Upload
editora-substansia
View
229
Download
1
Embed Size (px)
DESCRIPTION
Revista Substânsia Nº 01
Citation preview
Nathan Matos
Roberto Menezes
Nathan Matos
Roberto Menezes Madjer de Souza Pontes
Depende de voc
Camila Arajo da Silva Leandro Liporage
Luis Maffei Madjer de Souza Pontes
Marcelo Magalhes Marcelo Peloggio Natrcia Pontes
Omar Khouri Pedro Salgueiro Robert de Brse Simone Barreto
Simone Barreto|flickr.com/simonebarreto
www.substansia.com.br
A Revista Substnsia, nascida de irrequieta disposio a fazer circular vozes e tons que vo do academicismo ao despojamento, traz em seu primeiro nmero uma smula de textos e imagens que apresenta parte da nsia que mobilizou o que agora matria, pronta a movimentar-se. Para este marco inicial, procurou-se propor uma estrutura que vai do ensaio poesia. Pedro Salgueiro nos brindou com um texto intitulado Talento, em que discute, sem colocar ponto final, as foras mobilizadoras que atuam na feitura do texto literrio. Omar Khouri nos apresenta um percurso pela cidade de So Paulo em que pese a ntima relao com o movimento modernista de 1922, promovendo um encontro espaciotemporal com a arquitetura que moldou essa poca no to distante. Marcelo Magalhes buscou olhar O pas do carnaval atravs das pginas de Jorge Amado, destacando os aspectos que marcam o instantneo da vida literria no Brasil modernista. Autora de Copacabana Dreams, Natrcia Pontes se nos abre para uma entrevista descontrada. Marcelo Peloggio se prope a mostrar as facetas histricas, filosficas e estticas em torno da natureza, do homem e da linguagem, como o olhar de Gagarin a avistar a Terra em sua totalidade material. Luis Maffei nos brinda com o conto indito Fita e redinha. Os originais e as tradues dos fragmentos lricos de Safo de Lesbos so oferecidos por Robert de Brse. Por fim, um conjunto de desenhos de Simone Barreto compem toda a nossa substnsia. A ideia fazer que a substnsia literria possa, assim, comungar atravs dos seus mais diversos gneros para que seja sorvida por vocs, leitores. No poderamos deixar de agradecer a todos os colaboradores deste primeiro nmero, que confiaram na proposta da Revista e aceitaram entrar nesta incerta substnsia. Aproveitem a leitura. O prazer sempre nosso.
Os Editores
Fragmentos Lricos Safo de Lesbos, p.72 Fita e redinha, p.67
O olhar de Gagarin, p.55 Entrevista, p.51
Pas do carnaval: instantneo da vida literria no Brasil modernista, p.25
So Paulo : Arqueologia e Histria de 22, e do antes e do depois: percurso modernista para ser feito, de 6 meses a 1 ano, p.15
Talento, p.06
Desenhos, p.82
Ningum bom assim sem mais nem menos: tem de aprender a ser. William Faulkner
m escritor importante
(no lembro se Flaubert)
afirmou certa vez que o
talento, na verdade, no passava de
uma longa pacincia. A frase ficou
rodopiando em minha cabea desde
ento, muito mais pelo que ela deixa
de dvida, desconfiana, do que
pelas gotas de certeza que traz em
suas entrelinhas.
J nasceria o artista (seja l qual
arte escolha ou seja escolhido por ela
para se expressar) com uma dose
gentica, inata, de talento? Uma
sensibilidade diferenciada, uma
maneira prpria de ver o mundo, um
ngulo qualquer meio enviesado de
perceber certas coisas que a maioria
dos mortais no capaz? No meu
modesto entender acho que sim e
no. Explico: acho que o artista j
nasce com essa sensibilidade
especial (no diria jamais que ela
seja superior) de ver certas coisas
de um ngulo, digamos, no (ou
pouco) convencional. Mas
perguntaria: E apenas essa
sensibilidade diferenciada seria
suficiente para o suposto artista
desenvolver com xito sua arte?
Outra pergunta que me persegue
quando penso sobre o assunto:
Somente uma criatura com essa tal (e
suposta, claro) caracterstica seria
capaz de se desenvolver como
artista? A que entra a resposta no
que veio junto com o sim um
pouco atrs.
Acredito que mesmo um escritor
naturalmente talentoso, cheio de
inspiraes (palavra mgica que
muitos usam sem desconfiar de seus
perigos ocultos), no v muito longe
se no tiver toda uma carga de
trabalho (e aqui lembro que
trabalho pra mim no significa
apenas o ato em si de escrever,
reescrever, lapidar etc., mas, bem
antes disso, o ato de ler muito e bem,
pensar muito e bem; ter curiosidade
e coragem para aprender sobre
U
08
Tal
ento
, por
Ped
ro S
alguei
ro
coisas, as quais muitas vezes no
esto obrigatoriamente, e
diretamente, ligadas ao imediata
de escrever; dialogar com os textos
lidos dos grandes autores, os que
encontraram suas prprias solues
artsticas, mas, obviamente, no para
imit-los apenas), e pode no
conseguir escrever uma grande obra.
A nossa histria literria, mesmo o
nosso meio artstico contemporneo,
est cheia de exemplos: artistas que
por um motivo ou outro (desde a
carncia de preparo intelectual at a
falta de compromisso, passando por
mil outras barreiras ao bom
desenvolvimento de suas
potencialidades) deixam de obter
xito em seu ofcio. J outros tantos
escritores, mesmo no tendo essa
facilidade toda do bom talento de
bero, conseguem atravs de seu
esforo, dedicao, enfim, do suor de
seus corpos e mentes, desenvolver
obras importantes, competentes, de
mestres at. Trocando em mido (e
usando um assunto pouqussimo
utilizado pela nossa intelectualidade,
por pura boalidade), acredito que
ocorra na arte o que muitas vezes
vemos acontece no mundo do
futebol. Vou tentar justificar
comparao to esdrxula: Fanticos
por futebol, muitas vezes
acompanhamos aquele jogador
visivelmente talentoso, de bom
drible, boa habilidade (uns alm
disso ainda tm uma viso
privilegiada de todo o campo, um
olho de lince que antev a jogada
antes de ela ocorrer: so os fora de
srie, os Pels, Puskas, Zidanes etc.),
mas que no final da carreira no
consegue uma reputao de craque,
mil tambm so os motivos que o
impedem ou dificultam seu xito,
desde a pouca dedicao ao esporte,
aos treinamentos, parte fsica,
concentrao mental, at o
impondervel da sorte de encontrar
um meio propcio ao seu
09
Talen
to, por Ped
ro Salg
ueiro
desenvolvimento (quantas vezes no
escutamos de algum a frase: Se
estivesse num grande clube tinha
chegado seleo brasileira); por
sua vez, quantas e quantas vezes no
acompanhamos aquele jogador de
qualidades tcnicas apenas medianas
mas que com uma dedicao grande,
uma concentrao incrvel, no
consegue muitas vezes ombrear
(vejam o caso de jogadores como
Vav, em 1958, Amarildo, em 1962,
Dunga, em 2002, e diversos outros)
em xitos com os grandes mestres do
gramado? O que no significa que
preferimos o jogador esforado ao
craque, claro que o craque esforado,
preparado, e num bom time,
conseguir chegar aos pncaros da
glria.
Entremeando (e superando em
quantidade) estas categorias de
craques desleixados, medianos
esforados e craques dedicados est
a maioria dos nossos escritores
contemporneos: os sem (ou com
poucas) habilidades que no se
esforam. Esses enchem o mundo de
livros, escrevem com uma
facilidade espantosa, exploram o
talento fcil at a medula:
publicam uma, duas, trs obras por
ano, se vangloriam de seus j quase
50 livros: Confessam, vaidosos, sua
genialidade, sua inspirao
incontrolvel; revertem, pois, a
lgica, quanto menos talento e
esforo mais facilidade, talvez por
no conhecerem as dificuldades da
arte de escrever, por no terem
informaes suficientes sobre o que
j foi feito (sua pouca leitura geral
um sinal: a estante pequena, nem de
novos e muito menos de clssicos).
O craque dedicado, por sua vez,
mais cauteloso, est sempre de olho
no que se escreveu ontem e o que se
produz hoje, mas principalmente no
que perdurar amanh. No gasta
tinta toa, no fundo sabe que o que
fica muito, muito, muito pouco.
10
Tal
ento
, por
Ped
ro S
alguei
ro
So os raros escritores. J o craque
desleixado acha que no final da
partida resolver com um lance
genial, um drible desconcertante,
uma jogada de gnio: no l, bebe
em demasia, pouco dorme.
Geralmente a carreira dele curta e
no final bastante confundido com o
perna-de-pau, deixa uma obra
irregular, tiradas finas e sutis num
emaranhado de escombro. Triste
vida: geralmente dar uma boa
biografia. A maioria de ns (me
incluo com unhas e dentes nesta
categoria) dos que levam jeito pra
coisa, tem certa habilidade, mas sabe
que se no ralar, se no ler muito, se
no for curioso, se no dedicar-se
com afinco ao ofcio, sucumbir sem
ter alcanado sequer o primeiro
degrau do xito. Por sermos maioria,
ficaremos a vida inteira lutando com
revises, remendos nos textos,
leituras dos mestres; correndo que
nem loucos atrs de editoras, que
parecem (sempre) correrem bem
mais que ns.
utro assunto que s vezes
me vem cachola o da
originalidade. Sabemos, e
acho que a maioria concorda, que
pouqussimos so os artistas
realmente originais, que criam algo
inteiramente novo. Aparece um, dois
em cada cem anos (pessoalmente
acho que um pouco mais, levando-se
em contas as diversas artes) e
passam a ser imitados por sculos e
sculos. So os Dante, Cames,
Fernando Pessoa, Proust, Faulkner,
James Joyce, Virgilia Woolf, Kafka
etc. da vida. Pois bem, depois vm
os imitadores, diluidores. Ou ser
que mesmo um diluidor, imitador,
pode chegar a desenvolver melhor do
que o criador aquele tipo novo de
arte? Ser que Clarice no foi (sem
querer ofender, claro, os
claricianistas de carteirinha) uma
imitadora do irlands Joyce? Um
O
11
Talen
to, por Ped
ro Salg
ueiro
amigo diz que ela deve mais a
Hermann Hesse. E da se tiver sido,
se ela tiver partido daquela indita
ideia de literatura e pensado,
sonhado em cima e conseguido dar
sua contribuio pessoal importante,
que, mesmo sem ser totalmente
indita, ser necessria e ter novos
diluidores, que pululam por esse
mundo afora. Mas ser que o
conhecimento humano, a arte em
especial, no ser uma grande
diluio, imitao, continuao;
novos pontos de vistas sobre os
mesmssimos caminhos? Quantos de
ns, prosadores modernos, no
devemos um tiquinho a Kafka, que
deveu a Robert Walser, que deveu
a... Quantos de vs, pobres contistas
modernos, no devem um tantinho a
Borges, que deveu a Marcel
Schwob... Quantos no devem um
neologismozinho que seja a
Guimares Rosa, que deveu a Joyce,
que deveu a... Quantos romancistas
no devem a Proust, que deveu a
Montaigne, que deveu a... Quantos
contistas cearenses no devem um
tiquinho a Moreira Campos, que
deveu a Tchekhov, que deveu a...
