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Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

DESAFIOS PARA A CONSOLIDAÇÃO DE UM SISTEMA DE DEFESA ÀS MULHERES

EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

Yasmin Oliveira Mercadante Pestana 1

Ana Rita Souza Prata 2

Resumo: A Lei Maria da Penha foi criada a partir das reflexões e preocupações dos movimentos e organizações de

mulheres feministas, que buscaram criar um sistema de defesa autônomo às mulheres em situação de violência

doméstica. Com esse espírito pioneiro, a Lei trouxe diversos desafios para o sistema de justiça, uma vez que tentou

adequar a organização judiciária e processual às demandas das mulheres. Nesse sentido, a Lei protetiva, para além de

buscar uma transformação na cultura patriarcal, visou romper com o padrão compartimentalizado do sistema de justiça.

Há muitos desafios para a consolidação desse novo paradigma de justiça e o presente artigo tem o objetivo de se

debruçar sobre alguns deles. A não efetivação da competência híbrida dos Juizados de Violência Doméstica é uma das

principais mudanças enunciadas pelo estatuto protetivo, mas não é colocada em prática e gera graves prejuízos às

mulheres. A obrigatoriedade de procedimentos criminais para o acionamento de qualquer tutela protetiva também é

outro fator que vem preocupando as redes de atendimento às mulheres em situação de violência. São sobre esses e

outros desafios que o presente artigo pretende refletir, investigando os impasses para a implementação da Lei Maria da

Penha, à luz dos posicionamentos dos movimentos, das organizações e das redes de mulheres/feministas.

Palavras-chave: Lei Maria da Penha, sistema de justiça, Juizados de Violência Doméstica, movimentos feministas.

Com a criação da Lei Maria da Penha, foi inaugurada uma nova fase de reflexão e

mobilização no campo feminista e nos estudos sobre violência de gênero. Se antes da Lei, embora o

Código Penal já trouxesse a tipificação dos crimes de ameaça e lesão corporal, as mulheres eram

frequentemente ridicularizadas e desestimuladas a pedirem auxílio estatal, com o advento do novo

diploma jurídico, a expectativa era romper com a banalização da violência doméstica fomentada

pelo uso indiscriminado da Lei nº 9.099/95.

Assim, ainda que a legislação por si só não assegure mudanças, a intenção dos

movimentos e organizações de mulheres/feministas foi criar um diploma protetivo que inibisse a

rota crítica vivenciada pelas mulheres e assegurasse o acolhimento integral das vítimas, no bojo de

uma perspectiva de gênero (art. 5º, da Lei nº 11.340/06).

A Lei Maria da Penha foi desenhada como um marco legal diferenciado para a defesa

das mulheres e, nesse sentido, constituiu um “sistema jurídico autônomo”:

Diferentemente da expectativa tradicional dos atores do campo jurídicopenal, a Lei 11.340/06

estabelece um catálogo extenso de medidas de natureza extra-penal que amplia a tutela para o

problema da violência contra mulheres e, ao mesmo tempo, transcende os limitados horizontes

estabelecidos pela dogmática jurídica. (...) Desta forma, o estatuto se desvincula daquele campo

1 Defensora Pública do Estado de São Paulo, atualmente Coordenadora Auxiliar do Núcleo de Defesa e Promoção dos

Direitos da Mulher (NUDEM) da Defensoria Pública de São Paulo. 2 Defensora Pública do Estado de São Paulo, atualmente do NUDEM da Defensoria Pública de São Paulo.

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nominado exclusivamente como penal e cria um sistema jurídico autônomo que deve ser

regido por regras próprias de interpretação, de aplicação e de execução da Lei. Guias

interpretativas que, necessariamente, devem seguir os instrumentos normativos internacionais que

consolidaram os direitos das mulheres. (CAMPOS e CARVALHO, 2011, p. 144).

No entanto, se para as militantes, estudiosas e organizações feministas a criação de um

sistema autônomo de defesa das mulheres foi consagrada como uma vitória, para muitos/as agentes

do sistema de justiça, que não participaram desse processo, tal sistema não foi (e ainda não é) bem

aceito, uma vez que desafia os parâmetros da organização judiciária. É esse choque entre o que está

previsto na Lei Maria da Penha e a prática forense que será comentado a seguir.

