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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
NOS TRILHOS DA ESQUERDA, DO CENTRO OU DA DIREITA – VOLVER! :
UMA ANALISE DE TRÊS CANDIDATURAS AO LEGISLATIVO MUNICIPAL DE
MULHERES DE TERREIRO NO RIO GRANDE DO SUL
Ìyá Sandrali de Ọ̀ṣun 1
Resumo: Os avanços das ações afirmativas referente às candidaturas de mulheres no poder legislativo são
incontestáveis: fruto da luta e conquistas do movimento social na viajem em busca da equidade de gênero e raça em
todos os espaços da sociedade brasileira. As mulheres negras de terreiro também têm feito essa viajem. Permitam-me
utilizar da forma poética para definir a situação: o trem é o mesmo e embarcamos na mesma estação. A diferença está
no lugar que nos tem sido reservado neste trem. Juntas limpamos a estrada e desentortamos os trilhos; juntas
escolhemos o destino. Juntas escolhemos a estação e juntas colocamos o combustível; juntas aquecemos a máquina,
lubrificamos as peças; juntas damos a partida. Mas ainda não sentamos nos lugares destinados à primeira classe, aliás,
ainda não conseguimos romper com este modelo excludente. Estes lugares continuam sendo ocupados por uma minoria
e pouca foi a mudança nas poltronas. A cidade coloriu-se com turbantes, saias, colares. Mas não se consegue mesclar,
na mesma proporção, os espaços de poder, com ‘as cores’ e os saberes das mulheres negras de terreiro. O poder
negro/feminino e a visão das mulheres negras, diante da política, não têm corporeidade. Então, utilizando a visão senso
perceptiva da tradição de matriz africana, pretendo analisar como o binômio racismo-machismo, no imaginário coletivo
da política, resulta no impedimento para mulheres negras de terreiro.
Palavras-chave: Racismo, Mulheres de Terreiro, Política, Feminismo Negro
1.Deslocando verdades: pelos caminhos e trilhos da tradição afro-brasileira
Uma comunicação oral que se utiliza do senso-percepção da tradição de matriz
africana, como ferramenta, para analisar três candidaturas de mulheres negras de terreiro, ao poder
legislativo de duas cidades com alto índice de população auto declarada de matriz africana e afro-
umbandista, no território sul-rio-grandense, permite-me iniciar saudando o Mensageiro da
Comunicação - Bará, o Senhor do Corpo e dos Caminhos e recorrer ao princípio da oralidade
como caminho inicial na encruzilhada de saberes, lugares e agenciamentos de verdades que compõe
o 13º Mundos de Mulheres & Fazendo Gênero 11.
De acordo com o lugar por onde me referencio, enquanto mulher negra, com saber iniciático
na filosofia tradicional de matriz africana e afro-umbandista, Batuque do Rio Grande do Sul e no
povo da tradição yorùbá,2 quando Olódùmarè, O Ser supremo, Senhor da Existência e do Universo
1 Ìyá Sandrali de Ọ̀ṣun é o nome de identidade social/religiosa de Sandrali de Campos Bueno. Ìyálòriṣá, Autoridade Civilizatória da Tradição de
Matriz Africana, Psicóloga, Especialista em Criminologia. Ativista social. Servidora pública. Atualmente Secretária Executiva do Conselho do Povo de Terreiro do Estado do Rio Grande do Sul. Gestão 2014-2018. Porto Alegre, Brasil 2 Segundo S O. Biobaku, citado em VERGER (1981, p.11) “o termo ‘yorùbá’ aplica-se a um grupo linguístico de vários milhões de indivíduos” Ele
acrescenta que, “além da linguagem comum, os yorùbá estão reunidos por uma mesma cultura e tradições de sua origem comum, na cidade de Ifé. [...]. Segundo o mesmo autor (ibidem, p.14), “o termo ioruba, efetivamente chegou ao conhecimento do mundo ocidental em 1826, através de um livro do Capitão Clapperton”.