Acho que estaremos sempre tentando
subir um degrau, pouqussimos
conseguiro ir alm do modelo, do
que inventou o novo. Imagino que,
no fundo do fundo, somos todos uns
imitadores, uns diluidores. E ainda
bem! Mas claro que todos devemos
tentar ir alm, dar uma contribuio
pessoal em sua arte, tentar uma fresta
nova na porta, um ngulo nunca
antes utilizado, um efeito distorcido
na frase, uma sonoridade sugestiva
no verso, enfim: ousar encontrar uma
voz prpria.
Tambm ando matutando sobre
se, ns escritores, devemos mesmo
ter um estilo prprio,
inconfundivelmente pessoal, a ponto
de que algum que nos leia saiba
logo de quem se trata. Algo assim
como a nossa marca registrada.
12
Tal
ento
, por
Ped
ro S
alguei
ro
Alguns grandes autores adquiriram
uma maneira de escrever que, de to
peculiar, se tornou inconfundvel.
Uma crnica de jornal de Clarice
Lispector facilmente reconhecida,
mesmo que se omita o nome dela.
Um poema de Fernando Pessoa (qual
deles?, perguntaria algum mais
atento) poderia no ser to bvio.
Franz Kafka outro quase
inconfundvel em suas parbolas. O
alemo W.G. Sebald e o italiano
Cludio Magris, para quem conhece
minimamente suas obras, tambm
so inconfundveis. Mas talvez a
canadense Alice Munro e a escocesa
Ali Smith no sejam to facilmente
descobertas. Dalton Trevisan
desenvolveu um tipo de enredo que
dificilmente no se descobre de
quem o conto. Rubem Fonseca,
idem. Jos J. Veiga nem se fala...
Mas penso: Cada livro, cada conto,
cada poema no exigiria (seria
melhor falar no necessitaria de)
uma maneira prpria de ser escrito?
Acho que sim e no tambm.
Sim porque alguns escritores
muitas vezes abusam das frmulas
descobertas, do xito alcanado por
determinadas livros seus, e criam
assim como uma frma na qual
cabe tudo: um conto alegre e um
triste, um de suspense e um de
aprofundamento psicolgico. Vemos
tais caractersticas em escritores de
renome, mas muito mais em
iniciantes, que na maioria das vezes
no pensam, antes de escrever uma
histria, qual voz dar ao seu
personagem (quando em primeira
pessoa). Ana Miranda certa vez
afirmou que s comea um livro
quando descobre a voz do
personagem (que em terceira pessoa
pode muito bem ser a do narrador).
Certa vez a vi copiando um livro
enorme de determinada poca
histrica somente para tentar adquirir
a voz, a cor, o cheiro, o ritmo,
daquela poca. Tambm responderia
13
Talen
to, por Ped
ro Salg
ueiro
No porque acho importante que,
mesmo encontrando uma maneira
prpria para cada caso literrio, o
escritor tenha uma caracterstica sua
marcante, mesmo que no to bvia
e superficialmente visvel, que
permeie seus livros, um a um. Algo
como, me falta palavras apropriadas
agora, uma alma subterrnea, que
os seus leitores mais atentos,
constantes e sensveis, vo encontrar
em qualquer um de seus escritos.
No seriam pontos de vistas
contraditrios os meus? Como no
sucumbir s armadilhas fceis de um
estilo prprio, de uma frma
pronta a ser usada em situaes
distintas? E como adquirir essa voz
subterrnea pessoal e no parecer
que escreve sempre o mesmo livro, o
mesmo conto, o mesmo poema?
Perguntas difceis de serem
respondidas como uma frmula.
Cada autor deve tentar fazer uma
obra singular, sim, pensada com
esmero, pacincia. Talvez tenha sido
isso o que o escritor que afirmou que
o talento no nada mais do que
uma longa pacincia tenha querido
afirmar nas entrelinhas.
Para fechar essas minhas
ingnuas divagaes, digo que
aprendi uma coisa muito importante
com o mestre moderno do conto, o
russo Tchekhov, ao afirmar que a
arte deveria estar mais preocupada
em fazer as perguntas certas do que
em encontrar respostas verdadeiras.
14
Tal
ento
, por
Ped
ro S
alguei
ro
omo se sabe, So Paulo foi fundada em meados do
sculo XVI, no Planalto, regio que, para ser atingida a
partir do litoral, impe as grandes dificuldades de uma
Serra do Mar rea bastante acidentada - recoberta por
exuberante/espessa mata do tipo tropical: a Mata Atlntica que, em
outros tempos, recobria grande parte da faixa litornea leste do que
veio a ser o Brasil. Durante sculos, a So Paulo de Piratininga
enfrentou uma vida de pobreza empreendedora, responsvel pelo
alargamento das supostas fronteiras da Amrica Portuguesa e pela
descoberta do ouro em quantidades apreciveis, em fins do sculo
XVII, na regio que ficou conhecida como as Minas Gerais e que a
Coroa Portuguesa oportunista - desmembrou da Capitania de So
Paulo, a qual continuou pobre. Somente com a chegada do caf em
terras paulistas, e com o desenvolvimento das lavouras cafeeiras, j
no sculo XIX, que So Paulo, que se tornou Provncia, veio a
conhecer a cor do dinheiro e a dinmica de uma mudana acelerada,
que envolveu crescimento da prpria economia cafeeira, aumento da
populao escrava, imigrao, com colnias de parceria e trabalho
assalariado, crescimento das cidades, enriquecimento de uma
aristocracia branca e/ou remotamente mestia, que vinha dos sculos
XVI e XVII, melhoria das condies urbanas, crescimento das ideias
republicanas, abolio da Escravatura, implantao de estradas-de-
ferro, aparecimento de pequenos estabelecimentos fabris,
substituio de antigas construes de taipa por slidos edifcios de
alvenaria, com arremates de materiais nobres, o que significava
ostentao ou simplesmente adequao s novas condies
econmico-financeiras (a imponente Catedral da S, onde
predominam estilemas do Gtico, construo do sculo XX e
substituiu antigo templo).
Embora bastante provinciana, a partir mais ou menos de
1900, a cidade comea a crescer a olhos vistos, processo que no
teve descanso at os dias de hoje. Muita coisa teve de ser criada para
atender s novas necessidades de uma cidade que se expandia e que
comeava a apresentar grande diversidade tnica (e explicitar
diferenas sociais), o que significava que, alm da introduo de
novos modos na sociedade paulista e paulistana em especial, a coisa
se projetava para um futuro em que haveria substituio das elites
pelo menos em parte com a ascenso de imigrantes de procedncia
vria, mas principalmente de italianos. Na 2 dcada do sculo XX,
por ocasio da famosa exposio Malfatti (dez. 1917 jan. 1918), o
C
16
So
Pau
lo: A
rqueo
logia
e h
ist
ria
de
22, p
or O
mar
Kho
uri
Estado de So Paulo era, j h algum tempo, o centro mais dinmico
da economia brasileira e isto, mais do que outros fatores, tambm
importantes (existncia de uma aristocracia endinheirada e
esclarecida, a diversidade tnica etc), determinou o fato de a
Pauliceia ter sido o centro de irradiao das ideias modernistas no
Brasil. Muito embora ideias arrojadas para a poca surgissem
tambm em outras reas do Pas, foi em So Paulo que se tornou
possvel articular um movimento de renovao que mudaria a feio
das linguagens das artes no Brasil. Em So Paulo ocorreu, em
fevereiro de 1922, a Semana de Arte Moderna, marco importante do
Movimento Modernista, que comeou antes e cuja 1 fase se
estendeu at a alguns anos depois. Portanto, para quem pretenda se
aprofundar no assunto Modernismo brasileiro, preciso passar uns
tempos na Terra Bandeirante s que, ao invs da tmida e agitada
cidade de 1922, o visitante se deparar com uma megalpole
assustadora e fascinante, feia com recantos belos, estressante e
culturalmente reconfortante, e notar que pouco restou da
configurao urbana/arquitetnica que havia nos anos 1920.
J andei por So Paulo (para onde me transferi, em 1970)
procura de vestgios de modernistas de 22 ou de depois da famosa
Semana de Arte Moderna - decepes e surpresas. E, passados 91
anos daquele evento, a cidade, mutante como , ainda traz, de um
modo ou de outro, marcas daquele pessoal que protagonizou
mudanas de procedimentos artsticos no Brasil. Houve os que
participaram intensamente da Semana e de outros processos, houve
os que participaram, no em pessoa, mas com obras, e houve os que
nenhuma participao tiveram naquele fevereiro de 1922, mas que se
integraram, a seguir, ao grupo de modernistas. (Cheguei a visitar
Tarsila do Amaral por duas vezes, em 1968 e 1969. Tarsila no
participou da Semana, pois, na ocasio, estava em Paris adquirindo
tardiamente repertrio artstico - o que a conduziu ao Cubismo de
Lger e de outros - visitando museus e artistas e frequentando, para
compras, a Maison Poiret. Uma vez de volta ao Brasil, integra-se ao
grupo de modernistas. D um salto qualitativo a partir de 1923). A
cidade tem uma dinmica raras vezes observada, o que, ao invs de
elev-la, traz-lhe grandes problemas. Da que muitas construes
vieram abaixo em nome do progresso e da riqueza que So Paulo,
como um todo, foi vivendo: antigas construes de taipa deram lugar
a quelas com materiais mais nobres e outras, mesmo j construdas
com materiais nobres, acabaram cedendo lugar a altos edifcios.
