrela, alguma vez onça fugir? - Não me expliquei bem. Eu é que fugirei. A comadre será apenas arrastada por mim. Isso não é fugir. Está certo? - Está bem. Faremos como propõe. E partiram. A Onça com a embira atada ao pescoço, e o Lobo, muito respeitoso e tímido, a puxá-la. Quando chegaram ao destino, o ―bicho-homem‖, surpreendido ao avistá-los, tirou da cinta a garrucha e, atarantado, bateu fogo, isto é, espirrou. uma, duas vezes, que foi mesmo um estrondo de todos os diabos. O Lobo então mais que depressa disparou numa corrida desabalada, redobrando quanto podia as forças para arrastar a Onça pela forte embira ―que tinha atado no pescoço dela‖. De repente, já muito distante, o Lobo sentiu que a Onça estava mais pesada. Parou então e contemplou a companheira estendida no chão, com os dentes arreganhados, sem o mais leve movimento. O Lobo, sem perceber que a Onça havia morrido enforcada no laço da embira – antes

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pensando que estivesse apenas cansada -. disse-lhe, tremendo como varas verdes: - He lá, comadre! Não ri não que o negócio é sério!

Fonte: COSTA, Flávio Moreira da (organizador). Os 100 Melhores Contos de Humor da Literatura Universal. 5.ed. RJ: Ediouro, 2001.

Vícios de Linguagem

Tautologia

A tautologia é um dos vícios de linguagem que consiste em dizer ou escrever a mesma coisa, por formas diversas, meio parecida com pleonasmo ou redundância. O exemplo clássico é o famoso subir para cima ou descer para baixo. Mas há ainda muitos outros. Observe a lista abaixo, e se utiliza alguma, procure fugir deste vício: - Acabamento final; - Nos dias 8, 9 e 10, inclusive; - Superávit positivo; - Todos foram unânimes; - Habitat natural; - Certeza absoluta; - Sugiro, conjecturalmente; - Nos dias , e inclusive; - Juntamente com; - Em caráter esporádico; - Expressamente proibido; - Terminantemente proibido; - Em duas metades iguais; - Destaque excepcional; - Sintomas indicativos; - Há anos atrás; - Vereador da cidade; - Outra alternativa; - Detalhes minuciosos; - A razão é porque; - Interromper de uma vez; - Anexo (a) junto a carta; - De sua livre escolha; - Superávit positivo; - Vandalismo criminoso; - Palavra de honra; - Conviver junto; - Exultar de alegria; - Encarar de frente; - Comprovadamente certo;

- Fato real; - Multidão de pessoas; - Amanhecer o dia; - Criar novos empregos; - Retornar de novo; - Freqüentar constantemente; - Empréstimo temporário; - Compartilhar conosco; - Surpresa inesperada; - Completamente vazio; - Colocar algo em seu respectivo lugar; - Escolha opcional; - Continua a permanecer; - Passatempo passageiro; - Atrás da retaguarda; - Planejar antecipadamente; - Repetir outra vez / de novo; - Sentido significativo; - Voltar atrás; - Abertura inaugural; - Pode possivelmente ocorrer; - A partir de agora; - Última versão definitiva; - Obra-prima principal; - Gritar/ Bradar bem alto; - Propriedade característica; - Comparecer em pessoa; - Colaborar com uma ajuda / auxílio; - Matriz cambiante; - Com absoluta correção/ exatidão; - Demasiadamente excessivo; - Individualidade inigualável; - A seu critério pessoal; - Abusar demais; - Preconceito intolerante; - Medidas extremas de último caso; - De comum acordo; - Inovação recente; - Velha tradição;

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- Beco sem saída; - Discussão tensa; - Imprensa escrita; - Sua autobiografia; - Sorriso nos lábios; - Goteira no teto; - General do Exército; (Só existem generais no Exército) - Brigadeiro da Aeronáutica; (Só existem brigadeiros na Aeronáutica) - Almirante da Marinha; (Só existem almirantes na Marinha) - Manter o mesmo time; - Labaredas de fogo; - Erário público;

(Os dicionários ensinam que erário é o tesouro público, por isso, basta dizer somente erário) - Despesas com gastos; - Monopólio exclusivo; - Ganhar grátis; - Países do mundo; - Viúva do falecido; - elo de ligação; - criação nova; - exceder em muito; - Sair para fora; - Entrar prá dentro; - Expectativas, planos ou perspectivas para o futuro. Fonte: http://ueba.com.br/forum/lofiversion/index.php/t23140.html

Jardel Estevão Barbosa

Silva O Perfume

Conto vencedor do Concurso Literário do Cinqüentenário da Academia Campinense de Letras, categoria contos, em 2007. ----------------------- Desde a morte de Maria Clara, comecei a cultivar o estranho hábito de passear no shopping, sem objetivos, sem tempo marcado e sem a correria que, por anos, dominou minha vida a cada segundo superficialmente vivido. Apenas andava. Talvez essa fosse uma forma de fugir das marcas tatuadas em minha casa, em meus costumes e em minha alma, que apenas meio século de convívio consegue impregnar. No ambiente fechado, observava o festival de aromas misturados naquela Torre de Babel contemporânea. Meu corpo, já cansado, inexplicavelmente buscava em meu âmago a energia necessária para continuar aquela rotina, mesmo contra a vontade de meus filhos, sempre preocupados. Minhas pernas eram asas que, a cada manhã, batiam em direção ao templo sagrado da superficialidade, buscando um sol artificial, mas igualmente luminoso. Em uma tarde de verão, caminhava muito distraído, embriagado com questionamentos e reflexões existenciais quando, de repente, senti

aquele perfume único, que havia se destacado da multidão para ser absorvido por minha alma adormecida. Foi como se uma força absoluta me agarrasse no abstrato universo das reflexões, no qual eu passeava livremente, e me trouxesse instantaneamente àquele shopping, naquela cidade, naquele ano, naquele dia, naquele segundo. Parei de andar, confuso, vivenciando um momento de silêncio e curiosidade, como a criança que vê o mar afastar-se e, de repente, vislumbra boquiaberta a onda gigantesca que se aproxima. Poseidon, supremo, enviara aquela onda aromática que invadiu a praia, destruiu a muralha defensiva do forte que construí em tantos anos de trabalho e despertou uma memória há tempos não estimulada. Na dualidade posta entre a realidade atual seca e o passado que vinha em forma de mar, resolvi mergulhar rumo ao esquecido. Lembrei de minha infância, quando passava as férias de verão na casa de minha avó, cuja vizinha tinha uma linda neta, chamada Manuela, que cultivava o mesmo hábito. Eu e Manuela vivemos muitas férias juntos, brincávamos o dia todo e, aos poucos, um sentimento ingênuo passou do branco ao rosa e do rosa ao carmim.

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Por um segundo, voltei à superfície em forma de shopping, respirei e retornei aos mistérios da memória como a baleia que, mesmo precisando de ar, precisa também voltar às profundezas. Senti o gosto do bolo de fubá de minha avó e seu cheiro, que caminhava até o quintal e nos hipnotizava em cantos de sereia aromáticos, os quais nos conduziam ao chá da tarde. ―Será que era ela?‖. Havia voltado novamente à superfície, agora como o golfinho que salta das águas e pode, por um instante, flutuar entre o sol e o mar. Olhei para trás e vi uma senhora caminhando com uma jovem em sentido oposto ao meu. Sem pensar muito, passei a segui-las, mas, com a ação da gravidade, voltei ao oceano. Estávamos agora brincando nas árvores do bosque do bairro, após uma chuva passageira. O vapor verde e cálido que nos atingia trazia um cheiro único, vinculado eternamente ao primeiro toque de nossas mãos. Lembrei das cartas que começamos a trocar durante o ano, aguardando o verão que sempre demorava tanto a chegar. Lembrei do aroma do lago em que assistíamos ao pôr-do-sol, também eternizado pelo nosso primeiro abraço e pelas reações até então desconhecidas que ele provocou em nossos corpos. Na superfície, a senhora havia parado em uma loja. Nas águas, lembrei que o aroma de Manuela era único, pois ela havia dito que misturara três tipos diferentes de perfume em busca de um cheiro só seu. Realmente conseguiu isso, pois eu nunca mais havia encontrado algo semelhante, até aquele dia. Do perfume, caminhei à lembrança da guerra que chegou e do último verão que passei com ela. Foi muito triste, com cheiro de despedida, pois sabíamos que a guerra era algo cruel. Sem conhecer direito os sentimentos, tínhamos a certeza de que precisávamos um do outro. Em uma tarde triste, ela furou nossos dedos com um espinho do parque (como havia visto em um filme) e disse que, se misturássemos nosso sangue, viveríamos para sempre juntos, um dentro do outro. Aquele cheiro de sangue somou-se ao aroma de seu semblante, que pude sentir bem de perto, em nosso primeiro e único beijo.

Quando voltei à superfície, percebi que as imagens haviam embaçado e, ao piscar, não pude conter duas lágrimas de criança percorrendo a face já enrugada. Mesmo assim, resolvi voltar às profundezas… Após o beijo, eu havia pressionado os dedos polegar e indicador para conter o sangramento e, levando-os ao peito, disse ―para sempre juntos‖. Ela fez o mesmo e eu me lembrava perfeitamente daqueles lábios jovens pronunciando palavras tão carregadas de afeto. Após aquele verão, houve a guerra. Nossas famílias mudaram várias vezes de endereço e a mútua imaturidade nos fez perder contato. Os anos passaram e a vida seguiu seu curso natural. Uma instantânea falta de ar trouxe-me fortemente à superfície com a pergunta que gritava em minha mente: será que era ela? Vi que a jovem havia entrado em uma loja enquanto a senhora estava sentada em um banco do lado de fora: aquele era o momento! Tremendo, caminhei em sua direção guiado pelo perfume, que se tornava mais intenso a cada passo. Ainda de longe, vi que não havia alianças em seus dedos: a sorte lutava ao meu favor! Caminhei mais alguns passos e sentei ao seu lado. Ela olhou para mim por um único instante e me cumprimentou movimentando o rosto, educadamente, como se faz a um desconhecido. Naquele único momento em que pude olhar para seus olhos, toda a realidade foi alterada. O brilho azul levou–me a um último mergulho, em que vi exatamente a mesma cor refletindo o sol daquele último verão, instantes antes do beijo. A cor era a mesma, o brilho era o mesmo, o perfume era o mesmo: senti que estava realmente diante de meu primeiro Amor. Saltei com todas as minhas forças das águas em direção ao sol, voltando à realidade. Meu coração, eufórico, dançava inebriado por aquele perfume de que tanto sentiu falta. Uni meu polegar ao indicador e, levando-os ao peito, disse a frase daquele verão. A senhora levou um aparente susto e parou de respirar por alguns segundos, na certa mergulhando nas mesmas profundezas das

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quais eu havia acabado de sair. Vagarosamente, virou seu rosto para o lado, exibindo os olhos arregalados e seu semblante lívido. Mais alguns segundos passaram até que ela mostrou um surpreendente sorriso: o mesmo sorriso que eu tão bem conhecia! Naquele momento supremo, percebi que eu havia saltado das águas não mais com nadadeiras, mas agora com asas! Despedi-me do mar e olhei para o céu, de onde pude sentir o caseiro aroma de meu então antigo, atual e futuro lar.

Jardel Estevão Barbosa Silva Formado técnico em eletro-eletrônica, cursou faculdade de psicologia, e, além de poeta, é

também contista. Presidente do Grupo CRIA Literária, em Campinas-SP. Foi premiado em diversos concursos, inclusive melhor ensaio nos 10ºs Jogos Florais da Junta de Freguesia de São Domingos de Rana – Portugal, em 2006, melhor conto nos 9ºs Jogos Florais da Junta de Freguesia de São Domingos de Rana, Portugal, em 2005, 2º Lugar no V Prêmio Escriba de Contos – Piracicaba (SP) e primeiro lugar no Concurso Nacional de Poesia promovido pelo CBE (Clube Brasileiro de Escritores) – São Paulo, em 2004. Fontes: – Revista da ACL (Academia Campinense de Letras). – Ano nº 1 • Abril/2007 – pag.7-9. – Abrace Editora.

Fernando Campanella

Conversa de Compadres

Conta-se que lá pelas bandas do Curralinho, a umas boas léguas de Santana de Caldas, vivia um homem, chamado por Bastião Medonho, sovina até os ossos, mestre no ofício de contar os grãos, para gerar maior lucro e evitar dissipação. Seu sítio era o que mais prosperava nas redondezas. Possuía tal homem uma azenha, onde transformava o milho em fubá ou quirera. A ele recorriam os sitiantes do lugar, trazendo parte de sua safra de milho para a troca com a farinha ou o fubá. E o Sr. Bastião sempre lucrava, o que os vizinhos levavam era três vezes menos o que traziam. Se era hora do café, às crianças, cujos pais até seu sítio chegavam para uma visita, de amizade ou a negócio, era dada apenas a metade de um bolinho de chuva que a esposa fazia; se hora do almoço, uma lasquinha cozida do imenso capado que abatera…Tudo calculado, medido, regulado. Seus cavalos eram os mais belos e mais possantes, seu milharal o mais viçoso, seu gado o mais gordo da região.