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criou a Verdade, ele a fez como um grande espelho sagrado entre o òrun e o àiyé e confiou aos
cuidados de uma filha de Oxum. Todos os dias ela cuidava da Verdade com esmero de quem
reconhece a Beleza e o Sagrado que existe em si, na Outra Pessoa e em todos os seres vivos e não-
vivos. Um dia, por um descuido, destes que não são conscientes, mas que tem origem no desejo
intrínseco de novas possibilidades e descobertas, o espelho se quebrou e espatifou-se em milhares
de pedaços, tantos quantos são os seres existentes no Universo. Preocupada, compreendendo que
provocara uma mudança, - pois, uma vez, quebrado o espelho não teria como reconstituí-lo -,
dirigiu-se a Olódùmarè, temerosa. Olódùmarè, na sua Sabedoria Infinita de que o Acerto existe
porque o Erro o provoca, lhe disse: Agora a Verdade se dividiu em milhares de pedaços e espalhou-
se em todos os lugares e para todas as pessoas; isso fará com que cada pessoa diga: eis aqui a
verdade, eu a tenho.
Bàbá conta que seu Bàbá contava que sua Ìyá contava e eu me utilizo do direito sagrado da
palavra para dizer que a Verdade foi distribuída por Ọ̀ṣun, a Senhora da Fecundidade, por entender
que o Poder da Onipresença e da Onisciência faz parte da conjunção da Energia Feminina e da
Energia Masculina para que as pessoas possam nutrir-se da presença e do conhecimento de todos
para conquistarem o poder de ‘Si-Próprio’ e o Lugar da Verdade ser aquele que está relacionado
com o lugar da vivencia de cada um.
Diante disso, quero afirmar que, também, tenho meu pedaço de espelho e se, por algum
momento, parecer que esteja falando como sendo dona da verdade toda, que as minhas ancestrais
possam me mostrar que necessito da verdade de cada um e de cada uma, que comigo partilha esse
momento de troca de saberes, transformações, conexões e deslocamentos, em tempos de resistência,
para efetivar a construção de espaços de poder equânime na disputa de um projeto político que dê
conta da mudança do paradigma civilizatório, até então caracterizado por resquícios de
colonialismo e capturação de subjetividades.
Contudo, é preciso reafirmar que enquanto não houver paridade de gênero e equidade racial,
em todos os espaços e segmentos da sociedade, a luta das mulheres negras por direitos e por bem
viver ainda será vista como concessão e não como uma conquista.
Nota da autora: Em relação à grafia do termos, em iorubá, utilizados no texto que ora apresentamos nos referenciamos no APÊNDICE – KÍKỌ ATI NÍ
KÍKÀ ÈDÈ YORÙBÁ (ESCREVENDO E LENDO NO IDIOMA IORUBÁ) que consta na Dissertação de Mestrado em Teologia de Hendrix Alessandro
Anzorena Silveira (2014) . Também verificar: www.orelhadelivro.com.br/livros/661312/dicionario-yoruba-portugues/
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2.Conectando verdades: Povo de terreiro na viagem em busca da equidade de gênero e raça
A sociedade e o estado brasileiro têm uma dívida histórica secular, para com o Povo
de Terreiro, sobretudo com as mulheres negras que sustentaram e continuam sustentando, de forma
fascinante, as comunidades religiosas de matriz africana, em contraposição às ações e estratégias
que, por mais de quinhentos anos, estão circunscritas no ideário de aculturamento racista e machista
que, de forma perversa, destituiu e desconstruiu a ordem e a organização da cosmovisão de um
povo cuja dinâmica civilizatória transcende a lógica da subjetividade individual. Assim o é em todo
território brasileiro e não seria diferente no Rio Grande do Sul, estado cujo imaginário social
construiu uma representação de um lugar com características europeias, habitado por descendentes
italianos e alemães numa tentativa de supremacia em relação aos demais grupos étnicos que
compõem a formação da população desse estado.