“Questões de família” e a competência dos Juizados de Violência Doméstica:

Um dos maiores desafios para a efetiva implementação do mencionado sistema – e da

própria Lei – é a consolidação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar (JVDF) com

competência híbrida ou cumulativa:

Art. 14. Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, órgãos da Justiça

Ordinária com competência cível e criminal, poderão ser criados pela União, no Distrito Federal

e nos Territórios, e pelos Estados, para o processo, o julgamento e a execução das causas

decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher.

De acordo com o artigo citado acima, os Juizados de Violência Doméstica deveriam ser

competentes para julgar causas de natureza cível e penal, ou seja, entendendo a complexidade da

violência doméstica, a Lei Maria da Penha estabeleceu que a mulher pode se dirigir ao JVDF para

solicitar tanto uma medida protetiva de natureza penal (como a prisão preventiva), quanto um

pedido de caráter cível (como divórcio, guarda ou ação indenizatória). E, nos termos da Lei Maria

da Penha, nos locais onde não foram instaladas varas especializadas de violência doméstica, varas

criminais farão às vezes daquelas, com a mesma competência híbrida (art. 33).

Na prática, há uma resistência de todas/os as/os profissionais que atuam nos Juizados de

Violência Doméstica para o cumprimento do artigo citado, já que o Judiciário se estrutura a partir

de uma lógica de fragmentação de matérias, atribuindo para cada demanda específica um juízo

competente diferente. Sobre o tema o Fórum Nacional de Juízes/as de Violência Doméstica e

Familiar contra a Mulher (FONAVID) estabeleceu o enunciado nº 3:

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A competência cível dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher é restrita às

medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha, devendo as ações cíveis e as de

Direito de Família ser processadas e julgadas pelas varas cíveis e de família, respectivamente3.

Pelo enunciado acima, em discordância com a expressa previsão legal, os juízes e as

juízas atuantes nos Juizados de Violência Doméstica e Familiar

(JVDF) decidiram restringir a competência dos Juizados, se submetendo à organização

compartimentalizada do Judiciário. Ocorre que as relações de poder não atuam de forma

fragmentada e a violência doméstica é um fenômeno complexo que demanda uma ação articulada e

imediata.

A Lei Maria da Penha, desse modo, além de desafiar os paradigmas culturais de uma

sociedade machista, também vem desafiar as estruturas pré-fixadas do Judiciário que resistem a se

adequar às necessidades das mulheres.

A imprescindibilidade desse atendimento pleno à mulher em situação de violência

doméstica, concentrado em único órgão, vem da constatação de que os serviços de acolhimento à

mulher devem agir de forma a minorar o impacto da “rota crítica” enfrentada pelas mulheres. O não

cumprimento do disposto os artigos 14 e 33, da Lei nº 11.340/06, gera distorções no atendimento

das mulheres, obrigando-as a peregrinar entre vários órgãos do sistema de justiça, bem como a

relatar e “revalidar” suas narrativas diversas vezes.

Dessa feita, com a não implementação dos Juizados com competência híbrida, as

matérias relativas ao direito de família (guarda, divórcio, alimentos etc) continuaram a desaguar nas

Varas de Família. O grande problema, contudo, é que tais Varas não realizaram qualquer alteração

na forma de acolhimento das demandas envolvendo violência doméstica. Pelo contrário, algumas

Varas de Família continuaram a agir com falta de sensibilidade diante dos casos envolvendo

violência doméstica e a se referir à Lei Maria da Penha como uma lei criminal, excluindo sua

aplicação em matéria de família. Assim, o sistema de defesa autônomo é deliberadamente ignorado.

Aproveitando-se de tal descompromisso, os autores de violência doméstica - em muitas

circunstâncias - manipulam os processos de família para penalizar as mulheres. A título de exemplo,

os pais retiram os filhos por meio do uso da força e mesmo com o relato da violência doméstica,

muitos/as juízes/as não concedem os pedidos de busca e apreensão das crianças, a partir de uma

3 Portal Compromisso e Atitude. Enunciados Fonavid. Disponível em:

<http://www.compromissoeatitude.org.br/enunciados-fonavid-forum-nacional-de-violencia-domestica-e-familiar-

contra-a-mulher/>. Acesso em 18/12/2016.