Conta-se , também, que Bastião Medonho era um caloteiro de primeira, mau pagador, embora houvesse amealhado uma pequena fortuna, que esquentava o único banco da pequena Santana de Caldas. Acertava suas dívidas só quando não havia mais jeito e pesava contra ele a ameaça de um processo na comarca da região. Ora, havia um compadre seu, o Sr. Maneco da Lua, um homem de caráter íntegro, pródigo, uma ‗candura de pessoa‘ , como se dizia por lá. Conheciam-se os dois desde que nasceram. Brincaram juntos, as famílias tinham um laço de compadrio que remontava há várias gerações, embora morassem distantes. Acontece que, certa vez, o Sr. Maneco vendera um belo cavalo para o compadre Bastião, sem documento assinado, na base da mais pura confiança, da amizade que os unia desde o berço. E nunca recebeu o dinheiro da transação. Também nunca cobrou: o Bastião era ‗cumpadi‘, amigo dos ‗bão‘ um ‗irmãu‘. E se o companheiro não pagava era porque devia estar em situação ‗das pior‘, como este sempre lhe dizia, chorando as mágoas, prometendo saldar a dívida logo que se recuperasse.

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O tempo passou e Bastião nunca mais deus as caras no sítio do compadre, mais por safadeza que por vergonha de encarar o bobo do compadre.

O Sr. Maneco não era mesmo um homem deste mundo. Colocava os valores do sentimento acima de tudo, a fidelidade, a integridade eram seus bens maiores, embora fosse constantemente acusado de ingenuidade pela esposa e familiares.

E certa feita, em regresso de uma viagem de vários dias, Bastião passou em um armarinho de Santana para a compra de alguma peça de vestuário. E viu que lá estava o Maneco. Tentou disfarçar, evitar o encontro, um certo mal-estar lhe gelando as veias como se houvesse enxergado um fantasma. Mas o bom compadre dele se aproximou, em sua aura de cordialidade, sempre discreto em sua elegância, o chapéu bem limpo, os óculos, a calça mais curta, deixando ver as botas sem meia, o embornalzinho a tiracolo.

- Salvi, Cumpadi Bastião. Comu tem passado a famia? E ocê, irmãu, já ta melhozinho lá nu sítiu? Miorô as coisa por lá?

- Vigi, cumpadi, a situação ta ruim, mais ta ruim… to penano dimais, doença no gado, praga no milhu, perdi tudinhu, Deus tenha dó….

E continuou a ladainha, tentando despertar piedade no amigo, evitando tocar no assunto da dívida contraída. Porém, o Maneco também nem referência a tal dívida fez. Só lembrou para o Bastião os bons tempos em que nadavam nas enchentes, lá no Lava-Cavalos, bons tempos da infância

em comum dos dois. E despediu-se assim como viera, uma leveza de espírito, quase um sopro de candura. Uma luz calma que de repente alumia e esvaece. Meio encolhido pela grandeza do amigo, disse então Bastião ao dono da loja -Bom sujeitinhu este Manequinhu – Pareci até um espíritu di tão levezinhu …. E riu, meio a contragosto. - O senhor tá bem? – perguntou o proprietário do armarinho. – Tava falando sozinhu… Tá passandu bem? - Tava proseanu aqui com meu Cumpadi, ora, o Maneco da Lua, irmão dos báum….. - O Sô Maneco lá da Juruaia? – indagou o dono da loja, espantado? - Sim, meu cumpadi…. - Ele faleceu esta manhãzinha … O corpo tá lá na igreja agora… Diz a lenda que Bastião, após confirmar falecimento do compadre pelo anúncio da igreja, se arrepiou dos fios do cabelo às unhas do pé, e disparou da loja, como se o Maldito, o Coisa-ruim, a Besta-de-Barba-de-Bode, o tivesse atacado. Seu sítio foi vendido, a família dali se foi. De Bastião Medonho não mais se ouviu falar. Se honrou as dívidas, se continuou medonho, não se sabe…Se morreu ninguém sentiu. Fontes: Academia Brasileira de Poesia da Casa de Raul de Leoni

Fernando Campanella

O Poeta no Papel

AO VENTO Fica comigo, mas não posso pedir ao vento que sopre ao alcance de meu ouvido,

ou à terra que abençoe nossos longos segredos -nem mesmo da luz querer ouso que se demore em meu abrigo.

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Quando os dados lançados e até meu silêncio contra toda certeza parecem que conspiram - e caso os dedos do mundo em suas recurvas unhas nos firam - releva, e fica comigo, os anjos sabem mais alto daquilo em que insisto, do que preciso. NINFÉIAS Eu vou aonde as nuvens de impossíveis tons se embriagam, eu nado onde aquáticos leques se irisam em sonhos e por arte do encanto se dissolvem. Eu furto cores, clico roxos que se miram em espelhos que me expandem. Bebo a luz, traço a alma, eu sou o impressionista ambulante. Então nem me perguntes por quais cambiantes geografias me espalho: meus olhos são câmeras mimadas meus pincéis são artífices do instante. LUZ CADENTE Serão miragens aqueles tons em cobre ondulando em folhas na tarde? Meus olhos devem andar poéticos ou delirantes. Ou mais febril a minha percepção que entende Que os animais atendem às nuances que a luz da tarde concede. Luz e folha devem ter naturezas atadas em delicado, intraduzível elo que traça o pássaro ao ninho. Não sei. O que para as aves deve ser algo como arbóreas núpcias em mim é um degredo em ecos, um vago ruflar de um sentido. Minha razão nada pode Contra a luz cadente Que vela e desvela aquele tom amêndoa - ferrugem quase dor, Quase leve -

Que a alma agora consente. E que de volta à presciência do mundo, ao ninho da terra vai me cumprindo. REFABULANDO Estas cigarras toantes flutuam na sã inconsciência de um sono. Estas cigarras -não as perturbes, não as toques - estas belezas crepitam em líquidas texturas de sonho. Mas se buscares que despertem, Afina os ouvidos, achega-te, Imperceptível, leve, e mais leve E como elas, enquanto verão, Arde então, e canta. CAPELA DOS OSSOS Eu que não vivi o Alentejo, que não voei com as cegonhas sobre suas albufeiras ao entardecer ( nem em suas quintas pernoitei) e que não cantei odes à glória de um D.Manuel e suas esquadras ( nem o Tejo naveguei) que às suas capelas não me desfiz dos ossos, não me embriaguei do néctar de seus deuses nem da flor mais bela em Évora me enamorei, eu, disso tudo, por descompasso dos astros, me privei. Mas, oh fado lusitano, Oh, alma dolente e migrante, tua nostalgia, teu estar nunca estando, esta sede por outros mundos, esse tanto, eu herdei. LA CAMPANELLA Aquela senhora toca um piano na tarde, La campanella, as teclas ágeis ondulando em mimos, em vibrantes sinos delicados. Imersos, cada qual em sua estória, uma sintonia de repente

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nos toma, uma arte - um rio profundo sem corte, um certo azul que nos sonha. A MEDIA LUZ Sempre reneguei o tango e os entusiastas de Gardel, (longe de mim a passional postura eivada de desolação e dor), o amor sempre em mim um campo de mais alvos lírios onde não choveu. Cerrei as tendas, afastei o bruxo, mas na contrapartida adiei o fruto, me ceguei à cor. Violinos eternos , bandoneón , toquem-me hoje um tango crepuscular e tardio, toquem, que desaprendi o me bastar e o meu cismar sozinho, à meia-luz meu coração são girassóis que dançam – todo chama, e torvelinho. ALQUIMIA Bom dia, minha jaqueta surrada, reincorporo-te como a uma identidade, a um eu imune aos ecos do mundo,a uma canção de amor tão gasta, e ainda sempre, sempre, ressuscitada. Bom dia, meu ninho, onde ao largo do dia me deito, resvalo dos elos concêntricos e disparo meus sonhos, em mais íntima revoada. Retomo-te, minha outra natureza, e contigo escrevo, entranho o reino dos meus velhos poetas - meus alquimistas dos sonhos – da realidade mais sutil, imaginária. Bom dia, meus sóis com chuvas, meu arco, meu ouro, meu pote de luz - claras núpcias de minhas raposas e viúvas. OLHOS Dois pássaros voam, de um leve azul inebriados. De onde os vejo Só há o espelho quieto de um lago. E já não sei o que é mais visível se o que enxergo, as aves, com meus olhos,

ou se aquelas flautas moventes sincronizadas, que sonho com os olhos quietos do lago. TUA BELEZA Tua beleza, inconsciente de si, Me puxa em seus encantos Para o seu leito. Mas o que fazer de tua beleza Senão sofrer/gozá-la em doses de solidões noturnas e densas? (Senão armá-la em vaso Para decantar a mesa.) Como um jardineiro de ventos Prefiro ver-te Heras galgando muros Ervas tecendo pastos Ou aérea flor da memória. Amar tua beleza , não mais, Como cor que não apreendo Rio que não detenho e que passa. CONSUMMATUM A poesia, se um de mim se for, que eu não a renegue, nem de meus poemas eu diga, ‗ah um dia isto tresloucado eu fiz‘. Se o tempo da mais morna sensatez Ao chão me puxar , como um tempo de razão a ensombrar os deuses, e os dias vierem despidos, desfolhados na vastidão , que eu não cerre as pálpebras e murmure, ‗ consummatum est, foi tudo desvio e dissipação‘. E se não mais me vibrarem os timbales e de mim restarem tão somente o silêncio imune e a cinza amorfa, que de mim eu me lembre como um acendedor de palavras, e que eu me leia, na noite, como se lêem os mosaicos dos sonhos, os versos, o melhor de meus atos, a mais sublime, libertária , rendição. FRUTOS DA TERRA Benditos os filhos do ventre da terra Que o sol desperta tão cedo, Que o trigo e a uva aguardam no campo Para o mágico processo do pão e do vinho.

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Benditos os frutos da terra Que se abrem à manhã Em silêncios e cantos Que mesclam no ar e os filhos da paz, que ligam o céu ao mundo, os que reciclam o dia e dele retiram sustento e eternidade. Abençoados os que bendizem, Os que curam, e que a dor amenizam, os que por via de tolerância se entendem. Benditos os que domam a cólera E se transformam no amor, Amor que bebe da identidade da vida. Bendito o sol que amadurece os frutos de terra. Mais bendita a luz por que anseia ‗a noite escura da alma‘. PÁSSAROS A primavera de New England não traz seus pássaros à minha janela. Mas por que penso naqueles cantos Se nem os pássaros de meu velho rio Ou de minhas conhecidas árvores Vêm ao meu jardim cantar? Só cantam para si próprios, creio, o martim- pescador, a corrila , o joão-de-barro atribulado. Pensando bem, nem mesmo pardais, Nenhum pio, nenhum bemol acasalado Conseguem meu dia despertar. Ficam por si, longínquos, os canários e os bem-te-vis nas cercanias . Como é triste acordar, agora percebo, Daquelas ternuras surdo, descantado. Como é áspero raspar do dia o aço. Ranger roldanas de hábitos e ossos. Cantem para si, para Deus ou para quem os consiga ouvir o exótico robin , o cuco e a cotovia. Nenhum trinado, nem mesmo um grasnar Vem alcançar meus ouvidos ruidosos. Ah, vejam, sou mesmo um rei nu, Um moedor de pedras, Sou aquele imperador da China Que tão pobre era sem seu pássaro - Aquele pobre mandarim , A solidão, meu triste rabicho,

a ausência, esta enorme vassala de mim.

Fernando Campanella, por ele mesmo

(1953) O que teríamos, almas de artista , que aos olhos racionais e práticos seria enxergado como desequilíbrio ou quimera? Por que sentimos as dores da alma com maior intensidade, e vivemos maior interação entre o de dentro e o de fora? Por que tudo em nós tem ressonância, e o silêncio a mais forte voz, ainda que delicada? Por que? Por que? Seríamos crianças indagando as razões, vislumbrando os sentidos? Traríamos o condão dos magos, refazendo o encanto dos elos perdidos?. Fluxo, refluxo, sístole, diástole, mundo, alma…. Deus, no sétimo dia, sob toda responsabilidade e peso da orbe criada, deve ter pintado um quadro, tocado uma flauta, ou escrito poesia. Antonio Fernando Cruz. O sobrenome Campanella vem da família de minha mãe, o qual adotei como nome de poeta pelo fato de meu bisavô materno, assim como meu avô, terem sido , de alguma forma, escritores, e , também, pelo fato de meu tio, irmão de minha mãe, o Campanella Neto, ter sido um fotógrafo. A paixão pelo literatura e fotografia, então, foi herdada dessa vertente, da família de minha mãe. Nascimento: 13 de junho de 1953, em Pouso Alegre, sul de MG Formação: Curso primário em Pouso Alegre, sul de MG. Ginasial em Cambuí, e Poços de Caldas, sul de MG. Curso Clássico em Belo Horizonte, MG. Curso Superior (Letras, Português e Inglês, em Itajubá, sul de MG). Cursos rápidos de inglês avançado em Londres, e E.U.A. Cursos de aperfeiçoamento de conversação inglesa, e para professores, assim como congressos de ensino da Língua Inglesa. Profissional: Professor de Inglês, Ex-diretor da franquia da Escola Fisk em minha cidade. Professor de Língua Portuguesa em colégio municipal de minha cidade por um determinado período. Outras informações: Membro da academia de Letras de Pouso Alegre. Vencedor de um

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concurso de poesia em minha cidade. Nenhum livro ainda publicado. Curiosidade: Adélia Prado, após ler alguns poemas que lhe enviei, há alguns anos atrás, respondeu-me: Caro Fernando, fiquei feliz ao ler teus poemas, pois são de um poeta. E para poetas não se dão conselhos. Escreva, escreva, escreva, para nossa e sua alegria. Como fiquei feliz! Pentecostes está chegando, que seu coração se

incendeie de poesia. Não fique ansioso, Deus quando dá o dom, dá os meios. Por que não envia seus originais para este editor no Rio de Janeiro:………… Já quase em fase de aposentadoria, pretendo dedicar-me, nesta fase de minha vida, á poesia, crônicas, e , como registro de minha região, à fotografia. Fonte: Academia Brasileira de Poesia da Casa de Raul de Leoni.