A historiografia do Rio Grande do Sul é permeada por temas controversos em relação a
participação do negro que transcende à construção identitária do povo sul-rio-grandense. Entretanto,
a cada ressignificação da memória, na perspectiva do estudo da história da África e dos africanos e
da luta dos negros, na diáspora, fica evidente que a dinâmica civilizatória de matiz africana está
intrínseca na busca da identidade afro-brasileira e da afirmação do pertencimento construídas a
partir da recomposição de valores que tem como premissa ontológica a preservação da vida. Esse
processo recompõe e ressignifica a herança combativa de homens e de mulheres que foram
escravizados e serve de referencial às iniciativas pioneiras dos movimentos sociais negros,
incidindo na luta por políticas públicas em defesa dos direitos da população afrodescendente como
um todo.
No ano de 2011, Ano Internacional do Afrodescendente, dignitárias e dignitários dos
Povos de Terreiros da cidade de Porto Alegre e de municípios do Estado do Rio Grande do Sul
potencializam a Marcha Estadual pela Vida e Liberdade Religiosa no Rio Grande do Sul e
entregam uma carta ao governador Tarso Genro, como um ato simbólico de inauguração de um
novo patamar nas relações do movimento social com o governo, ressaltando a importância de um
diálogo produtivo e efetivo junto ao estado.
O Povo de Terreiro do Rio Grande do Sul tem dado mostras de sua capacidade
organizativa, bem como realizado avanços na construção de políticas públicas; a organização das
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mulheres de terreiro espelha esses avanços, assumindo responsabilidades e tarefas na manutenção
dos espaços conquistados, da mesma forma combativa com que suas ancestrais assumiam e
desafiavam a escravidão, muitas vezes pagando com a vida pela sua resistência e desafio.
O racismo e o machismo são estruturantes do sistema colonialista brasileiro que se perpetua
até os dias de hoje. O feminismo ocidental não contempla a realidade das mulheres negras
historicamente subalternizadas e o machismo as atinge, indistintamente. Poucos são os recursos
que tem se mostrado eficiente em se tratando de protagonismo político, social e econômico que
revertam na ocupação do espaço do poder legislativo, ou seja, no lugar de criar leis, lugar onde
poder-se-ia contribuir com a vitalidade da força da mulher negra de terreiro, em políticas de
combate ao binômio racismo/machismo, principal entrave no transcorrer dessa viagem. Tudo isto, e
muito mais, são fios tecidos pelas mulheres de terreiro com alteridade negra e feminina, sobretudo
tendo como força condutora o arcabouço civilizatório presente na memória ancestral e na sabedoria
matricentrada, das mulheres que vieram antes e lutaram pela conquista da cidadania, como refere
Helena Theodoro,
Ser cidadã negra brasileira é sair da retaguarda para a vanguarda, com todo o potencial
herdado da comunidade negra, com toda a espiritualidade e arte de nossas ancestrais –
borboletas coloridas, presas em mel estragado, se arrastando pelo mundo, mas plenas de
sonhos e visões. (THEODORO, 1995, p.57).
3.Município: Um deslocamento possível na interação de forças criativas
O Município, enquanto espaço entendido como lugar onde as atividades humanas
são exercidas numa troca direta no âmbito das relações cotidianas que se conectam com as
experiencias e o viver das pessoas, de forma concreta, mediadas por possibilidades e interações que
mobilizam forças criativas, potencialmente condutoras de respostas aos esquemas de negociação e
de desenvolvimento de oportunidades e garantias de solidariedade, obtenção de saúde, paz e
prosperidade, é, invariavelmente, o espaço onde se expressa a vinculação à arte de aproximação da
célula primeira que gera a vida ao pleno desenvolvimento das condições de promover a existência
digna desse viver, ou seja, é o lugar onde as pessoas nascem, crescem e deveriam ter as mesmas
condições de se desenvolverem integralmente e optarem, ou não, a entrarem em contato com outros
lugares para poderem ampliar sua compreensão das transformações, conexões e deslocamentos dos
mundos singulares e das diferenças que consagram o sagrado direito de ser.