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concepção abstrata de que é possível analisar de forma apartada a questão da guarda e a situação de

violência doméstica sofrida pela mãe.

A disputa pelos filhos nas Varas de Família, em muitos casos, é a expressão da

violência doméstica que a mulher está enfrentando e é silenciada pela lógica fragmentada do

Judiciário (MENDES, 2016, p.173), que se recusa a observar a dinâmica familiar sob o enfoque do

gênero.

Com a Lei nº 13.058/14, a guarda compartilhada se tornou a regra (artigo 1.584, §2º do

Código Civil). Ainda que imbuída de boas intenções, – já que a alteração visa estimular a maior

participação paterna na vida dos filhos – o instrumento da guarda compartilhada vem sendo

aplicado em casos envolvendo violência doméstica, sem uma atenção especial:

Eis aí o ponto nevrálgico da problemática que gira em torno das searas de família e criminal. Isto

é, para além da discussão sobre os reflexos da guarda compartilhada, está a incompreensão

sistêmica de que a violência doméstica não se compartimentaliza neste ou naquela instância

decisória. E mais: de que tal práxis, como apontada no relatório da CPMI, comum em vários

Tribunais brasileiros, menospreza os diversos aspectos (moral, psicológico, patrimonial) que a

violência contra a mulher assume em uma situação de conflito doméstico. (MENDES,

2016, p. 174 - grifamos).

Desse modo, a fragmentação das demandas atua em favor dos autores da violência,

tendo em vista que as consequências da violência doméstica não são analisadas integralmente pelos

Juizados de Violência Doméstica e que as Varas de Família não se comunicam com os Juizados.

Sobre o tema da guarda, não há um discussão mais comprometida sobre o que seria e

como se dá alienação parental e como, na maioria das vezes, essa prática é imputada às mulheres

que, por serem vítimas de violência doméstica, possuem filhos que não desejam conviver com um

pai agressivo ou agressor. Sobre o tema, há inclusive o Projeto de Lei nº 4.488/2016, que visa

criminalizar as mulheres que “usarem mal” a Lei Maria da Penha para afastar pais de seus filhos.

Outra distorção gerada pela não efetivação dos Juizados, que foi acentuada a partir da

alteração do Código de Processo Civil, é o emprego pelas/os juízas/es das Varas de Família dos

meios consensuais de solução de conflitos. Nesse sentido, o Código de Processo Civil, pela Lei nº

13.105/15, estabeleceu que:

Art. 694. Nas ações de família, todos os esforços serão empreendidos para a solução

consensual da controvérsia, devendo o juiz dispor do auxílio de profissionais de outras áreas de

conhecimento para a mediação e conciliação.

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A intenção do novo Código é tentar estimular o diálogo entre as partes, pressupondo

que nas ações de família a comunicação e o acordo são decisivos para a melhor solução do conflito.

Ocorre que os dispositivos processuais não podem ser aplicados sem se atentar para as

desigualdades de gênero presentes nos conflitos familiares. Existem relações desiguais de poder

dentro das famílias, de modo que qualquer conciliação ou mediação sem um olhar atento para essas

desigualdades estarão comprometidas.

Na prática forense, majoritariamente, as sessões de conciliação são realizadas sem o

acolhimento adequado da narrativa de violência doméstica apresentada pela mulher. Pelo contrário,

alguns/algumas Magistrados/as têm convocado as mulheres para a sessão de conciliação, ainda que

a mulher, por meio de advogado/a ou da Defensoria Pública, tenha manifestado o seu desinteresse

na conciliação e que possua medida protetiva deferida. Em uma interpretação estreita do Código de

Processo Civil, os/as juízes/as entendem que há obrigatoriedade da conciliação se uma das partes

manifesta interesse.

Sem entrar no mérito da inadequação jurídica – porque nas ações de família a legislação

processual orienta a aplicar a mediação (Art. 165. §3º, Novo CPC) e o próprio Código excepciona a

aplicação dos métodos consensuais do conflito (art. 334, §4º, do Novo CPC) –, o que se verifica é

mais uma distorção gerada pela não efetivação do JVD híbrido ou, no mínimo, a não aplicação

correta da Lei Maria da Penha que, na falta de um sistema autônomo, deveria ser difundida em

todos os procedimentos.