Academia Campinense de

Letras

No ano de 1956, por iniciativa do então secretário municipal de educação e cultura, professor Francisco Ribeiro Sampaio, também titular da cadeira de filologia portuguesa na Pontifícia Universidade Católica de Campinas, reuniram-se no dia 17 de maio, nas dependências do Teatro Municipal os mais destacados nomes da intelectualidade campinense para decidir sobre a fundação do sodalício, que ficou consagrada , referencialmente, na predita data. A sessão de posse e instalação ocorreu a 22 de novembro do mesmo ano, tendo sido eleito como primeiro presidente o próprio prof. Sampaio. Criada nos moldes da Academia Brasileira de Letras , a ACL é composta de quarenta cadeiras de provimento vitalício. O primeiro corpo de acadêmicos fundadores foi constituído pelos intelectuais: prof. Francisco Ribeiro Sampaio, Dr. Paulo Mangabeira Albernaz, Dr. Theodoro de Souza Campos Júnior, prof. Armando dos Santos, Sr. Heládio Brito, Dr. Herculano Gouvêa Neto, prof. Stênio Pupo Nogueira, Dr. Carlos Francisco de Paula, prof. Mário Gianini, Dr. Valdemar César da Silveira, jornalista Luso Ventura, prof. Benedito Sampaio, monsenhor Emílio José Salim, Dr. Carlos Foot Guimarães, Dr. Antônio Leite Carvalhaes, prof. José Roberto do Amaral Lapa. A esses nomes posteriormente se acrescentaram, por eleição , mais os seguintes: Dr. Francisco José Monteiro Sales, Dr. Edmundo

Barreto, Dr. José Emanuel Teixeira de Camargo, Dr. Plínio do Amaral, Sr. José de Castro Mendes, Dr. Paulo de Castro Pupo Nogueira, Dr. Mílton Duarte Segurado, prof. Francisco Galvão de Castro, tenente-coronel Waldomiro de Vasconcelos Ferreira, e Sr. Celso Maria de Melo Pupo, Dr. Lycurgo de Castro Santos Filho, o Sr. Rafael de Andrade Duarte , Dr. Camilo Geraldo de Souza Coelho, Sr. Sebastião Alvarenga, Dr. Francisco de Assis Iglesias, Dr. Nélson Noronha Gustavo Filho, Dr. Paulo da Silva Pinheiro, prof. Adalberto Prado e Silva, prof. Norberto de Sousa Pinto, Dr. Mário Erbolato, e prof. Guilherme Leanza e , por último, o deputado Ruy de Almeida Barbosa, em substituição ao dr. Antônio da Costa Neves Júnior, que declinou da indicação. Posteriormente , declinaram também, os jornalistas Luso Ventura e Mário Erbolato. O prof. Francisco Ribeiro Sampaio foi então confirmado presidente para um mandato de dois anos. Atual Presidente Presidente – Agostinho Toffoli Tavolaro OBJETIVO Concebida nos moldes consagrados de suas congêneres, congrega intelectuais e literatos da terra campinense com o fito primordial de promover as letras, incrementar a cultura e cultuar a historia da cidade de Campinas.

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No encalço destes objetivos, disponibiliza sua sede ao publico em geral e aos intelectuais em particular congregando diversas entidades culturais que dela se servem para seus encontros e eventos, como a Academia Campinense Maçônica de Letras, o Centro de Poesia e Artes de Campinas ( CEPAC), Casa do Poeta, alem, evidentemente do vasto programa da própria agremiação diversificado em palestras mensais proferidas por acadêmicos ou convidados, regularmente complementadas por apresentações musicais, premiações de artistas destacados, o mais das vezes, expositores da galeria de artes Lelio Coluccini, a qual permanentemente abre-se à comunidade de artes plásticas campinense para suas mostras e ventos. O poder público ali encontra, analogamente, ambiente favorável e instalações adequadas para congressos, palestras e treinamento de pessoal docente, ligados à Secretaria Municipal de Educação, disponibilidade da qual não se exclui a rede particular de ensino do município. Possuidora de vasto acervo bibliotecário, o disponibiliza ao publico campinense através de convênio com o Centro de Ciências Letras E Artes de Campinas, que o mantêm , em separado, junto à sua própria biblioteca, ate que possa a academia abrigá-lo nas suas próprias instalações. SEDE Por outorga da Prefeitura Municipal de Campinas, possui a Academia Campinense de Letras sede própria, projetada e construída exclusivamente para seu funcionamento sobre o terreno situado à Rua Marechal Deodoro ,n.525, Centro, Campinas , SP, com CEP 13010-300 e telefone 0XX19-32312854. A concepção arquitetônica obedeceu os mais rígidos princípios da ordem dórica que vigorava no século VI a. C., caracterizada por colunas grossas no primeiro terço, adelgando nos dois terços seguintes, sendo , de alto a baixo, sulcadas de caneluras ou estrias em meia cana, encimadas por capitéis que suportam o entablamento. Lintéis, ligando os capitéis, formam a arquitrave para apoio das vigas do teto.

De maneira geral, a construção segue as normas arquitetônicas dos templos gregos. Imortais (em negrito, os patronos das cadeiras) 01 Leopoldo Amaral 1-Francisco Ribeiro Sampaio 2-Maria Lúcia de Souza Rangel Ricci 02 Dom João Nery 1-Monsenhor Emílio José Salim 2-Dante Alighieri Vita 3-Francelino de Souza Araújo Piauí 4-Rogério César Cerqueira Leite. 5-Côn.José Antônio Moraes Busch 03 Carlos de Laet 1-Benedito Sampaio 2-Maurício de Moraes 3-Carlos Aquino Pereira 04 Afrânio Peixoto 1-Valdemar César da Silveira 2-Penido Burnier 3-Wilson Brandão Toffano 4-João Ribeiro Júnior 05 João Lourenço Rodrigues 1-Carlos Francisco de Paula 2-André Leme Sampaio 3-Odilon Nogueira de Matos 06 César Bierrenbach 1-Herculano Gouvêa Neto 2-Rosalvo Madeira Cardoso 07 Euclides da Cunha 1-Armando dos Santos 2-Benedito José Barreto Fonseca 08 Hildebrando Siqueira 1-Francisco Isolino Siqueira 09 Monteiro Lobato 1-Antônio Leite Carvalhaes 10 Pe. Leonel França 1-Mário Giannini 2-Isolde Helena Brans 11 Júlio de Mesquita 1-Carlos Foot Guimarães 2-Messias Gonçalves Teixeira 3-Jorge Antônio José 4-Luno Volpato

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12 Francisco de Moraes Júnior 1-Stênio Pupo Nogueira 2-Marina Becker 13 Castro Alves 1-Heládio José de Ávila Brito 14 Bernardo de Souza Campos 1-Theodoro de Souza Campos 2-Pedro João Bondaczuck 15 Ruy Barbosa 1-Paulo Mangabeira Albernaz 2-Rubem Alves 16 Tomaz Alves 1-Monteiro Sales 2-Nair de Santana Moscoso 3-Dr. Hélcio Maciel França Madeira 17 Afonso de Taunay 1-Hilton Federici 2-Maria Dezonne Pacheco Fernandes 3-Rubem Costa 18 Arnaldo Vieira de Carvalho 1-José Emanuel Teixira de Camargo 2-Arita Damasceno Pettená 19 Amadeu Amaral 1-Plínio do Amaral 2-Renê Pena Chaves 3-João Francisco Régis de Moraes 20 Rodrigues de Abreu 1-Alechandre Chiarini 2-Maria Celestina Teixeira Mendes Torres 21 Artur Segurado 1-Milton Duarte Segurado 22 Oliveira Viana 1-Francisco Galvão de Castro 2-Uassyr Martinelli 23 Alberto de Oliveira 1-Waldomiro de Vasconcelos Ferreira 2-José Aristodemo Pinotti 24 Benedito Otávio 1-José Roberto do Amaral Lapa 2-Luiz Carlos Ribeiro Borges 25 João Batista Pupo de Moraes 1-Paulo de castro Pupo Nogueira

2-Luís Felipe da Silva Wiedemann 3-Duílio Battistoni Filho 26 Ricardo Gumbleton Daunt 1-Lycurgo de Castro Santos Filho 2- Sérgio Galvão Caponi 27 Custódio Manuel Alves 1-Rafael de Andrade Duarte 2-Mauro Sampaio 3-Luiz Antônio Alves Torrano 28 Pelágio Álvares Lobo 1-Camilo Geraldo de Souza Coelho 29 Paulo Álvares Lobo 1-Celso Maria de Mello Pupo 2-Dr. João Plutarco Rodrigues Lima 30 Humberto de Campos Veras 1-Sebastião Alvarenga 2-Maria Conceição de Arruda Toledo 31 Plínio Barreto 1-David Antunes 2-Mário Pires 3-Alcy Gigliotti 32 Vital Brasil 1-Francisco de Assis Iglesias 2-Luís Gonzaga Horta Lisboa 3-Célia Siqueira Farjallat 33 Sud Menucci 1-Norberto de Souza Pinto 2-Maria José Morais Pupo Nogueira 34 José de Sá Nunes 1-Adalberto Prado e Silva 2-Régis Torres de Castro 3-Nathanael de Almeida Leitão 35 D. Francisco de Aquino Correia 1-Nelson Norronha Gustavo Filho 2-Lauro Péricles Gonçalves 36 Carlos Willian Stevenson 1-Paulo da Silva Pinheiro 2-Julio Mariano Júnior 37 Francisco Quirino dos Santos 1-Marino Emílio Falcão Lopes 38 Manuel Ferraz de Campos Sales 1-Ruy de Almeida Barbosa

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2-Ana Suzuki 39 José de Anchieta 1-Mons. Luiz Fernandes de Abreu 2-Cônego João Corrêa Machado 3-José Alexandre dos Santos Ribeiro

40 Antônio Álvares Lobo 1-Carlos Penteado Stevenson 2-Ver. Júlio Andrade Ferreira 3-Agostinho Toffoli Tavolaro Fonte: Academia Campinense de Letras

Raul de Leoni

Poesias

A HORA CINZENTA Desce um longo poente de elegia Sobre as mansas paisagens resignadas; Uma humaníssima melancolia Embalsama as distancias desoladas… Longe, num sino antigo, a Ave-Maria Abençoa a alma ingênua das estradas; Andam surdinas de anjos e de fadas, Na penumbra nostálgica, macia… Espiritualidades comoventes Sobem da terra triste, em reticência Pela tarde sonâmbula, imprecisa… Os sentidos se esfumam, a alma é essência E entre fugas de sombras transcendentes, O pensamento se volatiliza… ARGILA Nascemos um para o outro, dessa argila De que são feitas as criaturas raras; Tens legendas pagãs na carnes claras E eu tenho a alma dos faunos na pupila… Às belezas heróicas te comparas E em mim a luz olímpica cintila, Gritam em nós todas as nobres taras Daquela Grécia esplêndida e tranqüila… É tanta a glória que nos encaminha Em nosso amor de seleção, profundo, Que (ouço de longe o oráculo de Elêusis),

Se um dia eu fosse teu e fosses minha, O nosso amor conceberia um mundo, E do teu ventre nasceriam deuses… DECADÊNCIA Afinal, é o costume de viver Que nos faz ir vivendo para a frente. Nenhuma outra intenção, mas, simplesmente O hábito melancólico de ser… Vai-se vivendo… é o vício de viver… E se esse vício dá qualquer prazer à gente. Como todo prazer vicioso é triste e doente, Porque o Vício é a doença do Prazer… Vai-se vivendo… vive-se demais, E um dia chega em que tudo que somos É apenas a saudade do que fomos… Vai-se vivendo… e muitas vezes nem sentimos Que somos sombras, que já não somos mais nada Do que os sobrevivente de nós mesmos!… TRANSUBSTANCIAÇÃO Esta chance em que existo há de tornar-se um dia, Em húmus germinal, em seiva fecundante, Decompondo-se em Pó, há de ser a energia De vidas que sobre ela hão de viver adiante… Será fonte, Princípio, a tábida apatia De um movimento novo intérmino e constante, Sua ruína será a feraz embriogenia