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Dito isto, na visão senso perceptiva da matriz africana, diante das conquistas das mulheres,
da força ativa do movimento de mulheres negras e dos avanços nas políticas públicas, não haveria
qualquer barreira, institucional - ou não - que impedissem as mulheres negras de terreiro, de
embarcar nesta viagem ao encontro de uma atuação como parlamentar que represente sua história e
trajetória, numa concepção matricentrada, a partir do poder de agir em nome de uma coletividade,
cuja religiosidade se anuncia como visão de mundo, como concepção que permeia a existência. No
entanto, é justamente neste momento que o binômio racismo-machismo se expressa na sua forma
mais violenta e cruel, apontando-lhes estereótipos que afetam suas possibilidades, desejos e
motivações para ocupar posições políticas que lhes facilitassem o enfrentamento do mundo branco e
patriarcal.
4.Da escolha dos municípios: constatando verdades na possibilidade de embarque
O deslocamento do lugar de autoridade civilizatória da tradição de matriz africana3
para colocar-me no lugar de pesquisadora afirma um método de interdependência entre razão e
emoção, entre sentir, perceber, pensar e agir que caracteriza uma concepção de mundo diferenciada
da filosofia judaica cristã e da concepção ocidental de análise da realidade, ou seja, como refere
Jose Carlos dos Anjos (2008), na concepção filosófica afro-brasileira, a noção de pessoa se
contrapõe à noção usual de sujeito político que emana da modernidade política ocidental, pois a
concepção de pessoa, na matriz africana, está estritamente vinculada ao modo de enxergar o
universo, as individualidades, as relações com os outros e com a natureza numa dimensão sagrada.
E é com essa interdependência que pretendo permear o estudo e análise dos dados por mim
pesquisados.
Segundo dados do Instituto Brasileiro e Geografia e Estatística – IBGE, Censo 2010, o Rio
Grande do Sul é o estado brasileiro que mais autodeclara o pertencimento às religiosidades de
tradição da matriz africana e afro brasileira. Os dados indicam que 315.198 domicílios, mais de 65
mil terreiros espalhados pelo território gaúcho, configuram um cenário diferenciado enquanto
territorialidade das comunidades tradicionais de matriz africana e afro umbandistas se comparado
3 Termo cunhado por Jayro Pereira de Jesus (Egbon Ògiyán Kalafó Olorode) afroteólogo,) para identificar as pessoas vivenciadores da tradição de
matriz africana, reconhecidas pela comunidade no exercício do sacerdócio de matriz africana. (www.escavador.com/sobre/8383879/jayro-pereira-de-jesus
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com os demais estados brasileiros, podendo suscitar outros estudos, inventários e formulações sobre
as relações inter-religiosas no solo sul-rio-grandense.
Porto Alegre apresenta a maior concentração de domicílios, ocupando o primeiro lugar com
94.571 de domicílios com auto declaração de pertencimento e Pelotas apresenta um escore de
22.178 ficando na quarta posição entre os municípios que apresentam domicílios com auto
declaração de pertencimento à tradição de matriz africana e seus desdobramentos de declarações de
religiosidades afro-brasileiras.
Além do índice de domicílios autodeclarados de tradição de matriz africana e seus
desdobramentos, como Batuque, Umbanda e outras denominações de religiosidades afro brasileiras,
a escolha de Porto Alegre e Pelotas como espaços a serem sentidos, percebidos e pensados,
enquanto lugar de possibilidades eleitorais para mulheres negras de terreiro, também há que se
considerar o índice de população de pessoas negras e pardas. Entre as dez maiores cidades do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre é a que possui a maior população de negros e pardos: 225.354 pessoas.