17
So P
aulo: A
rqueolog
ia e histria de 2
2, por O
mar K
houri
Uma das coisas que se dizem de So Paulo que a cidade nunca fica
pronta e que tem o centro-dinmico sempre deslocado para outras
reas. Mas muito do antigo centro ainda est de p, destacando-se
algumas construes anteriores a 1922, a comear pelo Teatro
Municipal (inaugurado em 1911), totalmente restaurado, que abrigou
a famosa Semana e uma instituio ativa.
.
estaura-se e constri-se, como a escola de msica em
que Mrio de Andrade lecionou. As ruas a que poemas
fazem meno, como a Tabatinguera, a Rua 15 de
Novembro, a Rua Direita, a Rua Aurora, a Rua Lopes
Chaves l esto, mas, em grande parte, so outras. Das casas que
marcaram poca por receber pessoas para discusses e saraus, desde
um pr-modernismo, at os anos 1930, s resta a de Mrio de
Andrade, no bairro central da Barra Funda, justamente a casa da Rua
Lopes Chaves (a que se refere Drummond, em poema que
homenageia o autor do Macunama), porm, sem alma, j que seu
importante acervo de livros, obras de arte, mveis e objetos vrios
foi transferido para o Instituto de Estudos Brasileiros da USP, por
aquisio famlia, e esse acervo poder ser visto e estudado, em
parte, com autorizao especial. No mais existem: a casa do
Senador Freitas Valle (Rua Domingos de Morais), a de Dona Olvia
Guedes Penteado (Rua Conselheiro Nbias com Duque de Caxias), a
de Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral (Alameda Baro de
Piracicaba), a de Paulo Prado (Avenida Higienpolis). A da av de
Paulo Prado, Dona Veridiana da Silva Prado (que tambm d nome
rua lateral casa) est inteira - foi sede do Clube So Paulo e
recentemente foi adquirida pelo Iate Clube de Santos, que prepara
uma de suas alas para visitao pblica. A lembrana dos
modernistas, pela ou para alm da Semana, est por toda parte, com
esculturas de Victor Brecheret, de pocas diversas: do Fauno, no
Parque Siqueira Campos, passando pelo Monumento s Bandeiras,
no Ibirapuera, gigantesca e tardia esttua equestre do Duque de
Caxias, na Praa Princesa Isabel. E, ainda, de Brechet: no Museu
Brasileiro da Escultura, no Largo do Arouche e no Centro Cultural
So Paulo, e em outros museus, que abrigam trabalhos seus, os quais
nem sempre esto em exposio. Na Avenida Paulista, o pavilho do
Trianon, referido em vrios momentos do Primeiro Tempo
Modernista e que, em 1951, abrigou a 1 Bienal do Museu de Arte
Moderna de So Paulo, j no existe em seu lugar est o MASP,
projeto de Lina Bo Bardi e que j se tornou um dos cartes-postais
da cidade. A casa dos Thiollier na Paulista, tampouco existe foi
demolida e no lugar, hoje, h o Parque Mrio Covas, inaugurado em
tempo recente. Casas interessantes, as da famlia Penteado: a da Rua
Maranho (estilo art nouveau), onde funciona a Ps-Graduao da
FAU-USP e a da Rua Cear com Alagoas (estilo art dco), que
R
19
So P
aulo: A
rqueolog
ia e histria de 2
2, por O
mar K
houri
onde se instalou a diretoria da Fundao Armando lvares Penteado
e que no est aberta visitao pblica.
O Museu de Arte Brasileira da FAAP possui algumas
preciosidades modernistas, de momentos diversos: de Anita Malfatti,
Tarsila do Amaral, Victor Brecheret, Flvio de Carvalho (uma srie
de retratos), Pancetti e Portinari, entre outros, porm, raramente o
acervo exposto e precisar-se-ia de autorizao especial para
pesquis-lo, guardado, como est, na reserva tcnica.
Casas de Guilherme de Almeida e de Srgio Buarque de
Holanda, no belo bairro do Pacaembu - a do 1 tornou-se museu
(com vrias preciosidades em termos de obras de arte e de livros) e a
do 2 passa por adaptaes sendo que talvez se torne um centro
cultural. Casas Modernistas: Grigori Warchavchik, um imigrante
russo, que acabou por se tornar concunhado de Lasar Segall (ambos
se casaram com moas da famlia Klabin, irms: Mina e Jenny,
respectivamente) foi quem introduziu a arquitetura moderna no
Brasil e a cidade possui ainda vrias construes que partiram de
projetos seus: a casa da Rua Bahia (talvez um pouco
descaracterizada), a da Rua Itpolis (inteira) e a da Rua Santa Cruz,
em Vila Mariana, em meio ao Parque Modernista, e que foi
residncia do arquiteto. O Museu Segall (este, um lituano, em 1913
exps em So Paulo e Campinas, mas suas exposies no chegaram
a contribuir para a ecloso do nosso Modernismo, embora, residindo
na Alemanha, ele houvesse assimilado o repertrio expressionista,
que desenvolver radicalmente em algumas obras. Volta para So
Paulo em meados dos anos 1920 e aqui se estabelece, tendo um
papel importante na sedimentao de uma linguagem modernista em
nossa pintura). O Museu Segall fica na antiga residncia de Lasar
Segall (projeto de G. Warchavchik) e abriga parte substancial de sua
obra. Pela cidade, acoplados arquitetura, painis de Di Cavalcanti
em pastilha, quando menos se espera. Pelo que me consta, a maioria
em bom estado de conservao. No Ptio do Colgio lugar onde
oficialmente So Paulo nasceu podem-se ver belos edifcios
remanescentes do sculo XIX e da 1 metade do sc. XX. O edifcio
do antigo Colgio uma suposta reconstituio. O Edifcio
Martinelli, inaugurado em 1929, ainda est l no centro, Avenida
So Joo, 35 e, intacto, impressiona. Pode-se ter acesso ao seu
terrao, de onde se v uma So Paulo limitada apenas for algumas
20
So
Pau
lo: A
rqueo
logia
e h
ist
ria
de
22, p
or O
mar
Kho
uri
formaes montanhosas de pouca elevao. O Mercado Municipal
conserva sua arquitetura (escritrio Ramos de Azevedo) e se
constitui numa grande festa para os que apreciam alimentos de toda
espcie e de muitas procedncias acabou por se tornar alvo de
turistas, raro festival pr-gastronomia que . Se se dilata a coisa do
Modernismo, ento, adentramos as obras de Portinari e de Oscar
Niemeyer. Quanto a Portinari, o principal conjunto de pinturas faz
parte do acervo do MASP, mas tambm obras suas podem ser
encontradas nos acervos da Pinacoteca do Estado, do MAC-USP e
dos Palcios do Governo do ESP + Memorial da Amrica Latina,
complexo arquitetnico assinado por Oscar Niemeyer, mal
localizado num pedao da Barra Funda (em que o entorno no
permite uma melhor viso do conjunto), porm com belas
construes em que o estilo Pampulha retomado. Parece que So
Paulo, depois de Braslia, a cidade que possui o maior nmero de
obras do arquiteto: do complexo do Ibirapuera ao edifcio Copan.
Cemitrios: h o complexo Consolao, que congrega, na mesma
gleba, trs cemitrios: o da Consolao propriamente, o dos
Protestantes e o da Venervel Ordem Terceira do Carmo, ou seja,
so necrpoles contguas. No da Consolao podem ser visitados os
tmulos de Dona Olvia Guedes Penteado, que encimado por um
complexo escultrico de Brecheret: figuras com o Cristo morto; o de
Paulo Prado, o de Oswald de Andrade, o de Mrio de Andrade e o de
Tarsila do Amaral. No dos Protestantes, o de Anita Malfatti (que era
Krug por parte de me: alemes que passaram pelos Estados Unidos
e vieram para o Brasil protestantes). Outros modernistas de So
Paulo esto enterrados em outros cemitrios. Srgio Buarque de
Holanda foi cremado e suas cinzas deveriam ser lanadas no Tiet,
mas a famlia considerou o rio muito poludo no municpio de So
Paulo e eu no sei se rumaram mais para o interior, que onde o
Tiet se torna um grande rio e a poluio passa despercebida.
bras em Museus: visitar a Pinacoteca do Estado,
aproveitando para dar um passeio pelo Parque da Luz e
estaes nas cercanias, que eram cenrios vistos e vividos
pelos modernistas. A Pinacoteca possui obras importantes,
principalmente de Brecheret. Pinacoteca Estao (Coleo
Nemirvsky), MAC-USP, MAM (possui alguma coisa que,
geralmente fica na reserva tcnica, j que o museu, agora com um
acervo grande, pois renasceu do quase-nada, continua um museu de
O
21
So P
aulo: A
rqueolog
ia e histria de 2
2, por O
mar K
houri
curadorias), o MASP, que possui pouca coisa de arte brasileira, mas
tem uma obra-prima de Anita Malfatti: A Estudante, o IEB-USP,
que guarda a coleo importantssima de Mrio de Andrade, porm,
com exceo de 3 obras da coleo original do poeta. H, ainda, o
acervo dos Palcios do Governo do Estado de So Paulo, com uma
ou outra preciosidade modernista. Bibliotecas: a do IEB-USP, que
congrega bibliotecas particulares de algumas celebridades - de Mrio
de Andrade e Guimares Rosa, por exemplo. A Seo de Livros
Raros da Biblioteca Municipal Mrio de Andrade, a Biblioteca da
FAU-USP, e a Biblioteca Mindlin, que comea a funcionar em
prdio especial na Cidade Universitria. Dos nossos grandes
estudiosos, Aracy Amaral, j octogenria, a maior historiadora e
crtica das artes plsticas do Brasil, sob o signo do Modernismo:
grande pesquisadora, reside em So Paulo, mas tem atuado pouco no
campo da crtica nos ltimos tempos (mas deve ainda ter grande
material sobre os modernistas do 1 Tempo, pois ela pde, da 2
metade dos anos 60 1 dos 70, conviver com alguns deles (menos
Mrio de Andrade, falecido em 1945, Oswald de Andrade, em 1954
e Anita Malfatti, em 1964) e entrevist-los: teve acesso
22
So
Pau
lo: A
rqueo
logia
e h
ist
ria
de
22
, por
Om
ar K
houri
a informaes preciosas e fez levantamento de documentos que
ainda serviro a mais de uma gerao de historiadores.