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De outros tipos de Vida, instante para instante. Há de um horto florir por sobre o seu passado. Borboletas iriais e anêmonas olentes, Vidas da minha Morte, eu mesmo transformado… E, assim, irei buscando a Perfeição perdida, Vivendo na Emoção de seres diferentes Que a Morte é a transição da Vida para a Vida… DESCONFIANDO Tu pensas como eu penso, vês se eu vejo, Atento tu me escutas quando falo; Bem antes que te exponha o meu desejo Já pronto estás correndo a executá-lo. Achas em tudo um venturoso ensejo De servir-me a verdade num gracejo. Serias, se eu quisesse, o meu cavalo… Mas não penses que estólido eu te creia Como um Patroclo abnegado, não De todos os excessos de receia… O certo é que, em rancor, por dentro estalas; Odeias-me quem eu sei, mas, histrião, Beijas-me as mãos por não poder cortá-las… “ ALMAS DESOLADORAMENTE FRIAS…” Almas desoladoramente frias De uma aridez tristíssima de areia, Nelas não vingam essas suaves poesias Que a alma das cousas, ao passar, semeia… Desesperadamente estéreis e sombras Onde passas (triste aura que as rodeia!) Deixam uma atmosfera amarga, cheia De desencantos e melancolias… Nessa árida rudeza de rochedo, Mesmo fazendo o bem, sua mão é pesada, Sua própria virtude mete medo… Como são tristes essas vidas sem amor, Essas sombras que nunca amaram nada, Essas almas que nunca deram flor… CREPUSCULAR Poente no meu jardim… O olhar profundo

Alongo sobre as árvores vazias, Essas em cujo espírito infecundo Soluçam silenciosas agonias. Assim estéreis, mansas e sombrias, Sugerem à emoção em que as circundo Todas as dolorosas utopias De todos os filósofos do mundo. Sugerem… Seus destinos são vizinhos: Ambas, não dando frutos, abrem ninhos Ao viandante exânime que as olhe. Ninhos, onde vencida de fadiga, A alma ingênua dos pássaros se abriga E a tristeza dos homens se recolhe… UNIDADE Deitando os olhos sobre a perspectiva Das cousas, surpreendo em cada qual Uma simples imagem fugitiva Da infinita harmonia universal. Uma revelação vaga e parcial De tudo existe em cada cousa viva: Na corrente do Bem ou na do Mal Tudo tem uma vida evocativa. Nada é inútil; dos homens aos insetos Vão-se estendendo todos os aspectos Que a idéia da existência pode ter; E o que deslumbra o olhar é perceber Em todos esses seres incompletos A completa noção de um mesmo ser… PUDOR Quando fores sentindo que o fulgor Do teu Ser se corrompe e a adolescência Do teu gênio desmaia e perde a cor, Entre penumbras em delinquescência, Faze a tua sagrada penintência, Fecha-te num silêncio superior, Mas não mostres a tua decadência Ao mundo que assistiu teu esplendor! Foge de tudo para o teu nadir! Poupa ao prazer dos homens o teu drama! Que é mesmo triste para os olhos ver E assistir, sobre o mesmo panorama,

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A alegoria matinal subir E a ronda dos crepúsculos descer… PRUDÊNCIA Não aprofundes nunca, nem pesquises O segredo das almas que procuras: Elas guardam surpresas infelizes A quem lhes desce às convulsões obscuras. Contenta-te com amá-las, se as bendizes, Se te parecem límpidas e puras, Pois se, às vezes, nos frutos há doçuras, Há sempre um gosto amargo nas raízes… Trata-se assim, como se fossem rosas, Mas não despertes o sabor selvagem Que lhes dorme nas pétalas tranquilas, Lembra-te dessas flores venenosas! As abelhas cortejam de passagem, Mas não ousam prová-las nem feri-las.. AOS QUE SONHAM Não se pode sonhar impunemente Um grande sonho pelo mundo afora, Porque o veneno humano não demora Em corrompê-lo na íntima semente… Olhando no alto a árvore excelente, Que os frutos de ouro esplêndidos enflora, O Sonhador não vê, e até ignora A cilada rasteira da Serpente. Queres sonhar? Defende-te em segredo. E lembra, a cada instante e a cada dia, O que sempre acontece e aconteceu: Prometeu e o abutre no rochedo, O calvário do filho de Maria E a cicuta que Sócrates bebeu!

Raul de Leoni (1895 – 1926)

Raul de Leoni (Petrópolis, 30 de outubro de 1895 — Itaipava, 21 de novembro de 1926) 30 de outubro de 1895, nasce em Petrópolis, Estado do Rio, Raul de Leoni Ramos, terceiro filho do magistrado Carolino de Leoni Ramos e de D. Augusta Villaboim Ramos.

Em 1903, cursa o primário e, a seguir, o secundário, no Colégio Abílio, em Niterói. Em 11 de setembro de 191o, faz a Primeira Comunhão aos quinze anos, na Capela do Colégio São Vicente, dos padres Premonstratenses, em Petrópolis, onde se encontra internado. Em 1912, matricula-se da Faculdade Livre de Direito do Distrito Federal, colando grau de bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais, quatro anos mais tarde. Parte para a Europa em 9 de abril de 1913, indo visitar a Inglaterra, França, Itália, Espanha e Portugal. Impressiona-se com Florença, única cidade nominalmente decantada em seu livro. De volta ao Rio de Janeiro, em 1914, inicia colaboração literária nas revistas Fon-Fon e Para-Todos, colaborando mais tarde em O Jornal (1919), no Jornal do Comércio e no Jornal do Brasil. Em 13 de março de 1918 é nomeado, por Nilo Peçanha, Ministro das Relações Exteriores no governo Wenceslau Brás, para o cargo de Secretário da Legação do Brasil em Cuba, não chegando a assumir, regressando da Bahia. No ano de 1919, após declinar da sua nomeação para cargo idêntico, em nova Legação junto ao Vaticano, aceita ir para Montevidéu, onde permanece por três meses, para logo definitivamente abrir mão da Diplomacia. É eleito Deputado à Assembléia Fluminense. Publica seu primeiro livro de poemas: Ode a um poeta morto, dedicado à memória de Olavo Bilac. Em 8 de setembro de 1920 contrai casamento com Ruth Soares de Gouvêa. Em 6 de abril de 1921 casa-se com Ruth Soares de Gouvêa. No ano de 1922 publica Luz mediterrânea, e começa a colaborar no jornal O Dia. Em 1923, vitimado pela tuberculose, abandona o convívio de parentes e amigos, indo para Corrêas, e a seguir, Itaipava, licenciando-se do

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cargo de inspetor na companhia de seguros em que trabalhava. Falece em 21 de novembro de 1926, na Vila Serena, em Itaipava, Petrópolis, hoje condomínio Alexandre Mayworm. Após a sua morte em Itaipava seu corpo foi conduzido para Petrópolis, que lhe prestou suas últimas homenagens, sepultando-o à sombra do Cruzeiro das Almas, erigindo-lhe um mausoléu e dando o seu nome a um trecho da Rua Sete de Setembro. Sinopse crítica da obra do autor

A obra de Raul de Leoni obteve estudos críticos de de Agrippino Grieco, Rodrigo Melo Franco de Andrade, Medeiros de Albuquerque, Alceu Amoroso Lima, Ronald de Carvalho, Manuel Bandeira, Afonso Arinos de Melo Franco, Tasso da Silveira e Sergio Milliet. Foi o poeta de maior realce na última fase do simbolismo, e justamente considerado como uma das figuras mais notáveis do soneto brasileiro de todos os tempos. Parnasianos, simbolistas e até modernistas o têm em alta conta, apreciando-o sem reservas. Cada um de seus versos tem sonoridade e ritmo primorosos, especialmente os dos sonetos, em decassílabos, mesclados de simbolismo e de modernismo, com tessitura clássica e técnica parnasiana. São versos considerados dos mais perfeitos: em idéia, filosofia, e essência das temáticas. Porém, a mesma unanimidade não tem a crítica ao situar o poeta, em diferentes julgamentos, onde foi colocado nas escolas e posições poéticas as mais diferentes e contraditórias. Enquanto alguns dos seus críticos o consideram um genuíno parnasiano, outros enxergam nele o simbolista autêntico, terceiros acreditam ter sido um neo-parnasiano e outros o situam num grupo completamente independente das regras poéticas e influências de escolas e movimentos literários.

Análise literária

O seu ritmo peculiar e admirável de versificação, o conjunto de idéias sublimes de suas palavras, são os aspectos mais fortes que envolvem a magnífica harmonia da unidade de pensamento que existe em toda sua obra. Raul de Leoni é poeta de grandeza solitária, unindo a uma filosofia panteística um espírito

helênico de poesia ligada ao canto e a música. Apesar de apontarem em seus versos Pascal e Platão, sua poesia nada tem de filosófica. É espontânea, colorida, sensual. Sua estética à maneira platônica leva-o a uma vizinhança extraordinária com o Simbolismo, sendo, tanto quanto Guimarães Passos um grande poeta de transição. Todavia a crítica literária brasileira é unânime em assinalar a alta linhagem clássica da poesia de Raul de Leôni, fundada na homogeneidade da sua primazia gramatical, temática e métrica, e consolidada no seu bom gosto literário, reconhecidos como impecáveis, desde a sua época até os dias atuais.

A sua poesia embora contenha formas antigas e clássicas, é caracterizada por um imperecível espírito de modernidade, o que lhe assegura compreensão ilimitada e aperiódica, e o introduz na seleta plêiade dos poetas imortais.

Principais poemas

De todos os poetas brasileiros, de qualquer escola onde existissem regras poéticas, incluindo os independentes, o único que não sofreu sequer um sopro de menosprezo do assíduo fôlego da ―corrente modernista brasileira‖ foi Raul de Leôni. Seus sonetos, de métricas perfeitas, repletos de metáforas e de concepções filosóficas extraordinárias, corriam nos cadernos de poesia dos moços e moças da época, que compreendiam aqueles versos de palavras doces, que continham, ao mesmo tempo, tanta simplicidade e tanto esclarecimento.

A 1ª edição do ―Luz Mediterrânea‖, de 1922, editada em vida pelo autor, começa com o poema ―Pórtico‖ (onde ele se desvencilha, quase por completo, dos laços da influência do Parnaso brasileiro) e termina com o ―Diálogo Final‖, tendo sido os ―Poemas Inacabados‖ (que o poeta, ao pressentir a morte prematura, pediu para sua mulher queimar, e ela não compreendeu o seu pedido) que fazem parte da 2ª edição, e das edições seguintes, foram anexados ao ―Luz Mediterrânea‖ pelos outros editores das mesmas.

Se Ode a um Poeta Morto é realmente parnasiano, não o são muitos dos poemas de

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Luz Mediterrânea, entre eles História de uma alma, E o poeta falou, Imaginação, Supertição?, etc., sem omitir o soneto Argila, um dos melhores da lingua e do qual disse

Agripino Grieco, que ―todo brasileiro deveria saber de cor‖. Fontes: - Academia Brasileira de Poesia da Casa de Raul de Leoni - Wikipedia

Alberto Paco

Uma Estranha Mulher

O apelido dela era ―peixeira‖, mas o nome ninguém sabia, nem se preocupava em perguntar. Alta, magra e sisuda, tinha apenas trinta anos de idade, embora aparentasse muito mais. Suas vestes eram pretas e longas, deixando aparecer somente os sapatos pretos e rasos de verniz. Completando sua indumentária, um lenço preto como as vestes, amarrado por baixo do queixo pontudo, cobria-lhe por inteiro a cabeça e as orelhas, sem deixar entrever o cabelo, que ninguém sabia qual era a cor. Essa taciturna figura sobrevivia da venda de peixe, que uma camionete lhe entregava uma vez por semana. Daí provinha sua alcunha. O diminuto casebre em que morava, na pequena aldeia encravada na encosta do rio Douro, na Província de Trás-os-Montes, em Portugal, tinha somente a porta de entrada e uma estreita janela, ambas confeccionadas com madeira grossa e pesada. A janela estava permanentemente fechada. A porta era entreaberta o suficiente para dar passagem à enigmática figura da ―peixeira‖. Os curiosos, que formavam a totalidade dos moradores locais, esticavam os pescoços, querendo bisbilhotar o interior da diminuta moradia, que se resumia a um único cômodo de apenas dezesseis metros quadrados. As paredes eram constituídas de grossas e irregulares pedras, com espessura de no mínimo quarenta centímetros. O telhado sem forro, de telhas velhas e desgastadas pelo tempo, era sustentado por vigas enegrecidas pela fumaça da fogueira

que ardia em cima de grossa laje de cantaria, colocada em um dos cantos do casebre, à guisa de lareira. No outro, canto uma cama de ferro, cujo estrado era formado por grossas tiras de borracha entrelaçadas, cobertas por um colchão de cor indefinida e recheado de palha de centeio. Uma pequena mesa de madeira, de um metro quadrado, com uma banqueta feita de um tronco de árvore, colocadas no centro do cômodo por sobre o chão de terra batida, completavam a modesta mobília da estranha mulher. O inverno naquelas paragens era rigoroso. Os aldeões se preveniam para os dias mais frios, carregando grande quantidade de lenha apanhada nas matas que circundavam a aldeia. A ―peixeira‖ seguia o exemplo dos outros moradores, apenas com uma diferença. Os camponeses carregavam a lenha em barulhentos e desengonçados carros puxados por parelhas de bois ou em feixes amarrados sobre o lombo dos burricos. Enquanto isso, a pobre mulher, que nada tinha de seu, carregava os pesados fardos na cabeça, percorrendo a grande distância a pé, entre seu humilde barraco e o local onde se abastecia de lenha. Certa manhã, fria e cinzenta de fim de outono, a esguia ―peixeira‖ pegou seu podão, um pedaço de corda grossa e dirigiu-se para o extenso e cerrado matagal. Com a afiada ferramenta cortou boa quantidade de galhos secos e amarrou-os com a corda. Retesando