No interior do estado, Pelotas é o município que apresenta a maior população de negros: 51.567
pessoas. A população total destas cidades é de 1.360.590 e 323.158, respectivamente, ou seja,
tratando-se de percentuais, Porto Alegre apresenta um percentual de negros e pardos de 16,5% da
população total e Pelotas um percentual 15,9% da população total.
5.As candidaturas: limpando estrada, desentortando trilhos, já temos o combustível.
.
O cenário político, como um todo, é um terreno bastante hostil para as mulheres.
Infelizmente, as mulheres ainda são criadas visando o espaço privado, o cuidado com o lar, com a
família e as atividades domésticas. A política, como coisa pública que é, ainda continua sendo um
espaço em que as mulheres são colocadas em segundo plano. Embora o acesso das mulheres aos
partidos políticos tenha aumentado significativamente, oriundo de muitas lutas das próprias
mulheres, o poder continua concentrado nas mãos e nas vozes dos homens.
O senso comum nos fez acreditar que religião e política não se misturam nem se discute e não
era ‘coisa para mulheres’. Por muito tempo nossas mais velhas se mantiveram no lugar de
acolhedoras, em seus terreiros, aos políticos, - homens brancos - que, em troca de pequenas
concessões e promessas de melhorias no espaço do terreiro, usufruíram da confiança e do
envolvimento das Mães/Ìyás, em suas candidaturas, apropriando-se do carisma, da liderança e do
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respeito que mães (e pais) de santo exerciam (e exercem) perante suas comunidades e no entorno,
sobretudo pela relação que o terreiro estabelece com a comunidade, ou seja, preservação de
princípios civilizatórios amalgamados num processo de reconhecimento do Outro enquanto Força-
Ser a serviço da coletividade.
Partindo da noção de pessoa em conexão com a história, cultura e religiosidade afro-brasileira,
atribuí uma dijina4 a cada uma das candidaturas: Yemowo, Maré e Alupande - e tratei o espaço do
pleito eleitoral como um patrimônio imaterialmente sagrado já que, conforme refere a concepção
que norteia o pensamento filosófico negro-africano o nome individualiza, situando-o no grupo,
mostrando sua origem, sua atividade e sua realidade como pertencente a uma comunidade com a
qual estabelece um compromisso que dá sentido à vida em coletividade e isso é sagrado, pois todas
as atividades humanas tem um caráter sagrado, principalmente aquelas que emanam do
compartilhamento do poder de realização.
Para formatação do perfil da candidatura fiz a coleta de informações no portal do Supremo
Tribunal Eleitoral e nos sites disponíveis referentes às eleições 2016.
CANDIDATURA YEMOWO5 : Reginete Souza Bispo, Òmóriṣá (filha-de-santo), negra,
socióloga com especialização em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Rio Grande do
Sul -UFRGS. Atua desde o início da década de 80 em movimentos sociais, em direitos humanos,
contra o racismo, atuando junto as comunidades quilombolas, especialmente na luta pela
regularização fundiária do Quilombo dos Alpes, um dos poucos quilombos que vivencia a tradição
de matriz africana enquanto religiosidade; defensora da laicidade do estado, integra o movimento de
luta contra a intolerância religiosa e pelo direito à liberdade de culto. Trabalhou na Comissão de
Direitos Humanos e Minorias, atuou como assessora especial no Conselho de Desenvolvimento
Econômico e Social do Estado do Rio Grande do Sul – CEDES; diretora da organização de
mulheres negras Akanni - Instituto de Pesquisa e Assessoria em Direitos Humanos, Gênero, Raça e
Etnias6. Atua junto as comunidades de imigrantes e refugiados, sobretudo os senegaleses e
caribenhos. Dirigente partidária, fazendo parte da executiva do partido e já concorreu em três
4 Nos candomblés e na umbanda , os candomblés bantos nome iniciático pelo qual o filho ou filha de santo será conhecido(a) depois da feitura. Do
quimbundo dijina,”nome”(LOPES, 2011, p.244) 5 Nome recebido quando de sua iniciação na tradição de matriz africana, no Ìlé Àṣe Omi Olodo, cujo significado é: aquela cujo poder foi aceito pelos orixás femininos. Atualmente pertence à comunidade onde militou, nos inícios dos anos 1990, no processo de resistência à remoção da Vila Mirim liderada pela mãe de santo Dorseliria Maria da Silva, Mãe Dorsa de Oxalá (falecida em 2016). Para maior conhecimento desta luta pela territorialidade, Ver: DOS ANJOS. Jose Carlos Gomes. No território da Linha Cruzada: a cosmopolitica afro-brasileira. Porto Alegre: Editora da UFRGS/Fundação Cultural Palmares, 2006. 6. AKANNI significa nosso encontro tem poder. https://www.facebook.com/akanni.ong/#. Acesso em: jun.2017
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eleições ao legislativo, incluído nível estadual. Casada, tem uma filha e um filho, adolescentes,
cursando ensino médio e universitário respectivamente. Mora em Porto Alegre, no bairro Partenon,
na periferia da cidade, com uma concentração significativa de população negra onde se constata
uma série de situações que requerem intervenções do estado no que se refere às políticas públicas.