Por maior que seja a boa vontade dos/as conciliadores/as, obrigar a mulher em situação

de violência doméstica ficar frente a frente com o autor da violência, a despeito da sua vontade,

somente irá revimizá-la e qualquer acordo realizado em tais termos será permeado por pressão e

disparidade, sem falar de colocar a mulher em situações reais de risco de novas violências.

Nesse sentido, os/as conciliadores/as demandam uma especialização sobre como as

construções de gênero refletem na família, na construção da masculinidade hegemônica e na

subjetividade feminina, para evitar que as conciliações sejam mais um espaço de reafirmação de

estereótipos de gênero.

Nota-se que, para além da falta de concretização do JVDF híbrido, é essa ausência de

perspectiva de gênero nos procedimentos do sistema de justiça que enfraquece os preceitos da Lei.

Ou seja, a Lei nº 11.340/06 exige dos/as agentes do sistema de justiça que compreendam a categoria

“gênero” como uma ferramenta de análise da relação hierárquica e desigual entre homens e

mulheres, construída histórica e socialmente. A perspectiva deve tomar em conta também que

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gênero tem como característica o aspecto relacional, assim, não trata apenas das mulheres, mas das

relações entre as próprias mulheres, entre os próprios homens e entre mulheres e homens (Teles,

2006, p. 44).

Desse modo, na ausência de JVDs híbridos, a Lei Maria da Penha deve ser analisada

como de natureza “transdisciplinar”, demonstrando “a necessidade de um esforço integral e não

compartimentado do sistema de justiça para a proteção da vítima nesses casos” (Mendes, 2016, p.

178).

A lógica penal na proteção das mulheres:

O segundo grande desafio para a consolidação de um sistema autônomo de defesa das

mulheres é o próprio sistema penal, compreendido em todas as estruturas repressivas: a Polícia, o

Ministério Público, o Poder Judiciário e as instâncias informais de controle. Embora a Lei Maria da

Penha tenha enunciado um sistema autônomo de defesa, com regras próprias, o aspecto penal da Lei

se sobressaiu, abafando as outras políticas previstas com perfil mais transformador, como a

consolidação de uma educação não sexista (art. 8º, V, VIII, IX), grupos de reflexão para autores de

violência (art. 35, V) e assistência integral às mulheres (art. 9º).

O sistema penal, da forma como foi estruturado, não tem como foco a vítima e reduz o

seu papel e, além disso, a pena não atinge os efeitos de ressocialização ou o ilusório caráter

preventivo geral da pena (efeito intimidatório da pena). A criminologia crítica já aponta que o

sistema penal age de forma seletiva e excludente, visando manter o status quo dominante (Andrade,

1999, p. 113).

Desse modo, ainda que a Lei Maria da Penha tenha buscado ampliar o papel da vítima

dentro do processo penal, a verdade é que a estrutura do sistema penal é fechada e, sem todas as

alterações preconizadas pela Lei, o processo penal é insuficiente para fortalecer a mulher em

situação de violência doméstica. Por isso, é necessário refletir sobre qual o peso que o direito penal

deve ter na proteção e defesa das mulheres.

Não se quer dizer com isso que as mulheres devam renunciar ao sistema penal, porque

ainda, em um sistema capitalista patriarcal e racista, não é possível assegurar às mulheres uma

autodefesa autônoma e independente. Os movimentos, as ativistas e as entidades organizadas para o

enfrentamento de violência doméstica devem refletir sobre qual deve ser o lugar que o aparelho

repressor estatal deve ocupar no combate à violência sexista e como deve ser o uso estratégico do

direito penal.

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Se o sistema penal atua de forma excludente e orientado para a manutenção da ordem

capitalista, ele também agirá de forma excludente e estigmatizante em relação às mulheres, uma vez

que é a dominação masculina, branca e heterossexual que pretende ser mantida. (Andrade, 1999, p.

115). Assim, filiando-se a uma corrente feminista que pretende uma sociedade mais justa e

igualitária para todas/os, busca-se uma análise crítica do direito penal para a proteção das mulheres.