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seus magros e longos braços, ergueu o pesado feixe de lenha, colocou-o na cabeça e dirigiu-se ao estreito caminho que trilharia de volta para casa. Ao pular o pequeno regato de água cristalina que cortava o caminho entre dois muros de uma propriedade rural, sentiu um líquido quente escorrer por suas coxas. Pousou o pesado fardo de lenha sobre um dos muros que ladeavam o caminho e agachou-se ao lado do riacho. Arregaçou a longa saia e abriu as pernas, ficando à espera de que um ser vivo saísse de seu ventre. Após algumas contrações, fez um violento esforço e finalmente nasceu um saudável menino. Pegando o podão que carregava na cintura, cortou o cordão umbilical. Lavou o recém-nascido na água fria do regato, embrulhou-o em seu grosso xale preto e amarrou-o contra o peito para aquecê-lo. Carregou novamente o feixe de lenha na cabeça e caminhou lentamente em direção de seu mísero casebre. A coragem e o esforço sobre-humanos daquela enigmática mulher foram admirados e respeitados por todos os moradores da pequena localidade. As piedosas esposas dos aldeões puderam finalmente adentrar o casebre da ―peixeira‖,

levando-lhe roupas e alimentos, enquanto os maridos levavam montes de lenha para o inverno que se aproximava. Entretanto, ninguém ficou sabendo quem era o pai daquela criança, porque a ―peixeira‖ nunca fora vista na companhia de nenhum homem. Apesar das perguntas diretas formuladas pelas matronas da aldeia, ela nunca lhes satisfez a curiosidade. O garoto cresceu saudável, brincando com as outras crianças do lugar. Era esperto e comunicativo. Um dia, após atingir cinco anos de idade, grudou-se nas pernas de um policial chamando-o de pai. Dali por diante, qualquer homem fardado que passasse por perto era cercado pelo garoto, que se agarrava nas pernas dele gritando: Pai! Pai! Pai! Na pequena aldeia onde nada acontecia, aquilo serviu de especulações maldosas, ocasionando até desavenças entre os poucos policiais do lugar e suas esposas. Com o tempo tudo ficou no esquecimento. Nas poucas vezes em que ainda se comentava o assunto, o gesto do garoto era atribuído à maldade de algum gaiato que incutiu na mente da criança aquela estranha mania, para causar desavença entre os moradores. A ―peixeira‖ continuou por muitos anos sua vida simples, vendendo seu peixe e cuidando do filho, sem nunca revelar quem era o pai dele. Fonte: Olga Agulhon e Eliana Palma (organizadoras). VI Coletânea 2011, da Academia de Letras de Maringá. Maringá: ALM, 2011.

Ademar Macedo

Mensagens Poéticas n. 399

Uma Trova Nacional Ao casar, perdeu a fala o pobre do Manoel, achando a sogra na mala

em plena lua de mel... –ANTÔNIO COLAVITE FILHO/SP–

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Uma Trova Potiguar Lá na granja do Zé Novo foi montada a sentinela... O galo que não faz ovo vai pro fundo da panela. –DJALMA MOTA/RN– Uma Trova Premiada 1988 - Inter Sedes/RJ Tema: COROA - Venc. Tenho coroa no dente. Sendo assim, não beijo à-toa... coroa de beijo quente derrete qualquer coroa... –ALOÍSIO ALVES DA COSTA/CE– Uma Trova de Ademar A mulher por malandragem, desfila com um ―tampão‖! Fecha a porta da garagem mas não empata a visão!... –ADEMAR MACEDO/RN– ...E Suas Trovas Ficaram Vive o Domingos feliz sem o trabalho enfrentar, que os "domingos" - ele diz – são feitos pra descansar... –CARLOS GUIMARÃES/RJ– Estrofe do Dia

Querosene numa lata, Pão guardado num caixote, Solda preta e cocorote, Pentide, pasta, e batata, Sola pra fazer chibata, Melhoral e formicida, Tem mercúrio pra ferida, Um balconista gaiato; Uma bodega no mato De muita coisa é sortida! –HÉLIO CRISANTO/RN– Soneto do Dia Consagração –PEDRO MELLO/SP– Cansado do "jejum" que a sua idade lhe impôs à atividade sexual, o vovô se animou com a novidade de que o Viagra não faria mal... Cheio de amor pra dar e de Ansiedade, Alfredo foi pular o Carnaval... E na Sapucaí, uma beldade fá-lo sentir-se forte e jovial... Mas na hora "H"... seu coração se abate... Alfredo é posto fora de combate, mas sucumbe feliz nosso ancião: É velado com grande galhardia e, escondendo o "tamanho" da alegria, flores a mais enfeitam seu caixão... Fonte: Textos enviados pelo autor

Passageiros do Espelho

Isabel Furini (organizadora)

Antologia de Contos

Editora Íthala

A coletânea de contos tem a característica de respeitar o estilo de cada autor. Podemos então nos deleitar com os retratos muito bem

elaborados por Bruno Camargo Manenti. Outros de alta dramaticidade, entre eles os trabalhos de Alessandra Pajola, Alessandra

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Magalhães, Fernando Scaff Moura, Sônia Cardoso e Zeltia G. Não falta uma visão do mundo espiritual feita pela professora Natália Bueno. Já o escritor Fernando Botto lembrou a infância e Maria Edna fala da idade madura. Elayne Sampaio e Ricardo Manzo nos levam por caminhos inesperados. Fernando Scaff Moura nos empurra para uma época de horrores que ainda está viva na memória da América Latina. Na apresentação de ―Passageiros do espelho‖, José Feldman, da Academia de Letras do Brasil/Paraná, fala: ―Morremos e renascemos a cada conto. A cada espelho. Nos vemos confiantes, solitários, agoniados, suicidas, aliviados, tristes e alegres. Somos vários espelhos, mas ao final, apenas um‖. A escritora e poeta Adélia Maria Woellner escreveu no prefácio: ―Os ‗passageiros do espelho‘ rompem silêncios, oferecendo suas histórias, seus devaneios, seus encantos, os arcanos da imaginação‖. Fortalece esse trabalho a colaboração especial do escritor, professor e crítico literário Miguel Sanches Neto, que nos convida a fazer uma ―Viagem de Volta‖. Nas orelhas do livro a atriz, radialista e escritora gaúcha Ângela Reale destaca que no livro penetramos ―em mundos tão diversos, em encontros inusitados, sonhos desfeitos, amores de longe e de perto, saudades, morte e vida‖. Cada um dos contos é como um reflexo do acontecer. É a vida que se espelha na construção ficcional. Múltiplas manifestações construindo ninho nas palavras – e nos silêncios. Esse trabalho começou em fevereiro deste ano, quando a Editora Íthala nos convidou para organizar uma coletânea de contos com alunos e ex-alunos da oficina ―Como Escrever um Livro‖, que ministramos no Solar do Rosário, o espaço criado pela doutora Regina Casillo. Como o número de participantes era limitado, falamos com os alunos do curso do primeiro semestre. Nem todos estavam dispostos a embarcar na aventura de escrever, reescrever e publicar. Alguns decidiram que ainda não estavam preparados ou que não

podiam dedicar muito tempo a esse trabalho. E respeitamos a decisão de cada um deles. Foi então o momento de falar com alguns ex-alunos com os quais mantemos contato pelo e-mail, como é o caso do escritor e professor Fernando Botto. Ele morou um tempo na Angola e, muito gentil, procurou-me quando voltou a Curitiba para que eu autografasse alguns exemplares de ―O Livro do Escritor‖ para enviar a seus amigos angolanos. Também mantivemos contato com a jornalista e professora Alexandra Pajola, que participou da oficina e tem paixão pela escrita. Alessandra Magalhães e Natália Bueno, cada uma com seu estilo, destacaram-se durante as oficinas, e sempre enviam e-mail falando de seus novos trabalhos. Com Sonia Cardoso foi um encontro casual na recepção da Biblioteca Pública do Paraná. Ela já havia publicado um romance e estava iniciando outro trabalho literário quando eu fiz o convite para participar da antologia. Sonia aceitou imediatamente. Ela havia participado de uma oficina de contos que eu ministrei no Delfos, e tinha vários contos escritos. Uniu-se ao grupo minha amiga Sandra Rey Mosteiro, cujo pseudônimo é Zeltia G. Ela mora na Espanha, país onde edita a revista ZK 2.0. O convite ao escritor Miguel Sanches Neto também surgiu espontaneamente. Ele havia sido meu entrevistado, e eu gostei muito da honestidade de suas respostas, além de admirar seus trabalhos como ―Chove sobre minha infância‖ e ―Venho de um país escuro‖. Os trabalhos foram árduos. Eu sei que o crítico acha que poucos trabalhos têm verdadeiro valor, mas eu quero mostrar os passos de um livro do ponto de vista do escritor. Escrever, reescrever sabendo que é impossível agradar a todos, mas cinzelando os contos com paixão. Só faltava uma boa apresentação para o nosso livro. A poeta Adélia Maria Woellner, pessoa despojada de vaidade, disse humildemente que escreveria, mas que se não gostássemos do prefácio, poderíamos ficar à vontade para escolher outra pessoa. Adélia é membro da Academia de Letras, e ficamos comovidos com a sua humildade. José Feldman, que apresenta o livro, é escritor, poeta e presidente da Academia de Letras do Brasil/Paraná. Faltava só escrever as orelhas. Era um trabalho que eu pessoalmente não queria fazer, porque, além

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de organizar a coletânea, dois contos de minha autoria estavam lá, e acho triste quando a mesma pessoa organiza, escreve, prefacia, apresenta, faz as orelhas… Dá a sensação de orquestra de uma pessoa só. Eu gosto da diversidade. Gosto de olhares diferentes. Então solicitei a participação da atriz e cronista Angela Reale. Por fim, o trabalho estava tomando forma. ----- Apresentação por José Feldman

A Antologia de Contos que aqui se apresenta, compilada pela escritora e educadora Isabel Furini, faz com que ingressemos num Palácio de Espelhos num Parque de Diversões. Cada espelho reproduz imagens diversas de nós, e é assim que são os escritores que compõem esta coletânea. Cada qual carregou um pouco de si, fazendo com que desperte a nossa curiosidade pelo próximo espelho. A cada conto vivenciamos situações diversas, muitas delas levando-nos a refletir sobre nossas próprias vidas. Seja um personagem que se deixa levar pelas lembranças e pelo despertar de sua escravidão ao tempo, ou uma mulher atormentada por múltiplos pesadelos, a monotonia da vida de uma escritora, o apego ao nosso passado, a noite de estréia do balé, a angústia de uma escritora que deseja escrever textos de impacto para cativar o leitor, assim como o humor presente em um escritor que morre e é disputado pelo céu e o inferno, ou mesmo o humor negro de um corpo encontrado, nos fazendo enveredar por uma

novela policial que nos coloca dúvidas e faz com que ansiemos por seu desfecho. Sentimos na pele a vida daqueles que viveram as guerrilhas aqui na América do Sul ou mesmo no Oriente Médio. Em contrapartida, há aqueles que nos conduzem em direção a luz, como se estivessemos em contato direto com Deus, nos fazendo sentir algo além das estrelas, maior que o próprio universo. Morremos e renascemos a cada conto. A cada espelho. Nos vemos confiantes, solitários, agoniados, suicidas, aliviados, tristes e alegres. Somos vários espelhos, mas ao final, apenas um. Enfim, são os espelhos da vida que retratam em sua imagem, se não todos, mas muitos dos momentos que vivenciamos no presente ou no passado, seja em nossa vida cotidiana ou apenas desejos ou anseios enraizados em nossos sonhos. É viver cada instante da vida. É sentir ela fluindo pelo nosso ser. Nas palavras do poeta português Fernando Pessoa: ―A vida é para nós o que concebemos dela. Para o rústico cujo campo lhe é tudo, esse campo é um império. Para o César cujo império lhe ainda é pouco, esse império é um campo. O pobre possui um império; o grande possui um campo. Na verdade, não possuímos mais que as nossas próprias sensações; nelas, pois, que não no que elas vêem, temos que fundamentar a realidade da nossa vida.‖ Fontes: Diário Indústria e Comércio. IC News.com.br – 7 de julho de 2011. Apresentação contida no livro Passageiros do Espelho

Matando o Porco.