O bairro também é reduto de várias casas de religião que se caracterizam pela permanência
territorial de várias décadas. Candidatura pelo Partido dos Trabalhadores – PT. Coligação
PT/PCdoB. Plataforma eleitoral: Vamos construir um mandato para: Combater o racismo,
machismo, homofobia, transfobia, e a intolerância religiosa. Criar políticas de proteção,
acolhimento e adaptação a imigrantes e refugiados. Atuar na regularização fundiária e
preservação dos territórios tradicionais. Construir estratégias solidárias no enfrentamento a
violência e ao racismo institucional, responsável pelo genocídio da população negra. Fortalecer
políticas de reconhecimento e valorização cultural das etnias.7
Nome na urna: Reginete Bispo Votos: 1199 Resultado da votação: suplente
CANDIDATURA MARÉ8: Nilza Terezinha Marques Valinodo, Ìyá Nilza de Yemanjá,
Ìyálóriṣá (mãe-de-santo), setenta e um anos de idade, negra, nível de instrução de ensino médio,
líder comunitária, com pertencimento nas comunidades carnavalescas, dirigindo uma organização
de ‘baianas independentes’ que desfilam nas escolas de samba de Porto Alegre e em outros
municípios; divorciada, mãe e avó, abriga em sua casa, filhas e netos, além de algumas filhas-de-
santo, sempre que isso se faz necessário; tem vínculos, de longa data, com lideranças afro-religiosas
e relações políticas atuando como apoiadora de candidaturas. Integra a Rede Nacional de Religiões
Afro-brasileiras e Saúde/NúcleoRS. Participou no documentário Cuidar nos Terreiros. Fez parte da
Comissão Impulsora de criação do Conselho do Povo de Terreiro e é conselheira, representante do
município de Porto Alegre, no Conselho do Povo de Terreiro do Estado do Rio Grande do Sul.
Mora em Porto Alegre, no bairro Bom Jesus, bairro periférico da cidade com grande número de
moradores negros e ‘casas de religião’ com longo histórico de territorialidade no local, sendo
considerado no imaginário social um bairro de batuqueiros. Candidatura pelo Partido Verde – PV.