A aproximação das pautas feministas ao sistema penal possui causas históricas e decorre

de uma impunidade sistemática aos crimes de violência de gênero, bem como de uma frequente

“imunização penal” das condutas violentas perpetradas pelos homens dentro dos lares, o que se

pode denominar de “seletividade negativa” (Baratta, 1999, p. 53-54). Deve-se reconhecer que

grande parte do movimento feminista, a partir da década de 70, clamou por mudanças no sistema

penal, com o objetivo de que as mulheres em situação de violência doméstica tivessem seus pleitos

acolhidos pelo Estado, ainda que por meio do direito penal.

As reivindicações das feministas não eram (e não são) necessariamente pelo aumento

das penas, mas pela não discriminação das mulheres pelo sistema penal, que já está colocado dentro

da estrutura estatal como meio de solução de conflito (ainda que o seu objetivo não declarado seja a

manutenção do sistema capitalista patriarcal e racista).

Nessa linha, alguns casos de feminicídios (como de Ângela de Diniz) estimularam a

mobilização de diversos movimentos e entidades feministas, culminando na criação da primeira

Delegacia de Mulher, em São Paulo, em 1985.

Houve, portanto, motivações históricas para que as mulheres e os movimentos

feministas buscassem alterações legislativas e atendimentos especializados nas Delegacias. Assim, é

importante sempre relembrar que os movimentos feministas, pelo menos aqueles preocupados com

a transformação social, não tinham (e não tem) os mesmos ímpetos criminalizadores que as

correntes de tolerância zero. Inclusive, as feministas tiveram um árduo trabalho para conseguir que

a violência doméstica fosse reconhecida, aos olhos dos agentes públicos, como um problema digno

de ser refletido em uma política pública. Tanto é verdade que a Lei Maria da Penha apenas foi

promulgada após pressão internacional.

Entendendo esse percurso e avaliando a situação de violência de gênero que atinge as

mulheres brasileiras – o Brasil ocupa a quinta posição no ranking mundial de feminicídios –,

questiona-se a prioridade das Delegacias de Defesa da Mulher como porta de entrada das mulheres

em situação de violência doméstica e a centralidade do direito penal na proteção das mulheres.

Sobre a primeira questão, a feminista e socióloga, Heleieth Saffioti, alertou que:

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“Talvez a primeira escuta não deva ser realizada na DDM e por policiais. (...) Por enquanto, a

orientação depende das boas ou más intuições de suas delegadas, estando muito longe de ser

uniforme. As DDMs constituem apenas uma medida isolada, sendo de pequena eficácia sem o

apoio de uma rede de serviços” (SAFFIOTI, 2004, p. 90)

O excerto acima, anterior à promulgação da Lei Maria da Penha, sugere que a falta de

uniformidade no atendimento, a ausência de capacitação das/os profissionais e de interação com a

rede de atendimento por parte da DDM cria obstáculos substanciais para a ruptura da violência

doméstica. Ademais, Safiotti aponta para dificuldades que continuam presentes nas DDMs, que

permanecem sem força institucional, o que demonstra que o aparelho repressor do Estado embora

acolha a demanda por atendimento especializado não se interessa por de fato investir em

infraestrutura e equipe qualificada.

Para além das DDMs não possuírem uma boa posição institucional dentro da

corporação policial, algumas não participam ou desconhecem as redes de atendimento às mulheres

(Santos, 2015), interagindo apenas com as e os profissionais do sistema de justiça, alienando-se das

demais agentes e fixando como parâmetro de atuação os procedimentos repressivos convencionais.

Desse modo, o sistema penal solapa os interesses das mulheres. A título de exemplo,

existem relatos de mulheres que, por não desejarem continuar com o processo criminal e

reformularem suas narrativas, sofrem pressões pelos agentes públicos, como a ameaça de serem

denunciadas pelo crime de “denunciação caluniosa” (art. 339, do Código Penal). Ou seja, o que

deveria ser uma oportunidade para o fortalecimento da mulher, a deixa ainda mais vulnerável. Esse

perfil tutelar, sem qualquer cuidado em trabalhar o processo de empoderamento da mulher, não

atende a proposta de emancipação da mulher como sujeito.