Eu Contos

Átila José Borges

Curitiba: Ed. do Autor

2011 Prefácio por José Feldman

“Há pessoas que nos falam e nem as escutamos; há pessoas que nos ferem e nem cicatrizes deixam mas há pessoas que simplesmente aparecem em

nossa vida e nos marcam para sempre.” (Cecília Meirelles 1901-1964)

Antes de falarmos do livro, permita-me

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falar sobre o escritor dele. Não se preocupem, não vou me delongar em biografias e honrarias que ele recebeu, deixo por conta da Vânia Ennes, em sua orelha (do livro, bem entendido). Falarei brevemente da pessoa Átila, como um livro, a capa e seu conteúdo. Conheci o Átila muito por acaso, num lançamento de um livro dele, e nem pessoalmente, pela internet. Comunicamo-nos por e-mail, e pela sua bagagem literária senti-me no dever de convidá-lo para a Academia de Letras do Brasil, ocupando uma cadeira pelo Paraná. Isto é apenas um preâmbulo, vamos aos ―finalmentes‖ agora. Ele me enviou uma biografia e uma foto. Daí vem aquela expressão: ―não julgueis o livro pela capa‖. Então, olhei para aquela foto dele, um rosto sisudo, um paletó repleto de medalhas, e fiquei a pensar com meus botões (antigamente se usava muito esta expressão, hoje acho que não, mas eu sou das antigas): ―onde fui amarrar o meu burrico?‖. Eu era um Fusca 1200 e ele uma Ferrari. Por um bom tempo fiquei meio assustado. Contudo, ele sempre muito educado, muito elogioso, me enviou todos os seus livros para minha apreciação. Por ocasião das solenidades dos Jogos Florais de Curitiba, uma festa de porte que corresponde a altura da classe curitibana, obtive o endereço do Átila, e sentindo-me como se estivesse a caminhar no cadafalso, criei coragem para conhecer pessoalmente este escritor. Foi então que abri o livro Átila, e simplesmente fiquei encantado, pois apesar de sua foto tão marcial na capa, o conteúdo era de uma simplicidade e amizade fraterna tão grande, que percebi o quanto julgamos mal as aparências. Junto com ele, um cão sentado no sofá, de quem ele falava com tanto amor e carinho, que chegava a ser emocionante. Calma! Já falo dos contos escritos por este Ás da Aeronáutica. Aliás, para falar deles, prezado leitor, deve conhecer primeiro quem é o escritor. Não! Não esqueci que não iria dar a sua biografia. Aqui, falo da pessoa. Uma pessoa simples (acho que já disse anteriormente, mas é bom para enfatizar), com uma grande bagagem profissional, cultural, e pelo pouco de contato que tive com ele, alguém preocupado com o bem estar do próximo, percebido pelo carinho que os que o rodeiam possuem para com si.

Não vou falar da vida dele, mas vou divulgar seus livros, que são de conteúdo histórico, informativo, descritivos, mas acima de tudo, uma escrita agradável. O primeiro contato foi com ―A Menina e o General‖ (sobre Maria Rosa e o General Carneiro) e o seu livro de memórias ― e ―Memórias de um guri em tempo de guerra‖, ambos os livros de uma redação de tal modo leve, que faz com que sintamos estar vivendo as suas páginas, ou nas palavras de Jorge Luis Borges (1899 – 1986), ―O livro é uma extensão da memória e da imaginação‖. Divaguei! O livro que ora se apresenta, ―Matando o Porco‖, é composto de dez contos, escritos entre os anos de 2004 e 2010, sendo sete deles neste último ano. Alguns deles tive a felicidade de ler algum tempo atrás, inclusive o conto ―O Pinheiro, o casebre e o quadro‖, que Átila dedicou a meu cão ―Fluffy‖, que morrera em maio do ano passado. Deixe-me, então, destacar alguns dos contos que compõem esta coletânea, apenas uma pincelada, para não revelar o seu verdadeiro conteúdo e perder a viagem. ―Agora que já contou a história, perdeu a graça.‖ Tomada, este era o nome do porco, mas são diversas situações que se desenrolam sobre a morte de Tomada, que parecem se entrelaçar entre si. Aliás, meu caro leitor, você perceberá que em todos os contos de Átila, é como se fosse uma teia que vai se formando até chegar a um objetivo determinado. O conto é ―Matando o porco‖, mas se mataram mesmo, deixo a você descobrir isto. Ralph Waldo Emerson (1803 – 1882) dizia que ―O talento não basta para fazer o escritor. Atrás do livro deve haver o homem‖. No conto, ―Eu, o cão‖, Átila vai muito mais além, ele incorpora um cão, e passa viver cada instante como tal, seus instantes de alegria, de tristeza, seus desejos, faz com que percebamos uma realidade tão comum no dia-a-dia destes nossos amigos caninos, não só aqueles bem-tratados, mas os cães abandonados na rua. Pode-se, ainda assim, de um modo sutil, sentir não só o cão que vive nas ruas, mas numa transposição, o menor abandonado.

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O Trucidador Sanguinário é a história de Calígula, não aquele imperador romano, mas que mostra de uma forma bem-humorada e mesmo triste, a dureza da vida e o sentimento humano presente no coração de quem aparentemente se acredita um sanguinário. São profissões necessárias para satisfazer a necessidade de outros, e mesmo assim desprezados pelo seu trabalho pelas outras pessoas. O que seria do mundo se não existissem os lixeiros para recolher os lixos? Os faxineiros? Enfim, uma gama de profissões consideradas tão de baixa qualidade, mas mesmo assim fundamentais para a higiene e sobrevivência da humanidade. Pafúncio Nando Ligertwood Boamorte. Não é palavrão, é exatamente este o nome do conto. Pafúncio, que lembrava muito aquele personagem de histórias em quadrinhos ―Pafúncio e Marocas‖, um sujeito baixinho, gordinho e empertigado. A história se passa com este personagem e seu adorado gato Pingão, que tem papel importante no desenrolar da transformação da vida de Pafúncio. Muitos personagens curiosos desfilam pelas páginas deste livro, Zé das Tripas, Chico Mil e Um, Zé Bredoredes, Torresmo, Cachorrão, Zé Carniça e tantos outros, cada qual com sua

história. E, mesmo com uma boa dose de humor ou de tristeza, cada história carrega em si alguma mensagem a ser passada ao leitor. Charles W. Elliot (1834-1926) dizia que "Livros são os mais silenciosos e constantes amigos; os mais acessíveis e sábios conselheiros; e os mais pacientes professores." E os contos de Átila carregam em seu bojo risos e lágrimas, momentos de comoção e revolta. São contos que se desenvolvem em diversas situações e épocas, como se o autor tivesse vivido ou mesmo presenciado aqueles momentos. E é assim, que nos sentimos, vagando por estas páginas, com uma sede insaciável de ler mais.

Enveredar por estes contos é sonhar, é navegar por um oceano de sonhos. É sonhar novos sonhos, é fazer destes contos nossos próprios contos, é transformar estes contos em nossos sonhos, é fazer destes sonhos, uma ocasião especial, uma janela em nossa alma, ou como nas palavras de Paulo Leminski (1944-1989):

―A vocês, eu deixo o sono. O sonho, não! Este eu mesmo carrego!‖ Fonte:

Átila José Borges. Matando o Porco. Eu Contos. Curitiba: Ed. Do Autor, 2011

O Sorriso do Lagarto

João Ubaldo Ribeiro

O Sorriso do Lagarto é um romance escrito na terceira fase do Modernismo (Pós-Modernismo), publicado em 1989, e o autor se permite beber de várias fontes dentre elas: o naturalismo; a degradação do individuo; o cientificismo; o político que quando jovem era de esquerda, depois compromete-se com a direita e o golpe militar de 1964 e, finalmente volta-se para um partido liberal conquistando altos cargos; o homossexualismo; a engenharia genética; o consumo de drogas por parte da

elite; a degradação da saúde; a igreja e os pobres; o comportamento sexual feminino. O Sorriso do Lagarto não é um romance regionalista. É visivelmente uma obra de olho no mundo moderno. Ao mesmo tempo em que se propõe a ser um romance universal e contemporâneo, é também uma exteriorização de desconfiança, uma denúncia e uma negação de certos valores caros à universalidade e contemporaneidade.

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O livro apresenta constante erotismo misturado a episódios de pescarias que se somam a reflexões sobre Deus, a evolução, a ciência, em uma narrativa ágil e cheia de surpresas. O autor vale-se de outros narradores para enriquecer seu texto. O título do livro esboça-se no início do romance, quando dois meninos trazem um lagarto com dois rabos para João Pedroso. No sorriso maléfico do réptil, João Pedroso percebe o presságio do medo e do Mal. Ao longo da narrativa, confirma-se a suspeita de Pedroso: o Mal existe, o Inimigo existe e parece rir da humanidade. A partir do título, forma-se o tema básico do romance: a presença do mal relacionada com o poder da ciência e da política. Quem poderá dizer aonde levará a manipulação de genes humanos por um cientista amoral? João Ubaldo foi o primeiro, na literatura brasileira, a tratar com profundidade, dessa perturbadora questão. O Sorriso do Lagarto é o mais pessimista dos romances de João Ubaldo Ribeiro. O Mal vence. O Diabo ri por último. O romance gira em torno de um triângulo amoroso constituído por João Pedroso, um biólogo excêntrico, solteirão e alcoólatra, que abandonou a profissão para ser o proprietário de uma modesta peixaria em Itaparica; por Ângelo Marcos, um político corrupto ligado à área da Saúde, que construiu sua vida pública e sua fortuna às custas de falcatruas; e por Ana Clara, esposa de Ângelo Marcos, que, com um casamento fracassado, mas do qual não abre mão para não perder a estabilidade financeira, procura preencher seu vazio interior fora da relação que a oprime. Há ainda outra trama, tão importante quanto a do triângulo e a ela imbricada, ligada a Lúcio Nemésio, um cientista que, associado a uma multinacional se dedica a experiências genéticas, criando entre outras aberrações, a mistura de humanos com chimpanzés. A partir dos conflitos gerados pela cadeia de relações entre as quatro personagens, João Ubaldo Ribeiro constrói um romance absorvente, que dá continuidade à pesquisa sobre a identidade nacional, particularmente

sobre a questão da dialética entre o dado local e o cosmopolita (as multinacionais do Primeiro Mundo que encontram aqui, como na África, como na Ásia, as cobaias para seus experimentos; os nossos políticos que se prostram frente aos interesses externos, de olho nas benesses de que usufruirão etc.). Há todo um empenho, no romance, em não limitar a discussão dos problemas ao contexto nacional, ainda que isso seja valorizado, para abarcar as questões por uma visada universal, que não se intimida frente a variados aspectos de ordem filosófica. Os dois pólos focalizados pelo escritor ficam patentes tanto numa declaração dada quando o livro era ainda um embrião quanto num momento posterior, com ele já traduzido para o francês: Tenho impressão de que no meu próximo livro, O sorriso do lagarto, as minhas perspectivas vão ainda mais se alargar. Gostaria de fazer um romance sobre o Mal, o Mal genérico, o Mal político, o Mal social. O mal transparente na atitude de uma grande parte da classe dominante brasileira: ela despreza nosso país, ela detesta o que ele é, o que nós somos e, assim, acoberta todas as violências – a moralidade infantil, a violência nas cidades, a miséria, um futuro sem perspectiva. É um livro sobre a corrupção e o novo colonialismo. A personagem Nemésio, que pertence à elite, detesta seu país. Ironicamente, as únicas coisas válidas no livro são americanas. E veja aqui em Ipanema, Leblon, há por todo lado drinks, juices, new shop... O livro é sem dúvida, uma grande alegoria sobre o ―Mal‖, sim, esse com ―m‖ maiúsculo, e seu símbolo maior na narrativa é o kafkiano lagarto que sorri indiferente ou zombeteiro frente à condição humana, na sua arrogância de espécie dominante. A alma humana é colocada em xeque, com suas zonas de sombra e suas covardias a serviço do Mal, e mesmo a própria noção de humanidade é posta na berlinda. ―A partir de que ponto um ser vivo pode ser considerado como ser humano? E que diferenças separam um animal dotado de emoção de um homem?, são questões pertinentes colocadas pela obra e percebidas com acuidade por Rérolle. Questões que convidam, no contexto das discutíveis

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experiências genéticas desenvolvidas por Lúcio Nemésio, uma séria reflexão sobre as relações entre Ética e Ciência e as conseqüências que o avanço desta por vezes cria. E é curioso perceber a sintonia de João Ubaldo Ribeiro com esses problemas, quando não tinham ainda sido postos em moda por ovelhinhas Dolly e afins. Por fim, não se pode deixar de destacar que um grande mérito do romance é o desfecho sem concessões, na contramão do gênero, com tudo para exercer grande impacto sobre o espírito tanto de um leitor mais ingênuo, habituado aos tradicionais finais felizes dos best-sellers, quanto, por sua contundência, sobre o espírito de um leitor mais familiarizado com a visão desencantada da literatura moderna, particularmente a do pós-guerra. Como disse Stuart Whitwall, ―o que começa como uma deliciosa e engraçada sátira termina com a vida e a esperança sendo aniquiladas em todas as frentes‖. Cadernos de Literatura Brasileira – Número 7 – março de 1999 – Publicação do Instituto Moreira Salles.