Plataforma eleitoral: Mãe Nilza de Yemanjá, a força de uma guerreira. A Oportunidade de
Mudança. Propostas: legalização das casas de religião africana e luta pelos direitos do povo de
axé. Inclusão social e capacitação para os moradores de periferias da nossa cidade. Elaboração de
7 Fonte: https://www.facebook.com/groups/amigaseamigosdareginete/photos. Acesso em: jun.2017
8 Aqui uma alusão ao ‘seu Maré’, entidade de Linha Cruzada de Mãe Nilzinha que completou 58 anos de manifestação
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projetos de oficinas do segmento do carnaval, como forma de incentivar a geração de emprego e
renda e fomentar a cadeia produtiva do setor. Assistência e monitoramento a criança e ao
adolescente.9
Nome na urna: Nilza de Iemanjá Votos: 219 Resultado da votação: não eleita
CANDIDATURA ALUPANDÉ10: Patrícia Peres Pontes, negra, casada, professora de
ensino fundamental, cursando faculdade de Educação, microempreendedora, quarenta e três anos de
idade. Iniciada no Batuque por um babalorixá influente na cidade de Porto Alegre, Pai Juarez do
Bará. Tem importante pertencimento na linha cruzada (quimbanda), cujo crescimento é notório no
Rio Grande do Sul e países do Sul do continente, especialmente, Uruguai e Argentina. Faz parte da
associação AFROCONESUL. Promove eventos festivos de caráter religioso, como por exemplo, o
Encontro de Exubandeiros: Personalité. Apresenta um programa de caráter religioso e sócio
cultural, A Voz da Cidade, na TV Cidade Pelotas canal 20 da Blue. Mora em Pelotas, no bairro
Cruzeiro do Sul, periferia da cidade com população negra significativa e um número, considerado
relevante, de centros de religião afro brasileira. Candidata pelo Partido Democratas - DEM,
coligação DEM-PTC-PHS. Plataforma eleitoral11: Não encontrada plataforma, nem propostas.
Nome na urna: Patrícia Pontes. Votos: 124. Resultado da votação: Suplente.
6. Deslocando verdades: O preço moral de uma candidatura de mulher negra de terreiro
Ser mulher e atuar no campo da política é um desafio gigantesco. Ser mulher, negra, de
esquerda, de centro ou de direita atuando na política é um desafio ainda maior, sobretudo quando
vivencia as tradições de matriz africana. Esses desafios se explicitam quando se constata que o
deputado federal mais votado, no estado do Rio Grande do Sul, representa os setores mais
reacionários do estrato social gaúcho e além disso, os próprios partidos políticos silenciam as suas
figuras públicas femininas, negras e de matriz africana e afro-umbandista. Os números de votos
destinados aos homens, com discursos altamente reacionários, exigem que tenhamos uma mudança
de postura dentro dos movimentos sociais e dos partidos políticos, sobretudo dos partidos
declarados como de esquerda. Contudo, os partidos políticos, tanto de centro quanto de esquerda,
também apresentam idiossincrasias em seu fazer que reverberam práticas configuradas na
9 9Fonte: https://www.facebook.com/yalonilzadeyemanja. Acesso em: jun.2017
10Aqui fazendo referência à saudação às entidades de linha cruzada (exus) no Rio Grande do Sul. 11 Fonte: eleicoesepolitica.com/vereador2016/vereador/RS/.../25777. Acesso em: jun.2017
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arbitrariedade cultural que funda a sociedade brasileira sustentada pelo binômio racismo-machismo
E é neste cruzamento que observa-se uma necessidade de dar-se um giro, uma vira-volta para que se
reflita sobre a forma que, muitas vezes, são colocados projetos personalistas acima da construção
política, do coletivo e das possibilidades concretas de avanço e consolidação daqueles e daquelas
que vocalizam as pautas e os anseios da população afro descendente, sobretudo das mulheres negras
de terreiro cuja fala não deve ser percebida apenas como meio de expressão e comunicação, pois na
filosofia de tradição africana, falar é agir.
7. Considerando verdades: o que nos impede de ocuparmos o lugar no trem do poder legislar
O resultado das eleições de 2016, cujo convite ao embarque no trem da livre escolha
apontava para #SEUVOTOSUAVOZ12 numa livre associação do poder da fala representativa e na
força da imagem como veículo de propagação de valores, considerando a ética civilizatória do bem
comum, causa estranhamento a quem acredita na radicalidade da democracia. Porém, entendo que
apenas confirma o fortalecimento de práticas de xenofobia, sexismo e racismo articuladas nos
bastidores do poder e submetidos ao senso comum de uma sociedade historicamente construída sob
a égide vampiresca da culpa e da falta.