Seus livros sobre as Artes Plsticas na Semana de 22, sobre
Blaise Cendrars, no Brasil, e sobre Tarsila do Amaral, so
fundamentais para se ter uma idia do que foi aquele perodo. Disse,
numa entrevista, que possua muito material que ela no havia
utilizado para os seus livros, inclusive material gravado, com
informaes de vrios nveis e que talvez possam vir a ser utilizadas
por outrem, futuramente. Tarsila do Amaral (morta em janeiro de
1973), alm de muito culta, escrevia muitssimo bem e chegou a
exercer, por muitos anos (sua famlia, de aristocratas milionrios,
passou por graves problemas financeiros a partir da Grande Crise,
instaurada com a quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque, em
1929), o jornalismo cultural, em forma de crnicas: inteligentssima,
quando opinava. Geralmente, acertava em cheio, mas essas crnicas
ficam ainda melhores quando assumem a feio de memrias: da, os
tempos de Paris, o Cubismo, a vida cultural em So Paulo etc fazem
a alegria dos aficionados. Foram editados dois volumes com seus
escritos: um pequeno, pela EDUSP e outro alentado, praticamente
completo, pela Editora da UNICAMP. Tarsila colecionou e chegou a
ter em casa preciosidades, como a mais importante das obras da srie
Torre Eiffel, de Robert Delaunay, que hoje se encontra no Instituto
de Artes de Chicago, pois vendeu sua coleo (pequena,
numericamente falando) em incios dos anos 1950. Uma obra-prima
de Giorgio de Chirico, de 1914 Enigma de um dia - felizmente
ficou no Brasil e integra o acervo do MAC-USP (pertencia a ela e a
Oswald de Andrade, seu marido em parte dos anos 1920). Alguns
acervos importantes, constitudos principalmente por livros e
documentos, foram para a UNICAMP, em Campinas: o de Oswald
de Andrade e, mais recentemente, o de Srgio Buarque de Holanda
(ironicamente, pois ele fundador do IEB-USP). O fato de se residir
em So Paulo pode favorecer o encontro com descendentes ou
parentes ou contraparentes de modernistas histricos e o que
acontecer que voc, um aficionado das artes e, em especial, do
que produziu o Modernismo brasileiro ver que sabe mais sobre os
parentes do que eles que, por sua vez, ficaro espantados pelo que
voc sabe. Da que, como professor em diversos nveis e em
algumas escolas, pude encontrar e conversar com os meninos Krug,
portanto, parentes de Anita Malfatti, recebi por uma aluna um recado
23
So P
aulo: A
rqueolog
ia e histria de 2
2, por O
mar K
houri
de uma sobrinha neta de Tarsila do Amaral, fui professor de dois
Silva Telles, tataranetos de Dona Olvia Guedes Penteado (o MASP
possui peas preciosas doadas por sua filha, Dona Carolina da Silva
Telles, incluindo uma bela natureza-morta de Fernand Lger, mas a
famlia ainda conserva obras, como timas peas de Brecheret), dois
Silva Prado, parentes de Paulo Prado, uma neta e um contraparente
de Lasar Segall, um neto de Oswald de Andrade, uma sobrinha de
Patrcia Galvo, a Pagu, um bisneto de Gregori Warchavchic.
L pelos anos 1920, Dona Olvia Guedes Penteado dizia que,
quando as vitrines do Mappin Stores comeavam a ficar boas, era
sinal de que se tinha de retornar a Paris! O Modernismo foi um
fenmeno europeu, que se difundiu pelas Amricas, que acabaram
por se constituir numa espcie de extenso daquela civilizao.
Coube a So Paulo o papel de centro irradiador do Modernismo no
Brasil. (Que imagens da So Paulo dos anos 20 teriam guardado,
entre outros, Blaise Cendrars e Marinetti?) Este texto termina aqui,
porm, poder ser corrigido e sofrer acrscimos por aqueles que,
sabendo mais, ainda tiverem boa-vontade para tanto. O Google
auxiliar aqueles que so sedentos de imagens.
24
So
Pau
lo: A
rqueo
logia
e h
ist
ria
de
22, p
or O
mar
Kho
uri
O Brasil continuou o mesmo. No melhorou, nem piorou. Feliz Brasil, que no se preocupa com problemas, no pensa e apenas sonha em ser, num futuro muito prximo, o primeiro pas do mundo...
O pas do carnaval, primeiro romance de Jorge
Amado, foi desde o momento de sua publicao
considerado uma espcie de retrato do Brasil, do
incio da dcada de 1930, que de algum modo
testemunhara as transformaes do primeiro
perodo modernista. Publicado em 1931, mas
escrito ainda no ano anterior, quando o
romancista tinha apenas 18 anos, O pas do
carnaval de fato documento da vida literria e
ideolgica brasileira de ento. Documento
parcial certamente, como no poderia deixar de
ser, em que transparecem as dores de duas
maioridades, simblica ou efetivamente
compreendidas, a se estabelecer: a do
modernismo literrio brasileiro e a do prprio
autor do romance em questo, o jovem Jorge
Amado.
27
Pas d
o Carn
aval, por Marcelo M
agalhes
trajetria de Paulo Rigger, o protagonista
do romance do qual falamos,
representativa de um momento
sociocultural intensamente crtico (posto em crise),
momento em parte determinado pela assimilao de
inovaes propostas vida cultural do pas pelas
ideias modernistas. O cenrio triste em que
transcorre a ao do romance, o Brasil, o pas no
qual ainda so debatidas antigas ideias concernentes
nossa formao cultural e tnica, quase todas
subsistindo no limiar da exausto ou do cinismo. Ao
lado disso, e com equivalente interesse, o pas em
que intelectuais e artistas tentam delinear com maior
clareza posicionamentos ideolgicos e polticos,
tentativa fundamental diante das transformaes que
o fim da Repblica Velha trazia.
Mais que a anlise literria de O pas do
carnaval ou a lucubrao sobre o desenvolvimento
artstico de seu autor, que no deixam de ser aspectos
de grande interesse e que tangencialmente abordarei,
interessar a seguir a compreenso deste romance
inaugural de Jorge Amado como representao de
elementos essenciais que animavam a vida cultural
brasileira na virada de 1920 para 30. Alm do
romancista baiano e de suas primeiras criaturas
romanescas, figuras ilustres tero lugar no
instantneo da vida literria modernista aqui
revelado, como Paulo Prado, Oswald de Andrade,
Augusto Frederico Schmidt e Mrio de Andrade.
A
28
Pa
s do
Car
nav
al, p
or M
arce
lo M
agal
hes
protagonista de O pas do carnaval, Paulo
Rigger, volta de Paris, ento e
tradicionalmente chamada de umbigo do
mundo (na expresso de Paulo Prado), sem ter
encontrado o sentido da ptria. Caracterizado j no
primeiro captulo do romance, Rigger apontado
como filho de riqussimo fazendeiro de cacau no sul
do estado da Bahia, tendo seu pai falecido h
tempos. Atendendo a um desejo paterno, seguira
para Paris em busca de um anel de bacharel, status
almejado como requinte frente ao diploma
conquistado em territrio nacional. Rigger, diletante
com o estofo histrico da classe proprietria
brasileira, em Paris, como natural, fez tudo, menos
estudar Direito: um blas, contaminado de toda a
literatura de antes da guerra. Segundo o narrador,
seu protagonista no fizera uma base para a sua
vida, pois era muito francs: No tinha filosofias
e fazia blagues acerca do esprito de seriedade da
gerao que surgia.
Com esta sucinta apresentao do personagem
principal, a partir dos traos riscados pelo jovem
romancista, pretendo chamar ateno para o ltimo
aspecto relacionado no pargrafo anterior: a oposio
entre o esprito de seriedade da gerao que ento
surgia e o esprito satrico e cosmopolita (leia-se
francfilo) da gerao precedente, da qual Paulo
Rigger ser supostamente exmio exemplar. Quem
conhece apenas um bocadinho da histria do
modernismo, e mais especificamente a caracterizao
de seus dois tempos o primeiro, de 1920,
caracterizado por seu projeto esttico, e o segundo,
da dcada seguinte, pelo seu projeto ideolgico ,
O
29
Pas d
o Carn
aval, por Marcelo M
agalhes
reconhecer certamente os dados desse jogo
opositivo, assim como a origem factual do
protagonista de O pas do carnaval.
A gerao de 22 falou francs e leu os poetas,
atestou certa vez o crtico Srgio Milliet. Tal atestado
mais nos induz considerao de Rigger como
exemplar desta gerao de 22, ainda que no
saibamos com preciso, pela narrativa romanesca, de
suas predilees literrias, e percebamos que algumas
de suas posturas ideolgicas chocam de frente com o
pensamento da ala progressista do modernismo.
Sabemos apenas, como j referido acima, que fora ele
contaminado de toda a literatura de antes da
guerra, a qual caracterizada em sequncia posterior
como uma literatura de frases.
30
Pa
s do
Car
nav
al, p
or M
arce
lo M
agal
hes
Essa literatura de frases, por sua vez, se
contrape literatura da gerao posterior Segunda
Guerra, referida como uma literatura de ideias.
Esta oposio certamente redutora, mas esteve
de fato entre as concepes da jovem gerao que
comeava a se estabelecer em 1930. De um modo
geral, o esprito dos anos 30, segundo Antonio
Candido, obstinou-se na busca do conhecimento do
que ento era chamado de realidade brasileira,
pondo de lado as preocupaes com a elaborao
formal em literatura, cerne do projeto esttico da
gerao de 22. Candido no deixa de comentar o
quanto h de equvoco nesta mentalidade, expressa
nas palavras de muitos dos escritores daquele
momento. Chega-se a pensar que para eles no era
necessrio [...] fundir de maneira vlida a matria
com os requisitos da fatura, pois esta poderia
atrapalhar eventualmente o impacto humano da outra
(quando na verdade a sua condio) (CANDIDO,
1987, p. 196).
Em carta assinada por Augusto Frederico
Schmidt, poeta catlico e primeiro editor de Jorge
Amado, que serve de prefcio a O pas do carnaval,
por exemplo, encontramos indcios claros desta
percepo. Diz o poeta-editor que o livro do estreante
Jorge Amado deve ser visto de uma maneira diversa
da que se olham as obras de fico, e acrescenta: ,
antes de tudo, um forte documento do que somos
hoje, ns, mocidade brasileira (in AMADO, 2011, p.
9). Ou seja, Schmidt avaliza a noo de que a
matria o aspecto fundamental da produo
literria, que deveria buscar de alguma forma maior
compreenso da realidade brasileira, neste caso
atravs do conhecimento do tdio e do desespero de
31
Pas d
o Carn
aval, por Marcelo M
agalhes
sua mocidade. A elaborao formal, concernente ao
que Candido chama de fatura, aspecto secundrio,
j que o romance , antes de tudo, um forte
documento.