Outro exemplo da centralidade atribuída ao direito penal na proteção das mulheres foi

apresentado pela “Rede Leste de Enfrentamento à Violência Doméstica contra Mulher” ao Núcleo

Especializado em Promoção e Defesa dos Direito da Mulher da Defensoria Pública de São Paulo

(NUDEM), que denunciou a exigência de boletim de ocorrência para o acolhimento da mulher nas

casas abrigo. Esse exemplo revela que o modus operandi do sistema penal é estendido a outras

esferas estatais de forma burocrática e que a política pública de defesa da mulher passa a pressupor

o sistema penal como instância validadora da violência que a mulher sofreu. Com isso, os centros

de referência e os profissionais da rede de acolhimento das mulheres perdem força e passam a

depender de instrumentos penais, os quais possuem funcionamento próprio, não vinculado à

realidade das mulheres.

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Diante de tal denúncia, o NUDEM vem atuando para que as mulheres sejam acolhidas

nos abrigos sigilosos do município de São Paulo, independente do registro de boletim de

ocorrência4.

No mesmo sentido, entendendo que os anseios das mulheres são, na maior parte das

vezes, pela proteção e não pela punição, o NUDEM, com apoio das redes de enfrentamento à

violência doméstica, elaborou a tese institucional nº 117/2016, que dispões que “as medidas

protetivas de urgência da Lei 11.340/06 não exigem, para sua concessão e manutenção, a existência

de Boletim de Ocorrência, representação criminal ou procedimento criminal”5.

Verifica-se, a partir dos exemplos aqui expostos, que para além da crítica usual de que o

sistema penal não atua efetivamente para proteger direitos, ele também pode atuar positivamente

discriminando as próprias vítimas que pretende atender ou criando restrições e exigências

adicionais, o que fica evidente no enunciado nº 41 do FONAVID: “A vítima pode ser conduzida

coercitivamente para a audiência de instrução criminal, na hipótese do art. 218 do Código de

Processo Penal”.

Por tais razões, o uso do direito penal para a defesa das mulheres deve ser analisado

criticamente, principalmente quando o Estado o utiliza como forma de validação da violência

doméstica sofrida e condicionante à proteção.

O perfil universalista da categoria “mulher”:

Sem a pretensão de esgotar os desafios colocados para a construção de um sistema

autônomo de defesa das mulheres, elenca-se como terceiro desafio a necessidade de se refletir em

que medida a Lei Maria da Penha e sua aplicação não está calcada em um perfil universalista da

categoria “mulher”.

Os tratados internacionais de direitos humanos das mulheres, como a Convenção para

Eliminar Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW) e a Convenção para

Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (“Convenção do Belém do Pará”), ao

definirem e criarem mecanismos de enfrentamento à violência doméstica contra a mulher,

utilizaram a categoria “mulher” a partir de um caráter universalizante. Assim, seguindo os ditames

4 Portal Defensoria Pública. Recomendação realizada pelo NUDEM à Prefeitura de São Paulo. Disponível em: <http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/Conteudos/Noticias/NoticiaMostra.aspx?idItem=69416&idPagina=3355>. Acesso em: 15.01.2017. 5 Portal Defensoria Pública. Tese de autoria da Defensora Nalida Coelho Monte. Disponível em: http://www.defensoria.sp.def.br/dpesp/Conteudos/Materia/MateriaMostra.aspx?idItem=65891&idModulo=9706. Acesso em: 15.01.2017.

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da segunda onda do feminismo, embora as Convenções busquem considerar os marcadores de

classe e raça, a verdade é que os mecanismos de proteção às mulheres foram delineados tendo como

premissa uma suposta categoria universal de mulher, sobrepondo o gênero sobre os demais

marcadores.

Cada vez mais se discute a necessidade de compreender as intersecções entre gênero,

classe, raça e sexualidade, notando que a desigualdade imposta às mulheres varia de acordo com

esses marcadores. Essa demanda não é apenas teórica, a realidade mostra que existe um “sexismo

racializado”, por exemplo. Nesse sentido, o “Mapa da Violência 2015: homicídios de mulheres no

Brasil”6, elaborado pela Faculdade Latino-Americana de Estudos Sociais, indicou que o número de

mulheres negras mortas cresceu 54% em 10 anos (de 2003 a 2013), enquanto que o número de

mulheres brancas assassinadas caiu 10% no mesmo período.