Trecho de uma entrevista de João Ubaldo Ribeiro a respeito da obra O Sorriso do Lagarto:

O título é uma metáfora, pois é claro que não há prova científica de que existem lagartos que sorriem. Um canadense, cientista, chegou a me procurar pensando que eu escrevia uma história sobre a evolução dos dinossauros. ( .. ) Mas o Sorriso do Lagarto não se refere necessariamente a uma vingança dos dinossauros e lagartos. E no romance o protagonista nem é o lagarto. O Sorriso do Lagarto é um livro que lida com a má administração do tempo que a humanidade passa na Terra. Acho que escrevi, sim, um romance sobre o mal, que fica transparente na atitude de uma grande parte da classe dominante brasileira - ela detesta nosso país, ela detesta o que nós somos e acoberta todas as violências: a mortalidade infantil, a violência nas cidades, a miséria. Quis escrever um livro sobre o adversário que existe em cada um de nós, sobre a figura de Satanás. (LEIA, dezembro, 1989)

Enredo e Personagens Após um longo percurso que somente o álcool aqueceu-lhe a existência, João Pedroso, o

protagonista e herói do romance, tem a sua sensibilidade despertada por uma aberração da natureza. Pode um lagarto com duas caudas passar despercebido? Existe uma explicação natural e simples para tal espécie de fenômeno? Sendo um biólogo, embora tenha renunciado à profissão para viver como um simples vendedor de peixe na Ilha, João Pedroso ainda não esqueceu que a explicação pressupõe a ocorrência de um novo fator na história genética do calango. Por que um lagarto sorriria? Seria fruto do alcoolismo crônico de João Pedroso? Acontece que embora beba todos os dias, ele se mantém nos limites da lucidez e prefere acreditar em seus olhos. Bêbado e afastado da biologia, Pedroso não caiu no ateísmo. Se de vez em quando briga com Deus, é porque não perdeu de todo sua fé. E quem crê em Deus, deve crer no Diabo. Por que um lagarto sorriria de modo hostil e zombeteiro se não tivesse algo a ver com as hostes de Satã? Afinal, lagarto é dragão em miniatura. E dragão é uma tradicional representação do Diabo. Para João Pedroso, biólogo, fenômeno testemunhado só pode ser fruto de uma intervenção genética artificial; e como tal intervenção supõe um conhecimento muito avançado, não há porque imaginar que tenha sido obra de amador, brincadeira inconseqüente de algum aprendiz de geneticista? Do outro lado da racionalidade, a intuição do crente adverte para a dimensão demoníaca da experiência. Do contrário, por que o lagarto sorriria com aquele ar de superioridade? O desenvolvimento do relato irá confirmar os temores de João Pedroso. E Itaparica é apenas uma das provetas nas quais cientistas de várias partes do mundo realizam uma experiência sem precedentes no campo da genética. Suas conseqüências, avalia o protagonista, podem ser funestas. O autor avança sem precipitações, valendo-se quase todo o tempo de outros narradores. Aproveita a lição que manda semear as famosas ―pistas falsas‖ para desnortear o leitor, impedindo-o de descobrir, antes do tempo, o verdadeiro desfecho da história.

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Até o final do segundo capítulo, O Sorriso do Lagarto transmite a impressão de ser um romance de costumes. João Pedroso perambula pelas praias de Itaparica, pesca em companhia de turistas endinheirados, encara seu sorridente lagarto, belisca-se para ter a certeza de que não está de porre nem delira. Muito longe dali, o Dr. Ângelo Marcos, Secretário de Saúde, faz um interminável toalete matinal, enquanto sua mente se divide entre a próxima falcatrua que irá praticar e o discurso que logo mais deverá pronunciar na inauguração de um hospital. Em outro ponto da cidade, Ana Clara, a mulher de Dr. Ângelo conversa sobre sexo e drogas com sua amiga Bebel, a rainha da futilidade. A narrativa e os personagens crescem devagar. O Dr. Ângelo cresceu na política à sombra de um velho cacique, ultrapassou-o rapidamente na corrida aos dinheiros públicos, vive como um nababo, é cínico, traz na ponta da língua as justificativas das suas radicais guinadas partidárias. Mais tarde, ao ver-se diante da morte, pois fora acometido de um câncer, e um regresso ao passado farão dele um personagem complexo. Pode-se dizer o mesmo de Ana Clara, do médico-pesquisador Nemésio, do Padre Monteirinho. João Pedroso sabe que fazer biologia é o seu dom, e a razão básica de sua angústia é precisamente a consciência de que abandonou, traindo, assim, o destino que Deus lhe traçou ao alcança-lo com sopro da vida. Teologia é material forte na construção deste romance. Ângelo Marcos, depois de submeter-se a um tratamento de câncer, anda ―morto de pena de si mesmo, mais dependente do que um filhote de gato, e volta e meia cai em depressões abissais.‖ João Pedroso se compara a Marmeladov, o bêbado e destrambelhado personagem da obra, Crime e Castigo, de Dostoievski. Ana Clara se transforma em Suzanna Fleischman. Tenta assumir a postura de Molly da obra Ulisses (James Joyce) e as fantasias eróticas da heroína Lady Chatterley (D. H. Lawrence). Com essa mutação, Ana Clara tenta denunciar a hipocrisia ao seu redor.

O romance, "O Sorriso do Lagarto", tem sexo, experimentos genéticos e cientistas malignos. Aborda, também, temas como Deus, o Homem, o Bem e o Mal, a consciência, o sentido da vida. Tudo costurado no estilo sensual de João Ubaldo. O escritor criou uma aura de malignidade e decadência que permeia toda a ação. Seus personagens, inclusive o vilão, o doutor Lúcio Nemésio, são dolorosamente reais, compreensíveis e humanos. A trama caminha de forma inexorável para um final surpreendente e melancólico. Em seu cerne, o romance conta que pescadores de Itaparica, João Pedroso (ex-biólogo, vendedor de peixes e sociólogo amador) e Padre Monteirinho descobrem, na Ilha, o envolvimento do médico-pesquisador, Lúcio Nemésio, com a Engenharia Genética: criação de monstros em laboratório. As cobaias humanas para as experiências eram mulheres negras que geravam bebês-aberrações (meninos-macacos que o ex-biólogo viu nas fotografias.) João Pedroso, o Padre Monteirinho e o curandeiro Bará personificam as forças do Bem que lutarão contra o Mal. O caso é denunciado, porém por falta de credibilidade e provas é abafado. João Pedroso envolve-se sexualmente com Ana Clara, mulher de Ângelo Marcos. A mulher do médico engravida-se do amante, mas sofre aborto após uma queda na escada. João Pedroso acaba sendo assassinado, com duas balas calibre 45, disparadas por uma pistola com silenciador, que lhe atravessam o coração, pelo matador profissional, Boaventura, encomendado pelo marido traído. Ao final da obra, temos um encontro entre o Padre Monteirinho e Lúcio Nemésio. Trava-se uma luta entre o Bem e o Mal. - Não quero discutir questões de fé com o senhor, para mim isso tem importância, para o senhor não tem. Mas veja o problema moral contido nisso, o problema político. O poder político plasmando a Humanidade e a Natureza.

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- Isso é inevitável. Quem chegou, chegou, quem não chegou, não chega mais. O poder hoje dispõe de tais instrumentos que se sedimentou definitivamente, jamais vai mudar realmente de mãos e a tendência é isso se acentuar. Isso é bom. Isso significa maiores possibilidades de controle racional. Não haverá revolução, nem alteração radical na estrutura do poder, nem entre nações, nem entre classes sociais, nesse sentido a História acabou. Sempre digo que democracia é um mito supersticioso, assim como a igualdade e outros chavões. Há muito tempo que a democracia não é mais praticada em lugar nenhum, a não ser microscopicamente, e temos que colocar essa situação a nosso favor, ou seja, aperfeiçoar o homem de todas as formas possíveis. - Para mim, isso é extinguir a Humanidade, tal como a conhecemos. Para mim, é o homem se tornando inimigo do homem, deixando o adversário que traz dentro de si vencer, fazendo com que se volte contra si mesmo. É como se fosse a obra de Satanás. - Sim, Satanás, ha-ha! Satanás quer dizer ―inimigo‖, não é? Neste caso, eu seria Satanás, ou pelo menos um satanás, pois creio que há controvérsia na própria Igreja sobre a existência de um ou vários satanases. Engraçado, desculpe-me por estar rindo, muito engraçado mesmo – Satanás. Pois, olhe, eu aceito, e acho tecnicamente certa sua inferência. Eu sou inimigo de Deus, sim, embora o considere um inimigo fictício, vocês me arranjaram esse inimigo fictício, que eu preciso combater. (...) Deus não existe e, se existe, é preciso tomar dele o poder, ele não tem sido competente, para um onipotente tem um desempenho muito pouco satisfatório. E então, diante do exposto, o senhor tem razão, de fato eu sou Satanás, o senhor tem razão, é mais do que lógico. Vade retro, pensou Monteirinho (...) Aquilo tudo era terrível mesmo, e mais terrível ainda por se passar daquela forma irresistível, como Lúcio Nemésio dissera tão convincentemente. João Pedroso tentara resistir e fora eliminado. Sim, fora eliminado, agora tinha certeza, embora não pudesse provar, embora jamais pudesse dizer a ninguém. Tinha certeza, certeza absoluta de que João fora morto por obra de Ângelo Marcos, ao se descobrir

enganado – não sabia como, mas fora. E, assim, esse agente do Mal cumpriu sua missão, removeu um obstáculo. Tudo se encaixava, o Mal havia tido grande vitória. Dedicaria à vida, tinha dito João, dedicaria a vida a lutar contra aquilo. Mas apenas perdeu a vida, martirizou-se anonimamente. Principais Personagens João Pedroso – Protagonista da obra, ex-biólogo, peixeiro, amargurado. A partir do relacionamento com Ana Clara e da descoberta das mutações genéticas, muda de atitude, torna-se um homem resoluto. É morto a mando de Ângelo Marcos, pelo pistoleiro Boaventura. Padre Monteirinho – (Olavo Bento) Amigo de João. É transferido de Itaparica após o seu envolvimento com Bará e a denúncia das experiências científicas. Dr. Lúcio Nemésio – Foi professor de Ângelo Marcos. Era amigo de João Pedroso, mas se rompe com este após revelar seu projeto científico, que tem apoio de estrangeiros e do próprio Ângelo Marcos (que desconhecia tais pesquisas). O sobrenome Nemésio deriva do grego nêmesis, significando ―indignação, desrespeito, ira, tornar-se mau.‖ Na conversa final entre o Padre Monteirinho e o Dr. Lúcio, fica explícita a relação do médico com Satanás: ―Riu novamente, uma gargalhada que lhe sacudiu todo o corpanzil e deixou Monteirinho achando que se tratava mesmo da voz das Trevas e do Inimigo. (...) Vade reto, pensou Monteirinho...‖ Ângelo Marcos – Político consagrado e marido de Ana Clara. Depois que seu médico, Dr. Deraldo, comunicou-lhe que estava com câncer, Ângelo pensou em se matar. Mas se recupera e tem até chance de vir a ser governador da Bahia. Foi Secretário da Saúde. Embora afirme detestar homossexuais (como Cornélio, o cozinheiro) mantinha relacionamento sexual com o pistoleiro Boaventura. Mantinha, também, relações com outras mulheres. Era infiel. Como político, Ângelo foi da ARENA, partido da Ditadura Militar de 1964, passando depois para o MDB. Ao fazer um exame de consciência, o médico-

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político busca amenizar sua posição direitista, alegando ter ajudado amigos subversivos que estavam na mira da Operação Bandeirantes (movimento repressor da época da Ditadura Militar). Bará da Misericórdia – Curandeiro. É acusado de manter práticas que atentam contra a medicina e a saúde pública. É obrigado a mudar de terreiro, mas não vai preso, pois João Pedroso presta-lhe ajuda. Bará relaciona-se com o Bem. Seu nome verdadeiro é Sebastião Boanerges da Conceição. Ana Clara – Amante de João Pedroso. Apaixona-se por ele e, depois de seu desaparecimento torna-se esquizofrênica, deixando que a personalidade ―Suzanna Fleischman‖ se apodere dela. É uma burguesa frívola e fútil, assim como sua amiga Bebel, esposa de Nando, traindo-lhe com seu ex-marido, Tavinho, dependente de droga (cocaína). Boaventura – Pistoleiro que trabalhava para família de Ângelo Marcos. Tornou-se amante do político. Tempo e Espaço O tempo predominante na obra é cronológico (gira em torno de um ano), ainda que o tempo psicológico apareça nas muitas lembranças dos personagens, principalmente de Ângelo Marcos. É o tempo cronológico que dá mais ritmo e velocidade à narrativa. O romance inicia-se na época da soalheira, calor insuportável, mormaço e térmica após uma chuva, com um céu azul. A narrativa se passa, basicamente na Ilha de Itaparica, que não é mostrada como um paraíso perfeito, já que existem muitos miseráveis e famintos, muita gente aleijada, como a família de Mãozinha e todo tipo de morte. Aqui na ilha, se morre de tudo, não tem essa conversa de que aqui não acontece certas mortes – disse Mero Doido, que desde as cinco horas estava fazendo um levantamento dos mortos ligados ao Mercado e das causas de suas mortes. – Você não diz uma doença, inclusive das mais modernas, que alguém aqui não tenha morrido. Até umas doenças que

não são nem bem doenças aqui se morre, como Galo Cego, que teve uma espinha no nariz que foi virando câncer e comeu a cara dele toda e ele morreu fedendo e com a cara toda comida. Isso de uma espinha. Filu foi de hidropisi, Nandá foi derrame, Roque Feio foi diabete, Lazarão foi tifo, mosquete foi tuberculose, Unha Grande foi doença de Chagas e Zoinho dizem que foi de Aids. Até Aids já deu aqui, e Zoinho não era falso ao corpo, pelo contrário. Aqui dá tudo. E agora o neto mais velho de Quatinga morreu de tumor no cérego. Há, também, referências a Salvador e São Paulo. Na cidade grande, há violência, como narra Tavinho a respeito do assalto em que sua namorada, Kátya, foi estuprada por ladrões. Itaparica é o local onde prevalece o ócio, o lazer, a diversão, os desregramentos sexuais, muita pescaria, praia, bebida. Por dentro daquela pedra (a ilha) busca-se o elo perdido entre o homem e o macaco, entre o Homem e Satanás. Foco Narrativo O romance é escrito na terceira pessoa por um narrador onisciente que nos leva a ver o mundo sob a ótica de alguns personagens. Há momentos em que a narrativa apresenta-se sob o ponto de vista de um ou outro personagem e nos diálogos. Nesses instantes, o discurso passa de terceira para a primeira pessoa. O autor utiliza-se bastante de intertextualidades no romance. ... respondera Deraldo com a mesma cara pétrea, e costumam causar queda de cabelo também, embora eu ache que você está cometendo uns certos exageros poéticos, você sempre foi meio puxado a Castro Alves. (Referindo-se a Ângelo Marcos) ...Não, tipo Lady Chatterley – como era mesmo o nome do peru do amante dela? John Thomas, claro que sim, ela tinha até umas três ou quatro anotações que falavam no John Tomas. (Ana Clara comparada à personagem do famoso romance de mesmo nome, do escritor D. H. Lawrence.)