Durante o último processo eleitoral, vivenciei, enquanto coordenadora da campanha
de uma das candidaturas, a grande necessidade de construir, cada vez mais, mecanismos e
estratégias, a partir dos pressupostos civilizatórios de matriz africana, de fortalecimento das figuras
públicas femininas e negras que se propõe a serem porta-vozes de ‘Si-mesma’ e de sua comunidade.
Contudo essa construção é árdua, pois lida-se com as adversidades e os impactos causados pelo
legado da supremacia branca e machista que produziu uma vampirização faminta em constante
busca de vida saudável para sua sobrevivência, através do sangue e do suor do povo brasileiro.
Considerações finais neste deslocamento que inauguro no Fazendo Gênero
A feminilidade negra, não é um conceito que individualiza, não é algo subjetivo. É
algo singular- uma singularidade que se expressa a partir do coletivo que ajuda a manter a saúde
mental. A feminilidade negra, ‘orimentalmente matricentrada’ é a Força Vital que não se
categoriza: se experimenta. A prova de que ela existe é porque eu a sinto como algo que me
assemelha à força da outra mulher que está fora de mim e em toda parte da Natureza.
12 http://www.tse.jus.br/imagens/imagens/logo-eleicoes-2016/@@images/9b24cf2f-5260-4e42-bbd1-be5f0a4cbb4d.jpeg. Acesso em: jun.2017.
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Acredito que muito há para ser estudado e aprofundado diante dos acontecimentos
que envolveram as eleições de 2016. Não existem fórmulas prontas do ponto de vista do
conhecimento, de técnicas e metodologias conceituadas nos espaços acadêmicos. E concluo essa
breve viagem dizendo: antes de existir a Palavra, existia o conhecimento e sua ação; que antes de
existir a Escrita, podíamos compreender o que conhecíamos e compartilhar; que antes de existirem
as Escolas, existiram e resistem os Terreiros, as Comunidades Tradicionais, as Rodas de Conversa,
a Transmissão Oral, a Transmissão Mãe a filho-filha, Pai a filha-filho; que antes, inclusive da
Palavra e da transmissão oral ou escrita, existe o Exemplo, a Imitação e a imitação que é construtiva
e criativa, que expande o campo da percepção, das sensações e das competências humanas; que
antes de existirem as escolas, nos Terreiros, nas Comunidades Tradicionais há a aprendizagem, há
transmissão dos conhecimentos, há um fio condutor que desloca todos os saberes conectando-os
entre si , não por empatia, mas sim por vivência compartilhada.
Title: On the rails of left, center or right - Back!: analysis of three candidacies to municipal
legislature by black terreiro women in Rio Grande do Sul.
Abstract: The advancements of affirmative actions regarding candidacies of women to
legislative power are uncountable: result from the struggle and achievements of social movements
that search for gender and race equity in every space of Brazilian society. The black terreiro women
are also in this search. Allow me to use some poetry to define the situation: the train is the same and
we board at the same station. The difference is in the seats that have been booked for us in this train.
It is together that we clean the road and fix the rails; together we choose our destination. Together
we choose the station and together we fuel; together we warm the machine up; together we grease
the parts; together we start the engine. But still we do not take the seats that are reserved for the first
class, moreover, we still cannot breakaway from such excluding model. These seats are still taken
by a minority and changes regarding them were minimum. The city became colorful with Afro
turbans, skirts, necklaces. But we are not able to repeat such mixture, in the same proportion, of the
spaces of power and the "colors" and knowledge of black terreiro women. The black/female power
and the views on black women do not have corporeity, facing politics. So, through a sense-
perceptive view from African matrix traditions, I intend to analyse how the binomial racism-sexism,
in the collective politics imaginary, results into a hindrance for black terreiro women.
Keywords: Racism, Sexism, Black Feminism, Politics, Terreiro Women
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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
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