Como interpretar esses números, sem discutir o racismo institucional que recai sobre a

população negra, as condições específicas de sobrevivência das mulheres negras, bem como os

estereótipos racistas atrelados a essas mulheres? Como não refletir se o sistema penal, que tem

como cliente preferencial os jovens negros de periferia, não afasta as mulheres negras ou

sistematicamente recusa ajuda a essas mulheres?

Nessa linha, Kimberle Crenshaw desenvolveu o conceito da interseccionalidade,

entendendo tal conceito como um mecanismo para analisar o entrecruzamento entre gênero e raça:

A garantia de que todas as mulheres sejam beneficiadas pela ampliação da proteção dos

direitos humanos baseados no gênero exige que se dê atenção às várias formas pelas quais o

gênero intersecta-se com uma gama de outras identidades e ao modo pelo qual essas

intersecções contribuem para a vulnerabilidade particular de diferentes grupos de mulheres.

Como as experiências específicas de mulheres de grupos étnicos ou raciais definidos

são muitas vezes obscurecidas dentro de categorias mais amplas de raça e gênero, a

extensão total da sua vulnerabilidade interseccional ainda permanece desconhecida e

precisa, em última análise, ser construída a partir do zero. (CRENSHAW, 2002, p. 174

- grifamos).

Essa pequena citação indica que para pensar em políticas públicas de igualdade é

preciso estar atento para as desigualdades existentes dentro das próprias relações desiguais

anunciadas. Dessa forma, os caminhos e as estratégias para uma mulher branca, heterosessexual, de

classe média para romper com o ciclo de violência doméstica não serão os mesmos tomados por

6 Mapa da violência 2015. Disponível em: <http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf.> Acesso em 15.01.2017.

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Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

uma mulher negra, pobre e lésbica ou por uma mulher deficiente. Em outras palavras, os

mecanismos criados pela Lei Maria da Penha devem se adequar às necessidades e condições que as

mulheres vivem, verificando o entrecruzamento dos diferentes marcadores sociais impostos a elas.

Referências:

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CAMPOS, Carmen Hein de. Criminologia e feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999, p. 53-54.

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Da mulher como vítima à mulher como sujeito. In: CAMPOS,

Carmen Hein de. Criminologia e feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999, p. 105-117.

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e a criminologia crítica: a experiência brasileira. In C. H. Campos (Org), Lei Maria da Penha

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MENDES, Soraia da Rosa. Justiça Penal e Justiça de Família: a Guarda Compatilhada e a proteção

que desprotege. Revista Direito Público, Porto Alegre, v. 13, Edição Especial, p. 167-181, 2016.

Legislação:

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<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm>. Acesso em: 15.01.2017.

BRASIL. Código de Processo Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-

2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 15.01.2017.

Challenges for the consolidation of a defense system for women in situation of domestic

violence.

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Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

Abstract: The "Maria da Penha" Law was created from the reflections and concerns of the feminist

women's movements and organizations, which sought to create a self-defense system for women in

situation of domestic violence. With this pioneering spirit, the Law brought several challenges to

the justice system, since it tried to adapt the judicial and procedural organization to the demands of

women. In this sense, the Protective Law, besides seeking a transformation in the patriarchal

culture, aimed to break with the compartmentalized standard of the justice system. There are many

challenges for the consolidation of this new paradigm of justice and the present article has the

objective to focus on some of them. Failure to enforce the hybrid jurisdiction of Domestic Violence

Courts is one of the main changes enunciated by the protective statute, but it is not put into practice

and causes serious harm to women. The compulsory criminal procedures for the activation of some

protective guardianship is also another factor that is worrying the networks of care for women in

situation of violence. It is these envelopes and other challenges that the present article intends to

reflect upon, investigating the impasses for the implementation of the “Maria da Penha” Law, in the

light of the positions of the movements, organizations and networks of women / feminists.

Keywords: Maria da Penha Law, justice system, Domestic Violence Courts, feminist movements


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