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... Meu ideal de vida é Marmeladov, de vez em quando eu pego Crime e Castigo só para ler as partes em que ele aparece.! (João Pedroso se comparando ao personagem de Dostoievski) ... Abraão também teve amante, para não falar em Salomão. E o comportamento de David com Urias foi de uma escrotidão inominável, mau caratismo absoluto. É como eu lhe disse e lhe digo sempre: também já li o Livrão, você não me engabela. (João Pedroso se defendendo com o Padre) ... Creio até que sacrifício como o mencionado nem mesmo é estranho à tradição cristã – embora nisso não reivindique legitimidade, nem pretenda mais que dar um exemplo e espicaçar uma lembrança –, pois, se não me trai a memória que os anos já empanam, são

abundantes as referências ao assunto na Escrituras e – corrija-me o Reverendo se laboro em erro – recordo que o começo do Levítico estabelece regras para os sacrifícios ditadas por Deus, que até menciona especialmente carneiros. (Bará, o feiticeiro justificando suas práticas religiosas) A linguagem da obra é contemporânea (variada) em estilo que vai do erudito – cientificismo; linguagem formal (a linguagem de Bará é muito distante da linguagem popular) ao coloquial (gírias; estrangeirismos; termos chulos; deformações lingüísticas, provérbios...). Fonte: Ozório Duarte de Lacerda para Livros Grátis. Disponível em http://www.livrosgratis.net/resumo-livro/31/o-sorriso-do-lagarto-joao-ubaldo-ribeiro.html

XVII Jogos Florais de

Curitiba

Regulamento: Troféus: - Centenário de Helena Kolody (Âmbito Nacional/internacional e Estudantil) e, - Sara Furquim (Âmbito Estadual). 1. - A UBT – Seção de Curitiba institui seus XVII Jogos Florais, cujos festejos de encerramento estão previstos para os dias 08, 09 e 10 de junho de 2012. 2. - Temas para as trovas líricas ou filosóficas: - Âmbito Nacional/Internacional: “Justiça” - Brasil (exceto Paraná) e demais países de língua portuguesa.

- Para os trovadores de língua hispânica: “Justicia” - Âmbito Estadual (Estado do Paraná): “Tesouro”. - Âmbito Regional/Estudantil: - “Escola” – (Ensino fundamental) - “Escolha” – (ensino médio) 3. - Temas para as trovas humorísticas: a) Âmbito Nacional/Internacional: (países de língua portuguesa): “Tapa” b) Âmbito Estadual (Estado do Paraná): “Tesoura” 4. - As trovas deverão ser no máximo 03 (três) por tema, inéditas, de autoria do próprio remetente e, enviadas pelo sistema de envelope.

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5. - Endereços para remessa: 5.1.: Âmbito Nacional/Internacional: a) Concorrentes de língua espanhola: L/F Enviar por e-mail para: [email protected], com cópia para: [email protected] No mesmo e-mail deverá ser enviada a identificação completa do inscrito, além do endereço postal e endereço eletrônico (e-mail). b) Concorrentes de língua portuguesa, inclusive Brasil (exceto Paraná): L/F e H. A/C Centro de Letras do Paraná. Rua Fernando Moreira, 370. Centro. CEP 80.410-120. Curitiba – Paraná. 5.2.: Âmbito Estadual: c) Concorrentes do Paraná: L/F e H A/C do Professor Garcia Rua Major Camboim, 819, Bairro Paraíba. Caicó-RN. CEP - 59300.000. 5.3.: Âmbito Regional (Estudantil): L/F A/C Centro de Letras do Paraná. Rua Fernando Moreira, 370. Centro. CEP 80.410-120. Curitiba – Paraná.

5.4.: Para todas as categorias em língua portuguesa, deverá constar no envelope como remetente Luis Otávio, e o mesmo endereço do destinatário. 6. - Prazo para remessa: 10/04/2012, valendo o carimbo postal. Maiores informações pelo e-mail: [email protected] Ou pelo telefone (41) 3078-2151 SISTEMA DE ENVELOPES NOS CONCURSOS DE TROVAS 1. Digitar ou datilografar a trova na face externa de um pequeno envelope (8 x 11 cm), colocando, acima da trova, o tema a que concorre. 2. Colocar, dentro do envelope, uma papeleta com o nome, endereço, telefone e e-mail – se tiver – do remetente-autor da trova. 3. Colocar esse(s) envelope(s) menores dentro de outro – maior – e remeter para o endereço do concurso. 4. Colocar como remetente o mesmo endereço do des-tinatário do concurso (para evitar a identificação do autor). Fonte: Os Trovadores – UBT Curitiba. Ano 20. Nº 68 - Novembro/2011

Eliana Ruiz Jimenez

Trova-Legenda Participe!

Toda semana uma nova trova-legenda postada por Eliana Ruiz Jimenez. Participe enviando uma trova para a imagem da semana em http://poesiaemtrovas.blogspot.com

Enviem suas trovas para: [email protected] Imagem nova toda semana Publicação das trovas recebidas aos sábados em poesiaemtrovas.blogspot.com

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Trova-Legenda de 9 a 15 de Outubro

Ah, quantos lindos castelos põe a vida em nossa mão,

lembrando os sonhos mais belos que temos no coração!

A. A. DE ASSIS/PR

As Trovas formam castelos onde moram meus irmãos;

e nos meus sonhos mais belos pus um castelo nas mãos!…

ADEMAR MACEDO/RN

Fazer castelos na areia é um passatempo excelente

para esperar a sereia surgir no mar de repente!

AMILTON MACIEL MONTEIRO/SP

Um castelo só de areia bem de frente para o mar… Não se cansa a mão alheia mas se cansa o meu olhar.

ARI SANTOS DE CAMPOS /SC

Castelos de areia…tantos na palma das mãos ergui! Mas… ruíram seus encantos entre os sonhos que perdi!

CAROLINA RAMOS/SP

Um amor que se alardeia não passa de sonho vão:

é só castelo de areia escorrendo pela mão. ELIANA JIMENEZ/SC

É também com minha mão, ao fazer trova que enleia, que espalho tanta ilusão, tanto castelo de areia…

JOSÉ FABIANO/MG

Vivi em busca de carinho em castelos de ilusão

tanto tempo estou sozinho quem me aquece é a solidão.

JOSÉ FELDMAN/PR

Na vida, quem trapaceia tem perdão, se o sonho é belo!

Que importa seja de areia? Eu tenho à mão um castelo!

JOSÉ OUVERNEY/SP

Como un castillo de arena en segundos caerá

la mentira a boca llena pronto se descubrirá.

LIBIA BEATRIZ CARCIOFETTI/ARGENTINA

Num castelo pequenino, feito somente de areia,

pus meus sonhos de menino e os salvei da maré cheia.

MÁRIO A. J. ZAMATARO/PR

Todo amor que enreda a teia do ciúme e da paixão

escorre qual grãos de areia por entre os dedos da mão. OLYMPIO COUTINHO – BH

Nos meus tempos mais risonhos

alimentando ilusão, fiz mil castelos de sonhos

na palma de minha mão!!! PROF. GARCIA/RN

A mão que constrói castelo

de areia em outra mão produz um instante belo

de arte e cooperação. WAGNER MARQUES LOPES/MG

Fonte: http://poesiaemtrovas.blogspot.com/

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Waldir Neves

1924 - 2007

Trovas

Abandono... O Sol declina... Vem baixando a cerração... E solidão com neblina é muito mais solidão! A cortina da janela... A cama... Tudo tal qual... — Só que o cenário, sem ela, nunca mais vai ser igual... A glória dos homens brilha com fulgor de eternidade, toda vez que uma Bastilha tomba aos pés da Liberdade! Ah!, meu peito... Esta saudade... Quero que a expulses, que grites... Tu lhe deste intimidade, e ela passou dos limites! Amanhece... A névoa fina vai cobrindo a serração... E solidão com neblina é muito mais solidão! A saudade, em horas mortas, sem ver que o tempo passou, teima em abrir velhas portas que há muito a vida fechou... Cai a noite... Seu negrume, mercê de um mistério estranho, faz de um ínfimo perfume um lamento sem tamanho... Circo novo na cidade! - No poleiro, a dar risada, olhem lá minha saudade no meio da garotada! Deste-me um beijo - um somente! E queres que eu me console ... - O desejo é sede ardente, que não se mata de um gole!...

Deus intangível, etéreo, mas sempre amor e indulgência, guarda no próprio mistério sua infinita evidência. Deus que é paz... amor profundo, em sua excelsa grandeza, se é mistério para o mundo, para mim é uma certeza! É uma lágrima sentida que toda mulher enxuga: a que lhe rola escondida por sobre a primeira ruga! Faz teu ciúme um barulho que me soa encantador. - Ele acorda o meu orgulho de dono do teu amor!... Fugi do amor com receio do seu fascínio... e o que fiz foi só cortar, pelo meio, meu meio de ser feliz.... Homem sem rasgos nem brilho, a que a luz não atrai, vou me orgulhar se meu filho tiver orgulho do pai. Irmãos no meu insucesso o peito implora, a alma pede... Todos querem teu regresso... Só meu orgulho não cede! Mais vibrantes, mais risonhos a palpitar de inquietude, diferem dos outros sonhos os sonhos da juventude! Meus braços estão vazios, meus desejos transbordando, meus pensamentos vadios

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no quarto te procurando. Muito moço inconseqüente, despreparado e revel, ganha têmpera de gente na bigorna do quartel. Neste abandono sofrido, sou mais um, que, por vaidade, deixou que o orgulho, ferido, matasse a felicidade... No rubro céu da alvorada, um ponto pisca e alumia... - É uma estrela embriagada que volta da boemia! Nos abismos do mistério, onde a razão perde a voz, talvez o desvão mais sério se oculte dentro de nós... No teu sucesso, milhares Vêm implorar-te favores. Uns poucos, se fracassares, partilham das tuas dores O abismo maior que existe, o mais fundo que já vi, é aquele que um homem triste carrega dentro de si... O golpe da despedida foi tão rápido e tão fundo, que fracionou minha vida numa fração de segundo... Opondo orgulho e egoísmo aos meus acenos risonhos, cavaste o profundo abismo onde enterrei os meus sonhos. O vento leva a amizade, leva o amor, o riso e os ais, só não carrega a saudade, - acha pesada demais! Para a "sede de saber" há no mundo água abundante. Para a "sede do poder" água nenhuma é bastante... Perante a Divina Luz a Ciência se ajoelha, pois, sendo sábia, deduz

quem lhe acendeu a centelha... Perguntou-me, à despedida: – Quem sabe é melhor assim?... E uma lágrima incontida deu-lhe a resposta por mim!... Posso jurar de mãos postas, Pesando o que já passei, Que as mais difíceis respostas Foi em silêncio que eu dei. Quando a vida, qual verdugo, me trespassa de agonias, minhas lágrimas enxugo num lenço de Ave-Marias... Quando Deus cobrar meu prazo, hei de sempre aqui voltar, ou numa sombra de ocaso, ou num raio de luar ! Que momento abençoado e que gesto redentor, quando o orgulho, derrotado, cai, humilde, aos pés do amor !... Quem um filho vê feliz, seguir por si, resoluto, vive a glória da raiz orgulhosa pelo fruto. Que estranho mistério existe no lamento da viola: - queixume que me faz triste; - tristeza que me consola!... Quisera que Deus me desse, acima de qualquer bem, um orgulho que pusesse bem abaixo o teu desdém. Saudoso dos braços dela, voltei, contrito e humilhado. - Quando a saudade martela, qualquer orgulho é quebrado!... Saudade é gota caída, é pranto que ninguém vê: -É uma lágrima sentida que leva sempre a você. ... Saudade é uma diligência que nos leva, docemente, com repetida freqüência,

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ao velho oeste da gente! Saudade!...Foto em pedaços, que eu colei, com mão tremida, tentando compor os traços de quem rasgou minha vida! Saudade!... Raio de lua, suprindo o Sol que brilhou... Tábua solta, que flutua, depois que o amor naufragou! Senhora de cada instante das minhas horas vazias, a Saudade é uma constante na inconstância dos meus dias... Sonha sim, pobre, com festa! Que a fantasia, afinal, é tudo qu ainda te resta neste mundo desigual!

Terminamos... e ela pensa que será logo esquecida. O que ganhou foi presença para sempre, em minha vida! Velho cultor de utopias e de ambições sobranceiras, sonho ver, ainda em meus dias, um mundo igual, sem fronteiras! Vista seda ou popeline, seja Amélia ou seja Inês, toda mulher se define no dia em que diz: -―Talvez!...‖ Zerando ofensas e afrontas, o beijo é o mago auditor que faz o ajuste de contas depois das brigas de amor! Fonte: Vendaval das Letras

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