Augusto Frederico Schmidt, nascido no Rio de
Janeiro em 1906, foi figura fundamental da vida
literria dos anos 1930. Adepto do catolicismo
militante chefiado por Tristo de Athayde
(pseudnimo de Alceu Amoroso Lima), no comeo
desta dcada o poeta carioca passa a dirigir a Livraria
Catlica, onde pouco depois fundaria a Schmidt
Editora. O grupo de intelectuais catlicos do qual
Schmidt fazia parte, e que muitas vezes se reunia em
sua editora, formava o pensamento espiritualista de
direita, surgido no Brasil com a atuao de Jackson de
Figueiredo. Alm de editar o primeiro livro de Jorge
Amado, o poeta-editor foi responsvel pela
publicao de escritores essenciais da nossa
literatura, como Otvio de Faria, Rachel de Queiroz,
Graciliano Ramos, Vincius de Moraes e Gilberto
Freyre.
Alm de comentar aspectos do romance que
editava ento, Schmidt prope, ao final de sua carta-
prefcio, uma leitura dissidente do movimento
modernista. Procurando demarcar a divergncia entre
as geraes, afirma o poeta-editor: O movimento
modernista iniciado por Graa Aranha, e que Mrio
de Andrade e outros mais sistematizaram foi o
movimento de afirmao do esprito. Diante desta
interpretao, recorro novamente aos que sabemos
um bocadinho da histria do modernismo brasileiro.
certo que Graa Aranha teve nele participao
relevante, mas certo tambm que o autor de Cana
no pode ser considerado o iniciador do movimento,
32
Pa
s do
Car
nav
al, p
or M
arce
lo M
agal
hes
sendo Mrio de Andrade e outros mais apenas
sistematizadores. Esta interpretao nos parece
equivocada, sintomtica do desdm que o esprito
dos anos 30 cultivou em relao aos da gerao de
22. Mais sintomtica ainda do grupo espiritualista
de ento, marcado pelo reacionarismo de direita.
Mas Schmidt no para no ponto em que o
deixamos acima, avana um pouco mais na avaliao
tendenciosa do movimento modernista, quando
afirma: Mas o movimento morreu e no nos diz hoje
mais nada. Era errado desde o incio, na direo que
tomou (in AMADO, 2011, p. 12). O carter
negativamente conclusivo da avaliao permite-nos
perceber que o equvoco estava realmente na
perspectiva de Schmidt, para quem Cristo a chave
e a medida. O espiritualismo catlico sustentado
pelo grupo que frequentava a Schmidt Editora,
33
Pas d
o Carn
aval, por Marcelo M
agalhes
reacionrio e direitista, renegava muitas das
conquistas culturais do primeiro modernismo, que no
entanto no seriam abaladas em sua validade. Esttica
e ideologicamente conservadores, parece-nos hoje que
erro de direo houve na atitude do grupo que
formava o chamado catolicismo militante, incapaz
de valorizar certos elementos formadores da cultura
brasileira.
Alis, modernismo e carnaval so postos lado a
lado por Otvio de Faria em seu primeiro livro,
Machiavel e o Brasil, editado originalmente pela
Schmidt Editora no mesmo ano de estreia de Jorge
Amado (1931). O livro de Faria referido por Schmidt
em sua carta-prefcio, tomado como representativo
da gerao revoltada que vem surgindo. O carnaval,
que fora considerado por Oswald de Andrade o
acontecimento religioso da raa (no Manifesto da
Poesia Pau-Brasil, publicado em 1924), ser tomado
por Faria como uma fuga diante de ns mesmos
(FARIA, 1933, p. 197), e de modo semelhante avalia o
movimento modernista. Nem o modernismo nem o
carnaval seriam aspectos relevantes da perseguida
realidade brasileira, no representariam o que
Otvio de Faria denomina a busca de brasileiro. O
movimento modernista, porque era importado e o
carnaval, porque era um caminho de decadncia
(idem, p. 200).
as o que tudo isso tem que ver com o
protagonista de O pas do carnaval?
Paulo Rigger, doente de civilizao,
chega ao Brasil em pleno carnaval. O burburinho
acerca dos acontecimentos polticos de 1930 agitam
os jornais, assim como os festejos momescos agitam
M
34
Pa
s do
Car
nav
al, p
or M
arce
lo M
agal
hes
as ruas do Rio de Janeiro, ento capital da Repblica,
onde Rigger primeiro aporta em seu retorno de terras
europeias. Logo se depara com a sonoridade das
marchinhas, que chama ironicamente a grande
msica do Brasil, caracterizada pela barbaria do
ritmo. Rigger parece pretender sempre uma assptica
distncia da grande alegria da multido em xtase,
ainda que sua alma brasileira parea tender para a
voluptuosidade do delrio coletivo: Era o Carnaval...
Vitria de todo o Instinto, reino da carne...,
considera o narrador, em sintonia com a percepo do
seu protagonista.
Sou bem a representao da minha gerao,
afirma Rigger nas pginas finais do romance. Para o
protagonista, assim como para a gerao que ele
pretende representar, no se confirmava a ideia de
que a alegria a prova dos nove, como sugeriu
Oswald de Andrade (no seu Manifesto Antropfago,
publicado em 1928). Rigger supe o oposto, em fina
sintonia com o pensamento de Otvio de Faria e de
Augusto Frederico Schmidt: Toda gerao que inicia
uma luta uma gerao que vai sofrer (in AMADO,
2011, p. 143). Algo que recorda o que Schmidt dissera
em sua carta-prefcio, considerando a ausncia de
um grande sofrimento como causa dos sofrimentos
dos personagens de O pas do carnaval; assim como
recorda Otvio de Faria, que na crtica ao carnaval
estampada nas pginas de Machiavel e o Brasil
apontava para a lio mais profunda, a lio do
sofrimento (FARIA, 1933, p. 200).
sintomtica e simblica, portanto, a frase
final do romance que narra a trajetria do
protagonista diante do cenrio triste do Brasil: L
longe, desaparecia lentamente o pas do Carnaval....
35
Pas d
o Carn
aval, por Marcelo M
agalhes
Paulo Rigger, tendo h muito perdido o sentido de
Deus, caminha para a converso, marcante tambm
na trajetria de alguns dos intelectuais do grupo
espiritualista por volta de 30; no tendo encontrado
o sentido da ptria no prprio pas, no o
encontraria no umbigo do mundo, Paris, para onde
retorna por fim. Voltaria a Paris, para esquecer.
Qual o sentido possvel? Haveria acaso uma revelao
em seu caminho? L longe...
uem me fez assim foi minha gente e
minha terra, canta o poeta com um
sorriso sardnico por volta de 1930, em
poema intitulado Explicao (no livro Alguma
poesia). Mas a explicao que pretendo comentar aqui
no a do poeta, mas a do jovem romancista Jorge
Amado, que antecede sua narrativa ficcional de uma.
Espcie de profisso de f, a Explicao do
romancista estreante no tem a mesma tonalidade
zombeteira da de Carlos Drummond de Andrade.
Alis, pelo contrrio, ela um tanto cinzenta em sua
austeridade juvenil, procurando apontar pretensas
causas de nossos males de origem e estabelecendo
significaes do prprio enredo romanesco de O pas
do carnaval.
Eu ainda sou um que procura..., revela o
romancista baiano em um dos passos de sua
Explicao. No mesmo pargrafo, Jorge Amado diz
que seu livro como o Brasil de hoje: Sem um
princpio filosfico, sem se bater por um partido. Nem
comunista, nem fascista. Nem materialista, nem
espiritualista.. Tabula rasa, portanto, que no
contexto especfico do momento j representava
Q
36
Pa
s do
Car
nav
al, p
or M
arce
lo M
agal
hes
algumas escolhas ou um desejo de superao.
Superao das experincias vanguardistas da dcada
de 1920, que algumas vezes se tingiram de
tonalidades progressistas ou socialistas, mais
acentuadamente no final desta dcada. Jorge parece
querer alargar o caminho para as possibilidades da
converso, declarando sugestivamente ser ainda um
que procura.
Pouco antes, encontramos na Explicao a
glosa de um mote que naquele momento ainda no
cara em exausto completa: a discusso em torno de
nossa formao tnica, tomada melancolicamente
como fatalidade insupervel. E dessa confuso est
saindo uma raa doente e indolente, afirma o
romancista, referindo-se ao Norte do Brasil, no
entanto qualificada como terra de promisso. a
mesma ideia que Paulo Rigger faz da formao
brasileira, vista sob a perspectiva do chamado
racismo cientfico, que (de)formara a percepo de
muitos dos nossos intrpretes anteriormente. a m
formao do povo, que se alia a outras causas na
cruel manuteno do atraso nacional. Outra dessas
causas a grandiosidade da natureza, a primeira
que encontramos na referida Explicao: Diante da
grandiosidade da natureza, o brasileiro pensou que
isto aqui fosse circo. E virou palhao.... A natureza,
ao contrrio do que considerava a mentalidade
romntica brasileira, seria fator determinante de um
atraso mental praticamente insupervel. Schmidt, o
poeta-prefaciador, j referira, antes da explicao do
romancista, este aspecto, acusando a grandeza do
territrio e a ausncia de uma raa com nitidez, com
marca. Povo sem marca, no seramos capazes de
transformar o pas, fazer com que ele deixasse de ser
37
Pas d
o Carn
aval, por Marcelo M
agalhes
um cenrio triste. A culpa da sombra das
bananeiras de meu pas, redarguiria irnico o poeta
de Alguma poesia.
Jorge Amado diz ainda que seu livro um
grito, pedido de socorro de uma gerao de
insatisfeitos, com veleidades de humanitrio.
Cristo disse que se devia amar o prximo, anuncia o
romancista, confirmando o canal de contato com o
grupo de intelectuais do chamado grupo
espiritualista. E ataca enfim o tom satrico da
literatura que se desenvolvera na dcada modernista
de 1920, da qual seria preciso se distanciar: A stira,
no Brasil, s a praticam os papagaios. Os
representantes da gerao de 22, que falaram francs
e leram os poetas, bem poderiam responder com um
verso do poema incidental que abriu esta seo: Se
meu verso no deu certo foi seu ouvido que
entortou.
azendo a crtica das Memrias sentimentais
de Joo Miramar, de Oswald de Andrade,
Srgio Buarque de Holanda e Prudente de
Moraes Neto apontam uma contingncia que
consideram prejudicial narrativa: De vez em
quando, um pouco de literatura. E discrimina este
pouco de literatura em exemplos: A tarde
suicidava-se como Petrnio; Paradas casavam
Picasso, Satie e Joo Cocteau (in HOLANDA, 1996,
p. 212). O que os crticos chamam de um pouco de
literatura representado pela presena da tradio
cultural europeia, clssica ou contempornea, que
F
38
Pa
s do
Car
nav
al, p
or M
arce
lo M
agal
hes
contrasta com o objetivo primordial do personagem
oswaldiano, o de escrever brasileiro.
A narrativa de O pas do carnaval traz alguma
coisa semelhante a esse pouco de literatura, mas
com significaes peculiares. Nas pginas que contam
a trajetria de Paulo Rigger, to diversas das que
evocam as peripcias de Joo Miramar, a ocasional
presena de um pouco de literatura parece ainda
servir a desgnios crticos e reflexivos. Em um dos
casos, subentende-se uma visada irnica diante das
vanguardas que haviam marcado as artes plsticas
europeias; em outro, percebe-se o registro da
presena de uma nova linguagem artstica, o cinema,
que anunciava hbitos novos e costumes postos em
desuso.
A primeira poro de um pouco de literatura
que encontramos em O pas do carnaval est no
primeiro captulo, em que Paulo Rigger encontra-se
ainda no navio que o leva para o Rio de Janeiro,
inicial ponto de desembarque no retorno da Europa.
Rigger est no tombadilho, pensando sobre sua
trajetria at ali e sobre as implicaes de sua volta
ao Brasil. A narrativa esclarece nesta altura que seu
protagonista correra toda Paris, dos mais
aristocrticos sales aos mais srdidos cabars, o
que nos faz supor ser ele conhecedor das novidades
vanguardistas que no umbigo do mundo
circulavam. Com seu olhar cansado, indagava as
ondas sobre o sentido de sua vida. Mas o mar,
indiferente, no lhe respondia. O sol que morria
desenhava no horizonte paisagens berrantes. O sol foi
o primeiro cubista do mundo....
O trecho, que pronunciado pela voz do
narrador, parece constituir um momento de discurso
39
Pas d
o Carn
aval, por Marcelo M
agalhes
indireto livre, ao menos no ltimo perodo que o
compe. O sol foi o primeiro cubista do mundo
frase que pode facilmente ser identificada como
blague de Paulo Rigger, este caracterizado mais de
uma vez como blagueur (assim como Pedro Ticiano,
tambm personagem fundamental, interlocutor dileto
de Rigger). Blague que poderamos classificar como
ironicamente naf, procurando desbancar os
inventores da pintura cubista, simples seguidores da
lio do sol, que afinal desenhava no horizonte
paisagens berrantes.
O pas do carnaval composto por 16 captulos,
e no final do nono que encontramos a segunda
poro de um pouco de literatura, poro esta que
tambm faz convergirem astros do cu e do panorama
cultural do incio da dcada de 1930. O cu cheio de
estrelas. A Lua, muito gorda, parecia uma atriz velha
entre girls novas.. Aqui no encontramos o mesmo
registro irnico que no primeiro caso, mas to
somente uma referncia ao cinema e s suas
novssimas girls, que pareciam impor um novo padro
de beleza feminina, do qual o modernismo literrio
no deixou de tratar, com as mais diversas intenes.
Para rematar esta seo, um ltimo aspecto
relacionado. Trata-se do carter livresco que se
destaca na formao dos personagens que compe o
grupo de interlocutores nacionais de Paulo Rigger,
que ele declara serem os nicos amigos, os nicos
que figuram no enredo. No incio do dcimo segundo
captulo, o protagonista constata: A vida da gente
unicamente literatura. Essa constatao ecoa no
pensamento de Rigger at o final do romance e
acentua uma problemtica colocada anteriormente: o
fato de Rigger, assim como alguns de seus amigos,
mostrar-se contaminado de toda a literatura de antes
da guerra, ou seja, por uma literatura de frases.
Carter livresco que a narrativa pretende impingir aos
escritores da gerao de 22, que no entanto
combateram a formao livresca e que estiveram
constantemente contra o gabinetismo.
Mas seria interessante tambm apontar algumas
dessas referncias culturais como elementos
caractersticos da prosa romanesca de Jorge Amado.
A msica popular, o cinema americano e seus astros,
os anncios de reclame e os cartazes polticos do
momento esto presentes em O pas do carnaval,
como elementos da realidade factual que garantem o
colorido pitoresco da narrativa. Esses elementos
compuseram cada vez mais o universo amadiano,
constando no apenas como contedos temticos,
mas tambm como modelos de linguagem expressiva,
41
Pas d
o Carn
aval, por Marcelo M
agalhes
como o caso do uso da montagem cinematogrfica
na organizao romanesca, perceptveis
principalmente nos livros posteriores a Jubiab, de
1935.
m artigo escrito no incio da dcada de 1940
sobre o encontro que teve com Jorge Amado,
Oswald de Andrade felicitava o romancista
baiano por ser algum que representava realmente
uma gerao (ANDRADE, 1991, p. 56). No apenas
por isso, mas tambm pelo reconhecimento do ainda
jovem romancista, com vinte e poucos anos, diante de
Oswald, na poca cinquento e colocado margem da
vida literria brasileira. Criou-se ento a fbula de
que eu s fazia piada e irreverncia (idem, p. 55),
depunha o velho modernista. E a matria dessa
fbula que faz de Oswald de Andrade uma figura que
provavelmente tenha servido de modelo para algumas
das percepes crticas que Jorge Amado expe em
seu primeiro romance, ainda que no seja o principal
dentre os possveis.
Entre os artistas da primeira fila modernista,
Oswald de Andrade foi o responsvel maior pelos
contatos entre os anseios artsticos brasileiros e as
inovaes das vanguardas europeias, fundamentais
para a elaborao do movimento modernista. Foi
Oswald, voraz antropfago, quem devorou elementos
da revoluo artstica que abalava a vida cultural
europeia e soube, a partir da transformao radical
deles, propor uma relao cultural nova, que
subvertesse os vnculos de dependncia e submisso a
modelos metropolitanos. Mas a interpretao desta
atividade artstica e crtica no foi sempre favorvel,
E
42
Pa
s do
Car
nav
al, p
or M
arce
lo M
agal
hes
tendo sido combatida com virulncia por grupos
modernistas que acusaram Oswald de estrangeirice,
como foi o caso do grupo conhecido como
Verdeamarelismo, depois chamado Escola da
Anta.
O encontro e a amizade entre Jorge Amado e
Oswald de Andrade s se deram depois de 1933,
quando ambos estavam filiados ao Partido Comunista
Brasileiro. A trajetria intelectual de Oswald, no
entanto, no tivera sempre a marca deliberada de
ideologias de esquerda, tendo ele prprio avaliado sua
atuao na dcada de 1920 como a de um palhao de
classe, um palhao da burguesia, com o sadio estofo
do que ele chamou de fundamental anarquismo. A
feio bomia e cosmopolita de sua atuao serviria
bem, desta forma, caricatura de intelectuais
modernistas que Jorge Amado esboa nas pginas de
seu primeiro romance. Oswald, que j foi
caracterizado como um intelecto formado atravs
dos transatlnticos (SILVA, 2009, p. 123),
certamente emprestou parte de seu figurino aos
personagens de O pas do carnaval.
Observando a narrativa do jovem estreante em
perspectiva mais ampla, curioso perceber que h
indcios de certo revanchismo regional em suas
pginas. Voltando ao primeiro captulo do romance,
deparamos com um curioso dilogo entre os ilustres
passageiros do transatlntico que se dirige ao Brasil,
vindo da Europa. Um dos interlocutores, senador,
afirma que o caf continua a dar um lucro fabuloso,
e arremata: a riqueza de So Paulo e a do Brasil.
A senhora do senador ento acrescenta: Mesmo
porque o Brasil So Paulo!. O narrador taxa a
nobre senhora de bairrista de irritar, e ironicamente
44
Pa
s do
Car
nav
al, p
or M
arce
lo M
agal
hes
pe a dialogar com ela um diplomata baiano, que
exalta a Bahia pelos grandes gnios que tem, como
Rui Barbosa.
A ironia com o grande gnio baiano, Rui
Barbosa, que em trecho posterior considerado
sarcasticamente como um dos santos da Bahia, no
esconde a indisposio que havia entre os intelectuais
do Norte diante de um robusto
paulistocentrismo, proporcionado principalmente
pela economia cafeeira e sublimado de mil maneiras
pelo movimento modernista. A concentrao de poder
no sudeste deixava os Estados do Norte em situao
secundria, e este desconcerto acentuou uma postura
crtica dos intelectuais situados fora desse espao
privilegiado. Entre os menos crticos e mais ufanos,
porm, Rui Barbosa era ainda motivo de orgulho, no
Norte ou no Sudeste.
Mas o que pretendo destacar aqui justamente
o olhar crtico, e algumas vezes ressentido, dos
intelectuais e escritores do Norte diante de regies
mais privilegiadas pelo governo central, em momento
de vasto rearranjo poltico e social. Alm da
percepo reivindicatria de que as condies de
desenvolvimento econmico se concentravam,
repetindo um injusto esquema histrico, no Sudeste,
havia a percepo mais ou menos clara de que o
portentoso desenvolvimento econmico (decorrente
inicialmente da cultura cafeeira) fora o fundamento
necessrio do modernismo paulista. Vejamos, como
exemplo, um trecho de entrevista de Jorge Amado que
toca fundo nesta questo:
[...] o modernismo no Brasil uma
transposio dos movimentos que surgiram na Europa
45
Pas d
o Carn
aval, por Marcelo M
agalhes
[...] e influenciaram os jovens paulistas da alta
burguesia [...] e aqueles que no eram ricos eram
protegidos dos ricos, como foi o caso de Mrio de
Andrade, protegido por aquela riqussima senhora de
So Paulo, Dona Olvia Penteado [...] foi ela quem o
levou para a famosa viagem Amaznia. O
modernismo foi patrocinado por homens ricos de So
Paulo, como Paulo Prado, autor de Retrato do
Brasil (Apud RAILLARD, 1990, p. 59).
Essa percepo crtica no seria refutada pelos
principais artistas paulistas. Mrio de Andrade diria,
duas dcadas depois da Semana de Arte Moderna, que
o movimento modernista era nitidamente
aristocrtico (ANDRADE, 1964, p. 236). Os sales de
Dona Olvia Guedes Penteado e de Paulo Prado, onde
se reuniam os novos de So Paulo, constituram um
espao de sociabilidade essencial para o movimento.
Paulo Prado, ao mesmo tempo que um dos expoentes
da aristocracia intelectual paulista, era uma das
figuras principais da nossa aristocracia tradicional
(idem). E este rico expoente que mais de perto deve
ter se fixado como modelo para a elaborao de Paulo
Rigger.
Como afirmou Mrio de Andrade, o fautor
verdadeiro da Semana de Arte Moderna foi Paulo
Prado (idem, p. 235). O rico proprietrio de terras e
grande produtor de caf patrocinou o evento
acontecido em 1922, e era mais que um simples
cafeicultor interessado em meetings artsticos.
Nascido em 1869, Paulo Prado viveria, a partir de
1890, longas temporadas na Europa, que lhe dariam
matria para sua colaborao inicial na imprensa
brasileira (na coluna Notcias da Europa, do Jornal
46
Pa
s do
Car
nav
al, p
or M
arce
lo M
agal
hes
do Commercio). Em suas temporadas europeias ou
mesmo no Brasil, adquiriu obras de pintores bastante
cotados, como Fernand Lger, Picasso, Picabia, Anita
Malfatti e Portinari. Em 1924 patrocina a vinda do
escritor franco-suio Blaise Cendrars ao Brasil, ano
em que escreve tambm o prefcio para Pau-Brasil, de
Oswald de Andrade.
Estes dados parecem epidrmicos, porm so
relevantes para a construo do retrato irnico e
caricato que encontramos em O pas do carnaval. So
dados biogrficos que transparecem na feio de
Paulo Rigger, e que na figura factual de Paulo Prado
compreensivelmente causavam uma apreciao
desdenhosa por parte dos jovens escritores do Norte.
Ea de Queirs, que Paulo Prado frequentou em Paris,
teria chamado o autor do Retrato do Brasil de uma
perfeio humana, por sua inteligncia e cultura.
Para os que reparavam ressabiados para a distante
pauliceia modernista, com sua aristocracia de
esprito lastreada pela fartura financeira e agitada
por guinadas culturais, Paulo Prado provavelmente
no pudesse deixar de ser identificado como um
doente de civilizao.
Aprofundando o confronto de dados
assemelhados, chegamos ao mais interessante. Trata-
se da convergncia de conceitos expressos por Paulo
Rigger no romance com as ideias de Paulo Prado
estampadas em seu livro mais famoso, o Retrato do
Brasil. Por trs desta convergncia, curioso
perceber a incidental identificao do jovem Jorge
Amado com alguns aspectos desenvolvidos por Prado
em seu referido livro. o caso da frase inicial da
Explicao, apresentada anteriormente, que
antecede a narrativa de O pas do carnaval: Diante
da grandiosidade da natureza.... No Retrato do
Brasil, a frase inicial do livro a seguinte: Numa
terra radiosa vive um povo triste (PRADO, 2012, p.
39).
Pelo que foi posto at aqui, creio que a curta
extenso das citaes no afasta a compreenso da
convergncia que proponho. O ensaio sobre a
tristeza brasileira esse o subttulo do Retrato do
Brasil , de Paulo Prado, peca justamente pela
condenao de nossa formao tnica como obstculo
decisivo ao nosso desenvolvimento socioeconmico.
Para o ensasta paulista, o caldeamento racial
de que resultou o Brasil teria nos deixado uma
maldita herana: a luxria, a cobia e a tristeza,
48
Pa
s do
Car
nav
al, p
or M
arce
lo M
agal
hes
acentuados todos pelo mal do romantismo. E essa
mesma herana que aflige Paulo Rigger e o afasta da
possibilidade de encontrar o sentido da ptria, j
que no se identifica com a populao de brasileiros,
entregues todos aos pecados apontados por Paulo
Prado, principalmente entregues ao reino da carne.
Paulo Prado o homem mais elegante do
Brasil, dizia no comeo da dcada de 1930 um
indiscreto admirador. A elegncia tambm atributo
de Paulo Rigger, mas este requinte corrompido
pelos males de origem com que se depara em sua
terra. Paulo Rigger no era o mesmo elegante de
quando chegara da Europa (p. 140). No fizera uso
de seu diploma, no exercera seriamente o jornalismo,
no aproveitara as possibilidades polticas que seu
status social permitia e facilitava. Apenas descobrira
em si a inqua presena daqueles pecados de que fala
49
Pas d
o Carn
aval, por Marcelo M
agalhes
Paulo Prado, nos raros momentos em que se sentiu
brasileiro: quando sambou certa vez na rua, em meio
ao carnaval do Rio, e quando surrou a amante que lhe
trara com um empregado de sua fazenda. Nas pginas
de O pas do carnaval, portanto, podemos encontrar
um rico painel de figuras que compuseram um
momento de guinada cultural no Brasil, o incio dos
nos 1930. Ideias e conceitos que se entrechocaram no
perodo do primeiro modernismo ganham projees
que podem ajudar uma compreenso transversal da
definio ideolgica do incio da Nova Repblica.
Ideais frustrados e a manuteno de desigualdades
sociais lanam luzes no cenrio de ento, assim como
nos desenvolvimentos posteriores e mesmo
contemporneos. Na esperana de que, ao final desta
compreenso, possamos constatar, aliviados, que o
Brasil no continuou o mesmo, e nem tampouco se
tornou o primeiro do mundo.
50
Pa
s do
Car
nav
al, p
or M
arce
lo M
agal
hes
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS: ALMEIDA, Alfredo W. B. Jorge Amado: poltica e literatura (um estudo sobre a trajetria intelectual de Jorge Amado). Rio de Janeiro: Campus, 1979. AMADO, Jorge. O pas do carnaval. 3 ed. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1937. _______. O pas do carnaval. So Paulo: Companhia das Letras, 2011. ANDRADE, Mrio. O movimento modernista. In: _______. Aspectos da Literatura Brasileira. So Paulo: Martins, 1964. ANDRADE, Oswald de. Ponta de Lana. So Paulo: Globo, 1991. CANDIDO, Antonio. A Revoluo de 1930 e a cultura. In: _______. A educao pela noite e outros ensaios. So Paulo: tica, 1987. FARIA, Otvio de. Machiavel e o Brasil. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1933. HOLANDA, Srgio Buarque. O Esprito e a Letra: estudos de crtica literria I. Organizao, introduo e notas Antonio Arnoni Prado. So Paulo: Companhia das Letras, 1996. LAFET, Joo Luiz. 1930: a crtica e o Modernismo. So Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000. PRADO, Paulo. Poesia Pau-Brasil. In: ANDRADE, Oswald de. Pau-Brasil. 5 ed. So Paulo: Globo, 1991. PRADO, Paulo. Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira. 10 ed. So Paulo: Companhia das Letras, 2012. RAILLARD, Alice. Conversando com Jorge Amado. Rio de Janeiro: Record, 1990. SILVA, Anderson Pires da. Mrio e Oswald: uma histria privada do modernismo. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009.
1) Natrcia, do que voc gosta mais: de escrever ou de observar? Gosto de observar. Gosto igualmente de quando o texto est pronto. O cansativo o que fica entre. Sou muito preguiosa para escrever. Ultimamente minha maior luta tem sido essa: sentar na cadeira e escrever as coisas que eu pensei em escrever. 2) O seu livro foi um sucesso, principalmente em Fortaleza. Como foi saber que o livro havia esgotado em poucos dias? Esgotou? No sabia! Me falaram que no encontravam, mas no sabia que tinha esgotado. claro que fico feliz com uma notcia dessas. Muito! 3) Copacabana Dreams classificado como fico. Voc se preocupou em deixar evidente uma unidade entre as partes? No. Mas minha editora, sim. Arredondamos um bocado no processo de edio a ideia de repetir personagens foi do Cassiano e do Emlio, por exemplo. De qualquer forma, essa unidade que se formou foi muito natural, impensada. Porque o livro foi todo escrito l, de uma maneira espontnea, como uma forma de registro.
52
Entr
evis
ta c
om N
atr
cia
Pon
tes
4) Quem anda por Copacabana? Voc gosta de aproximar as vozes dos seus textos com voc mesma, a signatria? s vezes sim, s vezes no. Depende da lua. Gosto muito de fingir um trao biogrfico quando escrevo em primeira pessoa, em um texto que parece biogrfico, mas no . E o contrrio tambm, dar a minha voz a um personagem absurdo em terceira pessoa e ali abrir meu corao. Mas no fundo no controlo isso, o texto vem como ele tem que vir. Agora, quem anda por Copacabana no sei dizer. A signatria est escondida por um par de culos escuros. 5) Assim como no seu livro Az Muleres, em Copacabana Dreams voc vai do A ao Z. Isso reflexo de algo em voc ou na consistncia de sua escrita? No sei responder. Sou metdica, apesar de parecer catica. Ser que isso responde? Mas a deciso do Copacabana dreams vir em ordem alfabtica foi da minha editora Helosa. Ela citou um livro do Borges, cujo nome esqueci, como justificativa. J no
Az Mulerez, a ordem alfabtica fazia parte da ideia e estrutura do livro, s poderia vir em ordem alfabtica mesmo. Seno seria outro livro. 6) Antes voc no aceitava ser chamada de escritora. E agora, Natrcia, voc j se disps a aceitar a 'coroa' de escritora, que antes lhe era to distante? A coroa no. Acho que nunca. Essa para poucos. Mas aceito dizer que escrevo. mais verdadeiro. Depois de escrever esse livro, vi que no precisava dos salamaleques todos que julgava associados ao ofcio de escritor. Foi muito natural. Tudo pode ser mais simples. mais saudvel pensar assim.
53
Entr
evis
ta c
om N
atr
cia
Pon
tes
7) O mercado editorial, nessa ltima dcada, tem tido uma preocupao em angariar, cada vez mais, lucros atravs de romances de fico, tendo como personagens centrais figuras lendrias, pois os leitores mais vidos so os adolescentes. Como voc percebe a fico brasileira em meio a tudo isso? No sei bem o que dizer aqui. Pra mim, no importa o que acontea, eu acho que sempre haver coisas boas, novas ou velhas, para se ler na nossa literatura. E na do resto do mundo tambm. Incluo aqui as sagas msticas de personagens lendrios. 8) Ainda h espao para os livros de contos no Brasil? Sim. Na minha estante, sobretudo. engraado gente que acha o conto menor. Conto diferente. Um outro caminho.
9) Excluindo as obras da Clarice Lispector, que foram de extrema importncia para a sua imagtica, como voc j declarou, quais outras voc tem como influncia? Olha, tudo. Posso responder assim? Juro que no estou sendo preguiosa. Mas tudo que me passa, seja um filme, um poema, uma frase de um passante perdida na calada, um programa ruim na TV aberta, uma conversa profunda, uma conversa boba, um macarro bem feito, um sonho, um cheiro de roupa limpa, um copo sujo de suco, um vdeo de youtube filmado em baixa definio, uma lembrana aleatria, uma pea de teatro ruim adoro tudo que ruim , um mergulho numa piscina gelada, as pestanas lisas do meu sobrinho. Quase tudo me influencia e me d vontade de escrever.
10) As experincias artsticas que voc teve com Simone Barreto contriburam de que maneira para a sua escrita? Os desenhos do tumblr (http://simonenatercia.tumblr.com/) que vocs partilham geram frutos para alm do que compartilhado l? um projetinho muito querido nosso. Descobrimos que somos muito parecidas, mesmo antes de nos conhecer. Nosso mapa astral assustadoramente igual. A, ficamos amigas. A, pensamos nesse projeto. O que eu acho legal dele pensar que ela escreve desenhando e eu desenho escrevendo. Queremos muito que vire um livro, acho que uma hora ou outra vai virar. Tenho outro projeto bem parecido, com o fotgrafo, tambm cearense, Marcio Tvora. Digo parecido porque a ideia parece a mesma, mas o resultado da juno dos textos com as fotografias do Marcio vai para outro lugar.
54
Entr
evis
ta c
om N
atr
cia
Pon
tes
que pois a natureza seno
aquilo que a todo momento
inventamos? Talvez
devssemos consider-la naquilo que ela
mostra ser: a rigor, uma criatura cuja
dimenso ampla e profunda deixou de
suprimir a nossa; que, encerrada em um
quadro geral da linguagem, no diz mais
respeito a si mesma, mas to-somente ao
ser do homem no curso de suas
realizaes. A natureza designar o
lugar sem identidade; sua antiga
soberania agora se dobra, e para sempre,
ao ser precrio da soberania humana.
porque sua imagem deixou de refletir o
espectro de si mesma, e do qual
acreditvamos ser o portador, mas que,
curiosamente, no nos dizia respeito
sobretudo ao fato de dar guarida ao
absoluto e objetivar, assim, de tempos em
tempos, as foras centrais do universo.
Talvez a natureza se mostre cada vez
mais prxima, e deixe que nosso ser
comparea mais soberano e natural. que
a historicizamos de tal modo que
precisamos entender em que medida e de
que forma ela encarnar no como um
oponente mais forte, ou em toda
fenomenologia considerada (o mundo
exterior est adaptado Mente) , esse
elemento singular mas ao mesmo tempo
mltiplo.
Ora, sem relao alguma com seu
primeiro limite, a natureza bem poderia
sugerir um mundo em desencanto, quer
dizer, sem a posse de seus segredos
fundamentais1. Expulsa de seu domnio,
organizada segundo as regras de uma
epistemologia, cedendo lugar aos sistemas
e estruturas, aos nomes e suas derivaes,
dentro do quadro amplo da linguagem.
Ela pode indicar, at mesmo, uma nao
inteira. Em outro sentido, e igualmente
largo, o conhecimento acerca da natureza
sugere tambm polarizaes valorativas,
mais ou menos explcitas, que giram em
torno de um carter de ameaa, de uma
analogia com situaes sociais. Indica
tambm a projeo de sentimentos, a
formao de uma etimologia da condio
humana, de um estado de alma e, em uma
1 Ver ACOT, Pascal. Histria da ecologia. 2a ed. Trad. de
Carlota Gomes. Rio de Janeiro: Campus, 1990,
sobretudo p. 130-2.
O
56
O o
lhar
de
Gag
arin
, Mar
celo
Pel
oggio
perspectiva marcadamente romntica,
sua leitura histrica2.
Os mais variados modos de sentir e
pensar o mundo certificam ao homem, na
realizao global da vida, o estatuto de
uma evoluo: ou o aprendizado da
humanidade do homem3, de que fala
Gerd Bornheim. Como em Hegel, poder-
se-ia dizer que nossa conscincia, a e
ento, se alarga; que se lhe confere a
vontade de apossar-se ou mesmo de se
confundir com o mundo volta,
esclarecendo, portanto, toda a epistm.
Assim, a apreenso do real pode dar-se
sob duas maneiras: em um primeiro
2 HEYNEMANN, Cludia. Floresta da Tijuca: natureza
e civilizao no Rio de Janeiro sculo XIX. Rio de
Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1995, p. 33. 3 BORNHEIM, Gerd. O homem no um ser natural,
Ambiente. Revista Cetesb de Tecnologia, So Paulo,
Secretaria de Estado do Meio Ambiente, v. 4, n. 1,
1990, p. 9.
momento, o olhar ocupa-se das notas
constitutivas do objeto para, em seguida,
cobri-lo de uma ou outra significao (isto
, uma natureza qualquer, referida por
uma categoria ou ideia, objetivada de
direito); em um segundo momento, o
objeto, ao encarnar esse ou aquele
conceito, como que se transforma pela
segunda vez (ou seja, uma natureza
qualquer, modificada em sua estrutura
interna e material objetivando-se de fato).
Em verdade, o primeiro movimento j
supe e comanda o segundo, dando a
impresso muito viva de que o esprito
sai pelos olhos para ir passear pelas
coisas4; sucede uma transformao
destas mediante uma construo da
4 MEARLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o esprito.
In: Os pensadores. 2a ed. Trad. de Marilena de Souza
Chau, Nelson Alfredo Aguilar e Pedro de Souza
Moraes. So Paulo: Abril Cultural, 1984, p. 91.
conscincia, a qual, em seu duplo,
determinada sob formas historicamente
especficas das relaes sociais5.
Com efeito, este um modo entre
outros de se representar o real dentro de
determinado sistema de pensamento. Na
viso metafsica, por exemplo, de um
dado objeto, por meio de uma operao
do esprito, separamos a quidditas
(permanente e necessria), cuja imagem
mental expressa em um conceito; em
relao ao idealismo lgico, a diferena
aparece no grau de determinao da
conscincia, j que no se trata a de um
voltar atrs, que, na reflexo
ontolgica, penetra o ser tal das coisas,
mas de uma essncia autnoma e
5 THOMPSON, E. P. Costumes em comum. Estudos
sobre a cultura popular tradicional. Trad. de Rosaura
Eichember. So Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.
22.
57
O olhar d
e Gag
arin, M
arcelo Pelog
gio
absoluta, ou seja, de uma Ideia geral que
portaramos sem se ter-lhe a imediata
conscincia o que, de acordo com
Hartmann, compreenderia o absurdo de
um subjetivismo sem sujeito6. o que
geralmente se verifica nas mais variadas
expresses do pantesmo.
igualmente o caso de situar as
prprias coisas no centro de uma diviso
arbitrria para a transformao ulterior
desta em uma unidade. Colocada acima
mas espargida graas ao ser mesmo das
coisas (natura naturata), a ideia das
ideias (natura naturans) h de impor
vida a regncia de uma realidade
absoluta e incondicionada, posto que se
considere a converso da forma inferior
6 Cf. BRUGGER, Walter. Dicionrio de filosofia. 3a ed.
Trad. de Antnio Pinto de Carvalho. So Paulo: EPU,
1977, p. 216.
na superior. Assim, por exemplo, na
filosofia da natureza de Schelling,
a coisa singular apenas um momento
daquele ato eterno da transformao
da essncia na forma; por isso, a forma,
como particular, por exemplo como
figurao do infinito no finito,
distinguida; mas aquilo que se torna
objetivo atravs dessa forma somente
a prpria unidade absoluta7.
Viso importante, a dissipar a crena
geral de que os artistas romnticos, em
grande parte, ver-se-iam metidos em
algum gnero de transcendentalismo: no
fariam mais do que ler os smbolos da
7 SCHELLING, Friedrich von. Exposio da ideia
universal da filosofia em geral e da filosofia-da-natureza
como parte integrante da primeira. In: Os pensadores. 2a
ed. Trad. de Rubens Rodrigues Torres Filho. So
Paulo: Abril Cultural, 1984, p. 51.
natureza8, encarando o fenmeno esttico
como o princpio da sntese. Da que h
todo um lado positivo nesta suposio, a
revelar-se, principalmente, na
continuidade flagrante entre o sujeito e o
objeto, ou na rejeio de um Blake
viso mecanicista9, dado que, em geral, a
natureza representada na conveno
romntica como um todo vivo.
A Naturphilosophie de Schelling, ou
mesmo a de Steffens, pode ser contestada
em seu nascedouro, uma vez que nos
possvel sublinhar a presena decisiva de
Hlderlin: o carter ambguo de sua
poesia, ora a manifestar a comunho
com a natureza, ora a dissociao em
relao a esta, em que o Eu v apontar o
8 Ver WELLEK, Ren. Conceitos de crtica. Trad. de
Oscar Mendes. So Paulo: Cultrix, s/d., p. 154-69 e 189. 9 Ibidem, p. 160.
58
O o
lhar
de
Gag
arin
, Mar
celo
Pel
oggio
vazio [...] em consequncia da ausncia
dos deuses10.
falta de uma simbologia
propriamente dita, qual deve o artista
romntico aderir por uma imposio da
forma, surge a figura de um sujeito
pensante real e a historicidade que,
porventura, venha determinar. Isto ,
elidem-se os deuses para que, no domnio
mais amplo da vida, reine to-somente o
homem e a sua escritura da histria (ou
linguagem em devir). Ora, em funo
justamente de um pensamento dominante
e historicamente considerado com suas
ideias, sua carapaa de costumes11
10 ROSENFELD, Anatol. Letras germnicas. So Paulo:
Perspectiva, 1993, p. 49 e 51. 11 DUBY, Georges. Histria social e ideologias das
sociedades. In: LE GOFF, Jacques e NORA, Pierre
(org.). Trad. de Theo Santiago. Histria: novos
problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976, p.
133.
que passamos a entrever, aqui e ali, a
emergncia do desvio, do
distanciamento, da reapropriao12.
Assim, livrando-se a si mesmo e toda a
histria de uma fantasia mitolgica ou
das estranhas leis de uma dana
circular (Fichte), pode o artista
romntico atingir, de pleno direito, a
realidade de seus pensamentos, [para]
remodelar o mundo de acordo com [seus]
planos, criar livremente algo
historicamente novo13.
Mas preciso situar a natureza, aos
po